Candelária Por Gabriel Castaldini
Chacina da Candelária - Rio de Janeiro/1993
Todos os direitos reservados a Gabriel Canhadas Pretel Gabriel Castaldini Castaldini Certificado de Registro ou e-mail: Averbação gabrielpretel@gmail.com Número de Registro: 493.794 website: Livro: 933 Folha: 378 www.gabricastaldini.com Fundação Bibliotéca Nacional celular: (+55 16)9 8122-8052
INT.EXT.SUÍÇA.DIA Surge uma cidade coberta por neve. É Zurique. Vemos a pista de pouso aeroporto. Um avião começa o procedimento de aterrissagem. Corta para uma mão enluvada que puxa uma mala de viagem por um longo corredor. Há muita gente no principal saguão do aeroporto. Um passaporte brasileiro é aberto e folheado até aparecer uma página em branco. Um carimbo estampa o nome do país, da cidade, do aeroporto e a data: Zürich, Switzerland, Zürich Flughafe (FRH), December 2021. INT.CAFETERIA.DIA Wagner surge em cena acomodando-se à mesa de uma cafeteria, em Berna. Ele recebe o menu. A neve cai e amontoa-se nos vidros das janelas. Ele percorrer o menu, escolhendo o que pedir. Crianças aquecem as mãos em uma lareira. O ambiente é bastante aconchegante. A cafeteira está lotada. Alguns clientes lêem jornais enquanto outros simplesmente conversam e bebem algo quente. O garçom volta à mesa e, com um inglês carregado de sotaque, inicia o diálogo: GARÇOM (amigavél/efusivo/sotaque alemão) Good morning, sir. How are you today? Wait... Don’t tell me. Let me guess. Hmmm... Let me see. You seem to be so happy, so so happy. Am I right? WAGNER (surpreso) C’mon, tell me the truth. Are you some kind of warlock or what? You’re right, my man. I’m so fucking happy today. GARÇOM (afável) Come on, dude... I can see it in your eyes. You’re transboarding happiness. So... May I ask why? WAGNER (sorrindo) I’m waiting for a friend. A special one!
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2. GARÇOM (cantarolando) "The love is on the air..." Well... Let me do my job. Your order, please. An Irish coffe, as usual? WAGNER (...) That’s it. You’re the man! GARÇOM (...) Of course I am. I’ll be back in a minute. .
O garçom recolhe o cardápio e sai de cena. Wagner olha para o celular. Curte a foto de uma mulher elegante no Instagram e olha por cima do próprio ombro, procurando por alguém. Ansioso, ele não reconhece de primeira, mas a mulher do Instagram acabara de entrar no café.Sorrindo, ele se levanta. Seus olhos lacrimejam e uma lágrima cai contornando-lhe o rosto. A mulher caminha em direção a ele. Wagner está de pé, ao lado de sua mesa, esperando-a de braços abertos. Aos poucos, a outra personagem vai ganhando nitidez e a gente pode, enfim, comprovar que se trata da mesma mulher do aeroporto. O nome dela é Yvonne. Ao chegar à mesa, ambos se abraçam, e a emoção de um reencontro depois de uma longa ausência é palpável. Wagner chora. YVONNE (emocionada) Ah, mas olha só! Que coisa feia é essa? Por que está chorando? Esses são modos de receber uma visita? Afinal, o momento é de alegria e não de choradeira. WAGNER (chorando/sorrindo) São lágrimas da mais pura felicidade que alguém pode sentir. Ainda mais ao rever uma pessoa... Pessoa, não... um anjo, que foi tão importante na minha vida. Os dois se sentam à mesa e Yvonne contesta: YVONNE (afável/estusiasmada) Imagina! Assim eu fico até constrangida. Mas me diga... Como (MORE) (CONTINUED)
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3.
YVONNE (cont’d) você está? O que tem feito? Vejo que deixou a barba. Ficou mais sério, e mais elegante também. Meu Deus... Como meu menino cresceu! WAGNER (...) Caramba... Eu tenho tanta novidade. Sei nem por onde começar. YVONNE (afável) Ah, eu também tenho... Novidades não me faltam. Até mesmo porque já faz quase 30 anos que a gente se viu pela última vez. Mas vamos começar por você. Estou louca para saber como está sua vida, o que você tem feito... WAGNER (emocionado) Puts... Tem tanta coisa! YVONNE (...) Já sei! Diz Yvonne, apontando para a única cadeira vazia que sobrou na mesa. YVONNE (...) Pode começar me dizendo para quem esta cadeira está reservada. O que você acha? WAGNER (tímido) Yasmine. YVONNE (divertindo-se) Com essa vergonha toda, nem precisa me dizer que ela é sua namorada. Ou será que eu devo dizer esposa?! Acertei? WAGNER (tímido) Como sempre! Yasmine é minha mulher... (CONTINUED)
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4.
Wagner mostra sua aliança. YVONNE (...) Olha só! Quem te viu, quem te vê. Tenho certeza que ela é muito especial. WAGNER (emocionando) Você não imagina o quanto! O garçom volta à mesa com o pedido que Wagner havia feito antes de Yvonne chegar. GARÇOM (efusivo) Oh, God... Your special. Enchanté. YVONNE (achando graça do sujeito) Mon plaisir. WAGNER (...) She is my brazilian friend you are used to hear about. GARÇOM (efusivo/bricando) Really? You are real, after all. I thought this guy over here had some medical issues. You know... He is little crazy. Well, I heard so many things about you. YVONNE (brincando) Good things, I hope. GARÇOM (...) Don’t worry. Just amazings things! Your order, madame. YVONNE (...) Something hot... I’d like a cup of coffee with some drops of cognac. GARÇOM (...) Nice choice. (CONTINUED)
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5.
O garçom deixa a mesa. YVONNE (divertindo-se) Gente, que figura de garçom! Ao mesmo tempo em que os dois amigos conversam, notamos a presença de uma terceira pessoa que chega à cafeteria. A mulher procura por alguém, move a cabeça de um lado para o outro. Assim como todo o resto do cenário, a personagem não está nítida, pois Yvonne e Wagner permanecem com o foco. Corta para o rosto da nova personagem. Ela olha para o interior da cafeteria, vagueando os olhos em todas as direções, à procura de seu esposo. Wagner abana a mão para que Yasmine o veja. Ela finalmente o vê e sorri, surpresa, e logo entra no estabelecimento, caminhando rumo à mesa onde Yvonne está com o amigo. Wagner fica de pé para recebê-la. Yvonne faz o mesmo. Wagner recebe a mulher com um abraço e um beijo e a apresenta para Yvonne. As duas se abraçam e, quando se separam, Yvonne continua com as mãos nos ombros de Yasmine, que inicia a conversa: YASMINE (afável) Fico muito feliz em te conhecer! YVONNE (surpresa) Você fala protuguês! Mas que surpresa mais agradável. YASMINE (...) Certa vez... Não faz muito tempo... Passei alugns meses visitando o Brasil. São Paulo, Rio, Florianópolis... Acabei aprendendo um pouco do idioma. O resto aprendi com Wagner. Os três se acomodam à mesa. O garçom figura volta, trazendo o pedido de Yvonne. Yasmine aproveita e pede por um... YASMINE (...) Hot chocolate, please. O garçom assente com a cabeça, anota o pedido em um tablet e deixa a mesa.
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6. YVONNE (curiosa) E como vocês se conheceram? YASMINE (...) Foi durante as aulas de inglês. Wagner era muito irritado, estressado. Ele tinha motivos! Não deixava ninguém se aproximar dele, desconfiava de tudo. Parecia estar sempre com medo. Mas um dia, quando ele estava sozinho, me sentei do lado dele e comecei a encher ele com perguntas. Ele sorriu e começou a conversar comigo. Desde aquele dia a gente foi se tornando cada vez mais íntimos, e depois do primeiro beijo, começamos a namorar.
O garçom retorna com o pedido de Yasmine e o coloca sobre a mesa, saindo de cena logo em seguida. Ela prova a bebida, coloca a caneca de vidro sobre a mesa e sorri timidamente olhando de Wagner para Yvonne. O rapaz entrelaça seus dedos com os de sua noiva. WAGNER (emocionado) Toda noite, quando eu me deitava para tentar dormir, eu pensava se iria abrir os olhos na manhã seguinte. Depois de tudo que passei, ter encontrado Yasmine foi um presente. Ela foi fundamental na minha vida. Graças a ela eu fiz amigos, encontrei a esperança de voltar a viver e recuperar cada segundo perdido. É como se eu tivesse morrido no Brasil, naquela calçada, e renascido aqui. Toda vez que ela olha para mim e sorri, eu tenho certeza de que estou vivo. YVONNE (emocionada) O mais incrível é que estamos aqui... Mesmo depois de tudo o que passamos, estamos aqui. Por mais difícil que seja, certas lembranças devem ser apagagas. Pena que ainda não inventaram remédio pra isso.
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7.
WAGNER (emocionada) Esquecidas? Como? Até hoje eu tenho pesadelos. Às vezes, chego a saltar da cama, parece que estou em queda livre. Quando me lembro daquela madrugada, arrepios percorrem pela minha coluna de cima a baixo, como se fossem cobras restejando em mim. Me lembro daqueles vermes descarregando suas armas contra um bando de criança... Com lágrimas nos olhos e bastante nervoso, Wagner continua: WAGNER (um tanto irritado) ...sem moral, que dormiam abraçadas umas às outras, pra afastar. qualquer tipo de medo. Deus... euinda sinto o cheiro do sangue. POW, POW, POW, POW. Close da boca de Wagner reproduzindo o som dos disparos. YVONNE (emocionada) Também me lembro daqueles dias lutuosos, de todo aquele sofrimento... A água vermelha escorrendo pelos degraus no dia seguinte! Corta para um dos olhos de Wagner que, ao piscar, derrama algumas lágrimas. Um clarão domina a cena, iniciando uma história que será contada no passado. Flash Back. EXT.RUA/IPANEMA.DIA - 1993 A cena começa revelando a orla de Ipanema com um belo entardecer. No quadro vemos o morro Dois Irmãos, o mar, as ilhas e toda a paisagem conehcida do bairro. Um carro de luxo para em um semáforo da avenida Vieira Souto. Vemos os momento em que o disco passa do amarelo para o vermelho. Quem dirige é uma mulher notavelmente rica, ou melhor dizendo, podre de rica e bem-vestida... Óculos de grife, (CONTINUED)
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8.
brincos e colar de ouro, batom vermelho, maquiagem e cabelos louros incrivelmente lisos, sua pele é alva como a neve. A ricaça aproveita o sinal fechado para procurar uma música no rádio. Close na mão que mexe no rádio, o que nos permite ver a data no computador de bordo: Maio/1993. A condutora narcisista ouve a canção "Garota de Ipanema", deixa o rádio sintonizado em tal estação e começa a cantarolar ao mesmo tempo em que desce o quebra-sol para se admirar no espelho e arrumar o cabelo. Enquanto sorri para a própria imagem, uma pequena mão bate no vidro de sua janela, o que a faz soltar um grito de susto. Ao olhar, a mulher vê Édinho, uma criança de aproximadamente nove anos, vestida com roupas surradas e pés descalços, que queimam no asfalto quente. Ainda assustada e bastante irritada, a motorista abre a janela. Ao mesmo tempo em que o vidro vai descendo, o reflexo dela vai desaparecendo e o rosto da criança vai ganhando mais nitidez. Quando a janela está completamente aberta, a granfina retira os óculos do rosto e, sem ao menos dar uma brecha para Édinho falar, descarrega sua fúria: MULHER RICA (estúpida e irônica) Escuta aqui, seu “vermezinho”... O que você pensa que é, pra ir socando essa mão imunda no meu carro? ÉDINHO (acuado) Desculpa, tia. Eu só queria pedir um dinheiro pra mim comprar comida. MULHER RICA (estúpida) E o vira-lata ainda tem a audácia de me chamar de tia!? ÉDINHO (estupefato) É que eu não sei o seu nome. MULHER RICA (estúpida/irônica) É claro que você não sabe meu nome. Você nem pertence ao meu mundo. A mulher abre um dos porta-objetos do carro e encontra várias notas e moedas de diversos valores. Ela pega três moedinhas.
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9.
MULHER RICA (estúpida) Toma, aqui. Hoje é seu dia de sorte! A mão... Abre! Édinho abre uma de suas mãos e a estende para poder receber as moedas. A mulher, com nojo de tocar em Édinho, solta as moedas no ar. MULHER RICA (histérica e com nojo) Não toca em mim! O nojo e o desprezo estão impressos no rosto angelical da motorista, cujos traços, à primeira vista, nos fazem crer que são mais compatíveis com o amor e a compaixão, o que causa um contraste aterrorizante. Édinho não consegue conter as três moedas ao mesmo tempo em sua mão e uma delas cai no asfalto, próximo à porta do veículo importado, fazendo com que ele se curve para apanhá-la. Com um altivo sorriso de desdém e prazer desenhado em seus belos lábios, a ricaça apenas observa o menino, numa semiótica mostrando que rico se acha superior ao pobre e pensa que este deve reverenciá-lo. ÉDINHO (triste) Obrigado. MULHER RICA (irônica) Nossa, olha só. Você sabe falar "obrigado"? Eu não acredito que andaram adestrando vocês. Quem vê até pensa que é gente. De nada! Vai comprar um osso pra roer e, da próxima vez, vê se assusta a tua mãe. ÉDINHO (esperançoso/triste) Você sabe quem é minha mãe? Sabe onde ela está? A criança indagou simplesmente, mas havia um vislumbre de tristeza em sua voz, que deixou a motorista sem reação por um breve instante. Ela, claro, não perde a pose, somente olha fixamente para Édinho enquanto coloca os óculos italianos de volta no rosto.
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10.
O vidro da janela começa a subir e, na superfície transparente, como no início da cena, o reflexo da mulher volta a surgir. E quando os reflexos de ambos estão lado a lado, é possível ver que os olhos do menino estão marejados. O semáforo muda do vermelho para o verde, a motorista acelera e, aos poucos, conforme o carro vai ganhando velocidade, a imagem de Édinho deixa o quadro. É possível ver pelo retrovisor que o menino acompanha o carro com a cabeça. Corta para a palma da mão onde estão as moedas. Ressentido com o que acabou acontecer, Édinho fecha a mão com muita força, como se amaldiçoasse as moedas que lhe causaram tamanha humilhação. Édinho suspira. EXT.CALÇADÃO/IPANEMA.DIA Cabisbaixo, Édinho volta a caminhar pelo calçadão de Ipanema. No quadro, através do espaço entre os carros que passam pela avenida Vieira Souto, vemos o menino que anda sozinho, pensativo, até chegar a um banco e sentar-se de frente para o mar, chorando. Yvonne entra em cena. A assistente social não hesita em acomodar-se no mesmo banco de Édinho. Com a mão no ombro do menino, dá início a mais um diálogo. YVONNE (compreensiva) Não chora! Aquela mulher não merece as tuas lágrimas, meu pequeno. Nem umazinha sequer! Deixa pra lá. ÉDINHO (triste) Você viu o que ela fez? YVONNE (complacente) Vi, sim. Eu estava passando e vi. Não ouvi o que ela disse. Mas... ÉDINHO (triste) Por que todo mundo faz isso com a gente que é pobre? YVONNE (...) O nome disso é preconceito!
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11.
ÉDINHO (curioso/triste) E que coisa é essa, tia? Ai, desculpa. Foi sem querer, eu não queria te chamar assim. YVONNE (afável) Pode me chamar de tia o quanto você quiser. Hum, como eu posso te explicar o que é preconceito?! É o jeito que algumas pessoas têm de olhar para quem é diferente delas. São pessoas que não sabem admirar as diferenças e acreditam que todo mundo deve ser como elas. São como... Yvonne se levanta, dá alguns passos em direção à praia e se curva para apanhar uma concha que está na areia, perto da sarjeta do calçadão. YVONNE (...) ...essa conchinha, aqui. Elas se fecham em seus mundinhos e não se importam com o que se passa do lado de fora. São pessoas que só pensam nelas mesmas. Entende? Corta para a concha que Yvonne segura fazendo uma pinça com os dedos polegar e indicador. Semiótica para exemplificar o ostracismo social. ÉDINHO (recuperando o ânimo) Entende! Igual aquela moça boba do carrão, né? YVONNE (sorrindo) Isso mesmo. Mas tem pessoas que não são como ela, pessoas que sentem amor pelo próximo. ÉDINHO (duvidando) Xiii, mas é difícil!
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12. YVONNE (tom amigável) Então você pode me dizer por que estou aqui, do seu lado, sentada de frente pra esse marzão de meu Deus, em vez de te tratar feito a moça boba do carro?
No fotografia vemos Yvonne e Édinho sentados lado a lado, conversando de frente para o mar. O banco com as personagens está posicionado na extremidade direita do quadro, para que, desta forma, a imensidão do oceano ao fundo e o prodigioso ocaso possam dar um tom feérico e divino à cena e a impressão de que nada foge aos olhos de Deus, como se uma luz estivesse prestes a se acender no fim do túnel daquele menino morador de rua, como se um sopro de esperança lhe tocasse a face. ÉDINHO (surpreso) É verdade! YVONNE (afável) Viu só?! Te disse... A propósito, meu nome é Yvonne, e o seu? Ao se apresentar, Yvonne estende a mão para Édinho. ÉDINHO (surpreso) Você quer dar a mão pra mim? Minha mão é suja. Ela disse... YVONNE (amigável) Tô achando que você não quer dar a mão pra mim. Mais do que depressa, Édinho aperta a mão de Yvonne. Tal gesto faz com que os dois sorriem. ÉDINHO (contente) Meu nome é Éder, mas meus amigos me chama de Édinho. YVONNE (...) Tá, aí! Éder... Me amarrei no nome. E será que eu também posso te chamar de Édinho?
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13.
ÉDINHO (feliz) Pode! Claro que pode. YVONNE (...) E quantos anos você tem? ÉDINHO (confuso/pensativo) Eu não sei, não. O pessoal que mora comigo fala que eu tenho uns dez, ou nove, ou onze, ou... YVONNE (benévolo) Já é quase um moço! Mas me diga uma coisa, Édinho. Você está com fome? ÉDINHO (...) Sempre! YVONNE (...) Você almoça comigo? Hoje é por minha conta! ÉDINHO (...) Sérião? Almoçar com você? YVONNE (bondosa) O que você gostaria de comer? ÉDINHO (empolgado) Sabe aqueles lanchão, que a gente vê nos papel pregado nas parede, na rua... que vem com batata? YVONNE (...) Sei, sim. E também sei que tem um lugar aqui pertinho onde vende esse lanchão. Topa?!
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14.
ÉDINHO (empolgado) Já é... YVONNE (contente) Êêêêêê... Assim que eu gosto! Yvonne e Édinho deixam o banco de mãos dadas. EXT.RUA/IPANEMA.DIA Quando dobram uma esquina qualquer, Yvonne e Édinho topam com Wagner. O rapaz veste camiseta cavada branca, calças sujas de moleton e sandálias de borracha. Ele carrega uma placa de tecido com armação de arame onde há alguns artesanatos fixados, tais como pulseiras e brincos. YVONNE (surpresa) Wagner, que surpresa! Vejo que está seguindo meus conselhos... Vendendo sua arte. Gosto de te ver assim. WAGNER (sorridente) Tô, mesmo. Às vezes também vendo água no trânsito. E continuo lavando carros no sinal vermelho. Assim vou indo, vendendo meus biscates, como você mesma diz. ÉDINHO (espantado) Você vende biscates, mano!? Yvonne e Wagner dão risadas com a pergunta de Édinho. Yvonne os apresenta e, mostrando a placa, Wagner explica o termo biscates. WAGNER (...) Biscates são essas paradas aqui, olha! E falando nisso... Wagner leva a mão direita até um dos bolsos de sua calça e retira uma linda pulseira feita com búzios e linhas de juta. O rapaz estende a mão com o adorno para Yvonne. Close na mão delicada da assistente social que retira o objeto da palma calejada de Wagner.
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15.
YVONNE (feliz) Mas que coisa mais linda... Você um artista! WAGNER (...) Desde quando preto é artista nesse páis, dona Yvone? E isso não é nada perto de tudo que você já fez e ainda faz por mim. YVONNE (...) É linda! Você amarra para mim? WAGNER (...) Um nó forte como a sua coragem. Ainda enquanto conversam, Yvonne leva o punho esquerdo (já com a pulseira) na direção de Wagner que, encostando a tela de artesanatos em sua cintura para ter as mãos livres, amarra o objeto no pulso da amiga. Close nas mãos de Wagner amarrando a pulseira enquanto diz a seguinte frase: “Um nó forte como sua coragem”. Depois de feito, Yvonne puxa o punho de volta e admira o presente enquanto o ajeita da forma que melhor lhe convém. A câmera se afasta. Podemos ver os três amigos. YVONNE (contente) Muito obrigado, meu querido! Em forma de agradecimento, te convido para ir com a gente numa lanchonete, aqui pertinho. WAGNER (sorrindo) E tem como recusar? YVONNE (...) De jeito nenhum!
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INT.LANCHONETE.TARDE Há muita gente na lanchonete, gente saindo pelo ladrão. Assim que entram no estabelecimento, Yvonne, Wagner e Édinho, por sorte, topam com um quarteto de amigos que está deixando a mesa que ocupava. A assistente social aponta para a mesa que acaba de ficar disponível. Wagner não espera e já caminha para o local, certo de que podem perder a mesa, caso demorem. Todo mundo olha para Wagner. Não demora nada e os mesmos olhares miram Yvonne e Édinho, que, morto de vergonha e com medo, tenta se esconder atrás das pernas de sua nova amiga. Ele segura firme no cinto das calças de Yvonne e espia aquele bando de faces julgadoras, desconfiado. YVONNE (calma/amigável) Ninguém vai te fazer mal. ÉDINHO (preocupado/vergonha) É o que você pensa! YVONNE (calma/amigável) Fica com o Wagner. Eu prometo que não vou demorar! ÉDINHO (preocupado/vergonha) Jura, juradim? YVONNE (otimista) Juro, juradim. Gentilmente, a assistente social empurra o menino pelas costas na direção de Wagner. Lembrando da ricaça do carro dizendo que ele não pertence ao mundo dela, Édinho segue com a cabeça baixa até a mesa do seu amigo. Édinho corre até a mesa e chega no exato momento em que Wagner tenta colocar a placa com os artesanatos debaixo do móvel. Sem sucesso, o rapaz decide encostar o objeto em uma das cadeiras que está livre, bem ao seu lado. Édinho parece assustado, seus olhos estão arregalados e esquadrinhando cada centímetro da lanchonete. Enquanto Yvonne não volta, o menino praticamente cola sua cadeira na de Wagner.
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17.
As pessoas lançam olhares de escárnio, preconceito e reprovação. Alguns clientes cochicham enquanto apontam para os convidados de Yvonne. Um dos funcionários passa no centro da lanchonete e, de soslaio, vê Wagner e Édinho, porém, sem se incomodar, dá de ombros e segue caminhando. ÉDINHO (tímido) Por que todo mundo tá olhando pra gente, como se a gente fosse bicho? WAGNER (importunado) Eles têm medo da gente! Mas não liga, não, é só ignorar. Finge que eles é um coco de cachorro, que a gente desvia na calçada sem dar muita atenção. O funcionário continua andando, quando, simplesmente, mais ao fundo, uma mão segura o braço dele e o impede de prosseguir. Uma senhora de aproximadamente 65 anos, que está sentada em uma mesa com mais quatro mulheres, puxa o homem pelo braço, fazendo com que ele se curve em sua direção. No quadro, Wagner e Édinho estão em primeiro plano e, por entre eles, é possível ver a ação que se desenrola mais ao fundo da lanchonete; a senhora cochicha e faz sinal de reprovação com a cabeça. O funcionário cochicha algo de volta, assume novamente uma postura ereta e deixa a mesa das senhoras. Ele coloca algo no bolso da frente da camiseta /uniforme, o que permite ver a identificação de gerente; seu nome: Fábio Canhadas. Tomado por uma estupidez que antes não existia e estreitando os olhos até se tornarem duas fendas detestáveis, o gerente segue na direção de Wagner, que logo percebe que algo desagradável está a segundos de explodir. WAGNER (apreensivo) Vai dá merda! ÉDINHO (medo) Por que cê tá falando isso? Ao chegar na mesa dos garotos, o gerente vai logo falando:
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18.
GERENTE (estúpido) Vocês não podem ficar aqui. ÉDINHO (medo) E por que não? GERENTE (ríspido/arrogante) Simplesmente não é ambiente para vocês dois. E vocês nem estão consumindo. Agora, por favor, saiam da lanchonete. E não deixem de levar suas tralhas e esse cheiro de gambá com vocês! O gerente aponta a saída e, neste exato momento, duas mãos colocam sobre a mesa dos meninos uma bandeja com três lanches, três copos grandes de refrigerante e uma porção generosa de batatas fritas. É possível notar quão irritada Yvonne ficou com a atitude do gerente só de olhar para o seu rosto, cujos olhos estão imersos em cólera. YVONNE (cólera/sem gritos) Quem é que não está consumindo? Yvonne é ríspida com as palavras. O gerente fica assustado com o modo como ela reage. Ele fica com medo e nota que a assistente social é segura no modo de falar. Olhando Yvonne de alto a baixo, o gerente repara nas roupas que ela veste (diferentes das de seus acompanhantes). Espantado, ele arregala os olhos, imaginando que se trata de alguém engajado em causas sociais. YVONNE (cólera/sem gritos) E por que aqui não é ambiente para os dois? Yvonne continua firme em sua postura, com bastante atitude e um leve toque de rispidez, enquanto o gerente permanece sem reação, simplesmente congelado e com olhos ainda arregalados. Curiosos, todos os clientes e funcionários da lanchonete observam a discussão.
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19. YVONNE (brava/irônica) Já sei, não responda! Aqui só é permitida a entrada de estúpidos, assim como você. Não é isso? Ou você acha que esse seu crachá de gerente faz de você um ser superior a eles? GERENTE (desconsertado) Por favor, senhora, me perdoe. Fiquem à vontade.
Envergonhado, o gerente deixa a mesa sem dizer mais nada e vai para o fundo do estabelecimento, rumo a uma porta ornamentada com uma placa verde-oliva em que se lê "limpeza/lixo". Porém, antes de alcançar a maçaneta, a mão que o puxara anteriormente repete o mesmo gesto, e ele para por alguns segundos. Vemos quando o gerente enfia a mão no bolso de sua camiseta/uniforme e retira uma nota de alto valor, que entrega para a senhora que o detém pelo braço. Fica, portanto, evidente que ele recebera uma gorjeta para expulsar Wagner e Édinho da lanchonete e, como não teve sucesso, foi obrigado a devolvê-la. Ele entra no cômodo que desejava ardentemente como esonderijo para sua vergonha e bate a porta com um pouco de força às suas costas, de modo que a placa "limpeza/lixo" balança consideravelmente. Corta para Yvonne... YVONNE (injuriada) Mas que gentinha difícil, viu?! Yvonne entrega os lanches. Em segundo plano é possível ver a senhora que tentou comprar o gerente. Ela deixa a lanchonete e vai embora com suas amigas. Com muita vontade, Édinho morde seu lanche. ÉDINHO (quase em êxtase) Hummmmm! Yvonne, Wagner e Édinho comem, brincam, conversam... Aqui, apenas os gestos são enfatizados, não há intervenção do som. O trio se diverte, aproveita o momento ao máximo. À volta, todos os olham. (CONTINUED)
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20.
De repente um "piiiiiiiiiiiii" traz o som de volta à cena. É o relógio de Yvonne. WAGNER (curioso) Que horas é? YVONNE (como um lamento) Já são 17h30. O tempo passou e a gente nem percebeu. WAGNER (surpreso) Caralh... mba! Preciso ir nessa. Ainda dá pra mim vender mais alguma coisa. YVONNE (amigável) Eu também tenho que ir, mas antes vou andar um pouco pela orla de Ipanema. Você me acompanha, Édinho? ÉDINHO (empolgado) Não precisa perguntar duas vezes. WAGNER (...) Amanhã vou estar em Copacabana, vendendo minhas coisa. Se vocês tiverem por lá, de bobeira, me dá um oi. Do lado de fora da lanchonete, já na calçada, Wagner se despede de Yvonne e Édinho. O rapaz segue caminhando pela calçada, enquanto Yvonne faz sinal para um taxista. O mostorista para e a assistente social abre a porta do táxi para Édinho e informa o destino: YVONNE (...) Vieira Souto, por gentileza! Enquanto Yvonne circunda o veículo para entrar pela outra porta traseira, o motorista faz um careta de desdém ao ver Édinho pelo espelho retrovisor e, em seguida, solta um discreto muxoxo (tsc).
21.
INT.LOJA DE ROUPA.NOITE O táxi para na esquina de uma rua qualquer com a Vieira Souto. Yvonne e Édinho saltam do veículo e ficam de frente para uma loja de roupa. YVONNE (afável) Vamos entrar? ÉDINHO (medo/ressentido) As pessoas vai rir de mim? YVONNE (...) Eu não vou deixar. Yvonne e Édinho entram na loja. Claro, há alguns olhares de preconceito. A presença do garoto incomoda alguns clientes, mas todos o tratam aparentemente bem. Principalmente os funcionários que já conhecem Yvonne. Yvonne compra uma bermuda, uma camiseta e um par de tênis para Édinho, que sai do provador já com as roupas novas. ÉDINHO (feliz) Me amarrei, tia. YVONNE (sorrindo) Que bom, pois agora é tudo seu, meu bem! ÉDINHO (empolgado) Verdade? Já posso ficar com ela? YVONNE (sorrindo/Feliz) Se você prefere assim... Tudo bem, então. Enquanto informa para Édinho que ele ganhou a roupa de presente, Yvonne toca a ponta do nariz do menino com o dedo indicador. Ela vai até o caixa e paga à vista, em dinheiro, e os dois saem da loja. Em uma sacola plástica, Édinho leva a roupa velha.
22.
EXT.CALÇADÃO/IPANEMA.NOITE Yvonne e Édinho caminham de mãos dadas pelo calçadão quando um vendedor de sorvetes passa por eles. Édinho olha, mas não diz nada. Yvonne percebe. YVONNE (...) Que tal se a gente tomasse um sorvete, para fechar essa nossa tarde com chave de ouro? ÉDINHO (empolgado) E eu sou besta de falar não?! De chocolate. YVONNE (...) Dois picolés de chocolate. O sorveteiro entrega os picolés, e Yvonne paga por eles. Édinho sobe em um banco que está próximo a ele, de frente para o mar. Yvonne chega logo em seguida. Com a boca suja de chocolate após algumas lambidas no picolé e observando as ondas que quebram na praia, Édinho começa um novo diálogo. ÉDINHO (sério) Lá na lanchonete, o Wagner disse que eu podia confiar de olhos fechados em você. Disse que você é um anjo. Você é mesmo um anjo, tia? YVONNE (fingindo surpresa) Anjo?! Eu?! Cadês as minhas asas? Eu sou gente, igualzinha a você. Tenho um coração igual a este daqui! Corta para o dedo de Yvonne, que toca o coração de Édinho. ÉDINHO (sério) É que é difícil acreditar que alguém assim é gente de verdade. Eu nunca tive um sorvete inteiro só para mim.
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CONTINUED:
23.
YVONNE (...) Mas você ainda vai ver... Assim como eu, há outras pessoas que sentem um amor sem fim pelo próximo. ÉDINHO (duvidoso) Mas é difícil, né?! YVONNE (pensativa) Hummm, é, mas não é impossível! Eu acredito, por exemplo, que todo mundo é capaz de ajudar um ao outro, e estou certa de que a gente pode se organizar para melhorar nossa cidade, nosso país e até mesmo, quem sabe, todo o planeta! Por que não? Basta querer e ter força de vontade. Mas esse governo... ÉDINHO (curioso) Tem certeza que você não é um anjo que veio lá do céu? Édinho aponta a mão lambuzada de sorvete rumo ao céu. YVONNE (...) Bem que eu queria ser um anjo, viu?! Sair voando, por aí... Já pensou? Os dois caem na risada. No quadro, Yvonne e Édinho estão de frente para o mar. Pessoas passam correndo pela orla, jovens surfam etc. ÉDINHO (curioso) Faz tempo que você ajuda os outro, tia Yvonne? YVONNE (...) Já faz um tempinho. A tia tá ficando velha!
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24.
ÉDINHO (curioso/empolgado) Me conta mais?! YVONNE (relembrando/melancolia) Quando eu tinha 13 anos, bem pequenininha, assim como você, comecei a trabalhar como voluntária em um lugar que se chama Instituto Benjamin Constant. Lá, eu ajudava os ceguinhos do Rio. E ainda com 13 anos eu ajudava crianças deficientes na Associação Pestalozzi, também aqui no Rio. ÉDINHO (curioso/espantado) Sem cobrar nada? Que maneiro! O que mais? YVONNE (enfatizando) Bom, mesmo, mesmo... quem me incentivou a trabalhar ajudando as pessoas e a sentir um enorme prazer por isso, foi um menininho que se chamava Bibi! ÉDINHO (curioso/pensativo) Bibi?! YVONNE (...) Sim, Bibi. Ele morava em Canoa Quebrada. ÉDINHO (espantado) Ele morava numa canoa quebrada!? Esse tá pior que eu... Puta que pariu. YVONNE (achando graça) Não, não esse tipo de canoa! Ao explicar que não se trata de uma canoa convencional, a assistente social faz cócegas na barriga do menino.
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25.
YVONNE (...) Canoa Quebrada é uma cidadezinha que fica lá em cimão do Brasil, em um lugar chamado Ceará. Lá no nordeste! ÉDINHO (rindo/curioso) Ah!!! Entendeu... E o que aconteceu? YVONNE (um tanto melancólia) Eu já tinha 18 anos e estava participando de um projeto chamado Rondon, quando fui a Canoa Quebrada. E foi lá que, pela primeira vez, me encontrei com Bibi, e também com várias outras crianças. Mas com o Bibi foi diferente, foi especial! Ele acabou se transformando em um exemplo de vida pra mim. Recordo que Bibi mal conseguia falar. Sempre estava em silêncio. Eu só o vi falar quando chegou em mim e perguntou: “Minha irmãzinha vai morrer?”. Disse isso porque na casa dele só tinha um toquinho de vela. Nunca me esqueço daquela cena. Bibi me levou até uma casinha, na beira do mar... Estava escuro... O bebêzinho estava no chão, enrolado em algumas cobertas, e choraaaaando, choraaaaando. Bibi pediu ajuda para cuidar da irmãzinha dele, porque ele não sabia mais o que fazer. E foi então, graças a Bibi e a sua coragem, que eu decidi que iria sempre ajudar todo mundo que estivesse próximo a mim. No final, quando Bibi sorriu, o sorriso mais puro e verdadeiro que já vi, é como se uma mão tivesse feito carinho na minha alma, no meu coração. Descobri que sorrisos como aquele são o combustível da minha vida.
26.
EXT.INT.CANOA QUEBRADA/FLASHBACK.DIA Ao contar sua história para Édinho, Yvonne revive a cena. Ela olha para uma grande onda que arrebenta na praia. Corta para o exato momento em que a porção de água quebra na areia, e quando ela recua, um novo cenário é revelado: Canoa Quebrada, CE. A princípio, o vilarejo é visto do alto. A câmera desce rumo ao teto de uma das casas como se mergulhasse do topo de um trampolim profissional. Em seguida, a cena se desenrola dentro desta residência, onde um grupo de homens e mulheres -- incluindo uma Yvonne bem mais jovem, 18 anos -- conversa e brinca com diversas crianças carentes. Corta para Bibi, um menino franzino que está afastado das outras crianças, apenas observando calado e com os olhos atentos em tudo o que acontece no interior daquela residência. Sem que a percebam, Yvonne sai da casa com lágrimas nos olhos e vai caminhar pelas vielas de Canoa Quebrada. Yvonne para em uma das ruazinhas para tomar um pouco de ar e, aparentemente, reflete sobre como deve ser a vida de alguém que se doa 100% ao próximo. E só sai do devaneio assim que percebe que há uma mãozinha puxando a barra de sua camiseta para baixo. Ao olhar na direção do puxão, Yvonne vê Bibi. E é quando ele pergunta: “Minha irmã vai morrer?” Porém, não se ouve a voz do menino, pois a frase é narrada por Yvonne. Ao fundo, em BG, pode-se ouvir o som do mar, vozes e outros ruídos. São lembranças que lhe vêm à memória enquanto conta a história para Édinho. A pergunta quase faz os olhos da assistente social saltarem para fora das órbitas. Em uma fração de segundo, como se recobrasse a consciência após o devaneio, Yvonne toma fôlego, e os dois saem correndo. Bibi vai na frente, puxando pela mão a mulher que ele nunca havia visto. Eles correm como loucos pelas vielas de Canoa Quebrada, passam por diferentes lugares e pessoas. Quando chegam à praia, ainda correndo, Bibi aponta para um casebre bastante humilde um pouco mais adiante, afastado das outras casas do vilarejo, cujo teto é feito com folhas de sapé. Os dois correm pela beira do mar... Corta para o casebre. Yvonne e Édinho param de frente para uma porta de ripas de madeira muito velhas e cheias de cupim. (CONTINUED)
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27.
Apressado, o menino abre a porta que, de tão podre, quase se desfaz em sua mão. Eles entram. O piso é de cimento e está todo quebrado. Há muita areia dentro da casa. O lusco-fusco já tingia o céu de laranja, deixando tudo à meia-tinta, e como não havia eletricidade na casa, o interior estaria inteiramente mergulhado na escuridão se não fosse pela tênue luz amarela tremeluzente que emanava de um pedacinho de vela de sete dias que derretia no chão. Também no chão, perto daquilo que restava da vela, havia um bebê de 9 meses, aproximadamente, que chorava compulsivamente. Yvonne e Bibi se ajoelham ao lado da bebezinha. Por causa da iluminação produzida pela vela, a sombra de Yvonne, assim como a de vários objetos e das duas crianças, é projetada na parede do casabre. Close no pavio da vela, que, ardendo em chamas, já estava próximo do fim (semiótica -- o fogo representando a vida do bebê que estava por um triz, quase para se apagar). Corta para Yvonne. Com o a bebê no colo, ela pede para que Bibi abra a porta da casa onde estavam no início do flashback, onde os voluntários do projeto Rondon brincavam com as outras crianças. Eles entram... Todos olham para Yvonne. Corta de volta para Ipanema... EXT.CALÇADÃO/IPANEMA.NOITE ...onde Yvonne e Édinho continuam a conversa. YVONNE (emocionada) Sempre fico emocionanda quando me recordo de Bibi. ÉDINHO (tirando sarro) Não vai chorar, hem, tia? YVONNE (animada) Opa... Pronto, engoli o choro! Depois de algumas risadas, ela olha para o relógio em seu punho.
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28. ÉDINHO (brincando) Tia, você sabia que o Rio de Janeiro é o único lugar do mundo onde os pobre tá por cima dos rico? YVONNE (curiosa) Ah, é?! ÉDINHO (divertindo-se) É, em cima dos morro!
Brinca Édinho, ao mesmo tempo em que aponta o dedo para o céu, para indicar a posição dos morros. Yvonne e Édinho dão risadas com a piada. Yvonne olha novamente para o relógio. YVONNE (triste) Que chato! Eu tenho que ir embora. Onde você mora? ÉDINHO (...) Mas já?! Eu moro lá na Candelária, com meus amigo! YVONNE (curiosa) Você mora na Candelária?! ÉDINHO (...) Não é dentro da igreja, é perto, do lado de fora, na calçada. Por que você não vai me visitar qualquer dia? YVONNE (...) Adorei a ideia. ÉDINHO (empolgado) Então por que não vai agora, comigo? YVONNE (triste) Agora não posso, meu anjo. Eu tenho que ir embora.
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29. ÉDINHO (...) Pô, que pena. O pessoal ia se amarrar em você. YVONNE (...) E se eu for amanhã, bem cedinho, acordar vocês? ÉDINHO (duvidoso) Na moral? Eu duvido... mas tá combinado. YVONNE (...) Quantos amigos moram com você? ÉDINHO (pensativo) Iiiii... Não sei, não, acho que uns 50, ou 60... Por aí. YVONNE (contente) Então avisa que eu vou chegar acordando todo mundo! ÉDINHO (alegre) Vou avisar! YVONNE (...) Então, combinado. Te vejo amanhã de manhã.
Yvonne e Édinho ficam de pé. YVONNE (...) E meu beijo? Yvonne se curva na direção de Édinho e toca a própria bochecha com o dedo indicador. Após dar o beijo que ela pedia, os dois vão para lados opostos. E alguns passos depois, a assistente social para, olha para trás e confirma o encontro. YVONNE (..) Amanhã, bem cedinho! Não vai me deixar sozinha. (CONTINUED)
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30. ÉDINHO (feliz da vida) Eu vou tá te esperando você. Te juro pra você.
Na fotografia, em um plano bastante aberto, Yvonne e Édinho seguem cada um o seu caminho. Entre as personagens, no espaço que os separam, podemos fitar uma lua espetacular que vai ganhando o céu do Rio de Janeiro. Desta maneira, os dois seguem até saírem de cena, um pela direita do quadro e o outro pela esquerda, de modo que, por segundos, a tela é preenchida com mais uma paisagem feérica da capital fluminense. INT.BANHEIRO/CASA/YVONNE.DIA Um novo dia amanhece. E uma série de stock-shot deixa isso evidente ao mostrar o nascer do sol e os primeiros raios do dia acertando algum monumento e/ou pontos turísticos da cidade maravilhosa. O vapor produzido pela água quente faz com que o único espelho do cômodo esteja completamente embaçado, de modo que imagem alguma é refletida nele. Corta para a mão que fecha a torneira do chuveiro e, em seguida, desliza pela superfície pálida da lâmina de vidro, deixando rastros de dedos por onde vemos o rosto da assistente social Yvonne. Ela olha fixamente para os próprios olhos refletidos no desenho brilhante que os dedos deixaram e que, lentamente, vai ficando outra vez embaciado. Antes de a palidez reassumir o posto, Yvonne imprime um sorriso de determinação nos lábios. INT.METRÔ.NOITE Um grupo de quatro adolescentes maltrapilhos corre para uma estação de metrô. Por um breve instante é possível ver apenas os pés se movendo em velocidade. O quarteto entra na estação deslizando pelo corrimão e, sem dificuldade alguma, salta as catracas que separam os usuários do transporte público da plataforma de embarque. Quando saltam, podemos ver as mãos que, apoiadas nas barras de metal, impulsionam o corpo para o alto, para romper o obstáculo. O tilintar de objetos metálicos ganha ênfase. Risadas e conversas estão em BG. Quando estão quase para chegar de fato na plataforma, eles escutam o sinal que indica que as portas dos vagões serão fechadas em alguns segundos. Ele se apressam. Corta para o trem. O apito soa novamente. Eles chegam na plataforma e saltam para dentro do vagão mais próximo. As portas se fecham e o metrô parte.
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31.
Todos os lugares estão ocupados, e há, no mínimo, uma dúzia de pessoas em pé no corredor que separa as fileiras de assentos. Conforme os amigos vão para a frente do vagão, os passageiros seguram as bolsas com mais força que o habitual, cobrem os bolsos e ficam atentos a seus objetos de valor, tais como óculos, colares e anéis. Já na extremidade dianteira do interior do vagão, o quarteto observa a todos os passageiros, que lhes retribuem com olhares apreensivos, temendo se tratar de um grupo de assaltantes. Beto, que notavelmente é o mais velho dos amigos, vasculha um dos largos bolsos de sua calça surrada com uma das mãos. Tal gesto faz com que os passageiros fiquem apavorados, achando que o rapaz vai sacar uma arma ou algo que sirva como arma. No primeiro banco, o mais próximo do quarteto, há um casal de idosos. Com medo, os velhinhos seguram a mão um do outro com força, talvez por esperarem pelo pior. Porém, para alívio geral, Beto retira quatro bolinhas pequenas, cujo tamanho de todas lembra o das que são usadas nas partidas tênis, mas com a diferença de que essas são ligeiramente menores. Close em uma senhora que coloca a mão sobre o peito e suspira aliviada. BETO (bêbado/drogado) Boa noite! A gente vamo fazer uma apresentação pro ceis. Beto parece estar alterado psicologicamente, talvez drogado ou bêbado, talvez as duas coisas. E por isso não presta lá muita atenção no malabarismo que tenta executar, de modo que todas as bolinhas não demoram para fugir de suas mãos e rolar pelo chão sob seus pés. Carlinhos, o mais novo da turma, talvez 13 anos, recolhe as bolinhas o mais rápido que pode e as devolve para Beto, que tenta novamente fazer uma apresentação digna de alguns trocados no final. E, desta vez, com olhos atentos e movimentos quase automáticos, ele consegue manter o malabarismo por alguns segundos, o suficiente para arrancar um sorriso forçado do casal de idosos. Mas não demora muito para que Beto erre novamente. Irritado, o rapaz pega a bolinha que está mais próximo de seu pé e, violentamente, a atira contra a parede metálica do metrô, que ricocheteia e quase acerta uma senhora que está sentada no assento reservado para idosos. A senhora se assusta e começa a rezar baixinho, apertando a cruz de um (CONTINUED)
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32.
rosário em forma de chaveiro que tem em sua bolça de mão -close em tal gesto. Passageiros olham com medo, mas não fazem nada senão reprová-lo com a cabeça. BETO (gritando/raiva) Desgraça! Eu não sirvo pra bosta nenhuma. Beto tenta se sentar no chão, em um dos cantos da extremidade dianteira do vagão onde estava ainda há pouco, mas acaba caindo, o que o irrita ainda mais. Ele dá um soco contra a própria perna, abaixa a cabeça e, nervoso, respira de forma ofegante. Carlinhos se ajeita ao lado de Beto. Simultaneamente a ação Beto, Manu e João dão alguns passos à frente e, como se pisassem sobre um palco, começam a cantar. A voz de João, porém, é imperceptível, pois, na verdade, ele está ali, de frente para todas aquelas pessoas, apenas para dar apoio para a sua namorada Manu, que começa cantarolando timidamente antes de soltar a voz. MANU (cantando/feliz) “Não sei porque você se foi /Quanta saudade eu senti /E de tristeza vou viver /E aquele adeus, não pude dar /Você mudou a minha vida /Viveu, morreu na minha história /Chego a ter medo do futuro /E solidão que em minha porta bate, iê... /Eu gostava tanto de você/iê iê iê iê iê iê eu/Gostava tanto de você / Eu corro e fujo desta sombra/ Em sonhos vejo esse passado/ E na parede do meu quarto /Ainda está o teu retrato/ Não quero ver pra não lembrar /Pensei até em me mudar /Lugar qualquer que não exista O pensamento em você E eu gostava tanto de você...” O ruído metálico dos trilhos se transforma na melodia da música que Manu canta. Enquanto rouba a atenção dos passageiros, a garota lança um olhar apaixonado para João.
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33.
Os passageiros dão de ombros quando Carlinhos vai para o fundo do vagão, e sequer notam o plano do menino: furtá-los enquanto estão distraídos com a música ao vivo. Ao som de “Gostava tanto de você”, de Tim Maia, e com muita cautela para não ser descoberto, Carlinhos aproveita para furtar duas carteiras (a de um empresário engravatado e a de um estudante), várias notas que estão à vista nos bolsos e bolsas e outras que, mesmo não estando à vista, ele julga fácil de serem apanhadas. Algumas pessoas (na maioria jovens e estudantes) arriscam a cantar. Alguns são tímidos e apenas cantarolam. Quando termina de cantar, Manu rouba um beijo do namorado e recebe uma pequena salva de palmas dos mais jovens do vagão, que, também, gritam e assobiam. O casal de namorados pede dinheiro para os passageiros que estão mais próximos e recebem alguns trocados. O trem para e as portas se abrem. O grupo tem poucos segundos para sair do vagão. Ao colocarem as mão nos bolsos, os passageiros do fundo do vagão notam que seus pertences sumiram e começam a gritar. PASSAGEIROS (gritando/bravos) Ladrão!... Fui roubado!... Ladrão!... Minha carteira!... Roubaram minha carteira!... Pega ladrão!... Bando de macaco dos infernos!... Por causa de vocês que o país é essa merda!... Filhos da puta! BETO (debochando/gritando/drogado) Valeu, bando de otário! Vão tomá no meio do olho do cu. Chupa aqui ó! Retruca Beto, abaixando as calças, todo debochado, já do lado de fora do vagão, na plataforma. O resto do grupo salta e, dando pulos e gritos de felicidade, corre para junto do rapaz. Na esperança de reaverem seus pertences, alguns passageiros também saltam do metrô e correm atrás de Manu, João, Beto e Carlinhos. Quando percebem que estão sendo seguidos, os quatro amigos correm ainda mais depressa e cada um em uma direção.
34.
EXT.CALÇADA.NOITE Ofegantes por causa da corrida, os amigos se reencontram em um local ermo, bastante escuro, em uma rua onde há alguns prédios em construção. Beto continua um pouco alterado. Os amigos tomam um pouco de ar e, em círculo, sentam-se todos no chão, colocando bem à frente de suas pernas o que cada um conseguiu roubar. Enquanto observa João contar o dinheiro, Beto acende um cigarro de tabaco. Carlinhos fuma junto com o amigo. JOÃO (irritado) Como sempre, o que a gente conseguiu não dá pra nada! MANU (cabisbaixa) Novidade! JOÃO (decepcionado) Isso aqui pra cada... BETO (irritado) Miúdo, passa pra cá a carteira e o resto das coisa que você roubou no vagão. Anda, porra. Anda logo. Beto chama Carlinhos de “miúdo” por causa de seu tamanho e peso, bastante franzino. Cuidadosamente, Carlinhos enfia a mão no bolso esquerdo de sua velha bermuda jeans e retira uma carteira (vimos que ele furtou duas) e algumas notas amassadas. CARLINHOS (bravo) Toma! Foi o que deu pra mim pegar. BETO (surpreso) Puta que me pariu, mano... Até que é uma boa grana! Logo após abrir a carteira e ver o montante de dinheiro, Beto fica feliz, talvez surpreso seja a melhor palavra, a ponto de bagunçar o cabelo de Carlinhos num gesto de simpatia.
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35.
Manu começa a contar novamente. Ela soma e divide com todos. Os amigos ficam de pé. Com o dinheiro em mãos, Beto olha para Carlinhos e pergunta: BETO (curioso) O que você vai fazer com essa grana? CARLINHOS (desconfiado) Vou comprar alguma coisa pra mim comer. Por quê? BETO (intimidando) Então toma isso... Eu fico com o resto! Diz Beto ao entregar apenas duas notas de valor baixo para Carlinhos. CARLINHOS (espumando de raiva) Não, isso não pode... Fui eu que roubei, seu filho de uma racha larga. Eu tô com fome! Tá ficando louco? BETO (irônico) É?! Tá com fominha, tá? E quem disse que isso é problema meu? Quer que eu te dou leitinho, quer? Dá uma mamadinha aqui... Beto aperta o pênis com força ao insultar Carlinhos. E, ainda, antes de fugir sem ser impedido por ninguém, ele empurra o amigo de corpo franzino pelo ombro. Sem prever o empurrão, Carlinhos cai estatelado no chão e começa a chorar, apenas a observar com ódio o marmanjo que corre no meio da rua levando seu dinheiro. Manu e João ajudam Carlinhos a ficar de pé. CARLINHOS (gritando com ódio) Você vai morrer, desgraçado!!! CARLINHOS (choramingando) Eu tô com fome...
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36.
MANU (brava/gritando) Idiota! Babaca! Manu se ajoelha ao lado de Carlinhos, que ainda chora, e dá a Carlinhos um pouco mais de dinheiro. MANU (afável) Toma, vai comprar algo pra comer. Mas vê se não vai comprar porcaria e nem bebida! Nem cola. Fala lá para o pessoal da Candelária que logo a gente tá de volta. CARLINHOS (triste) Porra, Manu, você é incrível. Pode deixar que eu aviso o pessoal. Depois de agradecer, Carlinhos vai embora. Ele corre até dobrar uma esquina. A sós, João propõe um convite a Manu. JOÃO (empolgado) Vamo lá pro alto? Ele pergunta ao mesmo tempo em usa o queixo para apontar a fachada de um prédio em construção. Rápido close na fachada do prédio. MANU (surpresa) Que ideia é essa, João? Andou fumando esterco? Se alguém pegar a gente, a gente tá ferrado! JOÃO (animado) O Rio de Janeiro inteirinho debaixo do nosso pé. MANU (...) Já me convenceu. Ainda vou tomar no meu cu se eu não parar de te acompanhar nessas merdas.
37.
EXT.PRÉDIO EM CONSTRUÇÃO/PORTARIA.NOITE Manu e João estão parados na calçada, de frente para a entrada do prédio em construção. Manu olha para o topo do prédio. JOÃO (...) Vai entrando... Me espera lá em cima! Eu não vou demorar. MANU (perplexa) Quê?!?!?!?! Mas nem por um caralho eu entro aí sozinha. JOÃO (malandro) Eu não demoro... Prometo! MANU (perplexa) Meu Deus do céu. Bom... Só não demora! Correndo e sem dar explicações, João deixa a namorada sozinha. Enquanto isso, com habilidades de um felino, Manu dá um jeito de passar pelo emaranhado de tábuas e tablados de madeira que tenta impedir o acesso ao prédio. Quando finalmente consegue transpor a barreira, Manu dá de cara com um enorme saguão, onde diversos entulhos deixam claro que as obras da construção estão paradas já há um bom tempo. Daqui e dali pendem teias de aranha, grandes como redes de dormir, que balançam suave e fantasmagoricamente à corrente de ar. Do alto, de um buraco na parede, desce um raio de luz esbranquiçada. Pouco a pouco, os olhos da menina se habituam à escuridão. Neste lugar, onde o tempo parece ter parado, a única coisa viva é uma enorme aranha que deixa um rastro de pegadas impressas no pó. Aquele montão de coisas agora inúteis (vigas de madeira, sacos e mais sacos de cimento, latas de tinta, ferramentas etc.) espalhados por tudo quanto é canto, exigia uma atenção extra de Manu. Qualquer deslize, mesmo que fosse uma piscada de olhos mais demorada que o de costume, poderia resultar em uma queda.
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38.
O clima e o aspecto do local são angustiantes, e isso desperta uma inquietação em Manu, que notamos em seu rosto. Para ela, o local passa a ser sufocante, como se as paredes respirassem todo o ar do ambiente. Os pelos dos braços dela se ouriçam e um arrepio percorre sua espinha de cima a baixo. Antes de correr rumo às escadas, a fim de chegar o mais rápido possível ao último andar daquele edifício, a namorada de João diz para si mesma: MANU (angústia) Já não basta os fantasmas assombrando a minha vida... Isso aqui deve tá cheio deles! Ela dispara em direção à uma grande porta e começa a subir os degraus de uma escada enorme no mesmo rítmo. INT.PRÉDIO EM CONSTRUÇÃO/FACHADA/ÚLTIMO ANDAR.NOITE Debruçando-se sobre o beiral de um vão enorme na parede do último andar do prédio (local onde provavelmente iria haver uma imensa janela ou vidraça), Manu admira a paisagem estonteante: a cidade incrivelmente iluminada sob um céu abarrotado de estrelas. Com os olhos brilhando de fascínio, a menina sorri. Corta para João. O rapaz chega com uma garrafa de vodca barata e dois saquinhos de amendoim, que comprou com o dinheiro do furto ao metrô. Sem que Manu perceba, João coloca a mão na cintura dela. Manu leva um baita susto. Provavelmente, diante àquela vista incrível, estava perdida em sonhos bons. Com um sorriso malandro estampado no rosto, João balança a garrafa de vodca e os sacos de amendoim no ar. Manu retribui o sentimento de benevolência. JOÃO (contente/malandro) Supresa! MANU (divertindo-se) Você só pode tá de sacanagem comigo. Eu me cago toda de medo entrando aqui e você chega com pinga e amendoim?
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39. JOÃO (divertindo-se) E a patricinha do Leblon queria o quê? Um coquetel da camarão bem cafona?
Rindo, Manu pega um dos sacos de amendoim que está na mão do namorado. Ambos ficam próximos ao enorme vão na parede. Eles observam as luzes lá embaixo e o céu logo acima. A lua cheia, que mais parece um pingente valioso e cinematográfico, dá um brilho especial à noite. Com a boca cheia de amendoim, Manu fala com o namorado. MANU (...) Você já viu noite tão bonita? Parece que tudo foi desenhado por algum desses pintores bacanas, que vendem um monte de rabisco por um absurdo de grana. Mais dinheiro do que a gente vai ver em toda nossa vida! JOÃO (desabafo) É, a noite tá bonita! Olhando daqui de cima, até parece que o Rio é uma cidade perfeita, né, não? Mas só aqui do alto. Essa merda de cidade ainda tá longe pra cacete de ser a cidade maravilhosa, igual fala naquela música. Todo mundo sabe que agora mesmo tem algum miserável morrendo em alguma esquina lá embaixo. Mas todo mundo prefere se fazer de cego e fingir que tá tudo bem. Tá todo mundo cagando pra todo mundo, e boa, vida que segue. MANU (pensativa/triste/esperançosa) Pois é... Por isso que eu gosto de sonhar, mesmo quando eu tô acordada, porque, na realidade, a vida nunca vai ser fácil pra gente, que é pobre e preto. Mas o sonho... É como se fosse um tipo de droga do bem. Uma droga que, em vez de matar, ajuda a viver. João abre a garrafa de vodca, bebe direto no gargalo e continua a conversa... (CONTINUED)
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40.
JOÃO (triste/inconformado) O povo lá embaixo não enxerga nem as coisa que tá bem na frente do nariz... Não se preocupa com as pessoas. Se acham o máximo por ter grana, mas eles não é capaz de ter respeito. Eles faz de conta que vive em outro mundo. Parece essa pecinha de plástico, que as criança rica usa nos jogo. Peões de plástico! Um bando velho babaca e moleques idiota. MANU (triste) Minha mãe dizia que a gente não pode perder a fé. Hoje, eu me pergunto que fé é essa. Já cansei de ser tratada como resto de alguma coisa podre... Às vezes, eu acho que Deus se esqueceu de mim. Na verdade, não só de mim... Acho que Ele fechou os olhos para todos que vivem na mesma que a gente. As crianças... Com esses problemas, é difícil acreditar que Deus cuida mesmo da gente. É difícil... Manu retira algo que estava escondido embaixo do tecido de sua camiseta, algo que está preso em seu pescoço com auxílio de cordão. Corta para o velho e encardido escapulário que Manu mostra para João. MANU (tristonha) Presente da minha mãe! JOÃO (...) Mas no meio dessa merda toda eu posso dizer que eu sou um puta sortudo. Sabe por quê? Com uma garota linda, que faz a gente sorrir, (MORE) (CONTINUED)
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41.
JOÃO (cont’d) que é gostosa, que transa como ninguém... Todo fardo fica mais leve. Dá até pra rir das desgraças. MANU (safada/com segundas intenções) Olha que assim vou ficar mal acostumada. Depois não reclama! JOÃO (galanteador) Pode ficar do jeito que você quiser. Mal acostumada ou não, você sempre vai ser minha ... E de mais ninguém! João coloca a garrafa sobre o beiral onde estava debruçado e, segurando Manu pelo cabelo, começa a beijá-la. Sem perceber, o rapaz esbarra na garrafa, que cai do último andar do prédio. Ambos não dão importância e continuam a se beijar. Sem fazer questão de ser delicado, João arranca toda a roupa da namorada. Nua, Manu tira a camiseta de João e, em seguida, a calça, deixando-o completamente nu. João deita Manu sobre um saco de cimento. Eles fazem sexo "hardcore". A câmera se afasta, revelando o tamanho e a desordem do local onde eles estão. E através do vão na parede, a lua parece espiar o casal apaixonado. EXT.PRAIA/COPACABANA.TARDE DA NOITE Stock-shot! Em uma curta série de imagens vemos o reflexo da lua no mar, a avenida Atlântica e algumas pessoas correndo na calçada mais famosa do Rio. Eis que um ônibus circular para por alguns segundos em algum ponto deste endereço. Do interior do transporte coletivo saltam Manu e João... Sentado na praia, João observa enquanto Manu usa um palito de sorvete para escrever algo na areia, a uma razoável distância das ondas do mar. Close no palito riscando o solo úmido. Manu se afasta e é possível ler a seguinte frase: "ATÉ DEPOIS DO FIM"
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42.
MANU (curiosa) Sabe o que está escrito? JOÃO (irritado) Você sabe que não, porra. Vai zoar com a minha cara? Fogo na buceta... MANU (afável) Tenta! JOÃO (mais irritado) Você sabe que eu não sei ler... MANU (...) Então eu leio: “Até depois do fim”. Além de ler enfatizando as palavras, Manu aponta para cada uma delas enquanto as pronuncia. Corta para Manu sentando-se ao lado de João. Ela sorri para o namorado. JOÃO (desdém) E o que isso quer dizer? Virou espírita agora? É a senha pra entrar no Nosso Lar? MANU (afável) Besta! Quer dizer que eu vou te amar até a morte e depois dela. João agarra Manu e a deita na areia. João beija namorada e o clima esquenta. Beijos e afagos sob a luz do luar e ao som do mar. Uma onda mais forte alcança a frase escrita por Manu, poupando apenas a palavra "FIM". EXT.CALÇADÃO/COPACABANA.NOITE De cabeça baixa, aparentemente mergulhado em reflexões, Wagner caminha sozinho pelo calçadão de Copacabana, carregando aquela mesma placa com artesanatos.
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43.
O som de seus passos, junto ao dos carros e ao do mar, compõe a trilha sonora do monólogo que acontece dentro da cabeça do rapaz. WAGNER (transtornado/perdido em pensamentos) ... Eu só queria entender por quê. Por que estou vivo quando quero estar morto? Por que todo mundo me olha com cara de bosta? Por que eu sou essa desgraça toda? Eu não aguento mais viver assim... Não suporto mais esse peso fedendo a merda sobre o meu ombro. Nada nessa vidinha miserável dá certo pra mim. Qual o sentido disso tudo? Por que eu ainda respiro? Por que estou aqui, andando em Copacabana, olhando essa placa, olhando a cara dessa gringa estranha? Tanto sofrimento... Tanto amigo morrendo! Eu só queria dormir e não acordar mais. Simples assim: dormir e não acordar. Mas já que Deus não fez a gente com um botão de liga/desliga, por que você simplesmente não se mata, Wagner? Claro, você não tem coragem. Se joga de algum lugar... Melhor ainda, olha o tanto de carro que tá passando na avenida, se joga na frente de um. Vem vindo um ônibus. É tua chance. Se joga na frente. Você não tem coragem de se matar, é um bosta de um covarde. Mas quer saber? Você é preto, pobre e vive na rua, já, já você morre. E do jeito que você é, vai ser uma morte lenta e bem doída. Por favor, Deus, me tira daqui. Eu não aguento mais essa provação. Não aguento ter que dormir e despertar na manhã seguinte. E o pior não é nem acordar numa calçada, debaixo de algum toldo ou com um balde de água fria na cara... O pior é sair da doçura dos meus pesadelos para ter que encarar a realidade. Não suporto mais... Não quero mais ter que forçar um ou dois ataques de riso pra consolar minha tristeza. Eu só queria ser alguém na vida. Mas o que é ser alguém? Alguém como (MORE) (CONTINUED)
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44.
WAGNER (cont’d) esse cara aí, todo engravatado e com jeito de rico. Ou esse outro rapaz, que viaja o mundo com uma mochila nas costas. Ah, ele é branco, por isso. Eu só queria poder rir de verdade, queria poder ter um lugar pra chamar de lar. Deus, você já viu propaganda de margarina? Era o tipo de vida que eu queria. Se bem que eu duvido que exista alguma família parecida com aquilo. E se existir, não é coisa pra preto, não. Tá aí... Eu nunca vi preto nos comerciais de margarina. Como se preto não comesse isso. Me ajuda, Deus! Eu Te imploro. Não suporto mais. Olha pra mim! Eu não sou nada, na verdade eu acho que eu sou menos que nada, eu sou uma coisa, uma coisa sem nome. Cala a boca, Wagner! Vai ali e chama aquele PM de filho da puta, que está tudo resolvido. Ele te dá um tiro na cara e pronto, você livra o mundo dessa tua existência insignificante. Desgraça! Eu quero paz. Mas o que é paz? Qual é o sabor da paz? De que jeito isso faz a gente se sentir? Livre? Contente? Paz... Que bosta é essa?! Deve ser outro produto caro, que só os ricos podem comprar. Será que toda essa porra tem um sentido, ou será só Deus tirando sarro da minha cara? Deus, você gosta de preto? Por que tanta desigualdade, tanta briga, tanto ódio? Mas que vida desgraçad... MANU (sorrindo) Ooooooiiiiiiiii?!?! Tá com a cabeça no inferno ou tá chapado? WAGNER (assustado) Ahhh, oi, Manu, e aí? Bem que eu queria tá no inferno. Deve ser melhor que aqui, longe dessa... E aí, João, beleza, parça?
(CONTINUED)
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45.
Wagner cumprimenta os amigos. Abraça João e Manu ao mesmo tempo. WAGNER (curioso) O que tão fazendo, perdidos por aqui, uma hora dessa? MANU (tom jocoso) A gente estava em um mirante! Zoeira... A gente estava em um prédio em construção. E você? WAGNER (...) Eu?! Nem sei o que eu tô fazendo. Estava tentando vender alguma coisa e... Neste exato momento, a conversa dos amigos é interrompida abruptamente por causa do som estridente de pneus cantando no asfalto. Instantaneamente, numa reação quase automática, Wagner, Manu e João olham na direção de onde veio o som, e veem duas viaturas de polícia que, em alta velocidade, viram em uma esquina para entrar na avenida Atlântica. Devido à rapidez, uma das viaturas, no momento de fazer a conversão, sobe com o pneu traseiro na sarjeta da calçada. E como se assistíssemos à cena através da perspectiva das personagens, vemos que esse veículo está com o vidro da janela dianteira trincado na altura do rosto do passageiro. Já a outra viatura, que vem logo atrás, tem a lanterna traseira esquerda quebrada. Há também amassados e arranhões por toda a carroçaria de ambos os carros. Wagner tenta reparar nos dois ocupantes da viatura que segue à frente, mas não tem sucesso. Ele faz o mesmo com a dupla de PMs da segunda viatura, mas outra vez fracassa. MANU (assustada) Não quero nem imaginar que merda aconteceu! JOÃO (...) Acho que ninguém quer.
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46.
WAGNER (...) Melhor não. JOÃO (...) Então, Wagner, e a praia? Vamo nessa? WAGNER (...) Não, valeu... Tô de boa! Vou procurar alguma outra coisa pra fazer. Só não sei o quê! MANU (...) Você quem sabe. A gente vai indo. Fica na paz. Wagner deixa o casal e segue seu caminho. Manu e o namorado voltam a caminhar pelo calçadão... pega o palito de sorvete que está sobre um banco.
Ela
MANU (pensativa) Você também achou que o Wagner tava com uma cara esquisita? JOÃO (indiferente) Vai ver ele acordou com o cu virado do avesso. Depois de mais alguns passos, João agarra Manu pelo braço e a leva no colo até a praia. Distraída, Manu solta um gritinho de susto e começa a rir nos braços do namorado. IMPORTANTE! A ação se passa antes da cena anterior (cena 16). EXT.BAILEFUNK/FAVELA.NOITE Como se a sequência que sobem que fazem dançam ao
câmera corresse pelas vielas da favela, uma de imagens dá início a essa nova cena. São imagens e descem escadas, que correm em um único sentido, curvas e, por fim, passam por entre as pessoas que som do funk.
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47.
Ao passar entre as pessoas, a câmera se afasta para o alto mirando o chão, e vemos uma multidão que dança loucamente lá embaixo. Em fração de segundo, a câmera mergulha de volta, bem no centro da aglomeração. Nesse momento o volume do batidão carioca fica ainda mais potente. A câmera continua a correr por entre as pessoas quando temos um close em um nariz que aspira o risco de cocaína improvisado sobre o dorso da mão. A câmera volta a correr e temos outro close: na chama de um isqueiro que queima a ponta de um cigarro de maconha. Outros caminhos são percorridos até que a câmera fecha em uma boca que puxa o trago de outro cigarro de maconha, o que faz duplicar o tamanho da brasa. Mais imagens em movimento... Close em alguns dedos queimados que colocam fogo em uma pedra de crack. Muita gente rica e branca consumindo drogas. Sobem o morro para isso. Também é possível ver -- com nitidez -- pessoas que fazem das garrafas de bebidas alcoólicas seus copos. Novamente, temos a câmera em movimento e outro close: uma arma presa à uma cintura. Vários beijos e gestos provocantes que fazem alusão ao sexo. Corta para o DJ que anima a multidão: DJ (animado/gritando) E o marimbondo picou... MULTIDÃO A buceta da vovó!!! -- Referência bibliográfica: “O Mundo Funk Carioca”, de Hermano Vianna. A frase é repetida algumas vezes e em ritmos diferentes. O DJ para e a música continua. As pessoas voltam a dançar. INT.ESCRITÓRIO/TRAFICANTE.FAVELA.NOITE Esta nova cena se passa a poucos metros de onde acontece o baile funk, e para que isso fique claro, o som do batidão ainda é audível, mesmo que em baixo volume. De vez em quando, também pode-se ouvir o riso alegre de alguns indivíduos ou a conversa exuberante de amigos bêbados. A ação acontece dentro de uma casa, em um cômodo que aparenta ser uma espécie de "escritório" onde drogas são comercializadas e dívidas são cobradas.
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48.
Corta para uma mão que entrega algumas notas amassadas para a mão do traficante. Neste momento, apenas as mãos estão enquadradas, e na que recebe o dinheiro há uma pesada pulseira de ouro e um saquinho plástico recheado com cocaína. Em plano aberto, vê-se o traficante entregar a droga para o cliente: um rapaz de pele clara, jovem, bem-vestido, supostamente rico e morador de algum bairro nobre da cidade. Ele deixa a sala já aspirando um pouco da substância ilícita que acabara de comprar. Sobre o telhado dos casebres, olheiros munidos de binóculos e armas vigiam as entradas do morro, prontos para avisar ao chefe do tráfico caso a polícia apareça e, assim, evitar o prejuízo causado pela interrupção momentânea do comércio de drogas. Corta para o interior do escritório, onde um outro rapaz branco tenta negociar uma dívida antiga. Em um rápido close cuja finalidade é fazer ver o rasgo na parte externa da carteira de couro marrom deste sujeito, vemos o momento em que ele apanha um chumaço de dinheiro para entregar ao traficante. CHEFE DO TRÁFICO (nervoso) Isso não paga nem metade daquilo que você me deve! VICIADO (alterado/drogado) Então enfia no seu cu e coloca na conta, porra! Mas eu preciso. CHEFE DO TRÁFICO (emputecido) Você está abusando da sorte, maluco! VICIADO (nervoso) Já falei pra colocar na minha conta! Pago tudo em uma semana. Uma semana, nem um dia a mais, nem a menos. Se eu não pagar, você me mata e pronto. CHEFE DO TRÁFICO (irônico) Matar você? E ficar no prezuízo?
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49.
Empunhando uma arma, o chefe do tráfico fica enfurecido e salta da cadeira em que está sentado para investir contra o viciado. Num piscar de olhos, ele agarra o sujeito pelo pescoço e o pressiona contra uma das paredes do cômodo. Como se não fosse suficiente, o chefe aperta os maxilares do devedor com extrema violência e, com os olhos embebido no veneno do ódio e abusando do sarcasmo, ele diz: CHEFE DO TRÁFICO (sarcástico/irônico) Escuta aqui, seu filho da puta... Seu verme do caralho. Abre a boca. Abre a boquinha, abre... Abre essa merda de boca, seu desgraçado! Ele não resiste por muito tempo e, após alguns segundos, acaba abrindo a boca. Sem perder a chance e fazendo questão de não ser delicado, o chefe do tráfico então enfia seu revólver na goela do rapaz que, respirando de forma espantosamente ofegante, teme pela morte ao fixar os olhos no cano metálico que projeta-se para fora de sua boca. Entre uma ânsia e outra, o sangue começa a escorrer. Sentido o pavoroso sabor do metal e da pólvora, ele tenta falar, tenta implorar por sua vida. VICIADO (desesperado/engasgando) Para, porra... Pelo amor de Deus, para. Eu vou te pagar. Prometo. O chefe do tráfico retira a arma da boca do sujeito, não sem antes fazer o sujeito vomitar, e o puxa para junto do próprio corpo. Violentamente, o lança contra a parede. Em seguida, antes de cair com a força do impacto, o rapaz é novamente agarrado pelo pescoço, sendo mais uma vez obrigado a sentir o gosto da arma em sua garganta. CHEFE DO TRÁFICO (raiva) Você acha que tá falando com a vadia da tua mãe, é?! Você tá ficando louco? Posso sentar o dedo nessa porra e acabar com sua vidinha miserável agora mesmo! Você não vai ter nem chance de gritar. E mesmo se gritar, quem vai te ouvir com esse barulho todo? Hem, seu merda? Presta atenção em (MORE) (CONTINUED)
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50.
CHEFE DO TRÁFICO (cont’d) como você fala comigo? Tá devendo, vai ter que pagar. Com a conversa terminada, o traficante pega o viciado pela cabeça e o joga contra uma porta. O choque é tão forte, que as dobradiças não aguentam. E com porta e tudo, o rapaz cai no chão de um pequeno banheiro, onde fica praticamente imóvel, apenas cuspindo sangue e tossindo. O chefe enfia a cara do rapaz dentro da privada, que está suja de merda. Faz isso repetidas vezes, com um misto de ódio e prazer no olhar. Sem dar as costas para o devedor, o chefe dá alguns passos para trás e, ao chegar na sua mesa, abre uma das gavetas e apanha algo. CHEFE DO TRÁFICO (raiva) Você tem uma semana pra pagar tudo o que me deve, e se não pagar... Tá vendo esse ferro aqui? Vou ter o prazer de enfiar isso no meio do teu cu e puxar o gatilho algumas vezes. Vai chover merda pra todo lado. Ou então, estouro essa sua cara de bichinha! E não adianta tentar se esconder... Eu te acho até no quinto dos infernos. As drogas que eu vendo é pra quem tem grana, é pra filhinho de papai da zona sul. Não é pra gente da tua laia, não. Seu gusano! Um tanto desorientado por causa das agressões recém-sofridas, o rapaz parece simplesmente não dar atenção para as coisas que o traficante diz, e isso deixa seu algoz ainda mais enfurecido. CHEFE DO TRÁFICO (irônico) Tenho um jeito de fazer você acordar... É rapidinho. Quer ver? Ele simplesmente enfia a cabeça do rapaz na privada mais uma vez e, agora, dá a descarga. De fato isso faz com que o sujeito desperte, recobrando a consciência. CHEFE DO TRÁFICO (irônico) Viu só? Infalível.
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O traficante balança dois saquinhos de plástico no ar: um com cocacína e outro com comprimidos. CHEFE DO TRÁFICO (irônico/raiva) É essa merda que você quer? O viciado fica hipnotizado, completamente vidrado no conteúdo interno daquelas embalagens translúcidas, tal como um cão faminto que olha para um pedaço de carne na churrasqueira. Com a paciência esgotada, o traficante lança os saquinhos na cara do sujeito, que ainda está caído chão do banheiro. Basta olhar para as mãos trêmulas para notar o desespero e a ansiedade do indivíduo. E é justamente por causa desta tremedeira que ele deixa cair um pouco de cocaína no piso do banheiro quando tenta abrir a embalagem que continha a droga. Reprovando a si mesmo, ele não pensa duas vezes antes de esfregar o nariz no chão do banheiro. Após aspirar o pó que caíra, ele se levanta e corre para a porta de saída. O traficante olha em direção a ele e grita: CHEFE DO TRÁFICO (irritado/reprovando) Desgraçado! Filho da puta! INT.BAR/FAVELA.NOITE Dois amigos estão sentados à uma mesa do lado de fora do bar, na calçada. Um deles é Carlos Eduardo, ou simplesmente Cadú, como é conhecido entre os amigos. É um rapaz jovem e bastante bonito, de corpo sarado, pele preta e olhos esverdeados. Se não fossem os tropeços e as circunstâncias da vida, ele facilmente arrumaria trabalho como modelo fotográfico. É também amigo inseparável de Léquinho, que o considera como um irmão de sangue. Léquinho, que visivelmente está a um passo da embriaguez, levanta seu copo na direção de Cadú, propondo-lhe um brinde. LÉQUINHO (alegre) Um brinde... Meu irmão da rua! Sem medir a força, Léquinho bate forte no copo do amigo, o que fazer jorrar uma quantidade generosa de cerveja para fora do copo, que cai gelada sobre o colo de Cadú.
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CADÚ (exclamação) Caralho!!!!! Ele enfim gritou, parando com um sobressalto e uma exclamação de absoluta surpresa. Claro que mesmo o grito tendo sido em tom amigável, algumas pessoas olharam para ver o que aconteceu. E é então que Cadú usa um sorriso para agradecer ao dono bar pela saideira. Faz muito calor... A principal rua da favela, onde acontece o baile funk, está lotada. A multidão anda de um lado para o outro, sem rumo aparente. As vielas parecem formigueiros gigantescos, e cada vez chega mais e mais gente para curtir o batidão. Não muito longe da mesa de Cadú e Léquinho, porém no interior do boteco, há duas mulheres desacompanhadas que conversam e gesticulam de forma bastante animada. Elas usam uma malha colada ao corpo até a altura da cintura, que só faz realçar suas curvas, e uma espécie de camiseta branca extremamente decotada e curta. Parecem dançarinas. Tanto a loura quanto a negra são notavelmente bem mais velhas que Cadú e Léquinho, mas sem dar a mínima importância para isso, os dois amigos começam a lançar olhares cheios de segundas intenções para elas, olhares que são retribuídos. Alguns clientes do bar fazem uma roda de samba e começam a tocar instrumentos e a cantar, e a melodia deste ritmo se mistura com o som do funk que vem da rua principal. Discretamente, para que ninguém mais no bar veja, a mulher negra sorri para a amiga e, olhando para Léquinho e Cadú, usa o canudinho de sua caipirinha para simular sexo oral, apenas para tirar uma com a cara deles, que não param de babar nelas. Léquinho sente um volume inesperado em sua calça. LÉQUINHO (convencido) Hoje, a noite vai render, meu irmão! Duas pirinhas dando mole pra gente... Olha lá, elas não tira o olho da gente. Devem tá louquinha pra chupar um pau gostoso... E vai ser o meu. Vou dar uma mijada e vou aproveitar pra mim apresentar pra elas.
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CADÚ (alertando) Você tá chapado, vê se não vai fazer merda! LÉQUINHO (irônico) Chapado? Não, eu só tô alegre, tô de boa. Vou mijar! CADÚ (divertindo-se) Mijar?! Sei... Léquinho empurra a cadeira para trás para poder se levantar com mais facilidade, porém, um pouco mais tonto por causa do álcool, perde o equilíbrio e quase cai, fazendo com que os dois copos cheios de bebida tombem sobre a mesa. O rapaz pega a garrafa de cerveja que ficou de pé e vai para o banheiro. Enquanto isso, por puro reflexo, Cadú rapidamente apanha os copos para evitar que eles se quebrem no chão. Léquinho passa ao lado da mesa das mulheres, que o acompanham com os olhos. O rapaz pisca para elas e continua a caminho do banheiro, vez ou outra bebericando direto no gargalo da garrafa. Para zombar dele, a negra de curvas voluptuosas mordisca o canto direito do lábio inferior. O melhor amigo do Cadú entra, enfim, no banheiro, bate a porta às suas costas e vai logo abaixando as calças. Em busca de equilíbrio, ele apoia a mão na parede atrás da privada e, com a outra, segura a garrafa. Depois de urinar, ele olha para o próprio pênis e, gesticulando como se masturbasse, diz: LÉQUINHO (entusiasmado/rindo) É hoje que você sai da miséria, malandro. Vai trabalhar muito! Não me decepcione. Ele sobe a calça com uma das mãos e fecha o zíper. Ao sair, vai até a pia, onde lava apenas os dedos da mão que usou para urinar e, depois, os enxuga na camiseta. Dando outro gole na garrafa, deixa o banheiro e segue rumo à mesa das mulheres. Cadú está sentado do lado de fora do bar, sozinho. Corta de volta pra Léquinho. O rapaz fixa o olhar nos seios das mulheres. Percebendo o olhar, a loura puxa o decote um (CONTINUED)
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pouco mais para baixo, deixando as mamas à mostra por algumas segundos. A negra aproveita para lançar um olhar sedutor a ele e novamente morder os lábios de forma provocante, mas a intenção é zombar com ele, pois elas são bem mais velhas. Léquinho puxa uma cadeira de uma mesa qualquer e a coloca na mesa das mulheres. Ele se senta, toma o que resta na garrafa e quando pensa em começar a falar, é interrompido pela loura, que diz: LOURA (irritada) Na boa, dá meia volta e vaza! LÉQUINHO (irônico) Quanto? NEGRA (brava/indignada) Quê? Cê tá ficando maluco? LÉQUINHO (irritado) Me fala o teu preço. Quanto custa o serviço completo? Eu pago, porra. LOURA (estúpida/brava) Se enxerga, cara! Tá confundindo a gente com a puta da tua mãe? Vai se foder. LÉQUINHO (debochando) Eu sei que vocês tão doidinhas pra sentar gostoso! A loura enfia um tapa violento no rosto de Léquinho e, logo em seguida, fica de pé. Sua amiga também sai da mesa. LÉQUINHO (irônico) Não faz assim... LOURA (vulgar) Isso aqui não é para qualquer um, não. A fila anda com catraca seletiva.
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Ao dizer "isso aqui não é para qualquer um", a Loura apalpa sua vagina com ardor. Juntas, as mulheres vão para o balcão do bar. E Léquinho fica onde estava, apenas alisando a superfície quente de sua bochecha e ouvindo o que elas respondem ao dono do bar. DONO DO BAR (curioso) Por que usted vão mais cedo do que o de costume? NEGRA (emputecida) Esse pirralho está torrando nossa paciência! LÉQUINHO (bravo/inconformado) Pirralho? Então toma aqui o pirralho! Revoltado, o rapaz agarra a negra pelos cabelos, puxa a cabeça dela para trás e a beija à força. LÉQUINHO (irônico/sorrindo) O que achou do pirralho, safada? NEGRA (com muita raiva) Seu bosta! A mulher negra tenta acertar um tapa, mas Léquinho segura a mão dela e arranca outro beijo à força. E assim a confusão começa: três sujeitos mal-encarados vão pra cima dele, e com razão. Um dos sujeitos (irei me referir a este como “A”) tenta acertar um soco no rosto do Léquinho, que se esquiva a tempo e, sem medir consequências, golpeia a testa de “A” com a garrafa que segurava. Com a força do golpe, o objeto se estilhaça. Com medo, a maioria dos clientes corre para fora do bar e a roda de samba se desfaz. Outros dois sujeitos (“B” e “C”) entram na briga. Eles dão socos e chutes nas costas e barriga de Léquinho, e depois o jogam no chão, deixando tudo mais fácil para novos golpes certeiros. Garçons tentam apartar a briga, mas de nada adianta. Mais gente corre para fora do bar. (CONTINUED)
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Estranhando o corre-corre, Cadú logo imagina que o que quer que esteja acontecendo no interior do estabelecimento é culpa do seu melhor amigo. Acreditando estar certo, Cadú sai em disparada para o meio do furdunço, derrubando a mesa e a cadeira que ocupava ao se levantar. Distante a alguns metros do aglomerado que observa a confusão, Cadú logo vê o amigo caído no chão sendo chutado por “B” e “C”. Três garçons e quatro clientes conseguem, enfim, apartar a briga. E quando todos pensavam que tudo estava resolvido, um quarto sujeito ("D") avança para cima de Léquinho, que já estava de pé, sustentado por dois marmanjos, e o acerta na testa com um chute. Cadú chega exatamente no momento do chute, e no mesmo instante investe o peso do próprio corpo contra “D”, que sem prever o ataque cai sobre uma mesa. Espumando de ódio, "D"se coloca novamente em pé e vai avançando na direção de Cadú como um touro enlouquecido, acertando-lhe um soco no rosto. As pessoas outra vez tentam apartar a briga. De saco cheio com tudo aquilo, o dono do bar se aproxima, esbravejando coisas como: DONO DO BAR (furioso/esbravejando) Hijueputa!!! Parem com esto... Vocês vão destruir mi bar... Se matem lá na rua. Cabrón!!! Enquanto o velho senhor de origem mexicana esbraveja, Cadú vê que ele traz um revólver à cintura. E, claro, o rouba. Cadú dispara três vezes contra o teto. Todos param, e se não fosse a propagação do funk, o silêncio seria absoluto. “D”, que tinha voltado a chutar Léquinho, para imediatamente e olha pra trás, deparando-se com uma arma apontada para o meio de sua testa. Ao fundo, próximos do balcão, estão os garçons que seguram “B” e “C” com a ajuda de alguns clientes. “A” continua caído no chão, gemendo e com o rosto ensanguentado. Nervoso, Cadú começa a dar ordens. CADÚ (nervoso/gritando) Cheeeegaaaaaa... Caralho! Mais um chute no meu amigo e eu dou um tiro nessa tua boca de chupa pau...
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SUJEITO D (desafiador) E quem disse que você tem coragem? Você não passa de um rato... de um bostinha. Dispara o sujeito, indo na direção de Cadú que, ao se ver sem saída, empunha a arma ainda com mais firmeza. Sem deixar intimidar-se, "D" continua a andar. E equanto isso, Léquinho se levanta e grita para o amigo: LÉQUINHO (com dor) Deixa esse merda pra lá, Cadú. Eu tô bem. Ele bate igual uma bichinha. "D" não para, continua a ir na direção de Cadú. Depois de mais alguns passos, o sujeito pega a garrafa de uísque que está sobre uma mesa e começa a correr. É visível a intenção de acertar a cabeça de Cadú com a garrafa. Vendo-se sem saída, Cadú não vê outra solução senão disparar contra um dos joelhos de "D", que cai no chão, gritando de dor e apertando o ferimento na tentativa de conter o sangramento. SUJEITO D (ofegante/dor) Desgraçado, olha o que você fez! Eu vou acabar com você. CADÚ (ameaçador/nervoso) Eu avisei. Agora, quero todo mundo circulando. Não quero ninguém perto do meu amigo. Só quero ajudar ele e a gente vai embora. Saindo... Porra! Já falei. Saindo, vaza. Não quero disparar contra mais ninguém, mas tô vendo que não vai ter jeito. Já ao lado de Léquinho, Cadú continua a olhar e a apontar a arma na direção das pessoas que permaneceram dentro do bar. Léquinho tem um corte sobre o olho direito, nada muito grave, e o susto parece ter curado sua embriaguez.
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Estancando o sagramento do machucado com uma das mãos, Léquinho não perde a oportunidade de tripudiar o sujeito que lhe agrediu por último: LÉQUINHO (irônico) Quem é o rato agora? Bostinha! Diz Léquinho, debochando do sujeito que está caído no chão, sobre uma poça de sangue. Cautelosamente, os amigos caminham para a saída. As duas mulheres, a negra e a loura, que fizeram questão de assistir a tudo, olham assustadas para Cadú e Léquinho. Os amigos finalmente pisam na calçada. Eles correm... Cadú prende a arma no elástico de sua calça e ajuda Léquinho a correr. Léquinho sente muita dor enquanto corre. Não demora quase nada para eles alcançarem a rua onde acontece o baile funk. E por meio de uma tomada aérea, vemos quando Léquinho e Cadú desaparecem no meio da multidão que dança e canta. EXT.INT.LAJE/BARRACO.MADRUGADA Já longe do local onde acontecia o baile funk, Cadú e Léquinho terminam de subir a escada de uma viela qualquer da favela e chegam na laje de um barraco, que fica no alto do morro, quase no topo. É possível ver uma parte da comunidade e, lá embaixo, a cidade, ambas iluminadas. O som do funk é quase imperceptível agora. Como quem busca por descanso, Cadú se lança sobre o primeiro banco de cimento que vê. E Léquinho, ainda sentido dores no corpo, senta-se vagarosamente ao lado do amigo. As estrelas, que antes decoravam o céu, perderam espaço para grandes nuvens carregadas. LÉQUINHO (sentindo dor) Olha só o que aquele corno fez com minha roupa. Que merda! Não faz nem dois dias que roubei daquela loja de bacana. Isso faz os dois amigos caírem na risada. Relembram o que aconteceu no bar. O ataque de riso é inevitável. (CONTINUED)
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59.
CADÚ (divertindo-se) Se ferrou! Tava achando que ia perder o cabaço. “Oi, eu sou o Léquinho, e quero dar uma fodidinha com você”. Continua o mesmo retardado de sempre. Lembro de quando a gente tinha 10 anos e você já se achava o gostosão. "Léquinho, a máquina de foder”, lembra? LÉQUINHO (sorriso/riso/dor) E tem como não lembrar? Quanta merda a gente já passou junto. Já faz tempo... Léquinho tira a camiseta e o tênis, ficando apenas com a calça. Enquanto a camiseta cega as vistas do rapaz por alguns segundos no momento em que ele a tira, Cadú aproveita para olhar o corpo do amigo. Seus olhos passeiam vagarosamente pelos músculos dos braços e da barriga definida, que termina em um V musculoso. CADÚ (sorrindo) Sempre se metendo em merda... LÉQUINHO (sorrindo e um pouco zonzo por causa do álcool) Aquele filho da puta teve o que merecia. Você me salvando outra vez. CADÚ (...) Coloca na conta! LÉQUINHO (...) Você é mesmo um puta irmão do caralho. CADÚ (...) Ihhh... Vai começar! Cala a boca, vai. Você tá chapado.
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60. LÉQUINHO (zonzo/pensativo) Eu queria falar que aquilo que você fez, lá no bar, foi coisa de irmão. Tá ligado nessas parada de super-herói, que a gente ouve quando é criança? Sempre que um deles fica na pior, uma coisa parecida com um campo de força aparece pra proteger ele... Essa coisa fica rodeando o cara pra não deixar nada bater nele. Amigo é que nem essa parada aí, meio que um colete à prova de bala, meio que um campo de força. Você é isso. Sem contar que vocÊ é minha única família.
Léquinho se abaixa e coloca a cabeça entre as pernas, como se fosse vomitar, porém, apenas tosse e tem ânsia -resultado do álcool que ingeriu misturado à dor dos ferimentos da briga. Após alguns segundos, ele toma um pouco de ar, levanta a cabeça, limpa a boca com o dorso da mão e continua: LÉQUINHO (zonzo/pensativo) Nem fodendo que amigo é tudo igual. Tem gente que pensa isso. Esse tempo todo que a gente viveu por aí, nas rua, roubando, se drogando, cheirando cola pra matar um pouco da porcaria da fome... nas horas mais filha da puta, você sempre me ajudou! É nóis, mano... Brincando, Cadú abraça Léquinho com uma chave de braço, o segura forte e bagunça cabelo dele enquanto diz: CADÚ (carinhoso/emocionado) Seu filho da puta! A chuva começa a cair. Cadú liberta o braço e corre para dentro do barraco. se importar com a chuva. Ele deita no atrás da cabeça e deixa que a água da ferimentos.
amigo da chave de Já Léquinho parece não banco, cruza os dedos chuva lave seus
Cadú para na porta do barraco e, antes de entrar, olha para trás e vê o amigo deitado sobre o banco, curtindo a chuva que fica mais forte a cada segundo. (CONTINUED)
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61.
CADÚ (gritando) Mas é um retardado, mesmo. Vai ficar na chuva? Vou aproveitar pra tomar um banho. Léquinho não se dá sequer ao trabalho de olhar para Cadú. Sangue e água escorrem pelo rosto do rapaz. Corta para o barraco. Cadú encontra uma velha e enferrujada geladeira e, curioso, a abre. Seus olhos saltam ao ver um monte de latas de cerva importada e comenta sozinho: CADÚ (sorrindo) Eita, porra. Cerveja de gringo! Me dei benzaço. Cadú abre a lata, dá alguns goles e vai na direção do banheiro. Lá, o rapaz coloca a lata e a arma que roubou sobre a pia, tira toda a roupa e se olha no espelho. Em seguida, pega a cerveja de volta, dá mais alguns goles e, com a lata na mão, entra no boxe. Corta para o cano de ferro que está fincado na parede (chuveiro improvisado), de onde a água sai para acertar o peito do rapaz. Cadú pega uma porção generosa de xampu e ensaboa a cabeça e o corpo. Do lado de fora, a chuva já não é tão forte como antes. Foi apenas uma pancada. E Léquinho continua deitado no mesmo lugar e na mesma posição, completamente ensopado. O chão encharcado, pontilhado por enormes poças de água, demonstra quão forte choveu em tão pouco tempo. No peito de Léquinho há uma pequena cruz esculpida em madeira, presa a um cordão de couro. O que cai do céu agora é apenas um chuvisco. Em detalhes, imagens mostram os pingos de água que explodem em várias outras gotículas ao tocar a superfície macia do rosto de Léquinho. Ele sorri, aparentemente pensando em algo. A água escorre pelo rosto enxaguando o pouco que ainda resta de sangue. CADÚ (gritando/curioso) Ei, vai ficar na chuva até quando? Léquinho levanta e, sentando-se com o banco entre as pernas, olha na direção de onde veio o grito. Ele vê Cadú em pé ao lado da porta. Vestindo apenas a calça surrada que usava no bar, Cadú, com um ponto de interrogação pairando sobre a cabeça, observa o amigo.
(CONTINUED)
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62.
Léquinho deixa o banco e vai na direção de Cadú, que ainda está parado na porta. Ao chegar... CADÚ (...) Mas é um porra louca! A Maria não tá no barraco. Acho que ela foi fazer faxina na casa da granfina da Barra. Deve voltar só amanhã cedo, então, vê se não vai sair molhando as coisa dela. Falando na granfina da Barra, acho que foi ela que deu essa cerveja pra Maria. Tem lá na geladeira. LÉQUINHO (sacana) Fica tranquilo... Se eu fizer besteira, você chama a rola na xereca da Maria mais uma vez e fica tudo certo. E eu não quero mais cerveja... Tô a fim disso aqui! Léquinho agarra o braço de Cadú e tanta puxá-lo para fora, para debaixo do chuvisco. Cadú resiste e, divertindo-se, troca alguns palavrões com seu amigo. Léquinho puxa Cadú com mais força e consegue levá-lo para a laje. Cadú coloca a cerveja no banco onde Léquinho estava deitado e parte pra cima do amigo. Os dois começam a brincar de lutar e acabam caindo no chão, sobre uma poça d’água. A chuva volta a ficar forte como antes. Cadú consegue ficar por cima de Léquinho e, esticando os braços dele para trás e forçando-os contra o chão, o imobiliza. CADÚ (brincando) Perdeu. Quem é o dono do morro? Fazer bico de carregador de engradado é melhor que academia! LÉQUINHO (...) Tô vendo... Léquinho para de fazer força e, lentamente, o sorriso dá espaço para a seriedade. Com o término do sorriso, Léquinho olha nos olhos de Cadú, que ainda está sobre ele e retribui o olhar. Eles se entreolham por mais alguns segundos. (CONTINUED)
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63.
Os olhos de Cadú vagueiam sobre o corpo molhado de Léquinho, cujos pelos, por causa da água, estão grudados à pele. Vergonhosos sorrisos surgem na medida em que Cadú aproxima seu rosto do de Léquinho. Os olhares desejosos são recíprocos. Os dois se beijam rapidamente, apenas tocam os lábios, na verdade. E, depois, se entreolham, como se perguntando se aquilo não iria prejudicar uma amizade tão sólida quanto a deles. E então, ainda na mesma posição, eles se beijam novamente, agora, porém, com mais intensidade, com mais ardor, como um casal apaixonado que dá o primeiro beijo já repleto de segundas intenções. E eis que o forte sentimento de ambos pela amizade de infância se transforma em um amor inexplicável. Talvez por carência de afeto, talvez pela solidão, por terem apenas um ao outro. A princípio, essa novidade causa um pouco de vergonha e desconforto a ambos. Cadú para de beijar e olha nos olhos de Léquinho e deita a cabeça sobre o peito do amigo, escutando as batidas de seu coração. Seu sorriso é largo. No quadro é possível ver a cruz de madeira e o rosto de Cadú sobre o tórax de Léquinho. Após poucos segundos, Cadú volta a beijar o amigo. E enquanto o beija na boca, uma de suas mãos passeia pelo corpo debaixo do dele. Com um pouco de hesitação, Cadú arrasta a mão para dentro da calça molhada de Léquinho. Por meio de um plano aberto, como se a cena fosse assistida de cima do telhado do barraco da Maria, vemos os dois rapazes lá embaixo; Cadú beijando cada centímetro do corpo do Léquinho, começando pelo tórax, passando pela barriga e indo em direção às partes intímas. Enquanto isso, para se proteger da superfície áspera do cimento da laje, Léquinho cruza os dedos debaixo própria cabeça. Corta para o rosto de Léquinho. Ele sorri e se contorce de prazer. A chuva volta a ganhar intensidade. A câmera começa a se afastar, como se subisse em direção ao céu, e lá do alto, vemos a laje onde Cadú e Léquinho fazem sexo, a imensidão da favela (Rocinha), e um pouco de outros bairros do Rio.
64.
EXT.MISSA/CANDELÁRIA.NOITE Uma lua espetacular surge em cena! Por meio de um ângulo mais ousado, que enquadra perfeitamente as torres da igreja da Candelária e a lua, vemos as nuvens que se aproximam, dando a ideia de que já chove em alguma outra parte da cidade. Em seguida, um novo ângulo favorece toda a arquitetura da igreja, nos permitindo ver algumas pessoas sentadas nos poucos degraus que enfeitam a entrada do templo católico. Logo nos primeiros degraus estão sentadas Duda, 17, e Cacau, 7, ambas maltrapilhas. Sem parar, Manu passa por elas e acena com um tchau. Mais à frente, Manu para para observar a vitrine de uma loja qualquer, onde há um porta-retrato com a imagem de uma família (três crianças posando para a foto ao lado dos pais e do cachorro de estimação, em um jardim lindo, à margem da piscina), uma caixa de música com uma bailarina dançante e um coração de pelúcia. Seus olhos brilham diante dos objetos. Por instantes, a caixa de música com a bailarina domina o quadro e sua música transforma-se na trilha sonora dos sonhos em que Manu parece ter mergulhado. A garota sorri ao observar os delicados movimentos da bailarina. Em seguida, fixa o olhar na imagem do porta-retrato que está ao lado da almofada em formato de coração, imaginando-se como parte daquela família feliz. Pelo interior da loja, uma funcionária vem à vitrine e, checando as horas no relógio preso a seu pulso, começa a baixar a porta de ferro que protege a vidraça. Fim de expediente. A funcionária sorri para Manu, que não percebe. No mesmo instante, a corda da caixa de música acaba (vemos o exato momento em que a bailarina para de se mover), trazendo Manu de volta à realidade. A proteção de ferro esconde a vitrine por inteira e a garota volta a andar. No quadro, a igreja da Candelária é vista de cima para baixo, quando as portas são abertas e uma multidão começa a sair.
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65.
De pé em um dos degraus, Duda e Cacau observam as pessoas que saem da igreja ao final do culto. E antes que se aproximem demais, Duda dá um empurrãozinho no ombro de Cacau e diz: DUDA (ansiosa) Vai, é agora... Do jeito que a gente combinamo. Sentada em um dos degraus da Candelária, Cacau finge chorar. Duda se esconde e observa à distância. Algumas pessoas param quando passam por Cacau. SENHORA01 (compaixão) O que você tem? Por que você está chorando? CACAU (soluçando/triste) Eu tô com fome. Minha mãe tá doente . A senhora pode me dá um trocado pra mim? Quero comprar comida. SENHORA01 (mentindo/desconcertada) Eu não tenho. Estou sem nada no bolso. Me desculpa, viu, meu anjo! Enquanto Cacau está sentada na escada, fingindo chorar para conseguir dinheiro, é possível ver quando Duda, cautelosa e sorrateiramente, entra na igreja pela porta da frente. Os olhos da garota varrem todos os lados e ângulos. Ela precisa ter certeza de que não há ninguém lhe observando. A preocupação é nítida no rosto dela. Na escada, a cena continua com o diálogo entre Cacau e a senhora: CACAU (fingindo chorar) A senhora acabou de sair da igreja... Não sabe que mentir e negar comida é pecado? SENHORA01 (envergonhada) Mas...
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66.
A senhora abre a bolsa tiracolo que usa e, da abertura principal, retira algumas notas de baixo valor para entregar à criança, que agradece com um sorriso tenro. Assim que a senhora volta a descer os degraus, saindo de cena, Cacau fingi chorar ainda com mais empenho, chega a engasgar e a rir. Toda vez que um risinho escapa de sua boca, a menininha se concentra ainda mais na atuação. E foi em um momento assim que um casal se aproximou dela. O rapaz, que segura uma criança pequena no colo, retira algo do bolso e entrega para Cacau: algumas notas. Receando não parecer convincente, já que a vontade de rir sobe-lhe pela garganta, a menina afunda a testa nas mãos para que ninguém veja seu rosto, e tenta manter-se firme na interpretação de chorona. Diversas pessoas passam e colocam moedas e notas em um copo descartável que está do lado de Cacau. De repente, ainda que à distância, podemos ouvir um saxofone que começa a soar no ritmo da canção "Águas de Março". Cacau ouve a melodia e, espiando por entre as brechas dos dedos, tenta encontrar onde está o músico. Sem sucesso, ela novamente espia por entre as brechas dos dedos para ver se há alguém próximo a ela, pois não quer que as pessoas percebam que estava chorando de mentirinha. Ao chegar a conclusão que nada colocará sua interpretação em risco, ela agarra o copo descartável que está no chão e sai correndo. INT.IGREJA/CANDELÁRIA.NOITE O rosto de Duda está refletido sobre a superfície da água benta contida em um grande recipiente esculpido em mármore quando dois dedos imergem no líquido, fazendo com que a imagem da garota se desfigure em pequenas ondas circulares. Corta para Duda. Ela toca a testa com os dedos molhados. MANU (apreensiva) Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém! Enquanto se benze, Duda caminha pelo corredor, entre vários bancos de madeira polida, até chegar de frente para o altar-mor, que a deixa incrivelmente admirada. Estupefata com tanta beleza, a garota esquadrinha o interior da igreja por mais alguns segundos, até que seus olhos encontram uma porta entreaberta ao lado direito do altar principal. Duda corre até a tal porta, vê se a barra está limpa e, sem pensar duas vezes, entra no cômodo.
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EXT.PRAÇA/PIOX.NOITE O volume do saxofone fica mais alto quando Cacau para em uma das esquinas que fica no quarteirão da Candelária. Ela olha para todos os lados e percebe que a música fica sutilmente mais audível quando olha para a esquerda. Assim sendo, ela corre pela calçada e, ao chegar em uma nova esquina, novamente vira à esquerda, dando de cara com o músico sentando na calçada: um senhor sujo e maltrapilho de 55 anos, aproximadamente, que toca o instrumento na companhia de um cachorro basset. Ao lado do músico, quase encostado em sua perna, há um pote de margarina cheio de dinheiro. E a um palmo de distância do cachorro há uma fotografia amassada e um bilhete escrito à mão. Cacau repara na fotografia e se dá conta de que o homem que toca saxofone no palco de algum teatro é o mesmo que está sentando diante dela. E para ter certeza, a menina olha algumas vezes para o homem elegante da foto e para o que está na calçada. Ela também olha para o bilhete, mas como não saber ler, dá de ombros para o que está escrito: “ME CHAMO ÉRICO BARBOSA, SOU CEGO. UMA MOEDINHA PRA GENTE COMPRAR ALGO PRA COMER, DEUS TE ABENÇOE” Com "gente", o músico chama tanto a atenção cheio de dinheiro. E, quando está bem perto presença e diz:
se refere a ele e ao cachorro. Nada de Cacau quanto o pote de margarina claro, ela tenta roubá-lo. Porém, de fazê-lo, o senhor percebe sua
CEGO (irritado) Quem tá aí? Responde... É outro marginal querendo me roubar, não é? Sou cego, mas não sou burro. Já percebi que tem alguém parado aqui. Você acha certo assaltar uma pessoa deficiente, que não pode exergar pra se defender? CACAU (triste) E o senhor acha certo uma criança passar fome, não ter nem pai nem mãe e viver na rua? Desculpa, eu não queria fazer isso com o senhor, mas eu preciso.
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68.
O cego bem que tenta resmungar algo, mas já é tarde. Cacau pega o pote de margarina, faz um afago muito rápido na cabeça do basset e sai correndo. O cego até que tenta acertá-la com a bengala, mas não consegue. Ainda correndo, a menina dá uma volta completa no quarteirão e para perto de uma estação de metrô para recuperar ao menos um pouco do fôlego perdido. Recostada na parede de um estabelecimento qualquer, ela vê quando Manu, João, Carlinhos e Beto entram correndo nesta estação, mas não dá importância, apenas dá de ombros e volta a andar, indo para os degraus da entrada da igreja. INT.IGREJA/CANDELÁRIA.NOITE Duda sai de uma sala -- da que ela tinha entrado na cena anterior -- e, com cuidado, explora os cômodos mais próximos, abrindo as portas só depois de ter certeza que não há ninguém no interior. Ao abrir a terceira porta, Duda se depara com a Sacristia e, sem titubear, decide vasculhá-la em busca de algo que possa vender depois. Mas, antes de entrar nesta dependência da igreja, Duda dá uma nova espiadela pela fresta da porta, apenas para ter certeza de que está mesmo sozinha. Então, e somente então, a garota fecha a porta às suas costas. Sem perder tempo, Duda começa a procurar em todos os cantos por objetos de valor, como se alguém soprasse em seus ouvidos que ali é o local onde se guardam os paramentos sacerdotais e os utensílios do culto. Ela abre gavetas, procura sobre os móveis mais altos e debaixo deles também, olha dentro de caixas etc., quando, de repente, uma rajada de vento entra pela janela e sopra a cortina para alto, revelando um armário que antes estava escondido. Por instantes, os olhos de Duda brilham ao ver o móvel talhado em mogno e adornado com linhas douradas, até que o leve tecido de cor branca volta a cobri-lo. Mais que depressa, Duda abre o armário e encontra um cálice dourado. DUDA (sussurrando/euforia) Ouro!!! Inquieta e com as mão suadas, ela agarra o objeto e retira a tampa para ver o que tem no interior: um monte de hóstias. Ela então coloca a tampa de volta e dá um jeito de acomodá-lo dentro da sua velha jaqueta jeans.
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69.
O nervosismo aumenta com o medo de que alguém possa chegar a qualquer momento e, na esperança de se tranquilizar, Duda decide que o melhor que tem a fazer é dar outra espiada pela fresta da porta. E, ao olhar, acaba vendo o que mais temia: o padre indo em direção à Sacristia. Apavorada, Duda fecha a porta sem fazer barulho e tenta ver através do buraco da fechadura, o que a deixa ainda mais desesperada ao constatar que de fato o padre caminha em sua direção. Sem saber o que fazer, ela simplesmente verifica se o cálice está seguro em sua jaqueta e começa a vasculhar o apertado cômodo na esperança de encontrar uma saída de emergência. DUDA (nervosa/eufórica) Claro que aqui não vai ter uma saída de emergência... Deixa de ser burra, Duda. Se acalma. Eu sei que eu tô roubando a tua casa, Deus, mas me ajuda aí. Olhando em todas as direções em busca de uma maneira de fugir, Duda acaba encontrando uma cesta cheia de dinheiro -como é de costume nos cultos católicos fazer doações -sobre uma pequena mesa que ela não havia notado antes, e um sorriso nervoso surge em seus lábios. Rapidamente, sabendo que tem pouco tempo, a garota corre até a cesta e começa a encher os bolsos com o dinheiro das doações. Ela vai enfiando tudo de qualquer jeito nos bolsos da calça e da velha jaqueta. Duda ouve um barulho na maçaneta da porta e, com medo de ser pega e levada à delegacia de polícia, fica paralisada, em silêncio absoluto, prendendo até mesmo a respiração. Olha de um lado para o outro e não encontra onde se esconder. Seu rosto está ensopado de suor. Com os olhos fixos na porta, Duda vê quando a maçaneta começa a se mover para baixo, o que indica que alguém está prestes a descobri-la ali dentro. E é nesse exato momento que a garota decide colocar em prática o único pensamento que lhe ocorreu: tomar distância e investir contra a porta de madeira que em questões de segundos estaria escancarada. É o que ela faz. investe com toda padre vai cair a imaginar o que o
Toma a distância que lhe é possível e sua força contra a porta. Tanto é que o alguns metros de distâncias, sem nem tinha atingido.
Saltando o corpo prostrado do padre, Duda corre para a saída do templo, que nunca pareceu ser tão longe. (CONTINUED)
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Do corredor principal, ela já pode ver a porta, sua via de escape, e até esboça um sorriso. Porém, para o completo pânico de Duda, uma freira surge no final corredor, a poucos passos da porta que dá para os degraus. Duda empalidece no mesmo instante, fica gelada da cabeça aos pés, e sua reação é dar meia volta. Quando termina o movimento circular do corpo, a garota dá de cara com o padre, que está a poucos metros à frente do altar-mor. Imaginando ser sua única solução, Duda se enfia no meio dos bancos da igreja, percebendo instantes depois que essa não foi uma boa escolha, afinal. E basta olhar na direção da saída para entender: quatro fileiras de banco transformaram-se em barreiras que ela precisa romper para poder escapar. Com a freira à sua frente e o padre às suas costas, e ambos se aproximando, a menina não vê outro meio de fugir senão pulando as fileiras de banco. Ela sobe no encosto da primeira delas e pula para o encosto da segunda e para o da terceira, porém cai estatelada no chão ao tropeçar no espaldar de um dos bancos do último obstáculo. A freira aproveita a chance para agarrar os pés de Duda, que se debate loucamente feito um peixe fora d’água. Sem querer e sem mesmo ver, a menina acerta um chute no rosto da freira, que automaticamente solta os pés para poder levar as mão à boca e, assim, checar se todos os dentes estão no lugar. Duda consegue finalmente se levantar... Enquanto corre até a porta, ela aperta o cálice contra a barriga para ter certeza de que ele está em segurança. FREIRA (apavorada/susto/brava/gritando) Socorro!!!!!!! O padre se junta à freira. Duda usa novamente o peso do corpo para abrir a porta, mas dessa vez para a saída. EXT.CALÇADA/CANDELÁRIA.NOITE Quando chega na calçada, Duda logo avista Cacau e, ao passar correndo por ela, a agarra pelo braço. Arrastando a meninha atrás de si, Duda tem uma ataque de riso enquanto corre. E sem entender absolutamente nada, Cacau começa a rir também. (CONTINUED)
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71.
Em diversos momentos, enquanto estão correndo, temos diversos closes no rosto das meninas, o que nos permitir admirar os sorrisos radiantes. Outro destaque é o brilho nos olhos, que surge como um chamariz de alegria em meio a tanta mágoa e desilusões. Na correria, a alça do chinelo da Cacau se rompe... CACAU (rindo/esbaforida) Duuuudaaaaaaaa!!! Meu chinelo!!! Duda diminui a velocidade, chegando a parar por alguns instantes, porém sem soltar o braço de Cacau. Cautelosa, a menina estica o braço e inclina o corpo para que sua amiguinha consiga alcançar o chinelo. E ao ver que Cacau consegue apanhar o chinelo de borracha, Duda a puxa de volta, retomando a corrida. Depois de mais um curto período de tempo correndo, Duda não consegue parar de rir e começa a perder as forças. Mas isso já não é problema, pois elas estão um tanto longe da igreja. Assim que param de correr, quando chegam em um lugar que julgam seguro, um lugar sem muito movimento de gente e carro, Duda e Cacau sentam na sarjeta e se esparramam na calçada, ainda rindo. Em busca do fôlego perdido, a duas respiram fundo enquanto tentam conter o riso. Com o fôlego de volta e sentadas novamente na sarjeta, Cacau mostra para Duda o pouco de dinheiro que conseguiu quando fingia chorar nas escadas da Igreja e, também, o pote de margarina que roubou do músico cego. CACAU (cansada/rindo) Olha o que eu consegui... Rindo, Duda mostra a o tanto de dinheiro que roubou da igreja, que é muito maior do que o de Cacau. E ela também mostra que roubou o cálice com as hóstias da Sacristia. Espantada, Cacau arregala os olhos ao ver o cálice nas mãos da amiga e começa a rir, dizendo: CACAU (rindo/espantada/cansada) Duda, você é louca!!! Travessa como só ela, Duda não perde a oportunidade de traquinar Cacau. Ela aproveita que a menininha está rindo e enfia um punhado de hóstias na boca escancarada de cacau, o que só a faz rir ainda mais, vez ou outra engasgando e cuspindo hóstias. (CONTINUED)
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72.
Em desforra, Cacau enche suas mãozinhas com as hóstias do cálice e enfia tudo na boca de Duda, que tem outro ataque de riso. Enquanto comem as hóstias sagradas como se fossem deliciosos biscoitos, Duda levanta o cálice diante de seus olhos para examiná-lo. Após alguns segundos e com a boca cheia de massa, Duda diz: DUDA (orgulhosa/feliz/ofegante/de boca cheia) Olha, vou te falar uma coisa pra você, colega. Acho que a gente consegue vender esse troço aqui por uma boa grana. Né, não? Mas agora a gente vamo usar essa outra grana aqui pra comprar alguma coisa pra comer. DUDA (imitando uma mulher rica/sátira) Hoje é por minha conta, meu bem. Eu sou rica, herdeira e moradora da zona sul. As duas se levantam e procuram onde comer. Duda aponta para um carrinho de cachorro-quente do outro lado da rua e Cacau concorda com a ideia. Elas, então, correm pela calçada. Quando chegam na esquina, o intenso brilho do farol de um carro ofusca os olhos delas, como quando olhamos diretamente para o sol. Duda e Cacau tentam proteger as vistas com auxílio das mãos. A ação acontece com o mesmo tempo de um relâmpago. Após esfregar os olhos irritados e perceber que o farol não está mais em seu rosto, Duda consegue enxergar nitidamente o carro: uma viatura de policia que passa lentamente nas imediações da igreja da Candelária, aparentemente à procura de alguém. E para uma desconfiança ainda maior, as garotas veem que mais dois veículos seguem a viatura: um táxi amarelo e um carro de uso pessoal também amarelo, e ambos de marca e modelo idênticos; Chevrolet Chevette. As amigas se entreolham e dão de ombros. De mãos dadas, elas atravessam a rua, atraídas pelo cheiro do cachorro-quente.
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EXT.AVENIDAATLÂNTICA/CARRO.NOITE Um SUV importado diminui a velocidade quando o disco de um semáforo da avenida Atlântica passa do verde para o amarelo. O veículo deixa de se mover quase em sincronismo com o acender da luz vermelha, parando de frente à extinta discoteca Help, de onde ecoa a música “Copacabana”, de Barry Manilow. Corta para o interior do SUV. As ocupantes são Yvonne e Bianca, melhor amiga da assistente social e a motorista da vez. Elas olham para a enorme fila de pessoas que esperam por sua vez de entrar na badalada casa noturna. Distraídas, as amigas se assustam quando um clarão avermelhado adentra o veículo delas e, instintivamente, olham para a frente, deparando-se com outro clarão. Sobre a faixa de pedestres, um rapaz aproveita os poucos minutos de sinal fechado para fazer uma rápida apresentação com bastões em chamas, vez ou outra lançando enormes labaredas pela boca. Em slowmotion (nem tão slow assim), vemos o fogo se alastrando pelo vapor da querosene expelida no ar. Após a apresentação, o rapaz passa pedindo dinheiro para os motoristas. Ignorando Bianca e Yvonne, ele corre para apanhar o dinheiro de uma mão que se estende para fora da janela de um dos veículos. Close no sinal que muda para o verde. Bianca acelera e Yvonne dá um última olhada na boate. YVONNE (melancolia) Nossa, há quanto tempo não me divirto assim!? BIANCA (indiferente) É, minha querida. Há muito tempo! Mas, também, né? Você trocou suas amigas por aquelas... YVONNE (fingindo estar irritada) Por aquelas?! BIANCA (como se tivesse decorado um texto) Crianças! Crianças que vivem em zona de risco e convivem diariamente com problemas associados a todo tipo de (MORE) (CONTINUED)
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BIANCA (cont’d) violência. Viu, só?! Aprendi direitinho. Yvone sorri. Bianca aciona a luz sinalizadora do veículo, indicando uma conversão à direita. Fim de cena. INT.CAFETERIA/IPANEMA.NOITE Na entrada de uma cafeteria minuciosamente decorada de forma chique e elegante, Yvonne e Bianca são recepcionadas por um garçom que as leva até uma mesa na área externa do estabelecimento, de onde é possível admirar a lagoa Rodrigo de Freitas. Bianca bebe um coquetel enfeitado com pedaços de frutas exóticas em um copo enfeitado com uma minúscula sombrinha colorida, enquanto Yvonne saboreia uma taça de água com gás aromatizada com folhas de hortelã e pimenta rosa. BIANCA (saudoso) Sinto tanta falta disso, sabia? Yvonne olha para o coquetel que Bianca segura e diz: YVONNE (ausente/com a cabeça em outro lugar) É, parece mesmo saboroso! BIANCA (...) O quê? Hã... O coquetel?! Não, não é disso que estou falando. Estou me referindo a momentos assim, como este. Sinto falta da nossa amizade, da sua companhia, que, aliás, me faz tão bem! Mas desde quando você começou a dedicar-se às crianças, você se afastou do seu círculo de amizades... YVONNE (um pouco ríspida) Me afastaram! Eu fui excluída... É bem diferente. Você sabe disso, e muito bem, não é verdade? (MORE) (CONTINUED)
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YVONNE (cont’d) Muitos dos que se diziam amigos se afastaram de mim por puro preconceito, por puro racismo. Você é uma das poucas que não me excluiu. BIANCA (...) Por favor, só não deixe que isso se te exclua do mundo, não deixe que isso te exclua da tua própria família. Você realmente ama o que faz, Yvonne? YVONNE (...) Por acaso eu deixo transparecer algo que seja semelhante à dúvida? Claro que amo o que faço. Aquelas crianças e adolescentes -principalmente as crianças -- são como uma... uma chama! Uma chama que mantém acesa a esperança que tenho de um mundo melhor. Uma chama que clareia minhas sombras, minha vida. Eu juro... Juro que, um dia, vou realizar o meu sonho de concretizar o UERÊ... Um projeto especializado em atender as necessidades das crianças em risco social, crianças que têm suas vidas expostas à situações perigosas e traumáticas todo santo dia. BIANCA (...) Para isso é preciso uma dose gigantesca de persistência, idealismo e muito, muito amor! E isso, minha querida, você tem de sobra. Mas e seus filhos, o que eles dizem? YVONNE (...) (MORE) (CONTINUED)
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76.
YVONNE (cont’d) Meus filhos nunca se ressentiram do meu amor por outras crianças. BIANCA (irônica) Hum, sei! YVONNE (...) Amanhã, bem cedinho, prometi fazer uma surpresa a um garotinho que dorme junto com os amigos lá na Candelária. Vou levar o café da manhã. Por que você não vem comigo?! Assim, quem sabe, você não entenda de uma vez por todas esse amor que sinto por eles. BIANCA (...) Ai, meu Deus, espero não me arrepender depois. Mas... Convite aceito! Yvonne e Bianca sorriem. O garçom traz à mesa o prato principal de cada uma. EXT.DESJEJUM/CANDELÁRIA.DIA Como um espelho gigantesco, a lagoa Rodrigo de Freitas ostenta o reflexo da lua sobre sua superfície, porém as primeiras gotas de chuva começam a cair, acabando com a tranquilidade e com a imagem que repousavam sobre suas águas. No próximo quadro, vemos a chuva -- que aos poucos se transforma em tempestade -- lavar a orla de Ipanema. Em seguida, por entre as vielas de uma favela qualquer, vemos uma forte enxurrada levar um amontoado de lixo até a boca de um bueiro. Vê-se a chuva caindo sobre outros pontos da cidade, talvez em fachadas de prédios e monumentos conhecidos. Ainda é noite. Na última imagem vê-se o Cristo Redentor a contemplar os primeiros raios de sol do dia.
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77.
Corta para a Candelária. A igreja é vista refletida em uma poça d’água quando, de repente, uma gota cai sobre a tranquila superfície da mesma, desfigurando o reflexo do templo religioso e enfatizando o fim da chuva. Ainda é muito cedo, mas Édinho e Manu já estão de pé. Eles conversam sobre a visita que a assistente social prometeu fazer a Édinho. MANU (irratando Édinho) Eu não te disse que ela não vinha? ÉDINHO (...) Tenho certeza que ela vem, e você vai engolir o que você tá falando. MANU (irônica) Hum... Deve ser outra vadia embrulhada em roupas caras, dessas que inventam um trabalho social só pra aparecer na TV. ÉDINHO (...) Essa é diferente. Você vai ver quando ela chegar... MANU (...) SE chegar! SE. ÉDINHO (muito empolgado) Olha, lá! Só pode ser ela. É a tia, sim. Te falei pra você que ela vinha. Édinho aponta com o dedo indicador para uma das extremidades da praça, onde uma Kombi branca e um veículo vermelho de marca importada estão estacionando. Deste último saltam Yvonne (motorista) e Bianca. Já do outro veículo saltam alguns voluntários que trabalham com Yvonne no auxílio às crianças em situação de risco, cujo projeto leva o nome de “Projeto Uerê”. Três voluntários -- dois homens e uma mulher -- tiram do porta-malas da perua WG uma enorme cesta de pães, jarras de leite e de suco, garrafas de café, pacotes de biscoito, frutas e várias outras guloseimas que consumimos no café da manhã. (CONTINUED)
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78.
Yvonne, Bianca e os voluntários -- todos vestindo a camiseta do projeto Uerê -- começam a montar a mesa do café da manhã, e eis que um grito estridente tira a atenção da assistente social. ÉDINHO (feliz) Tia Yvonneeeeeee!!! Corta para Édinho, que corre de braços abertos ao encontro de Yvonne. Eles se abraçam com alegria e sorrisos largos. Depois do abraço, Yvonne apresenta Bianca a Édinho, que, num momento de euforia, a abraça. Bianca, claro, fica estupefata com o gesto da criança, porém, sentindo a sinceridade daquele abraço, baixa a guarda e se derrete com tal carinho. Édinho pega na mão de Yvonne e a leva para conhecer seus colegas da Candelária. Bianca os acompanha. Ao se aproximarem dos degraus da escada, onde a maioria das crianças e adolescentes ainda dorme, Manu está de pé e com um ponto de interrogação estampado no rosto, esperando que Édinho se aproxime com as duas mulheres. MANU (curiosa/embasbacada) Yvonne, é você?! ÉDINHO (espantando) Vocês se conhece? MANU (sorrindo) Pode crer que sim! Já faz um certo tempo que Yvonne ajuda as pessoas que vivem nas ruas. Vem, vou te apresentar pro resto do pessoal. Manu e Édinho levam Yvonne e Bianca para conhecerem seus amigos. Para a surpresa da assistente social, ela reconhece alguns dos adolescentes, que logo a abraçam. Édinho sente ciúme e tenta disfarçar. Depois de gritar e assobiar pedindo a atenção de todos -- o que, claro, faz com que todos os que dormiam acordem --, Manu começa a explicar quem é Yvonne.
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79.
MANU (falando alto/chamando a atenção para si) Ei, pessoal! Bora prestar atenção aqui. Essa mulher é nossa amiga. O nome dela é Yvonne... Ela é do bem. Eu já conheço ela. Ela tem mania de ajudar gente que nem a gente. Ela ensia a ler, faz brincadeiras e dá o de comer. Faz um tempão que ela tá nessa de ajudar os outros. Tem gente aqui que já conhece ela, não tem? Levanta a mão quem já conhece a Yvonne. Para o ciúme de Édinho e felicidade de Yvonne, a maioria levanta a mão. YVONNE (feliz) É isso aí, pessoal. Antes do café da manhã, alguém quer me fazer alguma pergunta? No meio das outras crianças, uma garotinha levanta a mão e pergunta: GAROTINHA01 (triste) Eu sou filha de ninguém? Yvonne parece engolir em seco e procurar a resposta adequada. YVONNE (ternura) Todos nós somos filhos de alguém, minha lindinha, mesmo que a vida nos faça pensar diferente. E... Percebendo a situação embaraçosa, Bianca intervém. BIANCA (gritando/excitação) Vamos deixar a conversa para depois. Agora, vamos todos tomar café da manhã! Bianca grita para as crianças, que descem correndo os poucos degraus da escada e vão direto para perua Kombi, onde os (CONTINUED)
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80.
voluntários estão terminando de colocar os últimos pratos de plástico à mesa. A garotinha não dá importância para a resposta de Yvonne... Ela simplesmente se levanta e corre com os outros. Corta para a mesa do desjejum. Alguns comem pão, tomam xícaras de café e copos de leite quente, enquanto outros preferem suco com biscoitos salgados e doces. Todos conversam, riem, sorriem, entreolham-se. Alguns dizem obrigado para Yvonne. Bianca tem lágrimas nos olhos quando sorri ao olhar as crianças saboreando a refeição, a primeira em semanas. Wagner chega na praça da Candelária e fica surpreso com a movimentação. Ele não sabe o que está acontecendo e olha desconfiado para os assistentes sociais vestidos de branco que estão com as costas voltadas para sua direção. Finalmente, quando uma mulher vira-se de frente, Wagner reconhece o desenho do “Projeto Uerê” estampado na camiseta dela e sorri, pois sabe que aquelas pessoas são do bem. Aliviado e contente, ele procura por Yvonne, e a encontra num instante, logo no primeiro olhar que lança sobre aqueles que vestem branco. Ele sorri para Yvonne. Corta para Carlinhos. O garoto demonstra estar bastante apreensivo, e Yvonne percebe que algo o aflige. Após o café, Wagner pega uma bola de futebol que está no porta-malas da WG, ao lado de alguns banquinhos de madeira, e grita, pra todo mundo ouvir: WAGNER (entusiasmado) Quem topa uma partida de futebol? O que não falta são garotos e garotas que se animam com a ideia de disputar uma partida ali mesmo, na praça. Como é bem cedinho, ainda não há muito movimento, o que faz deles os únicos donos da praça, que agora se transforma em um campo cimentado de futebol. Bianca pega uma corda sobre um dos bancos da perua WG e convida algumas meninas para brincar de pular corda. No início, a melhor amiga de Yvonne se contenta apenas em “bater a corda” para que as meninas pulem. Mas ela não aguenta. E para espanto de todos os assistentes sociais, principalmente para o de Yvonne, Bianca tira os sapatos de grife, pede para que alguém a substitua na função de bater a corda, e entra na brincadeira, sequer se importando com o chão molhado.
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81.
Outras crianças brincam com uma bicicleta de dois lugares que ganharam. Defronte para a igreja, elas pedalam em círculos. No quadro temos imagens da igreja, dos garotos jogando futebol, das meninas pulando corda e dos adolescentes e crianças que ainda tomam café. Algumas dessas cenas, mormente aquelas que acontecem na praça, como o futebol, a brincadeira da corda e a igreja, são vistas por entre os aros da bicicleta. Na mesma imagem, também é possível ver os pés das crianças que estão pedalando. EXT.REUNIÃO/CANDELÁRIA.DIA Corta para as escadas da Candelária, onde todos os adolescentes e crianças conversam com Yvonne, que está sentada em uma cadeira de plástico, de frente para um grupo de aproximadamente 60 pessoas, entre crianças e adolescentes. A assistente social está ouvindo as histórias de alguns desses adolescentes. Há gente sentada em baquinhos de madeira (os mesmos que estavam dentro da WG quando Wagner pegou a bola de futebol), nos degraus da escada e no chão da praça, sobre pedaços de papelão. Bianca está sentada ao lado da perua Kombi, um tanto afastadada de Yvonne, compenetrada na leitura de um jornal. JOÃO (encerrando a conversa) E foi mais ou menos isso que a gente fizemo na noite passada! A turma acaba de contar para Yvonne tudo aquilo que cada um viveu durante a noite passada. Tudo que aconteceu até aqui estava sendo contado pelas crianças e adolescentes. As horas passaram desde que vimos Yvonne estacionar seu carro na praça Pio X. Agora há muita gente circulando pelas proximidades da igreja, os comércios estão abertos, o sol mais forte etc. YVONNE (...) Quanta coisa para uma única noite, não?! Manu, você achou que eu não viria?
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82.
MANU (envergonhada) É que eu não sabia que era você. YVONNE (...) Então, te perdoo. Mas me responde uma coisa: Como você e João conseguiram pegar o ônibus até Copacabana? MANU (divertindo-se) Jeitinho brasileiro! Entrando sem pagar pela porta de saída. Todos riem. YVONNE (curiosa) E onde você aprendeu a ler e escrever? MANU (triste) Com minha mãe. Antes de ser assassinada pela PM, ela me fez ir à escola. Por isso que eu sei ler. E... Em caçoagem, todos respondem em uníssono a frase de Manu entre aspas. MANU (triste) ..."quando eu canto, sei que minha mãe pode me escutar." Seus palhaços! YVONNE (curiosa/benevolente) Entre vocês, quem gostaria de aprender a ler como a Manu? Algumas crianças e poucos adolescentes levantam as mãos, enquanto outros preferem trocar ideia com o amigo que está ao lado. Eles gesticulam e cochicham entre si. Com o passar dos segundos, outros mudam de ideia e levantam as mãos. Infelizmente, não são todos que optam por aprender a ler e a escrever.
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83.
Yvonne combina um horário para poder lecionar. A sala de aula é improvisada: bancos de madeira substituem as carteiras escolares e a WG improvisa a parede onde o quadro-negro é fixado. YVONNE (...) Então, amanhã bem cedinho, eu estarei de volta, no mesmo horário e com o café da manhã. Já com nossas aulas preparadas! Combinado? Todos respondem, gritando frases como: JÁ É/COMBINADO/VALEU Em seguida, Yvonne é aplaudida. Após se levantar e se despedir, a assistente social vai até a WG onde os voluntários recolhem a mesa do café da manhã. Manu e Édinho vão até Yvonne e se despedem novamente. Carlinhos tenta ir até perua Kombi WG, mas hesita por algumas vezes. Quando Manu e Édinho deixam Yvonne sozinha, Carlinhos, um tanto assustado, aproveita o momento e corre ao encontro da assistente social e a abraça. Yvonne percebe que algo aflige Carlinhos, algo bastande sério. YVONNE (suavidade na voz) Oi, meu querido. Não parece que está tudo bem com você. Está acontecendo alguma coisa? Pode se abrir comigo. Se tiver vergonha, juro que não conto nada pra ninguém. CARLINHOS (aflito) Não, não. Tranquilo, na moral. YVONNE (afável) Certeza? CARLINHOS (confuso) Não, não... É, é... Certeza!
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84. YVONNE (...) Então, tudo bem. Mas se precisar conversar, pode contar comigo. Entendido?
Carlinhos faz que sim com a cabeça e, depois, dá mais um abraço efusivo em Yvonne, se despede e se afasta. Yvonne volta a atenção para o porta-malas da Kombi. Ela ajeita alguns utensílios utilizados durante a merenda enquanto os voluntários do projeto Uerê arrumam a bagunça deixada após as atividades, como recolher guardanapos e brinquedos lúdicos. Bianca assiste a cena de longe, dividindo sua atenção entre Yvonne e o jornal que tem nas mãos. Distraída na arrumação, Yvonne se surpreende quando um homem, acompanhado de um menino, a chama pelo nome. PROCURADO (cauteloso) Yvonne?! YVONNE (...) Sim, sou eu... PROCURADO (desconcertado) Eu ouvi falar que você educa as crianças de rua, igual que nem lá na escola. Queria saber se tem um lugar pro meu filho. Não sei se a dona sabe, mas não dá pra mim ir na escola pra fazer a matrícula e todo o resto. A gente é sozinho, e eu não queria que ele me tivesse como exemplo. Não precisa ficar com medo de mim. YVONNE (admirada) Sua atitude é admirável. Será um prazer receber seu filho no meu projeto. Aqui, a gente deixa todas as diferenças de lado... O que nos interessa é o ser humano. Mas como soube que eu estava aqui? PROCURADO (...) Tenho meus informantes...
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85.
YVONNE (...) Bom... Amanhã, vamos chegar às 07h30 da manhã e daremos mais informações de como serão os próximos dias do nosso projeto. Vou esperar vocês! O sujeito concorda com a cabeça, pega na mão de seu filho de dez anos, ajeita o boné e os óculos, verifica se a barba falsa está no lugar e vai embora. Yvonne volta para o porta-malas, para checar se está tudo em ordem, quando, eufórica, Bianca chega correndo, em polvorosa. BIANCA (em polvorosa) Você está ficando louca, Yvonne? Meu Pai Eterno... Aquele cara é este mesmo sujeito, olha! O mesmo que estampa as páginas policias. Olha isso aqui... olha isso aqui, Yvonne. Você só pode estar ficando louca, louquinha da Silva! Aquele cara é um dos traficantes mais procurados pela PM do Rio. Ele pensa que está irreconhecível com aquela barba falsa?! Acho que eu preciso de um pouco de água! Enquanto fala, eufórica e assustada, Bianca mostra a página do jornal para Yvonne e aponta para a manchete que diz: "OS MAIS PROCURADOS PELA PM". Na mesma página do jornal há uma foto do sujeito que há pouco conversara com Yvonne, porém, na foto, ele aparece sem a barba. YVONNE (sorrindo) Acabou o surto? Respira... Agora, me ajuda a terminar de arrumar essas coisas no porta-malas, para irmos embora. BIANCA (esbaforida) Pode deixar que, se for preciso, eu arrumo tudo sozinha! Tudo para poder ir embora logo. Levo até nas costas. Meu Pai Eterno!!!
86. INT.QUARTO/YVONNE.MADRUGADA Já é madrugada quando o telefone toca no quarto de Yvonne. Sobressaltado, o marido da assistente social pula da cama e atente o aparelho antes do segundo toque. Ele é surpreendido pela voz de uma criança bastante eufórica, uma voz que ele não reconhece e sequer entende o que diz. Yvonne acorda e fica sentada ao lado do marido, na cama. Na terceira vez que tenta uma resposta, o marido de Yvonne ouve um choro, conseguindo, em seguida, entender que a voz pede para falar com sua esposa. Sem saber do que se trata, ele simplesmente passa o telefone para Yvonne, que reconhece a voz: Carlinhos. Porém, assim como seu marido, ela não consegue compreender muita coisa, apenas percebe o quão assustado está o menino. YVONNE (aflita/ao telefone) Não estou entendendo muita coisa... Tenta ficar calmo... Não se preocupe... Eu já estou indo! Você está sozinho? Então não saia daí. Estou in... Calma. Yvonne coloca o telefone de volta no gancho e vai até o guarda-roupas para pegar algo para substituir os pijamas. Depois de vestir-se, ela apanha a chave do carro que está sobre o criado-mudo, ao lado da cama onde está o marido completamente desperto. MARIDO (curioso/preocupado) O que aconteceu? Está tudo bem? YVONNE (aflita) Duvido que esteja tudo bem. Era uma das crianças... MARIDO (sonolento/preocupado) Já é tarde... Quer que eu vá com você? YVONNE (aflita) Não se preocupe. Qualquer coisa eu dou um jeito de telefonar. Te amo!
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87. MARIDO Vá com Deus.
Corta para Yvonne, que, às pressas, entra no carro e sai da garagem em alta velocidade. EXT.RUA/CENTRO.MADRUGADA Corta para Yvonne. Ela dirige sem rumo por uma rua escura do centro da cidade, nas imediações da praça Pio X, próximo à igreja da Candelária. Ela dirige com máxima atenção, à procura de Carlinhos. Yvonne aciona o farol alto e, ainda que à distância, pode ver duas crianças. Ela pisa fundo no acelerador. Ao estacionar de frente para um prédio em construção, em um beco, Yvonne desce do carro e corre de encontro a Carlinhos e Édinho. ÉDINHO (eufórico) Desculpa, tia. Eu fiz ele telefonar. A gente pedimo seu telefone pra uma moça que trabalha num abrigo do centro da cidade, e... YVONNE (preocupada/curiosa) Calma, calma... Isso não tem problema! O que aconteceu? ÉDINHO (eufórico) Ele me contou... me falou que... que aconteceu uma coisa. Eu falei pra ele que ele tinha que te contar pra você... Mas que merda, Carlim, conta, anda, fala de uma vez. YVONNE (transmitindo calma) O que aconteceu, Carlinhos? CARLINHOS (tenso) Acho que vai dar merda! YVONNE (firme nas palavras) Se você não me contar, não posso ajudar! (CONTINUED)
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88.
CARLINHOS (assustado) No dia que a gente invadimo o metrô e depois dividimo o dinheiro, a Manu falou: EXT.RUA/FLASHBACK/CARLINHOS.NOITE Esse flashback mostra o que aconteceu depois que Manu, João, Beto e Carlinhos dividiram o dinheiro do furto ao metrô, mostra o que foi que Carlinhos fez logo após Manu dizer: MANU (afável) ... fala lá para o pessoal da Candelária que logo a gente tá de volta! CARLINHOS (triste) Porra, Manu, você é incrível. Pode deixar que eu aviso. Como anteriormente, vemos Carlinhos sair em disparada, porém, desta vez, vemos o que aconteceu em seguida. Enquanto corre, Carlinhos fala sozinho, debochando da atitude de Manu. CARLINHOS (sarcástico) Mas é uma idiota, mesmo! Se a acha a mulher-maravilha. "Mas vê se não vai comprar porcaria..." Panaca do caralho. Carlinhos dobra uma esquina. Ele se encosta na parede de um prédio e espia o caminho que acabara de percorrer para certifica-se de que Manu e João não o seguiram. Ao constatar que está de fato só, o menino retira do bolso uma carteira confeccionada em couro marrom e, não por acaso, rasgada na parte exterior. Ao olhar para a carteira, Carlinhos sorri, satisfeito. Por entre os carros que passam, Carlinhos atravessa uma avenida para ir ao encontro de Benê, que o espera do outro lado, na calçada, com cara de poucos amigos. Enquanto alguns motoristas buzinam e apertam o freio a poucos metros de Carlinhos, que parece não se preocupar em aventurar-se no meio dos automóveis. Muitos o xingam de todos os palavrões possíveis e imagináveis.
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89.
Do outro lado da avenida e bufando de cansaço, Carlinhos entrega para Benê a carteira que furtou no metrô. O rapaz respira aliviado quando abre a carteira e vê um punhado de dinheiro. BENÊ (nervoso) Acho que vai dar certo! Vamo nessa. A gente ainda tem que andar bastante. Benê e Carlinhos vão embora. EXT.BECO.NOITE Mais tarde naquela mesma noite. Corta para um beco escuro e deserto. Benê e Carlinhos andam devagar, com cuidado, procurando por alguém. De repente, faróis piscam por duas vezes, indicando a direção a ser seguida. Benê e Carlinhos seguem o sinal, correm para a luz e encontram duas viaturas de polícia estacionadas em meio à escuridão. Os faróis piscam novamente! Ao se aproximarem um pouco mais do ponto indicado, os meninos veem dois policiais de pé na calçada e um motorista em cada viatura, todos com o rosto coberto, sendo que um deles (Policial B, nos diálogos) usa uma máscara igual a do assassino Jason, do filme *Sexta-feira 13. Expressões de ódio, rancor e frieza estão nítidas nos olhos dos PMs. Os dois que estão na calçada se aproximam de Benê e Carlinhos. Por coincidência, Beto dobra a esquina que leva ao beco em ocasião, e ao tomar conhecimento da situação e reconhecer Benê e Carlinhos, se esconde atrás de uma caçamba de recolher entulho. De longe, ele tenta entender o que está acontecendo. Quando estão frente a frente, os dois policias exigem que Benê pague uma dívida em atraso. POLICIAL A (com ódio) A parada é a seguinte, mano, seu filho da puta: comprou, não pagou, morreu! SEXTA-FEIRA 13 (frio/ódio/sarcasmo) Você pensou que a gente não ia te encontrar? Comprar droga da mão de um PM (MORE) (CONTINUED)
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90.
SEXTA-FEIRA 13 (cont’d) e não pagar é a mesma coisa que assinar uma declaração de óbito! POLICIAL A (ameaçador) Cadê a porra da grana? SEXTA-FEIRA 13 (raiva) Eu tô perdendo a paciência. Tô louco pra chegar em casa e foder minha mulher... Então, não empaca! Cadê a porra da grana, seu bosta? Já sem paciência e com medo de que alguém possa aparecer, os policias ficam ainda mais nervosos e agressivos. O "Policial A" pega Benê pelo pescoço e o joga brutalmente contra o capô de uma das viaturas. E com o cano do revólver na testa de Benê, pergunta: POLICIAL A (tremendo de raiva) Cadê, porra? BENÊ (com muito medo) No bolso, caralho... No bolso! Sexta-feira 13 vasculha os bolsos da calça de Benê enquanto “Policial A” o mantém imobilizado sobre o capô do carro. Neste momento, corta para o rosto encapuzado do motorista. Ele assiste a ação de dentro da viatura, deleitando-se com a brutalidade, e finge disparar contra a cabeça de Benê ao mesmo tempo em que reproduz o som do disparo com a boca. Na esperança de que seu doloroso pesar possa persuadir seus algozes a pararem com a selvageria, Carlinhos cai de joelhos e começa a chorar abertamente. CARLINHOS (soluçando/afogado em lágrimas) Para, para... Pelo amor de Deus. Ele tem o dinheiro! Irritado, o motorista que apontou a arma para Benê, que se divertia com o sofrimento do garoto caído sobre o capô de sua viatura, aponta a arma na direção de Carlinhos e diz:
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91.
PM MOTORISTA (ódio) O desgraçadinho vai calar ou boca ou prefere um buraco bem no meio desta tua cara de macaco? Carlinhos se espanta ao ver a arma apontada para sua cabeça e coloca’se de pé em um salto. CARLINHOS (chorando/sofrimento) Eu posso morrer, mas vou morrer olhando pra v... Antes de terminar de dizer que morreria olhando para o PM, o PM solta um grito, uma espécie de silvo, e finge abrir a porta da viatura. E com isso a valentia passageira de Carlinhos desaparece. Ele dá alguns passos para trás e, se ver onde pisa, tropeça e cai sobre um amontoado de pedras de cimento que está sobre a calçada em reforma. Sentindo-se humilhado e chorando baixinho, como se engolisse o choro, ele fica sentado sobre o entulho, apenas a observar e imaginar o que pode vir a acontecer com Benê. Corta para “Policial B, o Sexta-feira 13”. Ele encontra a carteira no bolso do rapaz. POLICIAL B (ofegante/raiva) Achei a porra da carteira... Acho que estava perdida no cu podre dele. Vem pro papai! Ao abrir a carteira e ver a quantia de dinheiro, Sexta-feira 13 chega a espumar de raiva. POLICIAL B (raiva/gritando) Essa merda não paga nem metade da tua dívida, seu filho da puta. Não paga nada, nada. Quem está acostumado com migalhas é você, não eu. Quero o valor total! Sexta-feira 13 fecha a carteira sem retirar o dinheiro e a atira violentamente contra o rosto de Benê. “Policial A”, que ainda o imobiliza sobre o capô da viatura, destrava sua arma para executá-lo com um tiro na nuca, mas por sorte a luz de um apartamento se acende e uma voz ecoa por aquele beco.
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92.
MORADOR (bravo/curioso/gritando) O que tá acontecendo aí embaixo? Vou chamar a polícia. Com medo de serem vistos -- poderiam até esconder o rosto, mas só as fardas e as viaturas já poderiam causar-lhes problemas --, os motoristas chamam os comparsas de volta para as viaturas. Mas antes de sair, Sexta-feira 13 dá um soco na boca do estômago de Benê e um cruzado no rosto. Tremendo de raiva e apontando a arma para o rosto do garoto, Sexta-feira 13, antes de ir embora, deixa o aviso: POLICIAL B (espumando de ódio) A gente quer essa grana , e a gente quer o mais rápido possível. Ou então essa cidade vai passar por uma faxina! Tá me entendendo, seu bosta? Depois de dar o aviso, Sexta-feira 13 agride Benê novamente. Ele acerta uma coronhada na cabeça do rapaz e o derruba na calçada. “Policial A” aproveita que Benê está caído no chão para chutá-lo e cuspir em sua cara. Tudo acontece muito rápido. Outras luzes se acendem. Os policiais correm e entram nas viaturas. Os motoristas aceleram e deixam o local. A velocidade faz os pneus cantarem. Dentro dos veículos, os PMs descobrem os rostos. Impulsivos, Carlinhos e Benê arremessam várias pedras -aquelas que estavam amontoadas sobre a calçada -- contra as viaturas. Em um dos arremessos, Carlinhos atinge a lanterna traseira esquerda de um dos veículos, e ela se estilhaça. Benê e o amigo arremessam várias outras pedras de cimento, e algumas acertam a lataria de ambas as viaturas, fazendo surgir pequenos amassados e arranhões. Quando estão quase para dobrar a esquina e, enfim, sair do beco escuro, uma grande pedra de cimento atinge o vidro da janela dianteira da viatura que segue na frente, o que faz aparecer um trincado na altura do rosto do passageiro. O impacto assusta os PMs, porém, apesar do sobressalto, eles não param. Close em Beto, outro menino que vive na Candelária. Foi ele quem arremessou a pedra. Podemos ver e reconhecer, mesmo que por outro ângulo, a esquina onde as viaturas fazem a conversão. É a mesma em que as viaturas viraram no flashback de Manu, João e Wagner, quando os três amigos conversavam no calçadão de Copacabana e tiveram a conversa interrompida por som de pneus cantando (CONTINUED)
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no asfalto. Vemos novamente, mas por outro ponto de vista, o momento em que a viatura que segue na dianteira, a que tem o vidro trincado, sobe na calçada com o pneu traseiro, na hora de fazer a conversão para entrar na avenida Atlântica. Corta para o beco. Beto corre em direção a Carlinhos e Benê para saber se eles estão bem. O lábio superior de Benê está sangrando. Carlinhos recolhe a carteira que está no meio da rua. BETO (assustado/curioso) O que aconteceu? BENÊ (sentindo dores no corpo e cuspindo sangue) Acabei de visitar o inferno! EXT.PRAÇA/CANDELÁRIA.DIA Já de manhã, depois do desjejum e das aulas do projeto Uerê, e enquanto alguns adolescentes praticam esportes e crianças brincam na praça, a conversa que Yvonne iniciou com Carlinhos e Édinho continua com o próprio Benê. Corta para Yvonne e Benê. Eles estão um tanto afastados dos demais, sentados no último degrau da escada da igreja da Candelária BENÊ (um tanto estúpido) É, dona Yvonne, foi isso mesmo que aconteceu. Mas o pirralho do Carlinhos não tinha nada que te contar. Eu sei se virar muito bem sozinho. Foi assim a vida toda, sempre sozinho. Nunca precisei de ajuda de ninguém, e não vai ser agora que vou precisar... Quem tem babá é filho de rico! YVONNE (afável) Todo mundo precisa de ajuda. Até o mais forte dos homens. Após refletir por alguns segundos, Benê toma um pouco de ar e, com a voz embargada, se abre com Yvonne.
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94.
BENÊ (voz embargada) Isso não foi tudo que aconteceu. A merda não para por aí. Eu tô com a vida ferrada de todos os lados. Depois dessa parada com esse bando de porco fardado, eu subi o morro pra comprar um pouco mais de de droga. Também fui ver se o "trafica" aceitava a grana que eu tinha. Em flashs, vemos que o rapaz branco que tentava comprar droga no escritório do traficante (cena 19), que apanhou e foi ameaçado pelo chefe do tráfico, era, na verdade, Benê. YVONNE (indignada) Era você? Por que não contou a verdade? Por que mentiu dizendo que era um conhecido seu? BENÊ (indiferente) Porque todo mundo já tá ferrado demais... Ninguém precisava saber de mais essa desgraça. Na verdade, isso não tem importância, porque eu já estou morto, jurado de morte pelo chefe do tráfico e pela PM... O que é pior, dona Yvone? Que merda é pior? Diz pra mim. Tem gente que fala que é na dor que se aprende a viver. O caralho que é! Quem falou isso deve ser muito rico e a única dor que conhece, com certeza, é a dor de cabeça, que se resolve com qualquer ida à farmácia. Toda vez que tento encontrar algo bom na dor, só encontro mais dor. Só tomo no cu. Benê se levanta, olha para o topo da igreja da Candelária, diretamente para uma cruz, abre os braços e começa a gritar, como se falasse com Deus.
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95. BENÊ (muito nervoso) Ei, Deus, tá esperando o quê? Me mata de uma vez, porraaaaaaaaaa! Não suporto mais. YVONNE (...) Tenta se acal...
Depois de gritar, Benê sai correndo, sem nem mesmo ouvir o que Yvonne começava a dizer. Corta para Yvonne, que leva as duas mãos à cabeça, bastante preocupada. VOLUNTÁRIA A (feliz/gritando) Yvonne, corre aqui! Ainda com as mãos na cabeça e bastante aflita, como se pensasse em algo, Yvonne olha na direção da voluntária que pula e acena. INT.TENDA UERÊ/PRAÇA CANDELÁRIA.DIA Corta para uma tenda do projeto Uerê armada na praça da Candelária, para um enorme bolo cor-de-rosa, todo enfeitado com lacinhos de glacê. É aniversário de Cacau e chegou a hora de cortar o primeiro pedaço, por isso a voluntária chamava por Yvonne. Há sete daquelas velinhas que soltam faíscas sobre o bolo. Corta para Yvonne, que chega cantando parabéns. Os voluntários -- todos vestindo a camiseta branca do projeto Uerê -- batem palmas e cantam "parabéns para você". Close em Cacau, que chora e ri de felicidade. Está todo mundo reunido na tenda que é sempre armada para que os voluntários possam lecionar (três tendas postas lado a lado que formam uma única tenda grande). Após os parabéns, corta para uma das voluntárias. VOLUNTÁRIA A (feliz) Cacau, você quer falar alguma coisa? CACAU (chorando/soluçando/contente) Eu nunca tinha visto um bolo tão de pertinho... É tão lindo! Eu posso comer?
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96.
VOLUNTÁRIA A (sorrindo) Claro que pode! Aliás, todo mundo pode. Vamos formar um fila. CACAU (curiosa/feliz/eufórica) E quantos anos eu tô fazendo, tia? VOLUNTÁRIA A (divertindo-se e um pouco desconsertada) Você ainda é muito nova para se preocupar com a idade... Bora comer bolo!!! Enquanto os voluntários distribuem pedaços de bolo, Yvonne se afasta para sentar-se sobre um banquinho de madeira, ao lado do quadro-negro que é utilizado nas aulas e onde as vogais estão escritas em giz azul. Yvonne parece bastante preocupada, pesantiva. Corta para as crianças. Rostos sujos de bolo. Todo mundo está feliz. Notamos que o tempo passou por causa do bolo, que agora não passa de migalhas. Corta para Yvonne. A assistente social se assusta, como se acordasse de um pesadelo, quando uma das voluntárias coloca a mão em seu ombro. YVONNE (afável) Bonito gesto, Paula! Ela ficou muito feliz. VOLUNTÁRIA A (feliz) A Cacau tinha comentando que nunca tinha comido bolo, que nunca nem tinha vista um bolo de perto. Duda deu a ideia! Valeu pelo sorriso delas e das outras crianças. YVONNE (...) Verdade... "Voluntária A" (Paula) percebe que algo aflige Yvonne. VOLUNTÁRIA A (preocupada) Está tudo bem, Yvonne?
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97.
YVONNE (tentando disfarçar o nervosismo) Sim, claro... Só estava pensando em algumas coisas. VOLUNTÁRIA A (amigável) Sei... Coisas que, tenho certeza, vão te tirar o sono. A gente vai fazer uma foto, você vem? YVONNE (animada) Claro. Não perderia por nada! De onde está, a voluntária A grita avisando que fará uma foto nas escadas da igreja da Candelária. VOLUNTÁRIA A (gritando/alegre) Pessoal, todo mundo lá pra fora. Vamos fazer uma foto na escada da igreja, para recordar esse dia maravilhoso. Todo mundo correndo pra lá!!! EXT.PRAÇA/CANDELÁRIA-FOTO.DIA Corta para a escada da igreja da Candelária. Todas as crianças e adolescentes estão reunidos nos degraus, alguns ainda têm o rosto sujo de bolo. Yvonne está no centro, abraçada por Manu e Wagner. Além de Yvonne, é possível ver mais três voluntários entre as crianças. Vemos quando uma das voluntárias pede para que um passante registre o momento. VOLUNTÁRIA B (alegre) Bom dia! Você se importaria de fazer uma fotografia, por gentileza? A voluntária entrega a câmera e corre para junto das crianças. YVONNE (feliz/gritando) No três, todo mundo grita Uerê. Certo? Vamos lá... UM, DOIS, TRÊS: Uerêêêêêêê!
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Em uníssono, todos gritam "Uerê", e o flash da câmera fotográfica é disparado. Numa fração de segundo, a fotografia (still) preenche o quadro. Fim de cena! EXT.INT.BILHETE/SOTCK-SHOT.DIA.NOITE Vemos Yvonne sentada de costas. Ela está em uma espécie de escritório, em algum cômodo de sua casa. Corta para a ponta de uma caneta MontBlanc que começa a desenhar as primeiras letras em um pedaço de papel. YVONNE (somente narração/off) Meu amor, certa vez prometemos que a mentira jamais teria lugar nesta casa. Por isso, hoje, é meu coração que escreve por mim. Stock-shot! O marido de Yvonne acaba de acordar, vestido apenas com a calça do pijama. O vemos de frente para o espelho que há no quarto. Ele pega um papel que está colado com fita adesiva na moldura dourada do espelho. É o bilhete que Yvonne escreveu há pouco. YVONNE (somente narração) Gostaria de agradecer por cada momento que tivemos, por cada sorriso. Agradecer por todos os abraços que me deu, pela alegria que me proporcionou, e por quando me deixou entrar na sua vida e nela aprender amar. Stock-shot! Close na mão do marido da assistente social. Ele segura o bilhete enquanto o lê. A mão está trêmula. Essas imagens são sobrepostas por outras que mostram novamente a ponta da caneta desenhando as letras. Em seguida, podemos conferir Yvonne sentada, escrevendo o bilhete. Ela tem lágrimas nos olhos. A imagem da mão que segura o bilhete não desaparece por completo. YVONNE (somente narração) Obrigado por me entender sem me rotular, e obrigado por aceitar minha filosofia de vida. Stock-shot de Yvonne com sua amiga Bianca e os voluntários servindo o café da manhã para as crianças da Candelária. Algumas crianças e adolescentes comendo e bebendo, algumas crianças conversando nos degraus da escada da igreja da (CONTINUED)
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99.
Candelária, garotinhas pulando amarelinha, alguns adolescentes bêbados e outros, drogados. Garotos jogando futebol (close nos pés que chutam a bola). Crianças que se recusam a aprender o que Yvonne ensina. Crianças e adolescentes tendo aulas com Yvonne e outros voluntários. YVONNE (somente narração) Sei que sou apenas um pontinho tentando fazer a diferença, mas se é verdade que para cada ação existe uma reação, então, vou seguir tentando. Stock-shot! Corta para o Marido de Yvonne sentando-se na cama. Já sentado, ele apoia cotovelo na perna e afunda a testa na a palma da mão. Ele continua a ler o bilhete. MARIDO (somente narração) Desde o início, eu sabia que essa minha decisão nos reservava um assento exclusivo na ala da exclusão social. Não me importo! Stock-shot! Duda segura Cacau pelos braços e a começa a rodar, a rodar até que os pequenos pés da garotinha não toquem mais no chão. Do alto, vemos Duda girando Cacau. Close no rosto de Duda, que ostenta um largo sorriso. Podemos ver os braços da Duda segurando os de Cacau. O fundo do quadro está um tanto desfocado devido ao movimento giratório que as meninas fazem. Stock-shot! João e Manu estão sentados em um banco. Eles se beijam. Ao fundo está a igreja da Candelária. Os sinos das torres soam e assuntam um bando de pombos que dormia nas torres. As aves partem em revoada. Há muitos pombos, porém, dentre eles, os brancos se destacam. É noite. Cadú e Léquinho saem do mar vestindo apenas cueca e se jogam na areia, bem ao lado de onde estão suas roupas. Encharcados, eles deitam bem próximos um do outro, entrelaçam os dedos atrás de suas cabeças e admiram o céu estrelado. YVONNE (somente narração) O que mais quero é que essas crianças possam viver com dignidade e respeito. Eu as amo assim como amo a nossos próprios filhos, e desejo a elas, com a mesma intensidade que desejo a nossos filhos, que possam crescer e se transformar em seres humanos felizes e realizados. (CONTINUED)
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100.
Stock-shot! Armado, um garoto menor de idade assalta a motorista de um carro que está parado no trânsito. Perturbado, o garoto aponta a arma e grita. Com pressa e no calor da emoção, ele dá um tiro para o alto e exige que a vítima se apresse em passar a bolsa. Pela janela do carro, a motorista entrega a bolsa enquanto chora desesperadamente. O assaltante foge a pé, correndo por entre os carros parados no sinal. Em outra sequência de cenas, alguns dedos queimados colocando fogo em uma pedra de crack. Vemos adolescentes fumando cigarros de maconha e meninas tentando vender o próprio corpo em plena luz do dia. Crianças roubam bolsas de mulheres que andam distraídas pelas calçadas do centro do Rio. YVONNE (somente narração) Alguns desses adolescentes, até mesmo as crianças, muitas com menos de doze anos de idade, já não sonham mais. Tão novas e já tendo de carregar um fardo tão pesado. Não consigo fechar meus olhos para imaginar como seria minha vida se eu ficasse de braços cruzados, ignorando tudo aquilo que acontece lá fora. Enquanto eu tiver forças, vou sempre ajudar a enxugar as lágrimas de nossas crianças, e o farei com alegria e inteira disposição. Stock-shot! Com ajuda de binóculos, integrantes do crime organizado avistam quando o carro vermelho de Yvonne estaciona na pé do morro. Dois homens armados com fuzis e rostos cobertos recepcionam Yvonne. Um deles aponta a arma na direção dela, enquanto o outro se aproxima. Podemos ver Yvonne conversando e gesticulando com o sujeito armado. Ela parece explicar o motivo que a leva até o morro. O sujeito troca algumas palavras com seu comparsa e gesticula com a cabeça, como se o mandasse levar Yvonne morro acima. O sujeito pega Yvonne pelo braço e a conduz. Com uma mão, o sujeito agarra o braço direito de Yvonne, com a outra, segura um fuzil. Pessoas observam a cena das janelas de suas casas. Algumas mulheres e crianças parecem reconhecer Yvonne. Eles continuam a subir o morro. Passam por vielas escuras cujo aspecto lembra o de abandono, descaso. YVONNE (somente narração) Nas próximas horas, me empenharei em salvar uma vida. Ainda que isso possa custar a minha vida. Não se (MORE) (CONTINUED)
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101.
YVONNE (cont’d) preocupe, apenas reze. Caso eu não volte, diga para os nossos filhos que eu os amo. Com amor e carinho, Yvonne. Sotck-Shot! Em close, vemos a chama de um palito de fósforo acender o pavio de uma vela branca. Em plano aberto, vemos que a vela está em um altar onde há uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida e outra de São José. A chama da vela é a única luz do cômodo. Em outro ângulo, o marido de Yvonne se ajoelha diante do altar e começa rezar. Ele tem lágrimas nos olhos. EXT.VIELAS/FAVELA.DIA A fim de não chamar muita atenção, o sujeito que guia Yvonne pela favela resolve caminhar por vielas mais desertas e labirínticas. Yvonne observa atentamente tudo que se passa à sua volta. Eles caminham por alguns becos que mais parecem corredores de hospitais com superlotação, vêem pessoas aparentemente doentes (sabemos que estão drogadas) caídas nas sarjetas. Passam por jovens que injetam alguma substância na veia com auxílio de seringas e agulhas imundas. A atmosfera do local onde estão é deprimente, pesada e angustiante. Após caminharem por metros e metros sem dar uma palavra sequer, o sujeito armado tira o capuz e rompe o silêncio. SUJEITO 1 (blasé) Você é louca, dona. Já ouvi gente falando a teu respeito. Esse povo aí não precisa de ajuda, não. Já estão mortos. É só uma questão de tempo. YVONNE (ríspida) Exatamente! É uma questão de tempo. E enquanto houver tempo, por que não ajudar? SUJEITO 1 (demonstrando indignação) A senhora é algum tipo de demônio que sente prazer pela desgraça alheia ou o quê? Parece que gosta de colecionar histórias tristes, (MORE) (CONTINUED)
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102.
SUJEITO 1 (cont’d) que gosta de sentir o sabor salgado das lágrimas dessas crianças, e... YVONNE (ríspida) Onde você quer chegar com este papo furado, com esta lengalenga? SUJEITO 1 (inconformado) O que você acha que um pai seria capaz de fazer para sustentar seu filho, quando a vida não lhe deu oportunidades? Não tenho filhos. Este não é meu caso, mas conheço pessoas que vivem essa situação. Yvonne não responde, apenas segue caminhando ao lado do sujeito, ouvindo o que ele diz. SUJEITO 1 (tranquilo) Tem gente que passa uma vida toda à espera de uma oportunidade, dona. Mas a vida não é gentil e doce com todo mundo. Olha para mim, quantos idiomas você acha que eu falo? Yvonne continua a ouvir SUJEITO 1 (sentimental) Tsc! Foi o que imaginei. São poucos os que sobrevivem. Yvonne desvia de algo com aparência de chorume e tapa o nariz com o dorso da mão. SUJEITO 1 (tranquilo) A gente já está chegando. Não vai demorar muito! Yvonne segue caminhando ao lado do sujeito. Eles passam por vielas cada vez mais imundas, algumas com latões de lixo em chamas, pessoas drogadas caídas pela calçada, lixo esparramado etc. Ao dobrarem à esquerda, entram em outra viela e dão de cara com uma espécie de pátio cercado pelos casabres. Neste local acontece uma feira, um pequeno comércio a céu aberto onde é vendido desde peixe e outros alimentos a brinquedos e roupas. Eles passam pelo comércio. (CONTINUED)
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103.
Há bastante gente, e a maioria esmagadora olha para o sujeito armado que segura Yvonne pelo braço e a conduz. Eles dobram à direita e, depois de deixar a feira para trás, param de frente para uma escada de cimento bastante íngreme e estreita que serpenteia por entre inúmeros barracos. SUJEITO 1 (explicativo) Antes de a gente seguir, vou ter que vendar teus olhos. Questão de segurança! Yvonne faz que sim com a cabeça. Enquanto o sujeito arrama a venda, Yvonne leva a mão ao peito, logo acima das palavras "PROJETO UERÊ" de sua camiseta branca. SUJEITO 1 (irônico) Seja lá o que você for fazer, boa sorte! Diz o sujeito enquanto abana o dedo do meio de um lado para o outro bem diante dos olhos vendados de Yvonne, apenas para ter certeza de que ela não está enxergando absolutamente nada. Os dois começam a subir as escadas. Fim de cena! INT.CASA/FAVELA.DIA Close em uma mão que bate com vigor à porta. Dois homens armados a abrem. SUJEITO 1 (impondo-se) Visitinha pro chefe! A casa onde Yvonne chegou é infinitamente melhor que as outras da comunidade: é uma casa grande, bonita. Opulência escondida no meio da pobreza. Dois homens armados abrem a porta e puxam Yvonne pelo braço, a puxam para interior da casa, enquanto o sujeito que a trouxera fica do lado de fora. Yvonne é levada para uma sala apertada. Lá dentro, um dos homens retira a venda dos olhos dela. E antes que possa perguntar algo, os dois sujeitos a trancam no cômodo, sem dar explicação nenhuma. Um tanto assustada, Yvonne olha para todos os lados da sala. Segundos se passam quando, de repente, uma mulher bastante gorda, negra e mal-encarada abre a porta do cômodo onde está a assistente social. Após entrar, ela tranca a porta (CONTINUED)
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104.
novamente às suas costas. Com o rosto lívido de cólera, a gorda observa Yvonne de cima a baixo. GORDA (sem paciência) Tira a roupa... Yvonne, claro, hesita, e olha indignada para a mulher, na esperança de que ela mude de ideia. GORDA (nervosa) Que foi? Não vai tirar a roupa, não? Já esqueceu como se faz? Ou tira por bem, gracinha, ou vou ter que tirar para você. E acho bom andar logo, porque minha paciência tem limite e eu não tenho o dia todo pra você, burguesinha do caralho. YVONNE (balbuciando) Mas pra quê? GORDA (com raiva) Não te interessa!!! Anda logo, galinha. Já mandei tirar a roupa. Cabisbaixa e sentindo-se moralmente ofendida, Yvonne se vira para a parede e começa a despir-se. Quando tira a última peça de roupa, a gorda começa a circundá-la, tal como um leão que rodeia a preza antes do ataque. Quando está na metade da segunda volta, a gorda para e, olhando nos olhos de Yvonne, diz: GORDA (desdém) Que bucetinha mais sem graça! Debocha do corpo franzino de Yvonne. GORDA (autoritária) Agora, agacha. YVONNE (perplexa) O quê?
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105.
Por causa do olhar fulminante, extremamente ameaçador, a gorda não precisa repetir a ordem. Yvonne faz o que a gorda manda e, em seguida, recebe ordem para se levantar. A gorda, então, manda Yvonne repetir a mesma ação por mais três vezes. Quando a humilhação chega ao fim, a mulher mal-encarada conclui que Yvonne não esconde nada que possa colocar a vida do chefe do tráfico em perigo. GORDA (deboche) Pode colocar sua roupa de volta, madame. O chefe já vai te antender. Vem comigo. Às pressas, Yvonne começa a vestir-se de volta. A gorda usa o queixo para indicar o caminho da porta. Yvonne compreende o gesto e segue para o local apontado. INT.ESCRITÓRIO/CASA/FAVELA.DIA Segurando Yvonne pelo braço, a gorda abre uma outra porta e a empurra para dentro. GORDA (irônica) É toda sua! A gorda sai e bate a porta atrás dela. Yvonne dá alguns passos para frente. Corta para o chefe do tráfico (o mesmo que havia agredido o viciado que, na verdade, era Benê). Ele está sentado atrás de uma mesa e sorri de forma sarcástica para Yvonne, ao mesmo tempo que aponta para uma cadeira, fazendo sinal para ela sentar-se. Corta para o outro cômodo, onde a gorda faz comentários a respeito de Yvonne com um de seus comparsas. GORDA (irônica) Não sei onde essazinha enfiou cabeça. Deve ter enfiado no cu... Mulher louca! COMPARSA (curioso) O que ela veio fazer aqui? GORDA (séria) Pelo que escutei atrás porta, parece que ela veio negociar a dívida de um cara. Se pelo menos (MORE) (CONTINUED)
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106.
GORDA (cont’d) fosse filho dela! Quer saber, papo reto? Ela que "se foda-se". Corta para o "escritório". Lá dentro, a conversa de Yvonne com o traficante já acontece há alguns instantes. CHEFE DO TRÁFICO (debochando/rindo) Você é algum tipo de pomba branca da paz? Você sobe até aqui, no MEU morro, pra me dizer o que devo ou não fazer? Que bagulhou louca a dona usou? Nervoso, o chefe do tráfico dá um soco sobre a mesa, apanha a arma que está sobre móvel e a aponta para o meio da testa de Yvonne. Ela, com muito medo, fecha os olhos com força, aguardando o disparo. Ao perceber que o traficante abaixou a arma, ela abre os olhos lentamente. E o sujeito continua: CHEFE DO TRÁFICO (ríspido) Que merda você pensa que é? Aqui é assim, dona: comprou, não pagou, morreu! Simples assim... Fácilzinho de entender. YVONNE (começa balbuciando, ficando firme em seguida) Uma noite... só mais uma noite. É o que eu te peço! Assim você e o Benê se acalmam. Pense nas crianças. Elas não têm culpa de nada. Elas gostam dele. São todos uma família. Não é possível que não haja um coração dentro de você. CHEFE DO TRÁFICO (um tanto irritado) Ou o Benê fode muito bem ou você é mesmo como dizem por aí: corajosa. Se arriscar pela vida de um bosta como ele. Puta que pariu três vezes!
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107. YVONNE (destemida) Como é que você consegue dormir? Quanto vale ter as mãos e a alma manchadas pelo sangue desses rapazes, dessas crianças? CHEFE DO TRÁFICO (irônico) E eu lá sou Deus pra fazer caridade? YVONNE (firme em sua postura) Não, claro que você não é Deus. Mas detém um poder muito forte sobre a vida e a morte de muita gente. Você BRINCA de ser Deus. E hoje, de novo, é você quem decide se um rapaz vai viver ou morrer. CHEFE DO TRÁFICO (estressado) Cala a boca, porra! Tá me irritando. Você não quer morrer no lugar dele, quer?
Yvonne fica em silêncio, olhando nos olhos do chefe do tráfico. CHEFE DO TRÁFICO (irônico) É claro que não quer! Tudo bem limite, né? O sujeito tem outro ataque de fúria e novamente soca a mesa. Trêmula e com os olhos marejados, Yvonne encontra força para pedir por favor. YVONNE (balbuciando) Por favor! Corta para o lado de fora do cômodo. A gorda e quatro sujeitos fortemente armados fazem a segurança do local quando, feliz e saltitante, uma criança invade a sala. Ninguém faz nada para impedi-la. É Belinha, a filha caçula do chefe do tráfico. Ela passa por entre os comparsas de seu pai, todos armados com fuzis, e parece acostumada com aquele tipo de cena, pois age naturalmente. Em uma das mãos, Belinha segura uma flor branca.
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108.
Corta para a flor. Vemos a flor contraposta às armas dos cinco sujeitos conforme ela passa por eles. Sem as formalidades de bater na porta, Belinha entra e vê seu pai apontando uma arma para uma mulher desconhecida: Yvonne. Ela grita: BELINHA (muito assustada) Paaaaaaaaiiiii... Ao escutar o grito da filha, o chefe do tráfico abaixa rapidamente a arma, tentando escondê-la. Porém, apesar de não ter mais que oito anos, Belinha é esperta, e o pouco que viu foi suficiente para entender o que acontecia no momento em que abrira a porta daquele cômodo. Triste, talvez mais decepcionada que triste, a menina abaixa a mão que segura a flor. Em close, vemos a flor apontando para o chão, na mesma direção dos fuzis. Logo, com a mesma suavidade de uma folha que se desprende de um galho, a rosa se desprende da pequena mão que a segura. Em slowmotion, vemos o momento em que a flor toca o chão. O traficante se levanta e tenta gesticular algo com as mãos. Ele tenta procurar as palavras certas para convencer sua filha de que tudo não passava de um mal-entendido, mas já é tarde demais. A menininha sai correndo pela porta. O traficante olha para gorda, que logo entende o desejo do chefe: buscar sua filha. Pensativo, quem sabe arrependido, o chefe do tráfico afaga o queixo e, aparentemente perdido em pensamentos, senta-se de volta na cadeira em que estava. Yvonne retoma a conversa e usa a situação a seu favor. YVONNE (comiseração) Por favor, deixa o garoto viver. Não só por ele, mas por todos que convivem com ele. Pense nas crianças que perdem seus pais... nos pais que perdem suas crianças. Eu te peço... Só por um segundo... Feche seus olhos e tente se imaginar no lugar dessas criancas. Como você reagiria se fosse com sua família? E se sua filha, essa menininha linda que acabou de presenciar essa cena desprezível, estivesse com a vida ameaçada? E se ela pudesse (MORE) (CONTINUED)
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109. YVONNE (cont’d) morrer hoje à noite por causa de um erro que não é só dela? Consegue imaginar? Tenho certeza que você não gostaria de ver o corpinho dela coberto de sangue, jogado em alguma calçada imunda como se fosse... Como se fosse um objeto descartável. A morte de Benê causaria uma ferida profunda em muita gente.
Nesta última frase, quando Yvonne afirma que a morte de Benê causaria dor em muita gente, vemos alguns flashes de Benê brincando com as crianças da Candelária, abraçando colegas da mesma idade, rindo e chorando com alguns dos amigos que ele tem como sua família. São flashes rápidos, terminam assim que a voz de Yvonne se cala. Desta vez, sem interromper Yvonne, o chefe do tráfico parece refletir sobre as palavras que ela diz. CHEFE DO TRÁFICO (pigarrando/indiferente/aparentemente refletindo sobre sua filha) Pode dormir tranquila, dona. Vou poupar a vida dele. Mas só por enquanto! Dívida é dívida. Você ganhou sua noite de sono e, também, o meu respeito. Agora me deixa trabalhar. Um tímido sorriso brota nos lábios de Yvonne, um sorriso que se traduzido em palavras diria algo como “muito obrigado”. Porém, claro, o gesto não é recíproco. O chefe do tráfico permanece sentando, indiferente. Yvonne se levanta e vai direto para a porta. E no meio do caminho, pouco antes de alcançar a saída, ela pega a flor que Belinha soltara antes de sair correndo. Corta para o cômodo onde estão os comparsas armados. O sujeito que guiou Yvonne pelas vielas da favela está esperando por ela. Quando Yvonne começa a caminhar rumo à saída na companhia do sujeito, o chefe do tráfico grita de sua sala: CHEFE DO TRÁFICO (gritando/alertando) Fica esperta, dona. Os piores criminosos caminham entre vocês. Eles andam fardados!!! (CONTINUED)
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110.
Corta para o exterior da casa. Quando o sujeito está prestes a vendar os olhos de Yvonne novamente, a assistente social vê Belinha sentada no balanço de um pequeno play-ground de uma pracinha abandonada. Yvonne, então, pede para que o sujeito lhe deixe falar com a menina. YVONNE (tranquila/prometendo) Prometo que não vou demorar... Só quero devolver a flor para ela! O sujeito consente. Yvonne atravessa o playground e se agacha de frente para Belinha, estendendo-lhe a mão com a flor. Belinha recebe a flor com um largo sorriso impresso no rosto. Yvonne faz um rápido afago na bochecha da menina e aproveita para enxugar as lágrimas do rostinho angelical dela. A gorda observa a cena e reprova o gesto de Yvonne com a cabeça. Do outro lado da pracinha, na viela, o sujeito acena para Yvonne, chamando-a de volta. SUJEITO 1 (estúpido) Já deu! Vamos embora. O sujeito novamente venda os olhos de Yvonne e começa a guiá-la morro abaixo. Close em Belinha, que cheira o perfume da flor enquanto sorri. Corta para o pé do morro. Yvonne dá partida no seu carro e, antes de acelerar, recosta-se no banco de couro e suspira aliviada. EXT.PRAÇA/CANDELÁRIA.TARDE Na tarde do mesmo dia, Yvonne vai até a praça Pio X, na Candelária, para dar a notícia a Benê e acompanhar as últimas horas de aula do projeto Uerê. BENÊ (envergonhado/drogado) Aí, Yvonne, nem sei como agradecer. YVONNE (afável) Você, conversando comigo, já é o suficiente. Não precisa agradecer por nada. Mas tenta ficar longe desse tipo de (MORE) (CONTINUED)
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111.
YVONNE (cont’d) confusão. Tenta, mesmo que aos poucos, se afastar dos vícios. Sei que é difícil, mas... BENÊ (ríspido) Eu já tentei... Benê fica em silêncio por alguns instantes, talvez tentando formar uma frase para dizer. BENÊ (triste/pensativo) Sabe aquela lâmpada que tem nos botecos? Aquela que os dono de bar usa pra matar mosca? YVONNE (sem entender) Sei... BENÊ (cabisbaixo/balbuciando) Ela fica lá, com todo aquele brilho, hipnotizando a coitada da mosca, que acaba não resistindo. Ela vai voando, voando... cheia de vontade. Ela não consegue se controlar. É mais forte que ela. Ela é fraca, uma pobre coitada. Quando menos espera, quando pensa que vai ter um pouco de prazer, que vai fugir de todo seu medo e dor... dzzzziiiiii. A merda já tá feita. Ela cai na armadilha e morre esturricada. E o pior de tudo é que sempre vai ter outra mosca burra pra fazer a mesma coisa, mesmo sabendo... Mesmo já tendo visto que várias de suas amiga morreu fazendo isso. Mas a idiota não consegue resistir. Não sabe como resistir. Bêne para, suspira, ri timidamente e continua:
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112.
BENÊ ...Bom, eu sou só mais uma mosca estúpida! Quando termina de falar, já um tanto irritado consigo mesmo, Benê abaixa a cabeça e sai correndo. Ele deixa Yvonne sozinha, plantada na praça, refletindo sobre suas palavras. A assistente social olha para a cruz do topo da igreja da Candelária como se pedisse proteção para o rapaz. Yvonne volta seu olhar para as tendas do projeto Uerê, onde as aulas ainda estão acontecendo, e se coloca de pé. EXT.INT.TENDAS/UERÊ - PRAÇA PIO X.TARDE Com o coração inchado de orgulho e felicidade, Yvonne para na entrada de uma das tendas e sorri, realizada ao ver que o projeto Uerê vai fincando raízes. Da porta, ela assiste à aula de uma das voluntárias que ensina as vogais para as crianças. A voluntária pede para que as crianças falem o nome das letras à medida em que são apontadas no quadro-negro. Em uníssono, as diversas vozes repetem: "A E I O U". Yvonne começa a andar pelo interior da tenda e para ao lado de um grupinho de crianças que faz desenhos coloridos em folhas brancas. Yvonne sorri ao ver Manu sentada no chão, totalmente compenetrada na leitura de um livro. O tamanho da caixa com doações de roupa de frio rouba a atenção de Yvonne. "Voluntária A" distribui algumas peças desta para crianças, adultos e adolescentes. De frente para um espelho, Yvonne olha para a camiseta do Projeto Uerê que está vestindo, e um lágrima de alegria contorna-lhe o rosto. EXT.PRAÇA/CANDELÁRIA.MADRUGADA Como o olho de um ciclope curioso, a lua, parcialmente encoberta por nuvens, espia intermitentemente o que acontece aqui embaixo, na praça Pio X. A noite é um pouco fria e, por isso, as crianças e os adolescentes dormem amontoados em pequenos grupos, que ocupam diversos lugares da praça de frente à Candelária. De repente, um facho de luz passa sobre as crianças, vai da direita para a esquerda, e clareia não só elas, mas tudo o que está em seu campo de projeção. (CONTINUED)
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113.
Após o primeiro facho de luz, outros dois fazem o mesmo trajeto. Esses fachos são produzidos por três carro: duas viaturas de polícia e um Chevrolet Chevette amarelo. Os carros não param, simplesmente seguem até sair de cena. Os ocupantes dos veículos estão à procura de alguém. Mesmo com os clarões, ninguém acorda... Todos permanecem deitados na mesma posição! Segundos depois, com a mesma habilidade de um gato, dois policiais caminham por entre as crianças que dormem o mais próximo da rua, na sarjeta. Corta para as botas oficiais da PM que movimentam-se de um lado para o outro, quase tocando as cabeças e os rostos. Os PMs param de frente para um amontoado de crianças que, para amenizar o frio, dormem cobertas com velhos pedaços de papelão. A iluminação da praça é deficiente, porém o bastante para reproduzir as sombras dos policiais. E através das silhuetas, é possível ver quando um deles gesticula negativamente com o dedo polegar ao encontrar um rapaz com características físicas semelhantes às de Benê. Sem encontrar quem procuram [Benê], os PMs dão meia volta para ir embora. Conforme caminham no meio das crianças, as luzes fazem com que as silhuetas deles se pareçam com as de dois gigantes, o que acaba por gerar um clima ainda mais aterrorizante à cena. Os PMs caminham em total silêncio e, ao passar pelo último amontoado de crianças que os separa da rua, Cacau acorda. A menina se depara com dois pares de botas pretas bem diante de seus olhos, a poucos centímetros de seu nariz. Cacau se assusta e segura o grito com as duas mãos, sentindo o sabor amargo do medo escorrer em seco por sua garganta. Instantaneamente, os olhos de Cacau se enchem de lágrimas! Ela fica imóvel e se esforça para ficar em silêncio, pois sabe que qualquer ruído, por menor que seja, pode ser fatal. Cacau volta a respirar aliviada apenas quando os PMs começam a se afastar, e vê quando eles param e sussurram algo entre si. Porém, ela consegue ouvir só a parte em que eles dizem: SEXTA-FEIRA 13 (possesso/raiva/sussurrando) Pelo jeito, o desgraçado tá esperto... Não tá vindo dormir com os filhotes da mesma cadela! Diz o PM enquanto retira sua máscara de Jason.
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114.
POLICIAL A (raiva) Eu tô começando a ficar irritado. Tá na hora de tocar terror, mermão! "Policial A" aponta sua arma para as crianças que dormem no chão da praça. Nervosos, eles voltam a caminhar, rumo às viaturas. Close no rosto de Cacau. Ainda com medo, a garotinha mantém o grito preso na boca enquanto as lágrimas continuam a inundar seu rosto. EXT.SEDE/RUA/BARRACOS.MADRUGADA Cadú, Léquinho, Manu e João estão em uma escola de samba, na comunidade de um morro. Eles curtem bons momentos ao ritmo contagiante do samba. Cadú e Léquinho beijam lindas mulheres. João e Manu se beijam. Em um baile funk -- a trilha sonora anterior [samba] se mistura com essa --, Beto fuma um cigarro de maconha e ingere bebida alcoólica. Benê coloca um comprido na boca, sentado debaixo de um viaduto do centro da cidade. De volta à favela, Léquinho e Cadú entram com as suas mulheres em uma viela que termina em um beco sem saída. Ali mesmo os quatro se beijam com muito desejo. Léquinho tira a camiseta de Cadú e se ajoelha, ficando com o rosto na altura da cintura do amigo. A câmera se afasta até entrar outra cena, deixando claro que os amigos e as mulheres dão início a um sexo grupal. A cena anterior é substituída por João e Manu. O casal tenta abrir a porta de um barraco que parece estar emperrada. João lança o corpo contra a peça de madeira e tem sucesso, a porta cai para o lado de dentro com um estrondo. Eles entram no barraco. A primeira ideia que se tem é de que o lugar está abandonado. Há um pequeno e surrado colchão no chão. João está deitado sem roupa. Manu está em cima dele. De costas para a câmera, Manu tira sua camiseta e beija o namorado. Agora é João quem está por cima. Ele beija sua namorada. A câmera se afasta, como na cena anterior, deixando claro que eles fazem. Beto aparece novamente e é possível ver que ele já está alterado pelo álcool e outras drogas.
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115.
OBS: Os flashes anteriores têm como trilha sonora um misto de samba e funk, porém o som começa a diminuir, chegando a zero no flash seguinte: Carlinhos, Édinho e outras crianças dormindo abraçadas umas às outras, na Candelária. A última cena mostra Benê inconsciente debaixo de um viaduto do centro da cidade. Ele tem uma tira de borracha amarrada em seu braço esquerdo e, ao lado dele, espalhados pelo chão, há fósforos, uma seringa com agulha, uma colher, um toco de vela e um limão cortado ao meio e espremido (utensílios utilizados para a preparação de uma injeção de heroína), além de garrafas de bebidas alcoólicas. EXT.PRAÇA/PIO10.MANHÃ Em flashes, vemos o desjejum das crianças sendo preparado pelos voluntários do projeto Uerê, aulas em andamento, adolescente praticando esportes (futebol, volei...), algumas crianças jogando queimada, saltando amarelinha etc. Ainda em flashes, corta para Yvonne, que está conversando com um pequeno grupo de adolescentes e poucas crianças. Eles contam para ela tudo o que aconteceu na noite anterior. O som volta à cena assim que Yvonne começa a conversar com Cacau. YVONNE (carinhosa) Ô, minha princesa. Foi só um pesadelo, viu?! Não precisa se preocupar! CACAU (aflita/medo) Mas eu tenho certeza que eu vi eles, tia! Eles falou aquilo. E tinha um que usava uma máscara feia, igual que nem de carnaval. CADÚ (triste) Tsc... Tem vezes que eu pergunto se o inferno não é aqui mesmo! BENÊ (enigmático) Ainda não é, mas logo vai ser. Só que os capetas desse inferno vestem fardas. CADÚ (surpreso) Tá sabendo de alguma coisa, Bêne?
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116.
BENÊ (deboche) Eu?! Não, eu nunca sei de nada. YVONNE (preocupada) Bem... Por hoje, basta. Todos vocês têm aula agora. E ainda tem gente que nem tomou o café. Percebendo que há algo errado com o jeito de falar de Benê, desconfiando de que ele saiba de alguma coisa, Yvonne encerra o "círculo de confissões". Todos ficam de pé. Alguns vão para a mesa do desjejum equanto outros vão para a tenda onde acontecem as aulas. Yvonne tenta falar com Benê, mas o rapaz dá de ombros e a deixa sozinha. Benê sai correndo! Uma outra voluntária vestinto a camiseta do projeto Uerê se aproxima de Yvonne. VOLUNTÁRIA C (aflita) Você acredita que a Cacau viu mesmo os PM rondando por aqui? Já faz um bom tempo que Bêne teve o problema com os policias. Será? YVONNE (aturdida) Por medo do que possa acontecer, estou me forçando a acreditar que ela não viu ninguém. Que tudo não passou de uma sonho. VOLUNTÁRIA C (entristecida) A vida dessas crianças já é uma Roleta Russa diária! Estão tão exaustas. Seria de tremenda covardia fazê-las sofrer ainda mais. São seres tão frágeis, tão desnutridos de alegria. Yvonne esboça um sorriso triste e, antes de voltar para a tenda, a voluntária lhe faz um afago no ombro. A partir deste ponto, temos mais flashes referente ao cotidiando do projeto Uerê: vemos crianças tendo aulas de protuguês, praticando atividades físicas, brincando, tomando café da manhã, almoçando, comendo lanches e frutas. Manu está sempre com um livro nas mãos, sempre lendo para as crianças menores. Wagner ensina artesanato para outros adolescentes e crianças. Há diversas brincadeiras lúdicas no projeto Uerê. Fim de cena!
117.
INT.RESTAURANTE/IPANEMA.NOITE Yvonne está em uma trattoria com sua amiga Bianca. Elas bebem vinho e comem massa fresca. Após beber um pouco do vinho e colocar a taça sobre a mesa, Bianca abre o diálogo, como se desse continuidade à conversa que Yvonne teve com uma das volutárias horas antes. BIANCA (inconformada) E você acredita que eles seriam capazes de fazer algo de ruim contra aquelas crianças? YVONNE (...) Gostaria de poder dizer que não, mas para um policial pouco preparado, quando se fala sobre os direitos das crianças e adolescentes é a mesma coisa que falar mandarim com uma parede. Infelizmente, essa é a segurança pública do Brasil. Os policiais de hoje não estão nada preparados, não sabem lidar com certos conceitos que a própria lei estabelece para o suporte à infância e adolescência. Carecem não apenas de informações, mas, também, de treinamentos nesse sentido. Às vezes tenho a impressão de que, quando eles vestem aquela farda, eles se transformam em algum tipo de máquina, uma máquina livre de sentimentos, sem coração! BIANCA (divertindo-se) O que é isso, Yvonne? Por favor, não ofenda as máquinas! Aposto que, no futuro, elas serão bem mais humanas que os ditos seres humanos. Brincadeira à parte -- se é que isso é brincadeira --, continua... Te interrompi.
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118. YVONNE (...) Se ninguém fizer nada para ajudar uma juventude como essa, ajudá-la a ter uma boa educação, melhor condição de vida, comida na mesa, não existirá mais Brasil. E quem sabe um dia, nosso prêmio será a loucura. Ainda mais se a gente levar em consideração que a desgraça vai deixando de ser tão horrenda à medida que se repete muitas vezes. A gente se acostuma! BIANCA (...) É um tanto funesto pensar que há policias tão corruptos ao ponto de sucumbir às vontades e caprichos de um traficante. Policias que se fazem de cegos. Vez ou outra, eu me flagro tentando imaginar o que se passa dentro da cabeça de um sujeito assim. Mas chegar ao ponto de cometer uma chacina, matar um grupo de crianças inocentes, aí já é demais para a minha cabeça. Isso é doentio demais. YVONNE (...) Pois não duvide. Há certas coisas na vida que a gente não encontra nem nos nossos piores e mais insanos pesadelos! BIANCA (...) Mas você não acha que é muito sofrimento carregar sozinha o peso do mundo sobre os ombros? Você tem certeza do que está fazendo? Você sabe que está comprando uma passagem só de ida, não sabe? Agora, imagina se acontece algo grave! A imprensa toda caíria em cima de você e aí, pronto... Ao mesmo tempo que você seria vista como uma heroína, você seria hostilizada por muitos. Então, minha amiga, só por Deus. Não quero nem imaginar o que aconteceria depois.
(CONTINUED)
CONTINUED:
119.
YVONNE (séria) Eu só estou tentando lutar por um ideal, não por uma utopia! Isso, claro, sem contar que eu prefiro carregar sozinha o peso do mundo sobre meus ombros do que o peso da consciência sobre minha cabeça. E não pense que eu tenho medo da exclusão social, pois não tenho! Até porque se isso vier mesmo a acontecer, tenho certeza que será por parte de pessoas fúteis, pedantes, boçais, que só se preocupam com o próprio nariz. E quanto a parte do se eu tenho certeza do que estou fazendo, é claro que tenho. A indecisão nunca é eficiente! BIANCA (compreensiva/amigável) Só espero que a luta que você está iniciando termine com poucos corações feridos! Além do mais, como eu sei que o que te move é a esperança, é sempre bom lembrar que, certa vez, o francês François de La Rochefoucauld disse: "L’espérance, toute trompeuse qu’elle est, sert au moins à nous mener à la fin de la vie par un chemin agréable." Ou no bom e velho português: "A esperança, enganadora como é, serve contudo para nos levar ao fim da vida pelos caminhos mais agradáveis." Neste momento, Bianca olha para Yvonne, sorri, solta um pequeno riso e abaixa a cabeça, como se pensasse em algo. Yvonne fica curiosa. YVONNE (curiosa) O que foi? Qual é a graça? Eu morrendo de preocupação e você rindo?! BIANCA (divertindo-se) Quer mesmo saber?!
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120. YVONNE (curiosa) Fala... BIANCA (...) É que depois de tanto tempo de amizade, você ainda é capaz de me surpreender. Você me lembra as matrioskas, aquelas bonequinhas russas, conhece? Diversas bonecas, confeccionadas em diversos materiais, que são colocadas umas dentro das outras, da maior, aquela enxergamos de imediato, até a menor, aquela que fica escondidinha, esperando para ser descoberta. É como se aí dentro existisse várias Yvonnes. Quando a Yvonne que enxergamos parece cansada, fragilizada...
Bianca gesticula da mesma forma que gesticularia ao abrir uma das bonecas russas e continua: BIANCA (...) ...eis que surge uma outra, novinha em folha, pronta para o que der e vier. YVONNE (sorrindo) Sou muito grata por você ter ficado do meu lado. As amigas sorriem... BIANCA (...) Bom, o jantar foi ótimo, mas já passa da meia noite. Você precisa de carona? YVONNE (...) Não, não... Eu vim com meu carro. Alguns voluntários do projeto e eu ficamos de passar pela Candelária, só para garantir que está tudo bem. Vamos nos encontrar lá. Saindo daqui, vou direto para o centro da cidade.
121.
As amigas se despedem com dois beijos no rosto, porém Yvonne continua na Trattoria. Bianca deixa o estabelecimento. Um garçom traz à mesa uma xícara de café. Yvonne dá o primeiro gole. Fim de cena! EXT.CHACINA/CANDELÁRIA.MADRUGADA/CLIMAX Próximo à igreja Candelária, em uma rua pouco movimentada do centro da cidade, Wagner e dois amigos menores de idade caminham tranquilamente em plena madrugada. Sem prever a emboscada, o trio é surpreendido por dois Chevrolet Chevettes (sendo um táxi) e uma viatura cujas placas estão cobertas com pedaços de plástico preto. O amigos são cercados e ficam paralisados por causa do susto. De dentro do táxi salta o policial que usa a máscara do assassino Jason, e da viatura, saltam mais dois policiais ("PM MOTORISTA" e "PM A"). Não demora muito para que Wagner e os outros entendam o que está prestes a acontecer. Quando tentam fugir, os policias os atacam violentamente. Wagner recebe logo cinco tiros (pode parecer um pouco exagerado, mas na história real ele levou oito tiros) e cai no chão. Os outros dois rapazes também são baleados e agredidos com socos e chutes. Até mesmo Wagner, que já está caído e quase desacordado, é chutado algumas vezes. Os policias só param com a violência quando os três amigos parecem perder a consciência. Corta para Yvonne. Um manobrista estaciona o carro da assistente social na porta do restaurante em que ela jantava com Bianca. Yvonne entra no veículo, afivela o cinto de segurança, liga o motor e sai. Ao se aproximar de uma esquina, Yvonne diminui a velocidade e, a fim de saber se está no caminho certo, olha para uma placa. Close na placa: CANDELÁRIA. Com exceção de Wagner, o corpo das outras duas vítimas não era nada além de sacos de carne e ossos que não respondiam a comando nenhum. Aquele táxi se transformara em uma pequena câmara dos horrores: rotos desfigurados, olhos inchados, sangue para todos os lados. Deitado de costas sobre o banco encharcado de sangue, sob dois corpos sem vida, Wagner volta a recuperar a consciência. Ao se dar conta da situação, decide fingir-se de morto, cerrando os dentes na tentativa de conter um pouco da dor descomunal que sente. Antes que uma cortina de sangue lhe tolde as vistas, Wagner varre todos os ângulos possíveis do veículo, o que de fato é (CONTINUED)
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uma tarefa um tanto complicada devido à sua posição. Vagueando os olhos de um lado para o outro, o rapaz encontra o espelho retrovisor do veículo e, esforçando para que as imagens ganhem nitidez, consegue ver o rosto de um de seus agressores, bem no momento em que este tira a máscara do assassino Jason. Corta para a praça da igreja da Candelária. Lá, por causa do frio, as crianças e os adolescentes dormem abraçados uns aos outros e, no meio deles, é possível ver Édinho, que faz de um grande pedaço de papelão seu cobertor. Vemos quando o menino se ajeita debaixo do papelão, o que deixa visível o desenho de uma TAÇA TRINCADA ao lado de uma SETA que aponta para cima (em direção a cabeça dele). Abaixo dos desenhos lê-se a palavra FRÁGIL. Corta para Yvonne. Ela avista uma nova placa, agora, porém, indicando a direção até o centro do Rio. Volta para a Candelária. Édinho está coberto com o papelão e dorme profundamente. De repente, um par de botas entra em cena e, após alguns passos, para muito perto do rosto do menino. Close em uma arma que é apontada para a cabeça dele. Em primeiro plano, através de um ângulo que favorece o desenho da taça trincada, da seta e a palavra frágil, vemos as botas do PM, Édinho e outras crianças que dormem. Já ao fundo e um tanto fora de foco, vemos a igreja. Close no rostinho de Cacau. Quebrando o silêncio que antes era quase palpável, ela grita desesperadamente ao ver o "PM C" apontando a arma na direção da cabeça de Édinho. Ao mesmo tempo em que o "PM C" olha para a direção de onde veio grito, a grande maioria das crianças acorda, dando início a um corre-corre. Os olhos de Édinho se arregalam e ele se depara com o "PM C" a poucos centímetros dele, porém, sem hesitar e antes que suas esperanças e sua coragem começassem a se dissolver, usa a distração do policial para fugir. Como meio de acordar os amigos que ainda dormem, as crianças e adolescentes gritam ao mesmo tempo em que correm para todas as direções. O PM que apontava a arma na direção de Édinho levanta a mão acima da própria cabeça e faz um sinal para chamar outras assassinos. Em questão de segundos, dois carros e uma viatura, que provavelmente estavam escondidos em pontos estratégicos, chegam à praça em alta velocidade. Os faróis acesos ofuscam os olhos daqueles que tentam fugir desesperadamente. (CONTINUED)
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O pânico chega de mão dada com a desgraça. Crianças e adolescentes correm de um lado para o outro, tentando sobreviver ao que seria o pior dia da vida deles. POLICIAL C (prazer mórbido/divertindo-se/gritando/disparando em direção às crianças) É hoje que essa cidade vai ficar liiiiimmmmmpaaaaaaaa!!! Ao todo, sete homens (três sem farda, mas com botas parecidas com as da PM) chegam no local. Dois deles ("Sexta-feira 13" e "PM MOTORISTA") retiram Wagner e os dois corpos do banco de trás de táxi e os jogam no chão, na sarjeta. A dor do baque e do pavor parecem fazer com que Wagner saia completamente de seu torpor, porém, claro, ele ainda finge estar inconsciente. Close em Manu. Ela está desesperada e sozinha, nem mesmo João está por perto. Sem entender como, Manu corre e consegue se afastar da confusão que acontece na praça. A garota aproveita o momento de sorte para se esconder atrás de um carro que está estacionando nas proximidades de onde ocorre a chacina. Tentando se acalmar, Manu tapa os ouvidos e começa a cantarolar a canção "Como os nossos pais", de Elis Regina. Ela canta como se rezasse pedindo proteção a sua mãe. MANU (chorando/balbuciando/cantarolando) Amor não quero lhe falar/ das coisas que aprendi nos discos/ quero lhe contar tudo que eu vivi/ e tudo que aconteceu comigo/ Viver é melhor que sonhar/ E eu sei que o amor é uma coisa boa/ mas também sei que qualquer canto/ é menor do que a vida de qualquer pessoa... O som de toda ação a seguir é abafado pela voz de Manu, que afogada em lágrimas, e na tentativa de não ouvir os gritos e os disparos, passa a cantar um pouco mais alto. "Sexta-feira 13" e "PM A" encontram Benê e o capturam à força. Eles dão socos, chutes e coronhadas no rapaz. Em seguida, os PMs empurram Benê contra uma banca de jornais e o deixam sem saída. Sabendo que já está morto, Benê não resiste, apenas encara os PMs sem demonstrar medo algum. Benê é executado com diversos tiros. (CONTINUED)
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Carlinhos e Beto são encurralados na porta da igreja por "PM C", "ASSASSINO 1" e "ASSASSINO 3". Com sorrisos macabros nos lábios, os bandidos apontam suas armas. Beto abraça Carlinhos para protegê-lo. BETO (sussurrando/triste/medo) A gente se vê numa outra vida, meu maninho! Eles disparam à queima roupa e voltam para o centro da praça. Beto e Carlinhos caem no chão. Beto morre na hora. Carlinhos ainda respira... O corpo do amigo o protegeu. No meio da multidão, os outros PMs ("PM MOTORISTA 2" e "PM A") começam a disparar sem rumo, atiram para todos os lados. Um dos disparos acerta a nuca de Cadú, que cai morto. Os PMs que mataram Benê também fazem o mesmo, disparam contra os mais de 60 adolescentes e crianças. Ao ver Cadú caído no chão, Léquinho corre para tentar ajudá-lo. Ele se ajoelha ao lado de Cadú e de imediato percebe que o amigo está morto, o que faz com que lágrimas brotem instantaneamente de seus olhos. Em prantos, Léquinho tenta carregar o amigo para longe do caos. Com Cadú nos braços, ele tenta sair do meio daquele mar de sangue, porém não chega a dar nem dez passos quando dois tiros o acertam nas costas. O rapaz sente a dor das balas penetrando em seu corpo, rasgando sua carne. Suas vistas ficam esbranquiçadas e, ainda com Cadú nos braços, Léquinho cai. Ao lado do amigo, ele morre lentamente enquanto observa o caos que se instalou na praça da Candelária. Léquinho para de respirar. Em uma brevíssima cena, vemos a chacina (o corre-corre, a confusão etc) refletida na retina dos olhos de Léquinho. Suas pupilas dilatam. Ele morre. "ASSASSINO 3" distribui socos e chutos no rosto das crianças e adolescentes que passam correndo por ele, e no daquelas que estão caídas no chão. Corta para Manu. Ela apoia os cotovelos nos joelhos e entrelaça os dedos das mãos atrás da cabeça, cobrindo os ouvidos com os antebraços. MANU (chorando/balbuciando/cantarolando) Por isso cuidado meu bem/ há perigo na esquina/ Eles venceram e o sinal/ está fechado para nós/ que somos jovens/ Para abraçar seu irmão e beijar (MORE) (CONTINUED)
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MANU (cont’d) sua/ menina na rua/ é que se fez o seu braço/ o seu lábio e a sua voz... Volta para o caos. Um garoto de 13 anos, aproximadamente, consegue fugir do meio da chacina. Ele sorri e chora enquanto corre, pois acredita ter conseguido escapar. Quando ele dobra uma esquina, acreditando estar a salvo, esbarra no corpo de seu algoz. Agarrando-lhe o pescoço fino com suas mãos ferozes, "ASSASSINO 2" encosta o menino contra a porta de ferro de uma loja, abaixa a bermuda dele e o estupra. Sentindo a dor pungente e a humilhação da extrema violência, a vítima faz um pedido para o estuprador: VÍTIMA DE ESTUPRO (sentindo dor/humilhado/chorando/desesperado) Me mata... Atira na minha cabeça! Me mata... ASSASSINO 2 (cruel/ofegante) Cala essa boca... Até parece que nunca deu o cu em troca de dinheiro. Desconta do valor que você e teus amigos me devem. VÍTIMA DE ESTUPRO (sentindo dor/humilhado/chorando/desesperado) Me mata... Pelo amor de Deus. ASSASSINO 2 (cruel/ofegante/raiva) Cala a boca! Com muita raiva, "Assassino 2" bate algumas vezes a cabeça do menino contra a porta de ferro. Uma batida mais forte e, em seguida, o joga no chão. O estuprador sobe a calça e corre para a praça, atirando indiscriminadamente. Corta para Yvonne. A assistente social para no penúltimo semáforo antes da Candelária. Ao ver algumas crianças correndo pelas ruas, Yvonne logo percebe que está acontecendo algo muito grave. Acelerando, ela fura o sinal vermelho sem hesitações. Corta para a Candelária. Wagner observa o terror à sua volta. Mesmo se quisesse, ele não conseguiria fugir dali, tamanha a gravidade de seus ferimentos.
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126.
Corta para Cacau. Ela chora angustiosamente no meio da praça, sozinha. Duda passa correndo e a agarra. Com Cacau nos braços, Duda procura um lugar para se esconder. Um tiro acerta de raspão o braço esquerdo de Duda. Cacau se assusta e grita ao ver o braço de sua amiga ensopado de sangue. Duda não desiste e, imersa em uma copiosa tristeza, continua a correr com a menina nos braços, abraçando-a com toda a força que ainda lhe resta."ASSASSINO 2" dispara contra elas, mas erra o alvo. Ele acerta outras crianças de raspão. "Assassino 3" continua a distribuir socos e chutes, assim com os demais PMs. Corta para Yvonne. Ela chega na praça da Candelária e estaciona seu carro de qualquer jeito, no meio da rua. Às pressas e sentindo que o chão lhe foge debaixo dos pés, ela salta do veículo e corre para o meio da confusão para ajudar as crianças. Assim que pisa na praça, Yvonne avista Duda carregando Cacau no meio daquele inferno todo. Yvonne acena e grita para Duda: YVONNE (apavorada/gritando/desesperada) Dudaaaaaaaaa! Aqui... Corre... Duda enxerga Yvonne e corre até ela. Yvonne aponta para o carro dela... YVONNE (apavorada/falando rápido) Entra no meu carro e se tranca! Destemida e disposta a ajudar, Yvonne entra no meio do tiroteio. Édinho vem correndo em sua direção. Yvonne o agarra e o manda ir para junto de Duda e Cacau. YVONNE (apavorada/falando rápido) Corre para o meu carro... A Duda tá lá! Close em Manu, que cruza os dedos atrás da cabeça, tapando os ouvidos com os antebraços ainda com mais força. MANU (chorando/balbuciando/cantarolando) Você me pergunta pela minha paixão/ Digo que estou encantada com uma nova invenção/ Eu vou ficar nessa cidade/ Não vou voltar para o sertão/ Pois vejo vir vindo no (MORE) (CONTINUED)
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MANU (cont’d) vento o cheiro de uma nova estação/ Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração... Chorando de medo, Édinho bate na janela do carro. Duda e Cacau se assustam e soltam um grito de pavor. Corta para dentro do carro. Enxergando a cena a partir do ponto de vista de Duda, vemos as mãos de Édinho batendo contra o vidro do carro. Ele está apavorado. Duda abre a porta e o puxa para dentro. Eles se abaixam no banco traseiro do carro e assistem à barbárie pelos espelhos retrovisores. Na praça, "Assassino 3" e "PM A", totalmente perturbados, atiram compulsiva e enfurecidamente para o alto. Em seguida, eles começam a atirar sem rumo na multidão. Eles atingem diversos garotos e garotas. Corta para Carlinhos. Sentindo uma dor horrível, o menino recobra a consciência e se assusta com o buraco que a bala deixou em seu braço. Ele chora muito quando avista Yvonne, o que lhe dá um pouco de esperança. Após algum esforço, Carlinhos consegue sair de debaixo do corpo de Beto (ao morrer, Beto caiu sobre Carlinhos). Já de pé e gritando por Yvonne, o menino corre ao encontro da assistente social. CARLINHOS (morrendo de medo/chorando/pânico) Yvonneeeeeeeeeee! Yvonne escuta seu nome, mas não encontra quem a chamou. Ela se concentra na tarefa de tentar guiar as crianças para fora da praça. Carlinhos se aproxima de Yvonne, mas é atingido na cabeça. Após o barulho surdo da bala rompendo o crânio, Carlinhos cai sem vida por terra. Os PMs A e Sexta-feira 13 derrubam João e um garotinho de cerca de 11 anos no chão. Sem dó, os PMs disparam contra os dois. Corta para Manu... MANU (chorando/balbuciando/cantarolando) Já faz tempo/Eu vi você na rua/ Cabelo ao vento/Gente jovem reunida/Na parede da memória/Essa lembrança/É o quadro que dói mais... (CONTINUED)
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128.
Em close, vemos a pesada bota de um dos PMs pisando sobre o desenho impresso no papelão que Édinho usava para se cobrir: uma taça trincada ao lado da seta e abaixo da palavra FRÁGIL. MANU (chorando/balbuciando/cantarolando) Minha dor é perceber/Que apesar de termos/Feito tudo o que fizemos/ Ainda somos os mesmos/E vivemos Ainda somos os mesmos/E vivemos Como os nossos pais... No caos, policias ("PM A", "Sexta-feira 13", "PM C", e "ASSASSINO 1, 2 e 3) agridem crianças e adolescentes com socos e chutes. Aterrorizados, Duda, Cacau e Édinho assistem a tudo de dentro do carro. Close na perua. A Kombi WG dos voluntários que trabalham com Yvonne chega no local, buzinando. Os voluntários saltam e vão encontrar Yvonne, que está no meio da multidão. Sem que ela precise pedir, os voluntários começam a ajudar. Eles guiam as crianças e os adolescentes para fora da praça e socorrem os mais feridos. MANU (chorando/balbuciando/cantarolando) Nossos ídolos/Ainda são os mesmos/E as aparências/Não enganam não/Você diz que depois deles/Não apareceu mais ninguém/Você pode até dizer/ Que eu tô por fora/Ou então Que eu tô inventando... Curiosos começam a chegar no local da chacina. Ao perceberem que estão em risco, os PMs e seus comparsas correm para seus carros e fogem, acelerando feito loucos. MANU (chorando/balbuciando/cantarolando) Mas é você que ama o passado/E que não... Close em Manu. Ela para de cantar ao ver os PMs fugindo e arrisca a olhar na direção da praça. Na espiadela, ela acaba avistando Yvonne e os voluntários do projeto Uerê. Sem pensar duas vezes, Manu corre ao encontro de Yvonne e a abraça com toda sua força. Yvonne e Manu desabam em lágrimas (CONTINUED)
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129.
por causa do cenário de guerra deixado pelos PMs. Yvonne e Manu sentam-se no chão, abraçadas e chorando. Desesperado, um dos voluntários do Projeto Uerê se aproxima de Yvonne e diz que ambulância já foi chamada. VOLUNTÁRIO/01 (ofegante) A ambulância já doi chamada. YVONNE (lágrimas nos olhos/ recuperando as forças) Não dá para esperar. Anda, me ajuda. .. Vamos levar os mais feridos no meu carro e na Kombi! VOLUNTÁRIO/01 (ofegante/gritando) Aquiiiiiiii!!! Ajuda!!! Os voluntários do Projeto Uerê se aproximam. Yvonne se levanta. Manu faz o mesmo, porém sai à procura de João. Assim como Yvonne, os voluntários estão sujos de sangue. YVONNE (determinada/ofegante) Não dá para esperar. Vamos levá-los para o hospital... Agora! Em busca de feridos, os voluntários se seperam, correndo em várias direções. Yvonne avista Wagner caído na sargeta e corre até ele. Ela se ajoelha ao lado do rapaz e comprova que, apesar dos ferimentos gravíssimos, ele ainda respira e está consciente. Um senhor (transeunte) ajoelha-se ao lado de Yvonne e pergunta de que forma pode ajudar. CIDADÃO (aflito) Como eu posso ajudar? YVONNE (chorando) Me ajuda a levá-lo até aquela perua Kombi. O senhor ajuda Yvonne a carregar Wagner.
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130.
YVONNE (tentando parecer tranquila) Vai ficar tudo bem... Diz Yvonne, ao colocar Wagner na Kombi. A "Voluntária C" corre com o corpo sem vida de Carlinhos nos braços. A imprensa começa a chegar no local. Há repórteres por todos os lados. Pessoas curiosas chegam e se espalham pelas imediações da igreja da Candelária. Os flashes das câmeras dos fotógrafos mais parecem relâmpagos rompendo a noite. Os repórteres correm até Yvonne. Alguns fotógrafos fazem fotos de Wagner na Kombi. Repórteres de diversas emissoras cercam Yvonne e a enchem de perguntas. REPÓRTER/A (falando rápido) Yvonne, é verdade que tudo isso foi provocado por Policias Militares? REPÓRTER/B (falando rápido) Você presenciou tudo? REPÓRTER/C (falando rápido) O que você tem a dizer? REPÓRTER/D (falando rápido) Uma palavrinha, Yvonne! REPÓRTER/E (falando rápido) Você também foi baleada? REPÓRTER/F (falando rápido) O que é todo esse sangue? REPÓRTER/G (ofegante) Você reconheceu os atiradores? Estava aqui na hora da chacina? Enquanto Yvonne é soterrada por uma saraivada de perguntas repetitivas, outra repórter grava uma passagem:
(CONTINUED)
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131. REPÓRTER/H (gravando passagem) Estamos aqui, no centro do Rio de Janeiro, onde acaba de ocorrer uma Chacina na Candelária.
Close no rosto de Yvonne. Ela não sabe a que pergunta responder primeiro. REPÓRTER/I (falando rápido) A senhora sabe nos dizer o número exato de vítimas? Como não estão feridos, Édinho e Cacau cedem seus lugares no carro de Yvonne. O Voluntário/01 sai com o carro. Ele leva Duda e mais três vítimas. Cacau e Édinho correm de volta para a praça e procuram por seus amigos. Corta para Manu. Ela procura por João. Ao encontrá-lo caído de bruços sobre uma poça de sangue, ao lado do corpo do garotinho de 11 anos, Manu se desespera e começa a chorar compulsivamente, tampando a boca com as mãos. Corta para Yvonne, que conversa com com os repórteres. YVONNE (aterrorizada) ...parecia um esquadrão da morte... Yvonne para de falar quando ouve Manu gritando. MANU (chorando/berrando) Yvooooooone, aqui, me ajuda! Yvonne deixa os repórters e vai até Manu, que está quase do outro lada da praça! Alguns repórters acompanham Yvonne, enquanto outros vão entrevistar os voluntários do Projeto Uerê Corta para Manu. Ela está ajoelhada ao lado de João. Ela vira o namorado em seus braços. Fraco, João reconhece Manu e uma lágrima cai de seu olho, contornando-lhe o rosto. Manu beija a lágrima no rosto do namorado. João fecha os olhos e morre nos braços de Manu. MANU (em prantos/gritando) Nãããããão!!! João, acorda... Não me deixa sozinha nesse mundo. Yvoooone, cadê você? (CONTINUED)
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132.
Yvonne chega correndo, acompanhada de três repórteres, e se atira no chão, bem ao lado de Manu, abraçando-a e afagando os cabelos de João. Os repórtes se calam, apenas registram a cena. Um pouco afastados, Cacau e Édinho assistem aquele filme de terror e choram abraçadinhos. Cacau, Édinho, Yvonne, Manu, os três repórteres e os três câmeras têm lágrimas nos olhos. YVONNE (chorando/grita) Ajudem aqui... MUITO IMPORTANTE. Yvonne tem os olhos afogados em lágrimas. Acompanhamos a queda da lágrima em câmera lenta. Por instantes vemos apenas a gota de lágrima caindo. Para surpresa de todos, a gota de lágrima cai sobre... INT.CAFETERIA/ZURIQUE.NOITE ...um guardanapo de tecido branco, levando a ação de volta para a Suíça, na cafeteria onde Yvonne, Wagner e Yasmine conversavam no início da trama. Em um giro pela mesa, vemos que Yvonne, Wagner e Yasmine enxugam algumas lágrimas. Até o garçom figura tem lágrimas nos olhos. Com suas mãos, Yvonne envolve a mão de Yasmine e também a de Wagner. Com a alma machucada por causa das amargas lembranças e com profunda tristeza nos olhos, Yvonne diz: YVONNE (triste/chorando/balbuciando) O pior disso tudo é saber que, depois de tanto tempo, tudo continua do mesmo jeito. WAGNER (triste/voz embargada/chorando) Uma história à base de sangue e lágrimas... Infância abatida a tiros. YVONNE (triste/chorando) Me desculpem, mas a impressão que dá é que o futuro do Brasil está fadado à decadência. (CONTINUED)
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133.
A cena perde o foco e o preto domina o quadro. Sobre o fundo preto e trilha de Elis Regina - COMO OS NOSSOS PAIS -, frases aparecem trazendo as seguintes informações: - A princípio, quatro pessoas foram indiciadas pela chacina da Candelária: os Policiais Militares Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes, o ex-Policial Militar Marcos Vinícios Borges Emmanuel e o serralheiro Jurandir Gomes França. - Mais tarde, em 1996, o ex-soldado da Polícia Militar Nélson Oliveira dos Santos Cunha confessou ter participado do crime e apontou outros quatro envolvidos: Marco Aurélio Dias de Alcântara, Marcos Vinícius Emmanuel (que já estava preso), Arlindo Lisboa Afonso Júnior e o finado PM Maurício da Conceição, que era conhecido como "Sexta-Feira 13" e apontado como líder do grupo de extermínio. - Eles confirmaram o depoimento de Nélson Oliveira, o que inocentou os Policiais Militares Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes e, também, o serralheiro Jurandir Gomes França - Entre as punições destacam-se a do ex-PM Marcos Vinícius Borges Emmanuel, condenado a 300 anos de reclusão em regime fechado; e de Marco Aurélio Dias Alcântara, que cumpre pena de 204 anos. - Há quem acredite que o número de envolvidos na chacina era bem maior. - Os depoimentos de Wagner foram essenciais para a PM chegar aos criminosos. - Em 1994, Wagner sofreu um segundo atentado contra sua vida... - E novamente sobreviveu. - Após este incidente, sob proteção do PROVITA - Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas -, Wagner foi morar na Suíça. - Muitos dos sobreviventes foram morar debaixo de um viaduto de São Cristóvão, e continuaram sendo atendidos por Yvonne Bezerra de Mello. - Os nomes das oito vítimas da chacina foram entalhados em uma cruz de madeira que foi erguida no jardim da Igreja da Candelária. - Mesmo depois do atentado, Yvonne não desistiu. Ela continuou a educar e a amparar as crianças e os adolescentes que vivem nas ruas do Rio de Janeiro. (CONTINUED)
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134.
- As aulas com os grupos de rua ajudaram a assistente social a formatar a pedagogia Uerê-Mello. - “Aquelas aulas nas ruas eram sensacionais”, Yvonne. EXT.CANDELÁRIA/PRAÇA.MADRUGADA A trilha sonora desaparece. A câmera vai passeando pela praça da Candelária e, aos poucos, segue revelando o aterrorizante cenário de guerra deixado após a chacinha. A câmera passa por manchas de sangue no chão, por sapatos e chinelos perdidos, focaliza um ursinho de pelúcia manchado de sangue e pedaços de papelão tingidos de vermelho. A câmera vagueia até chegar na escada da igreja. Sentada em um dos degraus, com o rosto transtornado e os cabelos desgrenhados, Yvonne está abraçada a Édinho, Cacau e Manu. Eles estão no meio de vários outros sobrevintes. Todos estão calados, em choque, ainda com medo. Não há mais repórteres. Um silêncio de morte reina. Yvonne sente algo incomodar sua pele por dentro da calça e enfia a mão no bolso. Ela retira a foto que fez da turma de crianças e adolescentes reunida com os voluntários do projeto Uerê nos degraus da igreja da Candelária. Ao ver a foto, Yvonne esboça um sorriso triste e vira o verso da fotografia, onde está escreito: "1 2 3 UERÊÊÊÊÊÊÊÊ". Nesse ínterim, os primeiros raios de sol surgem no céu, refletidos no rosto de Yvonne. Os sinos da Candelária soam. Na primeira e única badalada, o quadro fica negro e a palavra CANDELÁRIA aparece. Créditos finais. FIM. Autor: Gabriel Canhadas Pretel CASTALDINI Telefone: (16)9 8122-8052 E-mail: gabrielpretel@gmail.com