revista cidadania e meio ambiente

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L A revista Cidadania & Meio Ambiente é uma publicação da Câmara de Cultura

Caros Amigos, O relatório Panamora da Biodiversidade Global 3, produzido e publicado pela Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), em maio último, revela que as variedades de arroz cultivadas na China despencaram de 46.000 (em 1950) para pouco mais de 1.000 (em 2006); que mais de 70% da diversidade genética de 200 a 300 variedades de plantas usadas na alimentação, desde o desenvolvimento da agricultura, desapareceram em estado natural, só existindo em bancos de genes; e que somente nos primeiros seis anos deste século, mais de 60 raças de animais de criação foram consideradas extintas. A partir desse quadro alarmante de empobrecimento do patrimônio genético natural em escala mundial, mais grave ainda é a atuação dos deputados federais que patrocinam alterações no Código Florestal Brasileiro para atender a reivindicações da bancada ruralista. Para entendermos a complexidade da questão que coloca em risco iminente a segurança da biodiversidade e da rede aquífera brasileiras – e, por extensão, favorece o agravamento dos fatores que contribuem para o aquecimento global –, publicamos o texto de advertência do Professor Aziz Nacib Ab’Saber, geógrafo, professor emérito da UPS, autor de centenas de pesquisas e tratados científicos que contribuem para o enriquecimento da ecologia, da biologia evolutiva, da fitogeografia, da geologia, da arqueologia e da geografia. “Pressionar por uma liberação ampla dos processos de desmatamento significa desconhecer a progressividade de cenários bióticos a diferentes espaços de tempo futuro, e favorecer de modo simplório e ignorante os desejos patrimoniais de classes sociais que só pensam em seus interesses pessoais (...), nada entendem de previsão de impactos e não têm compromisso ético com a natureza.”. Confira porque a indignação e os argumentos cientificamente irrefutáveis apresentados no artigo por Aziz Ab’Saber provam que as propostas de flexibilização do Código Florestal levarão ao retrocesso, senão à falência inelutável das florestas e cursos d’água do país. Haverá uma alternativa ecodesenvolvimentista ao atual modelo econômico? Será que a continuidade do crescimento econômico poderá ser compatibilizada à exigência de sustentabilidade? O progresso social sempre dependerá do crescimento econômico? Será que essa relação não está sendo dificultada por avaliações baseadas em convenções ultrapassadas, adotadas quando nem se cogitava sobre a existência de um fenômeno como o aquecimento global? As respostas são dadas no brilhante artigo de José Eli da Veiga e nas reflexões de Michael Löwy sobre a crise do modelo capitalista de consumo associada à crise ecológica.

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Diretora Editor Subeditor Projeto Gráfico Revisão

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Colaboraram nesta edição Agência Brasil Agência Deutsche Welle Alana Gandra Alfonso González Aziz Ab’Saber Carlos Machado Igor Felippe Santos Jane McGrath José Eli da Veiga Marcelo Szpilman Michael Löwy Panorama da Biodiversidade Global 3 Roberto Smeraldi The Pacific Institute UNEMG UNEP/GRID-Arendal Wanderlei Antonio Pignati

Visite o portal EcoDebate [Cidadania & Meio Ambiente] www w.. e c o d e b a t e . c o m . b r Uma ferramenta de incentivo ao conhecimento e à reflexão através de notícias, informações, artigos de opinião e artigos técnicos, sempre discutindo cidadania e meio ambiente, de forma transversal e analítica. Cidadania & Meio Ambiente também pode ser lida e/ou baixada em pdf no portal www.ecodebate.com.br

Helio Carneiro Editor

A Revista Cidadania & Meio Ambiente não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos em matérias e artigos assinados. Editada e impressa no Brasil.

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Nº 28 – 2010 - ANO V Capa: Montagem sobre imagem Pink Sherbet Photography

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Do aquecimento global ao ecodesenvolvimento

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Água: cronologia de conflitos (3ª. parte 1999–2009)

Esta síntese dos dois primeiros capítulos do recém-lançado Mundo em Transe analisa a relação entre crescimento econômico e sustentabilidade ambiental, e alinhava as dificuldades que pontilham a transição para a economia de baixo carbono. Por José Eli da Veiga

A utilização não equitativa dos recursos hídricos vem tingindo de sangue as águas que banham a História da Humanidade, como revela esta última parte do estudo os Conflitos da Água. Por The Pacific Institute

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Agrotóxico: problema de saúde pública

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Crise ecológica: mais grave que a econômica

A lavoura brasileira foi “afogada” em 1 bilhão de litros de praguecidas em 2009. Esse uso exagerado que torna o país o maior consumidor mundial de agrotóxicos já deixou de ser uma questão agrícola para se transformar em questão de saúde pública. Entrevista com Wanderlei Antonio Pignati

Co-autor do Manifesto Ecossocialista Internacional, Michael Löwy reflete sobre a crise do modelo capitalista de consumo associada à crise ecológica, e apresenta uma alternativa ecossocialista para o atual modelo econômico. Entrevista por Alfonso González

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A exaustão da diversidade genética

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Cidades

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Masdar City: uma cidade sem poluição

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Degradação ambiental na sociedade do risco

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Pescado: a fonte ameaça secar

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Do Código Florestal ao da Biodiversidade

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Uma afronta ao Estado de direito

Os ecossistemas naturais e os sistemas de produção agrícola e pecuária estão em fase de empobrecimento genético. Confira as ações em andamento para conservar a diversidade genética vegetal, especialmente via bancos de sementes ex-situ. Por Panorama da Biodiversidade Global 3

sustentáveis

Para ser sustentável, a cidade tem de reorganizar os espaços, gerir novas economias externas, eliminar as deseconomias de aglomeração, melhorar a qualidade de vida das populações e superar as desigualdades socioeconômicas para garantir o crescimento . Por Carol Salsa

Em Abu Dabi, capital dos Emirados Árabes – quarto maior produto mundial de petróleo e emissor de dióxido de carbono (CO2) –, a transição para a ecoeconomia ganha status de objetivo nacional com a construção de uma cidade ambientalmente descarbonizada. Por Jane McGrath

Enquanto as sociedades experimentam uma importante melhoria na qualidade de vida, os indicadores ambientais pioram em função de consumismo, degradação e uso insustentável dos recursos naturais, com flagrantes desigualdades em escala planetária. Por Carlos Machado

Os oceanos e sua biodiversidade devem ser vistos como prioridade na questão da preservação ambiental, já que os estoques pesqueiros naturais estão em acelerado processo de esgotamento devido à sobrepesca e à pesca predatória. Por Marcelo Szpilman

As mudanças defendidas pelos produtores rurais na proposta de flexibilização do Código Florestal Brasileiro visam proteger a vegetação ou apenas expandir as atividades produtivas em detrimento do patrimônio florestal e da biodiversidade? Por Aziz Ab’Saber

Os parlamentares acabaram por aprovar um texto de reforma do Código Florestal que enfraquece a proteção dos solos vulneráveis e os cursos d’água, ameaça a sobrevivência das reservas legais e, pior ainda, estimula o descumprimento da lei. Por Roberto Smeraldi

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Bart van Damme

Do aquecimento global ao ecodesenvolvimento por José Eli da Veiga

Este artigo apresenta uma breve síntese dos dois primeiros capítulos do recém-lançado Mundo em Transe (1), obra que remete ao debate sobre a natureza da relação entre crescimento econômico e sustentabilidade ambiental. Descubra as dificuldades que pontilham a rota da transição rumo à “economia de baixo carbono”.

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upondo que sejam afastadas as ameaças de imensas catástrofes provo cadas por uso de armas atômicas, por bioterrorismo ou bioerros, o monitoramento da mudança climática exigirá que a economia global reduza radicalmente a emissão de gases de efeito estufa. Mas uma reflexão minimamente aprofundada sobre as perspectivas desse processo, que está sendo chamado de “transição ao baixo carbono”,

levanta dúvidas sobre questões que ainda nem fazem parte das reflexões da comunidade dos economistas. Por exemplo: será que a continuidade do crescimento econômico poderá ser compatibilizada à exigência que passou a se denominar “sustentabilidade”? Será que o progresso social – ou desenvolvimento – sempre dependerá do crescimento econômico?

Será que essa relação não está sendo dificultada por avaliações baseadas em convenções ultrapassadas, adotadas quando nem se cogitava sobre a existência de um fenômeno como o aquecimento global?

TRANSIÇÃO

AO BAIXO CARBONO

Transição ao baixo carbono é o nome de batismo tardio de um processo que já tem mais de 35 anos. O que há de mais comum Cidadania&MeioAmbiente

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entre as nações que já estão bem engajadas nessa transição não é a inevitabilidade dos sacrifícios, embora tal ideia continue bem presente. Basta citar a frase escolhida por Sir David King como subtítulo do livro que escreveu com a jornalista Gabrielle Walker: “Como combater o aquecimento global e manter as luzes acesas”. (2) Ao contrário, o que estimula os pioneiros desse processo é a visão de que o combate ao aquecimento global criará uma “nova era de progresso e prosperidade”. Não por acaso o subtítulo do mais recente livro de Sir Nicholas Stern, publicado com títulos diferentes dos dois lados do Atlântico.(3) A melhor maneira de acompanhar o avanço do processo é prestar atenção na “intensidade-carbono” de cada economia. Isto é, na quantidade de emissões de dióxido de carbono (provenientes apenas do uso de energias fósseis) (4) por unidade de produto (inevitavelmente o PIB). Em termos mais precisos: essa “intensidade-carbono” costuma ser medida pelo peso (em toneladas métricas) de CO2 de origem fóssil emitido para cada mil dólares de PIB de 2000, em paridade de poder de compra. (5) Por isso, as cifras costumam aparecer em ton CO2/mil US$. Mas fica muito mais simples dividir tudo por mil para poder expressálas em gramas (ou quilos) por dólar. No período 1980-2006, essa intensidade-carbono caiu mais de um terço no clubinho dos países considerados desenvolvidos. De pouco mais de 600 gramas por dólar (g/U$) para pouco menos de 400. Nesse intervalo, o declínio global da intensidade-carbono foi da ordem de um quarto. O CO2 emitido pelo uso de energias fósseis por dólar de PIB caiu de pouco mais de um quilo para 770 gramas(6). O problema é que esse óbvio descolamento em relação ao crescimento das economias não quer dizer que tenha havido redução, ou mesmo estabilização, das emissões. Muito pelo contrário, a descarbonização foi apenas relativa, pois, como se sabe, não resultou em movimento ao baixo carbono em termos absolutos. As emissões globais oriundas do uso de energias fósseis são hoje 60% superiores às de 1980 e 80% maiores que as de 1970. Pior: são 40% superiores às de 1990, ano base do Protocolo de Kyoto. Esse é um problema gravíssimo, que está longe de se restringir ao aquecimento global. O descolamento relativo acompanha-

Christo.bakalov

sado, e que hoje exibem PIB per capita de mais de 25 mil dólares-PPC, ou IDH superior a 0,930. E no meio existe ainda um “centrão” formado por cinco ou seis dezenas de nações em ascensão, nas quais inevitavelmente se reproduzem, ou são até exacerbados, os impactos negativos do crescimento intensivo. Basta seguir, por exemplo, as emissões totais de carbono de China, Índia, Brasil, Indonésia, África do Sul e outros grandes emergentes do segundo mundo.

sobre “Aospressão ecossistemas aumenta com a expansão da economia: quanto mais produção, mais impacto ambiental.

do do aumento da pressão absoluta pode ser constatado em diversos outros tipos de pressão sobre os recursos naturais. Essa é a questão crucial – de desmaterialização sem alívio ecossistêmico – que consiste no argumento central do livro.

Se mesmo as economias mais ecoeficientes continuam a aumentar a pressão sobre os recursos naturais, só pode ser por causa de um aumento em seu tamanho que mais do que compensa os ganhos obtidos pelo descolamento relativo. De forma mais direta: por causa do crescimento dessas economias, o que remete ao debate sobre a natureza da relação que existe entre crescimento econômico e sustentabilidade ambiental.

CRESCIMENTO

E SUSTENTABILIDADE

Mais de uma centena de nações têm se mostrado incapazes de obter um crescimento econômico, mesmo de tipo extensivo, que ao menos atenda às necessidades básicas de populações que nas próximas décadas continuarão a crescer a taxas bem elevadas. No extremo oposto, encolhem as populações das duas ou três dezenas de países que mais tiveram crescimento intensivo no século pas-

O grande problema é que estabelecer essas distinções esbarra imediatamente na forte convicção coletiva de que não há nada de errado com o crescimento econômico, de que ele sempre será benéfico, sejam quais forem as circunstâncias. E talvez não tenha surgido melhor ilustração do que o trabalho da comissão formada por 18 sumidades de 16 países, sob a liderança de Michael Spence, Robert Solow e Danny Leipziger: “The Growth Report – Strategies for Sustained Growth and Inclusive Development”, publicado em meados de 2008 pelo Banco Mundial e que tem sido citado como “Relatório Spence”. Essa comissão propõe que o mundo se mire no exemplo de 13 países que, desde 1950, conseguiram que seus PIB crescessem a uma taxa média igual ou superior a 7% um período de ao menos 25 anos: Botsuana, Brasil, China, Hong Kong, Indonésia, Japão, Coréia, Malásia, Malta, Omã, Cingapura, Taiwan e Tailândia. Sem sequer discutir se seria possível para o conjunto aquilo que foi possível para uma de suas partes – caindo assim na conhecida falácia da composição –, esse relatório pretende que o PIB mundial possa mais do que quintuplicar (aumentar 5,4 vezes) em um quarto de século. Isso não quer dizer que sejam liminarmente ignorados problemas como o aquecimento global ou o aumento relativo dos preços de alimentos e energéticos. Ao contrário, na quarta parte do documento eles são considerados, junto com as revoltas contra a globalização, em um amálgama, como “novas tendências globais”, mas que seriam inteiramente exógenas. Isto é, que nada teriam a ver com o próprio crescimento econômico. Nem mesmo a dificuldade de reduzir emissões de gases de efeito estufa chega a ser considerada nesse cenário de multiplicação do PIB mundial por 5,4 em um quarto de século. Uma pergunta é aqui inevitável: o que faz com que essas 18 altas autoridades em ciên-

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cia econômica imaginem que aumentos do PIB não tenham custos socioambientais? E a principal resposta resulta de um raciocínio muito comum, que também é dos mais falaciosos: o do já enfatizado descolamento relativo (“decoupling”). Como em um dólar de PIB é consistentemente declinante a participação relativa de recursos como petróleo e minérios, deduz-se que não existam limites naturais ao crescimento econômico. (7)

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DILEMA

Assim como a prosperidade não é algo que possa ser reduzido à produção ou ao consumo, ela também não pode ser entendida como sinônimo de crescimento econômico. Ao mesmo tempo, nada garante que prosperidade sem crescimento seja algo realmente possível. Seria necessário demonstrar que a ausência de crescimento econômico não diminuiria a capacidade de uma sociedade progredir. Por isso, levar a sério o custo ambiental do crescimento tende a gerar um inevitável embaraço, que costuma ser chamado de “dilema do crescimento”. Os economistas mais convencionais negam a existência desse dilema, recorrendo justamente à noção de descolamento relativo. Afirmam que reconfigurações dos processos produtivos e mudanças na própria concepção de bens e serviços fazem com que eles exijam cada vez menos transformação de insumos materiais e energéticos. Isto é, que se tornem cada vez menos dependentes do que pode ser denominado “transumo”, material em tradução literal do termo em inglês “throughput”. Todavia, a questão nem é tanto saber o que autorizaria tamanha generalização, para toda a economia, de uma tendência até agora observável apenas para alguns produtos e processos. O maior problema do raciocínio convencional está em supor

Alphachimp Studio

Um raciocínio que é duplamente inconsistente. Pois, por um lado, ignora que continua a aumentar o fluxo de recursos naturais que atravessa a economia, mesmo que diminua no PIB seu peso monetário relativo. E, por outro, ignora que o valor é sempre acrescentado pelos humanos, mediante sua força e meios que criam para produzir (trabalho e capital), o que inclui evidentemente conhecimento e inteligência. Raciocina-se como se fosse possível a criação de valor adicionado sem uma coisa à qual ele se adicione, em geral recursos naturais.

maior eficiência no uso dos recursos energéticos também engendrou as quedas de intensidade-carbono já descritas.

Hoje, as emissões globais de energias fósseis são 60% superiores às de 1980, 80% às de 1970 e 40% às de 1990.

que esse fenômeno relativo chamado de descolamento também alivie a pressão absoluta sobre os recursos naturais. E o que mais interessa em termos de sustentabilidade ambiental é a comparação do tamanho da economia com sua base ecossistêmica. Em outras palavras, saber se com desmaterialização e maior eficiência energética será resolvido o problema elementar da existência de limites naturais à expansão do subsistema econômico. As evidências contrariam a tese convencional, mesmo nos casos em que o descolamento tem se mostrado até espetacular, como em algumas quedas de intensidadecarbono citadas acima. Mas talvez não haja melhor ilustração do que a própria “intensidade-energética” da economia global. (8) Isto é, a quantidade de energia primária por unidade de produto. Em queda contínua há décadas, ela é hoje um terço menor do que era em 1970. Fenômeno que foi três vezes mais rápido nos países da OCDE. Aliás, nos Estados Unidos e na GrãBretanha a atual intensidade energética é 40% inferior à de 1980. Como consequência, essa

Todavia, nada disso deve levar a pensar que a tendência foi favorável em termos absolutos. Muito pelo contrário. Vale repetir que as emissões de dióxido de carbono resultantes do uso de energias fósseis aumentaram 80% desde 1970. Em 2009 elas eram quase 40% superiores às de 1990, ano de referência do Protocolo de Kyoto. E a partir de 2000 voltou a aumentar muito o uso de carvão, o pior do trevo fóssil que forma com o petróleo e o gás. Essa falta de correspondência entre as evoluções absolutas e relativas do uso de recursos naturais é ainda mais chocante para os metais. Nos casos do cobre e do níquel, nem é possível constatar o descolamento que recentemente também deixou de ocorrer com o ferro e a bauxita. A extração desses quatro metais primários tem aumentado mais que a produção global de mercadorias. E pior é o panorama do lado dos minerais não metálicos. A produção de cimento mais do que dobrou desde 1990, ultrapassando em 70% o crescimento econômico global medido pelo PIB. A maior fraqueza da tese convencional sobre um descolamento relativo que engendraria harmonia entre crescimento econômico e meio ambiente decorre de sua exclusividade para as vantagens das inovações advindas de avanços tecnológicos baseados na ciência. Esquece que a tecnologia não deve ser isolada dos dois outros fatores que mais contribuem para o impacto ambiental das atividades humanas: o tamanho da população e seu nível de afluência. A inovação que gera o descolamento é incapaz de reduzir a pressão absoluta sobre os recursos naturais sempre que seus efeitos se chocam com o aumento populacional e de seus níveis de consumo. É “a questão da escala”, expressão com a qual se costuma caracterizar esse choque. Muitos defensores da tese do descolamento acreditam que o crescimento não é apenas compatível com os limites ambientais. Pensam inclusive que ele é imprescindível para que ocorra essa compatibilização, já que induz a eficiência tecnológica. Quando a eficiência superar a questão da escala haverá sustentabilidade ambiental. Cidadania&MeioAmbiente

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REFERÊNCIAS: 1 – Mundo em Transe – Do Aquecimento Global ao Eco Desenvolvimento, Editora Autores Associados (Armazém do Ipê), 2010,118 páginas. Renegade98

2 – Gabrielle Walker & Sir David King, O Tema Quente – Como combater o aquecimento global e manter as luzes acesas, Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. 3 – Nicholas Stern, A Blueprint for a Safer Planet – How to manage climate change and create a new era of progress and prosperity, London: The Bodley Head, 2009; Nicholas Stern, The Global Deal – Climate change and the creation of a new era of progress and prosperity, New York: Public Affairs, 2009.

Será necessário monitorar o ecodesenvolvimento com indicadores menos toscos que o PIB e IDH, como proposto no relatório da Comissão Stiglitz. No entanto, em 1990 a intensidade carbono da economia global era de 860 gramas de dióxido por dólar de produto e a população atingira 5,3 bilhões, com uma renda média de 4.700 dólares. Isso fazia com que a emissões globais de dióxido de carbono fossem de 21,7 bilhões. Por que teriam saltado em 2007 para 30 bilhões, se a intensidade caíra para 760 gramas? Porque a população mundial subira para 6,6 bilhões e a renda per capita para 5.900 dólares. Por outro lado, o descolamento também não se traduz em menor pressão absoluta sobre os recursos naturais por causa de um fenômeno que os pesquisadores chamam de “rebound effect”, e que pode ser traduzido por efeito “bumerangue”, ou “de ricochete”. Querem dizer com isto que a poupança obtida com aumento de eficiência energética tende a ser empregada no consumo de outros bens e serviços com custos energéticos que podem até provocar um jogo de soma zero, situação descrita como “tiro pela culatra” (“backfire”). Basta pensar, por exemplo, em uma economia feita com a aquisição de um carro flex que viabilize a compra de mais uma viagem aérea.(9) Por mais fascínio que possa exercer sobre os economistas convencionais a tese do descolamento é contrariada pela simples possibilidade de surgimento de produtos mais atraentes que não sejam tão ecoeficientes. A dinâmica inovadora que constitui uma das principais forças motrizes da economia capitalista – tão bem descrita por Joseph Schumpeter como um processo de destruição criativa – não permite que as empresas garantam sua sobrevivência apenas pela busca de minimização dos custos. É vital para sua adaptação que procurem lançar novidades que sejam mais

4 – Excluindo as advindas das chamadas “mudanças de uso das terras”, como os desmatamentos e queimadas, as emissões de metano da agropecuária, de arrozais, de hidrelétricas etc.

estimulantes para os consumidores, mesmo que mais caras e mais devoradoras de recursos naturais.

CONCLUSÃO O aumento de eficiência não tem superado a questão da escala. Por isso, não é possível negar a existência do “dilema do crescimento”, como tentam fazer os que enfatizam o descolamento. Entre a manutenção da estabilidade social e a necessidade de reduzir o impacto das atividades humanas sobre os recursos naturais, não existe saída simplista como a que é defendida por quem endeusa essa suposição. O dilema se impõe porque a pressão sobre os ecossistemas aumenta com a expansão da economia: quanto mais produção, mais impacto ambiental. Mas se o aumento da eficiência não tem superado a questão da escala, isso não quer dizer que não haja saída. Quer dizer sim que também é preciso levar a sério os outros dois fatores fundamentais que nunca deveriam ser separados da tecnologia: a população e seu nível de consumo. E não há como buscar outras maneiras de combinar esses três fatores que não coloquem na berlinda a própria lógica interna da macroeconomia. Por último, mas não menos importante, o descolamento está sujeito a limites físicos, tema que mereceu desde 1966 a genial contribuição teórica de Nicholas GeorgescuRoegen (1906-1994). Foi ele quem mostrou que as teorias da ciência econômica simplesmente tentam fazer de conta que não existe a termodinâmica, porque seria muito incômodo aceitar a sua segunda lei, da entropia. Mas ignorá-la, acreditando num descolamento absoluto, significaria acreditar numa economia do tipo Jardim do Éden. ■

5 – US Energy Information Administration - International Energy Annual 2006 – Table H.1pco2 – World Carbon Intensity – World Carbon Dioxide Emissions from the Consumption and Flaring of Fossil Fuels per Thousand Dollars of Gross Domestic Product Using Purchasing Power Parities, 1980-2006 (Metric tons of Carbon Dioxide per Thousand (2000) U.S. Dollars. Table Posted: December 8, 2008. 6 – Conforme cálculo feito no recente relatório “Prosperity without Growth?” preparado pelo professor Tim Jackson para a Comissão de Desenvolvimento Sustentável do governo britânico: www.sd-commission.org.uk/pages/ redefining_prosperity.html 7 – “Knowledge and ingenuity, not oil or minerals, account for much of the value that has been added to the global economy in recent years... If this pattern holds in the future, the amount of natural resources required to produce a dollar of GDP will continue to decline” (p. 98). 8 – Os dados estatísticos citados a seguir têm como fonte o capítulo 5 do relatório “Prosperity Without Growth”, publicado em abril de 2009 pela Comissão de Desenvolvimento Sustentável do governo britânico: www.sdcommission.org.uk/pages/redefining-prosperity.html 9 – Esse é um dos tipos do efeito. Para uma ideia mais profunda e detalhada consultar o relatório elaborado or Steve Sorrell: The Rebound Effect: na assessment of the evidence for economic-wide energy savings from improved energy efficiency, A report by the Sussex Energy Group. London:UK-ERG, 2007. Disponível em: http://www. ukerc.ac.uk/Downloads/PDF/07/0710ReboundEffect/ 0710ReboundEffectReport.pdf

José Eli da Veiga – Professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEAUSP), onde coordena o Núcleo de Economia Socioambiental (NESA). Além de artigos em periódicos científicos nacionais e estrangeiros, e diversos capítulos de obras cole1tivas, publicou 13 livros, entre entre eles: A EmergênciaSocioambiental (São Paulo: Ed. Senac, 2007), Meio Ambiente & Desenvolvimento (São Paulo: Ed. Senac, 2006) e Desenvolvimento Sustentável - O desafio do século XXI (Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2005). Página na web: www.zeeli.pro.br. Artigo publicado em Economistas, Revista do Conselho Federal de Economia (COFECON), ano 1, n. 1, dez. 2009.

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Hélio Carneiro

ÁGUA CRONOLOGIA DE CONFLITOS

Nesta edição, finalizamos o minucioso repertoriamento realizado pela equipe multidisciplinar dirigida pelo Dr. Peter H. Gleick, diretor do Water and Sustainability Program, do the Pacific Institute, sobre a utilização estratégica e bélica dos recursos hídricos ao longo da História. por The Pacific Institute

PARTE 3 de 1999 até 2009 D ATA

P ARTES ENVOLVIDAS O RIGENS

1999

Timor Leste

1999

C ONFLITO

Uso militar, Terrorismo

V IOLÊNCIA ? Sim

D ESCRIÇÃO F ONTES Milícia contra a independência do Timor Oriental assassina manifestantes favoráveis BBC 1999 à independência e os corpos são lançados à água. 700 soldados são enviados para acabar com os confrontos que ceifaram seis vidas e feriram 60 entre duas aldeias em luta por uma fonte local, perto de Ta’iz. A aldeia de Al-Marzuh arrogava-se o direito exclusivo à fonte por se situar em sua terra; a aldeia vizinha de Quradah afirmava que o direito à água havia sido firmado por veredito de tribunal 50 anos antes. A disputa explodiu em violência. O presidente Ali Abdullah Saleh interveio e convocou os xeiques das duas aldeias à capital, e acabou com a questão ao dividir o manancial ao meio.

Al-Qadhi 2003

Disputa desenvolvimentista

Sim

1999 - 2000 Namibia,Botsuana, Alvo militar, Zâmbia Disputa desenvolvimentista

Não

Ilha Sedudu/Kasikili, no rio Zambezi/Chobe. Disputa por fronteira e por acesso à água. Questão apresentado ao Tribunal Internacional de Justiça.

ICJ, 1999

Disputa desenvolvimentista

Sim

Na Etiópia, um homem é morto a facadas durante briga por água potável.

Sandrasagra, 2000

Disputa desenvolvimentista

Não

O Kirguistão corta o suprimento de água para o Cazaquistão até que lhe seja entregue carvão; o Usbequistão corta o suprimento de água para o Casaquistão por não pagamento de dívida.

Pannier, 2000

Terrorismo

Sim

Em julho, trabalhadores da indústria química Cellatex, no norte da França, despejam 5 mil litros de ácido sulfúrico em um tributário do rio Meuse quando lhes são negados benefícios sociais. Um analista francês revelou que fora a primeira vez em que “o ambiente e a saúde pública se tornaram reféns numa ação de pressão política.”

Christian Science Monitor, 2000

Conflitos violentos eclodem sobre os recursos de água nas aldeias de Burna Legan e Taina Legan, e em outras partes da região, após estiagem que secou os recursos locais.

Cooperation Center for Afghanistan, 2000

2000 2000

2000

Iêmen

DO

Etiópia Ásia Central:

Kirguistão, Usbequistão Kazasquitão,

França, Bélgica, Holanda

2000

Hazarajat, Afeganistão

Disputa desenvolvimentista

Sim

2000

India: Gujarat

Disputa desenvolvimentista

Sim

São relatadas revoltas de água em regiões de Gujarat como protesto contra o fracasso das autoridades em organizar o abastecimento adequado com caminhões pipa. A polícia atirou contra manifestantes na aldeia de Falla, perto de Jamnagar, resultando na morte de três pessoas e ferimentos em 20 após protestos contra a transposição de água da represa de Kankavati para a cidade de Jamnagar.

FTGWR, 2000

Cidadania&MeioAmbiente

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P ARTES ENVOLVIDAS O RIGENS

2000

Bolívia

Disputa desenvolvimentista

Sim

Manobras para privatizar o sistema de abastecimento de água de Cochabamba, Shultz e Draper, 2009 Bolívia, resultam em protestos, revoltas e violência desenfreada.

2000

EUA

Terrorismo

Não

Aparente simulação de ataque terrorista à represa Nacimiento, no município de Gaura, 2000 Monterey, Califórnia, ficou ora de controle quando duas estações de rádio informaram que se tratava de uma ação real.

2000

Quênia

Disputa desenvolvimentista

Sim

Escaramuça entre aldeões e macacos sedentos saldo de oito macacos mortos e dez BBC, 2000; aldeões feridos. O duelo começou depois que caminhões-pipa levaram água a uma Okoko, 2000 área atingida pela seca, levando os macacos desesperado a atacar os aldeões.

2000

Austrália

Ciberterrorismo

Sim

2000

China

Disputa desenvolvimentista

Sim

Eclode distúrbio civil sobre o uso e a distribuição de água do lago Baiyangdian – o maior lago natural no norte da China. Muitas pessoas morreram nas revoltas dos aldeões em julho de 2000 em Shandong depois que os funcionários cortaram o Pottinger, 2000 fornecimentos de água. Em agosto de 2000, ocorreram seis óbitos quando funcionários explodiram um canal de água na província sulista de Guangdong para evitar que um município vizinho realizasse a transposição de água.

2001

Israel, Palestina

Terrorismo, Alvo militar

Sim

Os palestinos destroem os aquedutos de abastecimento dos assentamentos de Yitzhar e kibutz Israel Line 2001a; Kisufim na Margem Ocidental. O campo de refugiados de Agbat Jabar nas cercanias de Jericó Israel Line 2001b; ficou sem abastecimento após os palestinos pilharem e danificarem as bombas de água. Os ENS 2001a palestinos acusam Israel de destruir uma cisterna para bloquear o abastecimento por carros pipa, além de destruir materiais destinados a um projeto de saneamento.

2001

Paquistão

Disputa desenvolvimentista, Sim Terrorismo

2001

Macedônia

Terrorismo, Alvo militar

Sim

2001

China

Disputa desenvolvimentista

Sim

2001

Filipinas

Terrorismo

Não

2002

Afeganistão

Alvo militar

Sim

2002

Nepal

Terrorismo, Instrumento político

Sim

2002

Roma,Itália

Terrorismo

Não: Ameaça

DO

C ONFLITO

F ONTES

D ATA

V IOLÊNCIA ? D ESCRIÇÃO

Em 23 de abril de 2000, em Queensland, Austrália, a polícia prendeu um homem por usar um computador e um transmissor de rádio para assumir o controle do sistema de Gellman, 2002 água de Maroochy Shire para liberar esgoto em parques, rios e propriedades.

Cortes no fornecimento de água devido às secas prolongadas provocam desassossego civil. Os protestos começam em março e abril, e varam o verão. Revoltas, quatro Nadeem, 2001; Soloman, 2001 bombas em Karachi (13 de junho), uma morte, 12 feridos, 30 prisões. Conflitos étnicos, pois alguns grupos “acusam o governo de favorecer a populosa província de Punjab [em detrimento da província de Sindh] na distribuição da água.” Durante 12 dias o fornecimento de água a Kumanovo (população 100 mil) é cortado AFP, 2001; no conflito étnico entre albaneses e as forças macedônias. Bombas de Glaznja e do Macedonia Info Agency, 2001 lago Lipkovo são danificadas. Em ato de protesto contra a destruição zonas de pesca pela descontrolada poluição de água, os pescadores do norte de Jiaxing, província de Zhejiang, represam durante 23 China Ministry of dias o canal que descarga 90 milhões de toneladas de detrito industrial por ano. As Water Resources, águas contaminadas descarregadas nas cercanias da vizinha Shengze, província de 2001 Jiangsu, mata os peixes e coloca em risco a saúde da população. Autoridades filipinas cortam o fonecimento de água a seis remotas aldeias no sul depois que os residentes reclamam da água fétida que sai das torneiras, levantando a suspeitas sobre a contaminação dos mananciais por guerrilheiros muçulmanos. Os guerrilheiros de World Environment News, 2001 Abu Sayyaf, suspeita de ligação com o militante saudita Osama Bin Laden, ameaçara envenenar as fontes de abastecimento de água na cidade majoritariamente cristã de Isabela, na ilha Basilan, caso o exército não suspendesse a ofensiva contra eles. Forças dos EUA bombardeiam a usina hidrelétrica na represa de Kajaki, província de BBC, 2001; Parry, Helmand, Afeganistão, cortando a eletricidade para a cidade de Kandahar. Aparen- 2001 temente, a represa não foi alvo do ataque. A Frente de Libertação Khumbuwan (KLF) explode uma usina hidrelétrica de 250 quilowatts no distrito de Bhojpur a 26 de janeiro, cortando o abastecimento de energia para Bhojpur e áreas adjacentes. Estimativa de tempo de reparo: 6 meses, ao custo de Kathmandu Post, 2002; FTGWR, 10 milhões de rúpias. Em junho de 2002, rebeldes maoístas destruíram mais de sete 2002a represas hidrelétricas de pequeno porte bem como uma instalação de água potável e aquedutos que abasteciam Khalanga, no Nepal ocidental. A polícia italiana prende quatro marroquinos que planejam contaminar o sistema de abastecimento de água de Roma com uma subs0tância à base de cianeto, numa ação que objetivava edifícios que BBC, 2002 incluíram a embaixada dos EUA. Foram aventadas ligações com o grupo Al-Quaeda.

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D ATA 2002

2002

P ARTES ENVOLVIDAS O RIGENS Kashmir, India

DO

C ONFLITO

V IOLÊNCIA ?

Disputa desenvolvimentista Sim

D ESCRIÇÃO

F ONTES

Duas pessoas são mortas e 25 outras feridas na aldeia de Garend, Caxemira, quando Japan Times, 2002 a polícia abre fogo contra um grupo de camponeses em disputa pelo compartilhamento de água para irrigação. Documentos apreendidos durante a prisão de um cidadão libanês que se mudara para os EUA e se tornara imâ de uma mesquita islâmica em Seattle incluíam “instruções para envenenar McDonnell e Meyer, fontes de água” emitidas por um recrutador da al-Qaida baseado em Londres. O FBI emitiu um 2002; MSNBC, 2002 boletim a peritos em segurança eletrônica de todo o país advertindo que os terroristas da al-Qaida haviam mapeado as represas americanas e os mananciais de água em preparação para ataques novos. As agências de inteligência dos EUA receberam indicações de que a al-Qaida havia coligido informação sobre os sistemas de Supervisory Control And Data Acquisition (SCADA) disponibilizados em muitos sites da SCADA”, segundo informou o boletim SecurityFocus. “Eles buscaram especificamente informação sobre as redes de abastecimento de água e sobre a administração das práticas de manejo de resíduos líquidos nos EUA e em outros países.”

EUA

Terrorismo

Não: Ameaça

Colômbia

Terrorismo

Sim

2002

Karnataka, Tamil Nadu, India

Disputa desenvolvimentista Sim

2002

EUA

Terrorismo

Não: Ameaça

Frente de Liberação da Terra ameaça o abastecimento de água para a cidade de Crecente, 2002; Winter Park. Anteriormente, o grupo reivindicara a destruição de um chalé de esqui em Associated Press, 2002 Vail, Colorado, que ameaçava o habitat de linces.

2003

EUA

Terrorismo

Não: Ameaça

O grupo Al-Qaida ameaça ao sistemas de abastecimento de água dos EUA através de mensagem enviada a uma publicação da Arábia Saudita. A Al-Qaida não descarta “…o envenenamento da água potável em cidades americanas e ocidentais.”

2003

EUA

Terrorismo

Sim

Quatro artefatos incendiários são descobertos na estação de bombeamento de uma empresa de envazamento de água de Michigan. A Frente de Liberação da Terra (ELF) AP, 2003b reivindica a responsabilidade, e acusa a Ice Mountain Water Company (subsidiária da Nestlé Waters) de estar “roubando” água para auferir lucro.

2003

Colômbia

Sim Terrorismo, Disputa desenvolvimentista

Explosão a bomba no Centro de Tratamento de Água Potável de Cali mata três trabalhadores em 8 de maio. Os trabalhadores eram membros de um sindicato PSI, 2003 envolvido em intensas negociações sobre a privatização do sistema de água.

2003

Jordânia

Terrorismo

Não: Ameaça

2003

Iraque, EUA,outros

Alvo militar

Sim

Terrorismo

Sim

2002

2003

Iraque

Sim

2003 - 2007 Sudão, Darfur

Uso militar,Alvo militar, Terrorismo

2004

Disputa desenvolvimentista Sim

México

Em janeiro, rebeldes colombianos danificam uma comporta da represa que provê a maior parte Waterweek, 2002 da água potável de Bogotá. As forças armadas revolucionárias de Colômbia (FARC) detonaram uma bomba colocada numa válvula no interior de um túnel na represa Chingaza. Violência permanente sobre a distribuição das águas do rio Cauvery, entre Karnataka The Hindu 2002a; The e Tamil Nadu. Revoltas, destruição de propriedade, mais de 30 pessoas feridas e prisões Hindu 2002b; Times of India 2002a se estendem de setembro a outubro.

AP, 2003a; Waterman, 2003; NewsMax, 2003; US Water News, 2003

Autoridades jordanianas prendem agentes iraquianos envolvidos num complô para envenenar a rede de abastecimento de água das tropas americanas servindo no deserto oriental da Jordânia junto à fronteira com o Iraque. O esquema envolvia o envenenamen- MJS, 2003 to de um depósito de água destinado aos soldados americanos de uma base militar em Khao, uma árida região na fronteira oriental, perto da cidade industrial de Zarqa. Durante a invasão do Iraque pelos EUA foram relatados danos e destruição nos sistemas de abastecimento de água, sendo as principais represas objetivos militares das forças norte- UNICEF, 2003; ARC, americanas. Danos diretamente atribuídos à guerra incluem vastos segmentos do sistema de 2003 distribuição de água e o sistema de abastecimento de Bagdá, danificado por um míssil. Sabotagem/ataque a bomba ao principal aqueduto de Bagdá. A sabotagem do aqueduto, ocorrida por volta das 7 horas da manhã, foi o primeiro ataque ao sistema de abastecimento da cidade. Ocorreu quando um Volkswagen Passat azul parou em um viaduto, perto da Tierney e Worth, 2003 mesquita de Nidaa, e um explosivo foi lançado à grossa comporta, relatou Hayder Muhammad, engenheiro chefe do sistema de tratamento de água da cidade. A guerra civil no Sudão incluiu violência contra os recursos de água. Em 2003, aldeões de Tina relatavam que os bombardeios haviam destruído os poços de água. Em Khasan Basao, foi Toronto Daily, 2004; Reuters Foundation, alegado envenenamento dos poços de água. Em 2004, poços em Darfur foram intencionalmente 2004 contaminados como parte de uma estratégia de aviltamento das populações deslocadas. Durante anos, dois fazendeiros mexicanos disputaram os direitos de uma fonte pequena para irrigar uma pequena plantação de milho, perto da cidade de Pihuamo. Em Guardian, 2004 março, estes fazendeiros mataram-se a tiros de revólver. Cidadania&MeioAmbiente

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P ARTES ENVOLVIDAS O RIGENS

2004

Paquistão

Terrorismo

Sim

Numa ação militar dirigida a terroristas islâmicos, incluindo a Al-Qaeda e o Movimento Reuters, 2004a Islâmico do Uzbekistão, casas, escolas e poços de água foram danificados e destruídos.

2004

India, Caxemira

Terrorismo

Sim

Doze homens das forças de segurança indianas foram mortos por uma bomba caseira colocada num duto de água subterrâneo durante a “operação de contra-insurreição TNN, 2004 numa área de Khanabal, distrito de Anantnag.”

2004

China

Disputa desenvolvimentista

Sim

2004

China, EUA

Alvo militar

Não

2004

África do Sul

Disputa desenvolvimentista

Sim

2004

Faixa de Gaza

Terrorismo, Sim Disputa desenvolvimentista

Os EUA param dois projetos de abastecimento de água para punir a Autoridade Palestina por não descobrirem os responsáveis pelo ataque mortal a uma escolta AP, 2004 diplomática norte-americana em outubro de 2003.

Disputa desenvolvimentista

Sim

Quatro pessoas foram mortas em outubro e mais de 30 feridas em novembro por Indo-Asian News agricultores em protesto contra a distribuição de água do canal de irrigação Indira Service, 2004 Ghandi, no distrito de Sriganganagar, fronteira com o Paquistão. Foi imposto toque de recolher nas cidades de Gharsana, Raola e Anoopgarh.

Disputa desenvolvimentista

Sim

2004

India

2004 - 2006 Etiópia

DO

C ONFLITO

F ONTES

D ATA

V IOLÊNCIA ? D ESCRIÇÃO

Dezenas de milhares de agricultores organizam uma manifestação pacífica contra a BBC, 2004b; VOA, construção da represa de Pubugou no rio Dadu, província de Sichuan. O esquadrão 2004 antirevolta foi convocado para por fim ao protesto, com óbito de um militar. Testemunhas do fato relatam que vários manifestantes também morreram. (Ver China 2006.) Um relatório de 2004 do Pentágono sobre as forças armadas chinesas aventa a possibilidade da adoção pela China Nacionlalista (Taipei) de sistemas militares passíveis de uso como China Daily, 2004; instrumento de coerção contra a República Popular da China por “representarem ameaças Pentagon, 2004 reais à população urbana chinesa ou a objetivos de alto valor, como a represa das Três Gargantas”. A China denunciou “a sugestão norte-americana” para que Taiwan concentrasse seus objetivos militares na represa, o que levou os EUA a negar tal insinuação. Serviços deficientes de abastecimento de água e esgoto no distrito municipal de Phumelela CDE, 2007 gerou meses de protestos, com feridos e sérios danos à propriedade municipal.

Pelo menos 250 pessoas morreram e muitas outras ficaram feridas nos confrontos pela propriedade de poços e terras pastoris. Denominada pelos camponeses de “Guerra do Poço”. BBC, 2004a; AP, Uma estiagem de três anos gerou extensa violência pelo uso dos recursos de água limitados, 2005;Wax, 2006 ornados ainda mais escassos pela falta de eficiente planejamento governamental. A polícia é enviada ao noroeste do Quênia para controlar uma violenta disputa entre os grupos étnicos Kikuyu e Masai sobre fontes de água e pastagem. Em janeiro, mais de 20 pessoas morreram nas escaramuças. Em julho, o saldo de mortes excedeu 90 óbitos, sobretudo no centro BBC, 2005a; Ryu, 2005; Lane, 2005 rural de Turbi. Os pastores Masai acusaram um político local de Kikuyu de desviar um rio para irrigar sua fazenda, privando de água as criações a jusante. A disputa que deslocou mais de 2000 aldeões refletem as tensões entre nômades e as comunidades assentadas.

Quênia

Disputa desenvolvimentista

Sim

2006

Iêmen

Disputa desenvolvimentista

Sim

2006

China

Disputa desenvolvimentista

Sim

Em 2004, as autoridades chinesas executam um homem que participara de protestos BBC, 2006d; contra a construção da represa de Pubugu, na província de Sichuan. Chen Tao foi Coonan, 2006 condenado por ter morto um policial e executado antes da conclusão dos trâmites legais.

2006

Etiópia

Disputa desenvolvimentista

Sim

Pelo menos 12 pessoas morreram e mais de 20 ficaram feridas em confrontos por água BBC, 2006a e pasto na região fronteiriça da Somália.

Sim

Pelo menos 40 pessoas morreram no Quênia e na Etiópia em embates sem trégua por água, gado e pastagem. O confronto ocorreu na região de Oromo, sul da Etiópia, e no Reuters, 2006 distrito de Marsabit, norte do Quênia.

2005

2006

Etiópia e Quênia

Disputa desenvolvimentista

A mídia local deu conta de uma luta entre as tribos Hajja e Amran por um poço localizado Al-Ariq,i 2006 entre as duas localidades iemenitas. Segundo os despachos, confrontos armados entre as duas facções forçaram muitas famílias a deixar suas casas e a migrar. As notícias confirmaram a prisão de 20 pessoas numa tentativa de sustar a contenda.

2006

Sri Lanka

Uso militar, Alvo militar, Terrorismo

Sim

Rebeldes do grupo Tigres do Tamil cortam o abastecimento de água para as aldeias prógovernamentais no nordeste do Sri Lanka. As forças governamentais responderam com BBC, 2006b; BBC, ataque ao reservatório, alegando terrorismo pelos Tigres do Tamil. O conflito motivado pela 2006c; Gutierrez, 2006 interrupção de fornecimento de água já tinha ceifado mais de 425 vidas desde agosto.

2006

Israel, Líbano

Alvo militar, Terrorismo

Sim

Mísseis lançados pelo grupo Hezbollah danificam um sistema de tratamento de esgoto Science, 2006; em Israel. O governo libanês calculou que os ataques israelenses de revide danificaram Amnesty Int,2006;

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D ATA

P ARTES E NVOLVIDAS

O RIGENS

DO

C ONFLITO

V IOLÊNCIA ? D ESCRIÇÃO

F ONTES

os sistemas de abastecimento de água - tanques, aquedutos, estações de bombeamento e instalações ao longo do rio Litani - em todo o sul do Líbano.

Murphy, 2006

2007

India

Disputa desenvolvimentista

Sim

Milhares de camponeses furaram o sistema de segurança e atacaram com violência a área da represa Hirakud para protestar contra o favorecimento de fornecimento de água à indústria.

Statesman News Service, 2007

2007

Afeganistão

Alvo militar, Terrorismo

Sim

A represa Kajaki foi palco de luta entre as forças do Taliban e da OTAN, principalmente britânica e holandesa. O Taliban tenta de tudo para tornar impossível a reconstrução da represa e a instalação de cabos de alta tensão para transmissão de energia.

Friel, 2007

2007

Canadá

Terrorismo

Não

Um cidadão de Toronto previamente acusado de tentativa de assassinato e de posse ilegal de explosivos foi acusado de oito tentativas de assassinato após injetar em garrafas de água um líquido desconhecido.

2007

Burkina Faso, Gaana e Costa do Marfim

Disputa desenvolvimentista

2008

Nigéria

China, Tibete

2008

2008

2009

Paquistão

China e India

Star, 2007

Sim

A falta de chuva gerou crescente confronto pastores e fazendeiros ávidos por água. Em agosto, 2007 pessoas foram forçadas deixar suas casas devido aos confrontos na província de Zounweogo.

UNÃOCHR, 2007

Disputa desenvolvimentista

Sim

Um protesto pelo custo da água em Nyanya, Abuja, Nigéria, resultou em violência, inclusive com espancamento de vendedores de água.

Yakubu, 2008

Alvo militar, Disputa desenvolvimentista

Sim

Para muitos observadores, a “anexação” do Tibet pela China foi motivada, entre outros álibis, pela importância dos recursos hídricos tibetanos. O “Tibet é chamado de ‘manaciais do mundo’ — já que o planalto tibetano alberga imensas reservas glaciares, nascentes de 10 dos maiores rios da Ásia, inclusive o Amarelo, o Yangtze, o Mekong, o Brahmaputra, o Salween, o Hindus e o Sutlej, entre outros. Segundo algumas estimativas, o planalto tibetano é fonte de água doce capaz de abastecer um quarto da população do mundo.”

Desconhecido

Terrorismo

Sim

Em outubro, o Taliban ameaçou explodir a represa Warsak, a principal fonte de abastecimento de água de Peshawar, durante uma ofensiva governamental na região.

Perlez e Shah, 2008

Não

A China reivindica uma parte do Tibet histórico hoje sob controle da Índia (parte do estado de Arunachal Pradesh). Para influenciar esta disputa territorial, China tenta bloquear o empréstimo de $2,9 bilhões para a Índia pelo Asian Development Bank. A China argumenta que parte desse empréstimo foi destinado a projetos hídricos na área em litígio. Sem advertência prévia, a Coreia do Norte libera 40 milhões de metros cúbicos de água da represa Hwanggag, provocando uma colossal onda no rio Imjin. Na Coreia do Sul, pelo menos seis pescadores e campistas morrem afogados. A Coreia do Sul teme que a Coreia do Norte possa usar a água da represa como arma em um conflito violento. A Coreia do Norte alegou urgência na liberação do grande volume de água, desculpouse e prometeu advertir o país vizinho numa eventual necessidade futura.

Disputa desenvolvimentista, Uso militar

2009

Coréia do Norte, Coréia do Sul

Instrumento político

Sim

2009

Regiões de Etnia Oromia da Etiópiae Somália

Disputa desenvolvimentista

Sim

2009

Tropas do Sri Lanka, Guerrilheiros Tigres do Tamil

Uso militar, Alvo militar

Sim

2009

Cidadãos Indianos

Disputa desenvolvimentista

Sim

2009

Residentes de Mumbai,Polícia

Disputa desenvolvimentista

Sim

Somalis etíopes atacam uma comunidade Borana, na região de Oromia, em função de novo poço sendo perfurado na fronteira disputada. Três pessoas da aldeia Kafa, em Oromia, são mortas, sete são feridas e a totalidade da comunidade desalojada de suas casas. A broca de perfuração também é destruída. Militares do Sri Lanka informam a dinamitação das paredes do reservatório Kalmadukulam pelos guerrilheiros do Tigres do Tamil na tentativa de protelar o avanço das tropas governamentais em Mulliativu, o último bastião Tamil. Apesar da ação dos guerrilheiros, o governo capturou Mullaitivu um mês depois. Uma família do estado indiano de Madhya Pradesh é morta por uma pequena turba ao tirar ilegalmente água de um duto municipal. Muitos correram para pegar água antes do cano secar. A estiagem e a desigualdade na distribuição de água gerou mais de 50 violentos confrontos na região no mês de maio. Mais de uma dúzia de pessoas morreram e outras tantas ficaram feridas desde janeiro ao disputarem um balde de água. No dia 3 de dezembro ocorre confronto policial com centenas de residentes de Mumbai que protestam contra os cortes de água. Saldo: um óbito e dezenas de feridos. As autoridades de Mumbai são forçadas a racionar a água frente a pior monção em décadas.

Wong, 2009

Korea Herald, 2009

BBC, 2009b

BBC, 2009;BBC, 2009a

Singh, 2009

Chandran, 2009

Fonte: Para permanente atualização sobre conflitos e usos estratégicos dos recursos hídricos ao redor do planeta, aconselhamos visitas periódicas ao site do The Pacific Institute e à página www.worldwater.org/conflict/list/. Cada evento referenciado no the Pacific Institute for Studies in Development, Environment, and Security database on Water and Conflict é linkado à fonte original, fato que permite a análise em profundidade da referência. O The Pacific Institute também apresenta estudos e soluções para as questões de conservação hídrica atuais. Cidadania&MeioAmbiente

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Will Fuller

SEGURANÇAALIMENTAR

AGROTÓXICO:

problema de saúde pública Entrevista com Wanderlei Antonio Pignati. Por Igor Felippe Santos

Maior consumidora mundial de agrotóxicos (1), a lavoura brasileira foi “afogada” em 1 bilhão de litros desses produtos químicos em 2009. O uso exagerado de praguicidas já deixou de ser uma questão especificamente agrícola para se transformar em um problema de saúde pública.

POR QUE A CADA NOVA SAFRA CRESCE A QUANTIDADE DE VENENO DESPEJADO NAS LAVOURAS? Wanderlei Antonio Pignati – O consumo de agrotóxicos dobrou nos últimos 10 anos. Passamos a ser o maior consumidor mundial de agrotóxicos. No estado do Mato Grosso, 105 milhões de litros de agrotóxicos foram usados na safra agrícola passada, com uma média de 10 litros por hectare de soja ou milho e 20 litros por hectare de algodão. Há vários municípios que usaram até 7 milhões de litros em uma safra. Isso traz um impacto muito grande para a saúde e para o ambiente. A utilização de agrotóxicos tem aumentado porque a semente é dominada por seis ou sete indústrias no mundo todo, inclusive em nosso país. Essas sementes são selecionadas para a utilização de agrotóxicos e fertilizantes químicos, que aumentam a produtividade e os lucros das empresas do agronegócio. Paralelamente, também vem crescendo o desmatamento com a plantação de novas áreas, fato que leva ao aumento da demanda por agrotóxicos e fertilizantes químicos. O Mato Grosso passou de quatro milhões para 10 milhões de hectares plantados na última safra. O desmatamento é a primeira etapa do agronegócio. Em seguida, entra a indústria da madeira, a pecuária, a agricultura, o transporte

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e o armazenamento. Por fim, a verdadeira agroindústria, com a produção de óleos, de farelo e a usina de açúcar, álcool, curtumes, beneficiamento de algodão e os agrocombustíveis. Esse processo vem ganhando muito desenvolvimento devido à dependência do país à exportação. E tudo isso levou ao aumento do consumo de agrotóxicos no Brasil. QUANTO

MAIS O AGRONEGÓCIO AVANÇA MAIOR É O CONSUMO DE

COMO O ESTUDO REALIZADO COMPROVOU ESSAS CONSEQUÊNCIAS? W.A.P – Para fazer tal comprovação é preciso comparar os dados epidemiológicos de doenças em regiões usuárias de muito agrotóxico com os de outras que os utilizam com parcimônia. Nas três regiões do Mato Grosso onde mais se produz soja, milho e algodão, por exemplo, há uma incidência três vezes maior de intoxicação aguda por agrotóxicos ao se comparar com outras 12 regiões que produzem menos e usam menos agrotóxicos.

AGROTÓXICOS?

W.A.P – Sim. As sementes das grandes indústrias são dependentes de agrotóxicos e fertilizantes químicos. As indústrias não fazem sementes que prescindam desses produtos. Não criam sementes resistentes a várias pragas sem a necessidade de agrotóxicos. E não fazem isso porque são produtores de sementes e agrotóxicos. Criam sementes dependentes de agrotóxicos. Com os transgênicos, a situação piora mais ainda. No caso da soja, a produção é resistente a um herbicida, o glifosato, conhecido como Roundup, patenteado pela Monsanto. Aí o uso é duas ou três vezes maior. Isso também aumenta o consumo de agrotóxicos. A CTNBIO

LIBEROU DIVERSAS VARIEDADES DE

TRANSGÊNICOS SOB O ARGUMENTO DE QUE ASSIM SE DIMINUIRIA A NECESSIDADE DE AGROTÓXICOS…

W.A.P – É só pegar o exemplo da soja transgênica, que não é resistente a praga nenhuma, para perceber que a alegação não passa de mentira, que deve ser desmascarada a nível nacional e internacional. A soja transgênica não é resistente a pragas, mas a um herbicida, o glifosato, que é usado antes do plantio e novamente nos primeiros três meses. Assim, na soja transgênica, o uso do herbicida é triplicado. Agora tem-se o milho transgênico, também resistente ao glifosato, o que vai aumentar ainda mais o consumo de agrotóxicos. Em geral, os transgênicos resistentes a pragas ainda são minoria.

Ao analisar regionalmente o sistema de notificação de intoxicação aguda da secretaria municipal, estadual e do Ministério da Saúde, percebemos que onde a produção é maior há mais casos de intoxicação aguda, como diarreia, vômitos, desmaios, mortes, distúrbios cardíacos e pulmonares, além de doenças subcrônicas de tipo neurológico e psiquiátrico, como depressão, que surgem um ou dois meses após a exposição. Há agrotóxicos que causam irritação ocular e auditiva. Outros provocam lesão neurológica com hemiplegia e neurite da coluna neurológica cervical.

“No estado de Mato

Grosso, 105 milhões de litros de agrotóxicos foram usados na safra agrícola passada, com uma média de 10 litros por hectare de soja ou milho e 20 litros por hectare de algodão.”

QUAIS OS EFEITOS DOS AGROTÓXICOS NA SAÚDE HUMANA E NO AMBIENTE? W.A.P – Os impactos negativos ocorrem no trabalhador, que lida e aplica o veneno diretamente; em sua família, que mora dentro das plantações de soja e na periferia das cidades, já que a pulverização é realizada quase sobre as casas. No ambiente, o impacto maior se dá via contaminação das águas: resíduos de agrotóxicos chegam aos poços artesianos de água potável, aos córregos, aos rios, à água da chuva e ao ar. Toda a população absorve os agrotóxicos. QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS? W.A.P – Problemas de saúde agudos e crônicos. Podem ser citados: intoxicações agudas e crônicas; má-formação fetal em gestantes; neoplasia (que causa câncer); distúrbios endócrinos (tiróide, suprarenal, chegando alguns a mimetizar o diabetes); distúrbios neurológicos; distúrbios respiratórios (vários agrotóxicos são irritantes pulmonares). Os agrotóxicos são levados pela chuva para os córregos e rios, e seus sedimentos se depositam no fundo, servindo de alimento para peixes, répteis, anfíbios, causando a extinção de muitas espécies. Enfim, os agrotóxicos causam impactos em toda a biota sobre a terra.

Além disso, as regiões que mais produzem soja, milho e algodão apresentam incidência duas vezes maior de câncer em crianças e adultos e ma-formação em recém-nascidos do que nas que produzem menos e usam menos agrotóxicos. Tal ocorrência se dá pelo uso de agrotóxicos cancerígenos e teratogênicos. QUAL

O PERIGO PARA OS CONSUMIDORES DOS

ALIMENTOS TRATADOS COM AGROTÓXICOS? QUAIS AS INICIATIVAS DA AGÊNCIA

NACIONAL DE VIGISANITÁRIA (ANVISA) A ESSE RESPEITO? W.A.P – Desde que lançou um edital, em 2008, a Anvisa está fazendo a revisão de 16 agrotóxicos. Quatorze são proibidos na União Europeia, nos Estados Unidos e no Canadá por serem cancerígenos, teratogênicos e causarem distúrbios neurológicos e endócrinos. Mas no Brasil eles são vendidos livremente, mesmo se conhecendo seus efeitos crônicos. LÂNCIA

Desde 2002, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos da Anvisa faz a análise de 20 alimentos. Nesses estudos, foram achados resíduos tanto de agrotóxicos não proibidos, como acima do limite máximo permitido. O cancerígeno e teratogênico inseticida clorado endosulfan, por exemplo, está proibido há 20 anos na União Europeia, nos EUA e no Canadá, mas é liberado no Brasil, sendo muito usado na soja e no milho. Esse limite máximo de resíduos é questionável, porque a sensibilidade é individual. Se para uma pessoa o limite máximo para desenvolver uma doença é de 10 mg por dia, para outra basta 1 mg. Sem contar a contaminação da água, do ar, da chuva, porque devemos juntar todos esses fatores. COMO AVALIA A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA PARA AGROTÓXICOS E O TRABALHO DA ANVISA? W.A.P – A Anvisa vem fazendo um bom trabalho, com base na legislação. No entanto, todo dia os grandes burlam a lei. Não só a lei nacional sobre agrotóxicos, mas também o Código Florestal, as normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego Cidadania&MeioAmbiente

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(que obriga a dar equipamentos de proteção aos trabalhadores), as normas do Ministério da Agricultura (que impede a pulverização a menos de 250 metros de nascentes de rios, córregos, lagoas, habitats de animais ou moradias humanas). No Mato Grosso, todos os tipos de agrotóxicos são despejados por avião; não se respeitam as normas. OS FAZENDEIROS DIZEM QUE SE USADOS CORRETAMENTE OS AGROTÓXICOS NÃO APRESENTAM PERIGO. W.A.P – Se o trabalhador ficar como um astronauta, usando todos os equipamentos de proteção individual necessários, sua saúde pode não ser prejudicada. Mas o que dizer do meio ambiente? Todo agrotóxico é tóxico – tanto da classe I como da classe IV. Para onde vai o resíduo desse agrotóxico? Vai com a chuva para os rios e córregos, e ao evaporar volta para a terra com a chuva. Para o meio ambiente não existe uso seguro e correto dos agrotóxicos. Temos que discutir que o uso intencional dos agrotóxicos. As chamadas pragas da lavoura – que eu não chamo de pragas – seja um inseto, uma erva daninha ou um fungo, crescem no meio da plantação. Aí o fazendeiro polui o ambiente intencionalmente para tentar atingir essas pragas. Não há como ele retirar seletivamente as pragas, colocá-las em uma redoma e aplicar o agrotóxico. Ou seja, ele polui de maneira intencional o ambiente da plantação, o ambiente geral, o trabalhador e a produção. Uma parte desses agrotóxicos fica nos alimentos. O AGRONEGÓCIO ARGUMENTA QUE O USO DE GRANDES QUANTIDADES BRASIL SER UM PAÍS TROPICAL COM GRANDE DIVERSIDADE CLIMÁTICA. ISSO É VERDADE? W.A.P – Não é por conta da questão climática que o país precisa de mais ou menos. Nas monografias dos agrotóxicos, a temperatura ideal para difundi-los gira em torno de 20º e 25ºC. Onde se tem essa temperatura em Mato Grosso? Lá dá mais de 30 graus. Devido à alta tempe-

DE AGROTÓXICOS É NECESSÁRIO EM VIRTUDE DE O

ratura as substâncias químicas evaporam, o que leva a uma maior utilização de agrotóxico. Em vez de dois litros, colocam-se 2,5 litros por hectare. Portanto, o argumento é falso. Na verdade, tem-se de aplicar agrotóxico porque a semente dependente dele. Existem formas de fazer uma produção em grande escala sem semente dependente de agrotóxicos e de fertilizantes químicos. Há vários exemplos no mundo e aqui mesmo. Mas 99% de toda a nossa produção agrícola depende das sementes industriais dependentes de agrotóxicos. DENTRO DESSE QUADRO, QUAL É A TENDÊNCIA DO USO DOS AGROTÓXICOS? W.A.P – O aumento da utilização de agrotóxicos. Por isso, é preciso uma política mais contundente do governo, dos movimentos de agroecologia e dos consumidores, que cada vez mais ingerem agrotóxico. É preciso discutir o modelo de produção agrícola atual. Com o milho transgênico, vai-se utilizar mais glifosato. Ocorre hoje um aumento cíclico no uso de agrotóxicos. Exemplo: há ervas daninhas resistentes ao glifosato. Num primeiro momento, aumenta-se a dose deste agrotóxico para erradicar a praga: em vez de cinco litros por hectare, usam-se sete. E num segundo momento usa-se um herbicida ainda mais forte ou mais tóxico para combater a erva daninha que ficou resistente ao primeiro agrotóxico empregado. Isso não tem fim. Já existem grandes áreas de ervas daninhas resistentes a agrotóxicos nos Estados Unidos, na Argentina. E isso já está ocorrendo no Rio Grande do Sul, no Paraná e no Mato Grosso. Este modelo é insustentável. ■ NOTA: (1) Dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Agrícola.

Wanderlei Antonio Pignati – Médico e professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Entrevista realizada por Igor Felippe Santos, da Página do MST; http://www.mst.org.br/node/9905 (21 de maio de 2010).

RECICLAGEM DE EMBALAGEM DE AGROTÓXICO: MENOS DANOS AO MEIO AMBIENTE

inPEV

❚ Líder mundial no processo de descarte correto de embalagens de agrotóxicos, o Brasil tornouse centro de excelência e de referência. A coleta e a destinação adequada desse tipo de embalagem foram iniciadas na década de 90, por iniciativa voluntária da indústria produtora. A entrada em vigor, em 2002, da lei n. 9.974/2000, que definiu o sistema de destinação final de embalagens vazias de agrotóxicos, possibilitou a reciclagem desse material, objetivo reforçado com a criação do Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (inPev – www.inpev.org.br). ❚ A partir de 1990, o número de unidades de recebimento de embalagens vazias subiu de 15 para 416. Dessas, 115 são unidades centrais, que recebem, inspecionam, compactam e

despacham as embalagens para o destino final. Todos os 26 estados agrícolas brasileiros estão cobertos por essa malha. ❚ Em 2002, quando o inPev começou a operar, foram retiradas do meio ambiente 3,8 mil toneladas de embalagens vazias e, em 2009, 27,8 mil toneladas. Ao todo, 108 mil toneladas de 2002 a 2008. Até o fim de abril de 2010 foram destinadas à reciclagem 10 mil toneladas. Até maio, esse número deve ser elevado em 20%, em comparação com o mesmo período de 2009, atingindo 13,8 mil toneladas. A projeção para 2010 é alcançar 31 mil toneladas. ❚ O país retira 95% das embalagens colocadas no mercado, enquanto a França retira 50%, a Alemanha 65%, o Canadá 75% e os Estados Unidos 20%. ❚ O volume total da reciclagem já evitou a emissão de mais de 160 mil toneladas de dióxido de carbono. O benefício será maior quando os produtores e importadores de agrotóxicos se ajustarem às normas de saúde vigentes, deixando de usar matéria-prima vencida, de adulterar fórmulas registradas, e também quando a legislação proibir a importação de produtos banidos em outros países.

Fonte: Alana Gandra, da Agência Brasil.

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Trash your head man – Christo Bakalov

Coautor do Manifesto Ecossocialista Internacional, Michael Löwy reflete sobre a crise do modelo capitalista de consumo associada à crise ecológica e apresenta uma alternativa ecossocialista para o atual modelo econômico.

Entrevista com Michael Löwy. Por Alfonso González LA VOZ DE GALICIA – COMO SE POSICIONA EM RELAÇÃO À CRISE DO MODELO CAPITALISTA? Michael Löwy – Trato de colocar que as crises econômica e ecológica estão estreitamente vinculadas e são aspectos de uma mesma crise fundamental da civilização ocidental capitalista e industrial moderna, que chegou a um ponto dramático. Para mim, a crise ecológica é mais grave, mesmo que menos aparente que a financeira, porque coloca em perigo a vida no planeta. E se faz necessárias mudanças muito radicais. LVG – O QUE O ECOSSOCIALISMO PROPÕE? M.L. – A necessidade de uma profunda mudança revolucionária não apenas das relações de propriedade, mas do próprio aparelho produtivo, do paradigma de produção e de tudo o que representa a civilização do capitalismo industrial moderno. A alternativa é uma sociedade ecossocialista, na qual é a população que decide as prioridades da produção e do consumo em função de suas necessidades sociais e do respeito aos equilíbrios ecológicos, não em função do benefício do capital. LVG – PODE-SE CHEGAR A ESSE MODELO NOS PAÍSES OCIDENTAIS COM OS ATUAIS PARTIDOS SOCIALISTAS OU DE ESQUERDA? M.L. – Mais que pelos partidos é preciso começar pelas pessoas, pela população, pelos trabalhadores. E não só nos países ricos. Na América Latina, as lutas ecossociais estão mais avançadas e ecoam fortemente nas comunidades indígenas que defendem as florestas do capital multinacional. Na Europa é preciso começar por lutas locais concretas. Por exemplo, a luta por transportes coletivos gratuitos em vez do carro particular, que já está se levando a cabo em várias cidades. Ainda não é o ecossocialismo, mas é um primeiro ponto. Há uma dialética entre lutas concretas locais como essas e uma visão de conjunto mais ampla de transformação da sociedade. LVG – AS MEDIDAS EM ADOÇÃO PELOS GOVERNOS TÊM ALGUMA SERVENTIA? M.L. – Não creio que as políticas aplicadas pelos governos vão resolver a crise porque são medidas restritas aos marcos da pró-

pria lógica do capitalismo neoliberal. Necessitamos de medidas mais radicais, que enfrentem os interesses privados do capital e promovam uma reorganização da economia. Mas isso os governos não farão e os mercados também não. LVG – ENTÃO SERIA NECESSÁRIA OUTRA REVOLUÇÃO? M.L. – O que se deve realizar é uma transformação social radical que alguns chamam de revolução. No entanto, isso não significa que enquanto não houver uma revolução não possamos fazer nada. É preciso apresentar medidas concretas em função dos interesses dos trabalhadores, isto é, que sejam sociais e ecológicas. Sabemos que os governos não vão tomá-las, mas se houver pressão social suficiente, eles se verão obrigados a fazer alguma coisa. LVG – MARX RESSUSCITOU? M.L. – A ideia de que Marx morreu é velha e cada vez que o matam ele ressuscita. Hoje, os economistas oficiais creem que elr é interessante para entender a crise. Mas, para além de utilizá-lo para entender a crise, Marx faz uma análise e um diagnóstico de como funciona o capitalismo e a perspectiva de uma alternativa radical. LVG – SE A MUDANÇA NÃO ACONTECER, QUE FUTURO NOS ESPERA? M.L. – Os analistas sociais já têm dificuldade para entender o passado e o presente, e mais ainda o futuro. O que podemos fazer são predições condicionais. Como diziam os profetas do Antigo Testamento, se não mudarmos sobrevém uma catástrofe. Podemos prever que se seguirmos com este sistema, com os negócios de sempre, vamos ter uma crise – econômica e ecológica – ainda mais grave. Temos que tomar consciência da necessidade de uma mudança de rumo, confiando na racionalidade dos seres humanos, sobretudo dos oprimidos e explorados, para que a realidade mude. ■ Michael Löwy – Sociólogo e filósofo marxista franco-brasileiro, professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, e coautor do Manifesto Ecossocialista Internacional. A entrevista resume a reflexão apresentada pelo autor na Semana Galega de Filosofia (6/4/2010) e foi publicada no jornal espanhol La Voz de Galícia (07/04/2010). Tradução do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (Cepat). Cidadania&MeioAmbiente

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M O D E LO d e D E S E N V O LV I M E N TO

CRISE ECOLÓGICA: mais grave que a econômica


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Cidadania&MeioAmbiente

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Kalense Kid

S E G U R A N Ç A G E N É T I C A

A diversidade genética está se perdendo nos ecossistemas naturais e nos sistemas de produção agrícola e pecuária. Um importante esforço está sendo feito para conservar a diversidade genética vegetal, especialmente via bancos de sementes ex situ. Confira esta grave ameaça à biodiversidade.

da

A exaustão diversidade genética

O

declínio das populações de algumas espécies – combinado com a fragmentação das paisagens, dos corpos de águas interiores e habitats marinhos – tem conduzido, necessariamente, a uma significativa redução geral da diversidade genética da vida na Terra. Embora essa queda seja preocupante por várias razões, há uma inquietação especial quanto à perda de diversidade nas raças e variedades de plantas e animais utilizados para a subsistência humana. A homogeneização geral de paisagens e de variedades agrícolas pode tornar as populações rurais mais vulneráveis às mudanças futuras, caso se realize a possibilidade de desaparecimento de traços genéticos mantidos ao longo de milhares de anos. Um exemplo da redução da diversidade de culturas pode ser encontrado na China, onde o número de variedades de arroz local cultivado caiu de 46.000, em 1950, para pouco mais de 1.000, em 2006. Em cerca de 60 a 70

por cento das áreas nas quais os parentes silvestres de arroz usados para germinar, ou não são mais encontrados ou a área dedicada ao seu cultivo foi extremamente reduzida. Um progresso significativo tem sido alcançado na conservação de culturas ex situ, que consiste na coleta de sementes de diferentes variedades genéticas para catalogação e armazenamento para possível uso futuro. Para cerca de 200 a 300 culturas, estima-se que mais de 70% da diversidade genética já esteja conservada em bancos de genes, alcançando o objetivo definido no âmbito da Estratégia Global para a Conservação de Plantas. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) também reconheceu o papel fundamental desempenhado pelos agricultores e criadores de animais, bem como dos curadores de coletas ex situ, na conservação e no uso sustentável dos recursos genéticos. Contudo, ainda é necessário um esforço maior para conservar a diversidade genéti-

ca nas propriedades rurais, de modo a permitir a adaptação contínua das variedades às mudanças climáticas e a outras pressões. Também são necessárias medidas adicionais para proteger a diversidade genética de outras espécies de importância econômica e social, incluindo as plantas medicinais, os produtos florestais não madeireiros, as espécies locais (variedades adaptadas ao longo do tempo a condições especiais) e os parentes silvestres das culturas.

EMPOBRECIMENTO

Sistemas padronizados de alta produção da pecuária levaram a uma erosão da diversidade genética de pelo menos um quinto das raças. A disponibilidade de recursos genéticos mais capazes de dar suporte à subsistência de animais no futuro pode estar comprometida. Vinte e um por cento das 7 mil raças de animais da pecuária 1 mundial (entre 35 espécies domesticadas de aves e mamíferos) estão classificadas como em situação de risco, sendo o

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GENÉTICO

DA PECUÁRIA

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percentual real provavelmente muito mais elevado, já que mais de 36% se encontram em condição de risco desconhecida. Somente durante os primeiros seis anos deste século, mais de 60 raças foram consideradas extintas. A redução na diversidade de raças tem sido, até o momento, maior nos países desenvolvidos, na medida em que as variedades amplamente utilizadas e produzidas, como o gado Holstein-Friesian, começam a dominar. Em muitos países em desenvolvimento, as mudanças nas demandas do mercado, a urbanização e outros fatores vêm ocasionando o acelerado desenvolvimento de sistemas mais intensivos de produção de animais. Isto, por conseguinte, levou ao aumento da utilização de raças não locais, principalmente as oriundas de países desenvolvidos, muitas vezes à custa dos recursos genéticos locais. As políticas públicas e os programas de desenvolvimento podem piorar a situação se forem mal-planejados. Subsídios diretos e indiretos tendem a favorecer a produção em larga escala – em detrimento da criação de animais em pequena escala –, bem como a promoção de raças “superiores”, o que irá reduzir ainda mais a diversidade genética. A manutenção da pecuária tradicional também está ameaçada pela degradação das pastagens e pela perda do conhecimento tradicional por causa das pressões antrópicas, como migrações, conflitos armados e os efeitos do HIV/Aids. A perda de diversidade genética em sistemas agrícolas é particularmente preocupante, tendo em vista que as comunidades rurais enfrentam desafios cada vez maiores para se adaptar às condições climáticas futuras. Os recursos genéticos são extremamente importantes para o desenvolvimento de sistemas agrícolas que capturem mais carbono e emitam menor quantidade de gases de efeito estufa, e para servir de base para a cria0ção de novas variedades. Uma raça ou variedade de pouca importância hoje pode revelar-se muito valiosa no futuro. Se for permitido que seja extinta, as opções para a futura sobrevivência e adaptação estarão sendo fechadas para sempre. ■ Panorama da Biodiversidade Global 3 – Texto produzido pela Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), maio de 2010. A versão em português está disponível em http:// gbo3.cbd.int. e www.mma.gov.br/portalbio. ©Secretariado da CDB

PERDA DE BIODIVERSIDADE GRANDES IMPLICAÇÕES PARA O BEM-ESTAR HUMANO

Bancos de sementes representam um importante papel na conservação da biodiversidade de espécies vegetais e nas variedades de cultivos para as futuras gerações. Entre os programas mais ambiciosos para conservação ex situ estão a Parceria para o Banco de Sementes do Milênio (Millenium Seed Bank Partnership), iniciada pelos Jardins Botânicos Reais de Kew, Grã-Bretanha, e seus parceiros internacionais. Atualmente, este banco possui quase 2 bilhões de sementes de 30 mil espécies de plantas silvestres, principalmente de terras áridas, enquanto o Silo Global de Sementes de Svalbard, na Noruega, perto do Círculo Ártico, tem por objetivo fornecer a rede básica natural contra a perda acidental da diversidade agrícola em bancos de genes tradicionais. O silo tem capacidade para conservar 4,5 milhões de amostras de semrisco de extinção de raças de animais de criaç~aoentes.

RISCO DE EXTINÇÃO DE RAÇAS DE ANIMAIS DE CRIAÇÃO

Um grande número de raças das cinco principais espécies de animais de criação está em risco de extinção. De modo geral, das 35 espécies domesticadas desses animais, mais de um quinto figura na classe de risco de extinção. Fonte: FAO O gado Holstein-Friesian é um exemplo de animal de criação que se tornou dominante em todo o mundo, muitas vezes substituindo criações tradicionais e reduzindo a diversidade genética. Cidadania&MeioAmbiente

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URBANISMOSUSTENTÁVEL Betta Design

“Uma cidade sustentável depende da capacidade de reorganizar os espaços, gerir novas economias externas, eliminar as deseconomias de aglomeração, melhorar a qualidade de vida das populações e superar as desigualdades socioeconômicas para o crescimento econômico.” (Eduardo Alva, 1997) por Carol Salsa

Cidades SUSTENTÁVEIS A

s cidades surgiram no interior das so ciedades agrícolas no ano 2000 a.C., no Egito. Na Idade Média, devido ao comércio praticado a longa distância, as cidades adquiriram a feição de entreposto comercial. No século 19, a Revolução Industrial trouxe um novo conceito: a qualidade de vida, já ameaçada pela poluição gerada pelas fábricas na Europa. No Brasil, nos anos 50, o desenvolvimento econômico foi impulsionado pelo setor automobilístico. A cidade moderna torna-se um pólo concentrador de comércio, serviços e informações. E passa a ser o principal espaço de consumo e circulação das riquezas produzidas no campo. Com a mecanização da lavoura, a fixação do homem no campo torna-se inviável. A indústria reforça o desfecho dado pela lavoura quando transfere, geograficamente, o núcleo produtivo do campo para o meio urbano. Formam-se os movimentos de migração em massa provocando o caos nas grandes cidades. O crescimento descontrolado da população urbana demanda serviços, equipamentos públicos, transportes, comércio,

tecnologia, causando uma série de transtornos à dinâmica das cidades.

humano, e as ecológicas seguiam o padrão sustentável.

No início da década de 1990, a Conferência Rio-92 produziu o documento conhecido como Agenda 21, que selava a indissociabilidade do desenvolvimento econômico em relação à conservação do meio ambiente. Surge então o conceito de cidade sustentável, um lugar onde as conquistas no campo do desenvolvimento social, econômico e ambiental deveriam se estabelecer. Mas paira uma dúvida no ar: de que forma será possível adaptar as cidades aos atributos exigidos pela sustentabilidade?

No ano 2000, o Ministério do Meio Ambiente elabora o documento “Cidades”, no qual destacam-se seis temas centrais referentes à incorporação da dimensão ambiental nas políticas públicas.

A literatura é vasta e, nela, encontra-se o livro Criar Cidades Sustentáveis, de Herbert Girardet (1989). Ele considera as megalópoles, verdadeiras usinas de consumo de energia e de produção intensiva de resíduos sólidos. Outra teoria aventada era a que enfocava cidades biocidas e cidades ecológicas, se comparadas as suas formas de organização. As cidades biocidas eram associadas às máquinas potentes de destruição da natureza e geradoras de estresse

1 Agricultura sustentável; 2 Cidades sustentáveis; 3 Infraestrutura e integração regional; 4 Gestão de recursos naturais; 5 Redução das desigualdades sociais; e 6 Tecnologia para o desenvolvimento sustentável.

A construção das cidades sustentáveis demanda mudanças estruturais e grande articulação entre os atores envolvidos. Planos traçados para elas favorecem o surgimento de um novo modo de concepção de projetos e de execução de obras.

A

CONSTRUÇÃO SUSTENTÁVEL

Neste momento, o papel das incorporadoras torna-se crucial. Estes são os nove passos necessários para se chegar a uma construção sustentável:

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1 Planejamento sustentável da obra; 2 Aproveitamento passivo dos recursos naturais; 3 Eficiência energética; 4 Gestão e economia da água; 5 Gestão dos recursos sustentáveis na edificação; 6 Qualidade do ar e do ambiente interior; 7 Conforto termo-acústico; 8 Uso racional de materiais e 9 Uso de produtos e tecnologias ambientalmente amigáveis.

Levantamento realizado pelo Conselho Empresarial Mundial para o desenvolvimento confirma: a construção é conhecida como o setor dos 40%, pois essa é a sua participação no consumo mundial de energia, água e recursos naturais. No entanto, na evolução do conceito de cidades é lenta a adoção de métodos eficazes que confiram ao estágio em que se encontram a denominação de “cidades sustentáveis”. ■

Carol Salsa – Engenheira civil, pós-graduada em Mecânica dos Solos pela COPPE/UFRJ; em Gestão Ambiental e Ecologia pela UFMG; em Educação Ambiental pela FUBRA; analista ambiental concursada da FEAM; perita ambiental da Promotoria da Comarca de Santa Luzia/Minas Gerais. Infelizmente, as relevantes contribuições de nossa colaboradora se encerraram em 8/2/2010, data em que Carol Salsa morreu vítima de dengue. Outros artigos da autora estão disponíveis no link: http://www.ecodebate.com.br/2009/03/16/ cidades-sustentaveis-artigo-carol-salsa/

REDUÇÃO DOS IMPACTOS CLIMÁTICOS CIDADES

CONSTRUÇÕES

As cidades podem influenciar a redução dos impactos climáticos em pelo menos dois modos: 1 – Via administração e implementação de atividades (papel da governança), elas devem assumir o mais rapido possível as metas de neutralização de emissão de carbono; e 2 – Elas também influenciam o comportamento de seus habitantes e de outros parceiros, como a indústria e o transporte. Essas são as funções das cidades junto à comunidade. Assim, elas motivam os cidadãos a participar do projeto de redução das emissões em prol de um ambiente saudável. É possível trabalhar em prol da neutralidade climática. À semelhança das corporações, as idades podem agilizar o que for necessário para que os objetivos propostos sejam plenamente funcionais. Em todos os locais onde a participação pública é eficaz, a administração urbana torna-se uma grande compradora de materiais e equipamentos: papel, computadores, mobiliário, frota veicular (carros, ônibus, caminhões de coleta de lixo, ambulâncias, viaturas de bombeiros e assim por diante). As cidades também são responsáveis pelo fornecimento de equipamentos aos edifícios e espaços públicos. Nesse quesito, elas devem garantir a aplicação de critérios benéficos ao clima, especialmente na escolha de materiais e na questão da energia. Podem igualmente privilegiar as políticas de consumo de alimentos orgânicos e bebidas produzidos localmente e que serão consumidos nas lanchonetes, escolas, teatros e em todas as instituições pelas quais são responsáveis.

As construções são responsáveis por mais de 40% da energia consumida nos países da OCDE, no nível global respondem por aproximadamente 30% das emissões de gases de efeito estufa, segundo estudos do Sustainable Building and Construction Initiative, da UNEP. Em termos absolutos, esse volume está aumentando rapidamente já que a construção civil dispara, especialmente nos países em desenvolvimento. Os sistemas de refrigeração, aquecimento e iluminação de nossas residências e o uso de eletrodomésticos consomem 11% da energia global. Calcula-se que as residências típicas do Reino Himsa Ecovilage – Arimoore Unido poderiam economizar em torno de duas toneladas anuais de CO 2 ao adotar padrões de eficiência energética, ou seja, otimizando o isolamento, o aquecimento e a iluminação. A própria atividade da construção civil afeta as emissões de gases de efeito estufa. O cimento, por exemplo, é um material com alto poder de emissão de CO2, enquanto a madeira é renovável, além de proteger o clima. Mas há que se ter cuidado, pois existe madeira “boa” e madeira “não tão boa”. Se uma cobertura florestal deve ser derrubada para a construção de uma casa e não for replantada depois, será emitido CO2 adicional, da mesma maneira que o concreto (o que também vale para o mobiliário).

Fonte: Kick the Habit – A Guide to Climate Neutrality. Publicação do Programa Ambiental das Nações Unidas produzido com GRID-Arendal. Copyright©2008 UNEMG, UNEP/GRID-Arendal Cidadania&MeioAmbiente

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Masdar City: uma cidade sem poluição

Foster + Partners

Mesmo em Abu Dabi, capital dos Emirados Árabes – quarto maior produtor mundial de petróleo e emissor de dióxido de carbono (CO2) –, a transição para a ecoeconomia ganha status de objetivo nacional com a construção de Masdar City, a cidade ambientalmente descarbonizada. por Jane McGrath

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asdar City será a primeira cidade do planeta que além de não produzir resíduos vai ser inteiramente livre da emissão de carbono. Ironicamente, o custeio da cidade está sendo bancado pelo governo de Abu Dabi com o dinheiro que recebeu abastecendo as emissões de carbono de todo o mundo com o petróleo exportado. Para atingir o objetivo de zero carbono e zero resíduos, o projeto se vale de tecnologias de ponta em “planejamento sustentável”, que reduzem ao máximo o impacto ambiental. O projeto Masdar (a fonte, em árabe) – um louvável esforço de expansão de pesquisa e implementação da construção sustentável – está sendo construído num terreno de 6 km2, adjacente ao aeroporto internacional, e com custos estimados em US$22 bilhões. O empreendimento lançado em janeiro de 2008 para ser concluído em 2016, prevê uma cidade capaz de sustentar 50 mil moradores e mais de mil empresas.

Mas manter a cidade sustentável será um grande desafio para os arquitetos britânicos da empresa Foster + Partners, já que o clima da região não é exatamente ameno. As temperaturas podem chegar a 50oC, e as estruturas terão de ser climatizadas sem a utilização da energia gerada por combustível fóssil. E que tipo de transporte será usado para que as pessoas se movimentem sem carros? Geração de energia – Embora o clima da região da futura cidade seja quente, tem a vantagem de ser ensolarado. E será justamente o sol a fonte de energia. Para isso, os projetistas planejam construir uma gigantesca usina de energia solar. A cidade não terá arranha-céus, e as estruturas de geração de energia fotovoltaica serão instaladas nas coberturas das construções. Uma usina de dessalinização fornecerá água fresca para a Masdar City, também movida a

energia solar. A cidade também será beneficiada com a energia gerada por uma usina movida a hidrogênio, que custará US$ 2 bilhões. O hidrogênio, fonte limpa de energia, emite muito menos dióxido de carbono que a maioria dos processos que geram energia a partir de combustíveis fósseis. Para manter o baixo consumo de energia e a cidade sempre refrigerada, os arquitetos projetaram as estruturas da cidade de modo a tirar total vantagem da brisa natural do mar. Para proteger a população do clima árido do deserto, a cidade será cercada por um muro dotado de torres eólicas. Além disso, construções mais altas sombrearão as ruas estreitas. Se as estruturas utilizarem tecnologias sustentáveis e a demanda de energia for reduzida em 70% devido a essas tecnologias, será mais fácil Masdar City sobreviver com recursos energéticos alternativos. Espera-se uma economia de cerca de US$ 2 bilhões em petróleo em 25 anos.

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Abastecimento de água – Os esforços para a conservação dos recursos hídricos da cidade envolvem a reciclagem de pelo menos 80% da água utilizada. Toda a água residual tratada irrigará o solo. Por meio desses processos, os responsáveis pelo planejamento esperam reduzir o consumo de água em 60%. Tratamento de resíduos – Mas o que fazer com os resíduos produzidos por uma comunidade de 50 mil pessoas? A resposta está na compostagem e na reciclagem de plástico, papel, alumínio e outros materiais. Para evitar que os resíduos acabem num aterro sanitário, grande parte seguirá para uma usina de compostagem, onde as bactérias irão decompor o material. Assim, a reciclagem será de alta prioridade para Masdar. Transporte público – Como não haverá carros em Masdar City, isso contribuirá para a não emissão de dióxido de carbono. Afinal, as pessoas que irão viver e trabalhar ali nunca estarão a mais de 200 metros do transporte: um trem elétrico correndo em trilhos elevados garantirá o transporte fácil entre Masdar City e Abu Dabi. Para se movimentar pela cidade, as pessoas utilizarão veículos de “trânsito pessoal rápido”, movidos a energia elétrica e correndo sobre trilhos magnéticos.

PEGADA

DE

CO2

A unidade de negócios Masdar Carbon gerará recursos com a comercialização da redução de

emissão de gases de efeito estufa no contexto preconizado pelas diretrizes do Protocolo de Kyoto. E isso será feito oferecendo-se às empresas exploradoras de petróleo e de gás do Oriente Médio, África e Ásia assistência técnica, gerenciamento de projetos e financiamento de políticas de redução de CO2. Além disso, tanto a usina geradora de energia fotovoltaica de 10MW quanto a unidade de estocagem de energia solar SHAMS I, ambas situadas em Abu Dabi, são projetos CDM registrados. Paralelamente, a Masdar Carbon desenvolve uma multibilionária rede nacional de sequestro de carbono capaz de reduzir significativamente a pegada de carbono do país. Em sua fase inicial de operação – um dos primeiros projetos comerciais de captura de carbono em escala mundial –, a rede nacional sequestrará por volta de 6,5 milhões de toneladas de CO2 das usinas geradoras de energia e das instalações industriais de Abu Dabi no ano de 2013. O carbono capturado será transportado e sepultado em poços de petróleo para aumentar a recuperação do óleo.

INSTITUTO DE CIÊNCIA TECNOLOGIA MASDAR

E

É o núcleo das atividades de pesquisa e desenvolvimento de Masdar City, com papel primordial na construção da cidade. Aberto aos estudantes em setembro de 2009, o Instituto oferece dez programas de mestrado em

ciências e um primeiro programa de doutorado em energias renováveis e tecnologias sustentáveis. Cabe ao instituto encorajar um ambiente acadêmicocapaz de alimentar a próxima geração de descobertas científicas. Desenvolvido em cooperação com o Massachusetts Institute of Technology (MIT), o Masdar Institute of Science and Technology é um centro de pós-graduação focado na ciência e no desenvolvimento de energias renováveis avançadas, tecnologias ambientais e sustentabilidade. O Instituto, que ocupa o cerne da pesquisa nacional e congrega a comunidade responsável pelo desenvolvimento de Masdar City, receberá até 600 mestres e doutores. Através de convênios firmados com instituições de pesquisa públicas e privadas de todo o planeta, os pesquisadores terão a tarefa de desenvolver soluções tecnológicas de ponta em energia renovável e sustentabilidade que acelerarão a descarbonização do planeta. Quando entrar em operação, este ambicioso projeto de cidade ecológica poderá finalmente ser posto à prova. Masdar City – e seu Masdar Institute of Science and Technology – constituem um canteiro de tecnologia ambiental pioneiro. A partir dela surgirão inovadoras e bem-sucedidas soluções ecológicas para outras cidades do planeta. ■ Fonte: texto de Jane McGrath para How StuffWorks.

APOSTA NO FUTURO ENERGÉTICO O Projeto Masdar (The Abu Dhabi Future Energy Company) foi criado para desenvolver, comercializar e implementar soluções de energia renovável (descarbonizada) e tecnologias limpas para aplicação global em larga escala. É constituído por três unidades de negócios e um braço de fundo de investimento:

Foster + Partners

MASDAR CARBON – Especializada no desenvolvimento de soluções de eficiência energética e projetos livres de energia fóssil capazes de contribuir significativamente para a redução das emissões de carbono. MASDAR CITY – Planejamento urbano integrado de energia limpa nos arredores de Abu Dabi totalmente movido a energia renovável. MASDAR POWER – Investimento e construção de megaprojetos de energia renovável. MASDAR VENTURE CAPITAL – Administra o Masdar Clean Tech Funds (fundos de capital com foco em investimentos em energia renovável e tecnologia limpa). Cidadania&MeioAmbiente

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Enquanto as sociedades experimentam uma importante melhoria na qualidade de vida, os indicadores ambientais vêm piorando vertiginosamente em função do consumismo desenfreado, da degradação e do uso insustentável dos recursos naturais. O resultado são as flagrantes desigualdades em escala planetária. por Carlos Machado

David Blackwell

Degradação ambiental na sociedade do risco IHU ON-LINE – QUAIS OS RISCOS APLICÁVEIS AOS PROBLEMAS AMBIENTAIS NO CENÁRIO ATUAL? Carlos Machado – Temos pesquisado sobre os problemas ambientais porque consideramos que eles apontam para os processos de degradação que estão atingindo os sistemas de suporte à vida – como os ciclos das águas, do clima e dos solos, o fornecimento de alimentos e de água, e a disponibilidade de recursos naturais fundamentais à nossa vida. Assim, podemos falar que há melhoria da qualidade de vida (acoplada à ideia de que quanto mais consumo, melhor a qualidade de vida), enquanto, ao mesmo tempo, os indicadores ambientais pioram. Afinal, quanto maior o consumo, mais recursos naturais são utilizados ou degradados. Não há uma fórmula mágica que permita aumentar o consumo sem aumentar os danos ambientais.

ainda dominante nas mentes dos gestores. E por ser bastante setorial, não tem avançado efetivamente na transversalidade fundamental para as ações. Um exemplo disto pode ser visto na poluição atmosférica por veículos automotores.

E isto também se acopla ao crescimento, tanto da população como do consumo per capita, que também cresceu ao longo do século 20, acompanhado de grandes desigualdades, já que o consumo médio de um cidadão de um país rico pode ser até 40 vezes maior que o de outro cidadão que vive em um país pobre. Assim, consideramos que não se pode tratar de melhoria da qualidade de vida sem tratar dos sistemas de suporte à vida, sendo que, nessa inter-relação, temos a questão do crescimento e das desigualdades.

IHU – O BRASIL

IHU – E

Enquanto o Ministério do Meio Ambiente procurava demonstrar como os veículos automotores são altamente poluentes, colocando em discussão este tema até para as questões ligadas ao consumo, o governo incentivava os consumidores a comprar carros novos, ao invés de investir na manutenção dos empregos do setor a partir de investimentos na produção do transporte coletivo. Não precisamos ir muito longe para ver as consequências disso. Basta refletir sobre o tema em um engarrafamento nas grandes cidades – seja no ônibus ou no carro. VIVEU, NOS ÚLTIMOS VERÕES, GRANDES PROBLEMAS

COM CAUSAS NATURAIS.

COMO

A IDEIA DE SOCIEDADE DO RISCO SE

APRESENTA EM SITUAÇÕES COMO ESSA?

C.M. – Ao tratar a questão da sociedade do risco, Ulrich Beck [1] aponta para a capacidade de as tecnologias perigosas tornarem-se difusas num tempo em que vigoram inadequados processos políticos decisórios (que não incorporam os novos atores sociais) e um reducionismo científico que não consegue tratar os riscos e incertezas inerentes a este processo. Assim, temos não só a reconfiguração de riscos tradicionais, como o surgimento de novos.

COMO AVALIA A AGENDA AMBIENTAL BRASILEIRA EM RELAÇÃO

AOS PROJETOS EM DESENVOLVIMENTO?

C.M. – Tem avançado em muitos aspectos em termos de diagnósticos e até de proposições. Porém, é muito importante destacar que essa agenda encontra-se subordinada a um modelo de desenvolvimento econômico que considera que crescer explorando recursos naturais é o único caminho, uma visão do século passado

O debate sobre os eventos com causas “naturais” – em vários aspectos determinadas socialmente – também se reconfigura neste processo. Isso porque temos enchentes e inundações que, se objetivamente são iguais às do passado, agora trazem como novidade o fato de muitas de suas causas estarem relacionadas desde ao precário ou ausente planejamento urbano até às mudanças am-

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bientais mais globais, como as climáticas. O que significa que as causas atuais associadas ao homem podem ter consequências que transcendem as gerações atuais, e que não encontram nos mecanismos correntes formas de controle – basta ver o fracasso do último acordo sobre o clima. É a reinterpretação destes riscos “antigos” ou mesmo no surgimento de novos riscos (nanotecnologia, por exemplo) que a sociedade do risco se aplica, pois já não podemos separar o que é natural do que é social, ao mesmo tempo em que os mecanismos de decisão e compreensão se apresentam como insuficientes. Estes são os sinais de uma crise que não é só ambiental, mas também social. IHU – O PROGRESSO IMPLICA NECESSARIAMENTE EFEITOS CATASTRÓFICOS? C.M. – A trajetória do homem sempre acompanhou a história das mudanças ambientais em função da apropriação dos recursos naturais. Num primeiro momento, relacionadas à sobrevivência; num segundo momento, relacionadas às diversas formas de acumulação de poder, riqueza e distinção social. O que temos hoje é a potencialização do uso da natureza em uma escala muito maior, mediada pelas tecnologias que propiciam a acumulação de recursos. Até 1800, nunca havíamos ultrapassado um bilhão de habitantes. A partir daí, rapidamente passamos para seis bilhões em apenas 200 anos, sendo que demoramos cerca de 150 mil anos para chegar ao primeiro bilhão. Como se não bastasse, cada ser humano consome hoje, em média, uma quantidade muito maior de água, alimentos, energia etc. Nesta lógica, não temos como ter este crescimento – que é bastante desigual – sem gerar uma crise. A questão é: até onde podemos ir. IHU – O

SENHOR ESTUDA A CASO DE

MANAUS. ESTA

CIDADE ESTÁ

INSERIDA NA IDEIA DE SOCIEDADE DO RISCO?

C.M. – Não estudamos Manaus no contexto da sociedade do risco, embora os argumentos anteriores possam também ser aplicados a

este caso. Estudamos porque boa parte do debate sobre a Amazônia está centrada na questão ambiental, esquecendo ou ocultando que lá vivem milhões de pessoas, concentradas principalmente nas cidades cercadas por florestas. Trabalhamos com a perspectiva de que não é possível pensar a questão ambiental sem pensar a questão do ser humano e de sua saúde, assim como o inverso. IHU – QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS RISCOS PARA MANAUS? C.M. – Em Manaus, os principais riscos ambientais à saúde estão associados ao processo de urbanização. Manaus apresenta os mesmos problemas de muitas das cidades do país, como poluição, doenças crônicas, acidentes de trânsito e violência. Estas questões estão associadas ao precário desenvolvimento, expresso na precária infraestrutura de saneamento e ocupação do solo (dengue e doenças diarreicas, agravadas em casos de enchentes, por exemplo), assim como doenças associadas à pobreza (tuberculose e leishmaniose) e à expansão urbana nas bordas da floresta (malária, por exemplo). Ou seja, Manaus vivencia uma situação bastante complexa, com riscos associados ao processo de urbanização, à pobreza e à precária infraestrutura urbana, com riscos que podem ser agravados – como dengue e malária – por mudanças ambientais globais. ■ NOTA: [1] Ulrich Beck – Sociólogo alemão que leciona na Universidade de Munique e na London School of Economics, estuda a modernização, os problemas ecológicos, o individualismo e a globalização. Nos últimos anos também tem estudado a exploração e as condições de mudança no trabalho em um mundo que assiste ao crescimento do capitalismo global, à perda de poder dos sindicatos e à flexibilização dos processos de trabalho.

Carlos Machado de Freitas – Historiador formado pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Engenharia de Produção pela UFRJ, doutor em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz e pós-doutor pela Universidade de São Paulo. Artigo publicado em IHU On-line [Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS] e no portal EcoDebate (28/5/2010).

ESTÍMULO AO CONSUMO AMEAÇA FUTURO SUSTENTÁVEL RECURSOS DA TERRA NÃO SUPORTAM PRESSÃO HUMANA

❚ Pesquisa mostra que se todos os consumidores seguissem o padrão norte-americano seriam necessários 4,5 planetas para atender à demanda. ❚ Se o impacto do ser humano na Terra fosse medido segundo a numeração de roupa, seria possível dizer que a humanidade, que 54, tenta ocupar um planeta cujo formato é capaz de suportar apenas o tamanho 34. ❚ “Nós vivemos num planeta em que, em menos de 200 anos, saltamos de 1,5 bilhão de pessoas para 6,5 bilhões. Em 40 anos, deveremos ser 9 bilhões: viveremos o fenômeno de que tudo será escasso”, informa Achim Steiner, diretor do Pnuma, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.

SOCIEDADE DO CONSUMO

❚ A ideia está por toda parte: quanto mais se compra mais feliz se vive. Esse conceito se consolida nos estudos de psicologia. ❚ Durante séculos e milênios tivemos que acumular para sobreviver. Quem acumulava mais tinha melhores chances de resistir ao próximo inverno. Esse padrão de comportamento ainda é seguido hoje. Acredita-se que ter cada vez mais garante a sobrevivência e a felicidade”, analisa Tal Ben Shahar, que conduziu uma pesquisa sobre o assunto em Harvard.

MUDANÇA OU FUTURO SOMBRIO

❚ “As próximas gerações terão que triplicar o abastecimento de energia, cuja produção precisa ser livre de emissões de carbono. O futuro precisa ser neutro em CO2”, enfatiza Charles Hopkins, da Unesco e professor da Universidade York, em Toronto. ❚ O princípio básico: precisamos de mais eficiência e menos lixo. A natureza não sabe o que é lixo. O que para um organismo é descartado como resíduo, para outro pode ser fonte de alimento. A sociedade moderna precisa adotar sistema semelhante. Temos apenas que fazê-lo de uma maneira economicamente plausível. ❚ Esse seria o fim da sociedade do descartável. E, como espera Charles Hopkins, haveria uma renascença do modelo de economia verde. “A solução não está apenas em aumentar a eficiência. Como efeito final, isso significaria apenas mais produção de mercadoria mais barata e, com isso, extinguir ainda mais rápido as fontes não renováveis. Se não mudarmos o modo de pensar de forma radical, podemos nos conduzir ao abismo”, teoriza Hopkins. ❚ A conclusão de Steiner não é diferente. “Uma coisa nós já sabemos: não poderemos viver pacificamente neste planeta se continuarmos, no século 21, seguindo o modelo econômico do século 20.”

Fonte: M. Amberger, H. Jeppesen, N. Pontes. Reportagem da Agência Deutsche Welle, DW-WORLD.DE (26/2/2010).

Cidadania&MeioAmbiente

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PESCADO

Giant Ginkgo

E C O S S I S T E M A M A R I N H O

por Marcelo Szpilman

Os oceanos e sua biodiversidade devem ser vistos como prioridade para a preservação ambiental, já que os estoques pesqueiros naturais estão em acelerado esgotamento devido à sobrepesca e à pesca predatória. por Marcelo Szpilman

a fonte ameaça secar

SOBREPESCA

E AMEAÇA DE EXTINÇÃO

Em valor nutritivo e digestibilidade a carne de peixe é uma das melhores. Temos também razões gustativas para apreciarmos lagostas, camarões e mexilhões. Comê-los sempre foi um ato natural e nada antiecológico. No entanto, para que possamos continuar a consumi-los no futuro devemos pensar de forma responsável sobre este assunto. Os oceanos e sua biodiversidade devem ser vistos como prioridade para a preservação ambiental. Apesar de a pesca ser uma das mais antigas atividades desenvolvidas pelo homem, parece que todo esse tempo de prática ainda não foi suficiente para evitar que ela seja realizada de forma predatória. Levantamentos recentes indicam que atualmente a captura indiscriminada mata e desperdiça entre 18 e 40 milhões de toneladas de peixes, tubarões, tartarugas e mamíferos marinhos todos os anos, o que representa nada mais, nada menos que um terço da pesca mundial. Trata-se de um crime contra a natureza e de um inaceitável desperdício que ameaça secar a fonte. A destrutiva combinação da sobrepesca com a pesca predatória empreendida nas últimas décadas cobrará um alto preço mui-

to em breve. Em muitos casos, o “futuro” já chegou: diversas espécies comerciais de pescado estão ameaçadas de desaparecer. No Brasil, já são 145 espécies de peixes e 12 de tubarões ameaçadas de extinção, e 31 espécies de peixes e 6 de tubarão sobrepescadas. Entre as espécies mais ameaçadas, temos o cação-anjo, a raia-viola, o mero, o peixe-serra e o surubim. Entre os estoques de espécies tradicionais sobrepescadas em nosso litoral estão mangona, tubarão-martelo, sardinha, pargo, cioba, tainha, enchova, namorado, corvina, garoupa, cherne, pescadinha, camarões e lagostas. E esses números só não são maiores devido à histórica falta de verba para pesquisas em nosso país. A sobrepesca – feita de forma correta e legal, mas acima do limite que permite a uma espécie se autorrepor na natureza – e a pesca descontrolada são problemas graves, porém mais compreensíveis do ponto de vista histórico. Há séculos ocorre a captura do pescado comercial para alimentação humana. No entanto, se já não chegou, a atividade está chegando ao limite de exploração para algumas espécies. Da mesma forma que o homem percebeu, há milênios, que não conseguiria sobreviver somente coletando e caçando seu alimento, razão pela qual

desenvolveu a agricultura e a pecuária, temos que nos conscientizar de que o mar, apesar de seu tamanho, não é um provedor de recursos inesgotáveis.

DEFESO:

O exemplo da sardinha-verdadeira é bastante elucidativo. Peixe barato nos anos 70 e 80 – alimento farto nas mesas menos favorecidas –, a média anual da pesca da sardinha era então de 200 mil toneladas: correspondia a 38% dos peixes pescados anualmente no Brasil. A partir da década de 80, teve início uma queda contínua nos totais capturados. Prevendo que a captura estava além dos limites que permitiriam garantir o equilí-

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INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO

Os recursos pesqueiros, ao contrário de outros recursos naturais, podem ser perfeitamente renováveis. O correto gerenciamento de seus estoques deve ser visto como importante ferramenta para o desenvolvimento sustentável do país. Nesse sentido, existem alguns instrumentos que já se mostraram eficientes. O defeso – proibição da pesca na época de reprodução (desova) – e a maricultura – produção controlada de espécies marinhas em áreas confinadas – são não apenas soluções para a queda na captura de espécies comerciais, como também formas de preservação dos oceanos.

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O mar, apesar de seu tamanho, não é um provedor de recursos inesgotáveis.

brio entre a atividade pesqueira e a conservação da espécie, a legislação brasileira passou a proteger a reprodução da sardinha através do defeso (novembro-março e julho-setembro). Em 1990, ano mais crítico, a captura atingiu 32 mil toneladas. Ainda que o defeso tenha contribuído na recuperação dos estoques, como demonstra o índice de 1997, com cerca de 118 mil toneladas, infelizmente a produção tem oscilado muito e a expectativa média atual é de no máximo 30 a 50 mil toneladas por ano. Assim, o defeso demonstrou ser um importante instrumento de ordenamento e conservação, permitindo que a pesca continue a ser exercida de forma sustentável. Se no começo os pescadores comerciais reclamavam da medida, logo perceberam a importância dela para sua atividade, e hoje a defendem com unhas e dentes. As lagostas (janeiro-abril) e os camarões (dezembro-fevereiro na região Norte; março-maio nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul) também têm seus períodos de defeso. Mas, infelizmente, a maioria dos peixes e tubarões, que também precisam de proteção, não têm seus períodos de defeso instituídos por lei. Sem falar, é claro, na proteção ambiental de suas áreas de desova e de berçário.

A

PESCA INCORRETA E ILEGAL

A noção de pesca predatória que temos hoje, feita de forma incorreta e ilegal, como a pesca com malha fina, arrastão de fundo ou bomba, pode mudar de acordo com os conceitos da sociedade e de seu tempo. O que hoje é legal amanhã pode não ser. O que é ilegal no Brasil pode não ser em Moçambique. Quem não se lembra do romântico arrastão de praia, muito comum até a década de 80 em quase todo o país? Capturava tudo em seu caminho e o que não prestava à comercialização (grande parte) era deixado na areia para apodrecer. Felizmente, o arrastão de praia foi erradicado por uma legislação mais rígida. No entanto, de acordo com o Ibama, órgão responsável pela fiscalização e controle das atividades pesqueiras no Brasil, ainda existe uma quantidade considerável de pescadores trabalhando de forma incorreta e, consequentemente, predatória. Mesmo sabendo como a pesca predatória pode ser deletéria, podemos, de certo modo, compreender que muitas vezes o pescador, sem qualquer outra alternativa, é movido pela necessidade de saciar a fome de sua família.

Também não há mal algum em se comer um suculento filé de cação. Aliás, come-se cação ou tubarão (que são a mesma coisa) há centenas de anos. O problema ocorre quando o filé vem de espécies mundialmente ameaçadas de extinção, como a mangona e o tubarão-martelo. Absurdo ainda mais inadmissível é a “perseguição” de determinadas espécies de tubarão para a extração de partes de seu corpo que geram produtos supérfluos e de benefícios duvidosos e sem comprovação científica. A ganância humana é o pior tipo de pesca predatória. ■

Marcelo Szpilman – Biólogo marinho formado pela UFRJ, com pós-graduação executiva em Meio Ambiente (MBE) pela COPPE/UFRJ. Autor de Guia Aqualung de Peixes (1991), Seres Marinhos Perigosos (1998/99), Peixes Marinhos do Brasil (2000/01), Tubarões no Brasil (2004) e de artigos sobre natureza, ecologia, evolução e fauna marinha publicados na mídia impressa e no Informativo do Instituto Aqualung, do qual é diretor e editor. Diretor do Projeto Tubarões no Brasil (PROTUBA) e membro da Comissão Científica Nacional (COCIEN) da Confederação Brasileira de Pesca e Desportos Subaquáticos (CBPDS). O artigo original, Pesca predatória e sobrepesca: a fonte ameaça secar, foi publicado em www.ecodebate.com.br (26/5/2010).

TUBARÃO: VÍTIMA DO SUPÉRFLUO ❚ A pesca de tubarão tem dois objetivos: a cartilagem, transformada em cápsulas apregoadas como antitumorais (em analogia ao fato de o tubarão ser imune ao câncer), e as nadadeiras (muitas vezes extirpadas do animal ainda vivo, que depois é devolvido ao mar para afundar e apodrecer), utilizadas para fazer sopa, tida como afrodisíaco e símbolo de status na China. Trata-se de mais uma das aberrações predatórias e criminosas vigentes. Não se pode ameaçar a existência de uma espécie animal ou vegetal em prol da “suposta” melhoria da saúde humana. Ainda mais quando se dispõe de tecnologia capaz de sintetizar as substâncias comprovadamente benéficas. ❚ Atualmente, cerca de 100 milhões de tubarões são capturados e mortos a cada ano em todos os mares. Isso representa uma monumental ameaça à sobrevivência dessas espécies, que conhecem vertiginoso declínio. 43% das espécies existentes no litoral brasileiro já estão nas listas de “ameaçadas de extinção”. Nesse ritmo de consumo insustentável, algumas serão extintas nos próximos anos.

Mushi King

❚ Deixar de ver os tubarões como feras assassinas e ter consciência de que eles exercem um papel crucial na manutenção da saúde e equilíbrio dos ecossistemas marinhos é um importante passo para uma mudança de atitude. ❚ Para mais informações sobre tubarões e sua desmistificação, solicite o artigo “Você tem medo de tubarão?” pelo email instaqua@uol.com.br

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L E G I S L A Ç Ã OA M B I E N TA L

Kate Fisher/BBC World Service

Do CÓDIGO FLORESTAL ao da BIODIVERSIDADE por Aziz Ab’Saber

A flexibilização do Código Florestal Brasileiro proposta pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados em julho constitui avanço ou retrocesso da política de proteção ambiental? É um passo decisivo para a revogação da legislação brasileira de combate às mudanças climáticas? As alteraçõesdefendidas pelos produtores rurais visam proteger a vegetação ou apenas expandir as atividades produtivas em detrimento do patrimônio florestal e da biodiversidade? O professor Aziz Ab’Saber analisa esta delicada questão. 30 RC&MA ed28 09ago.pmd

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m face do gigantismo do território e da situação real em que se encontram seus macrobiomas – Amazônia Brasileira, Brasil Tropical Atlântico, Cerrados do Brasil Central, Planalto das Araucárias, e Pradarias Mistas do Brasil Subtropical – e seus numerosos minibiomas – faixas de transição e relictos de ecossistemas –, qualquer tentativa de mudança no Código Florestal tem que ser conduzida por pessoas competentes e bioeticamente sensíveis. Pressionar por uma liberação ampla dos processos de desmatamento significa desconhecer a progressividade de cenários bióticos, a diferentes espaços de tempo futuro, e favorecer de modo simplório e ignorante os desejos patrimoniais de classes sociais que só pensam em seus interesses pessoais, no contexto de um país marcado por grandes desigualdades sociais.

das – diz respeito à chamada estadualização dos fatos ecológicos de seu território específico. Sem lembrar que as delicadíssimas questões referentes à progressividade do desmatamento exigem ações conjuntas dos órgãos federais correspondentes, em conjunto com órgãos estaduais similares, com a Polícia Federal rural e o Exército brasileiro. Todos conectados com autoridades municipais que têm muito a aprender com um Código novo que envolva todos os macrobiomas do país e os minibiomas que os pontilham, com especial atenção para as faixas litorâneas e as faixas de contato entre as áreas nucleares de cada domínio morfoclimático e fitogeográfico do território.

Cidadãos de classe social privilegiada, que nada entendem de previsão de impactos, não têm compromisso ético com a natureza. Não buscam encontrar modelos técnico-científicas adequados para a recuperação de áreas degradadas, seja na Amazônia, seja no Brasil Tropical Atlântico ou alhures. São pessoas para quem a exigência de adoção de atividades agrárias “ecologicamente autos-sustentadas” é mania de cientistas irrealistas.

Para pessoas inteligentes e capazes de prever impactos a diferentes tempos do futuro fica claro que ao invés da “estadualização” é absolutamente necessário focar o zoneamento físico e ecológico de todos os domínios de natureza do país. A saber, as duas principais faixas de Florestas Tropicais Brasileiras: a zona amazônica e a zona das matas atlânticas; o domínio dos cerrados, cerradões e campestres; a complexa região semiárida dos sertões nordestinos; os planaltos de araucárias e as pradarias mistas do Rio Grande do Sul; além de nosso litoral e do pantanal mato-grossense.

OS

O

ERROS DO NOVO

CÓDIGO FLORESTAL

Por muitas razões, se houvesse um movimento para aprimorar o atual Código Florestal, ele teria que envolver o sentido mais amplo de um Código de Biodiversidades, levando em conta o complexo mosaico de vegetacional de nosso território. Remetemos essa proposta para Brasília, e recebemos em resposta que era uma ideia boa, mas complexa e inoportuna (…). Agora, outras personalidades trabalham por mudanças estapafúrdias e arrasadoras no Código Florestal, motivo pelo qual ousamos criticar os que insistem em argumentos genéricos e perigosos para o futuro do país. Mais do que nunca é necessário evitar que gente de outras terras, sobretudo de países hegemônicos, venha a dizer que fica comprovado que o Brasil não tem competência para dirigir a Amazônia (…). Ou seja, os revisores do atual Código Florestal não teriam competência para dirigir o todo territorial do Brasil. Que tristeza, gente minha. O primeiro grande erro dos que no momento lideram a revisão do Código Florestal brasileiro – a favor de classes sociais privilegia-

PODER DOS LATIFUNDIÁRIOS

Seria preciso lembrar ao honrado relator Aldo Rabelo – a meu ver bastante neófito em matéria de questões ecológicas, espaciais e em futurologia – que atualmente predomina na Amazônia Brasileira um verdadeiro exército paralelo de fazendeiros, que em sua área de atuação têm mais força do que governadores e prefeitos. O que se viu em Marabá, com a passagem das tropas de fazendeiros desfilando pela Avenida da Transamazônica, deveria ser conhecido pelos congressistas de Brasília e diferentes membros do Executivo. De cada uma das fazendas regionais passava um grupo de cinquenta a sessenta camaradas, tendo à frente, em cavalos nobres, o dono da propriedade e sua esposa, seguidos dos filhos em cavalos lindos. Os grupos iam em frente, separados um do outro por alguns minutos. E alguém a pé, como um comandante, controlava a passagem da cavalgada dos fazendeiros. Ninguém da boa e importante cidade de Marabá saiu para observar a coluna amedrontadora dos fazendeiros. Somente dois meninos deixaram as bicicletas na beira da calçada e observa-

Vista aérea - fazenda Mato Grosso Simon Chirgwin

Pressionar por uma liberação ampla dos processos de desmatamento significa desconhecer a progressividade de cenários bióticos a diferentes espaços de tempo futuro.

ram, silentes, o deslocamento das tropas. Nenhum jornal do Pará ou do país noticiou a ocorrência amedrontadora. Alguns de nós não pudemos atravessar a ponte para participar de um evento cultural. Será certamente apoiados por fatos como esse que alguns proprietários de terras amazônicas deixaram sua mensagem, nos seguintes termos: “a propriedade é minha e eu faço com ela o que eu quiser, como quiser e quando quiser”. Mas ninguém esclarece como conquistou seus imensos espaços inicialmente florestados. E outros, ainda, vivendo em diferentes áreas do centro-sul brasileiro, quando perguntados sobre como enriqueceram tanto explicam que foi com os “negócios na Amazônia” (…). Ou seja, através de loteamentos ilegais, venda de glebas para incautos em locais de difícil acesso e que, ao fim de certo Cidadania&MeioAmbiente

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ceu elementos referentes à tipologia dos rios regionais. Para eles, ali existem, em ordem crescente: igarapés, riozinhos, rios e parás. Uma divisão lógica e pragmática que é aceita por todos os que conhecem a realidade da rede fluvial amazônica. Por desconhecer esses fatos, os relatores da revisão do Código aplicam o espaço de sete metros da beira de todos os cursos d’água fluviais sem sequer ter ido lá para conhecer o fantástico mosaico de rios do território regional.

Simon Chirgwin

O projeto de revisão do Código Florestal proposto na Câmara Federal defende um processo que resultará em desmatamento e emissões incontroláveis de CO2.

tempo, são liberadas para madeireiros contumazes. E o fato mais infeliz é que ninguém procura novos conhecimentos para reutilizar terras degradadas. Ou exigir dos governantes tecnologias adequadas para revitalizar os solos que perderam nutrientes e argilas, tornando-se areias finas (siltização).

REDES

HIDROGRÁFICAS EM PERIGO

Entre os muitos aspectos caóticos derivados de alguns argumentos dos revisores do Código destaca-se o que diz que se deve proteger a vegetação até sete metros e meio do rio: redução de algo que já estava muito errado, e que agora fica reduzido – genericamente – a quase nada em relação aos grandes rios do país. Imagine-se que para o rio Amazonas a exigência protetora seja de apenas sete metros, e que para a grande maioria dos ribeirões e córregos fosse aplicada a mesma exigência. Trata-se de um desconhecimento entristecedor sobre a ordem de grandeza das redes hidrográficas do território intertropical brasileiro. Na linguagem amazônica tradicional, o próprio povo já reconhe-

Mas o pior é que as novas exigências do Código Florestal proposto têm excessivo e abusivo caráter liberalizante. Fala-se em sete metros e meio das florestas beiradeiras (ripariobiomas) e, depois, em preservação da vegetação de eventuais e distantes cimeiras. Sem poder imaginar quanto espaço fica liberado para qualquer tipo de ocupação. Lamentável em termos de planejamento regional, de espaços rurais e silvestres. Lamentável em termos de generalizações forçadas por grupos de interesse (ruralistas).

MATA

E PERCENTUAIS DE PRESERVAÇÃO

Já se poderia prever que um dia os interessados em terras amazônicas iriam pressionar de novo pela modificação do percentual a ser preservado em cada uma das propriedades da região. O argumento simplista merece uma crítica decisiva e radical. Para eles, se em regiões do centro-sul brasileiro a taxa de proteção interna da vegetação florestal é de 20%, por que na Amazônia a lei exige 80%? Mas ninguém tem coragem de analisar o que aconteceu nos espaços ecológicos de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais com o percentual de 20%. Nos planaltos interiores de São Paulo, a soma dos desmatamentos produziu cenários de generalizada destruição. Nessas importantes áreas, dominadas por florestas e redutos de cerrados e campestres, somente o tombamento integrado da Serra do Mar, envolvendo as matas atlânticas, os solos e as aguadas da notável escarpa, foi capaz de resguardar os ecossistemas orográficos da acidentada região. O restante – “mares de morros”, colinas e várzeas do médio Paraíba e do Planalto Paulistano; e pró-parte da Serra da Mantiqueira – sofreu uma destruição deplorável. É o que ninguém no país – para falar de gente inteligente e bioética – não quer que se repita na Amazônia Brasileira, em um espaço de 4.200.000 km².

FLORESTAMENTO

Eles desconhecem que para áreas muito degradadas já existe um plano de (re)organização dos espaços remanescentes sob o enfoque de revigorar a economia de pequenos e médios proprietários: o projeto FLORAM. Os eucaliptólogos perdem a ética quando alugam espaços por trinta anos, de incautos proprietários, preferindo áreas dotadas de solos tropicais férteis (oxissolos) e evitando as áreas degradadas de morros pelados reduzidas a trilhas de pisoteio (hipsométricas), semelhantes ao protótipo existente no planalto do Alto Paraíba, em São Paulo. Ao arrendar terras de bisonhos proprietários para uso em 30 anos e sabendo que os donos da terra podem morrer qantes de se completar o prazo. Isso cria um grande problema judicial para os herdeiros, sendo que ao fim da negociação as empresas cortam todas as árvores de eucaliptos ou pinos, deixando miríades de troncos no chão. Um cenário que impede a posterior reutilização das terras para atividades agrárias. Tudo isso deveria ser conhecido por aqueles que defendem ferozmente um Código Florestal liberalizante. Por todas as razões somos obrigados a criticar a persistente e repetitiva argumentação do deputado Aldo Rebelo, que conhecemos há muito tempo e de quem sempre esperávamos o melhor. Mas, neste momento, somos forçados a lembrá-lo de que cada um tem de pensar em sua biografia. E que o político precisa honrar a história de seu partido. Especialmente para os partidos que se dizem de esquerda e jamais poderiam fazer projetos totalmente dirigidos aos interesses pessoais de latifundiários.

A

EXIGÊNCIA DE UMA VISÃO MACRO

Insistimos que em qualquer revisão do Código Florestal vigente devem-se enfocar as diretrizes considerando as grandes regiões naturais do Brasil, sobretudo os domínios de natureza muito distintas entre si, tais como a Amazônia e suas extensíssimas flo-

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E REFLORESTAMENTO

Os relatores do Código Florestal argumentam que as áreas muito desmatadas e degradadas poderiam ficar sujeitas a “(re) florestamento” por espécies homogêneas, já pensando em eucalipto e pinus. Uma prova de grande ignorância, já que desconhecem a diferença entre reflorestamento e florestamento. Esse último, pretendido por eles, é uma prática exclusivamente de interesse econômico empresarial, que infelizmente não pretende preservar biodiversidades.

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O florestamento é fato de exclusivo interesse econômico empresarial sem compromisso com a preservacão da biodiversidade.

” Simon Chirgwin

restas tropicais e o Nordeste seco com seus diferentes tipos de caatingas. Trata-se de duas regiões opostas em relação à fisionomia e à ecologia, assim como em face de suas condições socioambientais. Ao tomar o partido dos grandes domínios administrados técnica e cientificamente por órgãos do Executivo federal, teríamos que conectar instituições específicas do governo brasileiro com suas similares estaduais. Existem regiões como a Amazônia, que envolve conexões com nove estados do norte brasileiro. Em relação ao Brasil Tropical Atlântico, os órgãos do Governo Federal – IBAMA, IPHAN, FUNAI e INCRA – teriam que manter conexões com os diversos setores similares dos governos estaduais de norte a sul do Brasil. E assim por diante.

Simon Chirgwin BBC World Service

Seria necessário que os pretensos reformuladores do Código Florestal lançassem sobre o papel os limites de glebas de 500 a milhares de quilômetros quadrados e, dentro de cada parcela das glebas, colocasse indicações de 20% correspondentes às florestas ditas preservadas. Pela observação do resultado desse mapeamento simulado eles poderiam perceber que o caminho da devastação lenta e progressiva produziria alguns quadros similares ao que já aconteceu nos confins das longas estradas e seus ramais, em áreas de quarteirões implantados para venda de lotes de 50 a 100 hectares, onde o arrasamento de florestas no interior de cada quarteirão foi total e inconsequente. ■

BBC World Service

Parece ser muito difícil para pessoas não iniciadas em cenários cartográficos perceber os efeitos de um desmatamento na Amazônia de até 80% das propriedades rurais silvestres. Em qualquer espaço do território amazônico onde vêm sendo estabelecidas glebas com desmate de até 80%, haverá um mosaico caótico de áreas desmatadas e faixas interpropriedades estreitas e mal preservadas. Nesse caso, as bordas dos restos de florestas interglebas ficarão à mercê do corte de árvores de madeiras nobres. Além disso, a biodiversidade animal com certeza será profundamente afetada.

Simon Chirgwin

Enquanto o mundo todo luta pela diminuição radical da emissão de CO2, o projeto de revisão do Código Florestal proposto na Câmara Federal defende um processo que resultará numa onda de desmatamento e de emissões incontroláveis de gás carbônico, como observado por muitos críticos em diversos trabalhos e entrevistas.

Aziz Nacib Ab’Saber – Geógrafo, professor emérito da Uuniversidade de São Paulo (USP), autor de centenas de pesquisas e tratados científicos, contribuindo significativamente para o enriquecimento da ecologia, da biologia evolutiva, da fitogeografia, da geologia, da arqueologia e da geografia. Prêmio Internacional de Ecologia de 1998 e Prêmio Unesco para Ciência e Meio Ambiente de 2001. Artigo publicado no portal EcoDebate (8/7/2010). Cidadania&MeioAmbiente

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C Ó D I G O F L O R E S T A L

Os parlamentares acabaram por aprovar um texto de reforma do Código Florestal que enfraquece a proteção dos solos vulneráveis, os cursos d’água e ameaça a sobrevivência das reservas legais. por Roberto Smeraldi

Uma afronta ao Estado de direito S

urpreendentemente, não é o Código Florestal que sai mais ameaçado pelo relatório aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, criada por iniciativa de deputados ruralistas. As principais ameaças são para o Estado de direito e para a competitividade da agropecuária. Após o alarde sobre as mazelas do Código, os parlamentares acabaram aprovando um texto que enfraquece um de seus pilares – a proteção de cursos d’água e solos vulneráveis –, mas não afeta de forma expressiva o arcabouço legal. Claro, isso é paradoxal num país que contabiliza centenas de mortos e bilhões em prejuízo e com aluviões, enchentes e deslizamentos. Mas esse não é o ponto principal. O texto promove o que de pior se pode fazer com a lei: premiar seu descumprimento. Propõe uma anistia de abrangência jamais concebida: não apenas possibilita o perdão de todas as atividades ilegais até 2008 – legitimando assim a expectativa de que isso se repita indefinidamente – mas também dispensa da recuperação dos ativos ilegalmente destruídos em imóveis até quatro módulos, ou seja, em qualquer lugar, pois um imóvel pode ser desdobrado pelo mesmo dono. A proposta é uma afronta aos produtores rurais que trabalham dentro da lei. Há uns dias, o presidente da empresa brasileira lí-

der mundial em celulose me questionou: “Por que nós respeitamos a reserva legal, faturamos R$ 28 bilhões por ano e distribuímos dividendos, enquanto outros seguem impunemente desmatando e até geram pouco emprego?” A ironia é que, enquanto isso, nem sequer se realizam as atualizações do Código que seriam razoáveis, após meio século de vigência. O exemplo mais usado no discurso ruralista é o da injustiça com culturas que utilizam parcialmente encostas, como videira, maçã e café. Se forem adotados cuidados como cobertura do solo, curvas de nível, banquetas etc., elas não contribuem para a degradação. Mais ainda: podem até representar, no conjunto, uma oportunidade de valorização do ambiente, por formar arranjos produtivos articulados com turismo, águas minerais e outros serviços. Seria a hora certa de adaptar a lei às peculiaridades da multiplicação e da complexidade dos territórios. Mas na proposta da comissão não entrou nada que esteja baseado em diversidade, critério técnico, desempenho ou incentivo para melhores práticas. Restrições ao desmatamento e à grilagem da terra são os principais vetores para investir na revolução tecnológica de produti-

vidade, que é necessária para atingir mais lucratividade e competitividade no segmento da produção primária. Algumas cadeias já fazem isso com sucesso. Na pecuária, que ocupa 80% de nossa área cultivada, o desafio é especialmente urgente. A proposta aprovada na comissão desconsidera esse aspecto crucial e que se aplica, com as devidas diferenças, tanto à agricultura familiar quanto à grande fazenda. Assim, desestimula-se o investimento em produtividade, que poderia se beneficiar de nossa capacidade avançada de pesquisa. Enquanto buscam anistias em Brasília, os que se erguem como defensores da agricultura sabotam abertamente, em seus Estados, os programas de regularização que sanariam os passivos florestais sem precisar desmoralizar a lei. Inovação, produtividade e tecnologia no campo requerem investimento, incentivo, competição leal e liderança. E até melhora no Código Florestal. É um debate difícil de se fazer no grito, sem ouvir a ciência, entre ruidosos gigolôs de infrator buscando votos. ■ Roberto Smeraldi – Jornalista, diretor da OSCIP Amigos da Terra – Amazônia Brasileira e autor do Novo Manual de Negócios Sustentáveis (Publifolha, 2009). Artigo publicado na Folha de S. Paulo (15/7/2010)

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