Ricardo Roclaw Basbaum
Você gostaria de participar de uma experiência artística? (+ NBP)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Área de Concentração Poéticas Visuais, Linha de Pesquisa Processos de Criação em Artes Visuais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutor em Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Martin Grossmann.
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo São Paulo 2008
VOLUME 1
Ricardo Roclaw Basbaum
Você gostaria de participar de uma experiência artística? (+ NBP)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Área de Concentração Poéticas Visuais, Linha de Pesquisa Processos de Criação em Artes Visuais, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutor em Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Martin Grossmann.
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo São Paulo 2008
VOLUME 1
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“invento o que quero que venha a se fixar nas estranhas entranhas externas extremas de êxtase e exercício que me formam em descontínuo” Filix Jair, cantor e compositor
para Dani, amor & aventuras
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Resumo Nesta Tese, elaboro uma investigação acerca de meu projeto de trabalho Você gostaria de participar de uma experiência artística?, em desenvolvimento desde 1994. Trata-se de um projeto que envolve aspectos de participação do espectador, escultura e instalação, assim como uma abordagem do circuito de arte. A pesquisa se desenvolve em duas etapas complementares: em um primeiro momento, é elaborada a noção de Künstlertheorie ou Teoria de Artista, como procedimento de trabalho que envolve ao mesmo tempo a produção de textos e de obras de arte, articulando teoria e prática a partir de um sistema de revezamentos plásticodiscursivos; em um segundo momento, procura-se desenvolver o que seria a teoria do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, com a utilização da chamada escrita de artista na elaboração de uma nova narrativa, que incorpora diversos escritos já existentes – articulando, deste modo, formas visuais e discursivas. Como resultado, é produzido um texto que ao mesmo tempo que se inscreve como teoria de artista (Künstlertheorie), indaga acerca da possibilidade de funcionar enquanto obra de arte. Palavras-chave: 1. arte contemporânea 2. práticas participativas 3. artista como agente cultural 4. escultura 5. teoria de artista
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Abstract On this Thesis, I elaborate an investigation about Would you like to participate in an artistic experience?, a project of mine under development since 1994. This project involves aspects of participatory practices, issues on sculpture and installation, and an approach towards the art circuit. The research is developed in two complementary parts: firstly, the notion of Künstlertheorie or artist’s theory is established, as an working procedure that involves at the same time the production of texts and artworks, articulating theory and practice from the standard of a plastic-discursive rotation system; secondly, it is elaborated what might be considered the theory of the Would you like to participate in an artistic experience? project, with the use of the socalled artist’s writing. A new narrative is brought forward, with the use of several preexisting writings, articulating visual and discursive forms. As a result, a text is produced, one that is inscribed as artist’s theory (Künstlertheorie); at the same time, it inquires about the possibilities of its functioning as a work of art. Key-words: 1. contemporary art 2. participatory practices 3. artist as cultural agent 4. sculpture 5. artist’s theory
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Sumário
Volume I Resumo ........................................................................................................ 4 Abstract ........................................................................................................ 5 Agradecimentos ........................................................................................... 7 Advertência .................................................................................................. 8 A: Künstlertheorie, Sistemas de revezamento plástico-discursivos ............. 15 B: 5 diagramas, extração conceitual ............................................................ 57 C: 8 blocos, escrita retro-prospectiva ...........................................................82 D: qual o lugar deste texto? ......................................................................... 206 Bibliografia ................................................................................................... 212
Volume II Anexos Você gostaria de participar de uma experiência artística? .......................... 5 Textos .......................................................................................................... 14 Imagens ....................................................................................................... 79
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Agradecimentos Agradeço ao Prof. Martin Grossmann pelas conversas constantes e pelo generoso apoio durante todo o proceso de orientação. A todos os amigos que apoiaram a escrita desta tese, meu agradecimento – especialmente a Eduardo Coimbra, Simone Michelin e Cecília Cotrim, que me auxiliaram com o generoso empréstimo de livros e textos para pesquisa. Agradeço aos colegas do Instituto de Artes da UERJ, em especial aos Professores Maria Lúcia Galvão e Roberto Condurú – mas também aos professores do Departamento de Teoria e História da Arte –, pelo suporte durante o período de realização do Doutorado. Sem a Licença Procad (Programa de Capacitação Docente) teria sido impossível concluir este trabalho. Aos meus pais, Hersch e Natacha Basbaum, pelo apoio e carinho constantes. Sérgio Basbaum foi um interlocutor e incentivador em todos os momentos e agradeço pelo ótimo e permanente diálogo. Por fim, sem o carinho e a presença especial de Daniela Mattos, certamente teria sido muito mais difícil finalizar este trabalho.
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Advertência
I – Atenção aos dois os textos abaixo: a)
o que é NBP ? é uma sigla, formada por três letras, uma espécie de motivação geral ou pretexto de trabalho (quase um programa para ações), um meio para impregnação do espaço. Quase um lugar-comum atópico. NBP impregna e contamina. NBP desenvolve-se através de três idéias-vetores principais: 1 imaterialidade do corpo A matéria orgânica dissolve-se nos ritmos tecnológicos, na velocidade. Corpos que podem ocupar muitos lugares no espaço ao mesmo tempo. Temporalidades que impulsionam espaços; espaços que configuram-se no tempo: continuidades e descontinuidades. Nossos corpos transitando através destas oscilações. 2 materialidade do pensamento O pensamento como algo que pode ser lançado, moldado, construído, acumulado, recolhido, contraído, expandido, amassado, jogado, corroído, revelado, ampliado, amplificado, estilhaçado, dissolvido, etc. O pensamento envolve as coisas – entre elas existe a atmosfera, com Oxigênio, Nitrogênio, Gás Carbônico, Enxofre, Chumbo, Alumínio,
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mas também partículas de pensamento. Estas partículas desprendem-se de nossos corpos-cérebros em fluxos além de nosso controle, aderindo aos objetos ou a outros pensamentos. Possuem campos gravitacionais e magnéticos potentes, que distorcem e alteram imagens – todas as imagens das coisas. O pensamento é, portanto, essencialmente carregado de potencialidade plástica. 3 logos instantâneo É o conhecimento visual: arrebatador, súbito, envolvente, imediato, instantâneo. Queremos nos instalar, pretensiosamente, dentro deste intervalo mínimo, no interior da instantaneidade – melhor dizer ao lado, mas do lado de dentro. Não como testemunhas, simples testemunhas oculistas, mas como estratégia para a geração de outros processos, múltiplos e variados, a partir deste lapso: o intervalo de tempo entre meio emissor (Me - mensagem emitida) e meio receptor (Mr - mensagem recebida): ∆t Mr - Me → Zero NBP é um programa para súbitas mudanças. Quais? Como? Quando? Deixe-se contaminar: elas serão fruto de seu próprio esforço. NBP Novas Bases para a Personalidade1 [1990]
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Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”. Apresentado em performance no evento CEP 20000 (Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, 1990). Publicado no folder de exposição individual na mesma instituição, em fevereiro de 1993. Este texto também integra alguns objetos da série NBP.
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b)
VOCÊ (indivíduo, grupo, coletivo) gostaria de participar de uma experiência artística? aceitaria levar para casa o objeto mostrado nesta fotografia? Isto é parte do projeto NBP - Novas Bases para a Personalidade que envolve idéias de participação e transformação uma investigação acerca do envolvimento do outro como participante em um conjunto de protocolos indicativos dos efeitos, condições e possibilidades da arte contemporânea. Você está convidado(a) a colaborar com Você gostaria de participar de uma experiência artística? Basta aceitar utilizar, por um certo período, o objeto mostrado acima, para a realização de experiências. Ele pode ser usado de diferentes modos e você pode fazer qualquer coisa com ele: use-o como quiser, da maneira que achar melhor. O objeto carrega alguns conceitos e eu gostaria que você também os utilizasse. Apesar de invisíveis, eles são manipuláveis através do uso do objeto. As experiências que você realizar tornam visíveis redes e estruturas de mediação, indicando a produção de diversos tipos de relações e dados sensoriais: os conjuntos de linhas e diagramas, trazidos ao primeiro plano a partir de sua utilização, são mais importantes que o objeto. Você documentará as experiências através de texto, fotografia, vídeo, som, objeto, etc., da maneira que achar mais adequada. Envie e edite os registros
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diretamente em http://www.nbp.pro.br. Suas experiências, junto daquelas realizadas por todos os participantes, estarão disponíveis ao público. O objeto utilizado em Você gostaria de participar de uma experiência artística? tem sua forma estabelecida de acordo com a forma específica NBP, desenhada para ser facilmente memorizável: Ao experienciar qualquer trabalho da série NBP, você, ela ou ele saem com NBP e sua forma específica em seu corpo – uma modalidade de memória implantada ou artificial, como resultado de uma estratégia de contaminação sensorial subliminar. NBP é um projeto em desenvolvimento contínuo, iniciado em 1990, que conecta estratégias comunicacionais, arte contemporânea e perspectivas discursivas transdisciplinares. NBP engloba a produção de imagens e conceitos, com opropósito de envolvê-lo em um processo artístico. NBP e sua forma específica são incorporados através da repetição e interação. * você hibridiza com o objeto de arte * você ativa os conceitos, produzindo outros, mais novos Participando ativamente de uma experiência artística você pode transformarse. NBP e sua forma específica querem conduzi-lo para um outro tipo de espaço, aquele que é produzido através do movimento. Obrigado pela sua colaboração.2 [1994-2008]
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Ricardo Basbaum. “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”. Versão inicial (1994) publicada no folheto "Would you like to participate in an artistic experience?", que integrava a instalação homônima apresentada no MA Degree Show, Goldsmiths' College, Londres, em setembro de 1994. Apresentado, em português, na exposição "Escultura Carioca", Paço Imperial, Rio de Janeiro, em novembro do mesmo ano. O texto acima mostra a versão mais atual, recentemente distribuída na exposição Quase Líquido (Itaú Cultural, São Paulo, 2008), onde a instalação “Você gostaria de particip[ar de uma experiência artística?” foi exposta.
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II - Nas páginas seguintes, serão mobilizados os projetos NBP - Novas Bases para a Personalidade (iniciado em 1989/90), e Você gostaria de participar de uma experiência artística? (iniciado em 1994), indicando seu entrelaçamento – sendo que o segundo se desenvolve no âmbito do primeiro, como um de seus principais casos. III - Sendo dados: NBP – Novas Bases para a Personalidade
A sigla NBP é combinada à sua forma específica, permitindo o desenvolvimento de propostas com a utilização de meios variados, tais como desenhos, instalações, vídeos, objetos, textos, diagramas, etc. Há nesta proposição o interesse em aproximar arte contemporânea e campo comunicativo. Inicialmente, a combinação sigla + forma específica visava obter veloz memorização, de modo que qualquer espectador, após experienciar os trabalhos, partisse com NBP e sua forma específica circulando pelo corpo, a partir de estratégias de contaminação e contato. Pouco a pouco, o projeto ganha complexidade e novos elementos plásticos e conceituais vão sendo desdobrados. O projeto NBP desenvolve-se a partir de diversas séries de trabalhos interligadas, sempre constituindo a poética de cada
intervenção
através
de
construções
que
se
dão
visual
e
conceitualmente. e Você gostaria de participar de uma experiência artística? O objeto em ferro pintado, construído a partir da forma específica NBP, oferecido para ser utilizado por qualquer interessado em desenvolver com ele uma experiência artística, lançou-se em seu percurso sem retorno. Produz-se
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memória do corpo, documentação e arquivo. Concebido como múltiplo em tiragem aberta – logo, sem original – permite a existência de diversos objetos circulando ao mesmo tempo, em diferentes locais. Propõe-se que a experiência realizada seja transformadora tanto para o participante como para o artista e o próprio projeto. IV - O que se quer é abrir à apreensão sensível uma modalidade particular de intercruzamento entre texto e obra de arte, trazida aqui como o fio principal do argumento.
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A: Künstlertheorie, Sistemas de revezamento plástico-discursivos Esta Tese de Doutorado se desdobra a partir do projeto de trabalho Você gostaria de participar de uma experiência artística?, em desenvolvimento desde 1994. Partindo de alguns elementos específicos – sobretudo a série de diagramas que desde o início integra o projeto –, operou-se uma extração de conceitos para, em seguida, desenvolvê-los em exercício discursivo. Como resultado, foram produzidos oito blocos de textos de dimensões e modos de escrita variáveis, podendo ser lidos em qualquer seqüência – mas que em conjunto constituem um agregado discursivo de temas, comentários, tópicos significativos e operadores conceituais que permeiam Você gostaria de participar de uma experiência artística? e, por extensão, o projeto NBP – Novas Bases para a Personalidade, do qual o primeiro deriva.3 *** Desde já se destacam problemas, que devem ser prontamente trazidos à superfície, relacionados à presença de material discursivo junto à obra de arte – uma vez que se trata de articulação básica que perpassa todo o corpo da Tese: ou seja, está aqui em jogo a determinação de uma relação produtiva entre este hipertrofiado4 conjunto de textos e a configuração e funcionamento da obra (seja em sua consistência interna, nas relações que estabelece com o espectador ou em seu trânsito junto a um circuito e suas dimensões públicas e políticas). Sabe-se que o estabelecimento de um contato produtivo entre texto e obra de arte é elementochave de um pensamento contemporâneo em arte, que deve saber extrair daí um jogo relacional produtivo; talvez seja mesmo este um dos principais terrenos para se aferir uma condição contemporânea da obra de arte e sua atuação: afinal, a presença da chamada condição conceitual para a obra de arte contemporânea (e são muitos os debates em torno da questão) se tornou premente com o definitivo
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Para uma descrição imediata de Você gostaria de participar de uma experiência artística?, V. Anexo Textos. 4 No sentido de que a Tese atende especificamente a uma demanda da esfera acadêmica, definindo sua forma final a partir de tal exigência.
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reconhecimento da influência de Marcel Duchamp e sua prática (insistentemente negada somente por aqueles agentes apegados à possibilidade de uma pureza sensorial autônoma e isolada) e com as mutações comunicacionais e tecnológicas do final do Século XX (a tecno-sociedade globalizada do espetáculo, das redes e do capitalismo cognitivo ou cultural). As transformações do jogo da arte em seu campo contemporâneo impõem que se perceba, em um único fluxo, a obra – em sua conceituação e materialidade plástica – e seus dispositivos de circulação e produção de efeitos, articulados de forma indissociada no evento e em sua efetivação. Que fique claro, logo, que esta condição conceitual não indica de modo algum qualquer redução sensorial ou diminuição da superfície sensível dos trabalhos: como seria isso possível, se a obra de arte é decididamente um dispositivo singular experimental – de modo direto, um poema – depurado ao longo dos séculos (dinâmica em aberto), orientado diretamente para o jogo sensorial? Não há incompatibilidade ou exclusão entre sensação e conceito, mas heterogeneidade e pressuposição recíproca, cujo encontro cuidadosamente construído os impregna de especial potencialidade.5 Assim, em todos os seus desdobramentos, esta Tese estará procurando contabilizar alguma presença como obra em sua efetiva condição de agregado plástico-conceitual, atravessada por um campo discursivo. Os cuidados e problemas que devem ser prontamente indicados advém da necessidade de desviar-se das tentativas de simplificar tal condição, reduzindo a dimensão conceitual a modalidades menos complexas – e menos produtivas – dentre as possíveis relações entre texto e obra de arte. Por isso é preciso alertar que o hiper-desenvolvimento aqui apresentado não visa (a) desdobrar-se como explicação da obra; não pretende (b) limitar-se a uma minuciosa descrição dos trabalhos plásticos; não deseja (c) constituir um discurso crítico privilegiado acerca da obra; se há algum campo mais afim a esta aventura, este seria aquele de uma (d) teoria da arte e (e) do texto como obra de arte:
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Se Deleuze e Guattari têm a obra de arte como “bloco de sensações (...) composto de perceptos e afetos”, “ser de sensação”, e o artista como “mostrador de afetos, inventor de afetos, criador de afetos”, lembram também que “a sensação não é menos cérebro que o conceito”, e que pensar é também “pensar (…) por sensações”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, São Paulo, Editora 34, 2004, pp. 213, 253, 271.
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(a) reside no próprio sentido etimológico do verbo ‘explicar’ a noção de “abrir, desenvolver, desdobrar, desembaraçar, desenredar, acabar, concluir, esclarecer, expor”6 – indicando o gesto da escrita se perfazendo enquanto operação ‘descomplicante’, com o objetivo de conquistar um certo horizonte simplificador da obra de arte. Esta escrita toma a obra como algo de materialidade complicada – o que é certo: efetivamente, sua produção (e de resto, de qualquer artefato do engenho humano, com investimento energético e intelectual) resulta de reviramentos (sensíveis, conceituais) de uma matéria qualquer, produzindo outra coisa a partir de tal gesto. Mas seria tarefa do discurso simplesmente desfazer tais nós, de modo a produzir uma paisagem mais quieta, menos enrolada sobre si própria, cujo sentido possa a ser esclarecido na linearidade da sintaxe? Desmontar os problemas propostos pela obra, substituindo-os pelo encadeamento das palavras em frases que pretendem tomar o seu lugar – evitando assim que tais problemas encontrem o necessário tempo de contato com o corpo do sujeito fruidor através do jogo sensível – não parece razoável e interessante, a menos que se tenha como tarefa desviar a atenção do trabalho de arte para as páginas do discurso. A explicação bem sucedida requereria um uso da linguagem enquanto representação do signo plástico, tomando como de bom tom concluí-lo afinal: a partir de tal momento e de tal texto, já teríamos a obra de arte desenredada (ou seja, sem as múltiplas conexões que apontam para tantas direções ao mesmo tempo), já exposta e tranqüila – e então não seria mais necessário exibi-la em sua concreta materialidade. Este didatismo é sempre um risco latente, devendo ser prontamente evitado. Quantas milhares de linhas são produzidas, nos canais institucionais e de comunicação, que, sob o pretexto de se criar mediações para o encontro com um suposto público, evitam o tensionamento dos interessados no contato direto com obra – e ao invés disso substituem-na por uma experiência estéril de leitura? Logo, o investimento discursivo desta Tese não pode ser o de se colocar enquanto explicação de um projeto de trabalho plásticoconceitual; as páginas que se seguem antes complicam – no sentido de que abrem frestas e somam problemas, sem concluí-los ou resolvê-los.
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Sentidos derivados do latim explico, as, avi, atum ou explicitum, are. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.
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(b) de modo semelhante, não há qualquer interesse em desenvolver páginas que se limitem apenas à descrição de obras que possuem um funcionamento efetivo, em direto contato com sujeitos participantes, público, crítica, circuito, etc. Há importância, certamente, na elaboração de relatos minuciosos, acurados, que indiquem a relevância de detalhes, que apontem elementos da construção dos trabalhos – sobretudo, como ferramenta para que se tome consciência das limitações do meio escrito, indicando ao leitor estar diante de seqüências de palavras e frases, guia indicativo de algo que não pode estar presente nas páginas de texto: as obras. Na experiência da leitura de escritos que reivindicam algum funcionamento em contato direto com os limites do campo da arte, quase sempre é necessário evocar a materialidade da obra e aspectos da experiência sensível. Mas seria muito pouco desenvolver apenas um memorial descritivo e abrir mão de outras possibilidades mais potentes de posicionamento do texto junto às obras, que produzam enfim um mútuo atravessamento, interessante. Apenas no sentido de evocar em detalhes algo não presente à experiência direta, utilizaremos a escrita descritiva – será fundamental construir o relato do que permeia a Tese mas não está materialmente aqui. (c) a possibilidade de desenvolvimento de um discurso crítico seria uma das mais interessantes de ser obtida, quanto à relação produtiva entre texto e obra de arte. Sabemos que a crítica pressupõe, ao mesmo tempo, tanto a constituição de um espaço de distanciamento como a construção de uma proximidade entre a materialidade do discurso e a presença efetiva da obra: segundo Omar Calabrese, este seria o campo de elaboração de um discurso “descritivo, interpretativo e valorativo das obras”7 – estão presentes aí, lado a lado, segundo este autor, tanto as determinantes da elaboração de uma operação de criação discursiva, nos termos baudelairianos de “uma luta subjetiva das idéias e fé no caráter demiúrgico do trabalho do crítico (que, nesse caso, seria tão ‘criador’ como o artista)”, quanto à tarefa de conscientização da materialidade da linguagem enquanto “prática lingüística”, onde a palavra, como propõe Benedetto Croce, sabendo-se impotente na tradução da experiência plástica e sensível do contato direto com a obra, já de 7
Omar Calabrese, “A linguagem da crítica de arte”, in Como se lê uma obra de arte, Lisboa, Edições 70, 1993, p.13.
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antemão se inscreveria como sua traição.8 Afirmando sua presença na delicada operação de agenciar a produção de um sujeito discursivo a partir do embate corpo a corpo com a matéria sensível da obra plástica (incluindo evidentemente sua dimensão conceitual), em que há efetiva produção de valor (no sentido de uma articulação com as forças e fluxos não-subjetivos da existência9), a materialidade do texto crítico se perfaz enquanto invenção e intervenção autônomas, mas continuamente conectadas à obra a qual se relacionam (ligação que permite, enfim, que sempre se retorne à obra, facultando tanto a elaboração de novos textos quanto sua releitura atualizada). É importante que se relembre, sempre, que muitos dos principais desenvolvimentos da arte moderna se processaram através de uma modalidade particular de aliança entre artistas e críticos, em que estes últimos agiram no papel de críticos militantes: segundo Giulio Carlo Argan, este personagem “aproxima-se e freqüentemente associa-se aos artistas, faz parte dos seus grupos, participa da sua ‘política’, colabora na definição dos programas e na elaboração dos manifestos, inicia e conduz polêmicas; e, enquanto ajuda os artistas a esclarecer e enunciar suas poéticas, incita-os a levar a sua pesquisa até ao máximo nível intelectual.”10 Ou seja, é possível afirmar que a construção da presença de muitas das principais obras e correntes modernas se dá a partir deste duplo trabalho, que inclui a elaboração da obra de arte e o desenvolvimento paralelo de sua inscrição críticodiscursiva. Tal aspecto aponta para um momento privilegiado do campo da crítica de arte – quando se percebe as muitas operações em que se buscou minuciosamente a elaboração de um texto de invenção que tivesse a mesma carga de intervenção poética das manobras plásticas em jogo.11 Ao mesmo tempo, ao se atentar para as 8
O. Calabrese, op.cit., p. 12. Cf. Gilles Deleuze, “Para dar um fim ao juízo”, in Crítica e clínica, São Paulo, Editora 34, 1997, pp. 143-153. 10 Giulio Carlo Argan, “A crítica militante”, in Arte e crítica de arte, Lisboa, Editorial Estampa, 1988, p. 138. 11 Para a arte brasileira, dois exemplos se impõem de imediato: Ferreira Gullar e sua atuação junto ao Neoconcretismo, sintetizada em Etapas da arte contemporânea – do cubismo à arte neoconcreta, Rio de Janeiro, Revan, 1998; Ronaldo Brito e sua atuação junto a o grupo de artistas emergentes nos anos 1970, tais como Waltércio Caldas, Tunga, Cildo Meireles e José Resende – Cf. Waltércio Caldas. Aparelhos, texto de Ronaldo Brito, Rio de Janeiro, GB Editora de Arte, 1979. 9
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condições de produção e funcionamento da obra de arte contemporânea, vê-se como este campo discursivo foi sendo progressivamente concebido como ferramenta de atuação do artista pós-duchampiano, implicado diretamente em suas condições e elementos de trabalho.12 Logo, se este texto quer se constituir de alguma forma como obra, confiando em um duplo desenvolvimento plástico-conceitual e posicionando-se materialmente ao lado das formas e forças em jogo, é porque, de alguma maneira, aprendeu a se constituir a partir das articulações do jogo crítico-discursivo apontadas acima, desdobrando-as. É preciso deixar claro, entretanto, que a qualquer autor não interessa ocupar de modo sumário a posição de crítico-de-si-mesmo: a obra busca sempre relações de alteridade, e nesse sentido envolve-se em mecanismos de produção de um outro enquanto ‘espectador’ idealizado e ao mesmo tempo real – mas nunca pronto, fixo, espécie de alvo ao qual toda obra de arte deveria tender (a opção generalista seria, é claro, uma operação desempenhada pelo mercado, visando normalizar um contingente social de consumidores estáveis, garantindo constante margem de lucro) –, espectador que, em seu papel ativo, também irá operar certa constituição da obra, atualizando-a. O crítico de arte, enquanto especial espectador convertido em autor, agente de uma inscrição poética com a qual colabora diretamente (como vimos acima), funciona assim, de modo decisivo, dentro das relações de alteridade da obra. Nesse trânsito de alteridades, que fundamenta o discurso crítico, restaria então ao artista deixar-se permear pelo que Maurice Blanchot chama de uma “relação de terceiro tipo”, em que “a presença do outro não nos remeteria nem a nós-mesmos, nem ao Uno” (no sentido de “reduzir o Outro à verdade do Sujeito”)13: ou seja, envolver as qualidades relacionais da “estranheza”, “interrupção”, “puro intervalo” e “exterioridade” como deflagradores da produção desta fala do outro, da constituição de outrem: “quando Outrem me fala, ele não me fala como eu”, “a relação de outrem a mim não é uma relação de sujeito a sujeito”14. 12
Desenvolvi este tópico em minha dissertação de mestrado, publicada sob o título de Além da pureza visual, Porto Alegre, Zouk, 2007, sobretudo no capítulo “Migração das palavras para a imagem”, pp.23-41. 13 Maurice Blanchot, “A relação de terceiro tipo”, in A conversa infinita, São Paulo, Escuta, 2001, pp. 119-120. 14 M. Blanchot, op.cit., 122-124.
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É interessante notar que, para Blanchot, “é a experiência da linguagem, a escrita, que nos leva a pressentir uma relação inteiramente diferente, relação de terceiro tipo” – logo, a permeabilidade da escrita de arte, ao admitir ser constituída pelo discurso da crítica, em sua criação/traição, invenção e materialidade discursiva paralela à obra, aponta para a constituição de um “espaço-tempo inter-relacional” em que a “relação de um ao outro é duplamente dissimétrica” (expressões de Blanchot)15. É aí que o texto desta Tese poderia enfim se mover, escapando do posicionamento do texto de crítica de arte, mas permeado por ela. (d) o lugar de uma teoria da arte seria talvez um pouco mais apropriado para este texto, uma vez que então se preocuparia em apresentar desdobramentos próprios – com a intensidade e pragmatismo de uma Tese – ali mesmo, naquele território híbrido descortinado pela arte moderna, “fundada, exatamente, a partir da possibilidade de encontro de objetos que se pretendem pura e completamente visíveis com um campo enunciativo que, adequadamente, posiciona-se junto destes objetos, atravessando-os.”16 Pois é a partir do Romantismo, com sua quebra de referências em relação ao classicismo e a acentuação das etapas para o delineamento de uma autonomia da arte, que “as teorias da arte por artistas primeiro apareceram”17. De acordo com Michael Lingner, existe uma particularidade na teoria da arte por artistas – anotada por ele como Künstlertheorie, e adotada aqui como teoria de artista, numa possível tradução – que deve ser percebida em seus aspectos de “continuidade e referência histórica” e transformada em “objeto de pesquisa analítico-científica, para estudo detalhado de suas formas individuais”, dentro do campo de uma teoria da arte.18 Lembrando que “o fenômeno das teorias de artista em sua forma moderna se desenvolveu e, de várias maneiras, formatou o trabalho de muitos dos mais importantes artistas modernos e de vanguarda”, o autor 15
M. Blanchot, op.cit., 128-130. R. Basbaum, op.cit., p.26. 17 Michael Lingner, “Reflections on / as Artists' Theories“, disponível em http://ask23.hfbkhamburg.de/draft/archiv/ml_publikationen/kt06-3ae.html. Lingner é escritor e artista alemão, professor de Teoria e História da Arte da Hochschule für bildende Künste Hamburg, onde desenvolve cursos, seminários e pesquisas com particular ênfase nos aspectos metodológicos e pragmáticos da teoria da arte de artista e relações entre arte e teoria, discutindo a “escrita como obra” e a “teoria como prática manual”. 18 M. Lingner, op.cit.. As citações subseqüentes, salvo quando mencionado, provêm do mesmo ensaio. 16
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– ressaltando o alerta de Theodor Adorno de que os processos de “autonomia estética” caminharam lado a lado com uma “racionalização estética”, em reforço mútuo, sendo então necessário driblar as tiranias e totalitarismos reducionistas próprios de um racionalismo – refere-se a elas como “pré-condição implícita ou explícita da prática artística”, tendo se tornado “um fator essencial de produção” para aqueles artistas. É interessante perceber que ao alinhar o que considera os aspectos gerais das teorias de artista, Lingner indica desde logo que a prática artística moderna jamais poderá ser compreendida sem que se leve em conta algumas das camadas discursivas que articulam as conquistas materiais, plásticas e formais das obras: haveria sempre (e aqui o advérbio desempenha papel fundamental, pois mesmo que determinado artista não enuncie de modo explícito seus conceitos, eles estarão ali, latentes, pulsando através da obra19) a possibilidade de se “inferir a concepção de arte inerente ao trabalho” – daí a presença da teoria de artista configurando-se como “fator decisivo para a produtividade artística”. O cuidado a ser tomado seria não apressar o acesso à obra plástica como derivação de uma análise do corpo teórico-discursivo que se fez presente: tanto “uma possível concordância entre a teoria de artista e o(s) trabalho(s) não deve ser necessariamente tomada como signo de qualidade – nem para o trabalho, nem para a teoria”, quanto “seria um erro pensar que a qualidade da arte poderia ser provada por este discurso diferenciado”. Ou seja, fundamental é estar atento às relações a serem estabelecidas entre obra de arte e teoria – ou, como estamos propondo, obra e campo discursivo – a fim de se perceber como ambos os campos são mobilizados neste esforço de se constituir uma dupla intervenção, própria das possibilidades e potencialidades das formas de ação características da arte moderna e contemporânea. Em uma rápida tentativa de observar a presença e funcionalidade da teoria de artista na obra de três artistas inscritos em momentos históricos diversos – e assim trazer para o primeiro plano algo da dimensão operativa da teoria na produção da 19
Entretanto, é claro que o esforço de um artista por explicitar conceitualmente a(s) teoria(s) que continuamente tece e desfia em conjunto com sua obra deverá necessariamente construir uma diferença, sobretudo nos termos de uma tomada de posição em relação a um circuito ou sistema de arte e a abertura de negociações quanto à configuração de uma imagem de artista – como veremos adiante.
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obra –, Michael Lingner destaca como exemplares as dinâmicas estabelecidas pelo pintor romântico Phillip Otto Runge (1777-1810), pelo precursor da vanguarda alemã e professor de Oskar Schlemmer e Johannes Itten, o artista Adolf Hölzel (18531934), e pelo pioneiro norte-americano da arte conceitual Joseph Kosuth (1945). Em cada um destes casos, busca as particularidades da inscrição da Künstlertheorie como produção e processo, ou seja, elemento não separado da obra plástica mas que desenvolve junto a ela papel de constituí-la e potencializá-la – assim, Lingner acredita poder examinar esta relação no momento inicial da constituição de uma autonomia da arte (tomando Runge, “um dos dois maiores pintores do primeiro Romantismo alemão”, junto com Caspar David Friedrich20); no período de formação da moderna vanguarda alemã (enfatizando o papel de Hölzel); e no que considera “última forma de arte que estabelece continuidade ao desenvolvimento histórico da arte de vanguarda do Século XX”21, a arte Conceitual (a partir daquele que, desde o início, se preocupou em delinear os limites desta outra forma de atuação, Kosuth). A partir destes três casos, estabelece, respectivamente, a presença da teoria de artista como função constitutiva, função integrativa e função performativa – trata-se de procurar formular de modo mais apurado a função do desenvolvimento e elaboração do campo discursivo enquanto construção de pensamento que não se propõe a constituir um mero apêndice secundário à obra plástica, mas sim atravessá-la permeá-la
em
sua
materialidade
textual,
campo
sensível
e
superfície
potencializadora; ou seja, na elaboração de uma obra que não pode mais ser reduzida ao objeto de arte e que reivindica a presença paralela, imediata e permanente do trabalho incessante de produção discursiva. Em relação à função constitutiva da teoria de artista, no sentido em que foi trabalhada por P. O. Runge, ocorre “o caso clássico da teoria tomando precedência temporal absoluta em relação à prática artística” – Lingner comenta como Runge desenvolve seu esboço inicial de um programa de oposição ao classicismo, decidindo abandonar a “pintura de imitação histórica” em direção à paisagem (Landschaft), buscando aí o desenvolvimento de um “novo conceito de arte” a partir do neologismo Landschaftery; há mesmo uma tradição romântica em que “o 20 21
Giulio Carlo Argan, Arte moderna, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.169. M. Lingner, op.cit..
24
conceito de paisagem de manifesta como ‘obra de arte da mente’”22, do qual Runge se apodera: “Do mesmo modo que os filósofos concluíram que se imagina tudo a partir de si mesmo, também vemos ou devemos ver em cada flor o espírito que o homem ali colocou, e é assim que a paisagem irá se desenvolver, como se todas as flores e animais estivessem apenas presentes pela metade, a menos que o homem faça a sua parte. Assim, o homem força seus sentimentos e sensações de encontro aos objetos a sua volta e, através disso, tudo adquire sentido e uma linguagem.”23 É através do esforço de constituição de “seu próprio conceito de paisagem”, a qual “investe de sentido e significado através do exagero das emoções”, que Runge “descobre a possibilidade de um começo completamente novo para sua arte e para si como artista”24. Percebe-se o processo de desenvolvimento de uma teoria de artista que supõe a elaboração discursiva em terreno mais propriamente verbal – não tanto é claro, pelo trânsito através do discurso literário em si (manobra que sempre se mostrará fecunda, em qualquer tempo), mas pela estado de pesquisa da linguagem visual naquele momento da história: trata-se de pesquisa plástica ainda pré-impressionista, sem que a visualidade seja compreendida e experimentada em busca de seus limites não-representativos e formais. Sabe-se que os primeiros avanços mais concretos em relação a um funcionamento diferenciado do campo da arte se dão, é verdade, a partir das descobertas referentes à possibilidade própria e específica de utilização de suas ferramentas (plásticas + verbais) enquanto produção de pensamento – mas aqui, no caso do Romantismo, isso é trabalhado a partir da constituição primeira de um campo discursivo ao qual a visualidade ainda se encontra referida. A invenção ‘teórico-discursiva’ funcionaria como elemento constitutivo, produzindo um a priori discursivo do qual derivaria a possibilidade de 22
“Kunstwerkes des Geistes”. Lingner cita o poeta, escritor e crítico Ludwig Tieck, quando este se refere ao pintor Sternbald, personagem principal de sua novela Franz Sternbalds Wanderungen (1798): “Não quero copiar árvores e montanhas, mas meus sentimentos e humores, que me emocionam neste momento; é a isto que quero me apegar e comunicar a todos que possam compreender”. 23 Philipp Otto Runge, Hinterlassene Schriften, Göttingen, 1965. Citado por M. Lingner, op. cit.. 24 M. Lingner, op.cit.. mesma referência para as citações subseqüentes.
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investigação visual – como se a carga literário-discursiva, mais do que a própria imagem, contivesse a visualidade em seus próprios limites de sintaxe e sentido, fazendo ver o que se constitui enquanto escrita. Sobre o funcionamento da teoria a partir da função integrativa, pode-se dizer que se trata de avançar alguns passos em relação ao reconhecimento de como utilizar o campo discursivo dentro da compreensão do jogo próprio do signo plástico, portador já de uma autonomia que não se rende por completo à representação: Lingner indica Hölzel como um artista que trabalhava dentro do campo da abstração desde 1905 (data de sua Composição em vermelho), “introduzindo a ‘época de grande espiritualidade’ na arte antes de Wassiliy Kandinsky”. É interessante constatar que Hölzer desenvolve séries de exercícios de destreza manual, envolvendo “movimentos rítmicos, estáveis, paralelos e balanceados” com a mão com que desenhava: “durante décadas, iniciou seu dia de trabalho com ‘exercícios manuais’, as ‘mil linhas diárias’, que executava com pincel, caneta ou lápis, em grande parte em papel de rascunho”. Haveria aí “um aspecto existencial”, um “modo de vida”, que fariam de seus exercícios uma modalidade de integração entre “corpo de mente, sensações e intelecto, envolvidos de um modo natural” que os faria funcionar como “um modo de ‘pensamento artístico’”: para Lingner, é clara “a função catártica” que o próprio Hölzel atribuía a seus “rabiscos” – “Quando desejo me libertar de toda mundanidade e dos pensamentos dolorosos e negativos, inicio meus exercícios. Então, rapidamente parece que todas as coisas do mundo se retiram e que somente os pensamentos artísticos fluem. (…) Eu recomendo este banho espiritual diário.”25 Curiosamente, tal abordagem psicofísica acaba por facilitar a fluência entre os campos plástico e discursivo – “os exercícios de desenho de Hölzel (…) possibilitaram a transição gradual e contínua do exercício manual, através da poética do desenho, para a prosa do pensamento conceitual” –, permitindo uma peculiar contaminação recíproca, em que as características de cada uma das 25
Citado por M. Lingner, op.cit,, a partir de W. Venzmer, Adolf Hölzel: Leben und Werk, Stuttgart, 1982.
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práticas são mobilizadas em relação quase terapêutica (ou seja, com reflexos diretamente na constituição de uma corporeidade, revelando um cuidado de si), gerando não uma compilação de textos no sentido convencional mas um “espólio teórico” que, mais do que um corpo teórico coerente e linear, propõe “uma forma de prática artística diferente”, “uma forma especial de trabalho” (…) “entre exercícios mecânico-manuais” e “experimentos estético-criativos”26. Sem dúvida, a atitude de Hölzer demonstra o permanente cuidado, por parte de um artista pós-impressionista, em expandir as possibilidades de investigação da visualidade, colocando-a em contato com regiões próprias à presença da palavra, envolvendo ambas em operações de passagem entre plástico e discursivo. É interessante e significativo perceber que há aí algo de uma conquista – no sentido de uma contaminação recíproca – em que o corpo do artista se deixa tomar pelos ritmos de uma pesquisa visual que funciona integrada a uma investigação de si e do papel do artista. Se os territórios de enunciados e visualidades são percebidos – e vivenciados – como mundos absolutamente à parte um do outro, esta é uma conquista moderna; a qual é acompanhada (e isto é muito importante) de uma poética e de uma política das relações entre um e outro domínio. Para o artista que aí se inscreve, é fundamental indicar com clareza em quais termos se estabelece o entrecruzamento proposto entre os dois campos. Curiosamente, Wassily Kandinsky anota na últimas linhas de seu Ponto, linha, plano, literalmente encerrando o livro: “O alvo da pesquisa teórica é: 1. encontrar a vida 2. tornar perceptível a sua pulsação 3. verificar a ordem de tudo o que vive. Deste modo, recolhemos fatos vividos nas suas relações e enquanto fenômenos isolados, Cabe à filosofia tirar as conclusões – o que é um trabalho de síntese que conduz às revelações interiores – até onde cada
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M. Lingner, op.cit..
27
época o permitir.”27 Para este artista, buscar a ‘teoria’ (para nós, desenvolvida no âmbito da Künstlertheorie) envolve pesquisa homóloga àquela que realiza em campo propriamente plástico-visual: além de efetivamente configurar a busca orgânicoespiritual com a qual organiza sua poética, demonstra a necessidade de construir também um corpo textual-discursivo, integrando ambas as pesquisas. É sabido que Kandinsky almejou, na verdade, constituir uma “ciência da arte” que nos conduziria “em direção a uma vasta síntese que, ultrapassando os limites da arte, atingirá os domínios da ‘Unidade’, do ‘Humano’ e do ‘Divino’”28 – e é nesse registro que desenvolve
sua
obra
escrita,
indicando
claramente
a
necessidade
de
“sistematização (…) de idéias teóricas (…) com (…) experiências práticas”,29 operação que o conduz a buscar algum lugar que não seja apenas aquele da arte, mas sim um campo supostamente mais amplo, em que esta se articula com a ordenação científica do discurso. Ou seja, a arte somente poderia conduzir a maiores conquistas, acedendo à condição de campo efetivo de pesquisa e produção de pensamento e conhecimento, se fosse capaz de integrar-se a outros campos (ciência, filosofia) que deteriam a primazia da escrita e do discurso – que Kandinsky reconhece como necessários à continuação e desdobramento da prática do artista, quando, a partir de seu próprio fazer, busca expressar-se através da forma livro. Ao mesmo tempo em que descobre a força da construção plástica através da pesquisa formal – que o identifica como um dos grandes inventores da arte moderna de vanguarda –, Kandinsky não possui recursos de investigação lingüística e conceitual que o habilitariam (como ocorre com seu contemporâneo Marcel Duchamp, mais preparado para compreender as operações disjuntivas30) a adotar práticas 27
Wassily Kandinsky, Ponto, linha, plano, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 141. A primeira edição data de 1926. 28 W. Kandinsky, “Introdução”, in op.cit., p. 31. 29 W. Kandinsky, “Prefácio à primeira edição”, in op.cit., p. 21. Este pequeno texto é datado como “Weimar, 1923” e “Dessau, 1926”. 30 “Iniciando sua produção artística significativa em disputa direta com os limites da pintura cubista (segundo Argan, a tela Nu Descendo a Escada nº 2 [1912-16] põe em crise o cubismo analítico), Duchamp procura ‘colocar a pintura à serviço da mente’, concebendo uma pintura-idéia como ato extremo de sua fuga anti-retiniana – pintura que é também objeto, organizada com consciência da materialidade do suporte: sua principal obra, A Noiva Despida por seus Celibatários, mesmo (191523), o Grande Vidro, revela a estratégia de impregnação de um objeto plenamente visual por um campo enunciativo sincrônico. A edição, em 1934, da Caixa Verde – contendo 93 notas, cálculos,
28
discursivas trabalhadas como elementos mesmos da obra: não há a construção de um espaço de trabalho apropriado para legitimação de uma fala a partir da obra, com autoridade própria, sem que se precise operar o deslocamento do artista para os papéis de cientista ou filósofo – cisão que marca a obra discursiva de Wassily Kandinsky, sem diminuir seu brilho mas (sobretudo para o leitor ou crítico desatento) levemente desqualificando a investigação plástica em benefício da legitimação de certa dicção técnico-cientificizante. Descompasso que é certamente maior em seus discípulos e sistematizadores, do que na relação do autor-artista Kandinsky com sua obra escrita. Entretanto, o brilho de Kandinsky em empreender esta dupla investigação de modo coerente e consistente – em contínua homologia entre um território e outro – faz com que sejam mantidos em aberto, para exploração posterior, alguns traços potenciais deste rico relacionamento entre obra plástica e discurso: se citamos acima as últimas palavras, desta vez reproduzimos aqui os parágrafos iniciais de Ponto, linha, plano: “Se observarmos a rua através da janela, os seus ruídos são atenuados, os seus movimentos são fantasmáticos e a própria rua, por causa do vidro transparente mas duro e rígido, parece um ser isolado palpitando num ‘para lá de’. Mas eis que abrimos a porta: saímos do isolamento, participamos desse ser, aí nos tornamos agentes e vivemos a sua pulsação através de todos os nossos sentidos. A alternância contínua do timbre e da cadência dos sons envolve-nos, os sons sobem em turbilhão e, subitamente, desvanecem-se. Do mesmo modo, os movimentos envolvem-nos – o jogo de linhas e de traços verticais e horizontais, inclinados pelo movimento para diversas direções, jogo de manchas coloridas que se aglomeram e se dispersam, com uma desenhos e anotações realizadas durante o processo de elaboração do Grande Vidro – torna claro que texto e imagem funcionam como simultaneidades diferenciadas que se superpõem, evitando uma apreciação puramente retiniana. Do mesmo modo, ao referir-se aos trocadilhos, com que freqüentemente nomeia suas obras, como ‘jogos de palavras tridimensionais’, Duchamp caracteriza uma estrutura verbal com presença no espaço, estabelecendo em relação ao objeto plástico um procedimento discursivo disjuntivo, em que as conexões palavra/objeto são retraçadas a partir das marcas produzidas por cada uma das matérias sobre a outra, no vazio deixado pela ruptura de uma adequação natural entre ambos os campos. A possibilidade de trabalhar a dimensão conceitual da obra, sem prejuízo da autonomia plástica, é um dos fatores decisivos na ampliação do campo da arte durante os anos 60.” R. Basbaum, op. cit., pp. 33-34.
29
ressonância por vezes aguda, outras vezes grave. A obra de arte reflete-se na superfície da consciência. Ela encontra-se ‘para lá de’ e, quando a excitação cessa, desaparece da superfície sem deixar rasto. Existe aí também como que um vidro transparente mas duro e rígido que impede todo o contato direto e íntimo. Ainda aí temos a possibilidade de penetrar na obra, de nos tornarmos ativos e de viver a sua pulsação através de todos os nossos sentidos. Para além do seu valor científico, que depende de um exame preciso dos elementos particulares da arte, a análise dos seus elementos constitui uma ponte em direção à vida interior da obra.”31 É melhor percebida a proposta de Kandinsky como um esforço em quebrar o isolamento visual-formal da obra em relação ao mundo, a partir de sua abertura para a sonoridade das coisas em busca da pulsação de agregados audiovisuais – para que se contribua para uma arte que não se esgote no brilho imediato do sensível, mas que construa prolongamentos através das marcas e trilhas estampadas pelas ricas relações entre sensorialidade e consciência – apontando para o campo próprio das relações entre práticas plásticas e discursivas ao mesmo tempo em é salvaguardada a importância do ritmo apropriado para esse deslocamento, uma vez que o que se busca afinal é a “pulsação” nem apenas plástica ou exclusivamente sonoro/verbal, mas sobretudo a partir da dupla articulação nos termos de suas relações. Cabe a Joseph Kosuth, segundo Michael Lingner, o papel de exemplificar a presença da Künstlertheorie enquanto função performativa, estabelecendo direto contraste com as funções constitutiva e integrativa anteriormente apresentadas – vimos que o que está em jogo, a partir da sugestão de Lingner de trazer ao primeiro plano a presença da teoria de artista, funcionando em conexão direta com a obra, é a modalidade de relações que pode ser estabelecida entre os territórios plástico e discursivo: nos exemplos anteriores, ocorria uma precedência da teoria (função constitutiva, caso de P. O. Runge) ou sua integração com a prática plástica (função 31
W. Kandinsky, “Introdução”, in op.cit., pp. 27-28.
30
integrativa, caso de A. Hölzel). Já apontando para o campo de debates da arte contemporânea, a partir do estabelecimento da corrente da arte conceitual, o caso de Kosuth assumiria outras características deste jogo de relações, próprias de uma outra etapa, em seu desdobramento – a principal delas residiria na implicação de que, no corpo da obra deste artista, “obra e teoria se tornam idênticos e são apresentados como uma só entidade”.32 A partir de “uma muito mais ampla integração entre teoria de artista e prática”, a performatividade indicada residiria, de imediato, na facilidade de deslocamento de Kosuth – e, logo, de demais artistas localizados no âmbito do conceitualismo – entre um campo e outro, habitando, a partir de gestos não em absoluto dessemelhantes, tanto o lugar plástico como o verbal: seja na produção do texto programático-crítico, seja na construção da instalação, a atitude de invenção-criação converge a partir de um tipo de gestualidade que pode estar em cada um dos territórios – ou ambos –, sendo gerada em um dos campos e deslocada para o outro e vice-versa. Há, ao mesmo tempo, a compreensão de uma espacialidade invisível ou imaterial como dimensão da visualidade, em que sempre se desvelam as articulações discursivas, e a certeza de que as enunciações textuais compõem camada sensível e espacializante, sempre plástica, agregada às coisas de modo quase material. Lingner, como veremos abaixo, parece ter compreendido bem a dimensão formalista que, paradoxalmente, os primeiros artistas conceituais imprimem em sua utilização das ferramentas discursivas: o paradoxo residiria, é claro, no fato de que uma das principais bandeiras históricas da arte conceitual sempre foi o embate direto contra o formalismo esteticista greenberguiano; mas, enfim, se este percurso acaba por desembocar em um certo formalismo da Künstlertheorie, causador de rigidez formal nas relações entre obra de arte e discurso, possui entretanto o mérito de ter flexibilizado e desimpedido as linhas de fronteira que regulam as trocas entre palavra e plasticidade material. Creio ser interessante indicar aqui um dos registros através do qual tal formalismo visual-discursivo teria se desdobrado: a própria (auto)compreensão da arte conceitual como devedora da linhagem histórica das vanguardas, localizando-se 32
M. Lingner, op.cit..
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como um dos seus últimos desdobramentos – o principal sintoma, seria, sem dúvida, o recurso à história da arte como topos de afirmação de sua presença frente às ações de intervenção em seu contexto de atuação: efetivamente, diversos de seus principais agentes (mesmo que demarcando posições discordantes entre si) têm ainda a história como fator impulsionador de uma ‘ruptura’ conceitual, manifestando nesse sentido uma compreensão modernista de seus gestos – mesmo que seja para lançar a arte, daí para frente, diretamente para o campo contemporâneo ou pósmoderno, menos linearizantes. Os escritos de época trazem marcas (muitas vezes dispersas, mas efetivamente presentes) de uma inscrição evolutiva e histórica, reivindicando uma pureza de meios e análise de limites formais, que serão as referências para a transformação pretendida: “o século XX trouxe à tona uma época que poderia ser chamada ‘o fim da filosofia e o começo da arte’ (…) Com o readymade não-assistido, a arte mudou seu foco da forma da linguagem para o que estava sendo dito. Isso significa que a natureza da arte mudou de uma questão de morfologia para uma questão de função. Essa mudança – de ‘aparência’ para ‘concepção’ – foi o começo da arte ‘moderna’ e o começo da arte ‘Conceitual’. Toda arte (depois de Duchamp) é conceitual (por natureza, porque a arte só existe conceitualmente.”33 “uma forma de arte pode evoluir tomando como ponto de partida da investigação o uso da linguagem da sociedade de arte.”34 “Essa ruptura implica, como tarefa primeira e essencial, rever a história da arte que conhecemos ou, se preferirmos, desconstruí-la radicalmente (…). O conhecimento exato de seus problemas será chamado a teoria (…). É esse conhecimento ou teoria que é hoje indispensável em relação à perspectiva de uma ruptura, ruptura que se torna então fato; não podemos nos contentar com o simples reconhecimento da existência dos problemas que surgem. 33
Joseph Kosuth, “Arte depois da filosofia”, in Glória Ferreira e Cecilia Cotrim (Orgs.), Escritos de artistas – anos 60/70, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006, pp. 212, 217. 34 Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 248.
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Podemos afirmar que toda arte até nossos dias só foi criada, por um lado, empiricamente e, por outro, com base em um pensamento idealista. Se ela puder se repensar ou se pensar e se criar teoricamente/cientificamente, a ruptura será consumada e, por isso mesmo, a palavra arte terá perdido as significações – numerosas e divergentes – que se prendem a ela até o presente. Podemos dizer sobre o que precede que a ruptura, se ruptura houver, só pode/só poderá ser epistemológica.”35 Sabe-se que a arte conceitual desempenha papel importante frente à crise da arte moderna, contribuindo para a chamada ampliação do campo da arte contemporânea e a definição das operações artísticas para além dos limites formais e materiais36: ao realizar significativo processamento da herança duchampiana (em sua fuga do esteticismo, ênfase em operações metodológicas não formais e utilização da palavra) e desenvolver uma consciência sem precedentes em relação aos mecanismos não-visuais legitimadores da obra de arte, aponta para um ‘futuro’ da arte não mais determinado por categorias de execução formal-visual – já estavam em marcha, desde meados dos anos 1950, decisivas transformações em torno de, entre outros aspectos, uma autonomia da obra que fosse permeável ao seu entorno, um funcionamento enquanto intervenção no circuito de arte e no campo da cultura, uma imagem do artista que constitui sua subjetividade de modo público, exteriorizante, além da auto-expressão, uma fruição ativa e participativa por parte do público.37 Nesse sentido, é bastante útil a lembrança de Michael Lingner de que “desde a Revolução Francesa, que arrancou o poder da nobreza e da igreja, criando as bases para sua autonomia social, a arte trabalhou para afirmar sua própria
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Daniel Buren, “Advertência”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., pp. 260-261. Entre outras fontes, registramos aqui quatro ensaios, como referências precisas e pontuais ao problema da transição entre moderno e pós-moderno. Cf. Harold Rosenberg, “Desestetização”, in: Gregory Battcock (Org.), A Nova Arte. São Paulo, Perspectiva, 1975; Mário Pedrosa, “Arte ambiental. Arte pós-moderna, Hélio Oiticica”, in Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro, Rocco, 1986; Ronaldo Brito, “O Moderno e o Contemporâneo (o novo e o outro novo)”. In: Arte Brasileira Contemporânea - Caderno de Textos 1, Funarte, Rio de Janeiro, 1980; Rosalind Krauss, “A Escultura no Campo Ampliado”, Gávea, Rio de Janeiro, n. 1, [s.d.]. 37 Estas transformações são claramente impulsionadas pelos artistas Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Yves Klein e Piero Manzoni. Cf. Ricardo Basbaum, “Quatro características da arte nas sociedades de controle”, in R. Basbaum, op. cit., pp. 87-106. 36
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autonomia estética” – a qual, afinal, “a arte deve conquistar por si própria”38 através de suas proposições, configurações e construções. Assim, indicando uma seqüência de etapas que perfazem o caminho desta gradual construção de um objeto estético ao mesmo tempo plástico e conceitual (seja material ou desmaterializado), Lingner vê “este processo emancipatório dividido em fases de autodeterminação que, de modo geral, podemos denominar como autonomia de conteúdo, forma, gosto e conceito”, expondo, brevemente, o seguinte desenvolvimento: “Autonomia de conteúdo significa que a arte não mais se submete a uma dada funcionalidade ou assunto. Rejeita ser predeterminada enquanto uma pintura para um altar de igreja ou retrato de um monarca, passando então a inventar seu próprio conteúdo. Reagindo diretamente à Revolução Francesa, a Arte Romântica fez da natureza, que até então havia funcionado como cenário, seu principal conteúdo. Caspar David Friedrich tematizava a natureza, a beleza das regiões campestres, enquanto Runge perseguia o princípio por detrás da natureza, encontrando-o no crescimento e na decadência. Aqui, a natureza serve a ambos os artistas como ponto de partida e ao mesmo tempo veículo para suas emoções. A autonomia formal rompe com qualquer tipo de naturalismo. As formas que constituem a pintura não são tomadas do mundo da realidade, mas abstraídas de acordo com critérios imanentes à própria pintura. O trabalho de arte perde sua função de imitar a natureza e conquista a liberdade absoluta das formas da arte nãofigurativa, seja de modo expressionista, como Kandinsky, ou construtivista, como Mondrian. A autonomia do gosto consiste em produzir valor artístico a partir do feio e do banal. Duchamp declarou como arte seus readymades, Schwitters transformou mesmo o lixo e dejetos em arte, e ambos combateram as convenções do gosto e os ideais estéticos do seu tempo. E, através de Beuys e do uso de materiais extremamente baratos e sem valor, teve seu momento maior enquanto grande efeito público de choque. De qualquer modo, a arte agora ganhou a liberdade de se considerar acima das preferências de gosto da sociedade, utilizando qualquer material possível e 38
Michael Lingner, “Art as a system within society”, disponível em http://ask23.hfbkhamburg.de/draft/archiv/ml_publikationen/kt93-1.html.
34
concebível. O passo decisivo para o que tenho chamado de autonomia conceitual é então obtido quando o artista não mais deseja apenas determinar a validade do material, forma ou conteúdo artísticos, mas também os conceitos e teorias sobre arte. A Arte Conceitual dos anos sessenta, como foi formulada por Kosuth e Weiner, posicionou-se no sentido de desenvolver uma nova definição de arte. Kosuth insistiu que o próprio artista, e não figuras oficiais como os críticos, elaboram e determinam o que a arte é. Através da renúncia a qualquer semelhança morfológica às formas tradicionais da arte, o artista cria dificuldade para que reconheçamos os trabalhos como objetos estéticos, de modo que necessitam ser definidos conceitualmente. Assim, a autodeterminação artística não envolve apenas os objetos, mas também a definição de arte que os atravessa. Até onde a autonomia estética alcança, esta seria sua absoluta culminância.”39 Vê-se, a partir desta narrativa, um efeito típico da passagem entre os períodos moderno e contemporâneo, denominado de tradição do novo,40 em que o esforço seria o de “manter de pé o programa da modernidade ainda numa época ‘pósmoderna’”, onde “a vanguarda tornou-se ela mesma um ideal da tradição ao qual se queria ficar agarrado”:41 a ruptura proposta pela entrada no cenário dos artistas ligados à arte Conceitual revelaria um importante foco de sentido ao conectar-se à grande tradição moderna da autonomia da arte, configurando – entretanto! – seu último passo. Assim, mais do que perceber as amplas conquistas conceituais como profundos cortes em relação ao ambiente da produção artística em que está inserida ou forte reação às obras das quais deriva, o incremento trazido por artistas e grupos como Joseph Kosuth, Art & Language e Daniel Buren, entre outros, impõe-se como gesto de continuidade em um processo muito mais amplo, fundamental para que – aí sim, mas em conjunto com outros elementos e fatores do campo sociopolítico – se iniciasse uma profunda transformação nas práticas artísticas que apontam em direção ao novo século e a um regime com o nome genérico (que afinal nada 39
M. Lingner, op.cit.. Célebre termo cunhado por Harold Rosenberg. Cf., deste autor, A Tradição do Novo. São Paulo, Perspectiva, 1974. 41 Hans Belting, “Ciência da arte e vanguarda”, in O fim da história da arte, São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 197. 40
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esclarece) de pós-modernismo, cuja compreensão está apenas se iniciando. Ao vincular função performativa da teoria de artista e autonomia conceitual da obra de arte, que, combinados, apontariam para uma identificação e unificação entre arte e teoria, Lingner estaria diagnosticando o estado de coisas típico das pesquisas propostas pela primeira geração de artistas conceituais. Qualquer consulta a alguns de seus textos referenciais básicos,42 revela sinais claros de um forte investimento na instância teórico-discursiva, percebida, por estes artistas como legítimo terreno de atuação – não apenas para defender seus programas, mas sobretudo para definir e negociar os contornos da obra proposta. Kosuth, por exemplo, reconhece “a mudança de ‘aparência’ para ‘concepção”” como determinante tanto do início tanto da “arte ‘moderna’” como da “arte ‘Conceitual’”, propondo que “’a condição artística’ da arte constitui um estado conceitual” e que, logo, “as proposições da arte não são factuais, mas lingüísticas, em seu caráter – isto é (…) elas expressam definições de arte, ou então as conseqüências formais das definições de arte”; então, “a definição ‘mais pura’ da Arte Conceitual seria a de que se trata de uma investigação sobre os fundamentos do conceito de ‘arte’”.43 Afirma, ainda, que “o potencial da natureza revolucionária da arte conceitual” a transformou em “uma prática crítica reflexiva perpetuamente examinando e recontextualizando sua própria história”, uma “escolha metodológica que juntou a prática da arte com a teoria”; afinal, Kosuth se propõe a “discutir a relação entre fazer-a-obra [art-making] e significado, e a interdependência entre os dois”: “o trabalho criativo do artista no fazer-a-obra não é fazer um outro objeto em um mundo mercantilizado e cheio de objetos, mas produzir, como construtor [maker], um efeito no significado da arte”.44 Enfim, escreve, “fundamental para esta idéia de arte é a compreensão da natureza lingüística de todas as proposições artísticas”45, pois “o que torna um artista, ou qualquer outro pensador, importante é o que pôde contribuir com a história das idéias”46.
42
V. notas de nº 30, 31 e 32. J. Kosuth, op.cit., pp. 217-227. 44 Joseph Kosuth, “Painting versus art versus culture (or, why you can paint if you want to, but it probably won’t matter)”, in Joseph Kosuth, Art After Philosophy and After - Collected Writings, 19661990, Cambridge, MIT Press, 1991, pp. 91-92. 45 J. Kosuth, “Statement from Information”, in J. Kosuth, op.cit., p. 74. 46 J. Kosuth, “Context text”, in J. Kosuth, op.cit., p. 84. 43
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Daniel Buren, por outro lado, manifesta reconhecimento de que a produção textual-discursiva é um espaço de trabalho e atuação a ser trazido para junto do artista: além de afirmar ser “indispensável” a teoria, e que a “ruptura” será “epistemológica”, aponta que “de fato, a teoria, e só a teoria, pode permitir uma prática revolucionária”: além ser “indissociável de sua própria prática (…) ainda pode/poderá suscitar outras práticas originais”47. Sua posição como artista “é o seguimento lógico de uma reflexão teórica que se fundamenta na história da arte e em suas aparentes contradições”: “não estou preocupado com a arte em geral ou com a arte contemporânea em particular. O que me interessa é a arte (…) sua trajetória histórica, seus desenvolvimentos (…). [E]sta é a única maneira de vislumbrarmos a possibilidade de uma teoria. (…) Não se pode mais aceitar a arte. A arte não é mais justificável.”48 É interessante perceber, porém, que Buren preocupa-se com a localização de seus escritos em relação à obras plásticas, receoso que estes “descart[em] a possibilidade de ver as obras, sob o pretexto de que os textos já as explicam o suficiente”, ou de haja uma “confusão entre os textos e os trabalhos, já que sua existência baseia-se nesta diferença”: seria preciso, para o artista, ter clareza de que “tais textos (…) jamais poderiam substituir a obra sobre a qual se baseiam” – o texto, então, “permite retirar a arte do inefável, e dar-lhe alguns instrumentos para abandonar seu contentamento beato”. Mas – e Buren enfatiza esta passagem em mais de um escrito – reconhece que “a prática pictórica realizada desde 1965 é o lugar de onde [os textos] partem”: “Se há uma teoria para um pintor, é na sua pintura/prática que ela surgirá. O texto permite ainda falar o que a pintura não pode, já que ela só se apreende pelo olhar. O texto permite também, no domínio da arte (reservado ao
47
D. Buren, op.cit., p. 261. Daniel Buren, “A arte não é mais justificável, ou os pingos nos is”, in Paulo Sérgio Duarte (Org.), Daniel Buren – textos e entrevistas escolhidos (1967-2000), Rio de Janeiro, Centro de Artes Hélio Oiticica, 2001, pp. 25-29. 48
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silêncio, silêncio dos criadores em benefício do falatório dos exegetas e de outros cães de guarda das ideologias dominantes), desvendar e afirmar claramente o que alguns gostariam de calar, por exemplo, as relações entre o econômico, o estético, o político, o poder, a ideologia, a crítica, o artista e a obra, ou seja, como estes vínculos se imbricam e se articulam de forma para finalmente agir e determinar tal ou qual obra de modo irremediável e freqüentemente surpreendente se abordarmos dialeticamente a questão de como estes encadeamentos funcionam e decifram o que a arte possui de misticismo. Estas relações são muito importantes e seus efeitos não raro são redibitórios.”49 Ou seja, “é preciso entender muito bem que por teoria, como produtor, apenas o resultado apresentado/pintura é teoria ou prática teórica”50. O que nos interessa aqui é que tanto Kosuth como Buren, de modos diversos, atestam o reconhecimento e o cultivo de um local de trabalho para a dimensão discursiva, reconhecida como um componente da obra de arte: há uma prática da palavra, do texto, da escrita ou do discurso, o qual não é mais acessório ou apoio teórico para a obra, integrando-a em algum universo de sentido, mas elemento que participa de um mesmo gesto de intervenção. Se, para Kosuth, há a descoberta da “interdependência” entre texto e obra, Buren acessa a mesma questão a partir de sua contundente afirmação de que “a arte não é mais justificável”51, sendo então necessário empreender esforço teórico discursivo para reconquistar a possibilidade da ação forte da obra. Trata-se de trabalhar na região de sentido e significado, e isso implica em considerável esforço de articulação ‘teórica’: não se trata de deixar a obra para assumir algum outro papel (escritor, crítico, teórico), mas encontrar ali na prática da construção da obra a formação mesma da teoria, como indica Buren. Pouco importa se Daniel Buren expressa a lúcida advertência de que textos não 49
Daniel Buren, “Por que textos, ou o lugar de onde intervenho”, in P. S. Duarte (Org.), op.cit., pp. 8487. 50 Daniel Buren, “Advertência”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 261. 51 A frase cunhada por Kosuth, de sentido similar, foi: “o significado da arte estava em crise”. Cf. Joseph Kosuth, “Painting versus art versus culture (or, why you can paint if you want to, but it probably won’t matter)”, in J. Kosuth, op.cit., p. 90.
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substituem obras: é claro que o artista precisa enfatizar a força da presença plástica, em sua materialidade (seja ela qual for) enquanto obra (e, nesse ponto, o artista francês é mais esclarecedor que Kosuth), a qual não é ‘texto’, em seu sentido literal e imediato, solicitando outra operação do olhar que não a simples leitura; é preciso perceber que o reconhecimento da “heterogeneidade” das matérias visual e discursiva é fator que – ao contrário – enfatiza sua maior proximidade e manuseio conjunto, uma vez que há a consciência de sua “pressuposição recíproca”52 – e então as operações textual e plástica estarão sempre remetendo o “espectadorleitor”53 de uma para a outra (desenvolvendo, portanto, a capacidade deste se constituir a partir deste deslocamento perceptivo). Assim, percebe-se que ambos os artistas trabalham de modo a reconhecer um ‘fundo comum’ de imagens e palavras (história da arte + história da literatura + história da filosofia?) do qual se servem no ritmo próprio de seus processos de trabalho, atendendo às demandas de seu programa poético e da intervenção pretendida: claro que não se trata da conquista de uma mobilidade segura e tranqüila entre ‘teoria’ e ‘prática’, discurso e visibilidade – afinal, como apontou Michel Foucault, segundo Deleuze, ambos os campos estabelecem entre si uma relação de permanente tensão: “’é preciso admitir, entre a figura e o texto, toda uma série de entrecruzamentos, ou antes ataques lançados de um ao outro, flechas dirigidas contra o alvo adversário, operações de solapamento e de destruição, golpes de lança e os ferimentos, uma batalha.’”54
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Trazemos aqui referência à importante “teoria dos enunciados” de Michel Foucault, que pode ser resumida em três tópicos principais: enunciados e visibilidades estão em “pressuposição recíproca”; consistem em “formas heterogêneas” que não possuem nenhuma região comum; desenvolvem permanente condição de heterogeneidade das matérias e portanto somente podem operar a partir do “combate e captura” recíproco entre as duas práticas. Gilles Deleuze lembra que, para Foucault, o saber é “bi-forme”, atravessado por “práticas discursivas de enunciados e práticas não-discursivas de visibilidades”. Cf. Michel Foucault, Isto não é um cachimbo, São Paulo, Paz e Terra, 1988, e Gilles Delueze, Foucault, São Paulo, Brasilense, 1988. Esta proposição de Foucault é referencial para o estudo Além da pureza visual, de minha autoria, já referido aqui. 53 A expressão “reader-viewer” é empregada por Gabriele Guercio em sua introdução ao livro de escritos de Joseph Kosuth. Cf. Gabriele Guercio, “Introduction”, in J. Kosuth, op. cit., pp. xxi-xlii. De minha parte, impulsionado por esta sugestão, indiquei a possibilidade deste “espectador-leitor” realizar o ato de “Vler” ou “Lver”, a partir da convergência e simultaneidade das ações de ‘ver’ e ‘ler’. Cf. Helmut Batista e Ricardo Basbaum, G. x eu (entrevista), Rio de Janeiro, Espaço P, 1998. (folder de exposição). Documento incluído no Anexo desta Tese. 54 Michel Foucault apud Gilles Deleuze, Foucault, São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 75.
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Trata-se de se direcionar como artista rumo a um campo percebido como controvertido e instável, assumindo determinadas posições de enfrentamento em relação aos problemas da arte de seu tempo, produzindo e abrindo questões para construir os limites e condições da prática pretendida. Kosuth e Buren demonstram o esforço de configuração de um lugar de construção da obra de arte que se aventura já pelos linhas de contorno do invisível, fazendo com que a produção do trabalho seja algo mais, ou seja, incorpora os traços de uma autonomia conceitual, que faz ver/ler um agregado plástico-discursivo onde produção sensível é produção teórica e vice-versa. Seria este um salto do qual ainda hoje não se teria extraído as linhas de fuga de uma radicalidade possível? Inscrevendo-se na mesma problemática, o grupo inglês Art & Language também procura, em seus primeiros textos, investigar as relações entre produção textual e discursiva, discutindo de modo bastante direto a possibilidade de que a experimentação teórica se perfaça diretamente como obra. O célebre “Art-Language Editorial”, anuncia-se imediatamente como experimento de tal tipo: “Suponhamos que a seguinte hipótese seja proposta: que este editorial, ele mesmo uma tentativa de delinear alguns esboços do que é ‘Arte Conceitual’, seja considerado um trabalho de ‘Arte Conceitual’”.55 O que se segue, então, é uma interessante discussão, marcada por certa circularidade tautológica que testemunha o que se considera como ‘obsessão em auto-justificar-se’, típica de uma prática que busca afirmar sua autonomia: estão em jogo as relações entre ‘teoria’ e ‘prática’, a imagem do artista e as delimitações de seu objeto de trabalho – a obra. Efetivamente, o trabalho do grupo, neste período, é marcado diretamente pelos contornos de tal discussão: “em uma variedade de trabalhos textuais, de 1967 a 1971, Art & Language apresentou uma ampla gama de especulações – que constituíram seu trabalho em arte – acerca das condições de individuação de um grupo de 55
Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 236.
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objetos de complexidade ontológica mais ampla do que aquela possível de ser acomodada dentro do paradigma do ‘objeto físico, essencialista, de caráter materialista’.”56 Ao aventurar-se pela prática discursiva, evidencia-se a afirmação de que a produção de uma ’teoria da arte’ não se confronta com a atividade do ‘artista’ voltado para a construção de objetos plástico-formais: afinal, “no âmbito da ‘Arte conceitual’, fazer arte e fazer um certo tipo de teoria da arte constituem, muitas vezes, o mesmo procedimento” – “por conseguinte, esses artistas não consideram que a propriedade do rótulo ‘teórico da arte’ necessariamente elimine a propriedade do rótulo ‘artista’”.57 Sem abandonar um pragmatismo retórico, Art & Language demarca no referido ensaio uma interessante preocupação com a morfologia do que chama de “objeto teórico” – admitindo sua existência em conjunto com “objetos concretos”: ambos “são apenas dois tipos de entidades que podem ser levados em consideração, e vários outros tipos de entidades se tornam candidatos ao uso artístico”. Tal cuidado “morfológico” (este é um termo recorrente no texto), somado a uma relação da evidenciação da forma a partir dos mecanismos da visualidade (“a visão do objeto” como responsável pelos “critérios de aparência suficientes para ser identificado como membro da classe ‘objeto de arte’”), conduzem Art & Language a uma interessante preocupação com a “psicologia da percepção” – enfim, será que o esforço de alinhavo das dimensões visual e discursiva poderiam produzir algum efeito ao nível da imediata apreensão da obra de arte? A indagação se desenvolve no último parágrafo do artigo, evocando Merleau-Ponty e Richard Wolheim como referências – dois estudiosos cujo trabalho foi utilizado basicamente por correntes de cunho estético-formal e que, evidentemente, não podem oferecer pistas de abordagem para o problema58. Mas sua menção é, afinal, de grande relevância se se deseja de fato elaborar uma presença autônoma da obra de arte que seja “de conteúdo, forma, gosto e conceito” (como anotamos acima) – quádrupla autonomia 56
Paul Wood, “Art & Language: wresting the angel”, in Arte & Language, Paris, Jeu de Paume, 1993 (catálogo de exposição), p. 24. 57 Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 238. 58 Veremos, em outra parte desta Tese, como José Gil se aproxima do problema de modo muito mais efetivo e produtivo. Cf. José Gil, A imagem nua e as pequenas percepções – estética e metafenomenologia, Lisboa, Relógio D’Água, 1996.
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que estaria implicada na configuração da obra de arte desde o Romantismo59 e que chega aos nosso dias não como resultado de qualquer essencialismo evolutivo, mas como desdobrar incessante, a partir de linhas de fuga – sempre em uma direta relação entre a arte e outros campos da sociedade em suas demandas sociopolíticas – que trazem ao primeiro plano, de modo instigante, tópicos de constituição de um objeto visual-multisensorial, irredutível ao conceito mas tramando relações muito especiais com seus componentes teórico-discursivos. Ao manifestar preocupação com a dimensão perceptiva, Art & Language deixa claro que as condições de sua prática aludem a uma performatividade da teoria, com livre movimentação entre as práticas plástica e discursiva, tal como Kosuth e Buren; uma observação do grupo britânico revela, ainda, preocupação em “penetrar” na “noção de metaestratos da arte-linguagem”60: o reconhecimento em lidar com regiões de estratificação de matérias visuais e discursivas em mútuo inter-relacionamento é ponto programático de sua prática. É preciso, novamente, registrar uma advertência: se trazemos aqui aspectos da funcionalidade da teoria de artista é para, desde logo, indicar a importância do jogo de relações que cada uma das funções traz à superfície – e, assim, escapar de um formalismo das classificações que imprimiria ao texto de artista automaticamente o formato de ‘construção teórica’, abstração frente à materialidade da obra: é em outra direção que este texto caminha, procurando apontar instâncias concretas na costura texto/obra que indiquem propriamente um interesse no desenvolvimento na força e intensidade as relações. Assim, o perigo seria termos a Künstlertheorie como medida da teoria como forma, arriscando estetizá-la desnecessariamente quando o
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“A arte moderna é caracterizada por uma certa confusão entre arte e filosofia, a qual tem suas origens no Romantismo Alemão. A megalomania autoreferente do “116º Athenäum Fragment”, de Friedrich Schlegel, é o modelo original para os manifestos de todos os movimentos de arte do Século XX. E a corrente filosófica da arte conceitual tem um importante precursor no idealismo de Fichte e Schelling – uma tradição filosófica que, como imediatamente notou Novalis, pode ser vista como artística.” Remko Scha (Institute of Artificial Art Amsterdam), “Theory as Art as Theory”, disponível em http://radicalart.info/concept/hegel.html. 60 Art & Language, “Arte-linguagem”, in G. Ferreira e C. Cotrim (Orgs.), op. cit., p. 243. A tradução “metacamadas da arte-linguagem” foi aqui modificada para uma solução que nos parece estar mais de acordo com o original “meta-strata of art-language”, além de remeter diretamente ao léxico de Deleuze-Guattari, ao qual recorremos em diversos momentos e perpassa esta Tese. Cf. Editors of Art-Language, “Introduction”, in Alexander Alberro and Blake Stimson (Orgs.), Conceptual Art: a critical anthology, Cambridge, MIT Press, 1999, p. 102.
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que importa é o alinhavo que o artista constrói entre as práticas, fazendo, das duas, uma: o artista tendo como condição de trabalho esta dupla articulação – do mesmo modo que a Arte Conceitual investiu em uma maciça teorização da arte, seria preciso
sensorializar
a
teoria,
desinvestindo-a
do
reducionismo
formal
e
configurando a prática da arte como este fazer duplo. Para estes artistas não há dúvida de estar se construindo uma outra imagem do artista, não voltada para a produção seriada e acrítica de objetos estéticos, mas ocupada nesta dupla investigação e responsável pela produção de trabalhos atentos à quádrupla autonomia, configurando a obra também em seus contornos ditos imateriais – mas que se inscrevem na cuidadosa pesquisa teórico-discursiva que aponta os limites, o sentido e a natureza do campo investigado. Em ligação direta com a afirmação de Duchamp de que o artista moderno, após Courbet, é um “cidadão livre” e que “o jovem artista de amanhã (…) como Alice no País das Maravilhas (…) será conduzido a atravessar o espelho da retina, para alcançar uma expressão mais profunda”61, a postura de Kosuth, por exemplo, se alinha em direção à “imagem do artista como um intelectual que, consciente de não ser nem pintor nem escultor, identifica o fazer da arte com um conhecimento da dinâmica que torna a arte possível”62. É claro que este ‘novo artista’ que vai sendo elaborado através das diversas aventuras da arte dos anos 1960/70 – passando pelo artista intermídia Fluxus, pela configuração artista-pop de Warhol, pelo an-artista de Allan Kaprow (que ao desenhar seu conceito trabalha ainda as categorias de anti-artista, nãoartista e artista-artista, desenvolvendo-as historicamente e em suas relações com o circuito de arte)63, pelo artista da body-art (Vito Acconci e Chris Burden seriam bons exemplos), assim como pelas contribuições de Lygia Clark e Hélio Oiticica e suas trajetórias alheias à institucionalização da arte e seu sistema, em processo de aceleração durante toda a década – não tem sua engenharia dominada 61
Marcel Duchamp, “Where do we go from here?”, apresentado em Simpósio no Philadelphia Museum College of Art, em março de 1961 e publicado pela primeira vez em Studio International, 1975, número especial dedicado a Duchamp. Disponível em http://www.msu.edu/course/ha/850/Where_do_we_go_from_here.pdf. 62 G. Guercio, “Introduction”, in J. Kosuth, op. cit., p. xxiv. 63 Cf. Allan Kaprow, “The education of the an-artist, Parts I, II and III”, in Allan Kaprow, Essays on the blurring of art and life, Berkeley, University of California Press, 1993, pp. 97-109, 110-126 e 130-147, respectivamente.
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exclusivamente pela perspectiva da arte conceitual; mas o anúncio de que a prática do artista visual se fará através de construções teóricas em torno de um campo imaterial invisível, que requer acesso inicial através do discurso, terá considerável impacto. Mas o que importa, sobretudo, é a conquista do estrato de uma autonomia conceitual, que traz as questões de produção de sentido e definição do campo da arte – em suas conexões com todo o tradicional campo discursivo associado a esta prática, como a teoria, crítica e história da arte – para uma proximidade direta do artista, como elementos de seu fazer, constitutivos da produção mesma da obra. Em convergência a tais preocupações com a ‘imagem do artista’, assiste-se, quase ao mesmo tempo, a intelectuais também procurando “viver de maneira nova as relações teoria-prática”64. A célebre conversa entre Deleuze e Foucault, realizada em 1972, traz à superfície diversos aspectos bastante significativos do problema, que nos servem aqui de referência – de modo a evitar que a teoria exerça um papel totalizador e ‘abstratizante’ junto ao conjunto de tópicos que estejam em jogo, a cada combate, ação ou obra. O paralelo entre intelectuais e artistas é aqui importante: se, por um lado, os artistas se aproximam do jogo teórico e chamam para si a complexidade do discurso, manejando-o como parte da obra de arte, e, por outro, intelectuais buscam compreender como a teoria pode funcionar em relação ao mundo real, para além da abstração acadêmica e puramente conceitual, o que está em debate é – nos dois casos – uma imprescindível re-avaliação de ambos os papéis e da efetividade de suas ações. Tanto artistas como intelectuais mostram-se conscientes da necessidade de constituir de outro modo a relação entre os campos teórico e prático, de modo a evitar as habituais cristalizações que eventualmente reduzem um campo ao outro ou impedem que as possibilidades de funcionamento conjunto potencializem a intervenção pretendida. Na referida conversa, as posições de Deleuze e Foucault se complementam de modo direto, com os dois pensadores referindo-se mutuamente e tecendo sua fala em direto diálogo e imediata reciprocidade, resultando em um conjunto de posições em bloco acerca da relação entre “os intelectuais e o poder”, da possibilidade de produção de um pensamento efetivo que se irradia em novas bases práticas e de ação. A posição Deleuze64
Gilles Deleuze (com Michel Foucault), “Os intelectuais e o poder”, in A ilha deserta e outros textos – textos e entrevistas (1953-1974), São Paulo, Iluminuras, 2006, pp. 265-273.
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Foucault que daí emerge pode ser assim resumida: - evitar a totalização da prática pela teoria e da teoria pela prática a partir da compreensão de que suas relações são parciais e fragmentárias; - a teoria é sempre concebida localmente, regionalmente; - não há representação, mas ação (ação de prática, ação de teoria, em relações de revezamento ou em rede); - a relação de aplicação nunca é de semelhança: a teoria não é expressão, tradução ou aplicação de uma prática – ela é uma prática; - a teoria é como uma caixa de ferramentas (“é preciso que sirva, é preciso que funcione”), sistema de revezamentos em um conjunto, em uma multiplicidade de peças e pedaços ao mesmo tempo teóricos e práticos; - a teoria não totaliza: multiplica e se multiplica, instaura ligações laterais, um sistema de redes; - a teoria reveza-se com outras formas discursivas; - o intelectual teórico deixa de ser o sujeito representativo ou representante da consciência;65 Estão aí implicados elementos que resguardam a autonomia das práticas discursivas e não-discursivas, e ao mesmo tempo evitam que cada uma delas gerencie de modo absoluto qualquer das formas de ação – teoria ou prática; a intervenção ‘bem-sucedida’, portanto, será aquela cujo efeito se dá na direção da potencialização do acontecimento (efeito deleuziano) e na abertura de frestas e linhas de fratura problematizantes (efeito foucaultiano), mas sempre “multiplicando e se multiplicando” e produzindo “ligações” de modo lateral. As ferramentas teóricas – produto do labor filosófico tão caro a Deleuze – devem funcionar, ser utilizadas, mas sempre compreendendo seus limites e entrando e ressonância (funcionando ‘com’) outros elementos não-filosóficos: a ação (seja prática ou teórica – ou seja, ‘práticoteórica’) mobiliza um “sistema de revezamentos em um conjunto, em uma multiplicidade de peças e pedaços ao mesmo tempo teóricos e práticos”, configurando-se sempre em uma empreitada que foge da linearidade de percurso, 65
Tópicos extraídos de Gilles Deleuze (com Michel Foucault), op.cit..
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da aplicação de um programa finalizado a priori, exigindo o envolvimento sensível de uma escuta permanente e de uma discursividade permeável ao entorno. A fuga à “representação” é aqui fundamental, pois evita a literalidade autoritária das construções discursivas ou não-discursivas de minimizar a complexidade do mundo frente à trama do modelo, reduzindo a dinâmica das coisas à sintaxe ou à imagem que as representam – “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem”66: a conhecida frase de Michel Foucault indica os limites e o artifício da representação, em relação trágica com o mundo irredutível e inassimilável. O agente desta modalidade de intervenção filosófico-conceitual é o intelectual não representativo – investigador cujo papel “não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele, como intelectual, é ao mesmo tempo o objeto e o instrumento”; ou seja, alguém que se percebe como parte constitutiva do que enuncia, atuando em alguma forma de circuito, sistema ou rede. Em certa medida, também Deleuze e Foucault investigam e buscam penetrar os “metaestratos” indicado pelo Art & Language – nem tanto como “metaestratos de arte-linguagem”,
mas
sim
em
termos
de
camadas
inter-relacionadas
de
“visualidades-enunciados” –, e tanto os dois filósofos como os artistas conceituais caminham em busca de uma relação produtiva entre ‘teoria’ e ‘prática’ que não restrinja seus movimentos nos limites estreitos de suas disciplinas e que também os arranque de um formalismo abstrato-esteticista auto-referente. Se os artistas alertam que seu objeto de trabalho também compreende a elaboração de regiões discursivas – abrindo frestas e questões acerca do sentido e significado da arte a partir da construção mesma da obra, constituindo-a –, os filósofos preocupam-se com certa operatividade das construções conceituais em relação à materialidade do mundo, integrados a ele e ali intervindo. Desta articulação de preocupações convergentes, pode-se perceber em ambos os casos – e isto é importante aqui – a 66
Michel Foucault, As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas, São Paulo, Martins Fontes, 1987, p. 25.
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ênfase na materialidade da teoria, tornando-a instrumento efetivo de ação em direta articulação com a prática (e a plástica); implementando assim, o “sistema de revezamentos” de Deleuze-Foucault como modalidade de intervenção. De modo que, adaptando o vocabulário mais diretamente ligado ao campo de ação que nos interessa mais de perto, temos então artistas demarcando sua construção de poéticas através de sistema de revezamentos plástico-discursivos que os instrumentaliza a constituir a obra nos termos de seus limites visuais e conceituais, em uma autonomia que não mais cabe em si67 – pois a chamada autonomia conceitual, finalmente conquistada, funcionaria de modo paradoxal, reenviando a obra para seus próprios limites e ao mesmo tempo lançando-a para fora, em contato direto com outros campos e contextos (efeito direto da admissão da materialidade do discurso como fato plástico). Esta
Tese,
então,
investiga
algumas
das
possibilidades
de
uma
Künstlertheorie como sistema de revezamentos plástico-discursivos, admitindo a prática
do
artista
funcionando
nos
termos
de
uma
dupla-articulação
visualidade/texto, acionando tanto a materialidade do conceito como a imaterialidade do visível. Trata-se sem dúvida de um caso de performatividade da teoria, segundo Lingner, com o acréscimo de certos elementos diferenciais, que veremos adiante. Algumas palavras devem ainda ser ditas, entretanto, em relação a traços conceituais da dupla articulação – noção que, como vimos, se resguarda a especificidade dos termos envolvidos, indica um funcionamento sempre em recíproca pressuposição, articulando uma região própria e uma atenção específica para com o pragmatismo da ação. A noção de dupla articulação perpassa a filosofia de Deleuze e Guattari (“há 67
Estamos próximos aqui do que Brian Holmes denomina “extradisciplinar”: ferramenta conceitual que assinala “um novo tropismo e um novo tipo de reflexividade, envolvendo artistas, teóricos e ativistas em uma passagem para além dos limites tradicionalmente consignados a suas práticas. O termo tropismo expressa o desejo ou necessidade de se voltar em direção a algo mais, em direção a um campo ou disciplina exterior; enquanto que a noção de reflexividade agora indica um retorno crítico ao ponto de partida, uma tentativa de transformar a disciplina inicial, acabar com seu isolamento, abrir novas possibilidades de expressão, análise, cooperação e engajamento. Este movimento de ida-e-volta, ou melhor, esta espiral transformadora, é o princípio operacional do que chamo investigações extradisciplinares.” Brian Holmes, “Extradisciplinary investigations: towards a new critique of institutions”, disponível em http://transform.eipcp.net/transversal/0106/holmes/en/print.
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duplas-pinças por toda parte, double-binds, lagostas por toda parte, em todas as direções, uma multiplicidade de articulações duplas…”), procurando indicar uma modalidade de ação sobre o mundo – e de constituição de pensamento – que opere de forma não dialética, dualista ou biunívoca, atenta à percepção dos “estratos (…) em estado de pressuposição recíproca, disseminado-se um no outro, com agenciamentos maquínicos de duas cabeças estabelecendo correlações entre seus segmentos.” Ainda, “não se deve jamais confrontar palavras e coisas supostamente correspondentes, nem significantes e significados supostamente conformes, mas sim formalizações distintas, em pressuposição recíproca e constituindo uma dupla pinça”68. Para os dois autores, o importante é ter clara a concepção de que “toda a articulação é dupla”, e que os termos articulados não apresentam correspondência ou conformidade, “mas sim formalizações distintas em estado de equilíbrio instável ou pressuposição recíproca”: “A dupla articulação é tão variável que não podemos partir de um modelo geral, mas apenas de um caso relativamente simples. A primeira articulação escolheria ou colheria, nos fluxos-partículas instáveis, unidades moleculares ou quase moleculares metaestáveis (substâncias) às quais imporia uma ordem estatística de ligações e sucessões (formas). A segunda articulação instauraria estruturas estáveis, compactas e funcionais (formas) e constituiria os compostos molares onde essas estruturas se atualizam ao mesmo tempo (substâncias). (…) [A] primeira articulação é a ‘sedimentação’, que empilha unidades de segmentos cíclicos segundo uma ordem estatística (…). A segunda articulação é o ‘dobramento’, que instaura uma estrutura funcional estável e garante a passagem dos sedimentos (…). (…) A primeira articulação se refere ao conteúdo e a segunda, à expressão.”69 No que aqui nos interessa, devemos construir tal dinâmica a partir do desenvolvimento da obra enquanto composto duplamente articulado, em que ‘sedimentação’ e ‘dobramento’ indicariam, grosso modo, o duplo trabalho de constituir a obra de arte e suas componentes discursivas, enquanto etapas de um 68 69
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs, Rio de Janeiro, Editora 34, Vol. I, pp. 53-91. G.Deleuze e F.Guattari, op.cit., pp. 54-55, 58, 84.
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mesmo processo – ou seja, operações sensíveis em contato direto com a plasticidade das matérias envolvidas (sejam quais forem, não há limites a priori) e gestos voltados para as costuras conceituais apropriadas que, além da consistência discursiva, apontam (em direta conseqüência) para sua circulação e deslizamento por um sistema ou circuito. Daí a inseparabilidade entre a obra e sua dimensão enquanto evento, cujo conjunto compreende o trabalho plástico-conceitual, sua circulação e efeitos. Ou seja, a obra de arte enquanto direcionada ao outro70 (sujeito participante de uma operação estética), a um campo próprio (operação de sistematização e apuro conceitual) e ao lado de fora (operação de circulação, distribuição e intervenção por um circuito e seus extra-circuitos exteriores). Esta quádrupla autonomia (de conteúdo, formal, estética, conceitual), dupla articulação (visual, discursiva) e triplo endereçamento (ao outro, ao campo próprio e ao lado de fora) indicam a obra de arte enquanto problema que aponta em diversas direções, ressaltando o papel decisivo do campo teórico-discursivo na emergência desta configuração. Existe aí de certo modo um vasto território a ser explorado – a própria condição da arte moderna e contemporânea, tematizada por tantos artistas – dentro do qual cabe (por que não?) a observação ‘talvez não se saiba ainda o que é arte’71; ou seja, cada poética enfrentaria a reverberação caótica das incertezas como 70
José Gil indica de modo brilhante a condição sensível do olhar pós-duchampiano, mostrando que “o olhar implica uma atitude”: “como seria o corpo visível (…) se não fosse visto por outrem? (…) [S]e o vejo vendo, se o meu corpo se oferece à partida à vista de outrem, é porque o sei capaz de olhar – porque o meu olhar olhando-o olha o seu olhar. É o olhar que provoca a reflexão do visível: é preciso que o meu olhar se reflita no olhar do outro para que eu me veja nele e para que, ao mesmo tempo, nele veja um olhar outro. (…) olhar é antes do mais olhar um olhar. (…) A sua recepção é a sua emissão. (…) o olhar reflete o não-visível porque se desdobra ao mesmo tempo como emissor e receptor.” Gil pretende ultrapassar a fenomenologia de Merleau-Ponty em direção a uma metafenomenologia, que possa dar conta da experiência estética contemporânea (após Duchamp e Beuys): “O que é então a percepção da obra de arte? Nem um misto de prazer e cognição, nem um ato que visa um fenômeno particular, visível, e cuja descrição deverá recorrer necessariamente a conceitos clássicos da teoria do conhecimento; mas um tipo de ‘experiência’ que se caracteriza, precisamente, pela dissolução da percepção (tal como é tradicionalmente descrita). O espectador vê, primeiro, como espectador (ou sujeito percepcionante) para, depois, entrar num outro tipo de conexão (que não é uma ‘comunicação’) com o que vê, e que o faz ‘participar’ de um certo modo na obra. O que requer todo um outro campo de descrição: deste ‘participar’, desta ‘dissolução’ do sujeito, etc. Não convém pois falar em ‘percepção estética’, mas num outro tipo de ‘fenômenos’ ou de ‘acontecimentos’. É, de resto, pela idéia (deleuziana) de acontecimento que a metafenomenologia abre seu campo próprio.” José Gil, op. cit., pp. 17-18, 47-50. 71 Parafraseando Michel Foucault que, na referida conversa com Deleuze, comenta: “Esta dificuldade – nosso embaraço em encontrar as formas de luta adequadas – não virá de que ainda ignoramos o que é o poder? Afinal de contas, foi preciso esperar o século XIX para saber o que era exploração; mas talvez ainda não se saiba o que é o poder.” Gilles Deleuze (com Michel Foucault), op. cit., p. 270.
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situação produtiva, ao investigar os contornos de uma condição complexa. Para nós, importa ressaltar que o combate plástico discursivo se impõe de modo incontornável, apresentando um campo dentro do qual qualquer ação é já uma tomada de posição, intervenção em certo estado de coisas – é assim que é proposta a poética a partir da qual se desdobra a Tese. Compreende-se, assim, a importância da teoria de artista para organização de um repertório de ações em revezamento plástico-discursivo; mas, ainda, será a produção da teoria o objetivo da ação? Ou será esta (a teoria de artista) uma espécie de by-product, produto residual secundário da ação de construção da obra – ela sim, importante? É preciso tomar cuidado com as palavras para deixar claros os mecanismos da ação proposta: não haveria sentido na produção da teoria enquanto produto isolado, modalidade formal de prática discursiva – esta, como propomos, seria um gesto integrado ao sistema de revezamentos, conquistando seu brilho em relação direta com a obra plástica (elemento de sua elaboração), ou como ação de criação que se emancipa a partir de sua compreensão e funcionamento como propriamente obra de arte. Portanto, não haveria interesse na teoria como forma isolada (tal como Kandinsky a trabalhou, no início do século XX) – mas como prática discursiva de elaboração complexa em trama direta com a materialidade da obra. O jogo formal que nos interessa perseguir será sempre aquele em que a obra de arte é tangenciada e acaba por emergir – o jogo não é simples e requer diversos recursos – de modo que a teoria de artista, quando houver alguma, é constitutiva da obra, está ali, enquanto linha de fuga, fio a ser desdobrado e perseguido, a conduzir aos efeitos da intervenção pretendida. Estaremos então mais próximos do chamado escrito de artista, em sua formalização irredutível a qualquer outro formato ou gênero discursivo, plataforma de ação e produção de intensidade poética? (e) a presença deste texto como obra de arte não pode se perfazer enquanto um simples conjunto qualquer de instruções ou programa, indicando algum modo de funcionamento. Certamente que sua atuação nesta direção se dará por algum tipo de conexão ou articulação que ultrapassa a condição de discurso hipertrofiado Também Deleuze expressou indagação similar, ao nomear seu último livro (com Guattari) como O que é a filosofia?. Vale enfatizar que ambos os (três) pensadores valorizavam o aberto e o lado de fora.
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acerca de um conjunto de proposições artísticas que lhe servem de referência – haverá que obter, encontrar ou constituir alguma área de escape, ir de encontro a algo mais: pois, como se sabe (tal foi o palpite duchampiano, em meados do século passado, com seu “coeficiente artístico”72), o artista não detém por completo a construção do sentido de suas produções, cabendo ao outro (público, espectador, participante, leitor, …) a complementação deste verdadeiro processo em aberto. Algumas pistas do funcionamento pretendido, entretanto, devem ser encontradas na possibilidade deste texto funcionar em conjunto com a obra com a qual se relaciona, estabelecendo pontos de contato e canais de comunicação através dos quais a fluidez de um trânsito contínuo se constitui: será na intensidade destas idas e vindas – dentro e fora do texto e da obra, em mútuo atravessamento – que pode se formar algum corpus-extra, composto de enfrentamento plástico e leitura, com densidade outra que não a das matérias referenciais e deflagradoras do processo. Logo, se este texto apresentar-se como obra de arte, não o será senão a posteriori, depois, como um resto ou resíduo de sua leitura combinada ao enfrentamento direto ou indireto dos trabalhos a que se refere –; quando ou a qual momento tal processo irá se impor, quase como subjetividade-extra produzida por este dispositivo, é a rigor impossível (e desnecessário) prever: trata-se de processo a ser conquistado, impulsionado pela força do processo e pela experiência que se oferece em jogo, mobilizando engajamento e desejo. Em momento anterior, a mesma questão foi assim colocada: “As inter-relações entre o trabalho ‘ensaístico’ e o ‘artístico’ não são superficiais, certamente. É parte deste esforço [de escrita] tangenciar, de leve, os limites de ambos os campos, provocando algo mais do que um encontro, procurando estabelecer entre eles algumas poucas passagens. Dentro de uma ordem de exigências específicas, este também é um ‘texto de artista’ (...), no sentido de pretender enfrentar, inventivamente, um mesmo 72
“Na cadeia de relações que acompanham o ato de criação falta um elo. Esta falha que representa a inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção; esta diferença entre o que quis realizar e o que na verdade realizou é o ‘coeficiente artístico’ pessoal contido na sua obra de arte. (…) o ato criador não é realizado pelo artista sozinho (…).” Marcel Duchamp, “O ato criador”, in Gregory Battcock (Org.), A nova arte, São Paulo, Perspectiva, 2002, pp. 73-74.
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corpo de questões que a obra; entretanto, ele pode e deve, em certo sentido, ser lido completamente em separado dos trabalhos plásticos, uma vez que deve demarcar um terreno próprio de atuação, completamente diverso. A convergência entre as duas áreas, neste caso, deve ser construída a partir da presença dos contornos dos dois espaços, como ações autônomas, e só a partir daí – em outro esforço – estabelecer os fluxos, as fluências entre elas, em iluminações recíprocas.”73 O mérito da aventura – se colocarmos o problema no âmbito de uma conquista, a qual, sem a mobilização do núcleo do desejo, não se efetiva – entretanto depende de este conjunto de textos (Tese) saber se configurar de modo a proporcionar as múltiplas entradas, conexões e passagens apropriadas ao funcionamento proposto, oferecer algo próximo a uma metodologia ou pragmática, a partir do reconhecimento da importância de se recorrer ao sistema de revezamentos plástico-discursivos para não apenas indicar os contornos dos trabalhos de arte que estão em jogo, mas também traçar sua própria forma de ação. Reconhecer os riscos da empreitada não é motivo de recuo – mas, antes, traz a necessária atenção à dificuldade da própria operação de delineamento dos limites que articulam linguagens e visibilidades, tomada ela mesma (a operação, gesto, posicionamento) como a própria plataforma para lançar-se nas complicações advindas da utilização da linguagem por artistas. Robert Smithson mergulha com ênfase nesta prática de produção de tecidos (textus, coisa tecida, textura) de aspecto tridimensional para, de dentro mesmo do fazer, indicar peculiaridades desta modalidade de escrita que constituiria, por si só, um “museu da linguagem na vizinhança da arte”74: o texto de Smithson é fundamental em sua veemência particular, reivindicando uma espécie de mergulho cego em região sem contornos pré-definidos:
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R. Basbaum, op. cit., p. 20. Tradução do título do artigo que tomamos agora como referência: Robert Smithson, “A museum of language on the vicinity of art”, in Robert Smithson: The Collected Writings, Jack Flam (Ed.), University of California Press, 1996, pp. 78-94 (originalmente publicado em Art International, março 1968). 74
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“Nas ilusórias babéis da linguagem, um artista deve especificamente avançar para se perder e para intoxicar-se em sintaxes estonteantes, buscando peculiares interseções de sentido, estranhos corredores da história, ecos inesperados, humores desconhecidos ou vácuos de conhecimento… mas esta busca é arriscada, repleta de ficções sem-fundo e arquiteturas e contraarquiteturas sem-fim… no fim, se existe um final, estarão talvez apenas reverberações sem sentido. O que vem a seguir é uma estrutura especular construída de macro e micro ordenações, reflexões, Laputans75 críticos e perigosas escadarias de palavras – um trêmulo edifício de ficções que sustenta arranjos sintáticos invertidos… coerências que desaparecem em quasi-exatidões e princípios sublunares e translunares. Aqui, a linguagem ‘cobre’ mais do que ‘descobre’ seus locais e situações. Aqui, a linguagem ‘vela’ mais do que ‘revela’ aberturas para interpenetrações utilitárias e explicações. A linguagem destes artistas e críticos a que se refere este artigo se transforma em reflexões paradigmáticas, numa babel de espelhos fabricada de acordo com a observação de Pascal – ‘A natureza é uma esfera infinita, cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma’. Todo este artigo pode ser visto como uma variação desta observação demasiadamente mal utilizada; ou como um ‘museu monstruoso’ construído de superfícies multi-facetadas que se referem não a um, mas a múltiplos assuntos dentro de um bloco único de palavras – um tijolo = uma palavra, uma sentença = um quarto, um parágrafo = um andar inteiro, etc. Ou, a linguagem se torna um museu infinito, cujo centro está em toda parte e os limites em parte alguma.” Este parágrafo figura na abertura do artigo, no qual caracteriza a escrita de artistas como “infra-crítica”76 [infra-criticism], um deslocamento das margens ao centro – que afinal produz o que denomina “reverberações sem sentido”; pois mais importante 75
Laputan: que pertence a Laputa, a ilha dos filósofos de As viagens de Gulliver (1726) de Jonathan Swift; absurdo; não-prático; visionário; fantástico. Nota-se a origem espanhola (“la puta”) da expressão de Swift. 76 Smithson se refere diretamente a alguns artistas, dos quais traça pequenos perfis de como organizam a escrita e como se relacionam com o discurso ou fala (no caso de Andy Warhol). Os artistas mencionados são: Dan Flavin, Carl Andre, Robert Morris, Donald Judd, Sol LeWitt, Ad Reinhardt, Peter Hutchinson, Dan Graham, Andy Warhol, Edward Ruscha e Charles R. Knight.
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sem dúvida seria aqui apontar que existe a produção de algo em dinâmica particular, resultando em efeitos e movimento: ou seja, para a escrita de artista (e, em maior escala, a Künstlertheorie) vale como produção de valor não a coerência linearizante ou racional da sintaxe, mas as vibrações de um sentido que se produz no modo do risco, quando o artista se perde nos “corredores da história” ou em “vácuos de conhecimento”. Trata-se muito mais da produção de palavras que se antepõem às coisas (cobrem e velam) sem simplificá-las à luz da explicação, e que, logo, funcionam em direta articulação com as obras – em proximidade e articulação junto à busca poética que mobiliza a trajetória investigativa e exploratória de cada artista. É interessante observar que a massa de produção discursiva por artistas deve constituir seu próprio museu “monstruoso” e “multifacetado”, próximo, adjacente, vizinho à arte – mas outro edifício. O artista seria aquele que se relaciona com duas arquiteturas (“arquiteturas e contra-arquiteturas”), produzindo uma dupla intervenção no edifício do conhecimento – plástica e discursiva, sendo que este “trêmulo edifício de ficções que sustenta arranjos sintáticos invertidos” apenas adquire dinâmica própria no estabelecimento cuidadoso de suas relações com as obras ou mesmo em sua condição de funcionamento enquanto tal: daí o museu da linguagem – como quer Smithson – ser necessariamente vizinho da arte enquanto seu outro ou contramuseu. Mas, sobretudo, se o apetite discursivo dos artistas é convertido em museu, este se configura enquanto infinito e sem limites – e esta característica se torna mesmo a principal da condição de possibilidade de tal prática: pois não há como a articulação teoria-prática ser condicionada a priori, quando ela se dá em tão precisa e sensível proximidade entre as práticas visuais e discursivas, em constante combate recíproco; e é exatamente a medida de tal articulação que pode apontar os limites locais, regionais, de como se dá a operação textual. Estes “limites em parte alguma” (Smithson/Pascal) são constituídos a partir do deslocamento do “centro” impulsionador das poéticas – esse agregado verbivocovisual –, que está “em toda parte”, para o local da intervenção pretendida. De fato, uma aventura sem receituário prévio, mergulho no encadeamento das palavras em busca de que se perca o sentido habitual produzido na linearidade da sintaxe, apostando em reencontrá-lo na combinação e articulação conjunta plástico-discursiva.
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O ambiente dinâmico indicado por Robert Smithson não se constitui sem sua significativa constatação de que é necessário um rearranjo do componente ’ficcional’ – não apenas em direta relação com a prática discursiva mas sobretudo enquanto portador de possibilidades de deslocamento do artista. Smithson combate as oposições ficção x realismo e romantismo x materialismo, considerando-as incorretas, já que os termos em cada par “compartem ‘superfícies’ similares”: seria preciso, portanto, recuperar seus pontos de contato, sem os quais realismo e materialismo, por exemplo, permanecerão prisioneiros de uma estrita racionalidade que impediria “a estética de ajustar-se com o local da ficção em todas as artes”, resgatando-a assim (a ficção) de seu aprisionamento na literatura, como quer o senso-comum. Smithson propõe um duplo deslocamento: por um lado, arrancar a “ficção” de seu resguardo estritamente literário, propagando-a por todos os outros campos expressivos; e, por outro, afirmar a importância das coisas ‘naturais’ e das pequenas “fatias de vida” [slices of life] cotidianas, perdidas no racionalismo realista que afinal reforça a clivagem entre esfera estética e campo da vida – quando “arte compete com a vida e estética é substituída por imperativos racionais” ocorre este empobrecimento de possibilidades, onde “se acredita que a ficção não seja parte do mundo”; e aí, diagnostica Smithson, “o status da ficção [desaparece] dentro da mitologia do fato”. Logo, há um claro posicionamento no sentido de buscar uma ampla liberação do ficcional como camada constitutiva do real do mundo, ferramenta operacional para qualquer operação de intervenção – pois é isso que importa: agregar maiores e mais consistentes possibilidades ao artista para a ação sobre o mundo. É sobretudo a possibilidade da ficção de quebrar a temporalidade linear da história que interessa Smithson, pois assim pode deslocar-se de maneira direta entre os extremos da “pré-história” e da “pós-história” sem que seja forçado a abandonar o presente, uma vez que ambos “fazem parte da mesma consciência do tempo”: a componente discursiva é tratada por Smithson como elemento de alta potência, portador de uma liberação de fluxos temporais – é a ficção que, arrancada da literatura e expandida pelo mundo, contribui para que se abram diversos tempos na clausura de uma certa pequena história dos encadeamentos, alheia à força do dispositivo poético. Estaria próximo assim do tempo como Devir, que Deleuze procura liberar frente à História, segundo indica Peter Pál Pelbart:
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“O devir é uma antimemória, uma anti-história. Ele não desliza segundo os pontos de origem, coordenadas ou medidas, mas cria suas próprias coordenadas, sua transversal, sua errância, seus ‘blocos de esquecimento’, sua flutuação ou embriaguez, suas derivas ou linhas de fuga. (…) Os devires só são pensáveis em meio a uma multiplicidade, e o seu tempo é função dessa multiplicidade. (…) sob a História (…) Deleuze detecta e constrói uma outra maquínica temporal, anti-historicista, coextensiva à multiplicidade substantiva e aos processos que nela operam (…).”77 A fundamental contribuição de Robert Smithson é mostrar como a produção discursiva, quando articulada em sua força conjunta com a construção plásticovisual, faz irromper pulsações e fluxos temporais que conduzem o duplo agregado visual-verbal em direção a um horizonte de efeitos que seriam propriamente aqueles da obra de arte. Seja através da construção de um contra-museu da linguagem e de um museu da arte, ou vice-versa, Smithson busca, como Deleuze, o lugar entre os dois lugares, a linha “diagonal”, “transversal”: “é o que tenta fazer todo o artista ou filósofo, por mais que elabore um sistema pontual como uma espécie de trampolim necessário para dele escapar”.78 Talvez este modelo seja o mais próximo já desenvolvido por um artista para que se possa ter a escrita, o texto como obra de arte, integrando portanto a Künstlertheorie enquanto elemento que não mais se distingue em nítido contorno dentro do conjunto duplamente articulado, bifacetado, bi-forme do trabalho do artista contemporâneo.
77
Peter Pál Pelbart, O tempo não-reconciliado – imagens do tempo em Deleuze, São Paulo, Perspectiva, 2004, 110-118. 78 P. P. Pelbart, op.cit., p. 110.
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B
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B: 5 diagramas, extração conceitual Até aqui este corpo discursivo tem procurado preparar um caminho, construir uma possibilidade de ação, precipitar uma conduta – indicar um processo particular para validação da ambiciosa operação de construção da singular situação em que trabalho de arte e operação discursiva compõem em conjunto aquele outro lugar produtivo, conciso, intenso, do qual se espera saltar para a multiplicidade de outros processos, recebidos ‘em aberto’ como prolongamento do mesmo emaranhado de fios que tecem e traçam uma e outra camada: este lugar outro, construído pelo texto como obra de arte, seria sempre o mesmo a ser desdobrado em cada uma das modalidades em que se cristaliza (obra plástica, discurso, texto como obra, etc.), já que o que importa seria funcionar sempre em tal sistema de revezamentos plásticodiscursivos: produzir vibrações, trazer conexões e passagens, franquear o trânsito de componentes ficcionais, mostrar as contaminações recíprocas. Neste caso, o que se pretende é tornar presente tal teia tecida em torno da proposta de trabalho Você gostaria de participar de uma experiência artística? – a qual se viabiliza a partir da costura específica entre visualidade e texto, percebida como condição estruturante mesma do campo em que se propõe mover-se, o qual se quer deslocar (a arte contemporânea, o pensamento contemporâneo). Para iniciar aqui tal passagem – ou seja, começar um deslocamento que conduza o discurso para junto da obra (para que se perceba melhor o lugar que se está a ocupar –, remeto aqui diretamente ao diagrama, como elemento gráfico capaz de mediar as conexões entre os espaços plástico e discursivo, a partir de sua habilidade agregar texto e imagem (linhas e palavras) em configuração própria, portadora de processos e relações. De modo geral, um diagrama pode ser visto como um tipo de esquema visual, utilizado para explicar ou ilustrar uma declaração, teorema, ou teoria, o funcionamento do mecanismo de uma máquina, uma instalação hidráulica ou elétrica, uma estrutura matemática ou topológica, um processo orgânico, etc. Um diagrama sempre junta palavras e imagens,
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utilizando recursos gráficos para criar um dispositivo visual: linhas, formas, letras, palavras, símbolos, setas, pontos, planos, etc. são aplicados a uma superfície de modo a representar relacionamentos e propriedades de estruturas dadas. Todo diagrama propõe um tipo particular de espaço (matemático, topológico, sociológico, filosófico, psicológico, geográfico, biológico...), determinando uma temporalidade específica, de acordo com o processo que tenciona representar. Assim, cada diagrama constitui uma estrutura espacial e temporal diferenciada, funcionando como um mediador entre o processo real descrito ou proposto e o campo conceitual que o suporta e lhe fornece consistência, de acordo com a área do conhecimento com o qual se relaciona.79 Trata-se de recurso utilizado nos mais diversos campos de conhecimento e pesquisa – filosófico, artístico, científico, técnico, etc.: muitos livros e ensaios estampam digramas dos mais variados formatos –, freqüentemente indicando a necessidade de combinar a abordagem verbal de determinado assunto com uma possibilidade de visualização que se impõe em algum momento. Está em jogo tanto uma insuficiência da escrita linear em prover certo acesso ao núcleo de sentido que se quer mobilizar, como a abertura para séries de relações próprias das formulações visuais que incidem então na discussão, no momento mesmo de visualização do diagrama. Trabalhar com diagramas torna-se mais interessante a partir do momento em que é possível percebê-los além das categorias de uma semiótica ‘dura’ – para quem o diagrama é um dos casos do “hipoícone” – uma vez que estas estão ainda presas à necessidade de uma referência à presença anterior do objeto e a um compromisso com o campo da representação, como se o diagrama só pudesse ser pensado em função de sua eficiência em apresentar relações pressupostas e pré-existentes entre as coisas, e nunca a partir de
79
R. Basbaum, op. cit., p. 61. Refiro-me diretamente aqui ao capítulo “Diagramas e processos de transformação” (pp. 61-79), em que o diagrama não é tomado como signo, à maneira de Peirce, mas como conceito, em proximidade com o trabalho de Deleuze e Guattari. As próximas citações referemse diretamente a este capítulo.
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sua eficiência construtiva de poder constituir-se enquanto mapa das relações produzidas no processo de proximidade máxima da experiência.80 E tal avanço foi possível quando o diagrama vem a se apresentar como “conceito”, estabelecendo redes de conexão e ressonância com outros termos homólogos, tornando-se participante de um campo operacional voltado a processos de transformação – estando aí presentes a flexibilidade, velocidade e dinâmica necessárias para tal tarefa. A partir deste momento, Traçar um diagrama é operar, dentro de uma rede conceitual, um dispositivo composto de imagens e palavras, que irá funcionar junto com outros conceitos. (...) [O] diagrama como conceito é um dispositivo que indica a ocorrência de um processo especial em um momento específico; o processo implica uma conexão instantânea entre pelo menos duas realidades disjuntivas
heterogêneas
(matéria/função,
conteúdo/expressão,
enunciados/visibilidades, palavras/imagens...) e a conseqüente produção de real com instauração de novas semióticas, isto é, um novo agenciamento compreendendo pensamento, objetos, gestos. Ver/ler um diagrama é ser capaz de experienciar esse agenciamento enquanto um processo de transformação, envolvendo o desejo como força produtiva, com a constituição de uma superfície de registro da intensidade da experiência; isto inclui a metamorfose em um novo sujeito como possível resultado desse processo.81 Quando (em 1994) adotei a prática de trabalhar no desenho e concepção de diagramas, procurando sempre articular de modo interessante linhas e palavras no estabelecimento de contato com as circunstâncias em jogo no desenvolvimento de cada projeto, estava claro que teria os diagramas “como ferramentas de produção de pensamento – e não simples dispositivo para a apresentação de relações prédeterminadas”; ou seja, instrumento em busca da “espacialidade própria da articulação texto/imagem, o lugar em que as matérias da visualidade e do
80 81
R. Basbaum, op. cit., p. 66. R. Basbaum, op. cit., p. 75.
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pensamento estabelecem um (necessariamente) dinâmico encontro produtivo”.82 Assim, procurei desenhar diagramas como elementos integrados a projetos variados (instalações, ações, performances, textos, propostas de trabalho, etc.), utilizando-os ao mesmo tempo como elemento plástico-estético e objeto de ligação entre as camadas textual-discursivas – sejam textos imediatamente presentes para leitura no aqui e agora do contato com a obra de arte, sejam textos latentes na forma de redes de conceitos em operação, ‘nuvens de história’83 que se insinuam no espaço ou na incitação do espectador-fruidor à fala. Trata-se de ter o diagrama em duplo uso: voltado para si na proposição de uma experiência estética envolvente – a qual investe em uma poética além da pureza visual; definido como ferramenta conceitual a operar rumo às dimensões exteriorizantes e camadas conceituais que agregam dimensões discursivas. Tal como foi proposto em texto recente, que aqui reproduzo: Tenho trabalhado com diagramas, utilizando-os como ferramenta de ação em duas direções básicas: (1) Sempre composto de linhas e palavras, o diagrama é uma modalidade de desenho (ou poema visual) que media o fluxo dinâmico entre palavras e imagens – espaços discursivos e não-discursivos –, espaços literários e plásticos, etc. Em um primeiro momento, pode ser abordado exclusivamente enquanto elemento estético autônomo, na medida em que as linhas e palavras cuidadosamente interconectadas em sua superfície satisfazem o olho indicando movimento, vibração e velocidade. Além disso, seu fundo 82
R. Basbaum, op. cit., p. 79. Indicando como os diversos encadeamentos entre trabalhos de arte de diferentes épocas se materializam de forma não-linear qual nuvens, que se fazem presentes naquele espaço, no contato direto com a obra. Deve-se ter em mente, entretanto, a necessária crítica a uma historiografia linear hegemônica que insiste em ver apenas estes encadeamentos (autonomia pura e absoluta da obra), sem perceber as outras séries de remissões que conduzem diretamente para o lado de fora da obra de arte (autonomia parcial e dinâmica). Estamos aqui em contato direto com o que Peter Pál Pelbart chama de “nuvem não-histórica”: “Deleuze cita Nietzsche, para lembrar que o Intempestivo é fruto de uma nuvem não-histórica”, que significa para Nietzsche “um grau de ilusão, de cegueira, de parcialidade, de horizonte restrito, de ignorância, de esquecimento, ou seja, de mistério, todo esse envoltório necessário para que o tempo se incline inteiro diante do instante da vida, nutrindo sua irrefreável paixão, credulidade, determinação, ousadia, amor por aquilo que está por vir, bem como sua injustiça e impiedade em relação ao que já existe ou o que existia anteriormente.” Peter Pál Pelbart, “Deleuze, um pensador intempestivo”, in Daniel Lins, Sylvio de Souza Gadelha e Alexandre Veras (Orgs.), Nietzsche e Deleuze - intensidade e paixão, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p. 70. 83
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monocromático – que constrói referência a um importante elemento do vocabulário da pintura moderna – pretende tanto relacionar o diagrama à arquitetura do local quanto propor um espaço sensorial intensivo que envolve de modo ativo o espectador/leitor (visitante, observador, etc.). Mas, logo o espectador/leitor é capturado pela sensação de que o diagrama o está enviando a algum outro lugar: ‘deve haver alguma experiência real a partir da qual os diagramas se desdobram; qual a teoria por trás do diagrama?’ (as respostas são ‘não há; não existe atrás’). Este efeito diagrama quer indicar que os trabalhos de arte não devem se constituir com um fim absoluto em si mesmos (autonomia absoluta), mas produzir conexões concretas (reais) com seu lado de fora: esta voracidade conectiva – sempre apontando para relações que estão ali fora (isto é, externas) – indica que o êxtase sensorial é agora alcançado como o próximo link ou conexão e não através de sensações puramente estéticas. Aqui, desenhar é propor relações, construir rede ou rizoma, conectar proximidade e distância: através de um impulso ativo que leva você através de passagens, membranas e conexões, produzse valor. (2) Os diagramas são ferramentas conectivas e portanto desempenham um papel mediador entre diversos elementos – suas raízes no conceitualismo encontram-se ‘logo aqui’: existem sempre camadas ‘invisíveis’ delimitando cada situação concreta, cada nova proposição ou instalação, abrindo janelas e portões para o lado de fora. Muitas vezes, tomo os diagramas como ferramenta para conectar minha prática como artista a outros papéis no sistema de arte – escritor, crítico, curador, agente – partindo da composição monocromática visual/verbal para estabelecer diálogos com o outro (‘sim, o diagrama compartilha uma condição dialógica implícita’). Seja, por exemplo, ocupando a posição do artista-curador (artista-crítico, etc.) ou discutindo a linha curatorial da própria exposição em que o diagrama está sendo exibido. Aprecio a seguinte proposição: ‘a crítica de arte como forma privilegiada de ficção contemporânea’. Neste sentido, é sempre interessante olhar através dos diagramas em busca das camadas de ficção potencialmente implícitas –
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logo, cada diagrama aponta para diferentes tramas e complôs, tal qual roteiros para filmes ainda-por-fazer. Se a maioria dos diagramas é desenhada a partir dos pronomes eu e você, o principal motivo não é simplesmente convidar você e eu para desempenhar partes específicas da ação, mas enfatizar a presença de uma força rítmica (música, em sentido amplo) como o principal impulso coordenando a combinação verbal/visual. 84 Ou seja, através da elaboração de diagramas, em diversos momentos, tenho trabalhado no sentido de ocupar de maneira ativa a região – sempre efêmera – das passagens entre realidades plásticas e discursivas. Nos termos do desenvolvimento desta Tese, é importante apontar ainda a operacionalidade do diagrama junto à Künstlertheorie – em que medida, afinal, contribui na evidenciação desta dupla articulação, implícita nos gestos de intervenção no campo da arte contemporânea, concretizando a prática de revezamentos plástico-discursivos. De fato, a maneira como estamos abordando a teoria de artista não a identifica como um corpo teórico – um opus qualquer – a reluzir em separado sobre a mesa, com formalização à parte da construção plástico-sensível-visual: em tal formato, muito deste problema estaria resolvido, pois os territórios identificados com prática e teoria não desenvolveriam frentes comuns, interfaces e zonas de contato que multiplicam e complicam trocas e passagens. Ao contrário, o risco que aqui se assume é o de ter a teoria de artista como algo que se cristaliza nas regiões intermediárias entre obra e campo discursivo – sem esquecer a turbulenta realidade permeada pelo “combate e captura” apontado por Foucault – e que, portanto, implica em formulação difícil, quase impossível: tal teoria se concretizaria sempre parcialmente, aos pedaços, em fulgurações intermitentes e efêmeras a fluir naqueles momentos em que a atividade em torno do agregado obra-discurso é intensa. É fácil passar ao longo de tal acontecimento, sem nada perceber; como é também muitas vezes fruto do acaso fortuito a força singular de um encontro; ou mesmo a intensidade acumulada, construída no passo-a-passo do envolvimento, pode conduzir ao lugar em que esta formulação se impõe. Isto porque uma teoria de artista – os contornos da Künstlertheorie como produto do fazer teórico-prático – não existe como construção independente da obra de arte – e, 84
Ricardo Basbaum, “Diagrams”, in Casco Issues X, The great method, Emily Pethick e Peio Aguirre (Eds.), Utrecht, Casco - Office for Art, Design and Theory, Frankfurt, Revolver, 2007, pp. 91-92.
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como tal, somente pode funcionar (isto é, produzir efeitos, constituir campo próprio) quando se conquista a possibilidade de construir tal encadeamento em modo perceptivo: a teoria de artista não se materializa enquanto objeto à parte; a teoria de artista é formada a partir do jogo duplo das idas e vindas entre obra de arte e discurso, resultando deste processo de busca e investigação, entrelaçamento e construção. É preciso um duplo trabalho – ler e ver, ver e ler, sucessiva e fragmentariamente – e um trabalho em dupla –; espectador/leitor e artista, em desafios respectivos e despistamentos recíprocos, acordarão a possibilidade fugaz de um encontro em que as invenções plásticas e discursivas reforçam esse local, de um evento, acontecimento: a Künstlertheorie é efetivamente o lugar em que se multiplicam questões e efeitos, abrem-se possibilidades de que o gesto inicial faça rede, rizoma – resistência e reforço, produção de pensamento. Não sendo objeto, é da ordem do espaço, em suas várias implicações – mas sobretudo o lugar a partir do qual a obra de arte é articulada discursivamente, configurando um tipo de agregado plástico-discursivo de densidade própria, massa ou amálgama; processual, informe85.
“Informe” não no sentido de ‘abjeto’ mas, como escreve Rosalind Krauss – em contato direto com Bataille –, “como um processo de ‘alteração’, no qual não existem termos essenciais ou fixos mas somente energias dentro de um campo de forças, energias que, por exemplo, operam nas mesmas palavras que marcam os pólos deste campo, de maneira tal que os impossibilita de sustentar firmemente os termos de qualquer oposição.” Rosalind E. Krauss, “The destiny of the informe”, in Yve-Alain Bois e Rosalind E. Krauss, Formless – A User’s Guide, New York, Zone Books, 1997, p. 245. Em relação à definição de Bataille, nos interessa destacar a ausência de formalização a priori da Künstlertheorie, configurando-se sempre como efeito processual de um espaço a conquistar, fugaz e intermitente, constituído nos interstícios das ações prático-teóricas em tarefa plástico-discursiva. Segue a formulação de Georges Bataille (em livre tradução): “Informe - Um dicionário começaria a partir do momento em que não mais fornecesse o sentido das palavras, mas suas tarefas. Assim, informe não é apenas um adjetivo possuindo tal sentido, mas um termo que serve para desclassificar, geralmente exigindo que cada coisa tenha sua forma. Aquilo que designa não possui direitos em qualquer sentido, e se faz esmagar em toda parte como uma aranha ou um verme. Com efeito, para que os homens acadêmicos fiquem contentes, seria necessário que o universo adquirisse forma. A filosofia como um todo não possui outro objetivo: trata-se de fornecer uma beca àquilo que é, uma beca matemática. Por outro lado, afirmar que o universo não se parece com nada e que é apenas informe equivale a dizer que o universo é alguma coisa como uma aranha ou um escarro.” [“Un dictionnaire commencerait à partir du moment où il ne donnerait plus le sens mais les besognes des mots. Ainsi informe n’est pas seulement un adjectif ayant tel sens mais un terme servant à déclasser, exigeant généralement que chaque chose ait sa forme. Ce qu’il désigne n’a ses droits dans aucun sens et se fait écraser partout comme une araignée ou un ver de terre. Il faudrait en effect, pour que les hommes académiques soient contents, que l’univers prenne forme. La philosophie entière n’a pas d’autre but: il s’agit de donner une redingote à ce qui est, une redingote mathématique. Par contre affirmer que l’univers ne ressemble a rien et n’est qu’informe revient à dire que l’univers est quelque chose comme une araignée ou un crachat.”] Georges Bataille, “Dictionnaire”, in Documents, nº 7, décembre 1929, p. 382. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb34421975n/date. 85
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Assim, se nos deslocarmos agora para um grupo mais específico e concreto de diagramas – aqueles desenvolvidos dentro do âmbito do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? – teria início um desvio de percurso que implicará em acrescer este texto hipertrofiado de aspectos diretos da presença de elementos de funcionamento da dimensão plástica-sensível que aqui se debate e implementa. Partimos diretamente do diagrama que acompanha o referido projeto desde seu início, em 1994. Tratou-se, então, de prover Você gostaria…? de um elemento diagramático – mapa, roteiro, registro – que pudesse articular em conjunto as várias etapas a serem desenvolvidas, apresentando seus desdobramentos e ao mesmo tempo acolhendo inflexões, deflexões e reviravoltas. Se quando o projeto apenas começava, o diagrama do projeto se mostrou idealizado ao propor as etapas de algo ainda a se desdobrar, sua configuração atualizada traz os traços de um percurso que sobretudo submeteu o diagrama aos termos do que foi efetivamente realizado,
exibindo
etapas
concretas,
indicando
outros
projetos
e
textos
desenvolvidos em paralelo e agregando necessárias observações que localizam o projeto em relação a seu próprio percurso e a um conjunto mais amplo de realizações dentro de meu próprio trabalho. Temos assim um conjunto de diagramas que indicam, de modo acumulativo, diferentes momentos de um percurso, deixando frestas para possibilidades futuras: estão ali demarcadas sucessivas camadas temporais que contém tanto o percurso idealizado como aquele efetivamente realizado, comentários pontuais acerca de alguns tópicos significativos, referências conceituais internas, diálogo com outros projetos realizados em paralelo, informações sobre número de experiências e cidades percorridas; e, sobretudo, o diagrama tem como condição permanecer em aberto para acréscimos e atualizações ainda por vir. É importante que se registre desde já que de 1994 a 2008 foram produzidos quatro diferentes diagramas dentro do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?: Fig. 76-80 o primeiro diagrama (diagrama 01) surgiu na ocasião da apresentação inicial do projeto86 – ao ser trazido a público, o diagrama 86
Este diagrama, realizado originalmente em inglês como monotipia sobre placas de alumínio, foi mostrado nas seguintes exposições – que perfazem um conjunto que considero como o circuito de apresentação inicial de Você gostaria de participar de uma experiência artística?, incluindo ainda o
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01 limitava-se a apresentar as principais etapas e conceitos envolvidos, orientandose por certa idealização para o que se considerava importante ocorrer no âmbito do projeto, mantendo-se porém em aberto para o que poderia vir a se constituir como desvios ou derivações dos caminhos iniciais. Em seguida, o diagrama 02, produzido em 200687, significou uma primeira atualização do diagrama inicial, procurando contabilizar diversas ocorrências do longo período (1994-2006) em que o projeto Você gostaria…? foi construindo seu percurso; além disso, já se fazia indicar ali a mudança de escala em curso para o projeto, decorrente de sua iminente participação na documenta 12 – daí o esforço em se demarcar um salto estrutural qualitativo. Este diagrama torna-se assim importante por indicar de maneira clara como se dá o procedimento interno de sua atualização: sem alterar qualquer dos elementos (linhas e palavras) do diagrama inicial, os comentários e atualizações são acrescentados ao que já existe, produzindo um novo diagrama que se superpõe ao primeiro pela presença de elementos novos que irão ali atuar em camadas sucessivas, por acumulação – assim, o que é acrescentado não provoca apagamento ou aniquilação da primeira camada, mas funciona por enredamento sucessivo, na intenção de que os novos elementos recondicionem o sentido inicial, sem contudo eliminá-lo da superfície do diagrama: reforça-se então a condição do diagrama como dispositivo que necessariamente atua em várias direções ao mesmo tempo, fugindo de um sentido unívoco cristalizado em bloco e aproximando-o de um encadeamento conceitual em camadas, no qual a mais recente não recobre a anterior de maneira absoluta e em que o núcleo inicial mais profundo continua a pulsar na superfície, em direta proximidade com o atual, tornando-se igualmente presente. Se, então, a passagem do diagrama 01 para o diagrama 02 indicou um grande salto de atualização, implicando no surgimento de novos blocos de sentido em seu desenho geral, o diagrama 03, desenhado a seguir, manteve a mesma estrutura do diagrama anterior, com o acréscimo de comentários específicos – objeto em aço pintado e um display com folhetos para distribuição ao público: “Degree show”, Goldsmiths College, Londres, 1994; “Escultura Carioca”, Paço Imperial, Rio de Janeiro, 1994; "projeto NBP + 4 manifestos", Galeria de Arte e Pesquisa, UFES, Vitória, 1995 [exposição individual]; Você gostaria de participar de uma experiência artística?, Espaço Cultural 508 Sul, Brasília, 1997 [exposição individual]. 87 diagrama 02, impresso em lona, foi exibido nas mostras “Paralela 2006”, Ibirapuera, São Paulo, 2006 e Você gostaria de participar de uma experiência artística?, Museu Histórico de Santa Catarina, Florianópolis, 2006 [exposição individual].
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tratou-se de mais uma atualização com finalidade de acomodar o projeto para participação efetiva de Você gostaria de participar de uma experiência artística? na documenta 1288: era necessário naquele momento fornecer uma visão ampla do percurso de trabalho, apontando para sua estrutura e desdobramentos, e assinalando os flancos em aberto para se perceber a produção de novas questões. Por fim, uma quarta versão, o “diagrama 4”, foi realizada já em 200889, incorporando algumas observações decorrentes da experiência na documenta 12 e preparando o diagrama para novos passos que poderão se seguir daqui para a frente – uma vez que o projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? enfrenta agora demanda proveniente de uma projeção em escala mais abrangente e precisa preocupar-se, ao mesmo tempo, com os caminhos para onde apontar e com as indicações que não franqueariam inflexões de interesse. Logo, deve ficar claro que estamos aqui trabalhando com uma seqüência de quatro diagramas (01 a 04), frente aos quais nos interessa perceber os detalhes de sua construção/composição para enfim mobilizar a configuração mais atual (diagrama 04): afinal, trata-se de o mesmo diagrama, tornado outro pelo acréscimo de camadas de complexidade90, dotando-o de um funcionamento em ritmo processual fundamental – dentro do leque de questões propostos por esta Tese – na construção do percurso que conduz ao local das articulações obra/discurso. Cabe agora, com alguma brevidade mas atento a detalhes, acumular aqui um conjunto de observações mais acuradas acerca destes quatro diagramas – para em seguida mobilizá-los – em sua versão mais atual – no âmbito direto das proposições deste texto. diagrama 01: como já foi assinalado aqui, este diagrama foi produzido ainda no início do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, como parte diretamente integrante de seus elementos iniciais. Assim, ao ser lançado – ou 88
A instalação exibida na documenta 12, Kassel, 2007, era composta de diagrama, painel com texto, e estrutura arquitetônico-escultórica – sob o título de Would you like to participate in an artistic experience?. Uma descrição mais apurada da instalação poderá ser encontrada no capítulo seguinte desta Tese. 89 “diagrama 4” integra as mostras “Quase líqüido”, Itaú Cultural, São Paulo, 2008 e “Estratégia”, Plymouth Arts Centre, Plymouth, 2008. 90 “A questão da complexidade é prática: ela se coloca quando um encontro ‘empírico’ (…) impõe um novo questionamento do poder atribuído a um conceito e atualiza uma dimensão da interrogação prática que tal conceito ocultava.” Isabelle Stengers, Quem tem medo da ciência? Ciências e poderes, São Paulo, Siciliano, 1990, p. 171.
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seja, exibido em público pela primeira vez –, Você gostaria...? trouxe como um de seus protagonistas o diagrama, ao lado do objeto e do folheto de instruções para participação. É possível perceber hoje que estes três elementos (diagrama, objeto, instruções) seguem como operadores principais de Você gostaria…? – constituindose como veículos básicos para seu funcionamento e atualização, sendo necessariamente reprocessados continuamente: o objeto, através de seus usuários, participantes do projeto; as instruções, por meio da readequação de sua diagramação e texto; o diagrama, como já dissemos, pelo acréscimo de elementos e camadas em enredamento conceitual sucessivo. Torna-se importante tornar mais próxima a organização deste primeiro diagrama, uma vez que estão ali marcadas algumas das áreas constituintes do projeto em suas delineações principais, assim como uma seqüência de eventos que indica etapas de sua efetuação. O diagrama 01 propõe oito etapas, compreendendo (1) a presença inicial do objeto, (2) sua oferta em público, (3) o perfil do participante e tempo de participação, (4) (5) a realização da experiência e seu registro, (6) a relação do artista frente às participações, (7) a apresentação final do projeto e (8) os efeitos da transformação pretendida sobre espectador, artista e próprio projeto. Há um cenário assim desenhado que deixa claras algumas ênfases que se considerou importantes para que Você gostaria…? pudesse ser deflagrado: era importante deixar claro que o objeto proposto para as experiências não se reduzia às suas características materiais, sendo composto também de uma dimensão conceitual; seria preciso ir de encontro a um público ou audiência para construir o interesse necessário que conduzisse às participações; estas, se dariam não apenas com a utilização do objeto físico, mas também de sua dimensão conceitual, pois somente assim se poderia empreender alguma transformação a partir da hibridização do espectador participante com o objeto e seus conceitos; seria importante que as experiências fossem registradas pelos próprios participantes; o artista de algum modo deveria reagir aos registros das experiências, que constituem o arquivo do projeto; deveria haver algum forma de apresentação dos resultados (das experiências e seu arquivo), relacionada aos espaços do circuito de arte; estes resultados seriam levados em conta sob a perspectiva aguda de implicar em efeitos de transformação e problematização também em relação ao artista e o projeto, e não somente em
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referência ao participante. É preciso deixar claro que o que singulariza o diagrama 01, sobretudo, é seu caráter prospectivo – pois, afinal o projeto Você gostaria…? estava sendo apresentado como algo a ocorrer, ainda a ser testado em sua operacionalidade e funcionamento: o projeto despertaria interesse, atrairia participantes, produziria resultados e efeitos? Nesse sentido, se, por um lado, as etapas propostas e suas descrições explicitadas nos diagramas se colocam como de certo modo ‘idealizadas’ – no sentido de ainda não possuírem o enfrentamento junto à realidade de viabilização do projeto frente à pragmática do mundo –, por outro, estas demarcações funcionam também como programa, no sentido de inscreverem já, desde esta etapa primeira, certos posicionamentos referenciais que guiarão de modo pulsante e fluido os desdobramentos que se irão se apresentar, mantendo espaços para que se renove e se adapte às situações que enfrentará. Em termos gerais – que serão ainda tomados mais à frente em maior minúcia – trata-se de trabalhar certos núcleos de sentido como deflagradores de todo o processo articulado pelo projeto: as presenças da obra de arte (objeto + conceitos), espectador participante (produtor da experiência em relação intensiva com a obra) e artista (organizando o arquivo e reagindo aos ‘resultados’); a tematização dos espaços e formas de contato entre obra, espectador e circuito de arte (enquanto espaço público de circulação e de exibição); o eixo conceitual processual a articular o conjunto (transformação). Cabe por fim destacar desde já um elemento particular do diagrama – indicador em grande medida da disponibilidade apresentada (pelo diagrama, mas também pelo projeto Você gostaria…?, de modo amplo) em incorporar e sobretudo oferecer espaço para comentários e atualizações sucessivas, pequenas contradições e desvios, aceitos como matéria concreta do trabalho. Refiro-me à última etapa, de nº 8, em que é apresentada a frase “O que acontecerá com: o projeto NBP? o espectador? o artista?”
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Esta tripla pergunta, envolvendo obra, espectador e artista, reverbera diretamente a pergunta que nomeia o projeto: você gostaria de participar de uma experiência artística? – trata-se então de formular “pergunta dentro de pergunta”91, a qual é lançada no diagrama em referência ao momento em que o processo desenvolvido pelo projeto deve ser percebido, pensado e reprocessado por seus protagonistas, cada qual a seu modo ao mesmo tempo sujeito e objeto das ações. Ao finalizar o percurso de suas diferentes etapas em um conjunto de ‘pontos de interrogação’, o diagrama aponta para sua própria continuidade, ao deixar em aberto as conexões com obra, artista e espectador: logo, estas interrogações indicam conexões em aberto, extremidades prontas a “fazer rede ou rizoma” com o que virá a seguir, fruto do próprio processo – aberturas para assimilação do que está por vir. Trata-se de verdadeiro limiar de risco do diagrama, pois afinal o horizonte para o qual aponta poderia ser aquele das respostas e não o das problematizações: seria este então o caso de um encerramento absoluto do projeto, com satisfação das inquietudes trazidas à superfície. Assim, é fundamental que esta tripla interrogação seja compreendida – e mais do que isso, trabalhada nesta direção – como conexões em aberto, acolhendo com característica voracidade os efeitos produzidos pelas maquinações do projeto. O qual mostra-se, desde o início, interessado e afim à dinâmica que ele mesmo produz – buscando complexificar-se e alimentar-se dos desvios produzidos –, receptivo à alteridade das problematizações contínuas. diagrama 02: Este segundo diagrama se caracteriza por um forte salto em relação ao diagrama 01, com a inclusão de novos elementos que o envolvem, sem contudo apagá-lo: o diagrama inicial é mantido intacto em seu interior, sendo portanto conservadas as etapas e considerações apontadas acima, quanto às linhas de funcionamento do projeto. Os acréscimos somam novos conjuntos de linhas e palavras, que foram situados no diagrama junto a tópicos que necessitavam ser comentados em função do efetivo desdobramento do projeto no período 1994-2006 – ou seja, entre o planejamento do diagrama 01 como programa prospectivo (1994) e uma sua primeira atualização (2006) em face aos acontecimentos trazidos pelo 91
Cf. Ricardo Basbaum, "(?)? (Pergunta dentro de pergunta)", Arte & Ensaios, nº 7, Rio de Janeiro, 2000, pp. 115-119. Este texto foi apresentado originalmente em palestra realizada no Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho (Castelinho do Flamengo), no Rio de Janeiro, em 29/01/96. V. Anexo Textos
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período subseqüente de desenvolvimento. Por um lado, são acrescentadas informações através de novos elementos factuais que tornam o diagrama um painel de registro do ocorrido neste intervalo de tempo; por outro, são expandidos elementos conceituais do projeto Você gostaria…?, estabelecendo um diálogo maior entre outros trabalhos e projetos realizados no período; e, ainda, certas passagens pontuais em etapas precisas ganham comentários que indicam diferenças entre linhas de projeto e linhas de efetiva realização. Assim, enquanto dados que requererão daí para adiante atualização constante, figuram no diagrama 02 a listagem das cidades por onde passou o objeto; o número de experiências realizadas até então; a indicação de que vinte novos objetos estavam sendo produzidos para entrar em circulação (apontando já para a documenta 12, a ocorrer em 2007) – vale dizer que estes índices e listagens constam também do website do projeto que estava sendo lançado praticamente no mesmo período (setembro de 2006). Ocorre então que os diagramas passam a exibir em sua trama números e indicadores que imediatamente trazem informações do estado atual do projeto – entretanto, esses dados não assumem posicionamento ostensivo no conjunto do desenho, evitando que seja descaracterizado enquanto mero painel informativo. Junto à etapa 1 do diagrama, estão situados dois novos grupos de elementos, cuja presença é significativa – ambos estão associados, no diagrama, ao objeto (“objeto + conceitos”), personagem principal de Você gostaria de participar de uma experiência artística?, parte do projeto NBP - Novas Bases para a Personalidade: lêse primeiramente um conjunto de termos composto de títulos de instalações, ações e séries de trabalhos desenvolvidos em paralelo a Você gostaria…?, a partir de 1994: a indicação é que “jogos eu x você”, “superpronome”92, “nbp x eu-você”93, “transatravessamento”94 e “passagens”95 passam ser pensados – através do diagrama – em articulação com Você gostaria…?, na construção de conexões e relações de formatos variados (sejam conceituais, formais ou operacionais) que expandem o sentido dos projetos envolvidos e torna presente uma rede conceitual 92
Os “jogos eu x você”, também chamados de “coreografais superpronome” foram apresentados pela primeira vez na exposição "Palavreiro", Funarte, Rio de Janeiro, 1997; desde então integraram diversos eventos, exposições e oficinas, no Brasil e no exterior. Fig. 34-37. 93 Instalação apresentada pela primeira vez no MAM-RJ em 2000. [exposição individual] Integra, desde 2004, a Tate Collection, Londres. Fig. 19-20. 94 Instalação apresentada na 25ª Bienal de São Paulo, 2002. Fig. 25-26. 95 Instalação apresentada na Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, 2001. Fig. 21-22.
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em que os diversos trabalhos multiplicam diálogos entre si. A visualização/leitura do diagrama 02 permite que em uma visada direta o projeto Você gostaria…? não seja tomado de maneira isolada dentro da obra de um artista, mas percebido como parte de uma pesquisa desdobrada em ações que apontam para diversas direções ao mesmo tempo. Não caberia ao diagrama alongar – sob forma discursiva – a extensão
das
associações
e
remissões
possíveis
(tarefa
também
do
espectador/leitor), as quais (no âmbito do que se propõe nestas páginas) estariam presentes no corpo informe da possível Künstlertheorie que aqui se insinua –, pois é claro que há um investimento na potência própria do diagrama em mediar a presença latente de uma dimensão discursiva, que se anuncia a partir do contato intensivo com o objeto plástico. Vale aqui a lembrança de que no território operacional deste escrito hipertrofiado (Tese) será necessária uma terceira parte para enfatizar de modo decisivo o que aqui apenas emerge de modo sutil – e o diagrama é peça-chave nessa passagem, verdadeiro exercício de fricção entre os limites dos fazeres artístico e textual. É na mesma direção de mobilização do diagrama enquanto dispositivo plástico-discursivo que se considera a inserção do segundo bloco de textos, também em conexão com a etapa 1 do diagrama 02: os três grupo de “tríades” multiplicam e reverberam as “três idéias-vetores principais”, presentes no texto inaugural do projeto NBP96 – às proposições (tríade 1) “imaterialidade do corpo”, “materialidade do pensamento”, “logos instantâneo” somam-se (tríade 2) “espaço negativo”, “transparentes conceitos”, “geléia adversa”97 e (tríade 3) “transatravessamento”, “adversa geléia”, “artista-etc”98. Estão articuladas aí algumas linhas conceituais estruturadoras do projeto NBP, de modo amplo, produzindo entrecruzamentos não somente entre si mas igualmente entre outras séries de trabalhos, com referências também ao campo da cultura. Conforme foi indicado acima, existe um tensionamento lentamente acalentado e gerenciado na tessitura do diagrama em que a presença das palavras em entrelaçamento com a 96
Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”, apresentado na abertura desta Tese. Proposições gravadas em objeto moldado em acrílico e doado ao Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos por ocasião de sua participação no projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? em Brasília, de setembro de 1997 a abril de 1998. Fig. 60-63. Estas proposições são desenvolvidas em texto próprio, disponível no anexo deste Tese. 98 Proposições gravadas em objeto moldado em acrílico que integrou a instalação “Sistema-Cinema”, apresentada no evento Interculturalidades, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002. Fig. 5052. Estas proposições são desenvolvidas em texto próprio, apresentadas no mesmo evento e em outras instalações, disponível no anexo desta Tese. 97
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estrutura plástica remete a um lugar outro, sob a promessa de um acontecimento relacionado à teoria de artista: as tríades atuam precisamente neste lugar a vir, desencadeando o efeito de auxiliar diretamente na delimitação deste local cujos limites estão sempre em negociação. Um último conjunto de elementos acrescidos a este segundo diagrama consiste em oito grupos de pequenos comentários que se fez necessário posicionar em pontos específicos, respondendo diretamente à demanda de redefinir certos caminhos de Você gostaria…? – propostos no diagrama 01 – que, com o real desenvolvimento posterior do projeto, mostraram-se propensos a ajustes. Refiro-me a: junto à etapa 3 (espectador) percebeu-se que o participante poderia ser não somente o “indivíduo”, mas também “grupo” ou “coletivo” – abrindo caminho para sujeitos de grupo; e também que não se deve limitar a “um mês” o tempo de experimentação com o objeto, sendo indicado então “tempo variável” – pois de fato no histórico do projeto tem ocorrido que este tempo deve ser sempre flexibilizado, de acordo com diversas circunstâncias, sendo negociado a cada vez com cada participante. Junto à etapa 6 (artista), acrescentou-se informação em relação à documentação produzida pelos participantes (“vídeos, fotografias, objetos, textos”), ao tipo de autor produzido pelo projeto (ou seja, há necessariamente uma relação de “inter-autoria” a ser decifrada, quando participantes produzem documentos a partir do objeto fornecido pelo artista, o qual, por sua vez, relacionase com estes elementos ao organizar seu trânsito e exibição públicos, a partir de demandas próprias); além disso, no longo período entre 1994 e 2006, em que Você gostaria…? foi adquirindo sua velocidade de deslocamento, pude perceber que o artista propositor deve continuamente negociar sua distância de ação em relação ao projeto – pois certos episódios requerem proximidade e quase intervenção, enquanto que outros exigem postura distanciada de um quase ‘abandono’ – na busca de re-construção do estranhamento e de não-interferência: daí grafar o termo “presença-ausência-presença” como indicador desta permanente oscilação autorobra implicada em Você gostaria…?. Também junto à etapa 7 são trazidas duas novas observações, desta vez relacionadas à organização dos ‘resultados’ obtidos a partir das experiências realizadas – trata-se aqui do problema de como construir o espaço de apresentação de tais ‘resultados’, de que maneira trazê-los a público: ainda que mais idealizado, o projeto inicial já indicava esta demanda enquanto
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programa, apontando como importante uma “apresentação final: novos trabalhos, novos conceitos” – pensava-se então principalmente no espaço da “galeria”, como aquele em que deveriam vir a público os ‘resultados’ (compostos, significativamente, de “trabalhos” e “conceitos” – de produção tanto dos participantes quanto do artista); entretanto, foi evidenciando-se que o espaço mais adequado para uma exposição pública permanente e dinâmica de imagens, textos e vídeos produzidos pelos participantes seria mesmo aquele de um website, desenvolvido ao mesmo tempo como “banco de dados” e “ferramenta participativa”99. Em relação ao problema da “apresentação de resultados”, foi inserido também o comentário “desenvolvimento de estrutura arquitetônico-escultórica [2007]”: ainda que só tenha sido montada meses depois, especificamente para a documenta 12, esta construção se apresentava como solução possível e interessante para trazer a público a documentação acumulada pelo projeto Você gostaria…? (voltaremos a este problema mais adiante, em maiores detalhes). Finalmente, as três perguntas características da etapa 8 (“O que acontecerá com: o projeto NBP? o espectador? o artista?”) são complementadas pela referência ao texto já indicado acima (ver nota 89), que procura trabalhar a auto-problematização do projeto como abertura para próximas conexões – entretanto, mais do que desenvolver este tema específico, a importância do acréscimo desta referência ao diagrama inicial se dá por trazer de modo claro a intertextualidade100 e hipertextualidade101 latentes do diagrama – aproximando a rede de textos que informam a rede discursiva que está se buscando trabalhar aqui, ao redor de Você gostaria…? e constituinte da teoria de artista. Há ainda um último e importante bloco ampliado na passagem do diagrama 01 para o diagrama 02: o reconhecimento de que poderiam ser percebidas até aquele 99
O website do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, hospedado em www.nbp.pro.br, entrou no ar em setembro de 2006. Foi desenvolvido em conjunto com Romano e a empresa Tecnopop. 100 No sentido de que o diagrama, em sua apresentação gráfica de elementos sempre em conexão, demonstra a máxima de que “o discurso é trabalhado pelos outros textos – ‘todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos’ – , atravessado pelo suplemento sem reserva e a oposição vencida da intertextualidade”. Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionário das ciências da linguagem, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1973, p. 422. 101 No sentido de “blocos de texto individuais (…) interligados por links eletrônicos”: ainda que nestes diagramas não se tenha a ferramenta eletrônica efetivamente em ação, é bastante evidente que sua estrutura conduz diretamente ao hipertexto, justamente por combinar texto e imagem em arquitetura conjunta – como se cada elemento possibilitasse um clique que conduziria a algum outro lugar (texto ou imagem ou combinação dos dois) em espaço interno ou externo do diagrama mesmo. Cf. George P. Landow (Ed.), Hyper/Text/Theory, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1994, p. 1.
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momento três fases na dinâmica do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? – “fase 1: 1994-2000”, fase 2: 2000-2004”, “fase 3: 2004-“. Em sentido amplo, as fases se referem, por um lado, à própria relação artista/projeto – que se modificou ao longo dos anos de uma atuação prospectiva-expositiva (indicando a necessidade de expor a dinâmica de um projeto ainda a se realizar, procurando envolver os possíveis participantes em suas promessas) para uma prática prospectiva-administrativa (procurando conduzir um projeto que conquistou velocidade própria de modo a mantê-lo em aberto, atento a novas possibilidades). Por outro, na medida em que Você gostaria…? vai construindo sua própria memória e acumula história(s), foi possível perceber o momento em que começou a movimentar-se por conta própria – por volta do ano 2000 (passagem da fase 1 para fase 2) e o momento em que necessitei aproximar-me novamente do projeto para garantir sua continuidade em momento de impasse – por volta de 2004 (passagem da fase 2 para fase 3). Esta última fase é demarcada por duas situações que conduzem a um mergulho de intensidade na demanda própria de Você gostaria de participar de uma experiência artística? – e que certamente constituem momentos de forte impulso, a prometer desdobramentos à frente (abertura de uma fase 4?): sua apresentação como projeto de Tese de Doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo; e a participação na documenta 12 (que veio a ser a primeira exibição pública do projeto, em todas as suas etapas). diagramas 03 e 04: Estes dois últimos diagramas se diferenciam do diagrama 02 por incluírem alguns pequenos ajustes – afinal, a passagem do primeiro para o segundo diagrama representou exatamente um esforço para o desenvolvimento de um procedimento que possibilitasse as contínuas atualizações necessárias, no ritmo de desenvolvimento do projeto, sem que isso implicasse na eliminação da camada anterior, resultando em um diagrama que ao mesmo tempo segue indicando o programa de Você gostaria de participar de uma experiência artística? em sua dimensão prospectiva, assim como os efeitos, modificações e reconsiderações decorrentes de seu efetivo exercício. O diagrama 03, finalizado em 2007 para apresentação na documenta 12, incorpora apenas três elementos novos: em relação direta com as “três tríades” (comentadas acima), foram acrescentados os termos
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“dinâmica de grupo”, “trauma”, “ensaio-ficção”, que representam uma primeira tentativa de integrar entre si cada um dos conjuntos de três tópicos (tal qual “tríade das tríades”) para deles extrair palavras-de-força ali implicadas, que funcionariam ativando os três conjuntos e acionando seus referenciais de mobilidade e ação – cruciais, de fato, para o jogo de ação poética pretendido e praticado no projeto NBP (e, por extensão, em Você gostaria…?). Na região do diagrama em que se situa a etapa 2, aparece agora um comentário que se contrapõe à ambição inicial – programática – de situar o projeto dentro de uma estratégia forte de deslocamento em circuito de ‘comunicação de massa’: tornou-se oportuno modular a frase “O Objeto e o projeto NBP serão divulgados via imprensa, rádio, televisão, …” através da presença dos comentários “resistência à massificação”, “qualidade do contato dialógico" e “continuidade da conversa”: assim, ainda que se reconheça que o projeto NBP possui compromisso com o campo comunicativo no sentido de se aproveitar de diversas estratégias para um rápido deslocamento (imagético, conceitual) em infovias, a prática de condução do projeto Você gostaria…? apontou para a necessidade de não se perder um referencial dialógico possível, desdobrando o contato com participantes dentro dos referenciais de uma qualidade de conversa – resistindo ao impessoalismo decorrente da comunicabilidade mecânica unidirecional e passiva. Outro pequeno detalhe que se soma neste diagrama 03: o espectador (etapa 4), programaticamente grafado como “participante” (diagrama 01) e em seguida melhor percebido como “indivíduo, grupo, coletivo” (diagrama 02), é agora assinalado como “indivíduo, grupo, coletivo, instituição” – acréscimo resultante da inclusão
de
escolas,
unidades
universitárias,
entidades
sociais
e
outros
agrupamentos como participantes do projeto Você gostaria…? a partir do final de 2006. Finalmente, deve ser mencionada a atualização de dados, com a inclusão de novas cidades e aumento do número de experiências realizadas – como já foi dito, estes dados requerem atualização constante, a cada novo diagrama. Por sua vez, o diagrama 04 foi elaborado procurando receber alguns elementos relacionados à situação do projeto logo após o período da documenta 12. Deve ser compreendido, entretanto, que tais efeitos ainda se farão sentir em prazo maior – trata-se de experiência demasiado recente, que requer processo de elaboração alongado (sendo este texto hipertrofiado apenas uma das ações nesse sentido). Logo, apenas
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dois tópicos foram acrescentados ao diagrama, em recente exibição pública: junto ao conjunto de títulos de instalações, ações e séries de trabalhos, agrupados em conexão à etapa 1 do diagrama inicial, foi localizado o termo “obs.”, referente a projetos desenvolvidos desde o final de 2004102 com a utilização de pequenas barreiras junto ao chão, desafiando o espectador a ultrapassá-las (ou não); ao lado do elemento “desenvolvimento de estrutura arquitetônico-escultórica” (etapa 7) agora se coloca também a frase “museu dentro do museu”, mencionando a condição desta estrutura arquitetônico-escultórica – incorporada ao projeto desde a documenta 12 – enquanto elemento expositivo montado em situação institucional (museológica). Ou seja, tendo sido construída especificamente para agrupar a memória do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? (vídeos, imagens, website), esta estrutura a seu modo constitui um museu para o projeto, mediando – entretanto – de maneira ativa a presença de tal memória no espaço institucional do museu (ou galeria) – pois, ao se definir ao mesmo tempo como escultura e arquitetura investe simultaneamente na experiência sensível dos espaços e no abrigo do corpo, assimilando e espacializando a dupla condição sensorial-conceitual. Assim, o diagrama se coloca para o projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? tanto como programa de trabalho como superfície de registro, com a particularidade de acomodar as transformações sucessivas sem eliminar camadas anteriores – em um efeito anti-palimpsesto. Nesse sentido, na medida em que Você gostaria…? se coloca como um projeto em aberto, em franco funcionamento e enfrentamento das coisas do mundo, pode se esperar que este diagrama vá continuamente sendo ampliado em acomodações sucessivas: mas o cuidado aqui – na verdade, fundamental – é trabalhar as camadas deste enredamento conceitual de modo a manter continuamente sua característica prospectiva de mapa-programa em aberto; ou seja, qualquer vestígio de finalização é aqui visto como cristalização e paralisia do projeto em seu tônus e dinâmica. No
102
Instalação apresentada em “psiu-ei-oi-olá-não”, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, 2004 [exposição individual], “3 escenarios”, CAAM - Centro Atlantico de Arte Moderno, Las Palmas de Gran Canaria, Espanha, 2005 e “Be what you want but stay where you are”, Witte de With, Rotterdam, Holanda, 2005.
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contexto deste texto hipertrofiado, o diagrama está sendo mobilizado como agente direto – ferramenta em sua construção – das manobras em torno da Künstlertheorie, uma vez que realiza a mediação entre obra e camadas discursivas – sendo ele mesmo
(diagrama)
um
composto
duplamente
articulado
pela
mistura
e
enfrentamento de linhas e palavras, com entradas e remissões múltiplas (conexões em aberto) e vocação inter- e hiper- textual – além de oferecer fluxos de associação inter-imagética ao remeter diretamente a outros conjuntos de obras, que multiplicam e reforçam a poética em jogo. O mergulho pelas passagens e entradas oferecidas pela rica superfície do diagrama permite acesso à textura reveladora dos efeitos destas diversas conexões – que, em funcionamento, acionam a dinâmica da teoria de artista: ou seja, não um conjunto de textos finalizado e linearmente estabelecido, mas a instigante dinâmica de sua vibração junto à obra plástica. O desafio deste texto é proporcionar tal emergência – a presença e consistência de uma camada discursiva complexa e múltipla como matéria produzida pela obra mesma, ou melhor, como materialidade indissociável da obra plástica que cabe o artista – com maior ou menor engajamento e comprometimento junto às suas conseqüências – administrar em seus variáveis graus de afloramento e emergência. Logo, cabe destacar mais um diagrama da série que estamos comentando aqui, desta vez incluindo ali elementos especificamente desenvolvidos para a articulação desta pesquisa. Foi então traçado o diagrama 05, procurando localizar na superfície do diagrama 04 (a versão mais atualizada até este momento) certas áreas e núcleos de problematização de Você gostaria de participar de uma experiência artística? e do projeto NBP – para, a partir daí, em esforço de elaboração discursiva, agregar elementos que comporiam uma teoria de artista em funcionamento, agindo por entre as camadas de entrelaçamento de obra de arte e discurso. diagrama 05: Diferencia-se do diagrama 04 pela demarcação de oito áreas de interesse, a partir das quais foram extraídos blocos de conceitos associados a cada uma delas – trata-se de articular, no diagrama, regiões de problematização para a partir delas trazer à superfície algo da teia conceitual ali implicada. Mais do que problematizar o próprio diagrama em sua estrutura, composição e construção, esta operação seria melhor definida como extração conceitual, uma vez que utiliza o
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diagrama como instrumento organizador das passagens entre as dimensões sensível e conceitual, procurando seu auxílio para acessar a região de contato entre obra e discurso – região intensa que nos interessa enquanto espaço de ocorrência de uma dinâmica potente da obra de arte. Mas não se trata de extrair blocos estabilizados de conceitos para posterior análise (como se fossem objetos recobertos por camadas, a serem desenterrados) mas torná-los presentes e ativos como verdadeiros veículos de interligação entre obra e discurso. Assim, os oito blocos constituem agregados conceituais temáticos a serem desmembrados em operação textual, a qual necessariamente implica em escolhas e caminhos frente à rede de múltiplas entradas tornada visível a partir do diagrama. Claro que cada sujeito interessado nesta operação certamente irá extrair blocos de conceitos de perfil diferente daqueles que aqui serão apresentados – trata-se de procedimento exteriorizador de uma cartografia não neutra, reveladora de quem e de onde se opera, indicadora de interesses em jogo e de disputas a delinear. Aqui nos interessa agregar certos tópicos afins ao próprio projeto de trabalho artístico-conceitual e sua poética, associados diretamente à ação do artista e suas responsabilidades quanto à articulação prático-teórica pertinentes a uma teoria de artista. Foram, desse modo, organizados os seguintes blocos de agregados conceituais, relacionados às etapas programáticas do diagrama, estabelecendo correspondências e encadeamentos – lembrando que para esta operação foi necessário localizar no diagrama certas áreas de interesse, em relação às quais os tópicos temático-conceituais serão desenvolvidos (abaixo, alinhamos os elementos conceituais referentes a cada bloco): Bloco 1: tríades, ensaio-ficção,manifesto NBP; Bloco 2: hipervírus, marca, trauma, micropercepção, comunicação; Bloco 3: membrana, linha orgânica, escultura-conceitual, espaço háptico, tatilidade; Bloco 4: experiência, incorporação, sujeito híbrido; Bloco 5: atores participantes, papéis, circuito, artista-etc (agenciador, curador, crítico), autoria compartilhada; Bloco 6: polifonia, dialogismo, crítica; Bloco 7: escultura social, rede, comunidade;
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Bloco 8: espaço público, politização, resistência, arte vida, arquivo como membrana; Os termos que constituem cada um dos blocos destes oito agregados irão articular o desdobramento de uma seqüência de narrativas teórico-poéticas, através da utilização de escrita que inclua colagem e invenção, em que o sentido se construirá entre os “museus da arte e da linguagem” (Smithson) – em contato com ambos os campos, buscando insinuar-se em confronto contra a cristalização dos fluxos entre eles (tarefa a evitar): a procura é pela dinâmica que anima as relações de consistência através das quais a prática do artista se faz ao mesmo tempo discursividade e plasticidade. Se a composição dos oito blocos apresentada acima combina tópicos de origens e remissões diversas – envolvendo desde materiais conceituais gerados diretamente a partir da prática de Você gostaria de participar de uma experiência artística? e de projetos paralelos de atuação (“tríades”, “artistaetc”), até terminologia desenvolvida em proximidade com autores com os quais o projeto encontrou afinidade (por exemplo: “micropercepção”, José Gil e Suely Rolnik; “hipervírus”, Thierry Bardini; “sujeito anfíbio”, Paolo Virno) – é porque o que se promete a partir de agora pretende invadir outra textura e dicção, experimentar diversa modalidade de produção de sentido, contribuindo assim para a construção deste texto hipertrofiado através de diferentes vias de acesso à palavra. Para cada Bloco de agregados temáticos conceituais, um segmento de texto próprio irá demarcar certos limites de funcionamento – fluidos – que buscam de fato ressonâncias não-lineares, muitas vezes locais, mas que perseguem alcance mais longo; ou seja, à procura de estabelecer uma condução multidirecional tal qual a estrutura e funcionamento de um hipertexto, abandonando sistemas conceituais centralizados e substituindo-os pela “multilinearidade, nós, links e redes”103 – não no sentido, como já dissemos, da adoção literal do suporte eletrônico, mas sim por deixar a organização do trabalho escrito ser permeada por “muitas redes [que] interagem, sem que uma delas seja capaz de ultrapassar as outras; este texto (…) não tem início; é reversível; ganhamos acesso a ele através de várias entradas, nenhuma das quais pode ser autoritariamente apontada como a principal; mobiliza 103
George P. Landow, Hypertext 2.0 – the convergence of critical theory and technology, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1997, p. 2.
80
códigos que se estendem até onde a vista pode alcançar…”104 . Assim pretende-se habitar e produzir a partir do espaço intermediário em que visibilidades e enunciados se tensionam de modo incessante, abrindo-o e franqueando-o à percepção – esta seria a chave de acesso ao texto que propõe um funcionamento como obra de arte; ou seja, mais significativo seria obter tal dinâmica, e nem tanto assumir condição física enquanto tal, nos termos de uma materialidade específica. Uma teoria de artista ou Künstlertheorie existirá aqui – junto a Você gostaria de participar de uma experiência artística? – na medida em que souber se impor enquanto camada discursiva efetivamente produzida e criada em conjunto com a produção plástica, elemento sensível a provocar os sentidos e a percepção, presente em máxima proximidade à obra em sua intervenção e ocupação dos espaços e em seu funcionamento efetivo – invadindo corpos. *** Os textos que se seguem propõem um outro tipo de escrita para o prosseguimento desta tese: perseguiremos uma costura de proximidade e fluxo, composta tanto de textos novos como preexistentes, na intenção de constituir a espessura necessária à efetivação do encontro proposto.
104
Passagem de Roland Barthes em S/Z, citada por G. P. Landow, op.cit., p.3.
81
C
82
C: 8 blocos, escrita retro-prospectiva A partir de agora é preciso ter o diagrama 05 como referência de percurso, detendose nas regiões indicadas pela numeração referente aos blocos conceituais dinâmicos ali assinalados. Fig. 80 Bloco 1 tríades, ensaio-ficção, manifesto NBP Se quisermos ser conduzidos pela linearidade cronológica, a ordem dos documentos seria esta: “O que é NBP?” (1990), “Sistema-Cinema” (2002), “(a), (b), (c):”105 (2006) – nesta seqüência foram escritos, a partir de motivações e demandas diferentes. O que parecia ser apenas o texto inicial inaugurador de um projeto (“O que é NBP?”), revelou-se matriz multiplicadora de possibilidades – pois a partir dali foi viabilizado um sistema de atualizações onde as proposições iniciais se ampliam, sendo agregadas a outros elementos, indicando assim novos lugares para que o procedimento continue e se desdobre. O gesto inicial propunha “três idéias-vetores principais” – “imaterialidade do corpo”, “materialidade do pensamento”, “logos instantâneo”, fornecendo uma linha-mestra como ponto de partida, localizando NBP em terreno de velocidade, desmaterialização e instantaneidade – com o cuidado de fugir de totalitarismos abstratizantes, a partir do alerta de que “o pensamento envolve as coisas”, ocupa lugar no espaço. Estava estabelecido um programa que visava um alcance não apenas imediato (perspectivas de médio ou longo prazo), instrumentalizando alguns gestos para demarcação de terreno – sobretudo elementos de um campo comunicativo estariam à disposição (viajar a velocidades compatíveis com certas infovias), assim como uma poética de transformação, associada de modo contundente ao corpo (a proposta de desmaterialização indicando sobretudo as manobras contínuas de sua incessante re-incorporação em novas bases).
105
Os três documentos encontram-se no V. Anexo Textos desta Tese.
83
Parece haver certa insistência numérica recorrente em torno do ‘3’: tudo se inicia, é verdade, com a sigla NBP, que condensa três elementos já interessantes, amarrados em linha na proposição Novas Bases para a Personalidade, cujos dois termos intrusos (“para a”) estabelecem a ligação relacional própria das locuções prepositivas. Em anotações do período em que o projeto foi gerado (1990/91), encontro a referências que associam as três letras a noções amplas, assim caracterizadas: N - Novas: “obsessão e necessidades modernas” B - Bases: “estruturas, por que não?” P - Personalidade: “discussão que chama para si os campos da psicanálise, biologia, antropologia, análise comportamental e estatística, mecanismos socioeconômicos, etc., junto com questões artísticas (…), um terreno da amplas e movediças dimensões”.106 As indicações acima articulam novo, estrutura e relações inter e extradisciplinares107 , tópicos que serão, a partir de então – ou seja, com a realização dos trabalhos propostos dentro da série NBP –, distendidos e derivados nos jogos de cada ação artística plástico-textual efetivada. Se há algum interesse pela montagem de elementos conceituais em grupos de três, isto remeteria mais diretamente o gesto de Peirce em trabalhar o signo em tricotomias de modo a escapar do imediato dualismo significante/significado (Saussure) – ao alinhar grupos de três termos se escapa à sua hierarquização, abrindo caminho a possíveis engenharias formais em que se ganha complexidade a cada novo gesto: a estrutura está em aberto e é possível complementá-la continuamente. Logo, não há derivação outra que não a implicação em se manter conectável, à espreita de um próximo acoplamento. Para NBP, a dinâmica das tríades é mera estratégia para se constituir e se manter em aberto uma configuração
sempre
acoplável,
em
acolhimento.
Ou
seja,
no
plano
de
funcionamento do projeto, instaurado através das realizações de sua prática efetiva, três é mero pretexto deflagrador de algo que é sempre maior ou menor, não se
106 107
Ricardo Basbaum, “caderno de notas, 1990/1991”, p. 1. V. Anexo Textos Cf. Nota 67, Parte A.
84
reduz a qualquer signo numérico e aponta para o múltiplo: para as estas tríades NBP, três é nada menos que sempre mais um. O escrito “O que é NBP?” foi trazido a público pela primeira vez em situação de performance – enquanto fala, voz – de modo que é possível implicá-lo – e ao projeto NBP – às reverberações musicais que se têm quando a dicção se faz ouvir em suas demarcações, derivas e reverberações pelo espaço, rumo ao ouvido do outro. Tal musicalidade implica também em ritmo, e é preciso atentar também aqui a certos cuidados com o andamento do projeto e sua escrita, pois não há qualquer intenção de que este aspecto seja ignorado, pelo contrário: se há esta marca ritmo-musical associada à dimensão discursiva do projeto NBP – através do vínculo de um de seus principais escritos à fala e à performance (corpo) – é preciso trazer tal tópico à superfície, assinalar o (lance de) dado musical que celebra a significação e importância deste acaso: “escrita em forma de discurso, pronta para oralização”108 . A musicalidade latente em NBP é ainda algo a ser exteriorizado com maior contundência, mas fica desde já indicado esta presença a ativar fluxos e ritmos de desdobramento do projeto e acolhimento do outro – como se a costura do projeto NBP pudesse ser percebida como imenso Parangolé imaterial composto de malha plástico-discursiva pronto a ser utilizado, assumindo vocação verbivocovisual. Imaterialidade do corpo, materialidade do pensamento e logos instantâneo abrem o projeto NBP, enfatizando a importância de sua propagação rítmica em relação ao que poderia daí advir – posicionamento de abertura – e demarcando linhas de destaque ao corpo em sua reformatação potencial, ao pensamento em sua presença material espacializante e à comunicação, ao requerer uma região intermediária entre emissão e recepção: cada uma das três idéias-vetores não se perfaz enquanto conceito positivo (tal qual modelo conceitual associado ao Século XIX), mas como agregado de uma escrita carregada do necessário elemento poético que assegura o potencial de reinvenção pretendido – tem-se a elaboração conceitual-discursiva não como lugar de uma chegada segura ou aportar conclusivo, mas enquanto veículos ou módulos que demarcam passagens: idéias-vetores como forças direcionadas a 108
Ricardo Basbaum, “caderno de notas, 1990/1991”, p. 3. V. Anexo Textos
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combinar-se e recombinar-se conforme se estruturarem as situações a serem trabalhadas e enfrentadas, no confronto próprio da obra de arte e suas possibilidades de efetivar-se, seja no corpo do outro, seja em sua instanciação como coisa pública sujeita à imprevisível composição de elementos que aí se agregarão desde os primeiros contatos mediados e imediatos. O que se quer é um funcionamento conceitual bastante particular, onde a proposição discursiva somente se impõe quando reivindica proximidade ao conjunto sensível do qual deriva, constituindo presença somente enquanto agregado obra-conceito – sempre em fuga da condição abstrata, buscando o duplo funcionamento sensorial-conceitual: há aí sempre cuidado em manter em aberto a possibilidade de acoplamento. Assim, a primeira situação em que se impôs a necessidade de lançar um segundo conjunto de três tópicos se dá quando o Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos109 envolve-se como participante do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, em 1997. Ao receber o objeto, os membros do GPCI – movendo-se no espaço de ações entre performance, vídeo e fotografia que lhes é característico – decidem forjar uma operação de “seqüestro”, assumindo posse incondicional da peça de metal pintado. Realizaram assim uma série de ações, documentadas em imagens foto e videográficas. Fig. 60-61 Para que o objeto reencontrasse posteriormente o caminho de circulação próprio ao projeto Você gostaria…?, entretanto, o GPCI propôs o “pagamento de um resgate” através do “envio do espaço negativo do NBP” – indicando uma possibilidade (ainda que compulsória) de continuidade de conversa ao ritmo das ‘trocas’ próprio de Você gostaria…?. Assim, para recuperar as vias de acesso rumo a um próximo participante, o artista deveria efetuar um pagamento produtivo, fornecer algo da ordem da invenção de valor correspondente ao objeto que se encontrava apreendido. A ocasião sem dúvida era propícia para, em novo salto, adicionar elementos ao projeto NBP – transformar o impasse em momento de velocidade; 109
“Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos (GPCI) é um grupo de pesquisa em arte contemporânea, em arte e tecnologia, em arte da performance, isto é, o corpo como sujeito e objeto da obra de arte e as tecnologias de produção, de reprodução da imagem e da imagem/movimento, e ainda, as tecnologias comunicacionais, sobretudo a Internet.” O GPCI existe desde 1992, coordenado por Bia Medeiros. Cf. Maria Beatriz Medeiros, Corpos informáticos – arte, corpo, tecnologia, Brasília, Editora da Pós-Graduação em Arte da UnB, 2006.
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assumir a problematização proposta devolvendo-a em situação de avanço. A resposta se deu através do envio de um pequeno objeto em acrílico transparente, vazado ao centro, que corresponderia exatamente ao espaço interno do objeto utilizado em Você gostaria de participar de uma experiência artística?, porém em menor escala. Este objeto contém também, em sua região inferior esquerda, três pequenos orifícios de tamanho proporcional aos dedos, permitindo que seja pego e manuseado de forma direta, encaixando-se na mão de modo adequado: quem o pega, de fato, parece estar segurando um objeto que se adapta bem à pegada, lembrando o chamado “soco inglês” (o qual, entretanto, possui quatro furos para os dedos) – trata-se de algo que conduz diretamente à elaboração de um utensílio ou ferramenta. Fig. 62-63 O fato é tal objeto se apresentou como superfície adequada para a inscrição de três novos tópicos ou idéias-vetores, permitindo a configuração de uma segunda tríade, aumentando a complexidade do jogo proposto. Podem-se ler, então, sobre a peça de acrílico transparente, linhas que remetem ao texto “O que é NBP?” e causam uma segunda inflexão no próprio projeto: ESPAÇO NEGATIVO TRANSPARENTES CONCEITOS GELÉIA ADVERSA Curiosamente, somente algum tempo depois (2007) foi redigido documento que estende cada um dos tópicos em desenvolvimento próprio – o título “(a), (b), (c):”110 referencia as proposições de maneira respectiva – indicando desta vez um amplo conjunto de conexões, localizadas “no âmbito de um processo de negociação”: (a) enquanto provocação provinda do participante GPCI; (b) como campo de invisibilidades
relacionais
onde
transparência
é
“maleabilidade,
ambiência,
configuração de um meio o qual facilita a travessia”; (c) tal qual “inclusão cultural específica (…) em mútua ‘contração transformativa’”, distendendo-se nos termos da “geléia geral da adversidade da qual vivemos”, querendo ser “intervenção, resistência”. É importante lembrar que “em termos de ação e funcionamento cada qual dos três tópicos pode ser ativado a qualquer tempo, sem hierarquização ou 110
Ricardo Basbaum, “(a), (b), (c):”, 2007. Texto inédito. V. Anexo Textos
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ordenamento pré-programado”: o que se quer é “recolhe[r] elementos para sua própria aceleração”. Esta segunda tríade desenvolve movimentos extremos de ao mesmo tempo (a) voltar-se diretamente ao participante e partir de encontro a (c) movimentos emblemáticos do contexto cultural em que se insere; indica entretanto (b) a constituição de um meio ou ambiência para esse deslocamento. É curioso perceber estes segundos três tópicos diretamente identificados a dois objetos ao mesmo tempo similares e antagônicos: tanto o objeto metálico de Você gostaria…? como o pequeno objeto em acrílico transparente configuram-se através da forma específica NBP, identificando-se como elementos de uma mesma série. O primeiro, entretanto, oferece área interna a ser preenchida – tal qual um contêiner –; o segundo, solicita ser pego de um jeito específico e funciona de modo absolutamente exterior ao corpo (pois o objeto metálico pode abrigar em seu espaço interior um corpo deitado, recurvado, como já foi inúmeras vezes experimentado). Fig. 59 As três inscrições na superfície lisa de acrílico transparente resultam e replicam esta instrumentalização voluntária da pequena peça em sua utilização como objeto que se traz às mãos para tocar o outro em seu corpo ou para tocar nas coisas em torno (ou tocar a si mesmo). É interessante se perceber a segunda tríade sendo forjada de modo diverso da primeira – esta, sob a pressão da performance, aquela, sob o impacto da negociação. Um terceiro conjunto de termos foi mobilizado a partir de outra situação concreta, igualmente diversa, com o objetivo de acompanhar mais uma instalação da série sistema-cinema, iniciada em 2001. Esta série consiste na montagem de um dispositivo básico de circuito-fechado de televisão, instaurando uma pequena cadeia de imagens que traz intensidade e presença ao local para onde as câmaras estão apontadas: ali são criadas ao mesmo tempo áreas de visibilidade e de sombra, correspondendo, respectivamente, ao enquadramento de cada câmera e aos chamados pontos-cegos, não alcançados por câmera alguma. Este procedimento ou dispositivo pode ser utilizado sozinho no local da instalação – ou seja, apenas montando a aparelhagem desacompanhada, presente sozinha no espaço expositivo – ou junto com outros elementos (estruturas, esculturas) que caracterizam a intervenção pretendida. Fig. 24, 38, 40, 42, 48-51 Sempre o que se quer é trabalhar
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a intensidade sensível do local exposto, trabalhando a percepção através do olho no corpo – que atravessa o espaço – e do olho da câmera – cujas imagens são trazidas à superfície do monitor: quando encontramos o mesmo local em que estamos sendo duplicado através de certos enquadramentos, é evidente que nossa apreensão do entorno se modifica. Em “roteiro para sistema-cinema”111 é elaborado o seguinte comentário: sistema-cinema é o nome de um procedimento de captação, transmissão e gravação de imagens, em tempo real, que tenho utilizado, a partir de 2001, em conjunto com a construção de instalações, intervenções e objetos: desde as primeiras experiências, a vontade foi de adicionar uma camada a mais aos procedimentos de construção e instauração do projeto – como se já houvesse algo nos trabalhos que fosse da ordem do cinema e que seria necessário externalizar, tornar mais claro, somando presença. Foi assim que decidi adotar um conjunto simples de equipamentos, típicos da construção de um ambiente de imagem-vídeo em circuito-fechado: microcâmeras, seqüencial, monitor, videocassete. Um certo regime de funcionamento e economia da imagem é instaurado, junto ao espaço delimitado e fronteiriço da instalação: (1) as câmeras abrem-se para o ambiente, a partir de certos enquadramentos fixos; (2) as imagens são enviadas ao monitor, mapeando certas possibilidades de ação frente àquele ambiente; (3) imagens em fluxo contínuo, uma após a outra, são reguladas para se repetirem em intervalos constantes de cerca de 5 segundos; (4) as seqüências são gravadas em vídeo, para arquivamento e utilização posterior. Nestes 4 passos de implementação do dispositivo, estão indicadas já algumas de suas principais ações e efeitos – seu funcionamento, seu programa: (a) prática de enquadramento para construir outra apreensão do espaço: a instalação passa a dispor tanto de regiões intensificadas pela presença da câmera ali apontada, quanto de regiões de sombra, avessas à captação de imagem – estimula-se assim o efeito disjuntivo entre olho-corpo / 111
Ricardo Basbaum, “roteiro para sistema-cinema”. Texto escrito para o livro Transcinemas, de Kátia Maciel (Org.), inédito. V. Anexo Textos
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olho-câmera, indicando problematizações de uma política da percepção; (b) transmissão em tempo-real em que o próprio local onde são geradas as imagens as recebe de volta, em incessante continuidade descontínua: recurso
não-tautológico
que
enfatiza
a
situação
quasi-performática
compulsória, em que o corpo é a mediação principal para o estabelecimento do aqui&agora da instalação; (c) montagem circular por meio de ritmo seqüencial em que as imagens se sucedem a partir de padrões fixos préestabelecidos: a importância do núcleo rítmico pulsante que erotiza o ambiente (indicando um ‘pensamento-ambiente’), conduzindo à pergunta: “será que tudo o que eventualmente aconteça aqui em torno jamais perturbará tal ritmo?”; (d) gravação e arquivamento para posterior utilização sob outras formas videográficas, que reinventarão o espaço capturado para o olhar de alguém não presente à situação inicial: para além do registro, o que se assume é uma vontade voraz de montagem para que se produza mais um acontecimento que multiplique e diversifique a forma inicial, através de nova mediação instauradora de sua própria continuidade. Cinema não toma parte aqui enquanto posição hierárquica superior frente ao processo, com ambição de estabelecer-se como ‘produto final’ – antes, sua presença se insinua no mesmo plano de igualdade em que ocorre sua própria desmontagem em 4 etapas. Logo, sistema-cinema se caracteriza por uma pragmática (sistema) que atende a um determinado emprego, a uma utilização que busca trazer potência relacional extra a um projeto artístico em pleno andamento e funcionamento, sintoma de alguns de seus traços constitutivos e estruturais. A presença de sistema-cinema tem se mostrado fértil nas 16 instalações já efetivamente realizadas – elemento que funciona tanto de modo próprio como acrescentando algo ao conjunto, desempenhando papel instigante na instalação e freqüentemente sendo utilizado também na gravação de material em vídeo, para
90
posterior utilização em outros trabalhos.112 Trabalhar com a interface vídeo/cinema atende também a uma demanda narrativa – afim ao projeto NBP –, no sentido de estruturar a proposta plástica enquanto deflagradora de uma escrita potencial, ainda a vir – também, de certo modo, tarefa desempenhada pelos diagramas: o campo discursivo é continuamente re-invocado enquanto presença latente, pronto a ser efetivada a qualquer instante, como se ali sempre estivesse, em espera e à espreita mas, entretanto, já ativo – pois tal espera é já ação, impulsão e dinâmica. O texto “Sistema-Cinema”
foi
trazido
a
público
pela
primeira
vez
no
evento
“Interculturalidades”113 , sob a forma de fotocópias para livre distribuição ao público visitante: como ali a instalação sistema-cinema foi montada em um dos halls de entrada da galeria (de fato, também sala de acesso ao cinema, com sofá, poltronas e bonbonnière), as cópias do texto estavam sobre uma das mesas, junto a jornais e outras publicações de leitura rápida. Há porém, outro pormenor a demarcar esta instalação, em particular: duas das câmeras estavam especialmente apontada para a bonbonnière – uma enquadrando o balcão a partir de plano superior, outra em ângulo lateral, visualizando a sua parte frontal (o dispositivo sistema-cinema tem sempre operado por planos fixos) – sobre este balcão repousou, durante toda a extensão da mostra, um objeto em acrílico semelhante (em material e dimensões) àquele utilizado nas negociações com o GPCI, no evento anteriormente descrito Fig. 50-52 Entretanto, os dois objetos – em tudo similares – diferiam quanto às inscrições que carregavam: se o primeiro objeto estampava os termos espaço negativo, transparentes conceitos, geléia adversa, sob o signo NBP, este segundo exibia transatravessamento, adversa geléia, artista-etc, sob o signo VCP. E mais: se vistos lado a lado, os dois objetos mostram uma inversão na posição dos orifícios que
112
Até este momento já foram realizados quatro trabalhos em vídeo com aproveitamento de imagens obtidas através de sistema-cinema: “Transatravessamento” (2002), apresentado na 25ª Bienal de São Paulo, utilizou imagens gravadas nas exposições “passagens (NBP)” (Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, 2001) e “Outra Coisa” (Museu da Vale, Vila Velha, 2001); “transatravessamento (& fuga)” (2002), apresentado em “20 anos 20 artistas” (Centro Cultural São Paulo, 2002), “re-projetando + sistemacinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, Rio de Janeiro, 2003) e “entre Pindorama” (Künstlerhaus, Stuttgart, 2004), utilizou imagens gravadas na 25ª Bienal de São Paulo; “E: anotações sobre contatos com re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (2003) utilizou imagens gravadas na exposição “re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, Rio de Janeiro, 2003); ‘Yo Tú – Me You” (2005), apresentado na exposição “3 escenarios” (CAAM Centro Atlantico de Arte Moderno, Las Palmas de Gran Canaria, 2005), utilizou imagens gravadas na própria exposição. 113 “Interculturalidades”, Centro de Artes UFF, Niterói, 2002.
91
determinam a pegada, sua apreensão pela mão (para se pegar os dois objetos da mesma maneira, é preciso utilizar em um a mão direita, em outro, a esquerda). Atenção: o deslocamento aqui não é pequeno – trata-se de um salto, ginga ou jogo de corpo: para operar um encontro entre duas situações, no sentido de arquitetar a possibilidade de um terceiro grupo de frases, foi construído objeto semelhante que, entretanto, a partir de um pequeno desvio, materializa-se de modo ligeiramente diverso. E é preciso avisar: houve a introdução de mais uma sigla – V.C.P. (Vivência Crítica Participante). Tratou-se então de construir uma passagem e conexão entre sistema-cinema e NBP, através do procedimento de articulação dos três tópicos conceituais. Ou seja, sistema-cinema acopla-se ao projeto de trabalho em progresso NBP a partir de um elemento de mediação discursiva, composto em três blocos – transcrito abaixo –, que se quer instrumento de implantação das operações do tipo V.C.P. (Vivência Crítica Participante). O que se pretende é que o outro experiencie o projeto de trabalho em nível de campo sensível, mas que este jogo não se desincompatibilize da rede de produção discursiva, inauguradora também de uma espacialidade intensiva: sujeitos que se situem dentro da rede de relações instituída, mas que se potencializem para fora de si, na busca de conexões transformadoras.114 A terceira reunião de três tópicos discursivos a partir de sistema-cinema, a configurar mais uma tríade no conjunto de idéias-vetores, desenvolve-se então assim: transatravessamento aceleração positiva ou negativa: sua velocidade jamais será a mesma depois deste contato. Não se esqueça: “o pensamento é mais rápido que a velocidade da luz” (já foi dito). Sensorialidade como deslizamento entre o caótico e o prazeroso, tocando a superfície das coisas (ir e vir, ir e vir, ir e vir 114
Ricardo Basbaum, “roteiro para sistema-cinema”, op. cit..
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são parte do processo – ritmos oceânicos). Afetos criam ligações de seda com a força de cabos de aço: conexões, redes, teias e outras coisas trançadas imersas em tal vocabulário. adversa geléia olhares para o entorno, despindo-se de alguns automatismos, aceitando a fluência de outros. Mergulhando no que imensamente nos escapa e resiste e é ao mesmo tempo estranhamente familiar: passando ao lado nos captura e transmite ao longe – sempre. Estado momentâneo quase chegando a ser junto comigo. artista-etc a imagem do que se faz misturando-se ao que não se faz; (des)construindo enquanto se aponta em mil direções e se apronta em prestações. Frágil resistência, sutil insistência: nunca apenas um lugar nem a mesma rotina de procedimentos; sempre as simultaneidades e o olhar magnético, a confiança no lugar. Compactação impossível do poético singular que escapa sempre, tudo arrastando em volta. Voraz. Contenção. Saltos. Sistema-Cinema V.C.P. (Vivência Crítica Participante)115 Perfazendo três pequenos verbetes, este curto texto revela-se uma pequena peça literária carregada de remissões a outros escritos: o aparato sistema-cinema, em seu efeito de espreita ao componente discursivo, deflagra – ao apresentar-se em conjunto com o texto “Sistema-Cinema” – rede intertextual em que os principais termos envolvidos conduzem diretamente a outros escritos. E também – e isto aqui é importante – às obras (instalações, objetos, estruturas, diagramas, etc.) a eles associados. Ou seja: esta pequena tríade enfatiza característica de intermediação, 115
“Sistema-Cinema”, texto produzido para a instalação “Sistema-Cinema V.C.P.”, apresentado pela primeira vez na exposição “Interculturalidades”, Centro de Artes UFF, Niterói, 2002. Desde então, exibido basicamente de forma ampliada, plotado diretamente sobre a parede com letras adesivas, foi apresentado nas exposições “20 anos 20 artistas” (Centro Cultural São Paulo, 2002), “re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, Rio de Janeiro, 2003) [exposição individual], “sistema-cinema + diagramas” (MAC-UnaM, Posadas, Argentina, 2003) [exposição individual] e “entre Pindorama” (Künstlerhaus, Stuttgart, Alemanha, 2004). Fig. 39-41, 48
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funcionando como elemento de contato e distribuição, local de convergência – seja de outros textos, seja de elementos plásticos, avançando em estratégia própria. Será preciso então indicar como se configura tal malha, evidenciando a constituição de tal rede a partir de cada um dos tópicos desta terceira tríade: transatravessamento: há a remissão direta ao texto “Módulo de transatravessamento do artista-etc”116 , assim como à instalação Transatravessamento – ambos apresentados na 25ª Bienal de São Paulo (2002). adversa geléia: a expressão nos envia à segunda tríade, de encontro ao tópico “geléia adversa” – assim como ao objeto em acrílico espaço negativo, recém comentado, ambos nos conduzindo rapidamente a frases emblemáticas da cultura brasileira em recente e decisivo período – a combinação das proposições “da adversidade vivemos” (Hélio Oiticica) e “geléia geral” (Décio Pignatari). artista-etc: termo desenvolvido no texto “I love etc-artists”117 (posteriormente traduzido para “Amo os artistas-etc”) – ampliando a discussão para questões em torno do papel do artista, suas imagens e atribuições. V.C.P. (Vivência Crítica Participante): é trazido para a rede de remissões o ensaio “Critical and Participatory ‘Vivência’”118 – em que se consolida o interesse em se aproximar possibilidades de relacionamento com a obra que se constituam ao mesmo tempo enquanto experiência sensível e crítico-conceitual, demanda que orienta a condução do projeto NBP em sua constante preocupação com as camadas sensorial e discursiva do trabalho contemporâneo.
116
Ricardo Basbaum, “Módulo de transatravessamento do artista-etc”, in 25ª Bienal São Paulo – Iconografias Metropolitanas - Brasil, São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo, 2002, pp. 46 [catálogo]. V. Anexo Textos 117 Ricardo Basbaum, “I love etc-artists” in Jens Hoffmann (Org.), The next Documenta should be curated by an artist, Frankfurt, Revolver Books, 2004, pp. 14-15; e “Amo os artistas-etc”, in Rodrigo Moura (Org.), Políticas Institucionais, Práticas Curatoriais, Belo Horizonte, Museu de Arte da Pampulha, 2005, pp. 21-23. V. Anexo Textos 118 Ricardo Basbaum, “Critical and Participatory ‘Vivência’”, in Vivências: dialogues between the works of Brazilian artists from 1960s-2002, The New Art Gallery Walsall, Walsall, 2002; e “V.C.P. - Vivência Crítica Participante”, Ars, São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, USP, no prelo.
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Assim, as três proposições do texto “Sistema-Cinema” são multiplicadas através de linhas de fuga, e enviadas ao menos a estas quatro situações discursivas – cada qual mergulhada nos problemas conceituais que lhes são próprios – perfazendo um jogo de constituição de sentido que se desdobra a partir deste tipo de manobra: o próximo texto, a próxima obra – a próxima conversa. Esta terceira tríade aponta problemas que já haviam sido mapeados anteriormente pela própria prática – seja enquanto artista, seja como escritor – que são então reagrupados como manobras de um mesmo esforço plástico-discursivo na efetivação do projeto de trabalho. Passa a ser interessante perceber – e tal gesto não se faz em simples sopro, mas se deve a cuidadoso processo contínuo de articulação – as diferentes escalas das dinâmicas em jogo, em que se combinam (os encontros não são apenas dóceis; podem aí haver choques) a construção da instalação arquitetônico-escultórica, a irradiação e presença de um momento histórico-cultural, a investigação teóricocrítica. Fig. 70-73 Este deslocamento por macro ou micro contextos se propõe como desafio interpretativo – como costurar estas idas e vindas em literatura inteligível? –, mas ao mesmo tempo se afirma como evidência de ações concretas, levadas a cabo em diferentes momentos, indicando resultados e conquistas de uma busca efetiva. Desdobrar aqui cada módulo pode resultar em tarefa infinita, pois, se quisermos, cada elemento a ser destacado nos desloca imediatamente para seu momento enquanto múltiplo, permeado por alteridades que insistirão no desvio para outras e outras locações – e esta operação é fascinante e muitas vezes imprescindível. Mas é necessário que seja apreendida a construção do dispositivo que se materializa enquanto propulsor desta manobras, que constitui a poética aqui mobilizada com a força e disponibilidade dos contatos, acoplamentos e remissões – um interesse pelo sentido produzido em incessante fluxo que não reconhece um ponto final, mas a continuidade do movimento. Se antes (em relação à primeira e segunda tríades) falou-se em performance e negociação, aqui temos hiper ou intertextualidade como desvio, contato & distribuição. O percurso aqui condensado articulou três textos (“O que é NBP?”; “(a), (b), (c):”; “Sistema-Cinema”),
cada
qual
portando
um
grupo
de
três
proposições
(imaterialidade do corpo, materialidade do pensamento, logos instantâneo; espaço
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negativo, transparentes conceitos, geléia adversa; transatravessamento, adversa geléia, artista-etc), sendo associados – a partir dos procedimentos que conduziram cada um deles à sua efetivação – a diferentes modos de ação (performance; negociação; desvio, contato & distribuição): este conjunto de operações discursivas e plásticas inevitavelmente conduz ao aumento de espessura (e complexidade) do projeto NBP, complicando sua costura e implicando certa rede conceitual-discursiva enquanto elemento operador a interligar momentos. Surge a inevitável necessidade de que os agregados assim configurados se confrontem, de modo a produzir encadeamentos novos que prolonguem os efeitos e condensem possibilidades e rumos para o projeto. Foi nesta direção que um diagrama foi traçado, procurando trabalhar certos encontros entre as três tríades – pois os três conjuntos, desenvolvidos cada um a seu tempo, devem se tocar, inter-relacionar, procurar encadeamento (e irredutibilidade) de modo a gerar algo a partir da demarcação própria de cada um. Fig. 47 Claro que prossegue uma procura similar, que contemple certos valores em torno da abertura ao outro e do cultivo dos muitos caminhos possíveis – isto é, que se aponte a um prosseguimento das ações em tensionamento mútuo das camadas plástica e discursiva, uma vez que NBP investiga as aberturas frente à alteridade enquanto intervenção e ocupação de espaços, problematização e abertura de frestas. Para estas aproximação das tríades não foi utilizado o artifício do cálculo combinatório – onde cada uma das nove proposições poderiam recombinar-se em qualquer arranjo, indiferentes a seu agrupamento anterior – mas uma reunião mais modesta dos elementos de acordo com sua posição em cada uma das configurações tal como foram propostas. A partir de três novos grupos – reunindo os primeiros, segundos e terceiros termos de cada tríade, procurou-se a consolidação de uma posição que ao mesmo tempo que respalda os percursos anteriores também os provoca e tensiona: ou seja, se cada grupo de três tópicos ao ser confrontado aos outros dois produz novos tópicos (em operação de condensação), estes novos tópicos por sua vez voltam-se aos anteriores de modo contundente, obrigando-os a se re-significarem. Tal como se passa nos diagramas do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, onde as sucessivas atualizações não
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apagam do mapa o traçado que ali já estava, buscando um funcionamento por camadas que continuam a se inter-relacionar, também aqui a “tríade das tríades” não apaga as formações anteriores – esta forma de operação própria do diagrama é fundamental para o projeto, pois indica não-linearidade, simultaneidade de espaços e planos, camadas e diferentes relevos de uma topografia complexa que irradia continuamente suas forças, reagindo aos rearranjos e nunca permanecendo – de modo absoluto – as mesmas. O diagrama tríade das tríades nomeia três blocos que pretendem identificar linhasmestras de ação para o projeto NBP (e as demais séries paralelas dele derivadas),119 que avançam por conta própria – ainda que sempre no âmbito de um sistema proposto de ações – articulando efeitos e procedimentos: trauma, dinâmica de grupo, ensaio-ficção são termos que reverberam de modo amplo. Certamente mais do que os anteriores, sua inserção frente ao projeto de se dá em esfera macro, em localização menos pontual (vimos como as tríades anteriores se estabelecem a partir de procedimentos particulares): desta vez, arriscou-se um exercício de mapeamento do percurso percorrido, intensificando-se possibilidades que, ao serem nomeadas, funcionam prospectivamente em rearranjo dos caminhos que se quer. É certo, porém, que estes três novos termos não se impuseram em gesto súbito e trazem, cada qual, algumas referências. A suposição do trauma (logos instantâneo, geléia adversa, artista-etc) a assombrar as incessantes reaparições do projeto NBP ocorreu em certo momento (por volta de 2000), quando me perguntava acerca das dificuldades em livrar-me da marca, que sempre retornava, apontando que deveria ser transformada em possibilidade de mais um trabalho. Fig. 15 Pois compreende-se como é inevitável confrontar a indagação: “deve-se elaborar mais um passo em torno desta forma específica, testála novamente, ou partir em direções quaisquer possivelmente indicadas no entorno?” Pareceu óbvio, então, que a marca NBP em sua insistência repetitiva deveria estar inscrita de forma traumática em alguma camada do corpo – e que cada novo gesto em torno de mais um trabalho pertenceria ao esforço em re-significá-la no sentido de 119
Por exemplo, os jogos, exercícios e coreografias eu-você. Fig. 34-37
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recompor
fluxos
e
processos
por
ventura
desviados,
descontinuados
ou
efracionados. Nesse sentido, desenhar a marca – e isso se deu em 1991 – teria sido como tatuar-me, ou materializar em desenho, sobre o corpo, forças preexistentes que deveriam ser problematizadas (não por capricho estético, mas como possibilidade vital). Claro que estava em jogo uma configuração mais complexa do que simplesmente ter um sinal sobre a pele (“em que parte do corpo estaria cravado o desenho, como percebê-lo se ao buscar auxílio no espelho certas partes não poderiam ser examinadas, fora do alcance da visão e de seu reflexo? Estaria sob a pele em camada subcutânea? Ou junto às membranas que recobrem ou compõem os órgãos? Ou em circulação pelas correntes sangüíneas, constantemente se movimentando e assim dificultando a captura?”): tratava-se não de implicar algum trauma a partir de biografia privada, mas de perceber na própria trajetória do trabalho – em sua configuração – traços de algo que pudesse indicar a estruturação de um percurso (NBP, claro) em que o desenho (e as implicações aí redobradas, como projeto mesmo) fosse sinal da ocorrência de eventos desta ordem. Efetivar o deslocamento da figura do trauma do corpo individual para o corpo social – ou seja, de um sujeito individual para o âmbito coletivo, público – seria mesmo indicar o percurso pelo qual alguém se torna artista, ou seja, passar a habitar o espaço de contato entre corpo social e corpo coletivo onde, além de se vivenciar a ambiência que ali se constitui, trabalha-se as turbulências e fluxos próprios ao potencial desta membrana. Pois então a partícula NBP se define em um particular momento de configuração e redesenho deste processo – a inflexão do jogo poético de inserções e investimento em determinado papel (artista) e suas implicações de várias ordens; ali se instala no corpo e passa a produzir marcas que enfatizam as particularidades de uma passagem, insistindo na importância em construir seus sentidos no calor de gestos sucessivos, sem qualquer ponto de chegada a priori estabelecido. É um dos traços deste programa a problematização das atribuições, do papel e da imagem do artista – dentro do qual a formulação do artista-etc (que se desenvolve na necessidade em implicar ali os papéis do artista como agenciador, como curador e como crítico) – e tal investigação não poderá deixar de incidir em certo modo de produzir obras, buscando constituir linguagem a partir das articulações discursivoplásticas, em sua contundência e singularidade. Ou seja, se há aqui determinações
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fortes do que pode delinear uma teoria de artista a conduzir esta prática particular, o problema ficaria melhor definido enquanto proposição de uma modalidade de condução do trabalho que não implica na separação das matérias e investe na forte costura do fazer plástico e fazer conceitual – apostando nas regiões de indiscernibilidade. Quanto à dinâmica de grupo (imaterialidade do corpo, espaço negativo, transatravessamento), este tópico se impôs junto aos procedimentos de trabalho à medida em que foram sendo desenvolvidas séries com a utilização dos pronomes pessoais ‘eu’ e ‘você’ – inicialmente, diagramas; posteriormente os diagramas se desdobraram nos jogos, exercícios e coreografias. Fig. 27, 29, 31 Os primeiros diagramas (1994) foram pensados enquanto mapas de relações pessoais (sob o título de série love songs) – as linhas e palavras que compunham estes diagramas concentravam-se basicamente nos fios e laços (atrações e repulsões) que se constituem entre o sujeito e o outro nos momentos em que o jogo e trânsito dos afetos atingem especial intensidade: o momento em que se inicia a relação amorosa é uma destas situações de dinâmica especial, em que se produz sensação de força e potência onde tudo parece possível, instaurando um campo dinâmico que facilita transformações (no sentido de que ninguém é o mesmo antes e depois do amor). Se o primeiro esboço de um diagrama se deu por necessidade de mapear uma relação pessoal, a partir do momento em que esta modalidade de desenho foi sendo aperfeiçoada como ferramenta de trabalho cessaram as referências biográficas: os pronomes ‘eu’ e ‘você’ dos diagramas da série love songs não correspondem a mim (este que aqui escreve) ou a ela (objeto de minha afeição), mas ao lugar da partícula lingüística conhecida como shifter ou dêitico, remetendo sempre ao interlocutores presentes no ato de leitura ou visualização do diagrama – incluindo assim diretamente o espectador no diagrama. Pouco a pouco, os diagramas passaram a incorporar – sem entretanto abandonar os pronomes ‘eu’/’você’ – elementos diretamente relacionados ao projeto específico de uma instalação ou de uma proposição curatorial, por exemplo, estendendo o âmbito da conversa para o campo contextual em que eu/você estão imersos também em papéis de certo ambiente poético-funcional, permeado pelo jogo concreto da arte: ainda que muitas vezes as
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referência não sejam explícitas, há uma dinâmica posta em jogo, ancorada naquele particular evento e local, e sujeito e objeto (eu/você) participam de tal situação coletiva. Fig. 46, 54 De modo que seria preciso estar atento ao modo como as inflexões do jogo afetam eu e você e as relações possíveis, o fluxo dos afetos. Há também nos diagramas, portanto, um deslocamento de perspectiva rumo à percepção de uma dinâmica coletiva em que o sujeito é notado como parte de uma dinâmica à qual está mais ou menos integrado (no sentido de compartilhar pulsações e ritmos) e frente à qual se preocupa com as linhas de contato (membranas, mais uma vez) que agrupam (dinâmicas estratégicas, afetivas) ou implodem. Já os jogos, exercícios e coreografias eu-você tomam o problema da dinâmica de grupo como elemento efetivo de implementação de seu fazer – estas ações são percebidas como “‘person’ ou ‘group specific’”, no sentido de que “leva[m] em conta” e são definidas “a partir da especificidade de cada grupo ou pessoa”, uma vez que “não opera[m] como um conjunto de ações e movimentos pré-estabelecidos: qualquer instrução ou decisão deve vir a partir (do interior) do coletivo”120 – consistindo em verdadeiros laboratórios em que se experimenta a construção de grupos de trabalho (que muitas vezes prosseguem em dinâmica própria mesmo depois de finalizadas as atividades). As ações podem ali ser roteirizadas ou elaboradas na experiência direta do fazer – mas somente deslancham (no sentido de tornarem-se efetivas por motor próprio) quando as frestas e intervalos (que estão em toda parte, em qualquer proposta) são efetivamente trazidos a um primeiro plano, ocupados, habitados e impulsionados pelos participantes (entre os quais sempre me incluo). É evidente que o contexto institucionalizado da arte contemporânea é hoje ultra-complexo, desenvolvendo-se em diversos circuitos – locais, regionais, internacionais, etc. – que estabelecem entre si relações em diversas escalas, exibindo tramas e amarrações de diversos tipos; a rigor, não se pode reduzir o sistema de arte a uma mecânica simplificadora nos termos de inclusão ou exclusão. Entretanto, sempre pertencemos a algum coletivo ou comunidade, estando cada um de nós de fato enredados em conjuntos afetivos,
120
Ricardo Basbaum, “Diferenças entre nós e eles”, disponível em http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/ricardo.html. Publicado originalmente em inglês como “Differences between us and them”, in Us and Them, Becky Shaw e Gareth Woollam (Org.), Liverpool, Static, 2005, pp. 71-78. V. Anexo Textos
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profissionais, políticos, familiares, etc.; ocorrem circuitos hegemônicos em cada campo, em relação aos quais estamos sempre a entrar e sair. Pode-se dizer que a dinâmica entre nós e eles é tida como o padrão habitual através do qual o papel e a imagem do artista são negociados em nossa sociedade, em termos de estruturas institucionais e de mercado. Comumente, os artistas entram nesse campo através de um processo de transformação, em que abandonam progressivamente seu estado estrangeiro para habitar a moldura institucional – essa condição convencional reduzida não representa uma norma, mas um conjunto de traços reterritorializantes que alimentam a arte, tornando-a um lugar com limites seguros e garantidos em nossa sociedade. Essa é uma óbvia supersimplificação, ligada a estereótipos do senso comum. Uma perspectiva mais interessante pode ser buscada em termos do que foi mencionado acima como ‘processo de passagem’. O artista contemporâneo rompe as linhas que vão diretamente de eles para nós, tornando essa conexão complexa, isto é, enfatizando entre suas características o fluxo contínuo entre indivíduos, grupos, coletivos e instituições – indo e vindo de um para outro, desempenhando papéis simultâneos e ocupando mais de uma posição ao mesmo tempo. Enquanto o artista superinstitucionalizado é alguém preso à linearidade |eles → nós|, o artista interessante de hoje se moveria no duplo sentido nós ↔ eles, encontrando a sua singularidade não em cada extremo, mas no conjunto de múltiplas relações envolvidas em diversos processos de transformação.121 Mirar o processo de inserção institucional do artista e da obra com atenção à sua dinâmica é também procurar compreendê-la para ali intervir; e, sobretudo, estar atento às alianças por afinidade através das quais os grupos se constituem para procurar agir e afirmar as autonomias necessárias – ainda que provisórias – a partir das quais se pode construir desvios produtivos.
121
R. Basbaum, op. cit., p. 3-4.
101
Direcionar-se para trabalhar em um horizonte de ensaio-ficção (materialidade do pensamento, transparentes conceitos, adversa geléia) é desde logo assumir certas posições relacionadas à organização do campo discursivo como instrumento ou ferramenta de ação. De fato, a busca seria em direção à intensificação da carga poético-ficcional de qualquer escrita praticada no século XXI, após as mais variadas manobras empreendidas nos últimos 200 anos – da compreensão da espacialidade e materialidade da página-em-branco e da forma-livro até as noções de hibridação de línguas, idiomas e tradições culturais (sejam quais forem), sempre em atenção com a espessura concreta da palavra como signo, como som – etc. Quando pensadores em linha com a sofisticação conceitual da tradição ocidental percebem o melhor caminho para a rigorosa construção de seu trabalho na aventura de uma escrita de invenção, a indicação é que não somente a apreensão do texto através da leitura
se
localiza
em
encruzilhada
verdadeiramente
ampla,
mobilizando
verdadeiramente mais de um sentido e aptidão (este já é um leitor equipado para deslizar facilmente entre verbal, visual e sonoro), como a própria arquitetura do texto incorpora possibilidades estendidas. Claro que em termos efetivos o que ocorre é a porosidade da malha discursiva, de modo a ofertar as lacunas e frestas potencializadoras de tantas inserções possíveis – pois não há por que exigir que tudo isso deva ocorrer literalmente a cada novo documento ou publicação: é bastante significativo já a presença enquanto potência, vir-a-ser que pode ser ativado a qualquer instante. Mas o que nos interessa aqui – sobretudo – é que como ‘resultado’ do percurso apontado acima temos acesso à linguagem como matéria flexível, massa informe a ser plasmada a partir de múltiplos recursos: podemos de fato recorrer ao discurso como campo muito mais plástico e permeável do que já chegou a ser disponibilizado e percebido em outros tempos; agora além de ferramentas, a matéria mesma está transformada, apresentando outra consistência. Cabe então utilizá-la: assim, a proposição ensaio-ficção adquire sentido quando propõe que se tome o campo discursivo como matéria com a qual se irá plasmar a linguagem que se necessita, aquela que o projeto requer – não haverá discurso pronto a ser apropriado para utilização sumária (ainda que o recurso à apropriação seja um dos mais adequados, muitas vezes, a soluções parciais), mas sentenças a serem forjadas conforme se requer. Daí a necessidade de se proceder, neste caso
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particular, através de camadas – tríades e linhas que se acrescentam sem que se apaguem
outras,
mas
provocando
reacomodação.
E isso
corresponde à
possibilidade de ir e vir entre discurso e visualidade – não importando se se parte da palavra ou do elemento plástico – sem a qual, neste projeto de trabalho, o processo de sentido não se produz; de modo que aqui a tessitura é plasmada na massa da linguagem para produzir este efeito, efetivando passagens concretas. Caberia uma observação final sobre as tríades, acrescentando aí as modalidades de ação implicadas na proposição de cada uma delas – performance; negociação; desvio, contato & distribuição. Pois existe aí menção ao gesto corporal, ao estabelecimento de mediações e à administração do que foi proposto – que aqui não se colocam como etapas de um empreendimento qualquer mas como a necessária presença de etapas do jogo artístico que não se reduzem apenas à proposição da obra, no sentido convencional do objeto estético compreendido em suas dimensões materiais e físicas. O que se procura aqui é trazer para a percepção estética (ou seja, ao campo sensível ligado ao objeto mas também ao que há em torno e que é parte concreta mas imaterial de sua efetivação) algo extra – considerando como parte constituinte da obra os elementos habitualmente localizados em outra parte, excluídos enquanto teoria, texto, conceito e formações similares: qual seja, ou estas camadas estão na obra, são mesmo ela, a constituem, ou seriam absolutamente estrangeiras à construção do poema, ameaças a uma suposta pureza ou integridade qualquer. Tal compreensão do trabalho de arte não traria afinal qualquer novidade (no sentido moderno de uma alteridade radical lançada ao futuro absoluto) – pois o problema tem sido favorito de diversos artistas (Marcel Duchamp, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Joseph Kosuth, Daniel Buren, Andrea Fraser, Maria Eichhorn – entre muitos), carregando algumas tradições de práticas e debates; tampouco a experiência da obra como sendo composta por uma prática que compreende fases e matérias diversas não pretende querer estabelecer o que seria a experiência total do trabalho de arte contemporâneo, situação que seria aqui antitética ao que está sendo proposto, uma vez que a busca interessante se dá pela descoberta de espaços e frestas e não pelo fechamento integral de lacunas (e intervalos são fundamentais quando se quer conexões e passagens mas não quando se busca
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totalidade estável). Entretanto, propõe-se aqui – sim – um modo, no que possui enquanto procedimento próprio, singular: o que se faz e produz aqui é gerado em contato próximo a uma ambiência particular, sendo ao mesmo tempo reação a ela e intervenção possível, gestos que desde sempre procuram o outro – que aí é constituído, tomado como veículo e garantia de poder ser conduzido daí a lugares diversos, em linhas de fuga. É importante considerar os desdobramentos aqui trabalhados como elemento da ambiência em que o projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? se desenvolve – camadas discursivas que fluem como as linhas do projeto, através delas, mas também conduzindo este fluir por outros desenhos, no mesmo mapa. Não se trata de qualquer dimensão conceitual por trás da obra, mas veemente intensidade em primeiro plano, entrelaçada ao percurso visual, que se irradia aos demais pontos – é interessante como no diagrama todas as regiões estão em certo contato entre si, e a intensidade que localizamos em determinadas encruzilhadas do mapa se irradia a outras localizações através das diversas passagens que se oferecem e se abrem. Bloco 2 hipervírus, marca, trauma, micropercepção, comunicação O objeto utilizado no projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? foi definido em 1994, ao mesmo tempo em que era delineado o primeiro esboço do diagrama do projeto – de modo que as etapas envolvendo a produção do objeto plástico e seu sistema de circulação tiveram desenvolvimento simultâneo: enquanto o objeto deu seqüência à série de objetos NBP que se desdobravam desde 1991, as etapas do projeto foram formalizadas de acordo com as pesquisas em torno de diagramas, que datam de 1993/94. Fig. 16 Isto é certo: Você gostaria…? não teria se desenvolvido se não houvesse sido plasmado nesta dupla articulação compreendendo o objeto e seu sistema, ambos os campos como lugar de invenção e intervenção. Sem dúvida que reside aí um momento extremamente importante – há salto de complexidade –, uma vez que a série de peças escultóricas
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passa a funcionar em conjunto com determinantes conceituais: através do diagrama, com o qual o objeto estabelece articulação de contato, um campo discursivo potencial se estabiliza junto do objeto, permitindo que a qualquer momento a dimensão conceitual possa ser acionada, funcionando ali como parte da obra – “objeto + conceitos”. Antes deste momento, é preciso destacar ainda outro objeto, cuja presença também impulsionou as pesquisas de modo decisivo: seu título remete diretamente à série (NBP – Novas Bases para a Personalidade, 1993); mas sua estrutura traz como novidade o elemento arquitetônico, que permite que funcione enquanto abrigo ou cápsula para dois visitantes: ali, sentados, os que se instalam na peça ficam visíveis aos que continuam em torno – ainda que internos, projetam-se ao exterior, indicando que a peça de ferro não passa de uma membrana, superfície que separa mas não impede o trânsito do visível (assim como não há vedação sonora – a fala irrompe e sempre se estabelece entre os de dentro e os de fora, assim como entre os dois de dentro). Fig. 17 É verdade que existe um cadeado trancando a porta: quem está ali não pode sair sem que alguém do outro lado gire a chave e franqueie a saída: assim, sempre haverá a necessidade de uma conversa entre quem, do lado de fora, possui a chave, e quem está dentro da peça – pois, e isso sempre ocorre quando esta peça é exposta, há interesse e desejo em ali entrar para se instalar no lado de dentro. Mas o mais intrigante se passa para os que entram: aquele interior consiste em estar cercado por membrana metálica, que não impede a visão do espaço em torno (seja espaço aberto ou fechado) – fazendo com que a peça literalmente funcione como uma espécie de filtro entre as coisas todas ao redor e os visitantes – que, de fato, pouco a pouco convertem-se em usuários, à medida em que vão sendo provocados pela estrutura de funcionamento da cápsula. Olhar em torno passa ser experiência interessante; sobretudo, ao ter a porta como elemento frontal: ali está plasmada a forma específica NBP e não há como olhar para frente sem que este desenho se imponha entre o olhar e o espaço exterior – como um grande filtro, esta área externa será percebida de outro modo. Gosto de pensar que por efeito deste filtro NBP são materializadas linhas invisíveis que permeiam qualquer espaço em que há trânsito de afetos (onde exista a intensidade própria de subjetividades
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produzindo inflexões neste campo imaterial mas absolutamente presente) – linhas e ondas de atração, repulsão, agrupamento, desejo, etc. Tal é, de fato, um dos momentos a partir do qual a fórmula do diagrama começou a ser enfaticamente delineada: a constatação de que era possível olhar através do trabalho, a partir dele – e o que seria visto (pois a arte torna visível ou manifesto) só o seria a partir dali; linhas, sinais, palavras que tomamos como invisíveis mas que atuam, funcionam, produzem efeitos a serem trabalhados. Ali deve-se intervir. *** É preciso lembrar que o programa de trabalho NBP - Novas Bases para a Personalidade surge em reação direta às experiências realizadas dentro do contexto de rearranjo do circuito de arte local sob impacto de uma nova ordem econômica internacional,122 dentro da qual os mercados – em seu sentido amplo, incluindo aí o mercado de arte – passam a funcionar de modo mais agressivo e atuante em relação ao campo da cultura. Não há como separar, em termos da história recente brasileira, o período de abertura política da transformação do regime econômico: “Se é verdade que o processo de dissolução da ditadura, no final dos anos 1970 e início dos 1980, resultou da pressão de movimentos políticos e sociais dentro do país, não é menos verdadeiro que também foi resultado da pressão exercida pelo capitalismo transnacional.”123 Afinal, “a abertura democrática (…) que se deu ao longo dos anos 1980, deve-se em parte à chegada do regime pós-fordista, para cuja flexibilidade a rigidez dos sistemas totalitários constituía um estorvo”.124 Portanto, esta convergência indica a necessidade de se tomar os principais acontecimentos da arte brasileira dos anos 122
No volume Império, de Antonio Negri e Michael Hardt, considerado como um dos mais significativos textos acerca do novo panorama socioeconômico – e notabilizado por apontar a discussão de novos caminhos para a luta política – a dimensão internacional do novo quadro é apontada logo nas primeiras páginas: “A problemática do Império é determinada, em primeiro lugar, por um fato singular: a existência de uma ordem mundial”. Antonio Negri, Micahel Hardt, Império, Rio de Janeiro, Record, 2001, pp. 21. 123 Suely Rolnik, “Zombie anthropophagy”, in Kollektive Kreativität, Revolver, Frankfurt, 2005, pp.206218. (catálogo de exposição, Kunsthalle Friedericianum, maio-junho, 2005) 124 Suely Rolnik, “Geopolítica da cafetinagem”, disponível em http://www.rizoma.net.
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1980 sob o impacto da “instalação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação”125 – isto é, procurar compreender de algum modo as importantes e significativas relações que se estabelecem entre o campo artístico-cultural e a esfera político-econômica (tal articulação se faz mais do premente quando se fala de um “capitalismo cultural” ou capitalismo cognitivo”126 ). Somente desta maneira se poderá escapar da repetição incessante, simplificadora e auto-referencial do refrão “Geração 80 / volta à pintura”, buscando indicar um solo mais consistente para a prática artística, crítica e historiográfica. Sintoma de uma leitura pouco consistente do período, que deliberadamente procura ignorar as complexas articulações que desde então se desenham entre práticas artísticas e a nova economia da cultura, as leituras que ainda hoje circulam procuram enfatizar a dicotomia “festa x anos de chumbo”127 , sem indicar a necessidade de abordar o momento de forma mais atenta. O que se enfatiza aqui é a necessidade de se recuperar uma aproximação para junto da obra de arte a partir de sua compreensão enquanto ‘dispositivo de resistência’ – ou seja, alguma forma reconstruída de autonomia parcial que aponte para a elaboração de ‘linhas de fuga’, de um ‘lado de fora’ propositor de redes de relações e espaços para o gerenciamento de processos outros – e não simples produção de bens de consumo que se esgotem no ato de consumi-los. Deve-se ainda lembrar – no sentido de evitar uma apreciação apenas local das dinâmicas de nosso circuito cultural – que o impacto de um “capitalismo cognitivo” que “busca continuamente capturar a potência coletiva de invenção”128 (e a dinâmica das práticas artísticas e seu circuito são elementos-chave desta “potência”) se dá de 125
Gilles Deleuze, Pourparlers. Paris, Les Éditions de Minuit, 1990, p. 247. “A mutação a que assistimos desde 1975 é aquela do nascimento de um novo modo de regulação do capitalismo (o terceiro na história, depois do mercantilismo e do capitalismo industrial). Este novo capitalismo, nós o chamamos de capitalismo cognitivo.” Yann Moulier-Boutang, “Capitalisme cognitif et éducation, nouvelles frontières”, disponível em http://multitudes.samizdat.net/Capitalisme-cognitifet-education.html. 127 Passadas duas décadas, uma exposição comemorativa que ambicionava o “resgate histórico de um movimento cultural” (texto de apresentação do Centro Cultural Banco do Brasil) não faz mais do que repetir os mesmos dizeres daquele momento: “Herdeiros do silêncio, essa nova geração sonhava com muito som, muito sol e rock and roll. Nas artes, perpassava um sentimento de liberdade, um desejo de ser feliz, de pintar a vida com cores fortes e vibrantes, valorizando o gesto, a ação. (…) contrapunha-se um desejo de fazer da arte um local de emoções, um caldeirão borbulhante de odores, prazeres e sensações. Esse compromisso hedonista, essa ânsia de ser feliz vai encontrar suas raízes no desejo coletivo de ‘participar’, de integrar a coletividade democrática que se sonhava.” Marcus de Lontra Costa, “Os anos 80: uma experiência brasileira”, in Onde está você, Geração 80?, Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, p. 7 (catálogo de exposição). 128 Y.Moulier-Boutang, op.cit.. 126
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modo bastante mais extenso, assediando de modo igualmente corrosivo diversos outros sistemas artístico-culturais. Em um texto bastante preciso e informativo, no qual examina “o efeito que o ambiente político e econômico conservador produziu sobre a arte” (norte-americana…) nos anos 1980 – com destaque para o “impacto que o mercado de arte, suporte corporativo, estratégias mercantis e a mídia tiveram sobre a função e significado da arte recente” –, o artista e crítico Richard Bolton aponta o “modo como o poder funciona através da esfera cultural para controlar o dissenso”. Atento às transformações do mercado de arte pelo “capitalismo [norte-] americano e transnacional” frente ao papel agora desempenhado pelo capital corporativo, o autor observa que “As corporações têm utilizado seu enorme poder para roubar da arte seu papel como um espaço de dissenso, como um possível lugar para a experiência não mercantilizada. O museu se torna um local de afirmação do projeto corporativo, e a corporação coloca a arte para funcionar ‘inventando um futuro’ – isto é, mercados mais amplos, maior poder. Todos compreendem como a publicidade é utilizada para definir um público e estabelecer suporte para o poder. As corporações apenas estendem esse processo para dentro da esfera cultural, transformando a arte em um tipo de propaganda. Assim, a arte provê a corporação com um meio para se comunicar com o bem público, mesmo se a corporação amplia seus interesses próprios – a arte é então utilizada para normatizar o poder da classe corporativa. Com esta finalidade, as corporações têm suplantado o apoio do governo às artes e museus e organizações artísticas dependem das corporações para sua sobrevivência – e as corporações têm iniciado a construção de seus próprios museussatélites. A distância entre espaço corporativo e cultural tem diminuído. Qual poderá ser a alternativa?”129 Enfim, sob a vigência de “um outro sistema de acumulação, no qual esta se volta para o conhecimento e para a criatividade, isto é, para as formas de investimento 129
Richard Bolton, “Enlightened self-interest: the avant-garde in the ‘80s”, in Grant H. Kester (Ed.), Art, activism and opposionality – essays from Afterimage, Durham, Duke University Press, 1998, pp. 23-50.
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imaterial”130 , é importante aproximar-se da produção de arte contemporânea – e seu circuito – com a devida atenção, apostando neste lugar como portador ainda de possibilidades para o desdobrar de um pensamento produtivo e a construção de subjetividades transformadoras: localizar-se em torno da capacidade da arte contemporânea de “deflagrar verdadeiras potências cognitivas, afetivas, sociais, aptas a desordenar e re-agenciar os espertos encadeamentos construídos pela razão produtiva contemporânea”, “inventar dispositivos que permitam fugir à constituição do público como modelo majoritário” e “exceder os clichês e hábitos perceptivos do ‘espetáculo’”.131 Há aqui um problema delineado: as transformações que se instalaram no circuito de arte brasileiro e mundial a partir do fim do século XX – sendo que os jovens artistas que
iniciaram
sua
atuação
no
espaço-tempo
brasileiro
no
período
da
redemocratização vivenciaram a instalação abrupta dos primeiros movimentos de um insidioso novo regime socioeconômico, caracterizado hoje como capitalismo cognitivo (capitalismo cultural, regime pós-fordista, etc.). Do ponto de vista dos artistas, era preciso, é claro, a partir das demandas e exigências das formas de atuação escolhidas, desdobradas e desenvolvidas (sempre, aquelas que se oferecem como possíveis a cada momento), desbravar modos de atuação e agenciamentos (individuais, coletivos, institucionais) frente ao ambiente de trabalho configurado. É neste quadro, de um circuito de arte ainda hoje com muitas dificuldades em mediar de modo mais amplo o embate dos artistas com a nova máquina econômica e seu modo particular de instalação no Brasil (como se percebe a partir da incapacidade – que ainda persiste, duas décadas depois – do aparelho crítico e historiográfico em articular de modo mínimo que seja a complexidade daquele momento132 ), que procuro situar o início de minha prática como artista: ou seja, impõe-se uma discussão da construção e processamento de linguagens plásticas; o debate com um campo conceitual crítico-histórico; a exploração de 130
Y.Moulier-Boutang, op.cit.. Éric Alliez, Brian Holmes, Maurizio Lazzarato, “Construction vitale: quand l’art excède ses gestionnaires”, in Multitudes, Paris, Éditions Amsterdam, nº 15, inverno 2004. Disponível em http://multitudes.samizdat.net/Construction-vitale.html. 132 De fato, as exposições “2080”, museu de arte moderna, São Paulo, 2003, e a já mencionada “Onde está você, Geração 80?”, Centro Cultural Banco do Brasil, 2004, não foram capazes de tocar no nervo das contradições e complexidades do período e de seu processo de institucionalização. 131
109
possibilidades de inserção institucional e agenciamento; o embate e enfrentamento pela constituição de uma imagem do artista. Não se trata aqui, obviamente, a traçar os detalhes de um percurso pessoal mas enfatizar algumas escolhas e opções de trabalho, seguindo alguns de seus desdobramentos internos/externos – os quais serão confrontados com linhas gerais das questões que se abrem com a discussão do atual quadro socio-politico-econômico que se impõe sobre o globo no século XXI, indicando possibilidades de construção de resistência: produção conceitual de pretensos desvios alternativos, frente à hegemonia do poder consensual majoritário, que permitam a constituição de modalidades de espacialidade, convívio e pensamento de ordem plural e heterogênea; ou ainda, de modo mais concreto, traços de uma prática artística sendo articulados enquanto possibilidades de ação plástico-conceitual. Eis que, após um período extremamente intenso de atividades em diversas direções, com a utilização de linguagens variadas (desenho, pintura, objeto, intervenção, performance, vídeo, música), impôs-se a fórmula da aproximação da arte contemporânea com campo comunicativo.133 Esta fórmula já havia sido trabalhada com sucesso na série com a marca Olho – e não é uma simples coincidência ter sido este o trabalho com o qual participei de “Como vai você, Geração 80?”: impunha-se já a necessidade de alguma fluidez frente aos caminhos de criação de ‘possibilidades de trabalhar como artista’ (não é isso que pode fazer um jovem artista, apostar nas virtualidades de um desdobramento à frente, enquanto se ganha alguma velocidade?). Fig. 10-12 Ou seja, com a marca Olho já há um investimento em estratégias de repetição, na presença em diferentes espaços, na construção de um campo de empatia para com o outro, na mobilização de uma percepção ‘veloz’,
133
É interessante que pensadores atentos ao desenvolvimento do capitalismo cognitivo, à procura da construção de um pensamento de resistência, apontem a “política da comunicação ou (…) a luta para o controle ou para a libertação do sujeito da comunicação” como traços característicos da nova organização do poder socioeconômico: “a unidade do político, do econômico e do social é determinada na comunicação; é no interior desta unidade, pensada e vivida, que os processos revolucionários podem hoje ser conceituados e ativados”. Maurício Lazzarato e Antonio Negri, Trabalho imaterial – formas de vida e produção de subjetividade, Rio de Janeiro, DP&A, 2001, pp. 3940.
110
etc.134 Segue aqui um breve comentário acerca desta incursão em um projeto comunicacional: [A] marca Olho foi desenvolvida especialmente para este evento [“Como vai você, Geração 80?”], sob a forma de adesivos para serem colados pelo espaço da sala e por outros locais do edifício. Os adesivos estavam também disponíveis para venda, podendo ser adquiridos (um pacote com dois) pelo público visitante: uma forma de estender o trabalho para além do evento, colocando (literalmente) nas mãos dos visitantes possibilidades de invasão do trabalho por outros espaços, construindo outras intervenções, num gesto já de certa forma interativo, em que minha autoria é compartilhada (processo que continuei através do projeto NBP). Colados (ou às vezes pintados) sobre objetos, outras imagens ou elementos arquitetônicos, desenvolvi uma série de trabalhos nos anos seguintes (até aproximadamente 1990), explorando as possibilidades de reprodutibilidade desta marca simples e impregnante. Além de produzir um efeito de demarcação e antropomorfização de objetos e imagens, a marca Olho provoca principalmente uma reversibilidade perceptiva, fazendo com que as coisas, transformadas em agentes e arrancadas à sua indiferença, nos observem. Para o olhar humano, cria-se a possibilidade de acesso a uma suposta 'interioridade' do mundo – através da estratégia de enfatizar a superfície das coisas, pois o Olho transforma tudo em imagens perceptualmente dinamizadas –, em que a marca indica pontos de produção de problemas, de questões (a 'interioridade' afinal revelada como abismo, campo problemático sem qualquer a priori), como uma ferramenta de evidenciação e combate à homogeneidade e opacidade das coisas. Claro que a mobilização perceptiva envolvida neste processo é da ordem da velocidade, da repetição, impregnação, estampagem e memorização, abrindo caminho 134
Assim dizia o texto de apresentação do projeto desenvolvido com a marca Olho em 1987, na Unicamp, enquanto artista residente: “I- Este trabalho tem a pretensão de ser contemporâneo: inserese no campo visual comunicativo das sociedades de massa, planetárias: quer dialogar com muita gente. II- A divulgação multiplicada de uma única marca, contaminadora de qualquer espaço: propaganda da mais interessante possibilidade da arte: olhar-crítico, olhar-conhecimento, olharpensamento. III- Ação substantiva de um salto acima do vácuo ocidental para a positividade sinestésica de algo. IV- Celebração: conseqüência agradável, não condição de trabalho do afastado artista, em busca de melhores e mais acirrados ângulos de visão.” Ricardo Basbaum, Evento da torre, Campinas, Unicamp, 1987 (folder-convite). Fig. 12
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para a subliminaridade presente no projeto NBP: aproximação das estratégias da arte com o campo comunicativo das sociedades de controle. É preciso destacar também a operação de formação de um campo pático135 , em que o envolvimento afetivo do fruidor desempenha um papel fundamental na construção de seu relacionamento com o trabalho. Decorre desta estratégia de envolvimento a implementação de uma possibilidade de produção discursiva – e é aí que a marca Olho vai sendo progressivamente substituída pelo projeto NBP enquanto modo de articulação visual que procura responder mais eficientemente a esta demanda de um relacionamento variado com a palavra e o conceito.136 Deste modo, NBP se caracteriza por procurar abrir uma inflexão produtiva em meio às questões que se desenvolviam no trabalho até então, estabelecendo articulação direta com elementos de um discurso propriamente plástico – em contato com determinantes sobretudo da escultura, objeto e desenho, mas também da instalação, performance, arquitetura e vídeo – e elementos de uma estratégica gráfica, da ordem da reprodutibilidade técnica e de um viés comunicativo, cuja articulação texto/imagem permitia então que fosse lançada ao olhar em um jogo perceptivo mais rápido, repetitivo e insidioso, aproximando-se mesmo de possibilidades ditas subliminares e de contaminação. Vale lembrar que quando formulei pela primeira vez a sigla NBP, articulando as consoantes iniciais da proposição Novas Bases para a Personalidade, havia a motivação de mobilizar principalmente a questão da 'transformação', relacionando-a de alguma forma ao corpo. Vindo de experiências com performance (junto à Dupla 135
"O que nos faz afirmar fenomenologicamente que algo está vivo? É precisamente através desta relação de afeto. (…) uma apreensão pática, imediata e não-discursiva ocorre do relacionamento ontológico de auto-composição da máquina. (…) No momento da relação autopoiética, existe um conhecimento imediato e pático da situação – 'algo está ocorrendo'". Félix Guattari, "On Machines", Journal of Philosophy and the Visual Arts (artigo fotocopiado, s/d). As observações de Guattari são importantes para a configuração de um campo pós-fenomenológico da experiência perceptiva com a obra de arte. 136 Ricardo Basbaum, “Projeto NBP: algumas pistas de um programa em processo” in Luiz Nazario e Patricia Franca (Orgs.), Concepções contemporâneas da arte, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006, pp. 204-205. Texto apresentado originalmente no Seminário Outras investigações, módulo “O artista como pesquisador”, Itaú Cultural, Belo Horizonte, 01/09/2000. A argumentação a seguir toma partes deste escrito como referência.
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Especializada e Seis Mãos137 ), o problema de uma corporalidade se colocava como peça fundamental do fazer artístico acumulado até então, suporte mesmo da construção da obra; e havia, ainda, experiência quanto a uma decisiva ênfase na recepção, com a audiência necessariamente colocada em situação de envolvimento e impacto. Ressoava também, naquele momento, uma declaração de Lygia Clark – entrelida em uma entrevista cuja fonte me escapou – de que se havia algo em seu trabalho que só poderia ter sido feito no Brasil seria sua "preocupação com a participação do espectador, com o corpo…". Questões também presentes em Hélio Oiticica, que junto com Clark havia recentemente figurado em importante exposição retrospectiva, no Paço Imperial138 . Estes dois elementos – ênfase na corporalidade, nos termos de uma participação do espectador conduzindo a um processo de transformação; sensação de pertencimento inevitável a um local, a um campo cultural singular, sem qualquer conexão a um caráter nacional – ganharam elaboração na busca por uma fórmula verbal que expressasse de modo sintético e estratégico esta ordem de proposições. NBP aparece sob a pretensão de abrigar uma nova etapa de possibilidades de trabalho. NBP configura-se como uma palavra de ordem, um comando, claramente orientado para uma indagação acerca de estrutura (Bases) e mutabilidade (Novas). Há a preocupação com processos de mudança, transformação, percebidos a partir de uma consistência própria, interna: através de sua repetição e memorização, a palavra de ordem gradualmente se insinuaria junto ao receptor ou fruidor e 137
A Dupla Especializada (Alexandre Dacosta e Ricardo Basbaum) tinha como principal projeto de trabalho a proposta geral de "intervenção em meios de comunicação de massa". Realizamos performances envolvendo pintura e música (1981), intervenções com cartazes no espaço urbano (1981-84), distribuímos uma filipeta-manifesto (1984), produzimos um videoclipe (Egoclip, direção de Sandra Kogut e Andrea Falcão, 1985) e um conjunto de canções, apresentadas no showperformance "Reflexões Musicais" (1986). Fig. 1-6 O grupo Seis Mãos (Alexandre Dacosta, Barrão e Ricardo Basbaum) começou suas atividades em 1983, com "Improvisos para pintura e música". Realizamos a performance Garçons (1984-85), em que invadíamos de surpresa vernissages vestidos de garçons, distribuindo objetos e textos especialmente preparados para cada ocasião. Junto com Sandra Kogut apresentamos, em diversos espaços do Rio de Janeiro, a vídeo-performance Calêndula Concreta (1986-87) Fig. 7-9.Ver algumas referências da Dupla Especializada e grupo Seis Mãos em Corpo, São Paulo, Itaú Cultural, 2005, p. 51. Até o momento, o principal acesso à produção destes dois grupos restringe-se ao arquivo dos artistas envolvidos. Uma recente exceção é o texto “Década de 1980: mais algumas observações críticas”, de Thaís Rivitti, número sete, USP, 2006, pp. 4-5, que desenvolve comentários acerca do vídeo Egoclip, da Dupla Especializada (1985). 138 "Lygia Clark e Hélio Oiticica", Sala Especial do 9º Salão Nacional de Artes Plásticas, curadoria de Luciano Figueiredo e Glória Ferreira, Paço Imperial (Rio de Janeiro), 1986.
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sutilmente deflagraria um processo auto-induzido de transformação – mecanismo que será comentado mais adiante, a partir de questões do campo perceptivo. A palavra Personalidade vem articular-se às outras duas, procurando conduzir o processo para um lugar que escape (para assim, muitas vezes, atuar em conjunto) a algumas construções cujo sentido tem sido precisado pela filosofia, psicanálise ou literatura (sujeito, subjetividade, interioridade, etc.), instalando-se com uma certa lateralidade139 : a significação aqui pretendida deve, isto sim, retornar – junto com a singularidade plástico-visual promovida pelos trabalhos – para estes campos, provocando-os. Dentro desta alusão a processos de individuação e transformação, a ênfase recai, por um lado, junto a traços comportamentais, exteriorizantes, próximos ao mapeamento [behaviorista] de um corpo que marca seus movimentos e gestos motivados pelo espaço em torno; é importante, aí, a dimensão 'encenada' ou 'construída' destes comportamentos em seus esquemas de produção de uma imagem de si aos olhos do outro (e introjetando também neste gesto o olhar do outro, buscando a lateralidade instalada, o estranhamento de si mesmo, reverberando a máxima do eu é um outro). Por outro lado, há neste termo (Personalidade) alusão a uma engenharia ou ambiente interno qualquer necessário a construir o comando destes displays de comportamento: uma condição de internalidade que é espaço (em contínua inversão dentro-fora, como bem ilustra a fita de Moebius, via Clark & Oiticica, mas também através de Tunga, para quem a fita é local de um evento ou espetáculo pós-barroco) e que por isso mesmo articulase com o corpo do qual faz parte, pelo qual é alterado e o qual faz alterar. 139
Brian Holmes desenvolve a noção de “personalidade flexível” como maneira de articular um “tipo ideal” de subjetividade, conforme é “moldada e direcionada pelo capitalismo contemporâneo”: “descrever o trabalhador imaterial, ‘prosumer’ [termo que combina em uma mesma palavra as categorias produtor/producer e consumidor/consumer’] ou networker como personalidade flexível, é descrever uma nova forma de alienação, não a alienação da energia vital e do desejo errante exaltados nos anos 1960, mas a alienação da sociedade política. (…) [U]ma nova forma de controle social, na qual a cultura desempenha um importante papel (…) uma forma distorcida de revolta artística contra o autoritarismo e estandardização”. Para Holmes, a personalidade flexível indica uma subjetividade na qual as “energias revolucionárias surgidas nas sociedades ocidentais nos anos 1960, e que em um momento pareciam capazes de transformar as relações sociais”, encontram-se “’constituídas, definidas, organizadas e instrumentalizadas’ por um conjunto de técnicas” – representando assim “um padrão ‘soft’ de coerção, internalizado e culturalizado”. É interessante como o autor contrapõe a personalidade flexível, tipo representativo do capitalismo cognitivo, com aquele criado por Adorno e seus colegas da Escola de Frankfurt, como representativo do capitalismo de estado dos anos 1930/40 e batizado de “personalidade autoritária” [authoritarian personality]. É claro que o projeto NBP visa instalar-se no espaço apontado por Holmes para ali desenvolver estratégias de resistência. Brian Holmes, “The flexible personality: for a new cultural critique”, in Hieroglyphs of the future, Zagreb, Arkzin, 2004.
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Existe aqui uma interessante conexão com certas correntes do pensamento filosófico materialista próximas à biologia, em formulações acerca da relação sensível com o mundo – e que apontam para certa condição de plasticidade frente aos processos de constituição da subjetividade. Arrancando desde logo o sujeito de uma posição passiva, chama-se a atenção de que “o que os meus sentidos me dizem a qualquer momento está baseado em meus interesses como agente e é determinado por eles” – sem deixar de pontuar que “não temos uma relação de transparência em relação a nós mesmos” e que portanto os processos de produção de subjetividade (sempre um cuidado de si, como dizia Michel Foucault) não seriam separáveis de um “conjunto de próteses” e mediações a partir do qual emergiria um eu da ordem do ficcional, tal qual um “centro narrativo”. Aqui, mais uma vez, há a construção de um mecanismo de produção do mundo como diferencial e estranho – repleto de sensações – a um sujeito; afinal, o “cérebro estaria localizado dentro do mundo simbólico e social”, e graças às “próteses” (reforçadas pela “linguagem, cultura e instituições”) “escaparia ao solipsismo”, em direção ao outro. O filósofo da biologia Charles T. Wolfe aproxima assim “produção de subjetividade” de uma “ontologia constitutiva, segundo [Antonio] Negri” (a partir da “de-ontologização do cérebro”): aí ocorreriam passagens entre “um cérebro-em-rede social, culturalizado e dotado de plasticidade e a produção e reprodução do ser através de desejos e ações de agentes concretos”.140 Claro que aqui o trabalho de arte – e toda a estratégia sensorio-conceitual que o envolve – estaria desempenhando o papel de artifício, prótese, um mediador a atuar a partir da possibilidade de um pensamento por sensações – afinal, “a sensação não é menos cérebro que o conceito”.141 Acompanhando a operação que Lygia Clark nomeou de "metabolismo simbólico" – um introjetar de sentido processado e integrado organicamente pelo corpo, enquanto mecânica
de
hibridização
–
pode-se
perceber
também
uma
abordagem
extremamente importante acerca de como a presença do objeto ou situação sensível 140
Citações de passagens do artigo de Charles T. Wolfe, “De-ontologizing the Brain: from the fictional self to the social brain”, Ctheory, Vol 30, n. 1-2, 051, 2007, http://www.ctheory.net, 141 “É o cérebro que diz Eu, mas Eu é um outro. (…) E este Eu não é apenas o ‘eu concebo’ do cérebro como filosofia, é também o ‘eu sinto’ do cérebro como arte.” Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 271.
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(objeto relacional, toque, som, odor, proposição artística, etc.), ao envolver o outro e suas diversas e complexas camadas a partir das quais deflagra o jogo das sensações, produz efeitos de transformação do sujeito: “O corpo se ‘apropria’ de toques, de contatos, de órgãos dos corpos adultos, de acidentes dolorosos que o atingem, de desnivelamentos dos espaços, de intervalos de sensações sensórias agradáveis ou não, num processo de metabolização simbólica que vem a constituir o ego.”142 As invenções e descobertas de Lygia Clark constituem, sem qualquer dúvida, um dos principais conjuntos de formulações acerca da relação do sujeito com a alteridade sensível, direcionada a uma proposta de transformação ligada à cura. Deve ser destacada a elaboração de um sofisticado aparato sensorial-conceitual, que tem como matriz de desenvolvimento questões-chave da arte contemporânea produzidas a partir da segunda metade do século XX, caracterizando o trabalho de Clark como uma investigação – praticamente sem precedentes (que outros artistas teriam, no século passado, desenvolvido uma obra com alcance de aglutinar em torno de si tantas outras e diversas áreas do conhecimento? Marcel Duchamp seria um deles – mas não há muitos) – em torno de um saber da arte (aquele produzido pelas obras)143 e seus desdobramentos. Esta combinação entre uma dimensão de ‘processamento orgânico’ e um ‘campo simbólico’ – ambos em funcionamento conjunto, em direção constitutiva do sujeito – é também considerada por Paolo Virno, que aponta para a interessante perspectiva de que a mobilização de um processo intensivo de individuação/subjetivação não se esgota nos limites do organismo144 ou indivíduo, mas avança para a constituição da 142
Lygia Clark (com a colaboração de Suely Rolnik), “Memória do corpo”, in Lygia Clark, Rio de Janeiro, Funarte, 1980, p. 55. 143 É importante quando Ronaldo Brito insiste na singularidade, que ainda pode-se dizer subaproveitada, do saber da arte: “Hoje aparece cada dia com mais clareza a distinção – senão a contradição – entre o Saber da Arte e o Saber sobre a Arte. Entre a verdade produtiva dos trabalhos de arte, ao longo da história, e o discurso da História da Arte. E se constata o quão pouco se conhece desse primeiro e decisivo saber (…)”. Ronaldo Brito, “O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo)”, in Arte Brasileira Contemporânea - Caderno de Textos 1, Funarte, Rio de Janeiro, 1980. 144 Charles T. Wolfe lembra que “a construção de um caso-limite chamado ‘organismo’ se dá forçosamente a posteriori”, sendo este “nada além do que a produção de uma artificialidade vital”
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“multidão”, atingindo “seu ápice no agir conjunto, na pluralidade de vozes (…) na esfera pública” (e aqui transparece as preocupações deste autor com uma produção teórica que apóie as lutas políticas da atualidade). Virno propõe a noção de um “sujeito anfíbio”145 , a qual integra junto ao “indivíduo individualizado (…) uma certa proporção irredutível de realidade pré-individual” – ou seja, aquela próxima da natureza enquanto “indeterminado” (aperion); neste composto, articulam-se “a tonalidade anônima do que é percebido (a sensação enquanto sensação da espécie), o caráter imediatamente inter-psíquico ou ‘público’ da língua materna e a participação no general intelect” (caracterizado como o “saber abstrato, a ciência, o conhecimento impessoal”). Logo, haverá aí espaço importante reservado ao jogo pré-individual enquanto potência subjetivante, indicando possibilidades de um jogo intensivo de busca de alteridade em relação às coisas, sensações, linguagem, outros sujeitos. Porém, é importante entretanto destacar que o modelo de Virno (baseado em grande parte em Gilbert Simondon) contempla não apenas o sensível mas também o campo lingüístico, como característicos do campo pré-individual – abre-se assim a possibilidade de se considerar, no impacto da obra de arte junto ao sujeito, a força das sensações em funcionamento conjunto com a linguagem, construindo passagens para as questões próprias do conceitualismo146 na arte contemporânea.
(mas resistente “ao modelo mais mecanicista”), a “capacidade de projetar uma totalidade significante sobre um universo caótico”. Também aí reverbera uma questão constitutiva ou construtiva, uma vez que em seu sentido mais “ordinário, na natureza”, o organismo “é uma ficção, uma saturação temporal e histórica de uma interseção causal no grande nexo do mundo.” Charles T. Wolfe, “La catégorie d’’organisme’ dans la philosophie de la biologie: retour sur les dangers du réductionnisme”, in Multitudes, Paris, Éditions Amsterdam, nº 16, primavera 2004. Disponível em http://multitudes.samizdat.net/La-categorie-d-organisme-dans-la.html. 145 Paolo Virno, “Multitude et principe d’individuation”, disponível em http://multitudes.samizdat.net/Multitude-et-principe-d.html. 146 Adotamos aqui a distinção entre conceitualismo e arte conceitual proposta na exposição Global conceptualism: points of origin 1950s-1980s: enquanto “arte conceitual” refere-se diretamente a “uma prática formalista e essencialista desenvolvida a partir do início do minimalismo” (ou seja, enquanto corrente particular dentro da arte contemporânea, com atuação centralizada no período entre 19631974), o “conceitualismo”, ao “romper decisivamente com a dependência histórica da arte em relação à forma física e apercepção visual”, seria “a ampla expressão de uma atitude envolvendo um largo elenco de práticas que, ao reduzir radicalmente o papel do objeto de arte, re-imaginou as possibilidades da arte em relação às realidades sociais, políticas e econômicas dentro das quais é produzida.” Além disso, “sua informalidade e afinidade com o coletivismo tornou o conceitualismo atraente para aqueles artistas que desejavam um engajamento mais direto com o público”. É importante ainda acrescentar que vemos a própria noção de arte contemporânea como portadora de uma condição conceitual. Luis Camnitzer, Jane Farver e Rachel Weiss, “Foreword”, in Global conceptualism: points of origin 1950s-1980s, Nova York, Queens Museum of Art, 1999, p. VIII.
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É mesmo próprio do projeto NBP - Novas Bases para a Personalidade desenvolver sua estratégia de ação a partir de uma modalidade de entrelaçamento entre texto e imagem, aproximando as dimensões sensorial e conceitual. Enquanto sigla, as três letras propõem um caminho de ação através de mecanismos de compactação sígnica, em que a fórmula NBP serve efetivamente para a convocação de uma série crescente de proposições que progressivamente se acumulam no decorrer do trabalho, sinalizando os caminhos tomados a cada nova intervenção. Para marcar ainda mais as diferenças deste projeto com o anterior (em torno da logomarca Olho), o projeto NBP não se constituiu simplesmente a partir de um conjunto de letras que se superpõem a qualquer objeto ou imagem (como ocorria com a marca Olho), mas sim pela configuração de um suporte próprio – ele mesmo um sinal de compactação e de impregnação –, de modo a que a presença verbal da sigla se dissolva e combine na imagem e estrutura do desenho; e mais: se apresente também na estrutura e imagem de cada objeto, escultura, instalação ou diagrama desenvolvido a partir desse mesmo desenho . Deste modo, através de um processo de desenho e projeção cheguei à configuração de uma forma específica, composta para funcionar ao lado da sigla de três letras:
Esta forma é compacta, impactante e facilmente memorizável, funcionando como presentificação e remissão constante ao projeto NBP. Sigla e forma específica unem-se na constituição de um signo verbal/visual, utilizado agora no delineamento de uma estratégia de ação em que as proposições plásticas e visuais são integradas à produção de um campo discursivo: proposta de uma articulação simultânea dos campos heterogêneos das coisas e das palavras, indicando a construção do par visualidade-conceito como ponto de intervenção específico de um projeto de arte na
118
contemporaneidade147 . Seguiram-se a partir daí diversos projetos – objetos, desenhos e instalações com diversos materiais –, sempre repetindo NBP e sua forma específica: repetindo com diferenças, de modo que cada novo trabalho enfatize sempre uma particularidade (de acordo com o material, espaço físico, condições institucionais, etc.), adicionando especificidade e complexidade sempre que se processa a atualização do projeto em um novo trabalho. No texto “O que é NBP?” – o primeiro a traçar as referências iniciais do projeto NBP – são lançadas as linhas gerais de um programa de trabalho que procura escapar das armadilhas de uma objetivação de propósitos que seria excessiva: as palavras ali não querem rivalizar-se com as proposições plásticas mas sim complexificá-las, exibindo a trama e a textura de sua constituição. "Instantaneidade comunicativa", "espacialização de um pensamento em rede" e "redefinição da corporalidade" são vetores de uma estratégia em expansão, voltada para determinada forma de ação possível frente à atualidade da cultura. Reivindica-se o campo das artes visuais como local para a realização de uma intervenção, e aí são mobilizados os parâmetros do campo sensível como espessura organizadora e produtora do real do mundo: desmontar esta organização através de uma proposição rigorosa e aguda é mobilizar o par sensorialidade-cognição em suas propriedades des- e reconstrutivas, atestando também um aspecto de autoprodução de si ("deixe-se contaminar: elas [as mudanças] serão fruto de seu próprio esforço"). Após relacionar-se com os trabalhos, o espectador parte com NBP e sua forma específica dentro da mente. Como uma memória implantada ou artificial, este vírus (um signo, cápsula de informações virtualizadas) carrega potencialidades (aqui expressas pela inseparabilidade do par visual-conceitual) a serem atualizadas frente ao percurso da vida e da experiência cotidiana. Encontra-se aqui uma convergência direta – mas não linear! – com estratégias utilizadas pelo mundo da publicidade corporativa em torno das logomarcas. De fato, data-se a partir da década de 1980 o início do período denominado de “capital de 147
Em torno deste problema desenvolvi a dissertação "Convergências e superposições entre texto e obra de arte" (Mestrado em Comunicação e Cultura, Escola de Comunicação , UFRJ, 1996), publicada em Ricardo Basbaum, Além da pureza visual, Porto Alegre, Zouk, 2007, pp. 17-94.
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marca”, em que o “capital puro de investimento” passa a migrar diretamente para o setor do branding, ou seja, para a criação e desenvolvimento de marcas, logomarcas e conceitos para serem associados aos produtos de venda: “para essas empresas (…) a produção real (…) é a marca”. Percebe-se claramente como o capital corporativo passa a desenvolver sobretudo estratégias de “produção de significado”, mais do que de fabricação de produtos: a nova operacionalidade do marketing indica que as mercadorias sejam “apresentadas não como ‘produtos’, mas como conceitos”, tendo a “marca como experiência, como estilo de vida”.148 “As grandes potências industriais e financeiras produzem, desse modo, não apenas mercadorias mas também subjetividades. Produzem subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico: produzem necessidades, relações sociais, corpos e mentes – ou seja, produzem produtores. Na esfera biopolítica, a vida é levada a trabalhar para a produção e a produção é levada a trabalhar para a vida.”149 É importante enfatizar aqui que ao desenvolver tanto a marca Olho como a sigla e forma específica NBP não houve propósito direto de parodiar uma forma de ação concreta da nova dinâmica do mundo socioeconômico – trata-se muito mais de uma atuação convergente com o funcionamento do ambiente dos fluxos globais, em que as estratégias comunicacionais são sintoma de uma operatividade que se impõe. Pois se o propósito é fazer o campo da arte contemporânea convergir para a demanda de um agir veloz, repetitivo, presente em diferentes espaços e portador de uma estratégia conceitual de ordem problematizadora, é porque se acredita que tal estratégia irá indicar formas de resistência e instrumentalizar o trabalho frente a um circuito de arte que de modo crescente se integra (e se entrega) a um funcionamento que obedece aos mesmo preceitos de marketing das corporações globais.
148
Naomi Klein, Sem logo: a tirania da marca em um planeta vendido, Rio de Janeiro, Record, 2003, pp. 31, 39, 45-46. 149 Antonio Negri e Michael Hardt, op. cit.., p.51.
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Outra significativa convergência, a partir de modos de formalização de questões plásticas e sua relação com tópicos amplos do campo dos debates da atualidade ocorre também em relação às discussões acerca de modos de contato, transmissão e transferência de informação sensível – sempre tendo em vista que este importante protocolo é peça-chave do processo de recepção da obra de arte (desde sua autonomização, no período moderno) enquanto produção de alteridade (como bem apontam Deleuze e Guattari em sua conhecida fórmula: “Os afectos são precisamente estes devires não humanos do homem, como os perceptos (…) são as paisagens não humanas da natureza”150 ). Artista cuja produção apresenta uma lucidez fulminante que atravessa seus pouco anos de vida e trabalho (pois faleceu em 1963, com apenas vinte e nove anos de idade), Piero Manzoni contribui para uma importante mudança no vocabulário formal da arte contemporânea151 . Suas operações conceituais renovam a compreensão da noção de superfície como “veículo” e da percepção da linha como “membrana” – ambas foram utilizadas e experimentadas de modo variado e diverso em uma série de trabalhos: a proposição Consumo de arte dinâmica pelo público devorador de arte (1960) investe na distribuição de um trabalho de arte através do corpo do espectador por meio de uma estratégia de contaminação viral – Manzoni imprimiu seu polegar em ovos cozidos que foram oferecidos ao público (segundo o artista, “o público pôde fazer contato com os trabalhos devorando a exposição em 70 minutos”152 ); as Esculturas vivas (1961) tomavam a pele do corpo como superfície dinâmica, de comportamento similar a uma membrana ativa, que ao toque de sua assinatura produzia a transformação daquela pessoa em obra de arte – uma bio-escultura pronta para (talvez) produzir modificações no ambiente, a partir do reconhecimento da condição permeável do sujeito às trocas entre uma internalidade e um lado de fora. Estas operações continuam com a série de pedestais (Base mágica, 1961), em que bases de madeira intermediariam a transformação de corpos ‘comuns’ em esculturas vivas – sendo a versão mais ambiciosa aquela denominada Socle du monde (1962), a 150
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 220. Utilizo aqui referências diretas do artigo de minha autoria “Within the organic line and after”, publicado em Alexander Alberro e Sabeth Buchmann (Ed.), Art after conceptual art, Massachusetts, MIT Press, Viena, Generali Foundation, 2006, pp. 93. 152 Piero Manzoni, “Some Realizations... Some Experiments... Some Projects...”, 1962, disponível em http://home.sprynet.com/~mindweb/page14.htm. 151
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partir da qual todo o planeta estaria sendo posicionado em ‘modo de exibição’ sobre esta pequena ‘plataforma para transformação’. Fig. 55-57 Esta série de trabalhos indica a investigação se desenvolvendo em torno de estruturas de mediação – sobretudo a importante consideração das formas dinâmicas da linha como membrana (regiões de contato) e da superfície como veículo (superfícies de deslocamento a partir de contato dinâmico)153 . É possível aqui perceber a convergência entre a demanda propriamente autônoma por alteridade, da parte do sujeito sensível em contato direto com a obra de arte, e a busca pelo desenvolvimento de estruturas formais avançadas de mediação que respondam aos problemas próprios do ambiente da atualidade, em busca de uma possível intervenção. Atendendo à confluência destes aspectos – membrana, veículo, contato, alteridade –, e apontando para a agregação de mais alguns outros elementos, encontramos uma construção importante para a estratégia de atuação do projeto NBP: a forma compacta, que se repete de modo recorrente e agrega simultaneamente as dimensões sensorial e conceitual/informacional – o vírus como “o tropo máximo da cultura pós-moderna.”154 De fato, diversos autores mobilizam esta referência extraída diretamente do campo da biologia e localizada “na lacuna entre o mundo vivo e o não-vivo”; além disso, os próprios cientistas reconhecem que o que se discute de modo concreto nos laboratórios é o papel dos vírus enquanto “agentes de variação”155 , de troca de informação genética entre as células, muito além do ameaçador vetor infeccioso causador de doenças. Como observa o sociólogo Thierry Bardini156 , pode-se falar de uma contaminação generalizada da cultura contemporânea por um “hipervírus” (o “vírus ‘vírus’”), tal a recorrência desta marcante referência em textos de diversas origens, dentro do pensamento literário e 153
É importante notar que a noção de um dinamizador que ultrapassasse o vocabulário formalista também se encontra dentro do quadro amplo do conceitualismo, onde “’desmaterialização’ não significou apenas o desaparecimento do objeto, mas uma redefinição de seu papel como portador de sentido [carrier of meaning], reinvestindo sentido em objetos existentes e procurando eliminar a erosão de informação.” Luis Camnitzer, Jane Farver e Rachel Weiss, op.cit., p. VIII. 154 Thierry Bardini, “Hypervirus: a clinical report”, in Ctheory, Vol. 29, Nº 1-2, 031, 2006, http://www.ctheory.net. 155 Hyman Hartman, “Vírus, evolução e origem da vida”, in Charbel El-Hani e Antonio Augusto Passos Videira (Orgs.), O que é vida? Para entender a biologia do século XXI, Rio de Janeiro, Relume Dumará, Faperj, 2000, pp. 233-242. 156 Retomamos a partir de agora diversas passagens do artigo mencionado anteriormente, Thierry Bardini, op. cit..
122
filosófico recente. Além de estar presente de modo marcante na obra de William Burroughs – um dos principais autores a “sintetiz[ar] e experiment[ar] dentro da tese fundamental: a linguagem (e especialmente a linguagem escrita) é um vírus” –, foi ainda “teorizado de Derrida a Foucault, de Baudrillard a Deleuze”. Em entrevista realizada em 1994, Jacques Derrida comenta que “Tudo que tenho feito (…) está dominado pelo pensamento sobre o vírus, o que poderia ser chamado de parasitologia ou virologia, um vírus podendo ser muitas coisas (…) O vírus é em parte um parasita destrutivo, que introduz desordem na comunicação. Mesmo do ponto de vista biológico, isso é o que ocorre com um vírus; faz sair dos trilhos o mecanismo de tipo comunicacional, sua codificação e decodificação. Por outro lado, é algo que não é vivo nem não-vivo; o vírus não é um micróbio. E se você seguir estes dois caminhos, aquele do parasita que, do ponto de vista comunicativo, interrompe uma destinação – interrompendo a escrita, a inscrição, a codificação e decodificação da inscrição – e aquele que por outro lado não está vivo nem morto, você terá a matriz de tudo o que fiz desde que comecei a escrever.”157 Neste caso, é interessante perceber que o “projeto filosófico de Derrida” – segundo Bardini –, desenvolvido entre 1967 e 1972 (de Gramatologia a Disseminação), seria marcado pelo esforço de “introduzir o outro no Eu – uma redefinição do sujeito”, em que persegue “a absoluta alteridade da escrita”. Tal busca por uma alteridade estaria identificada com este “outro radical que é o vírus” – sempre a partícula portadora de uma informação diferenciante, invasiva, circulando no corpo, um “suplemento, tomando e mantendo o lugar do outro”: a “ontologia viral” como a “ontologia do suplemento imaterial”158 .
157
Jacques Derrida, com Peter Brunette e David Willis, "The Spatial Arts: An Interview with Jacques Derrida.", in Peter Brunette e David Wills, (Eds.), Deconstruction and the Visual Arts: Art, Media Architecture, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 12. Citado em Thierry Bardini, op. cit.. 158 De Jacques Derrida, pode-se ler ainda: “eu não tenho senão uma língua e ela não é minha, a minha ‘própria’ língua é-me uma língua inassimilável. A minha língua, a única que me ouço falar e me ouço a falar, é a língua do outro.” Jacques Derrida, O monolingüismo do outro ou a prótese de origem, Porto, Campo das Letras, 2001, p. 39.
123
NBP e sua forma específica, portanto, movimenta-se enquanto partícula compacta, agregando informação conceitual e sensorial, agindo a partir do modo de contaminação através do contato – ocorre o embate presencial fenomenológico (em todas as suas instâncias, em que o corpo está presente, próximo ou distante), mas já em sua linha de fuga, sendo encaminhado a um momento mais complexo –, sendo que este não se constitui a partir da experiência apenas em um momento anti-predicativo (como se quis, em certo momento) mas é invadido também por uma alteridade conceitual que ali se instala – um processo que talvez possa ser desdobrado e explorado também na dinâmica de uma “descrição fenomenológica do conceito (…) [que] permite-nos perceber que o conceito é, por si mesmo, uma experiência ontológica – ela nos introduz nesta ‘região’ in-objetiva onde o ser e o pensamento são o mesmo”159 ; se o conceito se caracteriza ao “pôr-se a si mesmo e pôr seu objeto, ao mesmo tempo em que é criado”160 , é preciso não perder de vista a alteridade que se cria nessa operação ‘invasiva’ em que a intervenção se dá sobre o
corpo
mesmo,
na
dupla
articulação
corpo/mente,
a
partir
do
par
sensação/conceito. É interessante localizar no texto histórico de Ferreira Gullar a conhecida passagem que alerta para a organicidade da obra neoconcreta: “Não concebemos a obra de arte nem como ‘máquinas’ nem como ‘objeto’ (…). Se tivéssemos que buscar um símile para a obra de arte, não o poderíamos encontrar, portanto, nem na máquina nem no objeto tomados objetivamente, mas (…) nos organismos vivos.”161 Agora, frente à caracterização da partícula virótica (um signo verbivisual) como existindo na fronteira de qualquer possível definição de vida, percebendo-a como portadora da “condição pós-moderna” enquanto seu “tropo máximo”, “ambíguo”– sintomas da nova condição na qual se dá a produção do conhecimento, em um regime de dominação socioeconômica que estamos ainda aprendendo a perceber – talvez seja oportuno pensar a obra de arte não mais como aquele “organismo vivo”
159
Éric Alliez, Da impossibilidade da fenomenologia, São Paulo, Editora 34, 1996, 87. É. Alliez, Da impossibilidade da fenomenologia, op. cit., p. 87. 161 Ferreira Gullar, “Manifesto neoconcreto”, in Etapas da arte contemporânea – do cubismo à arte neoconcreta, Rio de Janeiro, Revan, 1998, p. 285. 160
124
mas sobretudo como vírus ambíguo, invisível, invasivo, móvel, mutável e contaminante. Um dos traços mais característicos da convergência entre sensação e conceito é o fenômeno da subliminaridade: estímulos sensoriais cujo mecanismo não seria apreendido conscientemente, invadindo desse modo o corpo do observador carregando séries de conteúdos para além de suas estratégias de auto-defesa; tais conteúdos instalariam-se junto à mente deste observador, comandando seus processos mentais. Este é um dos temas favoritos da ficção científica (ligado ao perigo da "lavagem cerebral"). O exemplo mais célebre – que conduziu à regulamentação e proibição da prática na área da publicidade – ocorreu em 1956 através de Jim Vicary, “um pesquisador de mercado norte-americano”. Segundo descrição publicada nos jornais da época, Vicary “conseguiu com um cinema em Nova Jersey instalar um segundo projetor especial
que,
enquanto
o
filme
estava
sendo
exibido,
projetava
intermitentemente na tela frases como ‘Coca-Cola’ ou ‘Coma Pipocas’. As palavras eram projetadas tão depressa ou impressas com intensidade tão fraca que a mente consciente não as podia ver superimpostas no filme, ainda quando a pessoa tinha sido informada de que elas iam aparecer. Filmes tratados assim foram alternados com outros durante todo o verão daquele ano e nas noites em que foi usado o efeito subliminar as vendas de CocaCola subiram de um sexto aproximadamente e as de pipoca mais da metade.”162 Mesmo os propositores da prática não acreditaram diretamente nos ‘efeitos’ produzidos, alegando que a reação dos clientes somente ocorreu com aqueles que “já tinham em mente a idéia de comprar o produto” – ou seja, teria havido uma facilitação e não qualquer transferência de conteúdos ou construção de motivação inexistente. Entretanto, “a publicidade subliminar despertou uma tempestade de protestos na imprensa norte-americana e posteriormente na Inglaterra, onde o 162
Descrito em J.A.C. Brown, Técnicas de persuasão - da propaganda à lavagem cerebral, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p. 174.
125
Instituto Britânico de Praticantes de Publicidade deu-se o trabalho de publicar um livreto (Subliminar Communication, 1958) e de impor uma proibição ao uso desse modo por qualquer de suas 243 agências.”163 Trata-se, é claro, de um reducionismo envolvendo as possíveis relações entre sensação e conceito, transformados em estímulo e resposta automatizados. Toda a história da arte moderna é testemunho de uma disputa – transformada agora em jogo – entre estas duas formas de conhecimento, uma vez que a modernidade se caracteriza pela articulação e atrito do sensível com o campo do pensamento: passa-se a "pensar por sensações" e, mais do que isso, o campo da arte é então revolucionário local de produção e invenção de novas sensações (como testemunha a estética do choque, a partir de meados do século XIX), conduzindo a esfera sensorial para uma expansão e importância até então inexistentes ("se há progressão em arte, é porque a arte só pode viver criando novos perceptos e novos afetos"164 ). O problema desloca-se então para a modalidade das relações articuladas entre os dois campos, isto é, como trabalhar as conexões entre sensações e conceitos de modo a provocar a inversão de pensamentos preestabelecidos através da atualização de virtualidades do aqui e agora e a conseqüente produção de real? Subliminaridade, então, como uma determinada combinação de estratégias não-discursivas e discursivas em que estes campos são colocados em uma relação de toque ou superposição, de modo a quase misturarem-se (o que seria impossível, devido a sua heterogeneidade): a percepção subliminar decorreria da colocação do conceito em um limiar de sensorialidade, em uma sensorialização máxima. É nesta região de possibilidade que se instala NBP. Existe entretanto uma proposição acerca do entrelaçamento de percepção e corpo que alinha a questão da subliminaridade em uma articulação bastante produtiva e instigante – e que se afina com a pragmática experimentada pelo programa Novas Bases para a Personalidade. A rigor, não se trata daquela percepção subliminar deflagradora de uma ação mecânica e automatizante, mas desta outra, que indicamos a partir da sensorialização do conceito e que se anuncia então ao se prestar atenção ao papel desempenhado pelas “pequenas percepções” (“sensações 163
J.A.C. Brown, op.cit., p. 175. . G. Deleuze e F. Guattari, op. cit., p. 248.
164
126
insensíveis”, “ínfimas”, “imperceptíveis”) indicando sua atuação transformadora na relação sensível entre sujeito e mundo. A matriz comum é a obra de Leibniz (via Deleuze): “as pequenas percepções” seriam “distintas e obscuras”: “distintas,
porque
apreendem
relações
diferenciais
e
singularidades;
obscuras, por não serem ainda ‘distinguidas’, não serem ainda diferenciadas – e estas singularidades, condensando-se, determinam, em relação com nosso corpo, um limiar de consciência como um limiar de diferenciação, a partir do qual as pequenas percepções atualizam-se (…).”165 Está em jogo aqui o embate entre uma relação com o mundo gerida pelo hábito dos ritmos cotidianos, que não implica em qualquer ruído de descontinuidade entre nós e o mundo – sem produção de diferença – e um envolvimento afetivo de tipo mais radical e intenso – tal qual aquele investido em uma relação transformadora (que pode se dar – mas não apenas – com as coisas do campo da arte como um dos espaços intensivos; por exemplo, como desenvolvemos aqui). Para José Gil, a possibilidade de “captar os mais ínfimos, invisíveis e inconscientes movimentos dos outros corpos” (e também “movimentos de forças”) se dá quando “o corpo se torna consciência” – ou seja, estabelece uma relação com os objetos que seria já de fundo ontológico e não mais fenomenológico, “não mais visando “o sentido do objeto na percepção” (Merleau-Ponty), mas funcionando “como uma instância de recepção de forças do mundo graças ao corpo”, e assim “uma instância de devir as formas, as intensidades e o sentido do mundo”. A modalidade perceptiva em questão atuaria a partir de uma aproximação que “desposaria” o objeto por “processos precisos de cognição e contágio”, em que ocorre a “captação das formas e forças que animam o objeto”: as etapas são delineadas pelo autor como (1) impregnação da consciência pelo corpo; (2) contato do corpo com o mundo exterior, passando a coincidir com as forças do objeto; (3) início pelo corpo de um devir-objeto a partir do qual se estabelece um zona de indiscernibilidade entre corpo e objeto; (4) transferência de Este trecho corresponde a Gilles Deleuze, Diferença e repetição, Rio de Janeiro, Graal, 1988, p.343. A citação é indicada por José Gil, cujo artigo serve de referência aos comentários que se seguem. José Gil, “Abrir o corpo”, in Suely Rolnik e Corinne Diserens (Orgs.), Lygia Clark, da obra ao acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro, Nantes, Musée de Beaux-Arts de Nantes, 2005, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006. 165
127
certos traços do corpo ao objeto, do mesmo modo que certas propriedades do objeto se transmitem ao corpo – e Gil nota que “esta descrição sumária não difere muito da percepção artística”. Há de se notar – e é importante que se destaque – convergências com o processo anteriormente descrito de produção de alteridade a partir de contaminação pela partícula sígnica virótica: a preocupação com uma “ontologia constituinte” parece ser fundamental – mas aqui há a possibilidade de se perceber um pacto menos invasivo, onde o contato sujeito-objeto (ainda que revele uma zona de tensão na crista da indiscernibilidade) transcorre (nos parece) de modo suavemente coreográfico. Mas o mais surpreendente do modelo delineado por José Gil revela-se através de duas outras construções que se desdobram também a partir do agregado de sensações pequenas e insensíveis – pois para o autor este corpo que “se deixa invadir cada vez mais pelos movimentos ínfimos” se transformaria em “corpo-consciência”,
caracterizado
por
uma
“hiperexcitabilidade”
e
“hipersensibilidade”: “torna-se capaz de captar as ‘sensações insensíveis’ ou pequenas percepções”; e “pode entrar imediatamente em contatos-osmose com os outros corpos” (“abre-se aos outros corpos, conectando-se com os movimentos do seu inconsciente”). É que na “captação das pequenas percepções pelo corpoconsciência”, além de ser invadido no “aquém do limiar da consciência” pelo ínfimo e insensível, há também aquela pequena percepção que “resulta da defasagem entre dois contextos idênticos” – vale à pena trazer aqui a citação completa: “Qualquer coisa, um ‘não sei quê’ surgiu hoje no rosto do amigo que vejo todos os dias. O ‘não sei quê’, indefinido porque microscópico, não é nada que se veja, é o intervalo entre a percepção macroscópica habitual do rosto do meu amigo, e a sua percepção atual. A pequena percepção é intervalar: tem, no entanto, uma forma, uma espécie de contorno interior da defasagem a que chamei ‘contorno do silêncio’ ou ‘contorno da ausência’. A forma não descreve uma figura pois o intervalo só é percepcionado enquanto forma das forças que emanam do conjunto de pequenas percepções. Nada se vê, nada se ouve, ‘sente-se’ qualquer coisa indeterminada, ilocalizável, que se
128
confunde com o sentir anuncia um sentido.”
do corpo inteiro (que é um não-sentir), mas que
166
Trata-se de indicação bastante importante dentro do percurso que estamos desenvolvendo até aqui: é estabelecida conexão direta entre percepção de derivação subliminar e estratégia de repetição; sobretudo, note-se que esta modalidade de repetição intervalar indica sua efetivação sempre sob condições dinâmicas de deslocamento. Então, se temos (como indicará o autor ainda no mesmo escrito) “a pele como zona de fronteira que separa nosso corpo do espaço que o rodeia” (o que “faz de toda a zona fronteiriça, a pele, uma consciência, como se víssemos o mundo a partir de cada ponto de nossa pele, como se a consciência fosse coextensiva à sua superfície”), encontramos também aqui os elementos do vocabulário formal que havíamos apontado como importantes para nosso processo de trabalho: linha da pele como membrana ativa e superfície como veículo da percepção intervalar do que sempre se atualiza. Como indicamos, é em torno destas estratégias que o projeto NBP vai situar suas estratégias de ação: repetir NBP e sua forma específica seria então buscar de certo modo o “contorno da ausência” – deslizar pelos intervalos e interstícios da marca em sua macropercepção (uma “macromarca”, de contornos identificáveis) em direção à sua dissolução enquanto “forma de forças” derivada das pequenas percepções (“micromarca” que se dissolve na configuração diagramática, plasmada e absorvida em outras estruturas). Se considerarmos que após o período de emergência da assim chamada arte conceitual (final dos anos 1960) – e deveríamos aproximar estes dados de questões em torno da obra aberta e da teoria da recepção, assim como das obras que elaboraram uma participação do observador a partir de um campo sensorial – observa-se um crescente deslocamento em direção ao fruidor da responsabilidade de dinamizar, colocar em movimento, articular um funcionamento para o trabalho de arte. É claro o crescimento da importância do corpo do espectador como o suporte, tela, superfície de projeção, campo de forças ou partícula ativa a partir da qual se dá o acontecimento do trabalho. Nada ocorre, dentro do projeto NBP, sem o corpo do 166
José Gil, op.cit., p. 64-65.
129
outro – sujeito envolvido por estratégias de contaminação, espaço de circulação e multiplicação do signo vírótico, suporte a ser ativado e convidado – através das pequenas percepções e a partir do paradoxo entre micro e macromarcas – a reagir sobre o trabalho. NBP é necessariamente pro-reativo, não existe sem que algum tipo de resposta seja articulada a partir da recepção. Não se trata – é claro – do corpo do fruidor como suporte passivo, mas de superfície cuja temperatura é fundamental para a catálise do trabalho, não como processo de interiorização mas como realização que é projetada para fora, para a exterioridade de uma inteligência coletiva, elemento de uma rede singular tecida através das possibilidades do trabalho de arte. Tal corporalidade envolve um pensamento situado no corpo (além dos binarismos)167 , dependente de uma sensorialidade expandida como elemento do par sensação-conceito. Relacionar-se com os objetos NBP é hibridizar-se com eles, deixar-se invadir pelas maquinações de seus conceitos, ter seu corpo tomado por um programa de (súbitas) mudanças. Confrontar-se, misturar-se com o trabalho – em direção à hibridização – é uma das condições de fruição da arte contemporânea, quase um pressuposto para problematização: é preciso estabelecer o contato, produzir membranas, instaurar um campo de trocas entre sujeito e objeto. Hibridizarse não significa eliminar as diferenças, construir a unidade, mas sim multiplicar as alteridade internas e externas que conectam-no à obra de arte. O que se destaca, portanto, enquanto problema do campo contemporâneo da cultura que informa as produção da arte atual – e que se inscreve nas questões mobilizadas pelo projeto de trabalho NBP – é a presença de uma corporalidade em franca transformação – pois cada diferente regime perceptivo implica em diferentes ontologias e processos constitutivos Muito se fala e escreve hoje a respeito da irreversível hibridização com a esfera tecnológica, em que humano e maquínico aproximam e confundem suas fronteiras em conexões expressivas de diversas e múltiplas produtividades. Poderíamos lembrar o importante trabalho de Deleuze e Guattari, para quem "uma máquina se define como um sistema de cortes" e "toda máquina é máquina de máquina". Nesta perspectiva,
167
Lugar enunciado por José Gil como “exterior do interior da zona de fronteira que separa o nosso corpo do espaço que o rodeia.” J. Gil, op.cit., p. 66.
130
“o sujeito [é] produzido como resíduo ao lado da máquina, apêndice ou peça adjacente à máquina (…). Ele não está no centro, ocupado pela máquina, mas na borda, sem identidade fixa, sempre descentrado, concluído a partir dos estados pelos quais passa. (…) [O] sujeito nasce de cada estado da série, (…) todos esses estados (…) o fazem nascer e renascer (o estado vivido é primeiro em relação ao sujeito que o vive).”168 Aqui a máquina – ou qualquer outra mediação posicionada enquanto artifício – assume a primazia do não-discursivo, vivencial e não humano (afeto: devir não humano do homem, como escrevem Deleuze/Guattari). Para a norte-americana Donna Haraway, “no final do século XX, neste nosso tempo – um tempo mítico –, somo todos quimeras, seres híbridos teorizados e fabricados, compostos de máquina e organismo; enfim, somos todos ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; orienta nossa política. É a imagem condensada de imaginação e realidade material, estes dois centros articulados estruturando qualquer possibilidade de transformação histórica.”169 A máquina entra em cena, neste caso, como forma de expandir e abrir as possibilidades expressivas e produtivas, com implicações claras a respeito de transformação e auto-produção de si: "nossos corpos (…) são mapas de poder e identidade. Ciborgues não são exceção. Um corpo de ciborgue não é inocente; não nasceu num jardim; não procura por uma identidade unitária para assim gerar dualismos antagonistas sem fim." É preciso fugir da "produção de teorias universais e totalizantes (…) que excluem a maior parte da realidade" para "abraçar a tarefa de reconstrução das fronteiras da vida diária, em conexões parciais com os outros, em comunicação com todas as nossas partes."170 Aqui, o campo da arte se inscreve 168
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 54 e p. 36-37. 169 Donna J. Haraway, "A Cyborg manifesto: science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century", in Simians, Cyborgs, and Women, Londres, Free Association Books, 1991, p. 150. 170 D. Haraway, op. cit., pp. 180-181. Haraway conclui seu artigo com a seguinte frase: "I would rather be a cyborg than a goddess".
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como local privilegiado para a produção de alteridades, no sentido de mobilizar uma potência perceptiva ontológica e constituinte – sua pertinência política reside não em um investimento em representar os problemas ou causas do tempo atual (esta seria a linguagem plástica simplista de uma arte engajada – apenas publicidade bem intencionada de rápido consumo, sem qualquer papel transformador), mas estabelecer uma política das mediações a seu alcance: política da percepção, política das sensações, política dos afetos, política dos conceitos sensíveis, etc. – ou ainda, uma política do circuito das artes e de suas linguagens. “Como reativar nos dias de hoje a potência política da arte?”171 , escreve Suely Rolnik, formulando a questão no âmbito da obra de Lygia Clark: afinal, se estamos sob um regime no qual “nossa força de criação não só é bem percebida e recebida, mas até mesmo insuflada, celebrada e freqüentemente glamourizada”, seria necessário produzir inflexões de resistência para que estas forças não sejam sumariamente “cafetinadas pelo mercado” e sim conduzam à “invenção de formas de expressividade para as emanações do corpo vibrátil, estas formas que veiculam a incorporação das forcas do mundo em nossa subjetividade, indissociáveis de um devir-outro de nós mesmos”. Ou seja: uma política da “micropercepção”.172 O campo de trabalho que se abre a partir de NBP dialoga com certas áreas da cultura contemporânea que têm sido decisivas para a renovação do pensamento, neste final de século. Refiro-me, em primeiro lugar, à combinação entre campo comunicativo e desenvolvimento tecnológico, cujo impacto tem se feito sentir desde o início dos anos 60 (traduzido na "aldeia global" de McLuhan) mas que tem sua instalação em configuração planetária determinada sobretudo a partir dos anos 80 171
Esta é a última frase de um dos excelentes ensaios da autora em torno do trabalho de Lygia Clark. Suely Rolnik, “Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia”, in Suely Rolnik e Corinne Diserens (Orgs.), Lygia Clark, da obra ao acontecimento: Somos o molde, a você cabe o sopro, Nantes, Musée de Beaux-Arts de Nantes, 2005, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006, pp. 13-26. 172 S. Rolnik desenvolve o conceito de “corpo vibrátil” como aquele constituído a partir de “micropercepções”, em diálogo direto com a obra de José Gil mas referindo-se concretamente às pesquisas de L. Clark: as “macropercepções” seriam “a simples percepção das formas, com a qual somos familiarizados (…) que objetificam as coisas e as separam do corpo”; as “micropercepções” apresentam-se como “capacidade própria do corpo vibrátil” em sua relação sensível com o mundo. As primeiras, indicam um contato com o mundo enquanto “cartografia de formas”; as segundas, como “diagrama de forças”. “É a tensão deste paradoxo entre micro e macro-sensorialidade que dá o impulso à potência criadora. (…) [P]ara que esta seja atiçada, é preciso habitar o paradoxo, ou seja, ativar simultaneamente as duas capacidades do sensível.” Suely Rolnik, op.cit., pp. 13-14, 16, 24.
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(sob a presença dos computadores pessoais e de uma economia globalizada – hoje percebida nos termos de um regime capitalista de tipo cognitivo). Claro que os problemas que daí advêm exigem que se questionem as modalidades de envolvimento perceptivo, agora mais do que nunca ocorrendo através da experiência mediada tecnologicamente. NBP implica no deslocamento das fronteiras do território da arte para junto de um campo comunicativo informático-mediático (como registra Pierre Lévy, indicando a presença de uma esfera pública constituída a partir desse campo), enfatizando diretamente a relação do espectador com o impacto das superfícies de mediação como a coisa em si, portadora do impacto: sensações via estampagem (imprinting), envolvimento persuasivo, contaminação, contágio pelas pequenas sensações, ritornelo a partir do contorno da ausência, tensão entre micro e macropercepções, recepção enquanto sedução, sensorialização do campo conceitual como imunização e/ou potencialização da experiência de impacto, articulação dos conceitos em rede com pontos sensíveis do campo da cultura, etc. Se estes podem ser alguns traços envolvidos diretamente no projeto de trabalho Novas Bases para a Personalidade, é evidente que – dada a amplitude desta caracterização – trata-se de aspectos que informam igualmente amplos segmentos da produção de arte contemporânea das últimas décadas. Podemos apontar aqui as intervenções de Muntadas (projetos como Stadium, Cidade Museu, Sala de Conferência, desenvolvidos em diversos países nos anos 90), Jenny Holzer ou Barbara Kruger como reações frente à velocidade das palavras e imagens no novo ambiente comunicativo; Jordan Crandall (Under Fire, Trigger, Heatseeking, Drive e Blast são alguns de seus projetos) explora a hibridização corpo-máquina e o pensamento em rede; Vito Acconci e Artur Barrio experimentam há décadas com os limites do corpo e do sujeito e sua reconstrução sucessiva frente a diferentes espaços, situações, arquiteturas e materiais. Afinal, a investigação a partir do campo da arte indica a proposição de padrões de processamento desta sensorialidade possível, mobilizando a atenção do espectador para uma experiência de confronto: pensar, será possível ainda e mais uma vez, e, enfim, para quê e de que modo, com que corpo e articulando quais matérias? As respostas devem sempre ser adiadas em favor da manutenção de um jogo de provocação da superfície das coisas, de investigação da espessura do real.
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*** Articular junto a NBP significativos autores contemporâneos não se dá com o propósito de articular qualquer verdade do trabalho de arte ou mesmo indicar que a arte deve sempre ser pensada de modo absoluto a partir de seu lado de fora. Tratase principalmente de seguir pistas, ao reconhecer em pensadores diversos direcionamentos similares àqueles que se constituem na obra plástica: esta precisa ser concebida então já com a compreensão de que há uma pesquisa ali que se dá de maneira suficiente – no sentido de que se descobrem problemas e se articulam territórios de integração de setores diversos da vida, quando a obra funciona neste toque de proximidade (em confronto) com o mundo. Mas esta compreensão se faz revelando núcleos potenciais por onde o discurso é deflagrado e trabalhado – e aí se conquista a linguagem como matéria a ser plasmada – e é precisamente aí que se dá o encontro com autores e suas práticas: confluência de pesquisas, em que a obra de arte se oferece como parceira importante – fundamental – de conversas, da monitoração de problemas, proposição de pesquisas, revelando importantes instrumentos de intervenção. Sem essa possibilidade de processamento do sensível própria da arte, deslizando-o a fim de acoplagens discursivo-conceituais, o que nos restaria? Teríamos somente (não que isso seja pouco, pelo contrário) narrativas em combate infinito, sem possibilidade de desenvolverem membranas de contato com corpos, sujeitos, grupos, coletivos, etc. NBP, assim, quer ser este processo de aparelhamento plástico discursivo, rede de manobras onde frente a frente são lançados a investigação plástica e a pesquisa discursiva – e como são raras estas oportunidades! – para compartilhar de alguma aceleração conjunta. Você gostaria de participar de uma experiência artística? investe na constituição de um plano de trabalho constituído por “objeto + conceitos”; logo, desenvolve todo o processo de aparelhamento necessário para adquirir a flexibilidade certa para se entrar e sair do jogo conceitual rumo à experiência sensível e vice-versa – movimentando-se por ondas rítmicas próprias, ao sabor de encontros com os muitos participantes, aqueles que aceitam ter o ritmo de suas vidas interferido pela
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intromissão de um objeto metálico, formatado a partir de um desenho particular. Esta experiência carrega temporalidades e tópicos da escultura e do objeto, termos e proposições de camadas discursivas e conceituais – e se perfaz nesta tensão, sendo elemento-chave sua capacidade de reinventar-se e fomentar um limiar constante de sedução: querer o outro, saber atraí-lo, atraí-la. Bloco 3 membrana, linha orgânica, escultura-conceitual, espaço háptico, tatilidade Estamos em uma região do diagrama 05 do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? que se caracteriza por reunir um grupo de seis diferentes projetos de trabalho desenvolvidos a partir de 1994 – quando se iniciou Você gostaria…? – e que são portanto paralelos a seu desdobramento: logo, deverá haver algo que aí indique um mútuo reforço, no sentido de os diferentes projetos estabelecerem trocas entre si, informando-se reciprocamente – deste modo, algo dos outros projetos estaria permeado pela presença de Você gostaria…?, ao mesmo tempo que muito do percurso que este projeto tomou durante o período seria também conseqüência da dinâmica daqueles. Pois os projetos referidos – sendo que alguns, sob a forma de séries, estão em franco prosseguimento – ocorrem em períodos diversos, tais como: os primeiros jogos eu x você ocorrem em 1997 (seguindo-se a cada ano sob a forma de atividades variadas como oficinas, cursos ou mesmo como parte de algumas exposições, algumas vezes em diálogo direto com a obra instalada, no espaço), tendo incorporado a noção de superpronome alguns anos após seu início, por volta de 2000; Fig. 34-37 a instalação NBP x euvocê173 é exibida em 2000, e procurou ser um momento de convergência entre estas duas séries, no sentido do estabelecimento de um confronto interno produtivo, em que ocorrem superposições de linhas de um e outro programa; Fig. 19-20 passagens (NBP)174 inaugura em 2001 uma série de instalações arquitetônicoescultóricas, cujo desdobramento ainda continua; Fig. 21-22 transatravessamento175 (2002) é reflexo direto do projeto anterior, embora assuma mais diretamente no 173
NBP x eu-você, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2000. [exposição individual] passagens (NBP), Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro, 2001. [exposição individual] 175 transatravessamento, 25ª Bienal Internacional de São Paulo, 2002. 174
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interior do projeto discussão acerca da imagem do artista e seus diversos papéis frente ao circuito; Fig. 25-26 obs.176 é formulado em 2004 enquanto materialização específica de um dos elementos propostos em passagens (movimentação corporal compulsória produzida ao entrar em contato com a peça), chamando a atenção para a disjunção entre experiência estética e experiência corporal. Fig. 42-45 Cada projeto acima possui um elemento textual diretamente relacionado, veiculado de maneiras diferentes nas diversas situações – seja na forma de livreto a acompanhar a instalação, como gravação sonora a partir de leitura, cartaz impresso para distribuição, impressão em catálogo da mostra ou mesmo em exibição nas paredes da galeria integrando a instalação: diferentes utilizações que, é claro, impregnam também os escritos de outros elementos de sentido. É importante destacar – mais uma vez – a preocupação de demarcar os projetos com construções discursivas que vêm se somar à materialidade plástica exibida como portadoras também do lugar da obra. Respectivamente, os projetos delineados acima são acompanhados dos seguintes materiais discursivos (alguns já citados no corpo deste trabalho): “Diferenças entre nós e eles”177 ; superpronome”178 ; “NBP x euvocê”179 ; “passagens (NBP)”180 ; “módulo de transatravessamento do artista-etc”181 ; “psiu-ei-oi-olá-não”182 . Tais textos – assim como as obra aos quais se associam – remetem
também
internamente
uns
aos
outros,
em
diversos
graus
de
encadeamento. É interessante se perceber a presença constante e intensa da 176
psiu-ei-oi-olá-não, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, 2004. [exposição individual] V. nota 120. Este ensaio foi publicado em 2003, momento em que já acumulava alguma experiência em relação à realização dos jogos eu x você. 178 Ricardo Basbaum, “superpronome”, 2000. Publicado pela primeira vez em folder de Capacete Projects, Rio de Janeiro, 2000. Posteriormente, integrou a exposição individual “re-projetando + sistema-cinema + superpronome” (Galeria Cândido Portinari, UERJ, Rio de Janeiro, 2003), colado em letras adesivas sobre parede monocromática. V. Anexo Textos 179 Ricardo Basbaum, NBP x eu-você, Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2000. Este pequeno livro acompanhou a exposição homônima (V. nota 173). Contém três textos: “O ‘x’ do problema”, “NBP x eu-você” e “De como retirar os traços de infinito secularmente acumulados no delírio”. Os mesmo textos foram gravados por mim em CD áudio e integravam a instalação como obra sonora. V. Anexo Textos 180 Ricardo Basbaum, “passagens (NBP)”, 2001. Pôster distribuído na exposição “Outra coisa”, Museu Ferroviário da Vale do Rio Doce, Vila Velha, ES. V. Anexo Textos 181 V. nota 116. 182 Ricardo Basbaum, “psiu-ei-oi-olá-não”, 2004. Partes deste texto foram utilizados na instalação homônima, apresentada em A Gentil Carioca (V. nota 176) colados em letras adesivas sobre as paredes. Foi também utilizado como peça sonora, ao ser lido por telefone público, do Rio de Janeiro, em ligação à cobrar, na abertura da mostra “Vol.”, Galeria Vermelho, São Paulo, 2004. V. Anexo Textos 177
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camada discursiva – sobretudo quando esta não se organiza apenas através da forma texto convencional, procurando então utilizar variados suportes (livros, livretos, catálogos, pôsteres) e lançando-se como elemento visual ou sonoro para ser exibido nas paredes da sala de exposição (enquanto obra visual) ou disponibilizado como fala (que resguarda as nuances da voz, efetivando-se em modo acústico). Existe um problema derivado da escultura nesta aproximação – as relações do objeto envolvido em Você gostaria de participar de uma experiência artística? com as propostas que se desenvolveram em paralelo no período 1994-2008: como se deram as mútuas reverberações entre um e outros, em ambas as direções? É claro que as diferentes situações são momentos de uma mesma pesquisa, e, neste sentido, a presença de um novo elemento irá inevitavelmente modificar o modo pelo qual são apreendidos os que ali estavam – implicando em novos sentidos, problemas, aproximações. Se mencionamos aqui escultura, é claro que isto se dá em sentido ampliado – estendendo esta noção para além de limitações materiais e formais, assim como avançando os limites entre o campo da arte e regiões de fronteira a ele exteriores –; mas nos interessa enfatizar a presença de algum elemento material a atuar com ênfase em ações de intervenção e ocupação de espaço, investindo tanto nas relações de sujeitos diretamente envolvidos em ações com objetos (no sentido literal de colocar seu corpo em ação, afetado pela presença de elementos físicos), como constituindo estruturas para-arquitetônicas183 que produzam espaços próprios a serem experienciados por visitantes, que serão ali provocados de alguma maneira. Há aí um fio que conecta o objeto de Você gostaria…? com as cápsulas (NBP x eu-você), os corredores de passagens (NBP) e transatravessamento, e os obstáculos da série obs.: em cada um deste momentos, o espectador-participante é convidado a envolver-se fisicamente com elementos materiais (algumas vezes estruturais) metálicos, fisicamente presentes nas situações e locais de intervenção, para desenvolver algo de ordem produtiva (que evidentemente se dá em vários níveis e em tempos diversos) a partir do contato – pois há o cuidado de elaborar membranas que possam atuar como receptoras 183
No sentido de estar aquém e além da arquitetura.
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desses possíveis encontros. O dispositivo que regula tal dinâmica deriva de recursos que convergem da escultura, objeto e arquitetura – elementos físicos e estruturais, algumas vezes modulares, conduzem ela(s) e ele(s) à situação de provocação e contato. Mas o sinal mais evidente a associar estes diversos projetos para-escultóricos184 é mesmo o gesto de configurar seus desenhos incluindo sempre a marca NBP – perímetro do objeto de Você gostaria…?, laterais das cápsulas (NBP x eu-você), portas em passagens (NBP) e transatravessamento: utilizações diferentes para uma mesma presença, a se insinuar uma e outra vez, assinalando um continuum de experiências e deixando claros os movimentos de escape. Utilizando o objeto para mais uma experiência – tocando, trazendo-o para junto do corpo; deslizando junto a uma abertura de acesso ao abrigo ou atravessando portas em sucessão: há esta movimentação de proximidade onde o sinal, marca ou signo afirma presença aos sentidos, ao corpo, ao olhar – e entrar em contato com o trabalho é confrontar a forma específica mais uma vez. Uma observação: no caso dos obs., a marca se fez presente na instalação que se desenvolveu em torno, estando estampada em uma das paredes da galeria – junto aos textos – posicionada de modo a ser enquadrada pelas câmeras de sistema-cinema, ali presentes. Fig. 43, 45 O que é importante, porém, é se perceber a presença da forma específica NBP em seu registro devido – ou seja, o mais produtivo – arrancando-a de recuperações normalizadoras ou estabilizantes: longe de atuar como mero elemento maneirista de composições propostas ou signo portador de assinatura identificadora de um mecanismo de produção, a forma NBP é de fato elemento invasor, sempre a forçar sua presença nos projetos, tal qual índice de uma intromissão aceita. Como se NBP fosse enfim o relato de uma poética de tomada de espaços, sintoma de invasões constantes sob o signo do contato & contaminação. Este elemento deve ser percebido em sua dinâmica, para que o projeto não se reduza ao simples alinhamento de figuras sem apetite e movimento, simples displays para fruição fria e entretenimento distrativo. repetição da marca, trauma, obsessão: livrar-se dela e sair de si 184
No sentido de estar aquém e além da escultura.
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envolvimento do pequeno outro e do grande outro coletivo fantasmática do mundo interior transformada em anedota bioquímica de domingo transatravessamento & aceleração185 Este investimento em contato seria mesmo algo próprio do projeto NBP186 , ainda que não se dê exatamente como ‘convite’ – estando mais próximo de uma dinâmica mais complexa de envolvimento que combina a construção de frestas (espaços de recepção), proposição de possibilidades e requisição de uma atitude ativa por parte do participante: se este não se desviar de uma postura indiferente rumo a um posicionamento produtivo – com envolvimento concreto de núcleos de desejo – nada se passará. Reside aí um desafio complexo, tomado na amplitude do problema – dentro de possibilidades concretas, pois sempre se faz o que é possível a cada tempo – e tratado nos termos de oferecimento de algo nas dimensões sensível e conceitual em duplo jogo, dupla articulação. Além de procurar demonstrar – e isto é construído concretamente através da reunião de diversos elementos – a presença de espaços de acolhimento (que, como indicamos, partem da elaboração de vazios, cuidadosamente preparados), tais projetos para-escultóricos investem igualmente na dimensão de tatilidade, no sentido de provocar o corpo daquele que confronta os trabalhos a partir da necessidade de mobilização direta: a superfície das grades metálicas possui textura própria, claramente demarcada; a frieza do metal é elemento que surpreende a qualquer gesto de contato; almofadas e colchões garantem o conforto de superfícies macias e acolhedoras. Ocorrem situações de toque físico que demandam alguma reação, já que a provocação é explícita. E este envolvimento avança com o desafio de se atravessar portas e passagens, e superar obstáculos: em passagens (NBP) e transatravessamento o espectador deve ultrapassar quatro tamanhos diferentes de portas, necessitando realizar algum esforço físico; junto aos obs., é levado a tomar a decisão de levantar ou não a perna para ultrapassar as pequenas barreiras (20 cm de altura), caso deseje efetivamente ingressar no espaço expositivo. Assim, em sua visita à instalação, o visitante será levado a combinar dois diferentes comportamentos – fruição estética e esforço físico 185 186
R. Basbaum, “Módulo de transatravessamento do artista-etc”, op.cit.. “performance; negociação; desvio, contato & distribuição”, Cf. Capítulo C, Bloco 1 desta Tese.
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– resultando no que costumo chamar de performance compulsória: produz-se a problematização de se estar naquele lugar, naquele momento, portando este corpo que se defronta e confronta com certas estruturas materiais que ao mesmo tempo acolhem e provocam. O que se quer é arrancar o espectador de certa passividade anestesiada pra conduzi-lo à realidade concreta da obra – para, então, em mais um gesto invasivo, propor algum tipo de transformação potencial possível a partir de mais outro embate, como veremos a seguir. (EU) olho para um lado, olho para o outro. Fecho os olhos, apuro os ouvidos, baixo a cabeça, dobro os joelhos, relaxo os braços, solto os ombros, repuxo a coxa, afrouxo o estômago.187 convite ao esforço de atravessar portas: performance obrigatória ser visível ao longe, sem privacidade qualquer, ao mesmo tempo ver ir com os olhos sem corpo até onde o corpo não pode ir e configurar assim os espaços sistema em tempo real: atravessar, jogar, olhar, perceber as ações no mapa, descobrir relações no mapa – onde estou, onde estamos? grande escultura, deambular em torno, mirar ao longe transatravessamento & obstáculos188 Mobilização do tato através de texturas e superfícies, provocar o corpo por meio de obstáculos, oferecer o conforto de um abrigo para repouso – este é o âmbito de um espaço háptico, onde se manobra para problematizar o sujeito através da construção de uma experiência intensiva. psiu… psiu… psiu… 187 188
Ricardo Basbaum, “passagens (NBP)”, op.cit.. R. Basbaum, “Módulo de transatravessamento do artista-etc”, op.cit..
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ei, oi, olá, olhe para cá – olhe… veja – olhe – preste atenção repare – não há nada nada para ver psiu – ei – psiu – aqui psiu – olhe… (…) ah! agora – é agora – já – neste instante – agora – veja – bem aqui – bem aqui! aqui e agora – ah! assim – assim – bem assim vem – venha – pode vir assim – aqui e agora venha aqui – bem aqui olhe – venha para mim psiu… psiu… aqui e agora – já – neste instante pode ver sim não – não há nada não (…)
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esqueci de dizer esqueci – olhe – olhe bem aqui – espere – espere – esqueci de dizer já não compreendo venha aqui psiu… – não quero e não compreendo eu posso olhe – olhe para cá – bem aqui – nada mais não vejo nada – nada olhe para cá – aqui – bem aqui não há nada veja… (…) não não me interessa – não quero não quero saber – qualquer coisa nada quero saber fique por aí – você você – eu – você – eu – você fique – não diga nada não quero ver não escutar - olhar para - corpo voltado para - sorrir para - falar a dirigir-se a - desejos expressos - dar ou lançar algo - fazer contato corporal fazer pedidos - fazer perguntas pessoais - demonstrar habilidade exibir-se - ficar perto - reações afetivas189 189
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Ricardo Basbaum, “psiu-ei-oi-olá-não” – estão aqui representados apenas aqueles parágrafos do texto que integraram a instalação apresentada. A versão integral inclui um bloco de texto a mais, além de repetir diversas vezes o último bloco, como um refrão, ao longo do escrito.
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Os blocos de texto acima ocupavam as paredes da instalação psiu-ei-oi-olá-não, em A Gentil Carioca (2004), pontuando o espaço da sala em conjunto com os obs. – texto e elementos plásticos trabalham em conjunto em busca da captura do visitante, que encontra a área da galeria também ativada pela presença de sistema-cinema. Aqui, assim como principalmente em NBP x eu-você (que articulava emissões em áudio em meio às cápsulas e diagramas), o sistema de revezamentos plásticodscursivos funciona em dinâmica avançada, fazendo com que aquele que percorre a instalação se defronte com matérias textuais ao mesmo tempo que se confronta com os obstáculos no solo e localiza-se em relação às câmeras de circuito-fechado ali posicionadas – como ficar indiferente a tantas presenças que, no entanto, indicam espaços a serem ocupados e requerem reações? Este investimento nas regiões de contato não pode ser afastado do interesse concreto do projeto em relação às experiências de Lygia Clark em torno da linha orgânica – pois a artista efetivamente investigou o espaço encontrado entre a coisas, procurando desenvolver sua obra enquanto pesquisa acerca do potencial transformador localizado nesta área de encontro: quando corpos e coisas (ou corpos e corpos, coisas e coisas) se tocam (ou se confrontam), delineiam bordas de intensidade das quais se pode partir para se produzirem problemas e instaurarem espaços; há em sua prática um conhecimento que não pode ser subestimado.191 Se a linha orgânica não foi desenhada por ninguém, resultando do contato de duas diferentes superfícies, necessitando assim ser “descoberta”192 , isto a localizaria diretamente no mundo, junto a coisas e corpos (e corpos e corpos, coisas e coisas): ela “era real, existia em si mesma, organizando o espaço. Era uma linha-espaço”.193 190
Este último bloco é extraído do experimento “Ação em Relação ao Estranho”, de Kurt Lewin, e já havia sido utilizado para uma série de 15 gravuras apresentada em 1993. Cf. Kurt Lewin, “Sinopse das investigações experimentais”, in Teoria dinâmica da personalidade, São Paulo, Cultrix, 1975, pp. 259-261. 191 Cf. Ricardo Basbaum, “Within the organic line and after”, in Alexander Alberro e Sabeth Buchmann, Art after conceptual art, Cambridge, MA/London, MIT Press, Vienna, Generali Foundation, 2006, 87–99. As passagens que se seguem são referidas diretamente a este ensaio. 192 Lygia Clark preferia se referir a este gesto como “descoberta”, mas do que como “criação” ou “invenção”. 193 Lygia Clark, “Lygia Clark e o espaço concreto expressional”, entrevista a Edelweiss Sarmento, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 julho 1959, Republicada em Lygia Clark, Barcelona, Fundació Antoni Tàpies, Paris, Réunion des Musées Nationaux, Marseille, MAC, Galeries Contemporaines des
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E Lygia ainda acrescenta, formulando a questão de modo a enfatizar o posicionamento da artista em relação à sua prática: “o problema plástico é simplesmente a ‘valorização e desvalorização dessa linha’”194 – como se, ao se decidir agir enquanto artista (ser problematizador por excelência), o grau de investimento em torno da presença da linha orgânica fosse de fato momento decisivo a indicar tomada de posição frente aos problemas da arte contemporânea (e do mundo). De fato, há aí sim a decisão em demarcar um percurso, pois a linha orgânica não é elemento natural dado como parte do mundo a habitar coisas, mas, ao contrário, deve ser produzida e ativada através de gestos de intervenção que produzem aberturas e geram um novo fluxo de problemas, situações e eventos – a espacialidade do interstício não existe a priori como lugar físico, mas como borda em potência, linhas carregadas que são ativadas por ações de envolvimento concreto: ou seja, é preciso agir, construir, produzir, ativar a linha orgânica através de proposição concreta cuidadosamente urdida e tecida pelo mergulho em bordas e dobras, regiões de fronteira e encontro (confronto) de entidades diversas. Então, como construção – que disputa lugar entre as coisas típicas ao artifício, sabendo entretanto estabelecer passagens com o fluxo do orgânico, inscrito na terminologia mesma – é interessante de se perceber também como a linha orgânica progressivamente conquista espessura, à medida em que pouco a pouco envolve e articula mais e mais espaços, tópicos, elementos e conceitos (ou seja, complexificase) para (mantendo suas propriedades) se transformar em dispositivo conceitual de arquitetura própria: membrana, estrutura ativa e autônoma a funcionar como região de contato entre territórios vizinhos de vários tipos; “ativar as fronteiras” soaria como palavra de ordem para o desejo de operar efetivamente a conexão entre arte&vida em suas mediações e zonas de contato entre arte, política, sistemas, circuitos, artistas, escritores, pensadores, etc.: intervir, jogar e experimentar com passagens
Musées de Marseille, Porto, Fundação de Serralves, Porto, Bruxelles, Société des Expositions du Palais des Beaux-Arts, 1998, pp. 83-86. 194 Lygia Clark, “Conferência pronunciada na Escola Nacional de Arquitetura em Belo Horizonte em 1956,” in Lygia Clark, op. cit., p. 72. Publicado originalmente in Diário de Minas, 27 janeiro 1957.
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entre, habitar infra, agir por “subtração aditiva”195 onde as lacunas contam como gestos de transformação (pois entre nada há, senão forças). O investimento dos diversos projetos aqui focalizados em procurar confrontar o espectador-visitante diretamente com as estruturas, estabelecendo tarefas de superação de obstáculos, evidenciando texturas, ofertando abrigo – afirmando o efeito de uma performance compulsória – é parte de um funcionamento que procura evidenciar camadas de contato entre este espectador-visitante e as peças ou instalação em exposição. Há a construção de membranas ativas, envolvidas neste processo de captura – processo que é também compartilhado pelo objeto de Você gostaria…?: como este objeto seria dinamizado, senão por meio da constituição de uma membrana de contato mediando as relações entre participantes e objeto? É em tal camada intermediária que ocorre o tensionamento necessário para deflagrar a possível participação, o engajamento de alguém (indivíduo, grupo, coletivo, instituição) que constrói resposta à provocação respondendo de modo engajado, no sentido de desenvolver alguma vontade de mover-se com aquele duplo conjunto (objeto + conceitos), conduzindo-o para outro posicionamento. Um processo importante se revela nesta operação de construção de contato – próprio desta séries de trabalhos em NBP e também de Você gostaria…?: devido ao investimento concreto no desenvolvimento de regiões de membrana, derivadas da linha orgânica, ocorre que se mantém o potencial de transformação implicado por esta última (e que Lygia Clark soube desenvolver de modo contundente em toda sua obra, culminando na Estruturação do Self). Porém, no registro particular das propostas que aqui se delineiam, tais transformações somente podem ser organizadas enquanto potencialidade que se desenvolve em cada um, dependendo de si para o direcionamento dos próximos saltos: NBP é um programa para súbitas mudanças. Quais? Como? Quando? Deixe-se contaminar: 195
A expressão é de John Cage, “additive subtraction”, ao comentar Erased De Kooning drawing, de Robert Rauschenberg. Cf. John Cage, “Jasper Johns: estórias e idéias”, in De segunda a um ano, São Paulo, Hucitec, 1985, p. 75.
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elas serão fruto de seu próprio esforço.196 Não há como apontar o quê, mas a presença da certeza de que frente à ambigüidade do confronto proposto o poema constitui lugares irredutíveis a outras pragmáticas, revelando a co-habitação poesia/vida como potencializadora de um escape, a qual não virá em socorro ao indivíduo isolado mas o impulsionará aos grupos e alianças – reconstruir-se de outra forma, diversa, em busca da saúde do possível “corpo vibrátil”197 (busca sem fim), da qual não se têm receitas mas processos a percorrer com vontade. Para o projeto NBP, ela(s) e/ou ele(s) são conduzidos como espectadores-visitantes – ou participantes, como em Você gostaria…? – à situação de confrontar-se com as propostas, em ambiente háptico e de envolvimento intensivo: ocorre a mobilização de cada um, agenciada pela operação dos dispositivos de membrana, que fazem das zonas de contato, da performance compulsória, local do trânsito de forças, momento para uma transformação possível – pois esta somente poderá ocorrer nesta mobilização ativa das superfícies, na presença do espectador confrontado com as possibilidades concretas de uma captura. Intervêm então o diagrama, para facilitar que se perceba a operação que aí ocorre: ela(s) e/ou ele(s) são convertidos em eu/você – é preciso que se imaginem as linhas a deslizar os contornos desse processo, demarcando sua dinâmica. Esta não é uma transformação insignificante: há um processo de subjetivação decorrente do encontro deste espectador-visitante com a obra – identificado na passagem ela/ele → eu/você. Está claro agora como os jogos eu x você podem ser inseridos no conjunto de obras aqui comentado: sua importância é evidenciada pela construção e delimitação de um território próprio – como vimos, person ou group-specific – para se trabalhar tais passagens, elaborar o que se
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Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”, op. cit.. Noção desenvolvida por Suely Rolnik em diversos escritos, que procura indicar um corpo aberto, “que absorve as forças que o afetam, fazendo delas elementos de sua tessitura, marcas de sensação que irão compor sua memória. Mobilizar a potência vibrátil do sensível é então convocar esta memória, as marcas de suas vivências fecundas mas também as de seus traumas e os fantasmas que a partir deles e neles germinaram.” O corpo vibrátil não é o corpo já ‘saudável’, mas aquele que reconhece sua capacidade de reagir ao entorno e direcionar-se de modo produtivo na criação das transformações que o potencializem nessa direção. Cf. Suely Rolnik, “Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia”, in Lygia Clark, da obra ao acontecimento – Somos o molde. A você cabe o sopro, São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Nantes, Musée de Beaux Arts de Nantes, 2006, pp. 13-26. 197
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passa e processa no jogo das membranas das bordas de contato das paraesculturas que se lançam ao confronto. Este sujeito transformado teria a obra ao seu lado, inscrita no corpo – e ao mesmo tempo se movimentaria mais agilmente nesta nova condição de hibridização entre corpo e obra de arte, em que o poema é prótese a circular pelo corpo, enquanto condição imaterial da obra que não contamina mais a ela(s) e/ou ele(s), mas a eu/você. convergência de pronomes pessoais em uma única palavra. euvocê vocêeu mistura, hibridização, contaminação recíproca de um pelo outro, de eu por você, de você por eu, numa só coisa. êxtase do objeto, síntese ideal do desejo. instrumento de negociação para ações de uma alteridade incorporada, em fuga.198 Deve-se notar que tal operação levada a cabo pela obra de arte em sua captura do espectador, conduzindo-o da condição de visitante (ela/ele) para participante (eu/você) – ou seja, trazendo-o de situação de ausência de contato para a ocasião de constituir membrana entre si e o trabalho de arte – não se processa através de dinâmica simples mas demanda abordagem complexa, de mais de uma etapa. Deve ficar claro aqui que não é o objeto ou o elemento da instalação que, em sua materialidade física, deflagra este processo tanto em sua instantaneidade (pois existe sempre algo no trabalho de arte que é da ordem de uma “apreensão pática, imediata e não-discursiva”199 ) quanto em etapas: trata-se de ação conjunta da obra em suas diversas partes, mecanismo elaborado composto das dimensões plástica e 198 199
Ricardo Basbaum, “superpronome”, op.cit.. Félix Guattari. V. nota 135.
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discursiva, abertas às manobras da inter-relação entre sensorialidade e conceito. Nesse sentido, cada uma das séries de trabalhos ou projeto aqui comentado se estrutura, de modo inequívoco, de maneira dupla, desenvolvendo elementos textuais em conjunto com aqueles aqui chamados de para-escultóricos. De modo que nbp x eu-você, passagens (NBP), transatravessamento e obs. elaboram sua ação de captura & contaminação mobilizando o sistema de revezamento plástico-discursivo que temos apontado aqui como próprio de uma prática que, atenta à condição própria da arte contemporânea em seu deslizamento para além do visual, elabora combinações das matérias conceitual e não-discursiva como partes de um mesmo fazer. Os jogos eu x você e a elaboração do superpronome são indicadores da utilização do espaço intermediário – membrana, zona de contato – como região de reorganização e reelaboração de partículas, onde transformações se processam com a inclusão do outro da obra (visitante, espectador) enquanto parte ativa do jogo (participante).
Ou
seja,
nesta
operação de
intervenção
na
dinâmica
de
funcionamento da obra de arte em seu contato com o outro e com suas condições de exibição – pois cada artista faz de sua obra intervenção em certo estado de coisas – há a efetiva construção de membranas plástico-discursivas como elemento dinâmico. Seria preciso então falar aqui de esculturas conceituais para se referir aos trabalhos que se integram ao projeto NBP, para que se possa compreender a presença de obras que se instalam no espaço arquitetônico, ali se estruturando como elementos físicos que procuram desenvolver provocações ao visitante, oferecendo a possibilidade do desenvolvimento de membranas – o mesmo se passaria com o objeto de Você gostaria de participar de uma experiência artística? e seu convite direto à utilização. Enquanto esculturas conceituais, seria indicado que estas peças constroem suas estratégias de ação trazendo ao primeiro plano a articulação conceitual que as constitui – principalmente, desenvolvendo a possibilidade que tal articulação conceitual não se faz presente apenas como paisagem de conceitos oferecida em contemplação ao visitante mas, enfim, se coloca como agente que trabalha a inclusão deste visitante enquanto sujeito pensante da obra, capaz (de acordo é claro com o grau de seu investimento) de desviá-la de rumo para o
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encontro de outras intervenções. Isto é claro em Você gostaria…?, quando se escreve: Você gostaria de participar de uma experiência artística? aceitaria levar para casa o objeto (…) ? (…) O objeto carrega alguns conceitos e eu gostaria que você também os utilizasse. Apesar de invisíveis, eles são manipuláveis através do uso do objeto. As experiências que você realizar tornam visíveis redes e estruturas de mediação, indicando a produção de diversos tipos de relações e dados sensoriais: os conjuntos de linhas e diagramas, trazidos ao primeiro plano a partir de sua utilização, são mais importantes que o objeto.200 Há a indicação de disponibilizar ao participante a trama conceitual com a qual se costura o projeto, apontando sua presença concreta (ainda que invisível) junto ao objeto – utilizá-lo é também utilizar a articulação conceitual, produzir outros arranjos em sua configuração, desviando-os até quando o projeto é conduzido até um limite: pois o participante desenvolve esta possibilidade de articulação direta que o posiciona junto ao local privilegiado a partir do qual é possível trabalhar com a obra, já que, aqui, pensá-la significará pensar-se, na medida em que qualquer ação somente se fará com engajamento de alguém (mente-corpo), sujeito de um contato estético e também conceitual – simultâneos. Bloco 4 experiência, incorporação, sujeito híbrido Se Você gostaria de participar de uma experiência artística? – assim como o projeto NBP – quiser se colocar como um processo de subjetivação (como, em certa 200
Texto que integra os diversos folhetos e guias para participantes do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, de 1994 até 2008. V. Anexo Textos
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medida, aponta todo o trabalho de arte), deve indicar que as experiências que propõe sejam desenvolvidas em ambiente de intensidade. Somente uma experiência intensiva oferece o mergulho adequado para a ocorrência de processos de transformação – isso não quer dizer isolamento formal em relação ao entorno, mas o desenvolvimento de um processo de contato e de passagens entre seus principais atores, de modo que em alguma parte esse contato se processe de fato e algum trânsito se institua; e ali se concentrarão especialmente as forças envolvidas nessa dinâmica, sem evitar que outros processos continuem ativos e atuantes – mas é preciso garantir, por instantes que sejam, a erupção de algum ritmo especial. Ocorre que não existe garantia a priori da deflagração e ocorrência de um processo intensivo – esta é um dinâmica avessa a um planejamento, organização e desenvolvimento, no sentido de um plano de metas; daí ser preciso conduzi-la em termos de aproximações e envolvimento sensorial, pois o que se passará será da ordem do desejo e da vontade e somente assim a ambiência intensiva se constituirá: se não houver atividade do espectador, nunca se entrará finalmente no aqui&agora da experiência intensiva, proporcionadora de transformação. Nada disso será exclusivo de NBP, mas propriedade da obra de arte em um de seus terrenos de aventura possíveis – exigência talvez de certa arte contemporânea em escapar o quanto possível (não existe escape absoluto) dos jogos dominantes do entretenimento e do mercado. De modo que aqui a obra – em suas componentes sensorial e discursiva – deverá funcionar no sentido do envolvimento, da oferta de espaços, da elaboração de membranas, da hibridização, para assim proporcionar a possibilidade de que o outro, frente à provocação oferecida, encontre este território onde as forças se acelerem e adquiram trânsito, em limiar de intensidade: que somente ocorre se existe um estado de trocas entre obra e sujeito participante – assim é possível alguma transformação. Não há como obter medidas ou garantias da efetivação deste estado – que seria a possibilidade mesma de uma experiência: o estado intensivo é experimentado como vivência do corpo vibrátil201 , vivência de vivência: experimentar a si mesmo em momento de trocas com a obra – daí também a importância do elemento discursivo, 201
V. nota 197.
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ao conduzir e enviar este espectador-participante ao mesmo tempo para o contato direto com a obra e para o confronto com o discurso, os quais se combinam de acordo com o grau de envolvimento deste espectador nos meandros do processo: a medida da combinação obra-discurso é indicada pelo sujeito-participante, ou seja, de acordo com quem se envolve (group-specific, person-specific) a mistura obratexto sofre variações. Mas é certo que um envolvimento de tal ordem somente se dá se a obra se prepara para acolher este processo – ou seja, desenvolva suficientemente seu funcionamento a partir da estratégia da elaboração de membranas como superfícies de intermediação e troca. A efetivação do processo depende do encontro obra-sujeito: quando este se dá, forma-se a entidade híbrida corpo + obra de arte, através de ligações que possibilitam contato e troca entre as duas partes – mútuo reforço e duplo trabalho: pois nem o corpo deixa de ser corpo e nem a obra abandona sua condição própria, mas constrói-se esta outra entidade que é algo a mais, com a qual cada parte terá que lidar: o sujeito-corpo percebe-se como corpo-obra, assim como a obra teria seus limites re-estabelecidos enquanto obracorpo. Mas esta complicação (pois de fato se está em outro estágio além da simples presença de alguém junto a um trabalho de arte) deverá revelar-se produtiva, no sentido da construção de algo: para o espectador, a possibilidade que se abre está ligada ao processo de subjetivação que será deflagrado, na co-habitação junto do poema que agora circula pelo seu corpo; para a obra, o que se constitui é seu enriquecimento por novas camadas de um processo de atualização radical, que pode se desdobrar na reconfiguração de seus limites através de ação crítico-teórica, em que é recriada. Daí a importância para o projeto NBP das palavras de Lygia Clark (já indicadas aqui), ao nomear como “metabolismo simbólico”202 o processo de reação do corpo ao contato sensível com o mundo, indicando a presença de uma constituição de si – e então, a obra de arte seria um dos elementos do mundo junto ao qual esse contato se dá de modo particular, uma vez que se dedica a problematizar o sensível, produzindo sensações de matriz própria, irredutíveis ao que quer que seja, mas hábeis na construção de conexões com o entorno. Ao confrontar-se com objetos, 202
V. nota 142.
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instalações, esculturas-conceituais, etc., que compõem NBP, ocorre o contato entre as materialidades do corpo e da obra (assim como entre corpo e discurso, uma vez que as manobras próprias deste projeto se fazem presentes através da dupla articulação ou mútua implicação entre os campos sensorial e conceitual): a operação de contágio que se segue a partir daí seria também de metabolização dos efeitos, sentidos e significados implicados na proposta de intervenção. É preciso compreender que o termo metabolismo é sobretudo garantia de que o procedimento de contato não se reduz à simples transmissão de conteúdos entre a obra e o sujeito-espectador203 – a qual se caracterizaria como procedimento incorreto, uma vez que não existe um algo a ser transmitido, mas uma operação a ser desenvolvida envolvendo o aparato de uma atividade de maior complexidade: de fato um processo a ser deflagrado, ativado, conduzido, envolvendo contato & contaminação. Metabolizar NBP indica o investimento concreto deste sujeito-espectador em deixarse contaminar, tornar-se um com a obra (sem abandonar-se e sem dissolver o trabalho de arte, ou seja, será preciso ser dois ou três simultaneamente, superpor contornos sem abandonar delineamentos anteriores, ser mais do que se é), abrir-se para a ambiência do poema a trabalhar dentro de si, ser habitado por esta partícula (o poema) que maximiza e hipertrofia o sentido e, a partir de tal intensificação, permite limiares, passagens e modificações. Desde então há a inoculação do espectador-participante: em seu corpo passa a circular a forma-específica NBP, qual vírus-poema, partícula verdadeiramente estranha e enfrentar aquela ambiência, que seria propriamente sua (alguma surpresa?): não é vocação e ambição do poema circular de corpo em corpo? Claro que não há o instante do contágio, ponto zero do processo, pois a dinâmica da contaminação é de fato mais complicada, demandando uma seqüência de etapas da qual a inoculação resulta como efeito de pequenos processos que se acumulam e aos quais, de súbito, não se oferece mais resistência, uma vez que já está ali a 203
E assim o projeto NBP caminha em direção oposta ao “grande sonho e promessa de que a informação possa se libertar dos constrangimentos que controlam o mundo dos mortais”, expresso por Marvin Minsky em sua sugestão de que “em breve será possível extrair a memória humana do cérebro e importá-la, intacta e sem modificações, para discos de computador.” Citado por N. Katherine Hayles, How we became post-human – virtual bodies in cybernetics, literature and informatics, Chicago, The University of Chicago Press, 1999, p. 13.
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partícula invasiva – com a qual só resta conviver, a favor dos instantes especiais que oferece,
percebendo-a
em
seus
contornos
não-naturais
de
diferença:
inevitavelmente, aos poucos esta será devorada, mas isto indicará não seu aniquilamento, mas assimilação. Pois se o vírus-poema NBP desloca-se pelo corpo como partícula estranha, esta circulação não se dará através das vias naturais: em ação conjunta partícula-ambiente se constituirão ali, naquele corpo, outros circuitos, caminhos e modalidades de circulação cujo efeito principal será restituir as vias de acesso ao exterior – como se a invasão se desse de fato como estratégia para a produção de aberturas, como duplo caminho para entrar-sair, trazendo corredores e passagens, canais e vias duplas. Não interessa a NBP invadir corpos para gerenciálos ou assumir postos cerebrais de organização e controle, mas redistribuir sistemas de circulação de intensidades descentralizadas – mais próximos de dinâmicas de descontrole – que abrirão passagens para que mais ali se passe, mas também que mais dali se escape: não se trata de ganhar ou perder, mas amplificar certa dinâmica dentro-fora, Ou seja, se há para o vírus-poema NBP alguma programação em jogo, esta se faz enquanto dupla manobra que irá articular interioridade e exterioridade, amarrando ambas as regiões na dinâmica do corpo: pode ser dito que as etapas do processo compreendem (1) o contato direto com a obra (instalação, esculturaconceitual, estrutura arquitetônico-escultórica, diagrama, etc.) – em suas implicações hápticas –, o que conduz à (2) constituição da membrana intermediária, interface obra-espectador; através da espessura e densidade destas superfícies de intermediação, em etapas sucessivas, ocorre (3) a contaminação pelo vírus NBP, que circula de modo invasivo pelo corpo do sujeito-espectador ali produzindo novos circuitos que, afinal, (4) conduzem à produção de vias e passagens que enviam de volta ao exterior. Ocorre que, de fato, não há porque ter estas etapas como fases em seqüência e resulta ser mais proveitoso perceber a instauração deste processo como um avanço simultâneo das quatro etapas descritas acima, cada qual em ritmo próprio – pois não importa de fato a ordem em que se perfazem as ações entre elas, se consideramos importante acentuar que a apreensão da obra de arte se dá de diferentes modos, sempre resguardando a importância da imediaticidade do contato204 : assim, seria decisivo se perceber o trabalho funcionando ao mesmo 204
“[o] corpo que se torna uma espécie de órgão de captação das mais finas vibrações do mundo”.
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tempo fora e dentro, processo em que a provocação estabelecida pela esculturaconceitual implica na invasão do corpo pelo poema, mas que também este corpo invadido já reaja de modo diferenciado à provocação, por ter seus sistemas de circulação redelineados. Há uma intensificação e reordenação da dinâmica dentro/fora e um cuidado na construção da obra que implique nesta dupla atuação: contato & invasão, circulação & fuga – intervir na temporalidade deste processo através da compreensão da simultaneidade das etapas e da compressão de seus intervalos: Queremos nos instalar, pretensiosamente, dentro deste intervalo mínimo, no interior da instantaneidade – melhor dizer ao lado, mas do lado de dentro. Não como testemunhas, simples testemunhas oculistas, mas como estratégia para a geração de outros processos, múltiplos e variados, a partir deste lapso: o intervalo de tempo entre meio emissor (Me - mensagem emitida) e meio receptor (Mr - mensagem recebida): ∆t Mr - Me → Zero 205 Mas é preciso advertir: quando se pretende propor uma possível simultaneidade entre os processos internos e externos de atuação da obra, querendo convergir seus tempos processuais, o que de fato se enfatiza é que tal dinâmica se dará a partir de revezamentos fora/dentro – e quanto mais intenso este trânsito, maior será a riqueza do processo de transformação proposto (subjetivação do espectador, atualização crítica da obra); entretanto, o que se pretende de fato é a instalação do problema e não sua resolução: produzir intervalos, espaços, aberturas já é tarefa relevante – mais significante que a obtenção de resultados imediatos. Produzir a circulação interna e externa do problema, indicando a articulação de ambas as situações, aponta sobretudo para a produção de outra experiência estética – mais complexa – em que o contato com a obra não se separa de um contato consigo, a dinâmica José Gil, “Abrir o corpo”, op. cit., p. 64. 205 Ricardo Basbaum, “O que é NBP?”, op. cit..
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contextual exterior se instala nas vias de circulação interna, o sujeito se lança para fora sendo constituído ali no exterior, e, principalmente, reforça-se o lugar em que as dinâmicas exteriorizante e interiorizante se processam simultaneamente sem perder sua dupla característica, ou seja, mantém-se o conflito, assimila-se a (inassimilável) disjunção e assim abrem-se espaços associados a ferramentas de trabalho – a emancipação (ou cura) pode estar ainda a se consumar, mas se está melhor articulado e armado para os combates. Há um trânsito (próprio da obra contemporânea) que se torna intenso e possibilita diversos sítios para intervenção: NBP ocupa alguns deles, procurando trabalhar potencialidades possíveis do poema hoje. Talvez seja importante um destaque: quando a ênfase recai na presença do espectador-visitante, apontando sua presença como necessária para que o trabalho aconteça, é também porque a figura da obra vazia, deserta, sem qualquer presença, se torna visivelmente incompleta. É claro que todo trabalho contemporâneo indica a importância da presença do outro como fundamental para que funcione – mas, se temos por exemplo, a imagem de uma pintura, iremos preferir conferi-la em seu isolamento formal, e a presença ali de qualquer corpo somente irá dificultar a visão da obra – os fotógrafos irão em geral preferir a presença apenas da tela como assunto da imagem a ser feita. Mas trabalhos de outra ordem se resolvem em uma modalidade diferente de imagem – em que a presença de corpos em contato direto se faz imprescindível para que a imagem produza a inteligibilidade não apenas da obra em foco, mas da situação mesma. Para grande parte dos trabalhos do projeto NBP, esta segunda modalidade de imagem se aplica – as peças ganham sentido a partir da presença, entre elas, de variados corpos: não se trata de figuração cênica, mas da importância que ganham aqui as formações híbridas corpo + obra – certamente a fotografia não é capaz de trazer à tona as linhas invisíveis que testemunhariam a força potencial das ligações aí em curso (somente o diagrama responderia a isto); mas trata-se então de perceber o conjunto como formação de misturas, flagrando o instante da mistura de corpo e elementos para-escultóricos, arquitetônico-escultóricos, etc. – não há imagem material de membranas, representação literal de forças, retrato de linhas invisíveis, mas “a presença das
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intensidades se mede pela influência que ela provoca nos que a percepcionam”206 : então este corpo coletivo híbrido instaura modificações no entorno (ou seja, na instalação), conduzindo o trabalho sempre a outras direções, produzindo desvios em relação ao outro-visitante, à obra e à sua ambiência (triplo endereçamento). Então: (1) a instalação estará pulsando em repouso, emitindo ritmos a partir de seu padrão de vibração habitual, como que em contorno de espera, em modo de espreita; (2) aqueles que tocam, pisam, avançam, deitam, se sentam, repousam, instauram ali movimento, iniciam deslocamento e dinâmica e o conjunto é ativado – há falas, conversas, escuta, sonoridade; (3) com a ativação das membranas é que se produz hibridização e não se sabe mais com clareza os limites entre obra e corpos, pois a movimentação preenche o espaço com linhas (estado diagramático) que vão e vêm e – principalmente – deslocam-se através deste misto obra-corpos para dentro e para fora de cada um (singularidades possíveis), ativando sistemas de circulação particulares em duplo jogo (sistemas que também se enredam mutuamente, uma vez que aí redes dialógicas são sim constituídas) – há vibração que põe em funcionamento intenso trânsito, possibilidade de misturas, probabilidade de trocas; (4) os efeitos se produzem enquanto mudança, transformação, no sentido de não se ser mais o mesmo após tal dinâmica: processos de subjetivação deflagrados na intensidade do contágio, discursividade em multiplicação alterando o campo teóricocrítico – a dinâmica da obra se coloca em escala temporal, pois não há volta possível a qualquer estado inicial: uma vez ativados, os trabalhos do projeto NBP guardam as marcas de cada estado pelos quais passaram e torna-se impossível (de fato, isto não se deseja) qualquer retorno a um momento de inércia inicial (se bem que em repouso as peças pulsam, de modo que nunca houve instante zero, início absoluto em NBP). Com Você gostaria de participar de uma experiência artística?, ocorre sem dúvida procedimento similar – com a particularidade de que aqui os protocolos de uma experiência estão demarcados de maneira mais enfática, pois este projeto assim o pede. Aqui, a modalidade de contato entre participante e objeto é de variabilidade muito maior: ao conduzi-lo sob sua guarda, levando-o consigo, este participante – 206
J. Gil, op. cit., p. 65.
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indivíduo, grupo, coletivo ou instituição – pode moldar a forma de contato à experiência que irá propor: assim, desde que está em posse do objeto, o participante desenvolve uma proximidade máxima que parte já das primeiras pulsações de um objeto aparentemente vazio, mas que “carrega alguns conceitos (…) manipuláveis”, “apesar de invisíveis”.207 Pode-se dizer que este objeto é praticamente todo constituído como uma grande membrana – e, à diferença de projetos da série NBP, funciona como provocador imediato de intensidades devido à sua portabilidade e outras características de construção: trata-se de um container, portador de área interna pronta a acolher algo; suas dimensões permitem que seja conduzido para dentro da casa (ou abrigo similar), entrando assim diretamente em espaço de convívio e co-habitação; estas mesmas dimensões permitem que seja carregado por uma ou duas pessoas para todo lado, oferecendo ainda toda uma sorte de possibilidades de contato corporal, desde o gesto do transporte até tentativas (que são freqüentes) de acomodar o corpo em sua área interna. Ainda, por ter seu desenho diretamente determinado pela forma específica NBP, as forças associadas a esta marca, sinal ou signo distribuem-se imediatamente pelo objeto – todo ele entidade sensível ao toque, pronto a ser ativado, em estado de máxima excitação. Desta forma as etapas de contágio, em que o objeto se desfaz enquanto vírus, partícula a avançar pelo corpo do participantes, se perfazem com agilidade veloz – de pronto já se estabelece o duplo jogo exterior-interior, em que se buscam sistemas de circulação através do corpo, em ressonância rítmica com o toque direto: é nesta dupla tarefa que Você gostaria…? busca sua eficiência possível – e é aí que reside a resposta ao convite de participação e formulação de uma experiência. Pois ao deixar ao participante a responsabilidade de construir suas próprias ações, é a este que se abrem as possibilidades de definir a modalidade de acomodação do objeto junto a si (corpo individual, grupal, coletivo ou institucional): desta forma o trânsito dentro-fora é construído em detalhamento muito maior, com características especiais – configurar o sistema de circulação do vírus-poema em seu corpo em contigüidade com a acomodação do objeto no espaço físico da experiência, levandoo para lá e para cá – dupla tarefa que aqui converge em função da proximidade de todo o processo, mas que resguarda a diferença das etapas (toque físico no objeto + 207
Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..
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partícula desmaterializada a ser metabolizada), momentos complementares de uma mesma experiência que aqui se processam em conjunto. Em seguida, enfim, a experiência deverá ter sido documentada – possibilidade de compartilhamento e inclusão no arquivo: o convívio e utilização do objeto são tramados desde o início sob esta exigência (que pode ser tomada como intrusão violenta do artista em dinâmica de contornos muito próprios e contextualizados) da construção do registro – será preciso vencer as limitações do aqui&agora irrepresentável e intransferível próprios do mergulho no presente da ação e produzir texto, fotografia, vídeo ou áudio (e ainda desenho, objeto, etc.) que reconstituirão a experiência realizada enquanto documentação a ser acessada em espaço público208 (já que a conversa a partir daí já não pode ser contida exclusivamente nas trocas entre artista e participante). A partir deste momento, Você gostaria de participar de uma experiência artística? passa a realizar-se como experiência de arquivo, configurando já outra etapa com características próprias (a ser comentada mais a frente) – completando o percurso em que o participante desenvolve a prática de intenso convívio, toque, co-habitação: pois de fato o objeto deverá seguir as redes de circulação do projeto, sendo deslocado para um próximo participante – mais uma vez, a indicação das fases do envolvimento do participante de Você gostaria…? segue os passos implicados em NBP nos termos de contato & invasão, circulação & fuga – mas é importante que se registre aqui: talvez seja Você gostaria…? um dos projetos que mais propriamente desenvolvem e avançam sobre estas propostas de trabalho, sobretudo por proporcionar um convívio tão direto, próximo e permissivo entre espectador-participante e obra de arte, onde está última se deixa tomar pela possibilidade das mais extremas intervenções, franqueando-se enquanto elemento de dupla articulação sensível e conceitual e, assim, prestar-se a uma experiência de intervenção que remete diretamente à constituição da obra, ao processamento sensorial e a um conjunto de relações contextuais e ambientais.
208
Referência ao website do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, que constitui o banco de dados do projeto, disponibilizando documentação enviada pelos participantes – trata-se de espaço público de consulta aberto a qualquer um que acesse a internet através do endereço http://www.nbp.pro.br.
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Bloco 5 atores participantes, papéis, circuito, artista-etc (agenciador, curador, crítico), autoria compartilhada Seria impossível separar o trânsito do artista pelo circuito de arte das configurações que se adquire nesta dinâmica. Ou seja, ao desenvolver a poética e trabalhar suas possibilidades de intervenção e inserção, certamente estarão aí implicadas a constituição de uma figura ou imagem do artista e alguma compreensão dos outros papéis de personagens com os quais terá que negociar: será necessário perceber, de modo geral, que gestões deverão ser tramadas para que o trabalho circule (agenciamento); entender como a obra se relaciona com o espaço expositivo (curadoria); saber discernir as tramas teórico-críticas do jogo da arte (crítica) – pois ao avançar na construção do trabalho, o artista se desenvolve em direção à modalidade que corresponde à atuação pretendida. Mas não se trata simplesmente de assumir perfis já prontos – ‘artista de sucesso’ ou ‘artista marginal’, por exemplo, como casos extremos –, embora isso sempre seja possível a qualquer tempo (isto é, deixar-se configurar conforme a demanda); o mais interessante seria empreender um constante exercício de escuta em relação à prática e moldar a forma de atuação e imagem do artista conforme as nuances e exigências da pesquisa plásticoconceitual empreendida: são pesquisas que correm em paralelo – configurar a obra, configurar-se como artista. A implantação do projeto NBP se deu em certo momento (1989/90) em que buscava uma convergência mais concreta e intensa da prática discursiva para dentro de minhas atividades como artista – pois até então as experiências de multiplicavam em várias frentes (experimentação em performance, vídeo e música com os grupos Dupla Especializada e Seis Mãos; exposições com a prática da pintura e desenho; trabalhos dentro da interface arte/comunicação; ações coletivas), incluindo a utilização da escrita como ferramenta de ação junto à obra de arte – tanto textos de utilização interna em vários projetos (press-releases, roteiros, letras de canções, folhetos para distribuição ao público) como o início da produção de textos críticos. Pareceu-me decisivo tornar clara, desde aquele momento, certa identificação em
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torno da imagem do artista a ser buscada – quais os contornos de identificação deste personagem? Em que direção desempenhar tal papel? Quais interesses convergir para este núcleo de atração? Apesar de não haver dúvidas quanto ao interesse em articular a produção de uma poética, o próprio lugar de onde se é capaz de produzir tal articulação é problematizador por excelência e, logo, resultado de constantes construções (e desmontagens). Pois, quando a demanda da escrita se apresentou intensa, sendo aos poucos percebida como elemento de trabalho concreto, a afirmação desta prática se deu a partir da convergência de três diferentes locais de produção: como elemento integrado às ações plásticas de projetos individuais e coletivos209 ; enquanto agregação de interesse na produção de textos críticos, apresentação de catálogos de exposições e resenhas210 ; junto à atuação frente às (ou seja, percepção das e intervenção nas) disputas de uma política do circuito que permeava o jogo artístico do circuito de arte do Rio de Janeiro no contexto dos anos 1980. Uma breve observação será necessária, quanto a este terceiro tópico: refiro-me diretamente às ações do grupo A Moreninha (198788)211 , que agrupou artistas e críticos relacionados à arte do período, identificados como pertencentes (ou próximos) à assim chamada “Geração 80”. De forma breve, estas ações se desdobraram na direção da produção de polêmica frente ao provincianismo do circuito local e pela construção e conquista de outro lugar de fala por um grupo de produtores engajados diretamente em um processo cultural – e identificados publicamente como tal –, mas que se debatiam contra o incômodo de verem atribuídas à sua prática questões provenientes de interesses variados sempre ávidos para a elas se associarem, e que de maneira alguma eram desdobramento 209
Como gestos iniciais importantes destaco a Filipeta-Manifesto (1984), de autoria da Dupla Especializada, distribuídas nas ruas do Rio de Janeiro e o texto-poema Olho, de minha autoria, impresso no cartaz da exposição "Olhos, Discos e Eletrodomésticos", Galeria Contemporânea, Rio de Janeiro, 1985. 210 Sendo "Rota de Colisão", apresentação da exposição de André Costa, Galeria de Arte do Centro Empresarial Rio, Rio de Janeiro, 1987, o primeiro texto publicado. 211 A Moreninha realizou três ações principais, todas no ano de 1987, sempre no Rio de Janeiro: intervenção na palestra de Achille Bonito Oliva (Galeria Saramenha, fevereiro), exposição Lapada Show (Espaço Brumado, junho), publicação do livro Orelha (lançamento na Petite Galerie, novembro). Entre os nomes envolvidos (dentre os quais me incluo), alguns com maior e outros com menor engajamento, encontram-se: Alex Hamburger, Alexandre Dacosta, André Costa, Beatriz Milhazes, Cláudio Fonseca, Cristina Canale, Chico Cunha, Eneas Valle, Gerardo Vilaseca, Hamilton Viana Galvão, Hilton Berredo, João Magalhães, John Nicholson, Jorge Barrão, Lúcia Beatriz, Luiz Pizarro, Lygia Pape, Márcia Ramos, Márcia X, Márcio Doctors, Maria Lúcia Catani, Maria Moreira, Paulo Roberto Leal, Ricardo Basbaum, Solange de Oliveira, Valério Rodrigues.
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direto de problemas produzidos e derivados das obras. Algo como uma revolta contra clichês, no interesse pela emissão de voz própria, individual, coletiva. Se a primeira ação se deu como intervenção que produz polêmica e se expande pelo circuito de arte e pelos meios de comunicação, a última se configura como livro, onde cada membro indica e externaliza seus posicionamentos frente aos acontecimentos: daí que me parece muito claro que estas ações indiquem o encerramento do período identificado como “Geração 80” – no sentido de desconstrução de certas emissões (do circuito comunicacional, de posicionamentos que recusavam o confronto crítico com as obras) e em rumo à elaboração e publicação de discurso próprio.212 Esta convergência de diferentes lugares de produção de discurso – seja do artista junto à obra, seja enquanto escrita crítica ou ainda como ferramenta de agenciamento para disputas político-institucionais do circuito, percebendo a importância e singularidade de cada uma das modalidades de modulação, formatação e formulação discursiva – indica caminhos e percursos a serem percorridos e a necessidade de reformatar-se conforme os papéis oferecidos e suas demandas: pois trata-se de deslocamento a ser também empreendido pelo crítico, curador, agente cultural, pesquisador intelectual, etc., ou seja, tópicos de uma prática a ser conduzida pela produção de textos e pela compreensão de seu papel e funcionamento como ferramenta de trabalho e combate. O desafio é também compreender como nestes trajetos e trabalhos se constituem os papéis – configuração de si na dimensão da atuação social – também como ferramentas e formas de ação: e aí se constroem as imagens do artista, crítico, curador, etc., também como indicadores das questões com as quais se está trabalhando, imprescindíveis para a invenção poética a se fazer naquele momento – ou, quem sabe, um dia. NBP foi sendo construído nesta encruzilhada de possibilidades, como 212
Os episódios protagonizados por A Moreninha estão ainda ausentes do discurso oficial da arte brasileira, em geral ignorados pela historiografia e pela crítica. Como referências, além da cobertura de imprensa no período (jornais, televisão), apenas o livro Orelha (vários autores, edição própria, 1987) – do qual foram extraídos os artigos de Eneas Valle (“Geodemas de Uá Moreninha”) e Márcio Doctors (“A experiência estética da invenção como radicalidade estética da vida”) para publicação em Ricardo Basbaum (Org.), Arte contemporânea brasileira - texturas, dicções, ficções, estratégias, Rio de Janeiro, Contra Capa, 2001 – e meu artigo "Cérebro Cremoso ao Cair da Tarde", O Carioca, nº 5, dezembro 1998.
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projeto de trabalho que permitisse o desenvolvimento forte de um campo discursivo enunciado a partir do lugar do artista, sem que daí fossem excluídas as dinâmicas da crítica e do agenciamento (construção de eventos) – buscar as permeabilidades possíveis e sobretudo compreender o papel do artista como afim (e não incompatível, como quer o senso-comum ainda vigente ou mesmo a divisão profissionalizante das competências frente ao mercado de trabalho) àquele do crítico e do curador: seria preciso então produzir uma curvatura da prática discursiva para que de fato a fala passasse a ser gerada em conjunto com o trabalho plástico, buscar um sistema de revezamentos plástico-discursivos adequado ao gesto pretendido, sem que a opção da dupla prática correspondesse à diminuição da carga poética e à des-intensificação da intervenção. E principalmente compreender aí qual o desenho ou diagrama produzido por estes outros e novos contornos – quais seus efeitos nas maneiras, formas e procedimentos do trabalho? ADVERTÊNCIA: Atenção para esta distinção de vocabulário: (1) Quando um curador é curador em tempo integral, nós o chamaremos de curador-curador; quando o curador questiona a natureza e a função de seu papel como curador, escreveremos ‘curador-etc’ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias, tais como curador-escritor, curador-diretor, curadorartista, curador-produtor, curador-agenciador, curador-engenheiro, curadordoutor, etc.); (2) Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de ‘artista-artista’; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc’ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artistaquímico, etc.);
162
O enunciado acima pressupõe que o ‘curador-curador’ (ou mesmo o ‘curadorartista’) trabalha de modo diferente do ‘artista-curador’. (…) Amo os artistas-etc. Talvez por que me considere um deles. Artistas-etc não se moldam facilmente em categorias e tampouco são facilmente embalados para seguir viagens pelo mundo, devido, na maioria das vezes, a comprometimentos diversos que revelam não apenas uma agenda cheia mas sobretudo fortes ligações com os circuitos locais em que estão inseridos. Vejo o ‘artista-etc’ como um desenvolvimento e extensão do ‘artista-multimídia’ que emergiu em meados dos anos 1970, combinando o ‘artista-intermídia’ fluxus com o ‘artista-conceitual’ – hoje, a maioria dos artistas (digo, aqueles interessantes…) poderia ser considerada como ‘artistas-multimídia’, embora, por ‘razões de discurso’, estes sejam referidos somente como ‘artistas’ pela mídia e literatura especializadas. ‘Artista’ é um termo cujo sentido se sobre-compõe em múltiplas camadas (o mesmo se passa com ‘arte’ e demais palavras relacionadas, tais como ‘pintura’, ‘desenho’, ‘objeto’), isto é, ainda que seja escrito sempre da mesma maneira, possui diversos significados ao mesmo tempo. Sua multiplicidade, entretanto, é invariavelmente reduzida apenas a um sentido dominante e único (com a óbvia colaboração de uma maioria de leitores conformados e conformistas). Logo, é sempre necessário operar distinções de vocabulário. O ‘artista-etc’ traz ainda para o primeiro plano conexões entre arte&vida (o ‘an-artista’ de Kaprow) e arte&comunidades, abrindo caminho para a rica e curiosa mistura entre singularidade e acaso, diferenças culturais e sociais, e o pensamento. (...) (…)
Amo os artistas-etc.
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Talvez porque me considere um deles, e não é correto odiar a mim mesmo.213 *** Existem artistas cujos aspectos fortes e interessantes do trabalho residem sobretudo em decisões relativas à sua atuação, através de gestos que se estendem para além do instante de produção da obra-objeto e tocam os contornos do sistema de arte em suas diversas instâncias de agenciamento, comentário e construção do evento. Há em procedimentos deste tipo um inevitável olhar sobre si mesmo – não enquanto indivíduo ou sujeito psicológico – mas acerca do dispositivo de atuação que está sendo construído, isto é, a figura do artista, a imagem do artista, o tipo de artista que está sendo produzido no momento mesmo de produção da obra.214 Tais preocupações não são exatamente o fruto de uma ‘escolha’ simples e direta, mas muito mais o inevitável desdobramento de uma condição do ‘campo’ de trabalho: ou seja, não há como – dentro do regime de opções de movimentação do artista, oferecidos a cada momento pelo circuito – tomar decisões de atuação que não impliquem, ao mesmo tempo, na conformação, deformação, distorção, delineamento e re-delineamento da figura do artista, do que significa ser artista, do artista enquanto dispositivo de trabalho que tanto precede como sucede à obra. A noção de artista enquanto dispositivo de atuação – ainda que só possa ser inerente à própria condição de invenção e autonomia da arte a partir do Renascimento e modernidade, com a ênfase de sua atuação sendo gradativamente deslocada do virtuosismo artesanal para a produção de dispositivos sensíveis de pensamento
–
é
claramente
apontada, a
partir
de referências
da
arte
contemporânea, tanto pelos procedimentos trazidos à superfície em decorrências das proposições da arte conceitual quanto pela prática da body-art – seja em um ou outro caso, estão em jogo não apenas a discussão dos mecanismos para operar dentro da dissociação entre os limites do ‘sujeito empírico’ e ‘sujeito artista’ (ali onde
213
Ricardo Basbaum, “Amo os artistas-etc”, op. cit.. O desenvolvimento a seguir reproduz, com adaptações, os argumentos do texto “Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico”, de minha autoria, apresentado no Seminário “Marcel, 30”, 27ª Bienal de São Paulo, 2006. Não publicado. 214
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ocorrem os deslocamentos arte&vida), mas ainda a presença do próprio corpo como um dos materiais de trabalho, assim como a produção da ‘imagem do artista’ como elemento intercessor junto a um sistema de mediação ou circuito. Tendo como referência um certo conjunto de práticas constitutivas do campo das artes visuais, aquele(a) agente produtor(a) ali envolvido(a) necessariamente estará trabalhando uma certa construção de si próprio(a) – com gestos e atribuições a priori e a posteriori –, ao mesmo tempo como condição de possibilidade e derivação imediata das ações empreendidas. Em sua importante seqüência de textos, sob o título de “Educação do An-Artista, Partes I, II e III”215, o norte-americano Allan Kaprow, por exemplo, desenvolve comentários acerca de um modelo de artista efetivamente produzido ao longo das diversas manobras empreendidas no desenvolvimento das questões de sua obras: ao propor caminhos para caracterizar e produzir “an-artistas” (através da educação como instrumento transformador), Kaprow delineia o perfil do que acredita ser o “dispositivo de atuação” mais produtivo para enfrentar a região paradoxal arte&vida: enfatizar o humor como parte do processo de “an-artizarmo-nos” [“un-art ourselves”], “evitar todos os papéis estéticos, abandonar todas as referências para ser artistas de qualquer tipo. Ao nos tornarmos an-artistas, poderemos existir apenas tão fugazmente quanto os não-artistas, pois quando a arte como profissão é descartada a categoria arte torna-se sem sentido, ou pelo menos antiquada”216. Interessante neste exemplo é percebermos o desenvolvimento de uma modalidade de artista, que tanto é decorrência de um processo de investigação e invenção de linguagem quanto é condição para a continuidade do trabalho. Em outro registro, Vito Acconci chama a atenção para o desenvolvimento de sua linguagem de ação e performance onde ele é instrumento de trabalho de si mesmo:
215
As três partes de “The Education of the Un-Artist” foram publicadas originalmente em 1971, 1972 e 1974. Cf. Jeff Kelley (Ed.), Essays on the blurring of art and life, Berkeley, University of California Press, 1996, pp. 97-109, 110-126 e 130-147, respectivamente. 216 A. Kaprow, “The Education of the An-Artist, Part I”, in op. cit., pp. 103-104.
165
“Se me especializo em um meio (…) eu estarei definindo um terreno para mim (…), ao invés de me voltar para o terreno, eu deslocaria minha atenção e me voltaria para o ‘instrumento’, eu focalizaria em mim mesmo como instrumento que agiria em qualquer terreno que, de tempos em tempos, estivesse disponível. Mas estou focalizado em mim mesmo a partir de uma distância: eu vejo a mim mesmo, vejo o local, as figuras a minha volta … (estou muito distante para ser visto como um ‘eu’: sou visto a partir do lado de fora: eu posso ser considerado apenas como um ‘transportador físico’)”.217 No caso, Acconci desenvolve-se enquanto artista a partir de experiências em que deliberadamente se superpõem corpo-próprio e corpo-obra (para Antonio Manoel isto se deu em um flash, em 1970, no MAM-RJ), fazendo com que experimente a possibilidade de desenvolver projetos em que se auto-transporta de uma situação a outra, em que o corpo físico como elemento outro de si mesmo implica na reinvenção de si como artista. Nesta outra passagem, Acconci indica, mais uma vez, como no intrigante processo de mobilizar o próprio corpo como objeto indica, de fato, a construção de um modus operandi em que, ao mesmo tempo, se reconstrói como artista: “[em 1969] o modo como um trabalho começava era pensando em mim não tanto como um objeto mas como um instrumento que poderia se entrelaçar com um sistema já existente no mundo. Como poderia me conectar a este sistema? Tudo começou para mim com noções de movimento, probabilidade, instrumentos.”218 O que interessa aqui, sobretudo, é enfatizar a produção de certos padrões rítmicos – ressonâncias, redundâncias, reverberações – em relação ao delineamento do que seria a construção de um dispositivo de atuação: o desenvolvimento interrelacionado da produção de um ‘modo de ser artista’ (operacionalidade, imagem, atuação) e o desdobramento das proposições e jogos de uma poética que inevitavelmente escapa para o exterior, pelos interstícios de um sistema ou circuito.
217
Vito Acconci, “Steps into performance (and out)”, in Luces, cámara, acción (…) ¡Cortem! Videoacción: el cuerpo y sus fronteras, Valencia, IVAN Centre Julio Gonzalez, 1997, p. 174. No original Acconci escreve “physical mover”, que traduzimos para “transportador físico”. 218 Vito Acconci, “Lecture: September 16, 2002”, in Jen Budney e Adrian Blackwell (Eds.), Unboxed: engagements in social space, Ottawa, Gallery 101, 2005.
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Não há dúvidas que a condição do artista contemporâneo comporta a possibilidade de deslocamento por diferentes papéis e locais do circuito de arte. Sejam as práticas de agenciamento, de curadoria ou crítica – isto é, a articulação de atividades diversas e seu deslocamento por variadas instâncias; a construção do evento e do acontecimento; a articulação de mediações discursivas de modalidade crítica, conceitual, teórica e histórica –, importa perceber como traços destes modos de ação se encontram presentes nas formas de atuação do artista de hoje. Ainda não me refiro aqui de modo direto àqueles artistas que regularmente exercitam a escrita (sobre si, sobre outros), que se organizam em coletivos e constroem eventos, ou ainda que se dedicam particularmente a produzir exposições de vários formatos e meios – é claro que neste caso há uma atuação que se quer diversificada –, mas gostaria de enfatizar que todo o artista contemporâneo tangencia este fazer multiplicado: é característica do campo que legitima sua condição e possibilidade, neste início de século XXI, delineá-lo(a) como personagem em contínuo deslocamento através de práticas, saberes e discursos, dotado(a) de certos recursos técnicos e conceituais que possibilitam esse deslocamento – ao menos potencialmente. Ou seja, se pensarmos em um artista que, hoje, se volta exclusivamente à prática da pintura, tal artista jamais avançará em seu fazer enquanto acreditar apenas na representação, no plano, na questão cromática, etc. – será necessário que associe as pesquisas estéticas a um discurso (tecnicamente) elaborado acerca da prática em que se empenha; que compreenda a inserção de seu fazer em um circuito ou sistema, percebendo as várias forças atuantes e as conexões adequadas a seu projeto de inserção; que ao exibir seu trabalho seja capaz de buscar as melhores soluções de montagem, sabendo como ocupar o espaço, dialogar com a arquitetura e com os outros artistas presentes, etc. Caso não demonstre qualquer mínimo discernimento ao enfrentar estes problemas, assumirá papel passivo frente aos ritmos próprios do circuito, incorporando cada decisão segundo interesses que sempre se acoplam aos trabalhos (hoje mais do que nunca, sob o impacto da globalização neo-liberal) e – grosso modo – lançam as questões da arte para um plano secundário e pouco problematizante. Na construção efetiva de sua manobra de intervenção frente ao circuito, tal artista somente pode aspirar a qualquer grau mínimo de autonomia (ou seja, o resguardo de sua capacidade de
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deslocamento) se compreender seu fazer como um conjunto de práticas que incorporam não apenas as questões ditas plásticas, como as percebe como coextensivas às práticas do agenciamento, da curadoria e da crítica. Trata-se, então, de buscar compreender a complexidade que surge a partir de tais acoplamentos, tanto a nível conceitual como sensório, considerando o deslocamento por diversos papéis um traço efetivamente constitutivo das condições de atuação dos artistas – é claro que, do mesmo modo, este quadro de complexidade também se projeta sobre os limites da prática de cada um dos outros segmentos do circuito. É interessante se perceber que tal modo de conceber a prática do artista contemporâneo indicaria, aparentemente, um esforço elevado por parte deste artista, no sentido de complementar seu fazer com determinações das áreas do agenciamento, da curadoria e da crítica – um quádruplo trabalho. Entretanto, ao voltarmos os olhos para o panorama das primeiras décadas do século XX – em que emergiram algumas das principais vanguardas históricas – constatamos que a articulação das linguagens plásticas que se queriam puramente autônomas se dá de maneira concreta a partir de um franco deslocamento dos artistas pelo que estamos denominando como práticas de agenciamento, curadoria e crítica: estes artistas desenvolveram aguda elaboração discursiva e conceitual sobre seu fazer, agenciaram seus próprios eventos e projetos editoriais, organizaram as exposições individuais ou de grupo que deflagraram movimentos, etc. Cada uma destas práticas, então, se dava também enquanto invenção de linguagem, não existindo isoladas das investigações ‘autônomas’ do campo plástico. Cabe então inverter a indagação e se perguntar de que maneira foi se desenvolvendo este processo de segmentação do circuito de arte e como o campo de trabalho foi estabelecendo estas diversas competências profissionais supostamente especializadas – as formações específicas e isoladas do artista, do curador, do crítico –, garantindo reservas de mercado e toda uma rica economia com reflexos diretos na construção e concepção do lugar e do papel da arte e do artista no sistema de arte hiperinstitucionalizado de hoje e em suas relações com o tecido social. Vale à pena intervir no automatismo deste processo e produzir algum tipo de desvio que
168
signifique, pelo menos, a não aceitação passiva e simples de um conjunto de contornos conforme se apresentam no dia a dia. Três aspectos parecem desempenhar papel-chave para se iniciar uma intervenção neste estado de coisas: desnaturalização, politização e relações arte&vida. De modo simples e direto, a mobilização de cada um destes traços produz a dinamização inicial que auxilia na movimentação menos previsível do circuito de arte (ou seja, é importante
instaurar
estados
não-lineares
de
imprevisibilidade,
risco,
vulnerabilidade) – não aceitar os modelos a partir do automatismo de sua distribuição e oferecimento, ter em conta a presença de redes de interesse de diversos graus implicadas em qualquer deslocamento, atentar aos paradoxos que remetem ao corpo vivido e seus ritmos próprios. Claro que não se trata de fórmula ou cartilha a ser aplicada, mas sim de determinantes constitutivas de um dispositivo de intervenção e construção de espaços de deslocamento e atuação frente a um contexto dado (que necessariamente nos inclui entre seus atores). Daí que é preciso ter em conta, no campo da arte – sobretudo na perspectiva neo-liberal de hoje, em que facilmente se articulam valores do capital corporativo com a área cultural – a prática de desconstruir toda a sorte de modelos e processos que constituem o circuito de arte, desnaturalizar o próprio circuito (não tê-lo como pronto ou acabado), uma vez que suas configurações respondem inequivocamente a um certo estado de coisas. Do mesmo modo, é importante politizar a rede de relações que o constitui, entendendo que cada um dos participantes desse circuito é atravessado por linhas, feixes, nós, etc., de modo a recuperar assim possibilidades de tecer outras conexões, desfiá-las, atar e desatar nós, movendo-nos em grupos e coletivos, propondo alianças ou produzindo desvios. Finalmente, as questões envolvidas em dispositivos arte&vida sobretudo submetem o fazer a uma série de ritmos próprios, com importante papel de constituir resistência às forças que impõem à arte uma existência ‘fora dos corpos’, capturada por dinâmicas outras – é interessante pontuar aqui o comentário de Robert Smithson, recuperado por Guy Brett: “a existência do artista no tempo vale tanto quanto o produto finalizado. Qualquer crítico que desvalorize o tempo do artista é inimigo da arte e do artista”; aqui, a arte é afirmada
169
como “pensamento vivo”219, incorporado – envolvendo também o outro, retirando-o de sua condição de espectador passivo. Os três termos em destaque funcionam como “palavras de ordem”220, no sentido de fomentarem a produção de significados ao continuamente indicar operações de ‘análise e desmontagem do circuito’ como prática que produz frestas nas tramas: é daí que podem surgir dispositivos de atuação em conjunta articulação com as poéticas que os animam. Ou seja, se propomos aqui a discussão da construção da figura do artista a partir dos processos de investigação e desenvolvimento elaborados em diversos gestos de intervenção, é porque há o cuidado de não deixar escapar algo da irredutibilidade do poema, uma vez que “a singularidade do pensamento” (o poema) não pode ser substituída pelo “pensamento desse pensamento” (a filosofia)221. Em cada um dos tópicos que se seguem encontram-se comentários que procuram apontar exatamente os locais de entrelaçamento e passagem entre os diferentes papéis e lugares do circuito, indicando a permanência do poema e do signo plástico/poético como elementos irredutíveis que contaminam e aceleram o campo com os ingredientes do deslocamento. (a) artista como agenciador Trata-se aqui de pensar a possibilidade de produzir articulações e deslocamentos que permitam o trânsito – de idéias, problemas, obras, artistas, eventos, etc. – através do circuito de arte, não só em suas principais articulações como também em beiras e limites (é importante a atenção com seu lado de fora). Tais operações somente são viáveis a partir de uma compreensão do ‘sistema’ ou ‘circuito’ de arte –
219
Guy Brett refere-se a Robert Smithson, “A sedimentation of the mind: Earth Projects” (1968) in Jack Flam (Ed.), Robert Smithson: The Collected Writings, Berkeley, University of California Press, 1996, p. 112. Cf. Guy Brett, “Introduction”, in Carnival of perception – selected writings on art, London, inIVA, 2004, p. 18. 220 No sentido proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, não de caracterizar o enunciado no imperativo, mas de enfatizar a “relação de qualquer palavra ou enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. (…) As palavras de ordem [remetem] (…) a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma ‘obrigação social’.” Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 2, Rio de Janeiro, Editora 34, 1995, p. 16. 221 Alain Badiou, Pequeno manual de inestética, São Paulo, Estação Liberdade, 2002, p. 42.
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é interessante como esta noção se impôs com relativa facilidade, a partir da arte conceitual, indicando a influência no tecido social de algumas das questões trazidas pela cibernética, a partir dos anos 1950. Ao se atentar ao ‘sistema’ ou ‘circuito’, necessariamente está em jogo uma compreensão de seu funcionamento ou dinâmica, já que “a própria idéia de ‘circuito’ já traz em si a idéia de ‘deslocamento’: (…) Não que se queira aqui discutir o deslocamento disto ou daquilo, mas perceber deslocamento como movimento ou estado de coisas com o qual se trabalha”222. A questão seria, portanto, pensar “o circuito da arte, ou seja, quais os trânsitos que se estabelecem através de seus vários ‘nós’, entre as diversas componentes do sistema” no sentido de intervir na presente “economia do sentido ou do significado da obra e seu jogo de relações”: assim, nesse jogo, produz-se algo da ordem do imprevisto, em outra ordem rítmica. Deslocar o circuito só pode ser pensá-lo, utilizá-lo, reconfigurá-lo para mais uma intervenção – redesenhá-lo. Há aí uma imperatividade do presente: funcionamento e permanente atualização. Um circuito não tem futuro, só o presente de seus usos e deslocamentos aqui e agora. Entretanto uma dimensão virtual se faz presente na medida em que mobiliza possibilidades de seu programa. Enquanto for capaz de viabilizar encontros e conexões um circuito permanece existindo; sem isso, cristaliza-se, hibernando até sua próxima possibilidade conectiva. Sejam dinâmicas de grupo, coletivos, revistas, laboratórios, a eficiência das mutações propostas por todas estas possibilidades de intervenção se dá na medida da habilidade de se perceber conexões entre as coisas, mantendo sua capacidade vibratória de produzir desvios e redesenhar – ainda que momentaneamente – seu mapa de ligações ou – de modo mais perene – impor um novo traçado para os processos, fazê-los literalmente passar por aqui. Assim, circuito é também o informe, o redesenho, o ultrapassamento de limites olhando para fora de si no exercício de uma voracidade conectiva. Talvez aqui, nesse voltar-se para o exterior, se encontrem pistas estéticas: o êxtase sensorial se dá sempre como
222
Faço aqui referência a um texto de minha autoria: Ricardo Basbaum, “Circuito de arte em deslocamento”, disponível em http://www.videobrasil.org.br/14/port/circuito.pdf. V. Anexo Textos
171
o próximo link ou conexão – ao mesmo tempo consumo e transgressão, pois as ligações em um circuito se dão sobretudo entre heterogêneos (relações, afinal): a diferença é a partícula que acopla. Seja ‘oficial’ ou ‘alternativo’, tudo são circuitos – diferindo entretanto em termos de amplitude, maleabilidade, alcance e fluência das conexões, potencial de auto-remissão que busca valor em si, na qualidade das conexões (isto é, ligações fortes, fracas, estáveis ou instáveis, conforme o caso).223 Para o artista como agenciador trata-se de trabalhar a emergência do sentido a partir
de
uma
deslocamentos,
compreensão trabalhando
em
sensível, prol
de
sensorial, sua
de
tantos
aceleração,
incessantes
desaceleração,
ralentamento, desvios, etc. A percepção torna-se mais aguda ao flagrar “perceptos e afectos”224 irrompendo em diversas etapas e camadas dos dispositivos de circulação – tem-se uma estética de deslocamento do evento como dispositivo de seu reviramento e construção da intervenção. É claro que se poderia apontar que tal presença do circuito ou sistema como protagonista no jogo da arte não estaria efetivada sem que profundas transformações estejam em curso no campo social – por exemplo, presença de uma “esfera pública informático–mediática”225 (indicativa da atual crise do espaço público) e de uma economia globalizada: instala-se uma ampla mudança nas relações entre a arte e sua dimensão de recepção. Por um lado, a “tirania do público” aponta para a diluição do poema em favor de interesses privados corporativos – cabe apontar para o desenvolvimento de modelos para minimamente transformar o público passivo em agentes efetivos de seus processos (educação, mediações, etc.); por outro, “abre-se o caminho para uma compreensão política das dinâmicas afetivas, quando se tem a amizade como forma política de construção da proximidade na distância, enfatizando as membranas e regiões de contato e agrupamento entre sujeitos singulares e acreditando no potencial transformador de tais 223
R. Basbaum, “Circuito de arte em deslocamento”, op. cit.. A terminologia é de Gilles e Deleuze e Félix Guattari: “As sensações, perceptos e afetos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido”. Cf. O que é a Filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 213. 225 Expressão de Pierre Lévy. 224
172
processos (nada de amizade fraterna cristã, pacto de sangue ou intimidade compulsória com o poder: o que se quer aqui é o trânsito afetivo como política de alianças entre aqueles que vibram na dimensão de um combate que é aquele da dinâmica produtiva das ações coletivas)”.226 (b) artista como curador Trata-se aqui de trabalhar de modo específico a construção do evento (mais do que seu deslocamento) em suas dimensões plásticas, táteis, sonoras e discursivas, agregando então seu inevitável caráter ‘instalativo’ – cada exposição é, a seu modo, uma ampla instalação em que o visitante é envolvido multi-sensorialmente em uma estrutura que o acolhe e que ultrapassa os limites de cada obra individual. Tudo ali – arquitetura, dimensão discursiva, possibilidades de circulação, estratégias de montagem dos trabalhos, etc. – é portador de interface sensível, elemento sígnico, sinal na construção de sentido pretendida pelo evento. O curador se põe a manejar diversos dispositivos de linguagem plástica e conceitual, entre os quais as obras. Está em jogo uma ampla pragmática das relações institucionais, em que os diversos personagens ali envolvidos desenvolvem negociações – com a cautela de quem sabe que nesta trama já se produz estruturas de sentido e é preciso saber que tipo de evento se está construindo. David Medalla, por exemplo, ao propor em 2000 a London Biennale (autodenominando-se seu “fundador e presidente”), tomou o cuidado de desenvolver uma dinâmica interna própria regulando os contatos e comunicações entre os participantes – tal dinâmica, que sem dúvida incorpora elementos de linguagem experimentados e desenvolvidos por Medalla ao longo de seu percurso como artista227, revelou-se como decisiva para o funcionamento do evento:
226
R. Basbaum, “Circuito de arte em deslocamento”, op.cit.. Cf. Francisco Ortega, Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2002. 227 É importante lembrar que David Medalla já havia coordenado em Londres a galeria Signals (anos 1960), tendo depois iniciado o grupo de “exploradores transmídia” Exploding Galaxy, atuado junto ao coletivo Artists for Democracy (anos 1970), e trabalhado junto a grupos como Octetto Ironico, Gay Galaxy, Synoptic Realists e Mondrian Fan Club (anos 1980/90). Cf. Guy Brett, “Pré-história e proposta da Bienal de Londres”, Rio Trajetórias, catálogo, Rio de Janeiro, 2002.
173
“A Bienal de Londres ocorrerá entre 1º de maio e 31 de agosto de 2000, por toda a cidade de Londres. Durante este período, os artistas se encontrarão toda segunda-feira à noite, de 18hs até meia-noite, em frente à Estátua de Eros em Piccadilly Circus, Londres, para informar o público acerca de suas exposições e eventos, através da distribuição de flechas impressas com informações relevantes (datas, horários, rotas de ônibus e estações de metrô) para o público interessado. O público amante da arte será encorajado a trazer flores (reais, secas, virtuais, artificiais, etc.) para dar para os artistas cujos trabalhos tenham lhe agradado. Vamos reunir todas estas flores em um bouquet, fazendo-o flutuar no Rio Tâmisa em Tower Bridge no último dia da Bienal de Londres.”228 Nesta discussão acerca da figura ou imagem do artista como dispositivo de atuação ou intervenção, está igualmente implícito o debate sobre os limites e contornos da obra de arte – seja contido nos limites físicos do objeto ou estendendo suas linhas ao desenho do evento, sempre se há de considerar por onde estão passando afinal as determinações de ordem sensível e conceitual que indicam a construção, ali, de um espaço de problemas e contabilizam séries de efeitos indiretos a partir da irredutibilidade do poema à qualquer estrutura de captura. Não é difícil perceber que o evento proposto por Medalla se desenvolveria de modo diverso se fosse mediado por um ‘escritório central de produção’ ou mesmo pela estrutura hiperftrofiada de uma grande instituição – não haveria como fugir à inevitável burocracia, hierarquia de cargos, pressões de patrocinadores coorporativos, construção da imagem do evento através dos departamentos de marketing, etc. Quando David Medalla contamina “a linguagem do dirigente institucional com a mesma dimensão erótica e sedutora que imprime em seus trabalhos”229 não se trata, é claro, de um capricho do artista mas da consciência da que cada uma das mediações colocadas em jogo na construção do evento contribuem na constituição de seu perfil e caracterização de linguagem – possibilitando a produção de alguns dispositivos, inviabilizando outros.
228
David Medalla, “London Bienalle – statement”, 2000. Ricardo Basbaum, “O artista como curador”, Panorama da Arte Brasileira 2001, São Paulo, Museu de Arte Moderna, 2001, p. 38. 229
174
É importante deixar claro que, dentro da construção do evento, o formato exposição é apenas um dos modelos possíveis de utilização – é sempre interessante deslocar espaços e procedimentos, a partir do momento em que as propostas de trabalho se superpõem aos contornos do evento mesmo, exibindo pontos comuns em que se operam passagens, transições, reverberações. Tanto faz se a iniciativa parte do artista, curador, produtor ou diretor de instituição – quando há a possibilidade de se manejar com cuidado os diversos parâmetros de configuração do evento, são produzidos desvios que se espera produtivos. Jens Hoffmann, por exemplo, é um dos agentes do circuito de arte contemporâneo que advoga por “uma forma mais radical de curadoria (…) que questiona e investiga o próprio conceito de curadoria e todo o sistema subjacente à produção de exposições”230: em sua prática tem trabalhado elementos de indiscernibilidade entre as posições do artista e do curador, dedicando-se à pesquisa de diferentes formatos. Aqui fica claro que todos os diversos papéis dentro do circuito de arte configuram-se como práticas, envolvendo procedimentos de graus diversos que efetivamente vêm sendo gradativamente flexibilizados – é decisivo que os agentes preocupados com a elaboração cuidadosa de dispositivos de atuação (está claro que não se trata apenas dos artistas) atentem para a dimensão rizomática que torna inseparáveis as conexões entre o poema e suas mediações; sempre, sem a devida intervenção nas camadas mediadoras não se produz a espacialidade adequada à sua emergência. (c) artista como crítico O texto de artista tem despertado interesse crescente – sendo, inclusive, agora ordenado sob essa rubrica – não por revestir-se de importante caráter documental ou por trazer de modo claro questões trabalhadas pelos artistas em suas pesquisas, mas por indicar com evidência a dimensão sensorio-conceitual da criação artística. Ou seja, a especificidade do campo contemporâneo das artes visuais não mais residiria na busca da pureza da visualidade, mas na riqueza de seu tecido contaminado das mais diversas operações que trabalham a articulação entre
230
Jens Hoffmann, “A exposição como trabalho de arte”, in Concinnitas, Rio de Janeiro, Instituto de Artes/UERJ, nº 6, julho 2004, p. 20.
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discurso e visualidade. É na crescente elaboração – que se torna mais e mais complexa – das relações entre um fio discursivo particular e diversas manobras que atendem às ações próprias do aparato sensorial sobre o mundo, que se torna possível a modalidade de problematização característica da arte231. Logo, a utilização da ferramenta discursiva reveste-se de importância enquanto recurso decisivo para a atuação do artista contemporâneo, uma vez que seus gestos de intervenção não escapam à mediação conceitual – claro que todo o problema está nas modalidades desta articulação e todo o esforço na utilização deste recurso pode vir a se perder caso seja mobilizado de forma improdutiva (isto é, hierarquizando de forma logocêntrica discurso e visualidade, desmobilizando a multiplicidade interpretativa a partir de uma verdade única, oficializando a arte a partir das demandas do poder público e corporativo, etc.). Se pensarmos nas visitas de Cézanne ao Louvre, para estudar os ‘grandes mestres’, percebemos como há ali uma consciência da presença de narrativas da história da arte informando os caminhos de sua pesquisa plástica – ao seu modo, o artista ali busca intervir em certa trama discursiva, uma vez que suas pinturas tencionam constituir a potencialidade para produção desvios na teia discursiva: é preciso perceber que a utilização da especificidade do enunciado por parte do artista não precisa necessariamente se dar a partir da prática da escrita (ensaística, narrativa, poética, experimental, etc.), mas principalmente a partir da consciência de seu modo operativo junto à pesquisa sensorial e plástica – visibilidade e invisibilidade são também e sobretudo propriedades da escritura. Só existe a possibilidade de um pensamento com arte (e não um pensamento meramente aplicado na arte), isto é, um pensamento que seja pura prática, que
seja
essencialmente
móvel,
que
exerça-se
nos
espaços
de
problematização provocados pelo choque dos signos plásticos com múltiplos 231
Para a compreensão das relações entre discurso e visibilidade são fundamentais os três pontos da teoria do enunciado proposta por Michel Foucault. Segundo o pensador francês, enunciados e visibilidades estão em “pressuposição recíproca”, são “matérias heterogêneas” (não possuem nada em comum) e estão em estado de “não-relação” (existe um espaço ‘entre’). Daí que somente podem estabelecer uma situação de confronto, de mútuo “combate e captura”. Cf. Michel Foucault, Isto não é um cachimbo, São Paulo, Paz e Terra, 1988, e Gilles Deleuze, Foucault, São Paulo, Brasiliense, 1988. V. Parte A, nota 52.
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enunciados, que crie formas de ação novas e diferenciadas, só há possibilidade
de
um
verdadeiro
pensamento
plástico
se
houver,
inequivocamente, primazia da forma visível sobre a forma enunciativa. As artes plásticas seriam, deste modo, uma espécie de campo invertido do pensamento, um saber ao avesso – ou um avesso do saber –, constantemente pressionando e provocando turbulências no conjunto dos pensamentos estabelecidos.232 Assim, manifestos, ensaios, textos críticos, proposições, comentários, etc., apontariam sobretudo para uma lucidez de utilização da ferramenta discursiva como tentáculo ativo das propostas de intervenção pretendidas, e aí se inscrevem também os contornos de determinado dispositivo de atuação sendo continuamente delineado e re-delineado. É a partir deste espaço intermediário, em que discurso e visualidade se entrelaçam, que textos podem ser pensados como ‘obra de arte’ – não importa apenas que a frase seja tornada visual, plástica, com escala, textura, material, cor ou relevo, mas sim que sua presença se articule com a consciência da existência de interstícios e frestas, relações a serem agenciadas, dispositivos a construir. Se a crítica
de
arte
pode
ser
tomada
como
“terreno
privilegiado
da
ficção
contemporânea”, convêm exercitar suas possibilidades – tal qual se articulou na revista de arte item233, por exemplo, como projeto editorial (para trazer aqui traços de uma experiência pessoal de trabalho coletivo) – deixando-se contaminar: Que tipo de exercício ficcional é interessante hoje como programa de ação? Trata-se de compreender as possibilidades das ferramentas de produção do discurso crítico, articulando-o com as condições do campo da arte (e da cultura) contemporânea: produzir sempre um encontro estranho, tenso, sinuoso, divertido, entre textos e trabalhos de arte de modo a confundir e sobrepor suas fronteiras e limites. Hoje impõe-se um uso da palavra não mais 232
Ricardo Basbaum, Além da pureza visual, Porto Alegre, Zouk, 2007, p. 29. Revista de arte e cultura contemporânea iniciada no Rio de Janeiro em 1995, da qual fui um dos editores-fundadores junto com Eduardo Coimbra e Raul Mourão. A partir do segundo número, segui como editor junto com Coimbra. A revista foi encerrada em 2003, com a publicação de seu sexto número. As circunstâncias que envolveram a criação da revista e sua relação com o grupo Visorama (que a precedeu) e com a agência AGORA (que a sucedeu) estão comentados em meu artigo “E agora?”, Arte & Ensaios, nº 9, Rio de Janeiro, dezembro 2002, pp. 85-93. 233
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sob o modo reativo (em que os discursos são produzidos após os acontecimentos, servindo apenas para legitimá-los ou criticá-los, sob a forma do comentário) mas principalmente prospectivo, configurando mais do que nunca uma forma de ação, produção de espaço e criação de um território. Neste jogo de espacialidades, crítica e trabalhos de arte estabelecem um fértil protocolo de confrontações: enquanto que os trabalhos de arte estabelecem as estratégias concretas de ocupação, lançando-se aqui e ali sob a forma de objetos, imagens, instalações, performances, etc., o discurso crítico tece suas linhas através de todas essas obras, propondo jogos narrativos ou antinarrativos de reordenação e condução do pensamento. Mas não basta ocupar com invenções e experimentações visuais e discursivas este imenso campo de vertigem verbal-visual: a atualidade nos convida a agenciar esta produção com as demandas da vida e da cultura, colocando em jogo a fabricação transitória
de
identidades,
a
intervenção
em
contextos
locais,
o
estabelecimento de virtualidades e coordenadas de ação, o desenvolvimento de circuitos, membranas e regiões de contato. É aí que entra em cena a revista, como suporte estratégico de um projeto que se quer necessariamente coletivo em sua demanda. Escrevo a partir de um determinado circuito, o contexto da arte brasileira, com suas idiossincrasias e particularidades, limites e potencialidades. Dentro desta localização geográfica e cultural chamada Brasil é necessário um esforço imaginativo e ficcional para produzir um jogo de consistência discursiva como parte de um projeto efetivo de intervenção – que se torna visível a partir das obras produzidas pelos artistas contemporâneos – e entrelaçamento com o panorama da atual globalização e transculturalidade.234 Hoje, um projeto de intervenção crítica que leve em conta os limites da escrita em sua articulação com a obra de arte, em sentido amplo, haverá de lidar com uma escrita tátil (o agregado obra de arte + texto), compreender a organização espacializante do componente discursivo (desde a página em branco de Mallarmé 234
Ricardo Basbaum, "A crítica de arte como um terreno privilegiado da ficção contemporânea", sinopse de palestra no Foro Internacional de Revistas de Arte Contemporáneo, Cidade do México, 1999. Texto não publicado.
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até a operação de “[abstrair] propriedades do fluxo da experiência e fixá-las em forma espacial”235), evidenciar a presença do dispositivo operacional que se configura a partir do agregado obra + texto (e os efeitos daí decorrentes), operar a partir da dupla captura sensação/conceito (percepção em rede). A emergência do poema, em sua complexa articulação com o campo em que se insere, e ao mesmo tempo em sua irredutibilidade (ainda que parcialmente determinada pela dinâmica do contexto), deflagra um potencial de atuação enquanto dispositivo reorganizador de seu entorno imediato. O artista que aí se forma percebe a si mesmo como dispositivo operacional que continuamente se re-organiza, no sentido de estender sua prática pelos vários papéis e mediações propostos pelo circuito. Diante de tanta dinâmica, não há porque fixar qualquer diagnóstico de modo arbitrário – de tal forma que estes comentários devem de ser mantidos em aberto, em contínua confrontação com as coisas. É apenas para efeito de memorização, compactação e organização do pensamento que alinho aqui sete tópicos em torno dos deslocamentos rítmicos do artista em sua errância pelo circuito (sempre em defesa da possibilidade do deslocamento): (1) condição contemporânea do artista que excede à produção de objetos ou obras, exibindo fluência, deslocamento e mobilidade como valores: trata-se de desenvolver ferramentas de trabalho que viabilizem esse deslocamento; (2) prática que se caracteriza pela ação e intervenção sobre os circuitos mediadores de sua funcionalidade e atuação: deslocar-se através de relações e redes, compreendendo a si próprio como resultado dessa dinâmica; (3) atuação na construção de eventos e situações, através da produção e administração de suas diversas camadas de articulação e mediação;
235
David Harvey, Condição pós-moderna, São Paulo, Edições Loyola, 1992, p. 191.
179
(4) atenção aos jogos de linguagem (tecnologia da imagem, corpo, espacialidade, texto, etc.) que articulam passagens pelas áreas de continuidade que resultam na construção do evento e suas mediações; (5) deslizamento dos traços do poético para outros setores da construção do acontecimento artístico, contaminando o ambiente institucional e produzindo re-invenções de papéis e instâncias; (6) buscar a dimensão sensorial própria da experiência do contexto como processo, tendo a montagem de situações e a percepção das estruturas do sistema como experiências vivenciais. Fenomenologia do conceito: “pôr-se a si mesmo e pôr seu objeto, ao mesmo tempo em que é criado”236. (7) dupla percepção da obra, em sua autonomia e em suas ligações com um campo, circuito ou sistema: há uma outra sensorialidade operando nos corpos, a ser exercitada. Não se trata aqui de preparar um programa ou plataforma para ações, mas de mapear espaços com indicação de frestas e caminhos, articulando a possibilidade de percorrê-los com a modalidade da caminhada a ser empreendida – mas é preciso perceber que aqui se trabalha tanto com percursos percorridos como a percorrer, ou seja, trata-se de linhas já trazidas para junto de um fazer, o qual continuamente traça e re-traça o diagrama destas circulações: trabalhar um presente de ações, um fazer concreto, sem firmar promessas que adiem para um perfeito futuro urgências e demandas – de fato o mais interessante seria os contornos da obra e do artista como dispositivo de ação confrontarem-se e reforçarem-se continuamente. *** É certo que o projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? somente se materializou a partir de uma possibilidade de agir como artista que 236
Éric Alliez, Da impossibilidade da fenomenologia, op. cit., p. 87.
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escapa em muito do isolamento e das atribuições de uma prática de estúdio: pois o trabalho se inicia de fato quando o objeto é lançado em circulação – antes, temos apenas uma peça interessante de escultura-conceitual; depois, uma série de situações sendo deflagradas a partir do trânsito efetivo do objeto por um circuito. Está mesmo inscrito no diagrama do projeto – em sua etapa nº 8 – a tripla questão, visando problematizar artista, espectador e projeto NBP: trata-se então de uma proposta de trabalho que visa tocar em certos limites habitualmente estabelecidos para buscar sua operatividade enquanto “investigação acerca do envolvimento do outro como participante em um conjunto de protocolos indicativos dos efeitos, condições e possibilidades da arte contemporânea”237 – e é importante que se perceba aqui a ênfase na alteridade (envolvimento do outro) como jornada que persegue não apenas a presença de ela(s) e/ou ele(s) enquanto espectador participante, mas também quer encontrá-las(os) enquanto outro artista, outro projeto: sim, realizar algo não seria concluir, mas continuamente reinventar. Logo, somente seria possível implantar um projeto como Você gostaria…? na medida em que uma atenção pudesse seguir seu curso, em escuta dos sinais para um contínuo reajuste do papel do artista a ser ali desempenhado: é preciso compreender a presença de um circuito ou sistema, ali inserir-se e aceitar deslocamentos; perceber a importância da construção de encontros, desde os previsíveis aos fortuitos, tornando-se receptivo aos contatos e respectivos contextos; trabalhar na construção das possibilidades de estabelecimento de relações que sejam produtivas, contribuindo para a constituição experiências; reagir ao que é produzido de modo a fomentar certo embate que indica a demarcação das posições em jogo para permitir flexibilizá-las; trabalhar modos de recepção do que é realizado, com utilização de ferramentas discursivas; mover-se pelas bordas em direção a situações que em sua grande maioria desafiam a temporalidade habitual do circuito de arte, tentando discernir formas de abordagem e ritmos de captura de ‘resultados’; etc. Sobretudo é preciso descobrir como assimilar os efeitos a cada situação, ou seja, trabalhar um repertório de reações, afirmando mesmo o querer ser sempre surpreendido. Em Você gostaria…?, o processo relacional parte de um reforço e endurecimento das linhas demarcatórias das diferentes posições: é preciso inicialmente exagerar na 237
Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, guia de instruções para participantes do projeto, op. cit..
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ênfase do que será posteriormente colocado em processo de dissolução (ao menos enquanto possibilidade potencial) – é assim que se recorre, já no título do projeto, a categorias que a princípio poderiam soar como inadequadas para uma proposta que gostaria de mover-se para fora delas. Se há referência a uma “experiência artística” é porque se ambiciona escapar por territórios e linhas de fronteira do campo da arte, acreditando neste trânsito pelas bordas como o principal modo de pensá-lo; se o projeto se refere ao artista enquanto propositor é no sentido de deslocá-lo da habitual posição de controle sumário de sua produção para um lugar de atenção e conversa, realocando-o em certa lateralidade em relação aos efeitos do trabalho de modo que possa também ser arrancado de si em direção a outro desenho de sua figura; se há a necessidade de um participante, este será envolvido em processos que somente serão efetivados se ocorrer sua conversão para modalidade ativa, com vontade de produzir algo que jamais será completamente reduzido aos limites do projeto e que efetivamente revelam tanto escapes diretos como a investigação de linhas não apenas do contorno da proposta mas também do contorno de si. De modo que o aumento de espessura dos papéis envolvidos se dá de fato como incremento de complexidade em direção à deriva. O artista requisitado por Você gostaria de participar de uma experiência artística? é também alguém que habita posição de gerenciamento e administração, envolvido na garantia do prosseguimento das atividades e continuidade do projeto – sempre atento ao próximo passo. Esta é uma maneira de manter-se em aberto, procurando fazer com que cada nova experiência de cada participante atue no sentido de cultivar tais espaços: trata-se de particularidade do modo de recepção, que prefere trabalhar cada experiência a partir do quanto ela efetivamente pôde eliminar de cristalizações e acúmulos – ao invés de resultados de conquista ou respostas fixas. Exercício constante de buscar novos posicionamentos que colaborem na manutenção de áreas em aberto – se há algo que pode em certo momento encerrar a dinâmica de Você gostaria…?, seria precisamente a saturação, incapacidade de manter o padrão de reação que sempre reconquista as frestas necessárias à sua continuidade. Ocorre que cada participante, na elaboração e realização de sua experiência, produz resultados que são de modo concreto obras realizadas, dotadas
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de autonomia própria – isto é certo: sejam textos, fotografias, vídeos ou outros objetos e formas de ação, cada um destes elementos pode encontrar modos de funcionar para além do contexto específico de Você gostaria…?. Claro que este trânsito dentro e além de Você gostaria…? dependerá de como cada participante irá organizar suas ações – mas certamente é possível compreender cada produção realizada enquanto elemento que pode buscar funcionamento próprio e insinuar-se por outros contextos. Ao mesmo tempo, a presença do objeto de Você gostaria…?, assim como a rede de conceitos aí ativada, como deflagradores daqueles processos de produção indica estarmos aí frente a uma situação mais complicada de autoria compartilhada: pois o que é efetivamente realizado em cada experiência decorre de certa materialidade contextual própria dos participantes, da qual faz parte – enquanto intruso a instaurar procedimentos, questões, problemas, etc. – NBP, via Você gostaria…?. Resulta algo como inter-autoria, que deve ser abordado levando em conta elementos de ambas a situações – não há como se anular uma delas em detrimento da outra, como se estivéssemos tratando de resultado unidirecional somente; não existe como ali se pensar em NBP sem atentar aos desvios a que foi conduzido, os confrontos a que foi submetido, os acréscimos e subtrações; não há, ao mesmo tempo, como compreender cada experiência sem atentar ao modo como o objeto NBP foi recontextualizado ali em ambiente absolutamente diverso do espaço protegido da galeria ou museu e então descobrir a chave de outro processo também em andamento, trazido à cena pelo participante. Serão assim duas vias a serem percebidas em paralelo – duplo acontecimento, protagonizado pelo participante (um) e pelo objeto (outro) –, mas que estão ali por aceitarem e reconhecerem a importância de se cruzar em interceptação mútua, evidenciando ali naquele contexto claros limites produtivos a partir da impossibilidade de se perfazerem isoladamente: recorrem então um ao outro, em atmosfera de conversa e combate. Daí Você gostaria de participar de uma experiência artística? indicar a presença de um artista que se reformata todo o tempo, sob o desafio de re-elaborar ferramentas preestabelecidas – aceita-se a oscilação constante entre o reforço de certas linhas e sua dissolução, acreditando que o ritmo lento desta dinâmica (“ir e vir, ir e vir, ir e vir são parte do processo – ritmos oceânicos”238 ), – efetivamente 238
Ricardo Basbaum, “Sistema-Cinema”, op. cit..
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coletiva e pública – construirá outro lugar – também coletivo e público – que aos poucos se irá habitar (ou melhor: já ali estamos, faltando-nos, entretanto, recursos para melhor percebê-lo). Bolocs 6, 7 polifonia, dialogismo, crítica, escultura social, rede, comunidade Você gostaria de participar de uma experiência artística? propõe o desenvolvimento de uma troca entre participantes e artista propositor cuja imagem mais próxima seria a de uma conversa: diálogo construído em torno de algo, sujeito aos ritmos e circunstâncias do momento, fluindo de acordo com a disponibilidade dos interlocutores e sendo continuado a partir de sua vontade e insistência. Vale à pena relembrar que o próprio título do projeto é estruturado enquanto pergunta: você gostaria…? A resposta poderá ser negativa, é claro, e então nada ocorrerá – esta modalidade de trabalho jamais poderá se impor diante da recusa ou da falta de interesse, que indicariam a evidência da ausência de qualquer traço ou elemento de passagem entre proposta e possível participante; e então, não haverá porque insistir e mais correto será buscar outros. Mas quando há encontro recíproco de interesses e curiosidades (“sim, gostaria”) pode-se iniciar a conversa, abrir-se as trocas e conduzir o diálogo que irá se impor e será organizado no âmbito do projeto. Tal modalidade de conversa jamais poderia ser privada, propriedade de um compartilhamento exclusivo entre artista e participante – e de fato isto iria basicamente em sentido contrário às principais diretrizes do projeto –, sendo então direcionada para domínio aberto, acessível aos debates de uma esfera pública: trata-se de elaborar uma área aberta de trocas, em que a movimentação dos interlocutores já é constitutiva do projeto; ou seja, ao desenvolver cada conversa com participantes, o artista sempre irá conduzi-la sob a perspectiva que se está em lugar de desabrigo em relação ao espaço de controle pessoal dos sujeitos envolvidos, e que existe ali instaurado um local aberto às tramas do mundo e aos fios de vários circuitos em entrecruzamento. As conversas são arrancadas sempre (há suavidade, há violência) de um abrigo seguro e movimentam-se nesta área outra imersa em dinâmica em que tudo é potencialmente problematizável por muitos.
184
Curiosamente, a instauração da conversa – verdadeiro início de um projeto que sem ela se encontraria reduzido a um objeto inerte entregue à contemplação – se faz sob o signo do problema: a troca entre artista e participante somente se dá como jogo de mútua provocação, no sentido se abrir novas perguntas a partir da pergunta-convite inicial. Quando interrogações são produzidas em série – e então pergunta-se a partir da pergunta – tem-se a conversa (infinita) que jamais conduz à soluções de curto prazo, mas à lapidação do problema como jóia preciosa de lento processamento. Percebe-se em “O que é NBP?”239 e Você gostaria de participar de uma experiência artística? a utilização do mesmo singelo recurso de pontuação ‘?’, mas de modo a ali a revelar todo seu insuspeito poder: não apenas o leitor terá que produzir diferente entonação de fala (musicalidade) diante do ponto de interrogação, como se verá lançado em território coletivo em que a conversa inicial nunca cessará – parece ser mesmo como condição de seu funcionamento, que estes projetos estabelecem sua continuidade a partir da pergunta como ferramenta de abertura, perfuração interna: Cabe ainda a pergunta, afinal, "o que é NBP?" ? (Não sei se puderam perceber, mas acabei de enunciar uma pergunta dentro de uma pergunta. Como responder a tal artefato sintático? Com uma resposta dentro de uma resposta?) Na primeira vez em que foi enunciada, eu certamente estava apenas perguntando algo a mim mesmo, que por um 'acidente qualquer de percurso', veio a público. Está claro que não perguntei antes a vocês "o que é NBP?". Hoje sim, eu devolvo a pergunta, como pergunta dentro de pergunta, querendo ouvir, querendo saber, querendo arrancar alguma coisa – como efetivamente tem acontecido, está acontecendo e acontecerá no projeto que desenvolvi, estou desenvolvendo e desenvolverei em torno de uma "experiência artística", em que recebo de volta respostas quanto ao uso de um objeto NBP (…).240 Quando é dada a partida no funcionamento do projeto, estão bem demarcadas as posições de propositor (artista) e participante (espectador) – é o primeiro quem oferece o objeto, aceito pelo segundo; e então têm início as experiências, pelos 239 240
“O que é NBP?” é um dos textos inaugurais do projeto. Reenvio para Ricardo Basbaum, "(?)? (Pergunta dentro de pergunta)", op. cit..
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vários caminhos de possibilidade existentes, sempre sob responsabilidade do participante: afinal, o objeto pode ser usado de diferentes modos e você pode fazer qualquer coisa com ele: use-o como quiser, da maneira que achar melhor.241 Entretanto, a partir do momento em que as experiências vão sendo concluídas – e a produção dos participantes começa a tomar corpo dentro do projeto – ocorre uma importante inversão: ao tomar contato com resultados (textos, fotos, vídeos, áudio, etc.) de cada experiência realizada, sou imediatamente deslocado para uma posição de recepção – pois nesse caso os proponentes serão aqueles que produziram as experiências e as realizaram. Há uma troca de papéis própria da conversa em curso, e o artista deve então assumir um posto de escuta, atento às emissões que têm como ponto de partida os relacionamentos estabelecidos por outros com o objeto. Vê-se neste deslocamento um rearranjo necessário para que o artista assuma outro posicionamento e seja capaz de ser surpreendido pelos gestos produtivos daqueles que em momento anterior foram provocados por sua ação deflagradora: seriam novas sensações a protagonizar o projeto, desvios conceituais em relação à proposição inicial, diferentes contextos a ambientar as realizações – nada que estivesse a priori presente no espaço familiar ao artista, a partir do qual o projeto foi lançado. Inversão estratégica, no sentido de buscar reposicionamento; requisitar a alteridade necessária; escapar de qualquer acumulação desmedida de sentido – e para estar preparado para a recepção do próximo lance. É muito interessante atentar para o aspecto receptivo de Você gostaria…?: o projeto se coloca de modo a ser capaz de positivar todo e qualquer lance produzido em retorno à provocação proposta – seja contra ou a favor, qualquer gesto em retorno é acolhido como ação de se conduzir o projeto a seu limite, testando sua capacidade de reagir às conversas. Isto pode incluir a duplicação do objeto (Armando Coelho e Orlando Lemos, Goiânia, 1999), doação a um museu (Vaca Amarela, Florianópolis, 2003), sua destruição (Laboratorio 060, Cidade do México, 2006) ou desaparecimento (e/ou Orquestra Organismo, Curitiba, 2007), por exemplo – algumas experiências 241
Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..
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contundentes que testaram limites e obrigaram (como sempre ocorre) a exercícios de reinvenção, em que é preciso construir o sentido das intervenções, reconfigurando o projeto a partir de cada uma. Claro que este sentido a ser agregado a partir de cada experiência se faz também em modo de embate: participante x artista – este, não deve ter jamais a última palavra, neste confronto de posições a partir da qual se pode recuperar os lances em jogo, já que isto seria trazer para a posição do artista aquele privilégio (que se gostaria de dissolver) de controle das interpretações possíveis. Em uma conversa, ninguém necessariamente terá a última palavra, pois o que se procura é sustentar a reciprocidade das provocações mútuas, sem vencedor ou vencido. É preciso confessar, enfim: cada nova experiência realizada e documentada por um participante chega aos olhos do artista como verdadeiro enigma a ser recebido e recepcionado – e não necessariamente resolvido, pois um enigma não se reduz à resposta, mantendo-se como provocação em aberto: é sempre fascinante querer buscar os caminhos de como aquilo (texto, fotografia, vídeo, áudio, etc.) foi construído, proposto, realizado: tanta intensidade, vontade e envolvimento partem de onde, de quem, com que propósitos, qual a intervenção pretendida? Multiplicam-se perguntas (dentro de perguntas); é preciso construir uma (nem sempre fácil) aproximação à proposta e mergulhar em universos de referências múltiplas, que escapam veementemente ao mundo da arte – conduzindo sempre a um lugar de fronteira, em bordeamentos que sempre voltam. De fato, o que Você gostaria de participar de uma experiência artística? produz, em seus muitos resultados? Somente – mas isso não é pouco – aproximações à alegria do enigma, perguntas multiplicadas, a dúvida irredutível do poema. É fascinante neste projeto seu desprezo por resultados finais – seu acolhimento extremo, voracidade que tudo positiva e reverte. As responsabilizações são recíprocas, de modo que ao ter o objeto em suas mãos, os participantes indicam rumos e próximos passos; mas a força que se impõe mesmo aí – a arquitetura com a qual Você gostaria de participar de uma experiência artística? é construído – garante a continuidade do deslizamento provocativo: nenhum objeto deve retornar, trata-se de um projeto sem volta. Ser bem sucedido, aí, se dá enquanto responsabilização do outro pelas falas produzidas dentro da conversa, destacando sua importância, revertendo e desviando o risco da unidirecionalidade monótona do
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artista – trazendo sempre muitos ao primeiro plano. Produzir uma obra não pode se circunscrever a uma interpretação de si, mas ousar deixar-se capturar pelo outro através de variados formatos – lançando-se para todos (no sentido de ampla disponibilização, não de totalidade).
Nesse sentido, Você gostaria de participar de uma experiência artística? apresentase como projeto que se franqueia a diferentes vozes a partir de seu próprio sistema de funcionamento – convite que parte do artista diretamente a interessados, abrindo possibilidade de conversa e instaurando incessante problematização – a qual se espera que escape aos limites propostos e instaure novo desenho ou diagrama a ser reapropriado não somente pelo artista como, sobretudo, por outros interessados quaisquer242 , já que se implanta área pública ou coletiva e é aí que se dará a captura. E este é também um lugar afim à crítica de arte, no sentido de um oferecimento generoso a interpretações e reinterpretações – se a conversa instaurada pelo projeto (embates artista x participantes) efetivamente já se acumula em volume que se impõe de forma própria, uma das demandas instauradas é deixarse conduzir pelo fio das problematizações propostas em direção à captura pelo signo do enigma de cada experiência. À primeira impressão, pode parecer que as produções deflagradas por Você gostaria…? deveriam se submeter principalmente à operação interpretativa do artista – quem afinal resguardaria uma proximidade máxima de todas as situações elaboradas no âmbito do projeto. E assim a produção discursiva mais propriamente crítica aguardaria em seu campo a elaboração de mais este trabalho do artista, para somente então intervir com o aparelhamento crítico adequado, acionando seus dispositivos e práticas. Entretanto, tal opção revela-se aqui inadequada, claramente insuficiente, pois Você gostaria…? complica de fato a operação crítica, reivindicando que igualmente dissolva, pelo seu lado, os contornos de um território habitual de ação para aventurar-se em regiões limítrofes e zonas de contato em que se formulam dinâmicas de qualidade relacional tipo arte&vida e similares – onde certos conceitos devem necessariamente aceitar curvaturas e 242
É claro que qualquer um que se mostrar interessado revela um efeito de eficiência da captura: já não haverá indiferença; e será preciso acreditar na importância desta operação enquanto índice de certas confluências existentes a priori – afinidades com a modalidade de investigação e aventura pretendida.
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dobramentos, assim como outros indicar necessidade de reinvenção e adaptação metodológica. Trata-se de desafio que se impõe, provocando a crítica para além de sua fixação (narcísica) em relação à figura protagonista do artista – afinal, se este, por força do projeto desenvolvido, recua para posição lateral, chamando ao primeiro plano participantes e suas experiências como atores e elementos principais do processo, também a interpretação (enquanto invenção discursiva) do projeto deverá reconhecer a importância do deslocamento e construir-se de outros modos frente à situação. Assim, Você gostaria…? é provocação e desafio (cica & sede243 ), convite ao rearranjo e reinvenção (que se faz sempre premente) deste importante lugar de produção de discurso – tangenciar os contornos de qualquer proposta sem préconcepções limitadoras é o que mobiliza tal forma discursiva; e aqui este apelo se reforça, em dificuldade e desafio, uma vez que o percurso será mesmo através de membranas, bordas e fronteiras: sem esquecer que aí se insinua de forma veemente a dupla articulação plástico-discursiva (motor do projeto), que vem somar camada conceitual ao desafio interpretativo. Não seria portanto papel do artista em Você gostaria…? concentrar em si o centro interpretativo do projeto, mas apontar ao menos dois pólos importantes, e fazê-los portadores de intensidade e interesse: por um lado, as questões particulares do projeto (logo, de NBP); por outro, as proposições lançadas pelos participantes. O artista desvia-se do centro, alocando ali outros protagonistas; as interpretações seguem este pulso e desdobram-se em um olhar sobre a estrutura do projeto e sobre as participações (duplo olhar) – as oportunidades, na verdade, se multiplicam. Se o artista opta por compartilhar a responsabilidade interpretativa, isto se deve à compreensão de que seu papel não pode se fechar no labirinto estéril da autointerpretação que se volta sempre para a positivação de seus próprios feitos; a posição assumida em Você gostaria…? seria a da continuidade da conversa, e isto implica sobretudo em enfatizar a função fática, conservando aberturas e conduzindo os episódios em direção à fluência – posicionamento que não deve ser confundido com qualquer tipo de omissão, uma vez que mover-se da interpretação para a fluência é sempre mais interessante para o artista quando se trata de dar seqüência 243
Cf. Ricardo Basbaum, "Cica & sede de crítica", in R. Basbaum (Org.), Arte contemporânea brasileira - texturas, dicções, ficções, estratégias, op. cit., pp. 15-27.
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aos aspectos produtivos de suas propostas, indicando continuidades. O que se procura aqui, portanto, é convergência daquilo que é feito pelo artista, produzido pelo participante, realizado pelo intérprete – efetivamente, possibilidade de produção de uma vocalização múltipla, verdadeiramente polifônica, a partir de diferentes lugares e posicionamentos. Claro que esta mistura não será (felizmente) homogênea, nem harmônica de modo simples – a escuta evocará preferencialmente experiências
atonais, 244
heterovocalismo”
politonais
(“produzindo
um
polivocalismo,
um
), etc. – para indicar que estes discursos não se reforçam
diretamente mas exibem descompassos – que o projeto procura assimilar sempre na procura de reorganizar fluência e continuidade. Mas a perspectiva que parece interessante, e que se procura colocar em movimento – ainda que a longo prazo – a partir de tal mistura dinâmica de vozes, timbres e ritmos, contextualizada por esta dissimetria de lugares diversos de produção de discursos, se daria naquele campo aberto para acolher a linguagem sob o impacto de seu exercício plural, de invenção: “a literatura [concebida] como um tipo especial de linguagem que permite ver as coisas que estão obscurecidas em outros tipos de discursos, acreditando mesmo que o romance, por exemplo, funciona como um órgão de percepção”, “é através do literário” que pode ser apreendido “o conceito de vozes” como “princípio arquitetônico da prosa romanesca”245 . Claro que aqui literatura é o campo de experimentação discursiva que pode aventurar-se por diferentes modalidades de linguagem, ou seja, tangenciar o discurso crítico e conceitual, mas também aquelas formas próximas ao poema, às narrativas, plásticas, sensoriais, etc. Ou, ainda, em outra formulação, amarrando as possibilidades de articulação desta polifonia enquanto comentários acerca de Você gostaria…?: Devido à própria característica coletiva do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?, o mais interessante desenvolvimento de tais comentários se daria a partir da combinação de diferentes vozes, apostando 244
Beth Brait, “As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso”, in Diana Luz Pessoa de Barros e José Luiz Fiorin (Orgs.), Dialogismo, polifonia, intertextualidade, São Paulo, Edusp, 2003, p. 22. 245 B. Brait, op. cit., p. 22.
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na abordagem polifônica e na constituição de um pensamento coletivo: investimento na escrita como “um órgão de percepção” (Bakhtin) e na produção de um corpo conjunto de textos que funcionaria no “modo do romance”, em que personagens, lugares, gestos e ações constituam uma narrativa em múltiplos planos, de arquitetura complexa e desfecho imprevisível.246 Teremos assim uma importante e interessante convergência entre formas de escrita e modalidades de pensamento, apontando para a construção de um corpo discursivo em várias frentes – efetivamente, a elaboração de um pensamento elaborado por diversas vozes, em descontínuo, isto é, em momentos, ocasiões e contextos diversos, mas coletivo por articular posicionamentos a partir de Você gostaria de participar de uma experiência artística? ou em derivação ao projeto. A apreensão deste processo não é imediata e requer o cuidado de uma escuta continuada – atenta às vozes que se organizam em torno de experimentação (participantes), interpretação-comentário (discurso crítico) e conversa (artista). Sobretudo, é importante perceber aqui a importância do deslocamento que aloca os participantes de Você gostaria de participar de uma experiência artística? no papel de protagonistas – afinal, é ali que o projeto está sendo de fato pensado, não enquanto qualquer modalidade de abstração mas como materialidade prática concreta plástico-discursiva: cada experiência empreendida lida diretamente com a provocação inicial (“Você [indivíduo, grupo, coletivo, instituição] gostaria de participar de uma experiência artística? Aceitaria levar para casa o objeto (…) ?”247 ) e constrói sua reação a partir de instrumentação própria, mobilizando recursos que lhe são disponíveis no contexto em que está imersa, etc. Não se trata de seguir instruções ou uma receita qualquer, movimentar-se de acordo com um programa previamente estabelecido em que o usuário participante é convidado a manusear botões e comandos em ambiente imersivo pré-controlado: a experiência que se realiza é de
246
Ricardo Basbaum, texto que abre o item “comments / comentários” do website do projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística?. V. http://www.nbp.pro.br/blog_comentarios.php?critico=78. 247 Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit..
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outra ordem, no sentido de apontar a constituição da ambiência da experiência a partir dos recursos de cada participante – pois quando se apossam do objeto, este é transportado para os locais particulares que lhes melhor convém para ali ser confrontado com a experiência proposta – a produção das membranas e regiões de contato a partir das quais a processualidade particular do projeto pode ser instaurada. Deve-se ressaltar a significação deste primeiro momento envolvido na proposição das experiências: os participantes são responsabilizados enquanto elaboradores de suas próprias situações imersivas – se quisermos assim nos referir a certa singularização de elementos que tornam possível a organização de um procedimento –; mas pela natureza particular de Você gostaria…?, as áreas de escape são muitas e o que sempre se pretende (e isto é arquitetado por NBP) é habitar as bordas, isto é, nem completamente imerso nem absolutamente fora. Assim, ao instaurar as condições imersivas que lhe convém, o participante (indivíduo, grupo, coletivo, instituição) estará aproximando o objeto de uma contextualidade que informa desde logo traços das possibilidade em jogo – acomodar o objeto em sua própria casa, deslocar-se com ele pela cidade, levá-lo à praia, mantê-lo em um jardim, conduzi-lo à sala de aula ou reunião institucional, transportá-lo ao museu: cada situação aqui traz dados de relações possíveis, hábitos, percursos, locais e dinâmicas de convívio e intervenção. O gesto de instalar o objeto em situação de ambiência é seguido da produção de membranas, as regiões de contato (presentes na construção do objeto, mas também trazidas pelo participantes em sua utilização) que se constituem a partir da reciprocidade de toques entre participante e objeto – linha orgânica a efetivar a acoplagem: criam-se as passagens, possibilidade de troca que garantem o trânsito de questões, tópicos, afetos, problemas, entre NBP e participante (neste instante, quem é quem?). Sem a intensidade deste trânsito, não haverá experiência, processualidade produtiva, um ganho qualquer. A partir daí, a possibilidade que se efetiva – na realização mesma das experiências – será a possibilidade de uma hibridização conceitual (“o objeto carrega alguns conceitos e eu gostaria que você também os utilizasse. Apesar de invisíveis, eles são manipuláveis através do uso do objeto”248 ) em que de modo concreto o objeto é instrumentalizado a favor do programa de ação trazido pelo 248
R. Basbaum, op. cit..
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participante – as manobras podem ser suaves ou bruscas, mas o que sempre ocorre de fato é o uso, em variadas implicações. Aos poucos, então, o objeto desloca-se para papel secundário na trama, ao se efetuar a realização da experiência proposta (“as experiências que você [participante] realizar tornam visíveis redes e estruturas de mediação, indicando a produção de diversos tipos de relações e dados sensoriais: os conjuntos de linhas e diagramas, trazidos ao primeiro plano a partir de sua utilização, são mais importantes que o objeto”) – e novos protagonistas serão aqueles tópicos efetivamente constituídos a partir daí, nos quais se aposta o potencial de indicar desvios (“transformação durante a experiência”) a partir de sua percepção como produção de pensamento (a ser também agregado no cômputo de um pensamento coletivo). Tal processo, enfim, produzido enquanto constituição de experiência intensiva, deve produzir documentação: sabe-se da dificuldade e importância em construir o registro adequado daquilo que aconteceu apenas uma vez, em algum lugar, a partir da singularidade da experiência – pois se trata de construir acessos àquilo que efetivamente se configura como irrepresentável e intransferível para além do aqui e agora de sua realização. Desafio, como se sabe, já amplamente enfrentado pelos artistas experimentais que (anos 1960/70) construíram obras em escape do circuito institucional, junto às dinâmicas da vida, da natureza, etc. – e, na constituição posterior da situação expositiva, recriam junto ao espectador algo do que foi realizado a partir de fotografias, filmes, vídeos, gráficos, relatos, etc.: o que se tem a partir daí será sempre reconstrução, produção de nova experiência com utilização do documento e do arquivo.249 É o mesmo problema, portanto, que deve ser trabalhado pelo participante: construir documentação das experiências realizadas – e de fato este gesto deve ser arquitetado e resolvido no âmbito de cada experiência e participação. Há diferentes abordagens e soluções adotadas e esta é uma das riquezas de Você gostaria...?: não importa a qual capacidade técnica do participante ou os recursos utilizados – existe diversidade de 249
Artur Barrio é um destes artistas que desenvolvem sua obra em direta relação com o registro e sua incompletude. Segundo o artista, "em 1º lugar, toda e qualquer situação, ao ser registrada, encerra o conteúdo de um momento, portanto, o registro não está condicionado a qualidades técnicas, assim como também não apenas ao conteúdo, mas sim também a todo o comportamento psicológico do operador (...) diante de um trabalho, momento ou situação que geralmente provoca uma série de situações acontecimentos nunca estáticos, tanto física como psicologicamente. (...) pois já que o material empregado em meus trabalhos é precário, não vejo porque o registro tenha de estar ligado a aspectos técnicos perfeitos." Artur Barrio, "Da qualidade Técnica do Registro ou Precariedade" in Barrio, Funarte, Rio de Janeiro, 1978, p. 8.
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respostas ao problema, todas igualmente importantes. É significativo mencionar que a única exigência que de fato endereço ao participante se refere precisamente à documentação: faça o que quiser, “você pode fazer qualquer coisa com ele [objeto]: use-o como quiser, da maneira que achar melhor”250 , mas não deixe de enviar documentação das experiências realizadas – pois esta é uma das garantias de que a conversa artista x participante poderá ser compartilhada por outros em espaço público (uma vez que os registros devem ser enviados ao site do projeto251 , constituindo um banco de dados acessível via internet). Assim, quando se afirma aqui que todo o participante de Você gostaria de participar de uma experiência artística? está efetivamente pensando o projeto, trazendo-o em direção a limites, testando possibilidades de seu funcionamento – e assim colaborando para a constituição deste pensamento que se faz através de muitas vozes –, é porque se percebe a ação de produção de experiências a partir de quatro etapas: constituição de ambiência (imersão, contexto); instauração de membranas (contato, trocas); produção de conceitos híbridos (passagens, combinação de elementos trazidos pelo participante com elementos do projeto); produção de pensamento (registro, relato, documentação da experiência). Conceber a produção de um processo coletivo de pensamento – que não possuirá nada em comum com um bloco homogêneo e uniforme, pois aqui se trata de resguardar localizações, vozes e ritmos diversos para extrair daí os contornos de uma ação conjunta heterovocal, multitonal, polifônica (escultura & música) – aproxima-se do que Joseph Beuys cunhou como “escultura social”: fuga de qualquer objeto ou escultura de contornos estáveis; afinidade com dinâmicas e processos. “Meus objetos são para ser vistos como estimulantes para a transformação da idéia de escultura, ou da arte em geral. Devem provocar pensamentos sobre o que a escultura pode ser e como o conceito de esculpir pode ser estendido para os materiais invisíveis utilizados por todos:
250 251
Ricardo Basbaum, “Você gostaria de participar de uma experiência artística?”, op. cit.. V. http://www.nbp.pro.br.
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Formas Pensamento –
como nós moldamos nossos pensamentos ou
Formas Faladas –
como nós formatamos nossos pensamentos em palavras ou
ESCULTURA SOCIAL – como nós moldamos e formatamos o mundo em que vivemos: Escultura como um processo evolutivo; todo mundo um artista. Esta é a razão pela qual a natureza de minha escultura não é fixa e finalizada. Processos continuam na maioria delas: reações químicas, fermentações, mudanças de cor, decomposição, secagem. Tudo está em estado de mudança.”252 A convergência com NBP e Você gostaria…? se dá de maneira direta, uma vez que na operacionalidade da escultura social objetos atuam como “estimulantes” que deflagram processos em um triplo endereçamento: voltando-se sobre si mesmos (“transformação da idéia de escultura, e da arte em geral”), invadindo corpos (“como nós moldamos nossos pensamentos ou como nós moldamos nossos pensamentos em palavras”) e estendendo-se por um lado de fora (“como nós moldamos e formatamos o mundo em que vivemos”) – NBP e suas estratégias invasivas e de produção de membranas igualmente se dirige ao projeto mesmo, ao outro e a um fora. Beuys propõe a transformação do mundo a partir da realização de esculturas imateriais – moldagem e formatação da fala e do pensamento – em processo contínuo, como obra coletiva de todos. NBP concentra sua poética transformacional em processos de subjetivação – é aí, nos limites entre eu e o mundo, entre eu e você, que prefere investir (linha orgânica) – ainda que também mobilize 252
Joseph Beuys, “Introduction”, in Caroline Tisdall, Joseph Beuys, Nova York, The Solomon R. Guggenheim Museum, 1979, p. 7. (“My objects are to be seen as stimulants for the transformation of the idea of sculpture, or of art in general. They should provoke thoughts about what scupture can be and how the concept of sculpting can be extended to the invisible materials used by everyone: / Thinking Forms – how we mould our thoughts or / Spoken Forms – how we shape our thoughts into words or / SOCIAL SCULPTURE – how we mould and shape the world in which we live: Sculpture as an evolutionary process; everyone an artist. / That is why the nature of my sculpture is not fixed and finished. Processes continue in most of them: chemical reactions, fermentations, colour changes, decay, drying up. Everything is in state of change.”)
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materialidade imaterial similar (pensamento e discurso), compreendendo a importância de ali instalar ferramentas de produção. Mas há diferença entre investir na transformação direta (moldar e formatar o mundo) e apostar em passagens e mediações como locais de contato – mudar o mundo ou sensorializar membranas? Que desdobramentos poderiam surgir do encontro de Lygia Clark com Joseph Beuys? NBP e Você gostaria…? frutificaram no interstício desta conversa que nunca existiu entre os dois artistas (e que caberia a nós promover), consolidando-se como poética exteriorizante dos espaços intermediários, acreditando (sim) na importância de se ativar a escultura social, mas através da multiplicação das extensões de contato com o mundo: moldagem e formatação através da contaminação e contágio. Não haveria como NBP tocar todo mundo: há um ritmo pragmático instalado no projeto que o impele a multiplicar-se lentamente, se comparado ao proselitismo beuysiano. Entretanto, é como se ao enunciar “todo mundo um artista” Beuys tivesse preparado o terreno para que Você gostaria de participar de uma experiência artística? pudesse ocorrer: o vírus NBP estaria pronto para contaminar corpos artísticos já maleabilizados pelo efeito da palavra de ordem beuysiana – mas os corpos mobilizados por Joseph Beuys são corpos sem membranas e NBP se encarregaria do processo de sua constituição, equipando-os para o enfrentamento sensorial-conceitual do mundo. Na lentidão de seus protocolos dialógicos, Você gostaria…? não é capaz de atender a demanda de todo mundo, avançando pouco a pouco – como se Beuys realizasse uma conversão por decreto, e NBP através da vontade de ação: não importam quais os papéis a serem desempenhados por todos ou qualquer um (artista, não-artista, an-artista, artista-etc), pois estes seriam sobretudo lugares de onde se produz, e não identidades como condição a priori de ação. Uma coisa é atender a todos; outra, mobilizar qualquer um. Este, aparece subitamente carregado de interesse, reconhece o processo de empatia ou sedução e se propõe a agir; aquele, espera inerte, certo de haver conquistado um privilégio que irá trazer para próximo de si recompensa protocolada, porém ainda não entregue. NBP somente funciona se for capaz de mobilizar aqueles interessados em conversas, mordidos pela pergunta inicial e ávidos por organizar suas próprias questões; não haverá explicação a garantir tomadas de posição que não sejam
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conquistadas através de realização, interferência, intervenção. O objeto de Você gostaria de participar de uma experiência artística? circula por tal rede de interesse, que somente se materializa quando o objeto encontra mais um receptor (qualquer um) – os participantes do projeto não se conhecem todos entre si, mas procuram muitas vezes deslocar o objeto para alguém próximo, que gostariam de envolver no gesto de continuidade; sempre apenas mais um. A rede que os interliga é ao mesmo tempo evidente e descontínua, pois o projeto se compõe de singularidades de forte envolvimento com suas regiões de proximidade, investindo de fato mais na construção das ligações contíguas do que no trânsito rápido entre todos os pontos, de um lado a outro da rede – pois pontos singulares resguardam também profundas diferenças. Trata-se de um convívio e co-habitação com o poema – e este nunca é recompensa, mas conquista; e este esforço singulariza. O amor de qualquer um, mais forte e interessante do que o afeto de todos: Você gostaria de participar de uma experiência artística?, NBP – Novas Bases para a Personalidade. Bloco 8 espaço público, politização, resistência, arte vida, arquivo como membrana A última etapa do diagrama de Você gostaria de participar de uma experiência artística? (etapa 8) apresenta a tripla pergunta, indicando como efeito do longo percurso através do projeto o gesto de problematizar as posições do artista, do espectador e o próprio projeto: “o que acontecerá com o projeto NBP, o espectador, o artista?” Não é qualquer projeto que se propõe a problematizar-se ainda em funcionamento, como parte mesmo de sua dinâmica e trama – mas aqui esta dobra sobre si que é também um lançar-se à frente foi construída como motor, operatividade, funcionamento. Trata-se de produzir algum desvio de trajetória, a partir do lugar de onde se está vindo (projeto, espectador, artista) para dissolver contornos e produzir re-desenhos, em atenção ao diagrama – que também se produz, enquanto arquitetura da mesma trama. A combinação proposta não é simples: aproximar transformação subjetiva (políticas de subjetivação) de uma transformação de papéis junto ao circuito de arte mediador (políticas do circuito) –
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claro que sempre há um desencontro entre o indivíduo e seu trânsito social, mas ao produzir esta convergência, ela se dará através do lugar da obra de arte, do poema, como elemento não completamente assimilável, irredutível ao que quer que seja mas pleno em efeitos de produção de contato, instauração de membranas e contágios, abertura de espaços e remissão ao outro. Se tomarmos a noção de corpo em modalidade estendida, e somarmos ao corpo orgânico a corporeidade dos papéis institucionais ou mesmo de um projeto de investigação e pesquisa, teremos também em jogo o corpo do espectador, do artista, do projeto (o corpo da obra, etc.) – trata-se por um lado, de corpos orgânicos habitados por dimensões institucionais, sociais; e também da materialidade dinâmica de um projeto que pulsa, se expande ou contrai em situações contínuas de troca com o ambiente (sem esta conversa, o projeto se extingue): e então estamos nos movimentando em “espaço topológico intensivo”, como indica José Gil, onde “os limites do corpo próprio se alargam indefinidamente ganhando profundidade (topológica). Ao mesmo tempo, é todo o corpo que se transforma. O seu em-redor torna-se espaço, confunde-se com um espaço de intensidades, de osmose potencial, de visões e tatos à distância, espaço pronto a entrar em conexão com intensidades de outros corpos. (…) Abrir o corpo é, antes de mais nada, construir o espaço paradoxal, não empírico, do em-redor do corpo próprio. (…) um espaço-à-espera de se conectar com outros corpos, que se abrem por sua vez, formando ou não cadeias sem fim.”253 Pois o que interessa a Você gostaria…? é escapar a cristalizações, buscar aberturas e espaços, em esforço de continuidade da conversa, em prol do próximo deslocamento – e tal dinâmica se efetiva através do jogo das membranas, do “metabolismo próprio da superfície de fronteira”254 – e é daí que procede o interesse
253
José Gil, “Abrir o corpo”, op. cit., p. 66. “Aí se sobrepõem o interior e o exterior numa zona de tensão: coincidindo e ao mesmo tempo opondo-se, o paradoxo desdobra-se abrindo o espaço e multiplicando-se. A zona paradoxal de hiperexcitabilidade, formada por intensidades divergentes, sustém os investimentos das forças que procuram conectar-se com as forças do mundo. Enquanto espaço paradoxal, definido por uma 254
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de NBP em promover encontros e contatos, mobilizar política institucional e políticas de subjetivação como questão-chave para a estratégia de operacionalização e circulação do poema. Instaurar um espaço paradoxal (Gil) já é produzir transformação; promover este processo (Você gostaria…?) para obter aberturas em que se instalam os contornos de outros desenhos, já é longo trabalho; interferir na dinâmica de corpos em mistura, é mobilizar forças de procedências diversas – e misturas podem ser explosivas (revoluções) ou implosivas (micro-revoluções) – mas de dinâmica saudável, no sentido de se apresentarem aí vibrações (corpo vibrátil)255 e outros agenciamentos em morfogênese256 , ou seja, operações de abrir o corpo. Mas aproximar-se de uma operação de cura parece estar além do alcance de Você gostaria…?, NBP não servirá a propósitos terapêuticos257 – tal tarefa seria ação maior, atividade conjunta, resultado de uma conjunção de esforços verdadeiramente grandiosa na qual estes projetos certamente tomam parte, contribuem de alguma maneira enquanto inserção específica nos conjuntos de problemas. Mas a obra de arte existe sempre em avançado grau de precariedade, sempre a um fio de uma situação de desaparecimento: a doce co-habitação do poema é momento de maravilhamento, mas fugaz; a garantia de sua sobrevida por momentos mais longos e em sucessão (a ilusão da continuidade) seriam aqueles em que se processam as aberturas, o metabolismo das membranas, em que obra e corpo reciprocamente se alimentam
–
compreender
que
a
presença
do
vírus-poema
a
circular
permanentemente pelo corpo pode ser verdadeiramente insuportável não é ser contra a obra de arte: significa, ao contrário, torcer e esforçar-se por seu deslocamento, pelo contágio de outros, por uma dinâmica a se fazer coletiva, mantendo o ritmo da conversa (continuidade da provocação), pois a arte é uma modalidade de produção que somente existe em movimento, produzindo movimento – e quando se nota a presença da obra é porque ela já se faz conjunto, já é mais de uma coisa, um grupo ou coletivo em deslocamento.
multiplicidade de intervalos e espaços heterogêneos de onde irrompe a energia de investimento, a zona constitui assim o lugar privilegiado do agenciamento.” José Gil, op. cit., p. 66. 255 Suely Rolnik. V. nota 197. 256 “A criação de agenciamentos é uma morfogênese”, J. Gil, op. cit., p. 66. 257 “Eis o nosso ponto de partida para pensar os processos clínicos e artísticos em recíproco devir: por exemplo, não é porque os agenciamentos artísticos abrem o corpo que adquirem poderes terapêuticos?” J. Gil, op. cit., p. 66.
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A tripla pergunta é pergunta dentro de pergunta: pergunta como ferramenta de abertura, perfuração interna (como já foi dito) – é através destas problematizações em sucessão que se sustentam as conversas, em Você gostaria…?. Ali a conversa não se mantém enquanto prosa privada artista-participante – logo, é mobilizando a interrogação (‘?’) como instrumento perfurante que se tem instauração de uma área pública de conversação – a presença física do objeto de Você gostaria…? (em sua condição invasiva) seria indicativa da constituição do furo que irrompe nestes locais, possibilitando o estabelecimento de uma rede de relações dentro/fora que é também trânsito entre espaços de delimitação privada e áreas de debate público, coletivo. Só é possível convergir políticas institucionais e políticas de subjetivação com o necessário amortecimento ou intermediação entre os dois universos: não se pode ser demasiado rápido nesta passagem, sob o risco de se perder as dobras que caracterizam uma como a outra. E, evidentemente, se cada um dos combates pode existir em separado – no sentido de haverem duas guerras em curso, cada qual com seu grupo de combatentes e suas tradições de ação e mobilização –, querer estabelecer esta dupla frente de problematização requer vias de acesso macias, isto é, táteis, corpóreas, membranosas, sensoriais. Será aí que se constroem as possibilidades de resistência: na dupla pergunta transformada em objeto tátil intermédio instalado transitoriamente entre entidades, a promover passagens que se consumam em desvios – elaborar esta espessura e aí deter-se (nem dentro, nem fora). Impulso para o desenvolvimento de estratégias de resistência: buscar linhas orgânicas (linha dentro de linhas). Você gostaria de participar de uma experiência artística? não pode ter continuidade sem pensar-se como construção de arquivo, uma vez que qualquer das experiências realizadas configura-se como gesto único ancorado no aqui&agora de uma situação intransferível – daí a produção de registros e documentos, construídos para possibilitarem a qualquer momento a atualização do gesto inicial, desdobrando-o para outras regiões da narrativa que se está a desenvolver (em modo descontínuo). Um arquivo que seja pleno em passagens, sem isolar-se em obsessões classificatórias, registrando as diferenças de participação e contexto a partir dos participantes, irá se debater entre banco de dados e memória do corpo – o registro
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documental da experiência e sua dimensão vivencial: para que o arquivo usufrua de sobrevida, necessita ser continuamente ativado e atualizado de modo que os dados ali armazenados sofram reajustes, isto é, leituras, atualizações, reacomodação na teia do projeto – pois cada novo tópico arquivado é um nó a mais na rede de links do banco de dados, e é o conjunto que se redesenha a partir das novas entradas; ao mesmo tempo, a intensidade da experiência realizada não se reduz ao arquivável, produzindo excedentes, resíduos, restos, que jamais se transformarão em dados para armazenagem – tais partículas são dispositivos de um arquivo vivo, no sentido de insistirem em propagar deriva própria, fazendo com que os muitos corpos-sujeitos participantes sigam seus percursos de vida transportando (mas sobretudo transmitindo) traços, fragmentos (N, B ou P em partes ou em recombinação, sob efeito do acaso maravilhoso) em circulação por seus corpos (sob o impacto de variações). (…) 3. Considere o seu corpo como um veículo que permite o deslocamento de signos pelo ambiente. (espacialização do pensamento) 4. Os olhares se fixarão em N.B.P., não em você. (despistamento) 5. Observe as alterações em seu comportamento. 6. N antes de B e P. (…) 8. N.B.P. já estará em você. (contaminação)258 258
Fragmento de texto que acompanha o múltiplo Crachá (NBP), produzido em 1990. Trata-se de um pequeno crachá de plástico colorido, com as letras N, B e P impressas em sua superfície. Quem o utilizar por certo período de tempo terá NBP transferido para seu corpo, podendo depois interromper o uso, pois já estará ‘contaminado’. Este objeto é um curioso objeto-relacional burocrático, pois articula os efeitos do primeiro através de um objeto típico de identificação institucional (crachá). O texto completo, estampado no verso da embalagem plástica, contém oito pontos: “NOVAS BASES PARA A PERSONALIDADE / 1. Use este crachá como quiser. / 2. Considere a relação cor do crachá/cor da roupa. / 3. Considere o seu corpo como um veículo que permite o deslocamento de signos pelo ambiente. (espacialização do pensamento) / 4. Os olhares se fixarão em N.B.P., não em você. (despistamento) / 5. Observe as alterações em seu comportamento. / 6. N antes de B e P. / 7. Quando não quiser usar mais o crachá, retire-o. / N.B.P. já estará em você. (contaminação)”. Fig. 1314
201
Trabalhar o arquivo como membrana será um modo de articular a radical diferença entre as duas formas de memória – ao mesmo tempo corporal e informacional, mas enquanto terrenos autônomos a correr em paralelo. É importante lembrar que desde setembro de 2006 o projeto Você gostaria de participar de uma experiência artística? organiza seu banco de dados através de website259 próprio – ali estão relacionadas todas as experiências realizadas, organizadas cronologicamente, por nome ou cidade, hospedando documentação (texto, fotografia, vídeo, áudio, etc.) referente a cada uma delas; além disso, há uma descrição dos projetos Você gostaria…? e NBP, textos de apoio oferecidos a download e uma seção para comentário críticos de convidados; trata-se também de ferramenta participativa, na medida em que cada participante edita sua própria documentação, a partir de senha pessoal de acesso. Assim, a documentação básica do projeto vai se tornando completamente informatizada – e à medida em que se completa a digitalização dos materiais produzidos entre 1994 e 2005 (período em que eram enviados pelos participantes diretamente ao artista, através de correio convencional), pode se perceber uma fase analógica e outra digital na produção de registros (embora a primeira não seja anulada pela segunda): esta dinâmica apenas acentua mais e mais o abismo entre intensidade da experiência a impregnar a memória do corpo e produção de registros digitais arquiváveis – mas ao mesmo tempo lança importante desafio ao manuseio e emprego de equipamentos de produção da imagem técnica que, por sua portabilidade, estão sempre à mão a acompanhar todo e qualquer deslocamento, produzindo notável incremento quantitativo de imagens. Desafio que é também interpretativo: é preciso integrar aqui as discussões que problematizam o aparelho técnico digital para compreender a natureza desta nova imagem; e ao mesmo tempo não deixá-la escapar para além do corpo, indicando a força das partículas irredutíveis ao binarismo do código numérico. Como podemos ver, trata-se de problema extenso, que confronta produção sensorial e tecnologia da imagem: Com Hélio Oiticica e Lygia Clark podemos perceber uma estranha convergência entre o sensorial e o digital, que as novas tecnologias ainda não 259
http://www.nbp.pro.br.
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são capazes de operar. Mesmo se os dados não estão digitalizados, a experiência de seus trabalhos produz informação virtual numa espécie de estado não processado, que é convertida – progressivamente modificada através da transdução260 – em conceitos que são incorporados pelo participante. Isso significa que pela sensorialização é possível dissolver e processar qualquer signo material, do mesmo modo que computadores desintegram realidade em dígitos. Hibridizar com um computador hoje é ainda uma interação sensorial pobre, quando comparada com a hibridização com um Parangolé: há uma falta de ressonância orgânica nos bytes de informação daquela, enquanto que os quanta sensoriais desta proliferam pelo corpo. Parece necessário mover os computadores para além de processos cognitivos formais para se ganhar uma compreensão expandida de realidades sensório-conceituais. 261 Não é o caso de se acreditar em progresso técnico para algum dia resolver tal conflito: esta diferença permanecerá em aberto, a partir da irredutibilidade um ao outro dos dois mecanismos e processos – e neste confronto Você gostaria…? se estrutura e desenvolve corpo próprio de trânsito híbrido, sem se deixar capturar na promessa da eficiência asséptica do mecanismo técnico ao qual se acopla (que é assim desviado de certo ideal de redenção através do aparelho), e enfatizando e promovendo a produção de dimensão sensorial forte a partir da ambiência intransferível da experiência, a qual elabora outra sorte de partículas para além banco de dados. Superfícies de contato são aí requeridas: arquivo como membrana, localizado entre corpo e máquina.
260
Gilbert Simondon, “The Genesis of the Individual”, in Jonathan Crary e Sanford Kwinter (Eds)., Incorporations, New York: Zone Books, 1992, pp. 297-319. Transdução “denota um processo (...) no qual uma atividade gradualmente coloca-se em movimento, propagando-se em uma área dada, sobre a qual opera. Cada região (...) serve para constituir a próxima de tal maneira que no momento mesmo em que essa estruturação se efetua há uma modificação progressiva ocorrendo em conjunto com ela. (...) O processo transdutivo é, assim, uma individuação em progresso. (...) Os termos finais aos quais o processo transdutivo finalmente chega não preexistem ao processo.” 261 Ricardo Basbaum, “Clark & Oiticica”, in Paula Braga (Org.), Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica, São Paulo, Perspectiva, 2008, p. 113. Publicado originalmente em Blast 4: Bioinformatica, New York, X-Art Foundation, 1994.
203
Quem se aproxima deste outro diagrama Fig. 33 percebe que, dentre o mapeamento de algumas possibilidades de relações entre arte&vida, vê-se registrada a inserção pretendida por NBP – nó, trama, rede, fluxo são termos que evocam o cruzamento de linhas e certo trânsito entre elas; tudo ali são finos fios a preencher o intervalo entre as duas dinâmicas, sinalizando escapes não somente entre um termo e outro, mas também nas outras direções – pois existe muita coisa ali no espaço entre, e é impossível tudo nomear; afinal, se as linhas se deslocam também nestes outros sentidos, é porque algo as atrai; mas sobretudo indica que o território no qual estão se movendo se desenha em torno das palavras, e não se restringe ao limite do contorno de cada letra: afinal, uma palavra é também o campo de ressonância de seus significados, e isso inclui um espaço ao redor, ativado. Nó, trama, rede, fluxo: cada um dos termos pode se materializar de muitas formas – não existe uma única maneira de se dar um nó, arrematar a trama, tecer a rede e organizar o fluxo – estas operações se dão de diversos modos; como também podem se efetivar separadamente ou em conjunto. Seria um desafio operar em uma mesma matéria a partir da simultaneidade destas quatro ações – é claro que as operações se complementariam (trama tecida a partir de nós, rede organizada em fluxo, nós que determinam a rede, fluxos que incrementam a trama, etc.), é certo que possam interferir umas nas outras. NBP é sempre um conjunto de operações – trânsito, dinâmica – que não se reduz a um único procedimento; do mesmo modo, investe em ações simultâneas, pois não acredita na linearidade das seqüências. Não bastaria reconhecer a importância da arte ou da vida, não se trata disso; o diagrama indica como o problema se mantém ativo, através (pelo menos) dos últimos duzentos anos – questão moderna, que se impôs quando um campo da arte emancipado passa a produzir questões próprias, que não se resolvem em outras áreas.
NBP se
inscreve
neste
conjunto
como
uma
de
suas
inflexões,
problematizando arte&vida a partir das misturas – pois nó, trama, rede, fluxo são modos de lançar um contra o outro os campos da arte e da vida, como ingredientes de uma receita, ou objetos sólidos a se rebater reciprocamente dentro de uma área limitada, após choque inicial: então arte&vida irão se tocar, entrelaçar, enredar ou fluir, etc. entre si, promovendo certa deriva – já que estes quatro termos são signos do encontro. NBP interfere em área saturada, onde não há mais processo direto de
204
emancipação ou modelo que se imponha de imediato – haverão exercícios, dentre os quais se destaca a escuta: qual a sonoridade que está sendo produzida neste momento por um emaranhado qualquer de finos fios em vibração?
205
D
206
D: qual o lugar deste texto? A primeira pergunta a caber aqui, seria: qual o lugar deste texto? Espera-se que o exercício da leitura tenha produzido efeitos de intensidade, de modo a elaborar uma experiência da ordem do espaço, no sentido de propor certa organização de termos e conceitos e seus encadeamentos – não apenas entre si, mas sobretudo em relação direta com uma obra plástica que, por motivos óbvios, não pode estar igualmente presente aqui, neste momento. Curiosamente, então, a conclusão desta Tese afirma uma dúvida: como não há maneira de certificar-se a priori acerca da experiência da leitura, não haveria portanto como se concluir agora positivamente sobre o funcionamento ou não da proposta pretendida. Mas a convicção é de que foi possível construir um desafio ou provocação, no sentido de prometer aqui algo que de saída não se poderia ter certeza de cumprir. Ou melhor, quando a investigação proposta procura mobilizar-se em torno da teoria de artista, e ao mesmo tempo indica que esta não constitui corpo próprio, em separado, a ser oferecido ao leitor, não estaria, desde logo, predestinada ao fracasso? Assim, ao mesmo tempo em que se busca, afinal, o lugar deste escrito, será preciso perguntar também: que texto é este? O que se pretendeu aqui foi exercitar algo do que Michael Lingner indicou como quádrupla autonomia da obra de arte contemporânea (de conteúdo, formal, estética, conceitual): seria possível então, a partir da arte conceitual, praticar experimentações não apenas para além da estética e do formalismo, como também buscando os limites da concepção da obra, nos termos de seu funcionamento, inserção institucional, relação com o espectador e demais instâncias de um circuito ou sistema de arte, etc. Sobretudo, este exercício se efetivaria através da elaboração de um corpo discursivo que se impõe em presença forte junto à obra, a funcionar com ela e constituir então uma presença que não se pode evitar ou ignorar. A veemência desta presença não deve ser desprezada, e pode-se afirmar que é exatamente aí – na espacialidade própria da existência de um núcleo discursivo incontornável a funcionar junto à obra – que se travam hoje algumas das principais batalhas da arte contemporânea: é na possibilidade de controlar ou se
207
apropriar deste núcleo de sentido que as corporações, bancos e empresas investem hoje grande quantidade de recursos em eventos e salas de exposição, as feiras de arte ampliam prestígio como agentes de um mercado de arte internacional, ou mesmo se travam debates curatoriais e de gestão em torno de bienais e outros eventos. Pois ao avançar sobre este campo de produção de discurso – associado a estratégias de marketing cultural e construção de imagem – se conquista um poder de gerenciamento de sentido, tornando-se mais ou menos simples instrumentalizar ou agenciar obras e exposições como parte integrante de planos estratégicos que certamente não possuem a presença do poema como foco de trabalho primeiro. Trata-se de uma condição percebida, hoje, com estranha naturalidade – e que seria preciso desnaturalizar pouco a pouco, se se pretende reconstruir alguma força de intervenção para um campo que historicamente conquistou contornos próprios em resistência à fácil apropriação; ou melhor, somente a experimentação a partir dos recursos
oferecidos
pela
condição
plástico-discursiva
da
obra
de
arte
contemporânea poderá reformatar certas ferramentas de trabalho, aproximando-as dos artistas como elementos de singularização da obra. Mas este seria um processo já em curso – percebido em muitas das principais manobras poéticas que se destacam nas últimas três ou quatro décadas (isto é claro em Hélio Oiticica, Lygia Clark, Cildo Meireles, Waltércio Caldas, Dan Graham e Joseph Beuys, para se manter em exemplos históricos). Desta forma, buscar localizar uma teoria de artista a funcionar junto ao trabalho de arte contemporâneo seria mesmo parte da operação envolvida na compreensão da constituição e estrutura de cada poética, cada estratégia de intervenção. Mas, quando se quer extrair a Künstlertheorie presente na obra de Cildo Meireles, por exemplo, apresentam-se dificuldades: em sua obra há alguns textos-chave, fundamentais, que seguem sendo republicados e traduzidos262 ; existem também diversas e significativas entrevistas, em que o artista indica os contornos de seu pensamento; freqüentemente, os catálogos retrospectivos de sua obra contêm pequenos verbetes 262
Por exemplo, “Cruzeiro do Sul”, publicado no catálogo da mostra Information (MoMA, Nova York, 1970) e “Inserções em Circuitos Ideológicos”, apresentado no debate Perspectivas para uma Arte Brasileira (1970). Cf. Cildo Meireles, “Cruzeiro do Sul”, in Arte Brasileira Contemporânea – Caderno de textos 1, Rio de Janeiro, Funarte, 1980, p. 28; e “Inserções em Circuitos ideológicos”, in Cildo Meireles, Rio de Janeiro, Funarte, 1981, p. 22.
208
sob as imagens, trazendo informações importantes para sua compreensão. Entretanto, estes materiais efetivamente constituem uma teoria do artista em relação à sua obra? Os textos de Hélio Oiticica ou Lygia Clark são produção teórica, desenvolvida passo a passo com os trabalhos plásticos? Não há aí como simplesmente se delimitar linhas de separação entre uma coisa e outra, uma vez que é impossível demarcar a teoria como corpo próprio – o que existe é uma produção discursiva a se fazer em conjunto, em duplo trabalho, mas sem se constituir em teoria autônoma a legislar abstratamente sobre tudo. Ou então, em outra aproximação: existe teoria, mas nós não a encontramos em lugar algum – sua aparição se dá (ou não – e é preciso compreender esta contingência, estar preparado para ela) a partir da experiência da obra (compreendida enquanto visualidade-discurso), se materializando pouco a pouco nos termos de uma arquitetura sensível do pensamento. Daí não se poder anunciá-la enquanto promessa de um encontro certo, mas indicá-la como algo a ser percebido – somente a densidade das camadas em jogo contribuiria para sua efetivação. Este texto seria produto hipertrofiado a partir de demanda acadêmica; procurou entretanto vencer certos entraves e desenvolver-se em relação próxima a outro conjunto de textos já existentes – ou seja, recuperar certa produção discursiva que efetivamente se constituiu ao mesmo tempo em que as obras foram plasmadas e que portanto é portadora das marcas de cada enfrentamento concreto (sejam textos veiculados como elementos de instalações e outros projetos expositivos, impressos em catálogos e folders ou apresentados em seminários e publicações – há aí variedade de textura e dicção). Neste sentido, a escrita aqui apresentada configura-se também como exercício retro-prospectivo, ao recuperar certos elementos para ao mesmo tempo lançá-los para frente, em trabalho de atualização. Sobretudo o tópico acerca da construção de pergunta dentro de pergunta, aqui recorrente, aponta para a tarefa de um redobramento investigativo que quer lançarse de volta ao outro, no sentido de manter-se em movimento, propor continuidades. Aqui, uma Künstlertheorie também só existe – como dissemos – a partir do jogo da obra, entremeada em seu funcionamento, como parte mesmo da materialidade da intervenção proposta. Se para Michael Lingner, a obra de Joseph Kosuth se
209
caracterizaria por ser constituída através da teoria de artista em função performativa, onde “trabalho de arte e teoria se tornam idênticos e são apresentados como uma só entidade”263 , seria então interessante marcar uma diferença: o sistema de revezamentos plástico-discursivos aqui adotado se encaminharia talvez para um funcionamento performativo-sensorial, uma vez que se investe exatamente na construção de passagens entre os dois campos, reconhecendo as diferenças e especificidades de cada uma das matérias mas recusando a facilidade com que se demarcam as duas posições – e, principalmente, compreendendo a importância de uma atuação nas regiões de contato e fronteira. Não há dúvidas que Você gostaria de participar de uma experiência artística? (com NBP) resulta – a partir desta Tese – em projeto composto por algumas camadas de densidade incrementada: houve aumento de espessura importante para a continuidade de seu percurso – trata-se de trabalho bastante complexo, conduzido em diversas camadas simultâneas, e é certo que ocorreram avanços no campo discursivo que o constitui. Penso ser significativo perceber tal soma como índice da autonomia trilhada por Você gostaria...? em relação ao circuito ou sistema de arte: desde seu início (1994) percorreu caminho paralelo, lateral ao circuito de exposições, realizando-se principalmente no encontro entre artista e participantes. Sua presença na documenta 12 (2007), é claro, implicou em importante salto de visibilidade, aumento de escala, mas nem por isso Você gostaria...? abandonou seu perfil particular – sendo conduzido sempre pelo contato direto, conversa, troca e deslocamento, seja participante/artista, seja participante/participante. Espera-se que este texto hipertrofiado seja aos poucos incorporado à dinâmica própria do projeto, de uma maneira que ainda não se pode prever ou especular; mas, principalmente, uma intrincada elaboração discursiva sempre quer, de fato, ser enredada nas malhas de uma intertextualidade, produzir novos discursos como conseqüência, decorrência. Se a Tese se coloca diretamente relacionada com um presente produtivo, em aberto, é porque aspira um funcionamento que a permita ser apropriada, utilizada, atualizada – por qualquer um, em gesto futuro. Talvez esta
263
Michael Lingner, “Reflections on / as Artists' Theories“,disponível em http://ask23.hfbkhamburg.de/draft/archiv/ml_publikationen/kt06-3ae.html.
210
seja a mais próxima condição que possa assumir de um funcionamento enquanto obra de arte.
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