Revista Na Trave

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os rebeldes do futebol junho de 2019 - edição 13




Ă­ndice os rebeldes do futebol .................. 5 sĂłcrates ................................................... 6 drogba ........................................................ 8 caszely ...................................................... 12 cantona .................................................... 14

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Quem considera o futebol como o “assunto mais importante dentre os sem importância” está longe de entender o potencial transformador do esporte. É bem mais do que um jogo no qual 22 indivíduos correm atrás de uma bola. É um elemento de fascínio das multidões, com enorme capacidade de transformar a sociedade. Em 2012, o cineasta francês Gilles Rof produziu um documentário inspirado neste papel: “Queria fazer a série por causa da raiva que sentia das estrelas do futebol que são conduzidas apenas pelo dinheiro e pela fama. Isso não se encaixa sobre aquilo que sinto e sei sobre futebol”. As histórias de ídolos do esporte que usaram suas influências na tentativa de mudar a realidade social e política de seus países. Os “Rebeldes do Futebol”. Rof escolheu personagens que foram reconhecidos por seus talentos, mas transcenderam as condições de meros atletas: “A história desse esporte, que não foca em resultados e viradas, é marcada pela rebelião e pelo compromisso político individual. Foram escolhas dramáticas, mas decisivas. Esses rebeldes do futebol recusaram a se conformar e disseram não em nome de suas visões políticas. Eles estavam preparados para defender valores de solidariedade e paz. Mas pagaram um preço, muitas vezes sozinhos”.

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sócrates Sócrates foi um jogador brasileiro muito importante. Além de sua indiscutível qualidade dentro de campo foi um grande símbolo de que um jogador pode fazer muito mais que somente jogar futebol. Junto de Walter Casagrande, uma das duplas mais aclamadas pelo torcedor corintiano, os dois ajudaram a consolidar a Democracia Corinthiana, um movimento revolucionário no futebol brasileiro, em que os jogadores não só participavam das decisões diárias do clube, como se manifestavam publicamente pela redemocratização em plena ditadura. Sócrates aproveitava sua notoriedade para levantar bandeiras além do campo e exercer algo que lhe era tão caro: a liberdade de pensamento e expressão. Embora tivesse prometido a si mesmo parar depois de disputar uma Copa, voltou atrás ao perceber que havia se tornado o porta-voz de uma causa maior que a sede corintiana por títulos e vitórias. “Descobri que, jogando futebol, eu posso ser intermediário das aspirações e angústias de milhares de pessoas que se identificam comigo, que me veem como um guerreiro de sua luta.” Sócrates era assim, consciente do peso de sua figura e também de suas contradições. “Sou radical até mudar de ideia”, brincava com os amigos. Preferia que discordassem dele à omissão de opiniões. No inverno de 1983, uma greve geral com adesão de cerca de dois milhões de trabalhadores parou o país em protesto contra as medidas de austeridade promovidas pelo regime militar.

O craque se indignou com o Sindicato dos Jogadores, que optou por não se posicionar durante a paralisação. Acreditava que a classe deveria olhar mais para a sociedade. “As melhorias no país podem beneficiar o todo, inclusive o futebol”, pregava. Com a partida de Zico para a Udinese, Sócrates se tornou o maior ídolo em atividade no esporte mais popular do Brasil. Passou a ser cobiçado por times do exterior. Recusou uma oferta milionária da Roma. Justificava que, se deixasse o Corinthians somente pelo dinheiro, trairia seus próprios valores.

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Na verdade, só continuava jogando por se sentir realizado em sua jornada como ativista social. Em 82, usou uma camisa incentivando o voto popular na primeira eleição direta para governador de São Paulo em quase duas décadas. Em 83, ele e os companheiros de Corinthians entraram em campo com uma faixa emblemática para o jogo do bicampeonato estadual sobre o rival tricolor: “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”. No ano seguinte, posou para a revista Placar vestido de Dom Pedro I, prometendo que, caso a emenda constitucional Dante de Oliveira fosse aprovada, ele permaneceria no Brasil. Endossada pela campanha das Diretas Já, a proposição acabou derrubada pela Câmara dos Deputados, e o “fico” do craque se converteu num adeus.

Menos de um mês depois da rejeição da emenda, desiludido com os rumos do país, abalado por uma crise matrimonial e seduzido pela proposta financeira fora da realidade, Sócrates se apresentava como jogador da Fiorentina. Seu verdadeiro desejo era seguir no Corinthians ou exercer a medicina, um sonho que não se concretizou, assim como, após rápida passagem pelo futebol italiano, nunca mais vestiu o manto corintiano, pelo qual marcou 172 gols em 298 jogos e ganhou três títulos paulistas. Garantiu que não abandonaria seus ideais muito menos a causa dos desfavorecidos. “Quando eu era jogador, minhas pernas amplificavam minha voz. Se as pessoas não tiverem o poder de dizer as coisas, eu vou dizer por elas.

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DROGBA Apenas 76 segundos. Pense bem: o que você consegue fazer em exatos um minuto e 16 segundos? Pois bem, foi neste curto espaço de tempo e em um vestiário simples no principal estádio na cidade de Omdurman, no Sudão, que Didier Drogba fez o mais importante discurso da história recente da Costa do Marfim. Era 8 de outubro de 2005, e os Elefantes, apelido da seleção, havia acabado de derrotar a equipe sudanesa por 3 a 1, o que garantiu o país pela primeira vez em uma Copa do Mundo. Uma verdadeira conquista em meio ao caos da guerra civil que já durava três anos. Pois Drogba, filmado por um canal de TV marfinense, com um microfone na mão e com todos os companheiros de seleção ao redor, precisou de 129 palavras para provocar um cessar-fogo entre forças rebeldes e governistas que lutavam pelo controle político da nação. Localizado no oeste africano, a Costa do Marfim passou por momentos de tensão entre 2002 e 2007. A guerra civil que ocorreu foi consequência de tensões étnicas crescentes que afetaram até mesmo a política do país. A nação é dividida em duas partes, as regiões norte e sul. A primeira tem como bioma predominante a savana, enquanto a segunda abriga a maior parte das florestas e, portanto, a maior parte das terras produtivas da nação. Por si só, essa divisão do ambiente já criou a situação do sul ser mais rico que o norte.

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O conflito deixou milhares de mortos e teve o primeiro sinal de paz e cessar-fogo quando Drogba, ao lado de seus companheiros, fez o discurso pelo fim da guerra após a classificação da Costa do Marfim para a Copa de 2006. Em 2007, o centroavante entrou novamente em ação ao pedir para que uma partida válida pelas eliminatórias para a Copa Africana de Nações de 2008 fosse sediada na capital rebelde. Diante de 25 mil pessoas, a Costa do Marfim venceu Madagascar por 5 a 0 e garantiu a vaga. Pela primeira vez desde 2002, autoridades do governo pisavam em Bouaké. O jogo foi considerado o ato para selar a paz - no começo daquele mesmo ano, o então presidente Laurent Gbagbo tinha nomeado Guillaume Soro, líder dos rebeldes, como primeiro-ministro da nação. Em 2010, a nação passou por momentos de tensão novamente, quando Laurent Gbagbo se recusou a aceitar a derrota nas eleições presidenciais para Alassane Ouattara. Gbagbo foi preso mais tarde. Ouattara, hoje, é o presidente. “Homens e mulheres do norte, do sul, do leste e do oeste, provamos hoje que todas as pessoas da Costa do Marfim podem co-existir e jogar juntas com um objetivo em comum: se classificar para a Copa do Mundo. Prometemos a vocês que essa celebração irá unir todas as pessoas. Hoje, nós pedimos, de joelhos: Perdoem. Perdoem. Perdoem. O único país na África com tantas riquezas não deve acabar em uma guerra. Por favor, abaixem suas armas. Promovam as eleições. Tudo ficará melhor. Queremos nos divertir, então parem de disparar suas armas. Queremos jogar futebol, então parem de disparar suas armas. Tem fogo, mas os Malians, os Bete, os Dioula... Não queremos isso de novo. Não somos xenófobos, somos gentis. Não queremos este fogo, não queremos isto de novo.”

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CASZELY Há 40 anos atrás, começava a ditadura no Chile após a queda e morte do presidente Salvador Allende, deposto pelo General Augusto Pinochet. E quem poderia imaginar que um dos símbolos da resistência seria, justamente, um dos maiores ídolos do país naquele momento? O craque, filho de um ferroviário, sempre se manteve perto da política, embora nunca tivesse vocação para ocupar cargos e atribuiu ao futebol sua capacidade de obter consciência sobre questões sociais. Ele acompanhava o partido operário, chamado de Unidad Popular. Em 1972, foi nomeado capitão da seleção chilena. No ano seguinte, já ídolo no Colo-Colo, ajudou a conduzir o time à sua primeira final de Libertadores. Nunca um time chileno tinha conseguido chegar tão longe na maior competição sul-americana. Enquanto o Colo-Colo encantava a América com seu futebol, o Chile estava em crise econômica e Santiago vivia clima de grande tensão. Manifestações que acabavam com feridos e mortos deixavam o país em alerta. E uma derrota do clube mais popular do país poderia fazer tudo piorar. Os mais alarmados diziam que a eliminação poderia ser estopim para um golpe – já arquitetado na altura. Nada disso aconteceu, mas por pouco: o Botafogo vencia por 3 a 2 e estava se classificando à final da Libertadores. Mas o Colo-Colo empatou no último minuto e garantiu a vaga na decisão. Caszely teve boa atuação, embora não tenha marcado. Na final, o time foi derrotado pelo Independiente (ARG). Quando chegou setembro, porém, tudo mudou. No dia 11, o exército chileno bombardeou o Palácio de La Moneda, em Santiago, a sede do governo.

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Salvador Allende declinou à rendição e, segundo testemunhas, cometeu suicídio. Assumiu o governo uma Junta Militar liderada por Augusto Pinochet. E, a partir dali, o posicionamento político tornaria tudo mais difícil para Carlos Caszely. Ainda naquele ano, a seleção estava nas Eliminatórias da Copa do Mundo e, para carimbar o passaporte, o time jogaria contra a União Soviética, em duas mãos. Na primeira, logo 15 dias após o golpe, empate em 0 a 0, em Moscou; Caszely pôs uma bola na trave. O clima, porém, era de consternação no grupo. O Estádio Chile, onde aconteciam partidas de futebol, servia como prisão para oposicionistas do regime. Muitos foram mortos ali mesmo, como o popular cantor Victor Jara que, assim como Caszely, era partidário de Allende. Na volta, os russos decidiram não jogar.

Assim, “La Roja” entrou em campo no dia 21 de novembro e, sozinho no campo, fez um gol simbólico para garantir a vitória. Foi assim que os chilenos se garantiram no Mundial. Após o jogo, o time foi convidado para ir a La Moneda, ao encontro do presidente Pinochet. Caszely, ferrenho opositor do general, e que ouvia pedidos de gente comum para interceder por familiares desaparecidos, iria encontrar-se com aquele que considerava culpado pelas mortes e sumiços de tantos em seu país. Todos se enfileiraram para cumprimentar o chefe do governo e o fizeram. Menos o craque. “Quando foi minha vez de cumprimentar, eu apertei as minhas mãos. Pinochet não teve mais nada a fazer do que sair andando”, disse Caszely. O gesto se tornou simbólico, mas mudaria para sempre sua vida e, por um certo período, sua imagem: de herói, virou vilão. Perdeu o posto de capitão para Figueroa, zagueiro do Inter de Porto Alegre, foi perseguido pela imprensa. E pior: antes da Copa, viu sua mãe, Olga Callado, ser presa e torturada por militares. No Mundial, um desastre: expulsão no jogo contra a Alemanha e eliminação precoce. A partir daí, o jogador deixou o país e foi jogar na Espanha. Por ordens “de cima”, o técnico do Chile foi proibido de convocar o jogador. Em 1988, no plebiscito popular que decidiria se Pinochet ficaria ou não por mais nove anos no poder, que Caszely fez seu gol mais decisivo. Ao lado da mãe, foi ativista contra a continuidade do general, que renunciaria dois anos depois. “Para mim, foi uma alegria o Chile dizer ‘não’ ao ditador. Era o ‘não’ a muitos anos de horror. Na seleção, não falávamos nisso, mas sabíamos que havia torturas, violações aos direitos humanos em nosso país. Sempre vão lembrar que enfrentei o ditador. Não gosto de ditaduras e para mim é um orgulho ter ajudado o Chile a ser um país mais democrático, mais feliz e menos escuro”.

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cantona Todo time que se preze acaba tendo que ter um jogador encrenqueiro, no estilo do irlandês George Best. Ou então um boleiro marrento, tipo o carioca Romário. Se juntar as duas características, melhor ainda. Seria mais completo, claro, se tal personagem jogasse muito, marcasse gols e, ainda por cima, caísse nas graças da torcida. Se somarmos a tudo isso o engajamento político e social, então encontramos Eric Cantona. Nos tempos de jogador, colecionava encrencas. Dentro e fora de campo. Seu gênio levou torcida e imprensa a lhe darem uma série de apelidos. L’Enfant Terrible foi um dos primeiros. O termo, em francês “criança terrível”, tem seu uso melhor explicado quando serve de exemplo para aqueles guris sem medo de autoridade nem de dizer coisas julgadas inconvenientes pelos adultos. Também foi chamado de Genious (Genioso), Bad boy (Garoto mau) e Eric, the King (Eric, o Rei). Uma das confusões mais marcantes aconteceu durante um jogo entre Manchester United e Crystal Palace, em 1995, quando deu uma voadora em Matthew Simmons, hooligan da equipe rival, após ser expulso e ouvir ataques xenófobos e racistas. “Foi um erro, mas a vida é assim, e eu sou assim. Às vezes, para a gente (jogadores), é um sonho poder bater neste tipo de torcedor”, falou após o ato, que o levou a uma suspensão de nove meses. Essa voadora foi só um episódio a mais numa carreira recheada de confusões, marcada por um temperamento forte e explosivo, resumida assim pelo prórpio.

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Se as brigas com colegas de equipe, adversários e até torcedores não deixavam transparecer seu lado engajado, depois que pendurou as chuteiras, o atacante passou a colecionar posicionamentos em defesa da liberdade e da democracia. Fez campanha contra os bancos e repasses de dinheiro de governos para instituições financeiras, além de militar em causas diversas, como a luta por habitação digna e ajuda a refugiados sírios.

Não é nenhum exagero afirmar que Cantona nasceu para jogar no Manchester United e também que o jogador foi o responsável pelo ressurgimento do clube. Afinal, o último título da primeira divisão havia sido em 1967, e após a chegada do francês foram quatro títulos em cinco temporadas. Tamanha é a sua importância para a história do clube, que em uma votação para a revista oficial dos Red Devils, Inside United, o atacante foi eleito pelos torcedores como o maior jogador da história do clube, recebendo a alcunha de “King Eric”. Sir Alex Ferguson publicou a seguinte homenagem em um de seus livros. “NÃO PRETENDO REBAIXAR NEM CRITICAR NENHUM DOS GRANDES OU BONS FUTEBOLISTAS QUE JOGARAM PARA MIM DURANTE OS MEUS 26 ANOS DE CARREIRA NO UNITED, MAS HAVIA APENAS QUATRO QUE ERAM DE CLASSE MUNDIAL: CANTONA, GIGGS, RONALDO E SCHOLES.”

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