Laços financeiros na luta contra a pobreza

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Laços financeiros na luta contra a pobreza Apresentação Ed. Annablume/FAPESP, São Paulo, 2004. Ricardo Abramovay* 1. A densa vida financeira das famílias pobres Este livro estuda a vida financeira de famílias vivendo próximo à linha de pobreza. O tema, à primeira vista, sugere verdadeira contradição nos termos: afinal, se são pobres, como é possível que tenham vida financeira? Planejar minimamente o futuro – e não simplesmente gastar os parcos recursos de que se dispõe - parece um atributo de quem possui alguma sobra no fim do mês ou do ano. A distância entre o sistema bancário formal e a grande massa da população seria então explicada pela falta de demanda de serviços financeiros por parte daqueles que mal conseguem preencher as necessidades básicas de sua sobrevivência. Os estudos aqui reunidos, a partir do trabalho de campo em quatro regiões do Brasil em que se constituem cooperativas de crédito do Sistema ECOSOL de Economia Solidária Chapecó (SC), Pajeú (PE), Sub-Médio São Francisco (BA) e Cariri (CE) - procuram desfazer esta imagem preconceituosa. Eles mostram uma impressionante diversidade no uso – e, portanto, na demanda - de serviços financeiros por parte de famílias urbanas e rurais, distantes, na sua grande maioria, do sistema bancário formal. Mesmo os mais pobres só conseguem reproduzir-se porque obtêm crédito, fazem alguma forma de poupança e procuram o tempo todo se garantir contra imprevistos. Mais que um setor, as finanças informais são a própria rede de relações sociais de que dependem os indivíduos e as famílias. Comprar fiado, vender “na palha”, guardar um produto esperando melhor preço, desfazer-se de um animal para enfrentar uma doença, tomar dinheiro emprestado para aproveitar oportunidade econômica, constituir uma caixinha entre amigos e vizinhos, fazer seguro-funeral, são apenas algumas das formas pelas quais a reprodução dos indivíduos passa por laços que são, ao mesmo tempo, sociais, muitas vezes pessoais e quase sempre financeiros. É verdade que existe no Brasil uma vasta tradição sociológica no estudo destas relações primárias: é muito raro, entretanto que elas sejam examinadas a partir dos laços financeiros que estão na base da reprodução social (1). Os trabalhos aqui apresentados têm algo de uma reportagem. Trazem depoimentos, relatam situações e fazem falar pessoas. Estes relatos respondem a uma hipótese de trabalho que norteia todo o trabalho - e que se apóia no que os economistas chamam de teoria dos *

Professor-Titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP – Autor de O Futuro das Regiões Rurais (UFRGS Editora, 2003) – www.econ.fea.usp.br/abramovay 1 O levantamento sobre a demanda por serviços financeiros de famílias pobres realizado por Brusky e Fontoura (2002) é uma exceção, neste sentido.


comportamentos intertemporais (Zeller et al. 1997) – segundo a qual o acesso a recursos financeiros, e suas modalidades são fatores cruciais na própria determinação da renda obtida pelas famílias. É bem verdade que as mudanças técnicas e até patrimoniais que podem conduzir ao aumento de renda são importantes: mas é certo que o acesso adequado a financiamentos, a oportunidades de poupança e a formas variadas de seguros tem o poder de reorganizar a maneira como a família utiliza seus recursos e, por aí, amplia suas chances na luta contra a pobreza. A vida financeira das famílias deve ser encarada sob o ângulo de suas ligações sociais: cada operação exprime vínculos, que podem ser de igualdade, de subordinação, de hierarquia, de cooperação, de exploração, mas que, de forma impressionante, revelam o amplo domínio da reciprocidade nas sociedades contemporâneas. Os laços financeiros, neste sentido, são infinitamente mais ricos que os contidos na frieza impessoal da noção de “serviços bancários formais”. Eles são parte de uma rede de relações de proximidade e não existem como esfera institucional autônoma da vida social. Nem todos os serviços e ligações financeiras dos quais dependem os indivíduos e as famílias poderiam ser supridos por organizações formais. Nem as sociedades mais avançadas, destroem os vínculos personalizados de reciprocidade dos quais dependem os indivíduos em sua reprodução. O trabalho de Bonnie Brusky, em Chapecó, por exemplo, mostra nada menos que 21 modalidades de serviços financeiros – formais e informais - que seus entrevistados utilizam, bem como as finalidades destes serviços e os atores sociais que lhes são subjacentes. Embora no Nordeste rural esta variedade seja menor que em regiões mais desenvolvidas, ela muitas vezes surpreende: Júlio César Dias e João Helder Diniz encontraram, no Sub-Médio São Francisco (em assentamentos da CHESF) o hábito de se guardar o dinheiro que sobra com um comerciante (“se sobrar, deixo com Seu Raimundo”), que funciona com uma espécie de microbanqueiro informal, captando (sem remuneração ao poupador), emprestando para quem necessita e fortalecendo também seu próprio capital de giro. As finanças informais são extremamente eficientes no âmbito restrito de relações localizadas, de amizade e até familiares. São especialmente hábeis na coleta de informações a respeito da reputação dos indivíduos, de sua disposição a pagar o que devem e do que fazem com o dinheiro que tomam emprestado. Numa escala, evidentemente reduzidíssima, o “dinheiro deixado com Seu Raimundo” circulou e preencheu certas necessidades locais. O entrevistado por Júlio César Dias e João Helder Diniz justificava o depósito pelo fato de saber que se deixasse o dinheiro em casa, ele acabaria sendo gasto (Box I). Seu custo de transação para deixar este dinheiro no banco – desde o relacionamento com um ator social que não faz parte de seu universo de proximidade, até as taxas bancárias, passando pelo pagamento do transporte para fazer o depósito e, posteriormente, para retirar o dinheiro – tudo isso inviabilizaria a poupança. O trabalho de Mônica Schroder, no Pajeú, relata o hábito de se guardar dinheiro em casa com o objetivo de comprar um determinado bem ou de pagar um certo compromisso: o custo do acesso ao banco ameaçaria o pagamento pontual de despesas planejadas.


Box I Poupando algumas moedas por dia “A necessidade de encontrar um lugar seguro para guardar dinheiro é tão forte que algumas pessoas pobres pagam voluntariamente para que outros tirem suas poupanças do alcance de suas mãos e guardem-nas”. Stuard Rutheford (2000), professor da Universidade de Manchester e um dos mais destacados pesquisadores internacionais neste tema encontrou numa favela de Vijayawada, no Bangladesh, Jyothi, mulher de meia-idade, com educação primária completa e cuja atividade consistia em coletar depósitos, sobretudo com mulheres, indo de casa em casa. Ao longo dos anos, Jyothi construiu uma excelente reputação que lhe permite guardar parte da poupança da população pobre a que se dirige. Cada um de seus clientes recebe uma cartela onde é marcada a ínfima soma diária coletada. Ao final do período contratado (seis meses, por exemplo), o cliente recebe o dinheiro de volta, só que não na totalidade, e sim descontando o pagamento do trabalho da coletora. Os juros negativos chegam a 30% do valor poupado, pelos cálculos de Rutheford. Quais as razões desta tão estranha forma de prestação de serviços em que, ao guardar suas economias com alguém, o poupador perde e não ganha dinheiro? Rutheford evoca basicamente duas. A primeira é de natureza econômica e aponta para um mercado altamente imperfeito, onde Jyothi não tem competidores. A segunda resgata o ponto de vista dos clientes: sem o serviço de Jyothi, diz a pessoa entrevistada por Rutheford, seria impossível guardar dinheiro para comprar o uniforme e o material escolar dos filhos, a partir da poupança diária de alguns centavos, durante seis meses. Justamente por serem somas tão pequenas, elas seriam dilapidadas em quase imperceptíveis gastos cotidianos. Daí o fato de que, mesmo perdendo parte do que poupam, as pessoas preferem guardar seu dinheiro com a coletora a exibi-lo à pressão das pequenas necessidades domésticas cotidianas. Mas é claro que as finanças informais não podem ser encaradas como solução econômica para a demanda de serviços financeiros dos que estão distantes do sistema bancário: elas são marcadas pela propensão permanente a ligar proximidade, baixos custos de transação a dominação clientelista e formas perversas de exploração do trabalho. “o Seu fulano [proprietário das terras] é muito bom. Até comida ele fornece para pagar só quando tirar a safra. Se não fosse ele, não sei o que seria de nós”. A meeira, entrevistada por Júlio César Dias e João Helder Diniz não dissocia sua gratidão da consciência de que em caso de frustração de safra, o pagamento da dívida será feito em prestação de serviços, com base no preço local de R$6,00 reais a diária (maio de 2003). Sua relação com o proprietário da terra e seu credor não é puramente econômica nem se regula por um suposto mercado que leva em conta, antes de tudo, a taxa de juros: é um vínculo personalizado, que envolve obrigações morais recíprocas. É aí que reside a impressionante força das chamadas “finanças informais”. Elas não podem ser encaradas simplesmente como “negócio”, mas misturam, permanentemente, as atividades econômicas a vínculos cuja desigualdade não suprime o cimento afetivo que lhes dá origem. É exatamente nesta virtude da proximidade que reside o limite das finanças informais: como toda moeda, as finanças informais não podem ser encaradas simplesmente como puro meio de troca. Elas encarnam os próprios laços sociais que constituem a existência dos


indivíduos e das famílias: seu horizonte é de curtíssimo prazo, elas operam sobre a base de montantes de reduzido valor e raramente podem dar origem a investimentos produtivos inovadores. O alcance social das finanças informais restringe-se sempre a um círculo delimitado de relações onde o interconhecimento e a partilha de um universo moral relativamente comum permite a expectativa verossímil de obtenção dos recursos e de seu pagamento. Se é verdade, como mostram os trabalhos da coletânea organizada por Aglietta e Orléan (1998) que toda moeda supõe hierarquia, valores e poder, no âmbito das finanças informais estes atributos são particularizados em certas figuras sociais que, em situações e regiões de pobreza fazem dos laços financeiros um dos mais importantes meios de perpetuar sua dominação. A densidade social das finanças informais e sua imensa diversidade só tornam mais intrigante a constatação que deu lugar a este estudo: o fosso entre os 115 milhões de eleitores e as 66 milhões de contas bancárias existentes no Brasil ao final de 2002 (2) oferece imagem pálida da dimensão do que muitos não hesitam chamar de “exclusão financeira” (3). Quando se leva em conta que muitos indivíduos possuem mais de uma conta e se subtraem deste universo as contas detidas por pessoas jurídicas, a distância entre o cidadão e o sistema bancário só aumenta. É verdade que a recente multiplicação de correspondentes bancários – por meio dos correios – e a possibilidade de pagamento de contas em lotéricas e outros estabelecimentos comerciais contribuem para reduzir esta distância. Mas não é menos certo, porém, que, na sua grande maioria, os pobres não encontram nos bancos um prestador de serviços à altura de suas necessidades. Quanto mais pobres as famílias e as regiões em que vivem, menos os bancos fazem parte dos círculos sociais de proximidade nos quais se apóiam os indivíduos em sua reprodução social. Rodrigo Junqueira mostra a imagem profundamente negativa dos bancos junto a populações vivendo próximo à linha de pobreza: “Tinha R$ 100,00 e quando fui olhar só tinha R$ 80,00. Fui reclamar, e o gerente acabou inventando um monte de história, acabei deixando pra lá. Não volto mais lá nunca”. Não se trata de trilhar o caminho fácil da demonização da instituição bancária: a perplexidade e a revolta do entrevistado refletem antes de tudo o impressionante fosso entre uma organização que deveria voltar-se a promover as relações sociais e econômicas de proximidade e a grande massa da população dos locais mais pobres onde ela se encontra. Em regiões e para populações pobres a figura do banco associa-se, com imensa freqüência, ao sentimento do medo. A organização bancária responde a uma estrutura cujo resultado deveria ser a queda no custo dos serviços financeiros que presta, quando comparado ao das finanças informais. Mas é muito comum o resultado contrário - do ponto de vista de quem usa serviços financeiros: o acesso ao sistema bancário formal tem um custo que acaba tornando viável e preferível o recurso sistemático às modalidades informais – e na maior parte das vezes tradicionais – de prestação de serviços financeiros. Esta distância foi seriamente agravada pelo processo de reestruturação exigido pelo acordo de Basiléia, que fez com que mesmo os bancos públicos tivessem que dirigir sua atenção 2

http://www.febraban.org.br/Arquivo/Servicos/Dadosdosetor/atendimento.asp - Extraído da Internet em 14/06/03. 3 Desde 1998, o Centre Walras, da Universidade Lumière-Lyon 2 leva adiante um programa de pesquisa sobre “Finança e exclusão” do qual já resultaram quatro livros (Servet e Vallat, 2001).


prioritariamente a segmentos de mais alta renda e capazes de lhes oferecer garantias e contrapartidas em suas operações. “No contexto de padronização dos produtos bancários e de globalização dos mercados, as estratégias de racionalização da oferta financeira centramse, cada vez mais, em critérios de rentabilidade de curto prazo” (Lebossé, 1998:18-19). A dupla e inevitável conseqüência é a eliminação dos clientes definidos como de maior risco ou de menor retorno imediato e o fim das operações de custos administrativos elevados. A disposição de atender às necessidades de populações vivendo próximo à linha de pobreza reduz-se, assim, inevitavelmente. “A oferta financeira do mercado afastou-se das operações de financiamento para empresas consideradas como portadoras de um potencial de risco importante ou que necessitem de um acompanhamento muito próximo, com conseqüentes custos elevados de gestão. Neste quadro a ‘má relação’ entre custo de transação e de acompanhamento/rentabilidade por operação desqualifica quase sistematicamente o crédito para a criação de pequenas empresas e para as iniciativas de economia social (ou solidária) que não passam pelos critérios ‘eliminatórios’”. As observações deste estudo da OCDE (Lebossé, 1998:19) com relação aos países desenvolvidos aplicam-se com mais forte razão a países cujo sistema financeiro tem sua rentabilidade e sua segurança apoiadas fortemente na compra de títulos públicos, operação catalogada como de baixíssimo risco e que ampliam as chances de uma boa classificação, relativamente aos critérios do acordo de Basiléia. Da mesma forma, os bancos são fortemente estimulados a conceder empréstimos sobre a base de garantias reais – e portanto a um público socialmente limitado. A privatização dos bancos estaduais brasileiros, a redução no número de agências de todo o sistema e as novas modalidades de incentivo às gerências - que desestimulam os vínculos de proximidade entre o gerente e uma determinada comunidade local - tudo isso contribui para afastar dos bancos aqueles que necessitam de serviços financeiros, mas que não possuem garantias reais nem contrapartidas significativas para as operações em que hoje se concentra sua rentabilidade (4). É verdade que a expansão do sistema bancário por meio de correspondentes (correios, lotéricas e outras casas comerciais) permite o atendimento a certas necessidades importantes como o pagamento de contas. Mas ela não supre a demanda pela ampla diversidade de serviços financeiros que caracterizam a vida da maior parte das famílias afastadas dos bancos. É destas constatações que se originam as duas perguntas que deram lugar aos trabalhos que compõem o livro: a) Por que razão é tão escasso o uso de serviços financeiros formais por parte de famílias vivendo próximo à linha de pobreza? 4

A menos que se criem organizações especialmente voltadas a esta finalidade, como alguns bancos comerciais brasileiros já começam timidamente a fazer com a implantação de agências de microcrédito em locais de concentração de pobreza urbana. O CREDIAMIGO do Banco do Nordeste é o mais bem sucedido exemplo brasileiro neste sentido. Mais que isso, nos últimos anos, o BNB animou um conjunto de iniciativas de organização regional que o converteram numa espécie de agência de desenvolvimento regional (Farol do Desenvolvimento, Pólos de Desenvolvimento, etc.). O contato com a clientela do interior por meio de agentes de desenvolvimento também contribui para um movimento de descentralização específico do BNB no âmbito do sistema bancário brasileiro. Não há evidências, porém, de que todo este esforço tenha, de fato, aproximado o BNB das necessidades de populações vivendo próximo à linha de pobreza. Apesar de sua importância, o CREDIAMIGO atinge 123 mil clientes ativos (168 mil contratos), cifra relevante, mas que cobre parte muito pequena da demanda potencial (http://www.bnb.gov.br/CrediAmigo/conteudo/lresultados.htm - 11/07/03).


b) A criação de cooperativas de crédito pode contribuir para a luta contra a pobreza, reduzindo a vulnerabilidade das famílias e ampliando suas possibilidades de geração de renda?

2. Limites do setor bancário A formulação explícita destas perguntas tem por objetivo central discutir dois equívocos freqüentes na maneira de responde-las. O primeiro pretende que a escassez no uso de serviços financeiros por parte de populações vivendo próximo à linha de pobreza deve-se à própria precariedade de suas condições de vida. Sob esta perspectiva, seria necessário, antes de tudo, aumentar a sua renda para que só então fizesse sentido oferecer-lhes serviços financeiros. Esta visão dá lugar a um certo perfil de políticas públicas e orienta a resposta à segunda pergunta formulada logo acima: já que o importante para elevar a renda das populações vivendo próximo à linha de pobreza é oferecer-lhes crédito, então isso pode ser feito por meio de instituições bancárias ou por meio de organizações de microcrédito. Bancos ou serviços especializados de microcrédito poderiam ser eficientes, portanto, na oferta daquilo de que populações vivendo próximo à linha de pobreza mais necessitam. Construir organizações financeiras voltadas à oferta de um amplo leque de serviços – entre as quais destacam-se nomeadamente as cooperativas de crédito - seria um passo posterior, quando os pobres já tivessem renda suficiente para desfrutar destes serviços. Esta dupla orientação – os pobres não têm vida financeira e a elevação de sua renda passa pela oferta de crédito para melhorar suas atividades – norteou o formato institucional das políticas internacionais de desenvolvimento rural até meados dos anos 1970. “O diagnóstico dos anos 1950 e 1960 era de que agricultores pobres deveriam ter acesso aos bancos convencionais e não depender de emprestadores de dinheiro que, conforme se acreditava, detinham situação de monopólio e cobravam excessivas taxas de juros. O remédio, conforme a opinião da época, estava em empréstimos cujos alvos eram os pobres e suas atividades produtivas agropecuárias” (Marr, 1999). Estes empréstimos eram feitos por meio de instituições bancárias formais. As diferentes modalidades de microcrédito urbano também respondem a um padrão organizacional cujo pano de fundo está no pressuposto – contestado pelas informações apresentadas nos capítulos que compõem este livro - de que as necessidades financeiras dos pobres podem ser praticamente reduzidas à oferta de crédito. Existe uma diferença fundamental entre o caso brasileiro e o da grande maioria dos países em desenvolvimento, que procuraram combater a pobreza por meio de políticas de crédito, apoiadas em sistemas bancários formais, na maior parte das vezes pertencentes ao Estado. Na África do Oeste (Lapenu e Wampfler, 1997), por exemplo, estas políticas foram marcadas por inadimplência generalizada e não resistiram aos processos de liberalização que reestruturaram – e freqüentemente privatizaram - seus sistemas financeiros. O interessante no caso brasileiro é que as políticas voltadas a combater a pobreza por meio da atribuição de crédito formal são fortalecidas a partir da segunda metade dos anos 1990 e passam fundamentalmente por organizações bancárias comerciais pertencentes ao Estado – Banco do Brasil e Banco do Nordeste do Brasil e, em menor proporção, Banco da


Amazônia. Coincidem, portanto, curiosamente, com o auge das políticas de liberalização e de privatização que atingiram todos os setores econômicos, inclusive o bancário. O caso mais emblemático destas políticas é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o PRONAF, que teve início efetivo em 1996. Não se trata aqui de analisa-lo em detalhe, mas simplesmente de mostrar os dilemas que enfrenta uma política de alcance redistributivo inequívoco, baseada, entretanto, na idéia de que é preciso oferecer fundamentalmente crédito e que isso deve ser feito por meio de bancos estatais. O PRONAF encontra-se entre os maiores programas de microcrédito do mundo. Com quase um milhão de contratos, ele chega hoje a mais de 750 mil agricultores. Nada de semelhante existe com relação a programas de microcrédito fora da agricultura. Enquanto este microcrédito agropecuário atinge 750 mil dos 4,2 milhões agricultores familiares, o microcrédito não agrícola dificilmente chega a mais de 200 mil empreendedores, num universo total estimado pelo IBGE de 9,5 milhões de estabelecimentos urbanos existentes em 1997(5). Nascido diretamente de uma forte pressão da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o PRONAF tem estrutura descentralizada e fortemente capilarizada. As avaliações são unânimes em mostrar que o Programa atinge, de fato, o público ao qual de destina (Abramovay e Veiga, 1999; Belik, 2000): estimativa feita em 1998 pelo IBASE (Ministério do Trabalho, 1998) mostra que 56% dos beneficiários do PRONAF nunca tinham tomado crédito bancário antes. Uma das razões deste sucesso quanto à ampliação da base social da política creditícia está na sistemática segundo a qual cada operação supõe um certificado de aptidão pelo qual o sindicato ou o escritório local atesta ao banco que o candidato ao financiamento é um agricultor familiar. Este mecanismo impediu que os recursos fossem parar nas mãos de segmentos sociais não visados diretamente pelo Programa. A esta forma localizada de controle social sobre as atividades bancárias acrescenta-se a rápida difusão de fundos de aval em vários municípios que permitiram ampliar as garantias oferecidas aos bancos. O resultado é que, no caso brasileiro, a regra internacional - que associou sistematicamente financiamentos bancários estatais a populações pobres e inadimplência generalizada – não se confirmou. Inicialmente, o PRONAF apoiava-se numa definição de agricultor familiar baseada tanto em seu regime de trabalho (basicamente familiar), como num limite de faturamento anual (hoje estipulado em R$ 40 mil), acima do qual o agricultor não faria jus aos empréstimos do Programa. Nos primeiros anos, tudo indicava que somente os segmentos mais abastados e integrados aos mercados mais estáveis entre os agricultores familiares conseguiam financiamentos (Abramovay e Veiga, 1999). Foi o que motivou mobilização social para que fossem criados mecanismos (nacionais e locais) que obrigassem os bancos a emprestar a um público de renda mais baixa que o inicialmente contemplado em suas operações: em 1997 é formado o PRONAFINHO (que ficou conhecido como “PRONAF C”), para atender agricultores cujo faturamento anual não ultrapassasse um certo limite (hoje estipulado em R$ 14 mil anuais). Esta definição é importante, pois este novo segmento do público do PRONAF (o “C”) recebe subsídios maiores que os embutidos no crédito até então vigente 5

Se forem acrescentados aos 123 mil clientes do CREDIAMIGO do BNB os que emergem das iniciativas dos Bancos do Povo existentes em diversos municípios, dificilmente será atingida a cifra de 200 mil clientes de microcrédito em regiões urbanas (ver Abramovay, 2002).


no Programa, pelos agricultores com renda mais alta e que passam a ser classificados como público do “PRONAF D”: além de taxas de juros bem inferiores às do mercado, os agricultores do PRONAF “C” beneficiam-se de um considerável rebate, como prêmio ao pagamento pontual de seus empréstimos. Posteriormente, criaram-se mecanismos para que os créditos do PRONAF chegassem também aos mais pobres entre os agricultores do Nordeste. Um novo segmento é incorporado ao Programa (“PRONAF B”): aquele formado por agricultores com faturamento anual de até R$2 mil. Neste caso, não se cobram juros e os rebates são proporcionalmente maiores que para os grupos anteriormente definidos. O importante é que a cada passo no sentido da ampliação da base social da política creditícia do Programa, aumentam também os gastos públicos na sua operacionalização: não só os gastos com subsídios aos agricultores, mas também os que se referem à remuneração dos bancos pela prestação de serviços a um público que não faz parte de sua clientela habitual. Assim, apesar do sucesso e do alcance social do PRONAF, a utilização do sistema bancário comercial – ainda que pertencente ao Estado – na mediação das políticas públicas voltadas ao combate à pobreza apresenta um conjunto de problemas dos quais os dois mais importantes são aqui resumidos: a) Os bancos estatais oferecem crédito àqueles que não fazem parte de sua clientela habitual sob a condição, entretanto, de receberem, da Secretaria do Tesouro Nacional, taxas administrativas e remuneração (spread) que oneram de forma pesada os custos da própria política. O trabalho recente de Gilson Bittencourt (2003) é pioneiro na exposição da maneira como são remunerados os bancos por esta prestação de serviços, que não se confunde com as subvenções recebidas pelos agricultores na forma de equalização das taxas de juros e rebates no pagamento do crédito. Alguns exemplos bastam para expor a magnitude destes custos: num empréstimo bancário de R$ 1,2 mil por um período de nove meses a um agricultor classificado no PRONAF “C”, o governo gastará R$ 404,77 ou 33,7% do valor financiado. Destes R$ 404,77 gastos pelo Tesouro, R$ 249,60 irão para o agricultor na forma de subsídios aos juros e rebate sobre o principal. R$ 155,17 irão para o Banco do Brasil, para remunerar o spread e as taxas administrativas. Para os 387,5 mil contratos celebrados em 2002, o gasto médio da União foi de R$ 156,85 milhões, dos quais o Banco do Brasil recebeu R$ 60 milhões. Nos contratos de investimento, os subsídios aos agricultores e a remuneração paga aos bancos são ainda maiores, como mostra Gilson Bittencourt: para um empréstimo de R$ 3,2 mil por oito anos e três de carência, com seis pagamentos anuais, a estimativa de gasto, por parte do Tesouro Nacional, é de nada menos que R$ 3,18 mil, dos quais 37,4% irão para o Banco do Brasil. O que mais chama a atenção é o caráter inflexível destes custos bancários e sua completa insensibilidade às informações locais: que se trate de agricultores que fazem parte da clientela do banco ou daqueles que com ele se relacionam pela primeira vez, o que os bancos estatais recebem do Tesouro não se altera. Da mesma forma, o cálculo do risco bancário – embutido nas taxas administrativas e no spread recebido pelo banco – não muda em função da existência de mecanismos institucionais de garantia aos financiamentos, como os fundos de aval, por exemplo. Em regiões com histórico de bons pagamentos dos empréstimos os bancos recebem


do Tesouro o mesmo que em regiões onde o risco real de inadimplência é altíssimo. É importante assinalar também que o dinheiro emprestado não faz parte dos recursos captados pelo próprio banco, mas vem do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT): portanto, seus ganhos não podem ser comparados àqueles provenientes de sua própria captação. A prova mais evidente de que estes custos são excessivos está no fato de que, na região Sul, cooperativas do Sistema CRESOL de Crédito Solidário emprestam estes recursos recebendo no máximo 3% do valor do financiamento para remunerar suas despesas: operam em convênio com o Banco do Brasil que fica com a taxa administrativa e o spread repassado pelo Tesouro e concede uma parte desta remuneração para as cooperativas. A estimativa do Sistema CRESOL é que seria possível operacionalizar o crédito do PRONAF por menos de metade do que cobra o sistema bancário formal: é que para as cooperativas, o PRONAF não representa apenas um custo, mas um fator de atração de clientes que fazem parte do público por elas visado e que apresentam potencial para outros negócios, como empréstimos pessoais e poupança (Junqueira, 2003; Bittencourt e Abramovay, 2001). b) Esta remuneração bancária atenua, mas nem de longe elimina a seleção social e regional nos empréstimos bancários. É verdade que a participação da região Nordeste nos créditos do PRONAF aumentou, atingindo agora um quarto do total das operações. Mas o método que propiciou este aumento acaba reforçando, paradoxalmente, a exclusão bancária. Ele é devido, fundamentalmente, à maior participação de agricultores de dois segmentos do PRONAF: aqueles cujo faturamento anual é de no máximo R$ 1,5 mil (PRONAF “B”) e os assentados da reforma agrária (PRONAF “A”). Nos dois casos, os recursos creditícios originam-se diretamente e são garantidos pelo Tesouro Nacional. No PRONAF “C” e “D”, o banco repassa recursos originários do Fundo de Amparo ao Trabalhador, mas assume os riscos da operação e, portanto, é obrigado estabelecer uma relação bancária com o público do programa. No PRONAF “A” e “B”, o banco é um simples intermediário, sem qualquer responsabilidade sobre a devolução dos recursos.


A tabela I mostra a importância da garantia do Tesouro nos financiamentos do PRONAF no Nordeste TABELA I PRONAF, MAS COM GARANTIA DO TESOURO Contratos do PRONAF no Nordeste e no Brasil por grupo, em 2000 e 2001 GRUPO CONTRATOS 2000 CONTRATOS 2001 NE BR NE BR A 51.508 96.167 9.903 37.740 A/C 1.578* 1.596 4.893 4.915 B 47.255 48.164 95.774 106.716 C 93.275 394.379 86.167 369.556 D 47.086 346.727 22.175 280.246 Exigib/ 412 82.694 0** 110.629 Total 241.114 969.727 218.912 909.802 B+A/Tot 40,1% 14,1% 48,3% 15,9% * Dos quais 1.277 em Sergipe** Em 2001 não houve operações com exigibilidade bancária no Nordeste. Exigibilidade bancária são recursos que os bancos devem ou aplicar na agricultura ou deixar no Banco Central por uma remuneração baixa (taxa SELIC). A = Assentados (sem risco bancário) A/C = Assentados que já receberam crédito de instalação (com risco bancário) B = Agricultores com faturamento anual de, no máximo, R$ 1.500,00. Escolhidos pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável do Município (sem risco bancário) C = Agricultores com faturamento máximo de R$ 10 mil (com risco bancário). D = Agricultores com faturamento máximo de R$ 30 mil (com risco bancário) FONTE: Tabela montada com base em informações de: BACEN (somente exigibilidade bancária), BANCOOB, BANSICREDI, BASA, BB, BN E BNDES http://www.pronaf.gov.br/saf/default.htm - Extraído da internet em 7/07/02 Enquanto no Brasil como um todo (incluindo, portanto o Nordeste) os financiamentos garantidos pelo Tesouro passaram de 14,1% a 15,9% das operações com agricultores familiares, no Nordeste eles foram de 40,1% a 48,3% do total entre 2000 e 2001. A tão forte presença do grupo “B” (quase 44% dos contratos) no Nordeste reflete, em parte, a atuação dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável que contribuíram para escolher o público beneficiário. Mas não se pode esquecer que são recursos vindos diretamente do Orçamento Geral da União, sobre os quais não pesa qualquer risco bancário. Já os


recursos do grupo “A” originam-se do Fundo Constitucional (FNE) de cuja rentabilidade dependem, em boa proporção, os lucros do próprio BNB, o que o torna mais seletivo em sua concessão aos assentados, mesmo inexistindo risco bancário propriamente dito. O importante é que metade das atividades do PRONAF no Nordeste em 2002 vinha não da proximidade entre o sistema bancário e o público visado pelo Programa, mas sim supressão dos riscos por parte do Tesouro Nacional: o crédito não é um fator de alargamento do círculo de relações sociais localizadas de quem o recebe e sim uma forma de transferência pública federal. Para os agricultores do PRONAF “A” (assentados) e “B” (faturamento anual até R$ 1,5 mil) o crédito não representa, nem de longe, um primeiro passo para ampliar suas operações com os bancos. O fato de os créditos serem garantidos e concedidos com base na designação dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável desestimula uma relação comercial estável entre o agricultor e o banco. Que estes agricultores necessitem de crédito e que a disponibilidade de liquidez amplie as possibilidades de investimento é o que a literatura sobre o tema vem mostrando de maneira cada vez mais nítida (Sadoulet e De Janvry, 1997). Exatamente por isso, fazer passar o crédito por uma agência estatal cujo caráter bancário é apenas uma restrição – e não uma oportunidade – para o beneficiário do recurso, limita seu efeito multiplicador sobre a economia local. O agente financeiro torna-se um simples repassador de dinheiro e não o elo de um conjunto de operações econômicas que poderia fortalecer o tecido local pela abertura de novas possibilidades de geração de renda: mais uma expressão da precariedade das mediações locais na relação entre o poder federal e o público visado por suas políticas (6). As evidências reunidas nos textos que compõem este livro contribuem para desfazer o equívoco de se considerar que a demanda de serviços financeiros das famílias vivendo próximo à linha de pobreza se reduz ao crédito e que os bancos são o melhor caminho para sua concessão. A própria diversidade aqui revelada mostra o papel decisivo que organizações intermediárias entre as finanças informais e o crédito bancário podem desempenhar nos processos locais de desenvolvimento. É tautológico dizer que os pobres precisam de renda: mas não é trivial a afirmação de que precisam de liquidez. O pressuposto desta afirmação é que a capacidade de geração de renda está comprometida pela forma como têm atualmente acesso aos recursos e serviços financeiros de que depende sua sobrevivência. A satisfação desta necessidade de liquidez amplia as chances de geração de renda e de apropriação desta renda gerada (e não de sua transferência para outros segmentos sociais). 6

Esta é a questão de fundo envolvida na excelente proposta que integra o Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS, 2002) de retirar os financiamentos de parte do público do PRONAF do Manual de Crédito Rural e mudar inteiramente o método de atribuição destes recursos: em vez de fornecer crédito por meio de organizações bancárias (às quais não têm acesso e que cobram caro para repassar o dinheiro a populações de baixa renda) parte do público do PRONAF contemplado com crédito, devolveria os recursos a agências locais, cujos vínculos de proximidade com a população rural permitiriam que atuassem de maneira organicamente integrada na satisfação de necessidades várias de serviços financeiros, a começar pela poupança e pelos seguros. As cooperativas têm especial vocação para desempenhar este papel.


3. Cinco proposições sobre as finanças de proximidade Os capítulos deste livro oferecem um rico e diversificado panorama a respeito da vida financeira de famílias vivendo próximo à linha de pobreza. As regiões foram escolhidas em função do trabalho do Sistema ECOSOL de Economia Solidária. É claro que os poucos casos aqui expostos não poderiam ser representativos da situação brasileira. Mas eles exprimem dinâmicas sobre as quais é possível sim tirar conseqüências significativas tanto para o conhecimento da vida financeira de famílias vivendo próximo à linha de pobreza quanto para as próprias políticas públicas voltadas a ampliar o acesso destas famílias a serviços financeiros de proximidade. Em Chapecó, já está constituída e funcionando uma cooperativa de crédito formada por funcionários públicos municipais e de cujas operações podem participar os parentes dos sócios. É uma cooperativa de crédito mútuo, por força da legislação vigente quando de sua criação: dela só podem fazer parte os membros de uma determinada profissão e seus familiares. É uma organização de base profissional e não territorial. Nas outras três regiões visitadas, as cooperativas estão apenas iniciando seu funcionamento. Sua vocação territorial é bem mais nítida, por serem cooperativas de crédito rural: delas podem participar profissionais ligados a diversas atividades, desde que tenham algum tipo de vínculo com a agricultura. Em cada uma das regiões visitadas foram entrevistadas dezesseis pessoas que seriam expressivas do público potencial da cooperativa. Metade dos entrevistados foi escolhida entre os mais pobres da população local. No caso das regiões rurais, utilizou-se o mesmo critério do PRONAF: metade dos entrevistados foi de pessoas potencialmente pertencentes ao PRONAF “B” a outra metade estava no público do PRONAF “C” e, em menor proporção “D”: estes critérios para a escolha dos entrevistados não supunham que os agricultores, de fato, tivessem tomado crédito; eram apenas parâmetros para que os mediadores locais ajudassem os pesquisadores na seleção das pessoas entrevistadas. Além destas entrevistas foram organizados grupos focais (Abramovay e Rua, 1999), cuja composição é descrita em detalhe nos textos deste livro. Os mediadores locais que auxiliaram na escolha dos entrevistados e na montagem dos grupos focais são ligados à ADS/CUT, com envolvimento na formação das cooperativas. Uma vez que o objetivo era conhecer a demanda do público potencialmente visado pelas cooperativas, evitou-se a participação de sócios tanto entre entrevistados como entre participantes dos grupos focais. Os principais resultados da pesquisa podem ser sintetizados em cinco proposições básicas. 3.1. É ampla a variedade de serviços financeiros utilizados pelas famílias em todas as regiões. Existe uma nítida diferença entre Chapecó e as três regiões nordestinas estudadas. No município do Sul são diversificados os canais que permitem às famílias e aos indivíduos compras a prazo. Os entrevistados em Chapecó, em sua grande maioria, são assalariados


(7). Seus pagamentos são depositados em contas bancárias e metade deles tem crédito bancário. O horizonte previsível de uma renda regular acaba estimulando endividamento que faz parte da vida de todos os entrevistados. Exatamente por serem assalariados, podem ampliar os círculos a partir dos quais antecipam seu consumo com relação à renda. Muitos estabelecimentos comerciais (farmácias, supermercados, por exemplo) oferecem cartões de crédito que vinculam o consumidor a seus serviços e produtos. As taxas de juros raramente são explícitas: os indivíduos têm consciência de que são altas, mas optam pela compra em virtude das pequenas parcelas a serem pagas. O desconto em folha de “vales” e de crédito é comum. Há diversas estratégias de se lidar com os compromissos a que o endividamento conduz: algumas famílias saldam suas obrigações com os credores, em primeiro lugar. Outras pagam, antes de tudo, as contas (luz, água, etc.). Mas a verdade é que todas as pessoas entrevistadas em Chapecó têm dívidas. O montante das dívidas, entre as pessoas entrevistadas varia de 12% a mais de 100% da renda mensal regular. Compras a prazo e com fornecimento de cheques pré-datados foram também mencionadas. Mas mesmo num ambiente em que há uma vasta oferta de serviços bancários formais e de serviços financeiros intermediários, a utilização das finanças informais é recorrente: empréstimos com parentes, amigos e mesmo agiotas são citados com freqüência, em Chapecó. Além de recursos para consumo imediato, as entrevistas detectaram a ambição de se obter recursos para custear o estudo dos filhos e para reformar a casa. Organizações financeiras intermediárias (formais, porém não bancárias) têm forte capacidade de reduzir os custos de transação: esta é a razão do sucesso dos cartões de loja, de farmácia, bem como das formas de poupança baseadas no desconto em folha de pagamento, como as praticadas junto aos funcionários pertencentes à cooperativa de Chapecó. No Nordeste, a oferta de serviços financeiros formais não bancários é bem menor que em Chapecó. Uma de suas formas surpreendentes é um plano que associa direito a descontos na compra de medicamentos, consultas médicas e até supermercados a um seguro-funeral para dez pessoas por um valor entre R$ 10,00 e R$ 12,00 mensais. O acesso aos bancos limita-se, na maior parte das vezes, ao recebimento de transferências públicas (aposentadorias, por exemplo). Os depoimentos sobre as tentativas de obtenção de empréstimos bancários mostram um custo de transação que pode chegar a R$ 400, só em documentação conforme o texto de Júlio César Dias e João Helder Câmara (8). A este custo acrescenta-se o tempo investido em idas ao banco, cartórios, etc. Os entrevistados revelaram outra dimensão importante da distância entre os bancos e as populações vivendo próximo à linha de pobreza: para conseguir um financiamento os agricultores são obrigados a avalizar empréstimos de pessoas que nem conheciam: em vez de os grupos solidários exprimirem a confiança local já existente, eles são impostos pelo banco, segundo os depoimentos locais, o que evidentemente não contribui para fazer do tomador do empréstimo um cliente da banco. Além disso, esta exigência não é sentida como uma forma 7

A cooperativa é formada não só por funcionários públicos dos municípios, mas também por seus familiares mais próximos que, muitas vezes, não são assalariados. 8 Medidas recentes tomadas no âmbito da Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em coordenação com o Banco do Brasil, devem diminuir significativamente estes custos.


de reforço da organização e da confiança local dos indivíduos uns nos outros: nada que se aproxime da prática de “garantias sociais” (social collateral) empregada por um grande número de instituições financeiras para fazer frente à demanda de populações de baixa renda (von Bastelaer, 1999:1). A figura do agiota é sempre mencionada nas entrevistas, embora quase nunca se mencione a utilização de seus serviços: mas todos têm consciência de que não é difícil obter dinheiro recorrendo ao agiota. Da mesma forma que em Chapecó, o crediário de lojas é utilizado também com muita freqüência no Nordeste e o pagamento costuma ser pontual, apesar da baixa renda dos indivíduos. É que estes empréstimos são estratégicos na reprodução familiar. Deixar de pagar um comerciante que fornece bens de primeira necessidade pode ser o caminho para que se desfaçam laços sociais que permitem a sobrevivência da família nos momentos de maior dificuldade. Mas é claro que estes laços, nas regiões mais pobres, costumam vincular a lealdade a formas freqüentemente perversas de exploração do trabalho. É o que será visto a seguir. 3.2. Nas regiões mais pobres, os serviços financeiros são oferecidos, com muita freqüência no âmbito do que a microeconomia chama de mercados imperfeitos e incompletos. Não se trata apenas dos empréstimos entre familiares e amigos. Aliás, os indivíduos fazem o possível para não recorrer a parentes próximos quando necessitam de empréstimos: é que, nestes casos, a retribuição envolvida no recebimento de uma dádiva não se limita ao puro pagamento de seu valor monetário. Mas isso não significa que os vínculos tradicionais de dependência personalizada só existam nas relações estritamente familiares. No Nordeste são freqüentes as formas de crédito diretamente vinculadas à prestação de serviços em trabalho. Rodrigo Junqueira faz o cálculo das altíssimas taxas de juros implícitas no empréstimo feito por um proprietário de terras, a ser pago por aquele que vai ali trabalhar por alguns dias. A “venda na palha” é outra modalidade de serviço financeiro oferecido no âmbito de relações de proximidade: um comerciante adianta o dinheiro ou os gêneros necessários à sobrevivência da família do agricultor e os insumos básicos de que necessita para cultivar: em contrapartida, o agricultor se compromete a vender-lhe a safra no momento da colheita (Abramovay, 1992/1998 e Garcia, 1985). É claro que os juros contidos na operação são mais elevados que os vigentes nas relações tipicamente de mercado. O crédito será pago quase sempre por um conjunto variado de fontes de renda da família que vai deste a venda do produto até o trabalho assalariado e parte da própria aposentadoria. Os indivíduos não ignoram a exploração a que estão sujeitos neste tipo de relação e a desigualdade real em que ela se fundamenta. O importante, entretanto, é a existência de vínculos e compromissos recíprocos de lealdade. Mesmo quando os empréstimos envolvem sistemas personalizados de dependência e exploração (ou exatamente pela personalização neles envolvida) eles são sistemas de exercício e demonstração de confiança mútua. Fazer jus a esta confiança é, por parte dos mais pobres, uma condição de sobrevivência. Exatamente por isso, a exploração toma a forma de reciprocidade. Estudando assentamentos de reforma agrária, a equipe dirigida por José de Souza Martins (2003:19)


mostra o amplo domínio das “...lealdades comunais e de solidariedade antigas baseadas em deveres de reciprocidade e de troca de favores”. O mesmo raciocínio se aplica para áreas rurais não reformadas, onde se encontram, igualmente, “... compensações e retribuições não econômicas e até mesmo a cobrança de tributos em trabalho, como sempre foi próprio da sociedade tradicional, mesmo entre aparentados” (Martins, 2003:19). Um dos equívocos mais freqüentes no estudo da vida das famílias pobres no meio rural consiste na idéia de que sua produção é de subsistência e que se vende apenas o excedente. Esta imagem só é real se a unidade de produção agropecuária for isolada, abstraída do conjunto dos fatores que determinam a reprodução da família. Na verdade, a produção agropecuária é a base de um sistema de endividamento que, na maior parte das vezes, vincula de forma personalizada e hierárquica o agricultor a atores sociais dos quais depende em sua sobrevivência. Em outras palavras, não é correto dizer que a família vai consumir o que produz e vender o excedente, pois sua produção encontra-se empenhada para o pagamento da dívida que contraiu para manter-se do plantio à colheita. Só que a família vai utilizar diversos meios para fazer frente a esta dívida: trabalho assalariado, aposentadoria, envio de recursos vindos de membros da família que já deixaram a unidade doméstica, venda de um animal, todos os meios para obtenção de renda são mobilizados para fazer frente às dívidas que permitiram a reprodução das famílias e os créditos futuros dos quais elas dependem. A pobreza costuma ser tanto maior quanto menores as possibilidades de obtenção de renda para lastrear a obtenção informal dos créditos em que a família se apóia em sua sobrevivência. Estas relações não podem ser suprimidas do dia para a noite nem seus protagonistas tratados simplesmente como os “intermediários” que uma política pública de preços mínimos ou a presença de uma cooperativa de crédito teria o condão de suprimir subitamente. Estas figuras sociais das quais dependem os pobres na obtenção de seus meios de vida são decisivas em suas formas de inserção social e preenchem, de fato, funções cruciais na vida das famílias que vão além da compra e da venda de produtos. E é exatamente neste sentido que as finanças informais têm a virtude de reduzir a assimetria de informação entre emprestador e tomador. O crédito exprime, ao mesmo tempo, uma forma de dominação social, mas também é um ativo, um meio do qual dispõe a família na obtenção do que necessita para reproduzir-se. São relações estáveis, previsíveis e que se inserem dentro de um horizonte social relativamente conhecido pelos atores. A tentativa de sua supressão intempestiva pode ser extremamente destrutiva para os que dela dependem: tanto mais quanto maior for sua pobreza. Daí a distância com relação ao setor bancário formal: embora estas populações costumem pagar o que tomam emprestados e o banco pudesse lucrar emprestando-lhes recursos, o negócio simplesmente não pode acontecer. Estes pequenos empréstimos e as formas de garantia a eles associados supõem um tipo de relação social incompatível com a impessoalidade envolvida nos contratos bancários. A grande virtude do crédito informal é exatamente a facilidade de seu acesso e a redução na assimetria de informação que lhe é subjacente. Os juros costumam ser extremamente altos e as contrapartidas freqüentemente muito mais elevadas que as exigidas pelos próprios bancos. Mas as relações são estabelecidas num universo personalizado que se opõe ao próprio conceito de mercado


(Weber), ou que corresponde ao que os microeconomistas chamam de mercados imperfeitos e incompletos (Ellis, 1988; Abramovay, 1992/1998): a junção numa mesma figura social do emprestador de dinheiro, do fornecedor de gêneros de primeira necessidade e do comprador de produto corresponde a um tipo de ambiente em que os mecanismos concorrenciais entre uma diversidade de atores funcionam de forma extremamente tímida (9). A pobreza nas regiões rurais do Nordeste é caracterizada, antes de tudo, pela limitação no círculo de relações sociais com que os indivíduos se relacionam. A venda dos produtos agrícolas faz-se sempre para certos atores bem localizados. Mesmo porque, conhecendo estes atores, os custos de transação na venda são baixos, já que as relações são estáveis e eles podem então preencher a necessidade que é sempre a de vender o produto rapidamente para obter dinheiro. Mas, os preços obtidos na venda dos produtos refletem sistematicamente a dominação embutida nesta relação de troca (10). Ambientes institucionais (North, 1990/1994) caracterizados pela inexistência de mercados competitivos autônomos e pela fusão de várias funções e serviços na mesma figura social acabam contaminando as próprias políticas públicas. O trabalho de campo de Rodrigo Junqueira não só confirma as denúncias de que programas sociais do Governo chegavam a indivíduos que não deveriam constar entre seus beneficiários, mas mostra um uso especialmente perverso do cartão do aposentado: um comerciante fica com o cartão e entrega a seu titular dinheiro ou mercadoria, cobrando, entretanto, por este serviço uma taxa superior a 10% ao mês. Mais uma demonstração de que os custos de transação bancária são tão elevados que conduzem os indivíduos a renunciar a parte importante de sua renda para não enfrenta-los. 3.3. Mesmo em situação de muita pobreza, as famílias esforçam-se para fazer poupança e seguro. A valorização de um conjunto variado de serviços financeiros – e não apenas do crédito – é a mais importante mudança intelectual nas abordagens recentes sobre o tema. O CGAP Consultative Group to Assist the Poorest, consórcio de 29 agências doadoras internacionais, voltadas às microfinanças (entre elas, o Banco Mundial) - vem estimulando diversos trabalhos sobre a importância da poupança para populações vivendo próximo à linha de pobreza. É generalizada a constatação de que “a mobilização da poupança só recentemente foi reconhecida como uma força maior nas práticas das microfinanças. Infelizmente pouco progresso foi feito na construção de instituições de microfinanças como intermediários financeiros completos. Na verdade, a discussão e a prática da microfinança focou-se na oferta de crédito, embora em quase todo lugar os domicílios pobres poupem de formas variadas e com diferentes propósitos. A percepção convencional de que há baixa capacidade de poupança e baixa demanda por facilidades de depósito, particularmente em países em desenvolvimento, foi minada pelas evidências de inúmeros estudos da última década. Hoje já é reconhecido que oferecer oportunidades de depósito orientadas pela 9

A interessante revisão bibliografia de von Bastelaer (1999) mostra que os emprestadores de dinheiro em mercados informais raramente são profissionais do ramo: “os fundos emprestados são meios para se obter retorno sobre outras transação nas quais tomadores e emprestadores estão envolvidos”. 10 “As relações de empréstimos que os emprestadores cultivam com os tomadores são de longo prazo e estão usualmente baseadas num padrão de interação pessoal com os tomadores e suas famílias” (Von Bastelaer, 1999).


demanda, num quadro institucional apropriado, pode fazer com que o alcance e o impacto das ações integradas sejam superiores aos das organizações voltadas estritamente à oferta de crédito” (Fiebig et al., 1999:13). Em outras palavras, o crédito não pode ser dissociado da poupança, dos investimentos e da maneira como as famílias procuram prevenir os momentos de maior dificuldade, ou seja, das modalidades formais ou informais de seguro. A principal estratégia de reprodução das famílias pobres consiste em atenuar suas oscilações de renda durante o ano, o que explica a importância que assume a poupança. Esta estratégia é tanto mais importante quanto mais instáveis forem as fontes de renda das famílias. Em Chapecó, onde os entrevistados da pesquisa são majoritariamente assalariados, a poupança não se mostra especialmente importante: os salários formam um lastro sobre cuja base os indivíduos conseguem obter empréstimos. O trabalho de Bonnie Brusky mostra que um dos objetivos da cooperativa é levar adiante um trabalho educativo sobre como lidar com uma certa facilidade na obtenção de crédito: o endividamento permanente resulta numa espécie de poupança negativa, em que se está dedicando parte significativa da renda familiar ao pagamento de juros sobre pequenas parcelas de prestações e dívidas. Ao mesmo tempo, as famílias têm aspirações relativas à educação própria e, sobretudo, dos filhos, ao melhoramento de suas residências, que ficam comprometidas pelas dívidas já existentes. A cooperativa tem ambição de levar adiante trabalho educativo que resulte na formação de poupança visando finalidades específicas. No meio rural, a situação é, de certa forma inversa. Em primeiro lugar, nas três regiões visitadas do Nordeste, o acesso ao banco é muito custoso, como já anteriormente assinalado. É o que explica o hábito de guardar dinheiro com um comerciante, sem que se receba por isso qualquer remuneração. Mas as mais importantes formas de poupança entre agricultores são os próprios resultados de sua produção: os animais e, em menor proporção, os produtos agrícolas. A poupança em animais é generalizada e oferece a vantagem de propiciar rendimentos muito superiores aos de qualquer forma de poupança monetária: é, na verdade, um investimento. Entretanto, a falta de acesso a serviços financeiros ágeis acaba comprometendo a própria reprodução dos sistemas produtivos existentes. É muito freqüente a necessidade de venda de animais em casos de doença ou de algum episódio excepcional (mas corriqueiro) na vida das famílias. Nestas circunstâncias, os ganhos da poupança em animais acabam se dissolvendo pelos baixos preços obtidos. Além disso, é freqüente que as necessidades de recursos sejam inferiores ao preço pelo qual se vendeu o animal. O resultado nem sempre pode ser aplicado em mais animais, seja pelo seu montante, seja por uma razão de ordem natural: não é raro que os animais sejam vendidos exatamente em virtude de seca e da impossibilidade de alimenta-los: razão adicional para que os preços obtidos sejam baixos e para que não haja estímulo para aquisição de novas cabeças. É claro que a persistência deste ciclo inibe o próprio investimento em melhor qualidade do rebanho e da pastagem por parte das famílias. A falta de acesso a fontes estáveis de financiamento de curto prazo é, neste sentido, um importante bloqueio à reprodução econômica ampliada das unidades familiares de produção. O desempenho dos sistemas produtivos praticados pode ficar seriamente comprometido pela ausência de liquidez para os agricultores. Mônica Schroder mostra que tanto quanto a renda familiar, os recursos hídricos durante o ano obedecem a um fluxo descontínuo de


entradas: existem momentos em que “sobram” recursos hídricos e, com isso, se produz capim em quantidade superior à consumida pelo rebanho. Aproveitar este excedente depende da capacidade de fazer silagem ou fenação: a pobreza no momento da seca poderia ser fortemente atenuada por algum tipo de financiamento ao aumento da produtividade de um sistema que o agricultor conhece e já pratica. A seca obriga o agricultor a desfazer-se da poupança que acumulou em forma de animal e enfraquece o sistema produtivo em que a família apóia a sua reprodução. O acesso a financiamento permite que o investimento em animais não seja esterilizado sob a forma de uma poupança negativa. Fiebig et al. (1999) resumem bem o problema dizendo que “o investimento do excedente econômico em ativos ilíquidos (poupança em espécie) é uma expressão do conjunto limitado de opções de poupança que os pobres têm à sua escolha. Em geral, mecanismos informais de poupança caracterizam-se por limitadas liquidez e divisibilidade”. Além dos animais, os produtos agrícolas são outra forma de poupança. Não é novidade que políticas públicas podem melhorar a renda do agricultor permitindo-lhe comercializar o produto em momentos que não coincidam com as baixas de preços do auge da safra. A verdade, entretanto, é que os segmentos mais pobres dos agricultores familiares dificilmente conseguem acesso aos financiamentos necessários para esta proteção de sua renda. Com isso sua vinculação aos mercados imperfeitos e incompletos juntos aos quais comercializam sua produção só é reforçada. Este exemplo mostra mais um potencial das finanças de proximidade que o sistema bancário não tem sido capaz de aproveitar: as formas garantidas de transferência de renda (sobretudo a aposentadoria) podem ser a base, o lastro de uma relação estável com fontes de financiamento. As finanças intermediárias privadas (farmácias, comércio, supermercados) são ágeis em oferecer formas variadas de crédito aos aposentados em função da estabilidade de sua renda. Os trabalhos recentes de Marcelo Cortes Néri mostram que estas entradas de recursos poderiam servir como fundamento na obtenção de créditos para as famílias e seus empreendimentos econômicos. A urgência de cumprir as obrigações rituais funerárias - cujo desprezo por parte das elites locais acabou dando origem às próprias Ligas Camponesas, é importante lembrar – conduziu a formas institucionalizadas de seguro-funeral que se combinam com um tipo especial de seguro saúde. Viviana Zelizer (1997:28) em seu estudo sobre as diferentes marcas sociais que caracterizam a existência e a diversidade das formas monetárias mostra que “o dinheiro da morte era, e ainda é, claramente distinto do dinheiro do aluguel, da comida ou da roupa. Para os pobres, um enterro indigente é o último estágio da degradação pessoal e social”. O seguro-funeral - hoje bastante difundido entre populações de baixa renda, tanto mais que se vincula a uma espécie de seguro-saúde - é apenas uma das modalidades às quais recorrem as famílias para enfrentar situações imprevistas (11). As cooperativas de crédito podem desempenhar um papel importantíssimo na oferta de outras modalidades de seguro, tanto para a produção, como para outras necessidades familiares. Mas para isso é necessário que elas compreendam a natureza específica dos serviços financeiros das famílias que vivem próximo à linha de pobreza. É do que tratam os dois próximos tópicos do trabalho. 11

A necessidade de poupança para o casamento parece cada vez menos importante, pelo que a pesquisa detectou em campo: a aceitação social generalizada das uniões informais e a prática corrente das separações parecem ter enfraquecido muito, na sociedade brasileira, as necessidades de poupança ligadas ao casamento.


3.4. O crédito, a poupança e o seguro são serviços financeiros que atendem, simultaneamente, às necessidades das famílias e de seus empreendimentos econômicos. A separação entre família e negócio é uma das características pelas quais Max Weber caracteriza o capitalismo moderno, em seu estudo clássico (1905/1999). Os dois mundos – sociedades anônimas, sociedades limitadas, por um lado e família, por outro - são regidos por regras diferentes em todos os sentidos. A própria formalização jurídica dos negócios tem como um de seus objetivos centrais separar suas exigências daquelas que provêem das necessidades domésticas. Os trabalhos pioneiros de Alexander Chayanov (1924/1986) não se aplicam apenas ao campesinato, mas a todas as formas sociais que reúnem num conjunto orgânico e indiferenciado trabalho, gestão e propriedade familiares. As iniciativas que fazem parte do que Ignacy Sachs (2002) chama, de forma apropriada, de “empreendedorismo de pequeno porte” caracterizam-se pelo fato de que é praticamente impossível separar com clareza os recursos das famílias daqueles que vão especificamente ao empreendimento econômico: esta impossibilidade é tanto maior quanto menores forem os empreendimentos. Esta não é uma particularidade dos negócios agrícolas (12). Dos 9,5 milhões dos pequenos empreendimentos urbanos estudados pelo IBGE (13), apenas 1,3 milhão possui constituição jurídica. 2,7 milhões do total são levados adiante “só no domicílio”. Mas que o negócio esteja ou não, fisicamente, situado no interior do domicílio, a verdade é que não existe clara separação entre as finanças do empreendimento e as da família. A ausência de uma contabilidade formal no empreendedorismo de pequeno porte é uma expressão desta característica: dos 9,5 milhões de empreendimentos, 4,4 milhões não registra nada, 3,7 milhões fazem registros não acompanhados e apenas 1,3 milhão recorre a contador. Programas governamentais de crédito caracterizam-se normalmente pela obrigação contratual de que os recursos sejam aplicados em atividades produtivas e não “desviados” para o consumo familiar. O trabalho recente de Junqueira (2003), sobre um programa específico do Sistema CRESOL de Crédito Solidário (14) mostra que, na lógica do empreendimento familiar, estas fronteiras borram-se permanentemente. Agricultores que fazem jus a um empréstimo PRONAF – com juros altamente subsidiados, como foi visto acima – tomam emprestados recursos a juros muitas vezes mais altos para fazer o giro de alguns negócios, enquanto esperam pelo financiamento público. Se o empréstimo do PRONAF for realmente concedido, tanto melhor. Mas o agricultor incorpora a suas decisões econômicas o risco de que o crédito oficial não seja liberado e toma um empréstimo mais caro, pois necessita levar adiante, imediatamente, certas atividades que não podem esperar (15). Da mesma forma, obter crédito para enfrentar uma situação de 12

Ao menos dos brasileiros: Décio Zylbersztajn está levando adiante pesquisa que procura compreender por que, no Brasil, mesmo a agricultura patronal dificilmente adota uma forma jurídica que separe claramente negócio e família, contrariamente ao que ocorre nos países desenvolvidos. 13 Economia Informal Urbana – ECINF – IBGE, 1997. 14 O MICROSOL, financiado pelo BNDES. 15 Esta constatação é muito recorrente, mesmo no crédito à agricultura familiar. Ela contribui a colocar em dúvida não a necessidade de subsídios às taxas de juros dos agricultores, mas o montante destes subsídios. Gilson Bittencourt (2003), por exemplo, propõe a supressão do rebate nos financiamentos do PRONAF.


doença pode evitar que se venda um animal e, portanto, que se perca um imenso esforço de poupança produtiva anterior. Diversos trabalhos do CPATSA/EMBRAPA mostram que a venda de animais responde, o tempo todo, tanto a necessidades de investimentos produtivos, como às exigências da reprodução familiar. Em situações de seca, a família é obrigada a desfazer-se de parte do rebanho para garantir sua sobrevivência. O texto de Mônica Schoreder mostra o uso freqüente do dinheiro da aposentadoria para as necessidades do empreendimento: “às vezes, falta dinheiro pra feira porque preciso usar o dinheiro da aposentadoria na propriedade”. E é importante lembrar que os gastos são escolhidos prioritariamente não em função de necessidades naturais, mas de uma hierarquia social. Pagar em dia os credores dos quais depende a reprodução familiar terá, freqüentemente, prioridade sobre a própria aquisição de gêneros básicos, já que o mais importante é que não se rompam as relações sociais em que se apóia a sobrevivência. Esta restrição será tanto maior quanto mais pobre for a família e menor o círculo de relações aos quais ela pode recorrer para obter crédito. É claro que as famílias e seus empreendimentos necessitam de recursos financeiros para investimentos de longa maturação e que, nestes casos, são necessárias – tanto quanto para os empreendimentos patronais - taxas de juros compatíveis com a natureza destes gastos. Mas é nítida também a necessidade permanente de recursos de curtíssimo prazo: na maior parte das vezes é a incapacidade de fazer frente a estas necessidades imediatas que perpetua os vínculos clientelistas de dependência que caracterizam os mercados imperfeitos em que vive a maior parte dos pequenos empreendedores, principalmente – mas não exclusivamente – no meio rural. Uma das demandas mais freqüentes nas cooperativas de crédito mútuo em meio urbano refere-se à necessidade de se liberar de dívidas passadas, cuja acumulação e cujas taxas de juros acabam comprometendo a capacidade de manutenção da família. Entre empreendedores de pequeno porte (agrícolas ou nãoagrícolas) obter recursos para fazer frente a uma necessidade imediata da família (a feira semanal ou a compra de um medicamento) pode evitar a venda de um bem decisivo para a organização do próprio negócio: animais, a colheita no momento de preços baixos ou algum equipamento que seria decisivo na geração de renda. A demanda de crédito volta-se também a necessidades familiares menos imediatas e que não têm vínculos diretos com negócios: a educação dos filhos, a reforma e a construção de moradias foram mencionadas com freqüência em Chapecó. Aí também – sobretudo no que se refere à moradia – os juros pagos pelas famílias nas casas de compra de materiais encarecem de maneira impressionante seus custos. As cooperativas poderiam desempenhar papel relevante neste sentido. A grande lição que se extrai destas observações é que o crédito, no âmbito de uma organização de finanças de proximidade, não pode ser pensado sob o ângulo estritamente produtivo. Isso não quer dizer que o reembolso dos recursos dos recursos emprestados seja o único critério com base no qual a utilidade social de seu uso será avaliada. A saúde financeira de uma cooperativa de crédito é condição necessária, mas, nem de longe, suficiente, para o cumprimento de suas funções sociais junto ao público vivendo próximo à linha de pobreza: uma de suas funções básicas é a de baratear a chegada de recursos e de facilitar o acesso a programas governamentais voltados à geração de renda para esta


população. A aquisição de bens de investimento supõe muitas vezes subvenções públicas (taxas de juros abaixo das praticadas pelo mercado, por exemplo) e, portanto, alguma forma de controle sobre a efetiva compra do que foi contratado. Nestes casos, os recursos provavelmente vão submeter-se à apresentação de um plano de negócios que, ao mesmo tempo, mostre a viabilidade do que o empreendedor quer fazer e abra a possibilidade de que ele se submeta ao trabalho de agências de formação e melhoramento dos empreendimentos familiares. A inserção das cooperativas num conjunto de organizações de combate à pobreza aumenta as chances de que estas iniciativas cheguem de fato, com eficiência, a seus destinatários. Mesmo assim, na economia real (Sachs, 2002), é provável que estes recursos produtivos – ainda que severamente monitorados - se dissolvam no conjunto de entradas de que dispõe a família e que seu reembolso provenha de fontes variadas. Será, portanto, importante que as organizações voltadas ao fortalecimento da economia familiar reúnam, em sua atuação, as exigências de bom comportamento financeiro, o estímulo à melhor organização dos negócios e à formação dos empreendedores – o que nunca pode ser feito, diretamente, por elas mesmas - à flexibilidade que marca o tipo de negócio ao qual se volta. É importante assinalar também que a sustentabilidade econômica das cooperativas já estudadas até aqui não se apóia na oferta de créditos subsidiados: tanto o sistema CRESOL (Junqueira, 2003; Bittencourt, 2003), como a ASCOOB (Magalhães, 2003) vivem fundamentalmente de operações de curto prazo, com juros capazes de cobrir suas despesas operacionais. É daí – e também da poupança feita pelos sócios – que vem o essencial dos recursos que permitem manter e ampliar as cooperativas com uma estrutura economicamente auto-sustentada. É daí também que se origina o sentimento de confiança decisivo para o próprio fortalecimento da organização com a qual os indivíduos passam a contar como fonte de obtenção de recursos e onde poderão depositar suas poupanças. O financiamento destas necessidades imediatas de seu público preenche uma das mais importantes funções sociais que se espera de uma organização de finanças de proximidade. Nada seria pior que grupos especializados no repasse de verbas públicas e cuja existência organizacional dependesse inteiramente do que recebem do governo para desempenhar esta função. Nestes casos, as organizações tenderiam fatalmente a adotar uma atitude assistencialista, burocrática, limitando assim o papel central de irrigar o conjunto das necessidades de serviços financeiros para o desenvolvimento local. Aí se fundamenta, portanto, a diferença entre microcrédito e finanças de proximidade ou microfinanças: num caso, trata-se de oferecer um serviço segmentado, voltado a uma atividade específica e que se apoiará numa estrutura organizacional sempre dependente do aporte de recursos públicos. No outro, quando se integra o crédito a um conjunto variado de necessidades de serviços financeiros das famílias, as organizações voltadas a esta finalidade podem tornar-se economicamente sustentáveis, isto é, podem basear sua existência na força localizada que recebem da adesão de seus participantes. Isso não impede, evidentemente, que façam a intermediação de recursos públicos e que levem adiante programas governamentais de crédito subsidiado. Pode-se dizer mesmo que estarão mais bem preparadas que organizações bancárias para fazer esta intermediação, por seu conhecimento mais profundo do público ao qual se voltam estes programas. Mas a virtude das das finanças de proximidade é que elas tenderão sempre a associar estes recursos


governamentais a um conjunto de serviços financeiros dos quais a população distante dos bancos necessita e sobre cuja base elas mesmas apóiam sua sustentabilidade econômica e organizacional. Mas é importante compreender que esta sustentabilidade fundamenta-se num traço econômico real das famílias – sua pluriatividade – examinado a seguir. 3.5. A pluriatividade é a característica mais importante da formação da renda das famílias que constituem o público potencial das cooperativas. “Muitos programas e instituições de crédito estão focados, de maneira estreita, na empresa ou na unidade agropecuária, sem levar em conta o contexto socioeconômico dentro do qual o domicílio e seus membros individuais investem, produzem e consomem” (Zeller et al., 1997:13). Não se trata, evidentemente, de subestimar a importância do financiamento voltado explicitamente ao fortalecimento das unidades econômicas das quais dependem as famílias. Mas não se pode esquecer que um dos recursos mais importantes na luta contra a pobreza é exatamente a tentativa - ou a obrigação - permanente de diversificar as atividades dos membros das famílias: a estratificação da agricultura familiar por segmentos de renda mostra, sistematicamente, que a esmagadora maioria das unidades produtivas gera um produto tão baixo que é impossível a seus membros sobreviver fundamentalmente do que delas são capazes de extrair. O trabalho de Abramovay, Veiga e Singer (1999), sobre a base dos dados do Censo Agropecuário de 1996, revela que os estabelecimentos agropecuários familiares situados entre os 50% de menor renda (abaixo da mediana), no Nordeste, tiveram Renda Monetária Bruta (receita menos despesas) de R$ 136,00 durante todo o ano. Os agricultores situados entre a média e a mediana conseguiram R$ 548,00 em 1996. Neste dois segmentos está mais da metade da força de trabalho ocupada na agricultura familiar do Nordeste. É óbvio que estas famílias não podem viver fundamentalmente do que extraem de suas unidades produtivas. Sua existência é caracterizada por diversas fontes de entrada de recursos. Sua produção agropecuária concentra-se em produtos tradicionais, pouco dinâmicos e para os quais existem mercados de proximidade cujos atores cumprem funções sociais amplas de financiamento do próprio consumo familiar. A maneira como diversificam sua renda é extremamente variada. Quanto mais pobres as famílias, menos conseguem apoiar sua reprodução numa fonte setorial específica de renda: ao mesmo tempo, a restrição em seu círculo de relações sociais faz com que diversifiquem suas entradas de maneira quase sempre precária. A pluriatividade não é, por si só, uma virtude social, nem pode ser concebida como um caminho para a redenção dos mais pobres: ela é o meio pelo qual as famílias procuram reproduzir-se e reflete o ambiente desta reprodução. Em ambientes muito pobres, as formas de diversificação da renda tende quase sempre à precariedade. No meio urbano, as informações da ECINF também mostram que poucas famílias conseguem sobreviver estritamente do que recebem do empreendimento econômico ao qual se dedicam: das 9,5 milhões de empresas estudadas pelo IBGE, 4,8 milhões tiveram, em outubro de 1997, receita inferior a R$ 500,00. Deduzindo-se daí as despesas operacionais e levando-se em conta o custo de vida nas cidades, é bem provável que as famílias tenham que recorrer a outras fontes de renda, além daquela que deriva do empreendimento estutado pelo IBGE.


Que a pluriatividade seja virtuosa, voltada a fontes promissoras de geração de renda (turismo rural, novos negócios para membros jovens da família) ou que ela exprima as urgências decorrentes da pobreza (trabalho assalariado em fazendas ou em olarias, por exemplo), a verdade é que uma cooperativa de crédito não pode ter ótica fundamentalmente setorial ou profissional. Seu alcance será tanto maior, quanto mais ela conseguir atender às necessidades diversificadas das famílias e de seus diferentes negócios. Imaginar um sistema de crédito destinado a atender basicamente necessidades produtivas setoriais (por exemplo, agropecuárias) seria uma dupla ameaça: por um lado não permitiria a sustentação econômica da própria cooperativa, que dificilmente, sobre a base do crédito agropecuário, conseguiria pagar seus custos. Além disso, a cooperativa deixaria - ao focarse fundamentalmente sobre a “produção” - de atender outras necessidades financeiras, outras demandas vindas das diferentes formas como as famílias se inserem em seu meio e garantem, por aí, sua reprodução social. Constatar a pluriatividade na geração de renda por parte das famílias é um convite a que os serviços oferecidos pelas cooperativas procurem guiar-se pela demanda. Mas esta orientação, muitas vezes, choca-se contra a ótica com que os próprios dirigentes sindicais organizam a sua intervenção numa determinada comunidade: tratando-se, por exemplo, de cooperativas no meio rural, a experiência do trabalho reivindicativo sindical já traz pronta a resposta quanto à natureza da demanda do público alvo: agricultores, em sua grande maioria, parece óbvio que suas necessidades de serviços financeiros concentram-se basicamente em crédito agropecuário, seja de investimento ou de custeio. Afinal é nesta direção que sempre apontou a própria política pública: apoiar os agricultores é, antes de tudo, conseguir-lhes créditos subsidiados para fortalecer sua produção. Se os bancos comerciais - mesmo os que pertencem ao Estado - dispõem-se cada vez menos a atender o público que forma a base do movimento sindical, as cooperativas de crédito, então, têm a missão decisiva de oferecer recursos produtivos (vindos em grande parte do Estado) para aqueles que não os conseguem junto aos bancos. No meio urbano sua vocação básica seria a de permitir, igualmente, que os fundos públicos - do Fundo de Amparo ao Trabalhador, por exemplo - chegassem a empreendedores que não fazem parte da clientela dos bancos. Os trabalhos reunidos neste livro procuram fazer da diversidade da vida financeira das famílias vivendo próximo à linha de pobreza a base objetiva sobre a qual as cooperativas de crédito poderão contribuir de forma importante à valorização dos potenciais localizados de desenvolvimento. A demanda de serviços financeiros por parte dos que vivem no meio rural é muito mais variada do que o previsto nos programas governamentais de custeio, investimento e, eventualmente, comercialização. Além de os agricultores terem fontes variadas de renda, é claro que no meio rural as atividades agropecuárias não são exclusivas e muitas vezes sequer majoritárias. Organizações de finanças de proximidade podem auxiliar exatamente na revelação de potenciais de geração de renda que ultrapassam as barreiras do já habitualmente conhecido. Mas isso exige que se conceba a família como pluriativa e que não se admita a assimilação abusiva, mas tão freqüente, entre meio rural e atividades agropecuárias (16).

16

Ver, neste sentido, o trabalho de Veiga (2002).


4. Conclusões A Agência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos Trabalhadores tomou a decisão de apoiar e estimular a criação de cooperativas de crédito por todo o País. Estão em fase de formação vinte cooperativas em meio rural, às quais somam-se cinco cooperativas profissionais urbanas, algumas das quais já em fase de funcionamento. É o início da construção do sistema ECOSOL, que pretende oferecer condições financeiras para a expansão da economia solidária no Brasil. A economia solidária não envolve apenas, nem principalmente, empreendimentos econômicos de propriedade e gestão coletivas, mas, sobretudo, um vasto e diversificado conjunto de iniciativas nano e microempresariais, trabalhadas e gerenciadas, na maior parte das vezes, por famílias e cuja coordenação pode ser reforçada significativamente por organizações voltadas à oferta de produtos financeiros. A decisão da CUT justifica-se por dois motivos básicos. O primeiro deles é bastante conhecido e refere-se ao acesso extremamente limitado o acesso dos empreendedores de pequeno porte ao sistema bancário no Brasil (SEBRAE, 2002); nada parece mais urgente que inverter esta tendência por meio de organizações que supram as necessidades financeiras das famílias e de seus empreendimentos econômicos. Já o segundo objetivo é menos óbvio: ele se apóia na idéia de que famílias pobres – e os empreendimentos econômicos de que dependem, bem entendido - possuem necessidades financeiras variadas (de crédito, mas também de poupança e de seguros) que a organização bancária convencional é incapaz de contemplar. Os textos apresentados neste livro mostram que as famílias usam serviços financeiros oferecidos por atores e organizações informais caracterizados por uma ambigüidade básica: por um lado, estes serviços apóiam-se em relações de proximidade e confiança, mas, ao mesmo tempo, eles muitas vezes reproduzem os círculos sociais de dependência e clientelismo que estão, em grande parte, na raiz da própria pobreza. O limitado uso de serviços financeiros formais reflete a imensa distância social entre os bancos e populações vivendo próximo à linha de pobreza e não a inexistência da demanda por estes serviços. Ao contrário, os textos reunidos neste livro mostram – com base em alguns poucos exemplos, é bem verdade - que o uso de serviços financeiros define a própria inserção social dos indivíduos e que, portanto, suas formas serão muito variadas e, em muitos casos, surpreendentes. As informações aqui expostas têm o objetivo prático central de permitir que implantação das cooperativas de crédito seja guiada pela demanda (Anyango et al., 2003, Desai e Mellor, 1993) de seus potenciais participantes e não pelo simples desejo de oferta de recursos e serviços por parte de seus atuais organizadores. Os textos foram escritos a partir de um contato intenso entre os pesquisadores e os atores locais envolvidos diretamente com a formação das cooperativas de crédito. Cada um deles contém um conjunto variado de sugestões, muitas delas com alcance prático imediato. Não faz parte dos objetivos deste trabalho oferecer receitas ou conselhos operacionais para as cooperativas, embora o livro pretenda contribuir com a atividade prática dos que estão envolvidos nesta construção. O importante é a natureza da demanda por serviços financeiros das populações com as quais os movimentos sociais que estão na base da formação do Sistema ECOSOL de Crédito Solidário trabalham.


Por que razão estas populações prefeririam as cooperativas àqueles indivíduos e organizações que, hoje, de maneira formal ou informal, lhes oferecem serviços financeiros e dos quais os textos aqui apresentados apresentam diversos exemplos? Construir organizações guiadas pela demanda das populações que pretende atender exige, antes de tudo, a resposta a esta pergunta. Exatamente pelo fato de a moeda pertencer ao domínio daquilo que Marcel Mauss (1924/2003) chama de “fatos sociais totais”, as finanças não podem ser concebidas como instrumentos neutros de uma economia de troca e movidos simplesmente por uma lógica de eficiência: ao contrário, a moeda - os vínculos, os direitos e as obrigações que ela contém - exprime a própria maneira pela qual os indivíduos e as famílias tecem suas relações recíprocas de dependência, solidariedade, ajuda, clientela, igualdade e submissão. Aqueles junto a quem os pobres satisfazem suas demandas financeiras não são simples intermediários, mas figuras centrais das quais depende sua reprodução. É tecnocrática a idéia de que basta implantar uma organização moderna e de baixos custos que os indivíduos a ela vão aderir por força de sua preferência. Assim como no plano comercial os que compram e vendem os produtos das famílias não são simples “intermediários” que podem ser substituídos em função de critérios de eficiência, no terreno financeiro também as relações entre tomadores e emprestadores de dinheiro vão muito além do plano estritamente objetivo e mercantil. Isso significa que podem ser altíssimos e até inacessíveis – sobretudo para os mais pobres os custos para vincular-se a atores financeiros diferentes daqueles de que hoje dependem. Ao mesmo tempo, para as próprias cooperativas, existirão também custos vinculados à formação de sua clientela. Dos dois lados, a relação apóia-se em informações e expectativas assimétricas. Do lado das cooperativas, os economistas exprimem esta dificuldade constatando que, no crédito, o mercado tem a forma semelhante à de um monopólio natural (17): a obtenção de informações sobre um novo cliente tem um custo no qual um novo ingressante no mercado terá que incorrer e que já foi amortizado por aquele que está atualmente oferecendo o serviço financeiro. Este postulado é válido tanto para as finanças informais como para o sistema bancário. Timberg e Aiyar (1984) contam que, quando perguntaram a um emprestador de dinheiro do interior da Índia como fazia para escolher novos clientes, a resposta foi que ele nunca teve um novo cliente (apud, von Bastelaer, 1999). É um caso emblemático em que a clientela pertence naturalmente ao círculo de relações sociais do emprestador, é um elemento inalterável da própria paisagem que forma a vida. Uma cooperativa de crédito tem que conquistar e selecionar seus aderentes, enfrentando aí o desafio de, ao mesmo tempo ampliar suas bases sociais – contrariamente ao emprestador indiano – mas mantendo-as no interior de limites que permitam o funcionamento das redes de proximidade em que ela se baseia. Mas o desafio da mudança do círculo social de financiamento da família e de suas atividades produtivas é ainda maior para o sócio ou cliente potencial da cooperativa. Em regiões mais prósperas e onde ele tem acesso ao sistema bancário, a cooperativa é uma alternativa adicional de serviços financeiros à qual poderá recorrer num ambiente que favorece o exercício da escolha. Em regiões mais pobres, entretanto, os serviços oferecidos pelas cooperativas deverão ser não apenas vantajosos momentaneamente – em termos de taxas de juros, por exemplo – mas permitir e até estimular que os indivíduos se desliguem, 17

Ver o interessante levantamento bibliográfico a respeito feito por Souza Lima (2003).


ao menos parcialmente, de suas fontes tradicionais e habitualmente clientelistas de financiamento. E esta é uma escolha que nem sempre está ao alcance dos indivíduos e das famílias. O confinamento da compra, da venda e da obtenção de recursos financeiros a um círculo social estreito não deriva da ignorância dos indivíduos, mas antes de tudo dos vínculos hierárquicos a que se submetem como condição de sua própria sobrevivência. É exatamente neste sentido que Amartya Sen (2001) define o desenvolvimento como a ampliação das capacidades de os indivíduos fazerem escolhas. Estas capacidades não são atributos imanentes aos indivíduos e sim traços que definem sua própria inserção social. Por isso, a cooperativa não pode ser uma iniciativa isolada num ambiente marcado de maneira geral por relações sociais de dominação clientelista. Seu sucesso depende, em grande parte, da existência de um conjunto de organizações que vão contribuir a alterar o ambiente institucional para que populações vivendo próximo à linha de pobreza possam escolher os atores sociais aos quais vão vincular suas atividades. É por isso também que ganha especial relevância o fato de o Sistema ECOSOL de Crédito Solidário pertencer a uma organização como a Central Única dos Trabalhadores e mover-se explicitamente por objetivos de natureza emancipatória e não apenas por finalidades puramente comerciais. Em última análise as cooperativas podem contribuir para a redução da pobreza e da vulnerabilidade das famílias vivendo próximo à linha de pobreza oferecendo-lhes serviços que correspondam a suas reais necessidades, mas também contribuindo para ampliar o círculo de relações sociais destas famílias além daquele a que estão atualmente restritas. Contrariamente aos bancos - que oferecem políticas públicas como um serviço autônomo, segmentado e que nem de longe é o primeiro passo para o acesso a outros serviços – a vocação das cooperativas é fazer desta oferta um meio de fortalecer o tecido econômico local e os horizontes de inserção social dos indivíduos a que o sistema bancário muito dificilmente abre as portas.


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