Revista Balaio

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expediente Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Reitor / Dr. Julio Cezar Durigan Vice-reitora / Dra. Marilza Vieira Cunha Rudge

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – FAAC

Diretor / Dr. Nilson Ghirardello Vice-diretor / Dr. Marcelo Carbone Carneiro

Departamento de Comunicação Social Chefe / Dr. Juarez Tadeu de Paula Xavier Vice-chefe / Dr. Angelo Sottovia Aranha

Curso de Jornalismo

Coordenador / Dr. Francisco Rolfsen Belda Vice-coordenadora / Dra. Suely Maciel

Planejamento Gráfico Editorial II Professores / Dr. Francisco Rolfsen Belda Tássia Zanini

Jornalismo Impresso II

Professor e Jornalista Responsável / Dr. Mauro Ventura

6º Termo Jornalismo Diurno Alunos /

Felipe Altarugio Gabriel de Castro Jéssica Santos Jéssica Zen Lívia Neves Lucas Loconte Maria Eduarda Amorim Maria Tebet Mariana Tavares Vanessa Souza

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editorial A DEFINIÇÃO DE BALAIO é simples: um cesto grande, feito de palha, usado antigamente para armazenar mantimentos. Foi assim que nós, atrelados a esse conceito de armazenamento, construímos a proposta de nossa revista. Uma revista que tem por objetivo ser abrangente em diversos assuntos comportamentais e culturais da nossa sociedade. Além, de claro, visar a boa fotografia e a leitura leve de nossos textos. Fique à vontade para fuçar este cesto repleto de lugares fantásticos, histórias contagiantes e personagens comoventes. Nesta edição de estreia, você poderá conhecer o deserto gelado da Antártica: um continente inóspito, mas incrivelmente belo, como mostra a reportagem de Lucas Loconte. Ainda, você confere na reportagem de Mariana Tavares, dicas de viagens para quem quer fazer um mochilão pela América do Sul, descobrindo as raízes da cultura andina. Em nosso balaio a música também não fica de fora. Na seção “Rascunho”, o debate entre cinco amantes da Soul Music nos leva a conhecer como esse gênero se popularizou e consagrou a cultura afro-americana num período de luta pelo reconhecimento dos direitos civis nas décadas de 50 e 60. Ademais, a música brasileira também “bate em nosso corações”. Conheça o projeto Pulsa Nova Música, na entrevista feita por Maria Eduarda Amorim com os criadores do site que está propagando as ondas do som nacional pela web. E você, já ouviu falar do GRAAC? Emoção e ousadia é o que você conferirá na matéria de Jéssica Santos e Maria Eduarda Amorim sobre a atuação deste instituto que ajuda a tornar a cura do câncer possível para milhares de crianças e adolescente que sofrem com a doença. Esse balaio tem de tudo e de tudo um pouco. Esperamos que sua leitura seja prazeirosa e descobridora de um mundo repleto de novidades e histórias. Histórias que nós, da redação, fizemos questão de preparar com muito carinho e satisfação. Uma ótima leitura e até a próxima edição de um balaio cheio de novidades e cultura. Revista Balaio

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O CONTADOR DE HISTÓRIAS (P. 20) por Jéssica Santos, Lucas Loconte e Maria Tebet

NO FIM DO MUNDO (P. 42) por Lucas Loconte

MOCHILÃO: RETRATOS DA CULTURA ANDINA NUM MUNDO GLOBALIZADO (P. 90) por Mariana Tavares

EMPREENDER É EXERCITAR A CURIOSIDADE (P. 77) por Jéssica Santos e Lucas Loconte

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sumário 17 / Sonho que se sonha junto é realidade por Maria Eduarda Amorim e Jéssica Santos 34 / O sexo para quem não faz por Lívia Neves 37 / Para uma vida mais leve por Vanessa Souza 38 / Vida pós-carreira por Gabriel de Castro 56 / A música que bate em nossos corações por Maria Eduarda Amorim 60 / Quase uma máquina do tempo por Gabriel de Castro 61 / Os entraves do curta-metragem no Brasil por Jéssica Zen 62 / Irresistível, mas não até o fim por Lívia Neves 64 / Tristeza do Jeca por Lucas Loconte 74 / Verdadeiro ou Falso por Felipe Altarugio 86 / Espelho, espelho meu por Vanessa Souza 104 / A arte em narrar fatos por Felipe Altarugio


Rascunho

Caro leitor, Olá, prazer. Antes que me pergunte (e não quero, leitor, que você pense que não tenha o direito), gostaria de apresentar quem sou, o que faço e, acima de tudo, o que procuro. Este espaço simples e colorido que aqui se apresenta é a minha casa, da qual lhe convido em nela adentrar por uma tentativa nem um pouco inovadora - bem comum, por sinal - de discutir e conhecer vários assuntos sobre tudo e sobre o nada. Uma mesa-redonda, se assim posso ousar em dizer, que não visa valorizar ou priorizar determinada opinião de um convidado em detrimento de outro. Que não visa concluir nenhum assunto. Até porque a conclusão, embora engenhosa e sedutora, é uma falácia quando se trata de cultura. Pois se nem as ciências humanas e os estudos de comunicação recentes se propuseram a concluir, quem dirá eu. Pelo contrário, devo-lhe dizer, que esta editoria está muito longe de chegar a definições, de apenas ouvir uma voz e, principalmente, de se cercear de um veredicto. Aliás, veredicto é tudo aquilo que se opõe a minha proposta. Quero, antes de tudo, indagar e conhecer sobre os assuntos que de, certa forma, contribuíram para sermos o que de fato somos e para toda a cultura que nos envolve. Construindo uma visão da realidade pelos questionamentos e pontos de vistas, resultantes da pura e simples reflexão de meus convidados. Reflexão esta, lhe vale lembrar, que não será tomada por mim com toda a franqueza. O tema desta edição é Soul Music. Sua diversidade de influências musicais é tão vasta que quase fica claro a dificuldade em definir esse estilo musical que extrapolou os limites da música chegando a ser, de fato, um “modelo” comportamental que construiu e a deu forma à identidade da cultura negra norte-americana. Mesmo sendo difícil encontrar uma quantidade razoável de fontes no Brasil que discutissem a Soul Music - fazendo juz à complexidade e alcance do assunto - ouvimos os amantes e estudiosos do Soul para discutir a relevância desse estilo musical, não só nos movimentos de lutas pelos direitos civis em meados da década de 50, mas também em toda sua influência na identidade e música contemporâneas. Não há como desvencilhar a Soul Music do momento político em que os norte-americanos enfrentavam na década de 60. Do mesmo modo que não há como separar a influência e difusão do ritmo no Brasil sem levar a cabo o período ditatorial no país. Por esta razão, propomos a discutir sobre o assunto. Os convidados seguem ao lado:

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PAULÃO SAKAE TAHIRA

JHEFF

Dj, radialista, pesquisador musical, produtor e curador de projetos culturais. Fez vários trabalhos pelo Brasil e no exterior e tem duas residencias em São Paulo, o Pixaim, que recria os bailes black dos anos 70 e 80 e o Virado a Paulista. Lançou o disco BRAZUCA!, pelo selo holandês Kindred Spirits

Professor de música há 14 anos, com especificação em canto, em cidades como São Paulo, Sorocaba e Itu. Leciona para cantores do meio gospel e secular, como Hugo Rafael e Jotta A. vencedores do prêmio Jovens Talentos do Raul Gil. Atualmente, canta na banda “ “, tributo ao ABBA LUCIANA XAVIER

EDUARDO PAIVA

Graduada em Jornalismo pela UFRJ, mestre em Comunicação, Doutoranda pela Universidade Federal Fluminense com a tese: Música e identidade negra nos balies blacks brasileiros.

Mestre em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, doutorando em Ciências Sociais pela FCL, UNESP, Araraquara. Pesquisador da CAPES, elabora uma pesquisa sobre a soul music brasileira. É professor de sociologia e história, além de músico instrumentista e funkeiro.

DANIELA GOMES Doutoranda em African and African Diaspora Studies pela University of Texas, mestre em Estudos Culturais pela Escola de Artes Ciências e Humanidades USP, especialista em Mídia, Informação e Cultura pela USP jornalista graduada pela Universidade Metodista de São Paulo.

SÉRGIO MARTINS Crítico de música há 14 anos trabalha na revista Veja. Formado em Jornalismo pela Casper Líbero.

Sendo, assim, só me resta fazer as devidas cordialidades e saudações em lhe desejar uma boa leitura.. Seja sempre bem-vindo ao Rascunho.

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Rascunho

Na batida do soul texto por Jéssica Zen e Maria Tebet

PEOPLE GET READY, CHANGE IS GONNA COME. O tom da música Soul nos anos 60 e 70 nos Estados Unidos é o político: torna-se o hino do movimento pelos direitos civis e de ideologias como o Black Power. A essência da expressão do canto tem a ver com a liberdade de expressão da cultura negra, da libertação. Temas como a beleza e a estética negra, o corpo, o amor e o sexo, bem como traços da cultura afro-americana também passaram a ser o foco das canções. Em meados da década de 60, período no qual as lutas pelos direitos civis dos negros norte- americanos se intensificam, as músicas passam a ser de luta e auto-afirmação, um exemplo é James Brown com “Say Loud I’m Black and Proud”, já na virada dos anos 60 para os anos 70, como uma afirmação de sua negritude. Orgulho e reconhecimento são valores prezados pelo Soul.

YOU, LETS GET IT ON. Talvez, como alguns pesquisadores sugerem, o termo Soul Music aparece para substituir o rótulo “Race Music” - como eram chamados os discos de artistas negros nos EUA até meados da década de 40. As canções negras eram batizadas pelos produtores como Rhythm & Blues - definição genérica que englobava a musicalidade negra naquela época - para já nos anos 60 serem denominadas como Soul Music - uma expressão sem a conotação racista que o termo “Race Music” possuía. Todos os artistas Soul sem exceção tiveram em determinados momentos da carreira dúvidas em relação a este impasse, o caráter divino versus a sensualidade do ritmo. Supostamente, estariam se apropriando de uma música pra Deus e usando-a para ‘espalhar’ ideias profanas. Principalmente Marvin Gaye vive esse choque de ideologias, cujo pai era pastor e que contestava essa opção do filho. Também Al Green, após sofrer queimaduras pela ex-amante - que, em seguida, se suicidou - volta-se para a religião, trabalhando como pastor e lançando discos religiosos. Toda essa espiritualidade, encarando por um outro viés, pode soar altamente natural e não entrar em conflito com o romance e a sexualidade transmitida pela Soul Music, uma vez que a presença da religiosidade cristã protestante na comunidade afro-americana é bastante forte. Suas igrejas

SOUL MAN, I BELIEVE TO MY SOUL. “Essa questão é um pouco complicada”. A questão: Como definir a música Soul? “A minha tese é que Soul Music não é um gênero musical, mas um estilo musical.” O gênero assim, nesse sentido, seria uma estrutura fechada e rotulada buscando enquadrar um conjunto, enquanto o estilo teria maior liberdade e características individuais. O exemplo, Jorge Ben. Seu estilo é próprio, e sua musicalidade não pode ser definida apenas como soul, uma vez que ele participou de diversos movimentos musicais, da Bossa Nova ao Tropicalismo. “Enfim, qualquer definição de Soul Music deve ser aberta o suficiente para não limitar o estilo musical. Levando-se, pois, todo seu caráter musicalmente diversificado em consideração, podemos assim definir o Soul como o desenvolvimento da Rhythm and Blues e da música gospel. Um Rhythm and Blues saindo dos campos de algodão para o Gospel como uma música de celebração que leva influências do Jazz, Blues e Funk. Ou como derivado do Blues, do Gospel e do R&B, embora este último seja um rótulo mais abrangente e contemporâneo, criado pela indústria fonográfica.

“Whenever blue tear drops are falling, and my emotional stability is leaving me, there is something I can do (...) If you don’t know the things you’re dealing, I can tell you, darling, that it’s Sexual Healing”. Ao ler esse trecho de “Sexual Healing”, de Marvin Gaye, alguns de súbito perguntariam: e a influência gospel, onde está?

LIVING IN AMERICA, SAY A LITTLE PRAYER FOR

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foram por muitos anos - em grande parte ainda são - locais de manifestação espiritual e política, de influências evidenciadas em toda nação norte-americana. GOT TO BETHERE, IT´S THE SAME OLD SONG. O surgimento e difusão do Soul estão estreitamente ligados à atuação da Motown Records, - fundada em Detroit, Estados Unidos, no ano de 1959, dentre outras gravadoras, que introduziram novas texturas nos arranjos das canções marcadas pela batida da guitarra, bateria e percussão, amplificando o Soul para outros públicos. Essa popularização do estilo foi uma grande mudança em meio ao desenvolvimento da indústria fonográfica somado ao advento da Motown no final dos anos 50. A cultura dos festivais da época já nos anos 60, e a fácil veiculação de informação fez com que as coisas fossem muito mais disseminadas.. Pode-se imaginar que a referência Soul foi rapidamente absorvida, especialmente em países com população negra. O presidente Berry Gordon já tinha essa ideia de fazer uma gravadora universal, isto é, para um público universal. Artistas como Ray Charles, Aretha Franklin e Otis Redding eram presença certa em festas de ambos os gêneros, e, especialmente, de todas as raças. Alguns artistas até consideram que a Motown embranqueceu a música negra ou que ela vendia música negra pra brancos. Talvez a gravadora tenha sido sugada pelo ‘momento jovem’ - que ganhava poder na época - , e acabou se aproveitando disso pra se destacar. Mais abaixo do mapa, a Stax dos anos 60, gravadora do sul de Memphis, apesar de ser consumida por brancos recebia por alguns o rótulo de vender música negra só para os negros - talvez por ser mais engajada, em um tipo de atitude que desaguou no funk. “Negro fazendo música branca”: o estilo da Motown é inconfundivel, de qualidade, artesanal. Uma música menos gritada, com menos elementos étnicos que faziam algumas pessoas acharem que quem cantavam eram intérpretes brancos. Diferente do blues e do gospel, que não foram música para brancos e sim por eles assimiladas. Especializada em R&B e no Soul, gravou hits como Superstition, Please Mr Postman, ABC e I Heard Through the Grape

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O documentário Soul Power, 2009, registra o festival de 1974 na cidade de Kinshasa, Zaire, que reuniu James Brown, BB King, The Spinners, Bill Whiters entre outros para três noites de música Soul no continente africano.


Rascunho

Há um livro do Hermano Vianna, sobre o funk no Rio de Janeiro (O Mundo Funk Carioca) em que ele desenvolve essa ideia

Vine. Pelas mãos do Sr. Berry Gordy passou também a nata da soul, de Aretha a Wilson Pickett, Barrett Strong, Diana Ross e Supremes. Mais de 100 aparições entre o top ten da Billboard, a Motown foi durante a década de 80 o principal celeiro da era de ouro da Soul Music.

pejorativa que é ressignificada para dar nome a um gênero musical. Mas a evolução natural da Soul Music permite que este, mais tarde, saísse gradualmente de cena no Brasil para dar maior espaço a esse estilo mais ritmado, de batida mais marcada e dançante. Não só o Funk como também o Hip Hop, dois dos maiores movimentos musicais no Brasil no final no século XX, no Rio de Janeiro e São Paulo respectivamente, surgiram com influências da música Soul. Nos aspectos de política do corpo, da valorização da dança e performance - fundamentais para os artistas dos anos 70 -, esses dois movimentos musicais carregam ainda possivelmente a alma da Soul Music. Em meados dos 70, o movimento Black Rio foi criado pelos selos na intenção de capitalizar o sucesso dos bailes black da época, e deram bons frutos, como a Banda Black Rio, Carlos Dafé, Hyldon, Gerson King Combo e sua União Black, Lady Zu, entre outros. Uma hipótese é que os bailes blacks que ocorriam ao som de Soul internacional foram a gênese dos bailes funks atuais.

GOING TO A GO-GO , PLAY THAT FUNKY MUSIC WHITEBOY. Diferenciar o Soul Music de outros estilos pode ser mais complexo do que de fato parece. Mas não se encararmos os gêneros e estilos atuando como uma continuidade, uma expressividade musical que vem desde a África e se torna uma constante na diáspora onde quer que o povo negro esteja. O baião e o samba brasileiros, por exemplo, dialogaram com a Soul Music em diversos momentos. Tim Maia fez diversos sucessos com baiões em estilo soul, como Coronel Antonio Bento (que é uma música do João do Vale), como músicas ‘Souls’ que tinham muita influencia de samba. O samba também foi base para quase toda a obra de Jorge Ben e muitos adeptos da Soul Music cresceram no mundo do ritmo. Os bailes blacks eram muitas vezes realizados nas quadras de samba, tornando essa hibridização algo constante. Enquanto nos anos 70 os brasileiros ainda falavam em Soul, nos Estados Unidos o termo começava a ser substituído pela gíria funk - “cheiro de corpo” em inglês, expressão

Já o Hip Hop - considerado um movimento artístico e cultural composto pelo canto do Rap (que significa ritmo e poesia), a instrumentação dos DJs, a dança do break dance e a pintura do grafite - tem seu advento ligado ao fechamento

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Em entrevista à Showbizz, para Sergio Martins & Robert Halfoun, Isaac Hayes, revolucionário e lenda da música negra norte-americana nos anos 70, autor de sucessos Hold On I’m coming e Soul Man: O que acha do gangsta rap? Eu não gosto muito de hip hop, mas consigo entender por que existe esse tipo de música. O rap surgiu quando o governo americano cortou verbas para os programas de arte. Os jovens queriam aprender música, mas não tinham instrumentos. Por isso começaram a experimentar o sampler. E as gravadoras enxergaram no rap um belo potencíal comercial. Eu sempre falo para os jovens - rappers ou não -aprenderem algum instrumento. Senão, qual será o destino da música? O que eles vão samplear no futuro? Os próprios samplers?

das escolas de música que ensinavam a atividade para populações pobres nos Estados Unidos.

Partiu” do Tim, assim como os ‘manos’ de hoje são os brothers das canções de Tony Tornado e Gerson King Combo dos anos 1970. O Hip Hop, de alguma maneira, é a continuação da Soul Music, mesmo que por linhas tortas, e pode ser visto como uma continuidade de toda a manifestação política que a envolve. Foram as canções de R&B e de Soul levadas para a Jamaica em meados da década de 70 que contribuíram para a formação do ritmo. Lá, eram os disc jockeys quem tocavam os discos e faziam as improvisações em cima das batidas rítmicas, embaladas pelo Ragga - também chamado de dancehall pode se entendido como o Reggae mais o Rap. Quando isso volta para os Estados Unidos pelos jamaicanos que migram para o país, ganha um pouco mais o acento do rap, e os DJs viram os tocadores de disco enquanto os que fazem rap viram os MCs. I FEEL GOOD, SAY IT LOUD (I’M BLACK AND PROUD). O Soul junto com outros gêneros afro-americanos como o R&B, Blues, Funk, Rap, Jazz se tornaram todos um arqui-gênero, denominado Black Music. Com o passar do tempo, as fronteiras entre esses gêneros foram sendo cada vez mais diluídas, e ampliadas para platéias maiores, sem necessariamente ter um cunho marcadamente étnico-racial,

Um quinto elemento do movimento ficou conhecido no Brasil como conhecimento, mas significa na verdade knowledge of yourself, ou auto conhecimento, que é a compreensão de quem você é, de suas raízes e história. Os problemas de ordem social enfrentados pelos moradores dos guetos nos subúrbios negros e latinos no país também evidenciam, no Rap - uma expressão dentro do Hip Hop -, o caráter político e reivindicatório presentes no Soul em sua evolução, se abrindo para outras temáticas relativas ao cotidiano das periferias das grandes cidades. Ora, tanto o funk quanto o rap são movimentos musicais que estão fora do que chamamos de música popular brasileira. São produções que surgem da comunidade negra das periferias, atribuindo maior importância a sua identidade fundida na periferia - que em sua maioria se constitui em uma comunidade negra - do que concessões a ideias nacionalistas. As canções de Rap, o visual e atitudes black e a referência a uma comunidade fraternal são evidências da inspiração do Hip Hop nos cantores Souls. Na música dos Racionais MC’s, por exemplo, o nome já faz referência a Tim Maia e a base da canção “O homem na estrada” é da música “Ela

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por ter se tornado uma música globalizada. No Brasil, há algumas manifestações que tentam resgatar o Soul dos anos 70: algumas manifestações pautadas em festas e DJ’s colecionadores de raridades, caracterizando um movimento de “revival” do soul dentre outros gêneros dos anos 70. Esse fator tem influenciado o surgimento de bandas e cantores independentes que tentam resgatar antigas sonoridades. Essas festas, por sua vez, são realizadas nas grandes cidades brasileiras, dentre as quais vale destacar: Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A popularidade de artistas como Cassiano, Tim Maia e Hildo permitiram a assimilação do Soul por parte dessas novas manifestações. Talvez o estilo Soul brasileiro tenha se enfraquecido pelo advento da discoteca que colocou tudo num balaio só, assim como pelo enfraquecimento desses próprios artistas. Cassiano parou de gravar, Hildo se distanciou da forma musical dele, Tim Maia enlouqueceu. Foi um processo de rompimento, e o Soul já tinha migrado pra outros gêneros musicais. Mas esses artistas foram de extrema importância para a construção de uma Black Music brasileira e junto com sua musicalidade levaram também o contexto político que o ritmo já apresentava nos EUA. Se eles têm espaço no cenário musical comercial de hoje? Nas rádios e na mídia certamente não. Mas na casa das pessoas, nas festas blacks eles continuam fazendo parte. Eles se transformaram, mas até hoje ainda são de diferentes formas de conscientização e expressão da juventude negra. Não há necessariamente, no Brasil, uma substituição, mas uma ‘’evolução’’. O Soul passa a se tornar uma dicção freqüente em muitas das composições da MPB, devidamente diluído, e apropriado por gêneros tipicamente brasileiros, como o samba. Ou como o pagode: o estilo mais próximo da Soul Music. Grupos como Exaltassamba, Só pra contrariar, Negritude Junior, turma que ouvia o Soul, que ia em bailes e que viam Cassiano, Tim Maia, e foram absorvendo. Estetizar uma cultura negra internacional foi um dos principais legados do Soul. A identidade, dentro da Black Music, é étnica: ao se afirmarem como negros e se solidarizarem com as lutas anti-racistas dos negros norte-americanos os cantores da Soul Music criavam uma comunidade de solidariedade que transbordava os limites da nação.

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Sonho que se sonha junto é realidade texto por Maria Eduarda Amorim e Jéssica Santos

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inte e três de novembro é o dia nacional de combate ao câncer infantil. Em 2012, a doença acometeu cerca de 11530 crianças, mas o diagnóstico precoce previne o avanço dos tumores e possibilita a cura de até 70% das crianças e adolescentes em centros especializados, como o GRAACC – Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer. O GRAACC é uma Instituição sem fins lucrativos fundada em 1991, em São Paulo, para atuar de forma especializada no tratamento do câncer infantil. Para isso, o hospital adota a filosofia de “Portas Abertas”, a partir da qual aceitam e prestam atendimento gratuito a todos os pacientes que chegam até lá. O projeto teve como idealizadores o doutor Sérgio Petrilli, médico oncologista, o engenheiro Jacinto Antonio Guidolin e dona Léa Della Mingione, voluntária do Hospital do Câncer. O hospital do GRAACC se localiza no bairro Vila Cle-

mentino, em São Paulo, e recebe crianças com todos os graus da doença. Normalmente, elas chegam diagnosticadas e, em alguns casos, ainda são feitos exames de confirmação. No hospital são tratados os vários tipos de câncer infantil, desde o mais comum, a leucemia, até os mais graves como os que atingem olhos, ossos e sistema nervoso. Os tratamentos são realizados em sua maioria de forma ambulatorial, ou seja, sem que a criança precise ficar internada, sendo este um procedimento utilizado apenas em casos de intercorrências, como imunidade muito baixa ou necessidade de realização de cirurgias. Comparado ao câncer dos adultos, o infantil diferencia-se por ser uma doença genética, causada por problemas durante o desenvolvimento das células. Dessa forma o câncer infantil se dá associado ao crescimento, enquanto o do adulto acontece devido ao envelhecimento das estruturas celulares.

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Também existem casos, porém raros, de canceres infantis hereditários que não ultrapassam 5% dos diagnósticos. O principal método de combate utilizado é o da quimioterapia, processo em que as células tumorais recebem medicamentos para interromper seu crescimento e eliminar o causador da anomalia que causa o câncer. Esse tratamento se mostra mais eficaz quando a célula está em fase de desenvolvimento, como acontece com as crianças. Embora os tumores do câncer infantil sejam mais devastadores seu progresso mais acelerado. Os últimos estudos demonstram que a doença vem sendo individualizada, fato que dificulta seu processo de tratamento, pois é necessário que se investigue o interior da célula para descobrir qual fator está desencadeando o crescimento de um tumor. Realizada esta etapa, é preciso desenvolver mecanismos eficazes de combate com o mínimo possível de prejuízo para o paciente. O próprio GRAACC atua em algumas linhas de pesquisa em genética, desenvolvidas em parceira com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), que estudam alguns tipos de crescimento de tumores, mas por enquanto não foram obtidos resultados capazes de garantir a cura dos tipos mais graves da doença. Os esforços são voltados para descobertas e aprimoramento das das técnicas empregadas no método terapêutico. Os principais exemplos são os avanços na diminuição do impacto gerado pelos tratamentos e alguns fatores responsáveis por otimizar os resultados da quimioterapia. Os pacientes recepcionados pelo GRAACC tem entre zero e dezoito anos e o tratamento completo tem duração média de seis, divididos em um ano de terapia intensiva e cinco de acompanhamento do tumor. O hospital atende pacientes de todos os lugares do país e não existe fila de espera, pois o câncer infantil é muito devastador e não pode aguardar. O tratamento deve ser iniciado assim que o paciente é diagnosticado com a doença. Dessa forma, se o GRAACC receber alguma criança que não possa ser tratada por ele, logo é realizado um encaminhamento para outro hospital para que ela receba atendimento imediato. O GRAACC possui um programa de humanização empregado em todas as fases do tratamento de seus pacientes. Através dele, são valorizados os períodos da infância e da adolescência como um dos mais importantes da vida de uma pessoa e, por isso, são disponibilizadas assistências psicológica e escolar. O objetivo é que as crianças e as famílias saibam como é a doença e quais os procedimentos do tratamento a fim de que este não interfira no seu desenvolvimento e crie um processo de defasagem na escola ou no convívio social. A Escola Móvel foi desenvolvida com esse propósito e permite que as crianças realizem as mesmas atividades curriculares do seu nível escolar. A iniciativa conta com o apoio de médicos e professores e possibilita que, após finalizado o tratamento, os pacientes retornem à escola sem nenhum prejuízo de conteúdo.

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O projeto conta também com o trabalho de um grupo de quatrocentos e cinquenta voluntários que se dividem e atuam em várias áreas realizando o acolhimento das famílias dos pacientes, o serviço social voltado ao público carente, que recebe suporte financeiro para conseguir chegar até o hospital e famílias que não têm condições de se manter em São Paulo e são encaminhadas para alojamentos criados e mantidos pelo GRAACC e seus principais parceiros. Além dessas repartições, os voluntários atuam na brinquedoteca e quimioteca e se empenham para trazer alegria para as crianças em fase de tratamento no hospital a fim de que esse momento seja marcado por lembranças divertidas e sua saúde emocional também seja trabalhada e mantida saudável. Os pacientes são assistidos por psicólogos individualmente e em grupo, durante e após o tratamento, para que sejam trabalhadas questões de confiança, saúde e cidadania. E nesse ponto, a gerente de marketing do projeto, Amanda Kartanas, afirma que os pacientes são muito confiantes e que não cultivam tristeza e baixa autoestima. O GRAACC se empenha para eles tenham uma vida saudável e mais normal possível, explicando que o tratamento é necessário, mas que não deve impedir a criança e o adolescente de realizarem atividades simples e benéficas para o seu desenvolvimento. Pacientes com idades próximas de prestar vestibular são preparados para as provas, alguns parceiros oferecem bolsas de estudo e oportunidades de emprego permitindo que eles consigam conquistar seu sonho e possam se colocar no mercado. As parcerias científicas são desenvolvidas exclusivamente com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e, além disso, vários profissionais são aceitos para realizar a residência multiprofissional e contribuir na complementação do tratamento dos pacientes em áreas como a terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicologia e pedagogia escolar. O trabalho do GRAACC possui significativa visibilidade na mídia e desfruta de prestígio e credibilidade devido a seriedade com que é desenvolvida sua missão. Há 6 anos a Instituição atua nas redes socias e, há 4, uma pessoa é responsável por gerenciar o relacionamento com os fãs e seguidores; entendendo que, no futuro, este será um canal prioritário de comunicação, afirma Amanda. Sua grande campanha na internet e redes socias acontece no dia nacional de combate ao câncer infantil. Todo ano são feitas ações apresentando a causa e o trabalho do GRAACC. A principal intenção é a divulgação do site, por onde o Instituição recebe grande parte das doações. Além de ajuda financeira, o GRAACC também recebe brinquedos, livros e roupas. Os produtos usados e em bom estado vão para um bazar,a fim de arrecadar findos. os novos são destinados aos pacientes.

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o contador de histórias

O fotógrafo Luciano Candisani não só tem uma carreira espetacular ou talento nato: ele tem a sensibilidade de mostrar a natureza de um modo único e apaixonante

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por Jéssica Santos, Lucas Loconte e Maria Tebet fotos de Luciano Candisani

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m jacaré de dentes pontiagudos salta da moldura amarela da capa da National Geographic. É a primeira vez que um conteúdo local produzido por um fotógrafo brasileiro para a edição principal - norte-americana - é publicada primeiro na edição brasileira. A ideia de que o homem é produto do meio reflete bem a trajetória de Luciano Candisani, de 43 anos. Natural de São Paulo e residente em Ilhabela, ele consegue aliar a sua paixão pela natureza com a fotografia. Rio, mar, fauna e flora sempre estiveram a sua volta, provocando energias e sensações que passam a determinar sua identidade pessoal e profissional como fotógrafo dedicado à conservação e documentação da biodiversidade e populações tradicionais ameaçadas. A fotografia surge como uma ferramenta a partir da qual ele pode registrar tudo que o encantava, trazendo para as pessoas a beleza e a importância de cada elemento do meio ambiente. Sua estreita conexão com a natureza e o modo como ele respeita os ambientes e animais é evidente já em alguns minutos de conversa descontraída. Ele relembra nomes de David Doubilet, Cartier Bresson e Sebastião Salgado como influência para o seu início de carreira, além de Paul Nicklen, hoje grande amigo. Mas suas fotos não são exclusivamente produto de suas referências profissionais. Uma imagem é sempre parte de uma história que se quer contar e o jornalismo é uma ferramenta que torna isso possível. Todas as imagens que Luciano faz, isoladamente ou em conjunto, têm esse conteúdo e estão ligadas a esse impulso de contar histórias, em uma narrativa valiosamente única. E se toda fotografia conta uma história, todo fotógrafo deve ter muitas histórias para contar.

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O INTERESSE DE CANDISANI pela natureza e a fotografia surgem simultaneamente durante sua adolescência. E é a partir daí que ele passa a buscar as condições e os suportes técnicos para o desenvolvimento de sua carreira profissional. Leitor assíduo da publicação na qual anos mais tarde trabalharia, Luciano já “viajava” com as matérias e fotos da National Geographic, e ficava encantado com as imagens do mar. Inspirado pelas leituras e certo de que essa afinidade com a fotografia e os ambientes naturais ganharia espaço na sua vida, ele decide cursar biologia e ingressa na Universidade de São Paulo. O destino então parece responder favoravelmente às suas habilidades pessoais. Já no primeiro ano da graduação, ele entra para o Instituto Oceanográfico da USP e tem a oportunidade de conciliar a fotografia e os estudos biológicos em ambiente submarino. Na época, eram poucos os que possuíam uma credencial de mergulhador autônomo, necessária para que os pesquisadores pudessem realizar visitas práticas e produzir imagens dos locais a serem estudados. Apto a mergulhar e habilidoso com câmeras anfíbias, Luciano é convidado para ser o fotógrafo da equipe e passa a acompanhar expedições científicas.

Foi em uma dessas viagens que teve sua primeira grande oportunidade profissional como fotojornalista: ele foi para a Antártica, em 1996, e fez parte de duas expedições de três meses cada. Isso lhe permitiu documentar de forma inédita a vida abaixo da superfície congelada e abrir as portas para as primeiras publicações importantes do seu trabalho. Era o ponto inicial para que ele ingressasse na carreira de fotógrafo profissional. Além das fotos para o Instituto, Luciano publicou alguns artigos em revistas científicas internacionais. Ele reconhece a importância de sua formação acadêmica e não desvincula o seu trabalho do universo da pesquisa. Para ele, todas as suas reportagens estão, de alguma forma, ligadas à estudos práticos e teóricos: afinal, o pesquisador é, também, um contador de histórias. Mostrando-se um verdadeiro autodidata, Candisani sempre se interessou pela fotografia, mas não possui formação na área. Buscou obras importantes, leu e foi adquirindo conhecimentos teóricos que assim conciliava com a prática e a técnica da profissão, como o funcionamento e utilização dos equipamentos fotográficos.

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ANTES DA NATIONAL GEOGRAPHIC, Luciano trabalhou para revistas como Terra, Globo Ciência e realizou algumas matérias para a Veja e a Época. Iniciou sua carreira na revista concomitantemente à criação da versão brasileira da publicação, em maio de 2000. Desde que entrou para a National, Candisani trabalha com a produção de conteúdo para a edição brasileira. Ele conta que em 2012 teve um grande salto, quando passou a trabalhar também no desenvolvimento de reportagens para a edição principal da revista, há 125 anos no mercado e com mais de 40 milhões de leitores. A dinâmica de produção de conteúdo da edição nacional e internacional é basicamente a mesma, na qual fotógrafos e editores de fotografia trabalham integrados: a pauta é aprovada, as fotos são produzidas, selecionadas pelo editor de fotografia e posteriormente publicadas. A diferença, segundo Luciano, é que na edição principal se têm mais tempo e recursos para produzir as reportagens, o que melhora as condições do trabalho do profissional. Aqui, uma atenção especial: embora sejam a mesma revista, as várias edições internacionais (e, para nós, a edição brasileira) são traduções da publicação principal. Isto é, elas trazem o mesmo conteúdo da edição norte-americana acrescidas de algumas matérias locais de cada país. Essas matérias são realizadas para aproximar o público e permitir que ele se identifique com os temas e as problemáticas envolvendo o meio ambiente, viagens e descobertas científicas e arqueológicas em todas as partes do mundo. Na matéria idealizada por Candisani, The Comeback Croc (A volta do Jacaré), produzida para a edição norte-americana e realizada aqui no Pantanal, acontece uma exceção: o editor da revista brasileira pediu autorização para publicar antes a matéria no Brasil aproveitando o lançamento do livro de Luciano, “Pantanal: Na Linha D’Água”.

Se o meu trabalho tem alguma utilidade, está ligada a levar os leitores a prestar mais atenção e se moverem em direção à conservação. LUCIANO CANDISANI, fotógrafo


BIÓLOGO, FOTOJORNALISTA, CINEGRAFISTA, MERGULHADOR: a versatilidade sempre foi uma das marcas de Candisani, e um fator de grande importância na produção do seu trabalho. Na viagem à Antártica, por exemplo, a oportunidade surgiu porque era necessário alguém que pudesse fazer todas as atividades - como cuidar dos equipamentos de mergulho, ficar responsável pela embarcação, fotografar, mergulhar e pilotar o bote. O seu interesse e habilidade em fazer todas essas atividades - mergulho, escalada, navegação - facilitaram sua rotina, e o permitiu adaptar-se em qualquer tarefa profissional.

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Para Luciano a mesma busca em contar histórias existe tanto na fotografia como na atividade de cinegrafista. As linguagens, entretanto, são diferentes. A solidão do estático versus o movimento em conjunto: a fotografia é uma atividade basicamente solitária enquanto no filme o esforço é mais coletivo. E é de fato quase impossível, como ele mesmo diz, pensarmos na filmagem como um trabalho individual - a captação das imagens, a montagem do material e o uso de cortes com imagens de outros cinegrafistas fazem dessa atividade algo dependente do coletivo.

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A IMPREVISIBILIDADE NA NATUREZA é o principal desafio para Candisani. Para ele, o jornalista cobrindo uma matéria na natureza está muito mais sujeito a trabalhar com acontecimentos efêmeros e imprevisíveis, principalmente nas histórias envolvendo a biodiversidade e animais em ambiente natural. Para minimizar tal efeito, se apoia novamente na pesquisa. É ela que terá as bases para fornecer ao profissional dessa área o poder de antecipação fundamental diante dos eventos e lhe permitir entender o comportamento dos animais. A dificuldade não está no ambiente em si ou na capacidade de sobrevivência nos espaços isolados, e sim nessas características imprevisíveis dos eventos na natureza. No esforço mútuo de realização de um bom trabalho, a biologia, o campo da pesquisa e a Fotografia complementam-se chegando a se misturar em vários momentos. Mas não é por isso que suas fotografias têm unicamente uma preocupação didática - como ele próprio afirma - pois, se de fato tivessem, elas não teriam espaço nas publicações atuais. O editor não quer só registros, quer opiniões e interpretações sobre os temas. E os editores da National Geographic, diz Luciano, dão o espaço necessário e incentivam os fotógrafos na busca de suas interpretações pessoais.

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LUCIANO FICOU COM muito medo quando encontrou com um jacaré debaixo d’água pela primeira vez. Estava fazendo uma matéria sobre raias escondidas no fundo do rio e de repente se deparou com o animal. O medo é um momento em que o coração dispara, o estômago fica gelado e o corpo é tomado por um leve tremor. Em seu relato sobre o momento, ele conta que o bicho estava parado, apoiado no fundo e com a boca entreaberta. Ele se aproximou devagar e começou a tirar algumas fotos – o jacaré nem reagia. Foi o instante para ele perceber que o animal estava parado a espera dos cardumes que saiam dos campos alagados e voltavam para os rios, fato que acontece no final das cheias no Pantanal. O jacaré é um predador oportunista e fica esperando até que a presa chegue e ele possa garantir seu alimento. Em 2013, ele lançou o seu sétimo livro, Pantanal: Na Linha D’Água, publicado pela Editora Abril. A escolha das imagens que vão para o livro e o tempo curto de produção torna o produto final aquém do que se imaginava, consequência do sistema editorial no Brasil para esse tipo de publicação. Na semana da entrevista, Luciano tinha acabado de voltar de uma outra viagem do Pantanal, onde foi fazer a captação das imagens subaquáticas para um documentário televisivo.

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ÚNICO BRASILEIRO A SER NOMEADO membro permanente da International League of Conservation Photographers - liga criada pelos editores e fotógrafos da National Geographic - Luciano ganhou, esse ano, lugar no júri do prêmio Wild Life Photographer of the Year, premiação britânica renomada de fotógrafos de natureza. Já havia vencido a competição em 2012 na categoria Comportamento – Animais de sangue frio com a fotografia Into the Mouth of the Caiman (foto que retrata um Jacaré do Pantanal). Para ele foi uma alegria participar novamente, agora como jurado, já que as fotografias premiadas na história do Wild Life serviram-lhe inspiração em sua formação. Ganhar o prêmio e a oportunidade de participar do júri trouxeram-lhe um prazer pessoal muito grande, experiências marcantes como palestras em eventos importantes na Inglaterra e visibilidade profissional. Além do Wild Life, ele recebeu cinco prêmios Abril de Jornalismo e o segundo lugar no Festival Mondial d’Limage Sous Marine, em 2012 na França. O trabalho de Candisani atrai a atenção dos leitores não só pela beleza, mas por trazer interpretações particulares

para cada tema. O clique da sua lente traz o modo como ele retrata um lugar ou uma situação. Deve-se contar a história de maneira inédita, e não sobre um tema inédito. O Pantanal é o melhor exemplo: ele já foi tantas vezes para lá que conseguiu explorar um tema recorrente e aparentemente repetitivo trazendo uma visão completamente inédita sobre o assunto. Além do Pantanal, os lugares que mais marcaram em sua carreira foram a Antártica, Atol da Rocas, Ilhas Galápagos, Filipinas, Patagônia - mesmo que para ele cada lugar visitado tenha suas peculiaridades. Viajaria novamente para as Filipinas, mas agora para visitar outras das 7 mil ilhas da região. “Qual o diferencial de sua obra?”, perguntamos. É evocar algo muito poderoso: a ligação de cada espécie com o seu ambiente. Luciano tenta sempre evocar essa ligação de alguma forma, até mesmo com a fotografia de pessoas. Isso fica bem visível com a estética de suas imagens, onde ele coloca o ângulo de visão dos animais no mesmo ângulo da fotografia. Essa postura é algo inconsciente, ele nos diz, e é resultado de toda sua reverência e respeito pelos animais e ambientes naturais.

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WILD LIFE PHOTOGRAPHER OF THE YEAR por Maria Tebet Tudo estava tão vazio e recentemente amanhecido que pensei estar diante do museu errado. Mas não, era eu quem estava adiantada. As portas ainda fechadas, um grupo pequeno de visitantes na minha frente e alguns minutos de espera. No bilhete, “You will need to present this e-ticket and the payment card you used to purchase it to gain entry to the exhibition”. Uma folha de papel - e não um payment card - depois, lá estava eu, entrando no local de exposição do mais renomado prêmio de fotografia de natureza na atualidade, o Wildlife Photographer of the Year, sediada pelo Natural History Museum em Londres e próximo a completar seu quinquagésimo aniversário. Cem fotos divididas em 18 categorias dispostas em pequenos ambientes que davam o ar sério e o prestígio que a competição de fato merece. As imagens, vindas de todas as partes do mundo – inscrições de 96 países neste ano -, são escolhidas por suas qualidades estéticas e suas reflexões técnicas, e algumas vezes chocantes, dos elementos da natureza. No júri internacional, quinze profissionais da área da

fotografia e meio ambiente - fotojornalistas, fotógrafos, editores, executivos, diretores. As imagens são julgadas anonimamente por quatro etapas de avaliação crítica e coletiva – conduzida esse ano por Jim Brandenburg, ganhador do prêmio em 2012. Quase 43 mil imagens são reduzidas até serem escolhidas as cem melhores. E é na cerimônia de premiação que os ganhadores de cada categoria concorrem ao maior prêmio da competição - 10.000 libras ao Overall Winner. Ao por meus pés para fora do museu, uma enorme fila de famílias aguardava sua entrada sob uma bela e fresca quase tarde de domingo. Para o meu espanto: por segundos de dúvida me esqueci em que país estava. Sinto – e sinceramente espero - que o Wild Life seja a primeira de muitas exposições de fotografia pela frente, não a única. Para quem realmente aprecia e valoriza o poder de uma fotografia, as histórias de muitas das imagens vistas lá ficarão na memória. Lembrando-me não só da importância da conservação da natureza, como também do papel da fotografia em tornar todo esse sentimento vividamente possível.

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WORLD PRESS PHOTO Foi com emoção e orgulho que Luciano nos contou, em primeira mão, o convite que havia recebido no dia anterior a entrevista para ser um dos jurados do World Press Photo, um dos mais importantes prêmios de fotojornalismo do mundo. O World Press Photo (WPP) é uma organização sem fins lucrativos fundada em 1955 em Amsterdã, Holanda. Premia anualmente as melhores fotografias da imprensa mundial e as transforma em exposição que percorre 45 países e é vista por mais de 2 milhões de pessoas. Desde o ano passado, introduziu um novo concurso para produções audiovisuais multimídia. A premiação se divide nas seguintes categorias: Spot News (manchetes), General News (notícias gerais), People in the News (as pessoas nas notícias), Sports Action (esportes de ação), Sports Features (aspectos dos esportes), Contemporary Issues (assuntos contemporâneos), Daily Life (vida cotidiana), Portraits (retratos), Arts and Entertainment (artes e entretenimento) e Nature (natureza). O resultado final sai em meados de fevereiro, em data ainda a ser definida. Mais informações podem ser encontradas em: www.worldpressphoto.org.

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O SEXO PARA QUEM NÃO FAZ Se guardar ou não para a pessoa certa nem sempre é uma dúvida para os jovens texto por Lívia Neves

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abu ou não, o sexo ainda não é tratado abertamente por todas as pessoas. E, muitas vezes, essa falta de diálogo impossibilita o entendimento humano em relação às escolhas pessoais da vida. Um reflexo disso é o conflito de interesses e até certa falta de respeito quando os jovens se dividem em grupos: aqueles que fazem sexo e aqueles que não fazem. Dentro das duas vertentes há possibilidade de subgrupos como aqueles que praticam sexo casual ou aqueles que só praticam dentro de um relacionamento. Mas

isso não vem ao caso, pelo menos não agora. Agora, você vai acompanhar uma aproximação à realidade de algumas poucas pessoas que se abriram sobre um assunto tão íntimo e dividiram seus ideais para, quem sabe, romper barreiras. Não se perca. Acompanhe. CASADOS. FELIZES. REALIZADOS. Gabriel Meirelles e Tati Vieira namoraram durante sete anos antes de subir ao altar. Hoje, com 30 e 27 anos, respectivamente, eles contam

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Sinceramente eu não entendo o por quê. As pessoas tratam disso como se fosse um castigo ou algo muito ruim ISABELA GIANFRANCESCO, estudante

que não pensavam sobre o assunto sexo. “O questionamento e a decisão de esperar vieram com o início da adolescência”, aponta Gabriel. O casal segue os princípios da fé cristã e toma os estudos da doutrina como um guia para a vida. Ambos optaram por esperar a hora certa para se sentirem realizados com essa decisão. Entende-se como “certa” o tempo perfeito para que eles se sentissem confortáveis e não o oposto de errada. Para quem pensa diferente, namorar durante sete anos sem ter relação sexual pode parecer absurdo. Mas esse estranhamento é comum. Tati comenta que não sentiu a “famosa” pressão para que a transa acontecesse, nem por parte do namorado nem dos amigos: “foi algo muito natural. Eu vivia no meio de pessoas cristãs com os mesmos princípios que os meus o que facilitava”. Para Gabriel, as coisas também não foram diferentes e ele seguiu seu pensamento. “Pra mim o significado era de esperar para viver a sexualidade dentro do propósito em que eu acredito que ela foi criada, o casamento”, diz. Quando questionados sobre algum arrependimento, os dois concordam que não teriam feito diferente. Mas não é só porque eles escolheram casar virgens que seus filhos também farão o mesmo. O casal pretende apresentar a fé cristã aos descendentes – na qual as relações são supervalorizadas e consideradas laços fortes e altamente significativos na relação a dois – e deixá-los livres para fazer as suas opções. “Eles escolherão todas as atitudes que querem tomar”, completa Tati.

é comum e necessário”, assinala. Soraia consegue falar com mais propriedade de quem entende os dois lados e admite que teve muitas oportunidades de viver experiências casuais. Mas ela preferiu que não ocorressem. A jovem destaca que, quando aconteceu, não foi algo planejado, mas também não foi nenhuma surpresa, pois o assunto já martelava em sua cabeça.

EXPERIMENTOU. Um pouco diferente dos outros entrevistados, Soraia Alves não seguiu até o final os princípios da castidade. “Sempre acreditei que o sexo era uma forma de consolidar uma aliança e um compromisso sincero. Não banalizo as relações da minha vida”, expõe. No entanto, aos 24 anos, a estudante decidiu experimentar e perdeu a virgindade com uma pessoa a qual não mantinha um namoro ou relacionamento amoroso constante. Quando questionada sobre um possível arrependimento, ela diz que não. Para ela, viver essa experiência apenas reforçou ainda mais os princípios que já seguia. “Sou cristã e vejo que o sexo ainda é um tabu dentro e fora da igreja. As pessoas não querem tocar em um assunto que

DECIDIDA. Aos 21 anos, Isabela Gianfrancesco sabe bem o quer. Ela conta que só começou a pensar em sexo quando começou a namorar há cinco anos. “Antes disso, nem pensava muito sobre essa questão porque nunca quis fazer relação sexual muito nova e principalmente com qualquer um. Quando conheci alguém e comecei a confiar nessa pessoa, eu me permiti pensar sobre o assunto”, conta. A jovem revela que pensou muito sobre o assunto e concluiu que a melhor opção era esperar o casamento. Ela destaca que a escolha foi inteiramente dela, sem pressão de terceiros. Isabela está prestes a completar quatro anos ao lado de alguém e divide seus princípios com o companheiro. “Não

Tati e Gabriel completaram três anos de matrimônio em 2013 e sem nenhum arrependimento da escolha que fizeram muito antes de se conhecerem.

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Apesar de quatro anos de relação, Isabela ainda não pensa em casamento e aproveita a seu namoro para curtir e conhecer o companheiro cada vez mais antes de dar um grande passo.

estamos em abstinência do prazer como em muitos lugares se referem a castidade. No nosso relacionamento, buscamos outros tipos de prazeres. E um dia desfrutaremos juntos desse momento tão puro, intimo e maravilhoso”, aponta. A jovem ainda ressalta que essa espera gera um sentimento muito mais profundo de conquista e isso torna a questão ainda mais empolgante. “O sexo em si e todo esse contexto tem muito mais sentido”, completa. Diferente do que muitos passam ou pensam, os amigos de Isabela corroboraram indiretamente para que ela mantivesse sua decisão. “Minha ideia se consolidou muito ao conversar com minhas colegas, da escola e da faculdade, porque sempre mencionam suas desilusões amorosas e principalmente suas frustrações por terem se entregado a homens que não deram valor ou terminaram o relacionamento rapidamente ou queriam ter dividido esse momento com o atual namorado delas”, revela. A estudante acredita que esteja evitando frustrações e caminhando para alcançar algo significativo para descobrir ao lado de seu marido. Apesar de não se auto-questionar, Isabela aponta Deus como sua força maior para seguir seu ideal. A jovem conversa bastante com as suas amigas sobre relacionamentos, amor e sexo. Isabela confessa que não se importa se as amigas são virgens ou não, mas acaba aparecendo um preconceito quando a questão é virgindade. “Sinceramente eu não entendo o por quê. As pessoas tratam disso

como se fosse um castigo ou algo muito ruim. Eu não vejo e nem sinto isso. Pessoas que me julgavam, hoje, me compreendem e aceitam”, comenta. O essencial para Isabela é cada um respeitar o direito pessoal de escolhas individuais. Cada um vive a vida como acha que tem viver. QUESTÃO SOCIAL. A sociedade busca padrões para se encaixar, se fortalecer e formar uma unidade. Por isso, muitos grupos de jovens se sentem pressionados quando uma pessoa da turma perde a virgindade e outros grupos repelem quem prefere não esperar. Ou seja, existe preconceito dos dois lados. O antropólogo Cláudio Bertolli explica que, antigamente, o sexo era considerado como um ato sujo e impuro e isso implicou na visão de muitas pessoas. Ao mesmo tempo, a busca por liberdade e o livre arbítrio colaboram para formar uma ideia oposta de que o sexo é um prazer e deve ser usufruído. Segundo Bertolli, é comum que esse conflito de interesse gere desrespeito e falta de compreensão. “Isso acontece em quase todos os âmbitos da vida e não apenas no assunto castidade. O estranhamento aparece quando o outro apresenta uma ideia contraria, um pensamento diferente, causando uma reação seja aceitação ou entendimento ou choque”, diz. As ideias diferentes são capazes de quebrar a zona de conforto. Mas quem disse que isso é ruim? “Enxergar todos os lados enriquece o pensamento”, conclui.

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Para uma vida

mais leve

texto por Vanessa Souza

A

PETA, organização global de proteção aos animais, escolheu o ex-fisiculturista Jim Morris para estampar sua nova campanha, lançada no começo deste mês. Vegano e com 77 anos de idade, Morris defende que nunca é tarde para adotar uma dieta mais saudável: ele abandonou o hábito de comer carne aos 50 e, 15 anos depois, deixou para trás também ovos, leites e derivados. Ao contrário dos problemas digestivos que ele relatou ter tido na época em que ingeria carne, é possível envelhecer bem e em harmonia com o planeta.

culinária naturalista. Regina diz que, quando cozinha, “a atenção é voltada sempre para o sabor e para o visual, porque é isso que atrai a pessoa a comer aquilo. O sabor é imprescindível. A estudante universitária Sophia Andreazza, por outro lado, nunca teve preconceito contra a alimentação vegetariana. Ela sempre se interessou por esse estilo de vida por praticar yoga e conviver com vizinhas vegetarianas: “tudo que eu comia na casa delas era uma delícia”, Sophia relata. A decisão de parar de comer carne veio quando ela começou a sentir que isso não era certo

Eu estava fazendo uma decisão muito importante e precisava arcar com ela, já que, em casa, todos comem carne menos eu SOPHIA ANDREAZZA, estudante

O veganismo se aplica como uma filosofia de vida que vai além da opção alimentar. Fora carnes, ovos e laticínios, os veganos evitam usar couro, lã, seda e qualquer outro produto de origem animal. Os veganos seguem esse estilo como um ideal a ser atingido, pois é quase impossível viver sem depender de nenhum produto derivado de animais. Já o vegetarianismo – um estilo de vida que se define como a prática de não ingerir carne, nem seus subprodutos – rejeita o consumo de qualquer item que pressuponha tirar a vida de um animal. É o caso da cozinheira Regina Reche. Infeliz com seu trabalho em um banco, Regina decidiu estudar Naturopatia ao observar que não havia ninguém em sua cidade, Bauru, no interior de São Paulo, que oferecesse refeições vegetarianas também voltadas para a terapia. Ela aprendeu a armazenar e preparar os alimentos de modo que a perda dos nutrientes e das propriedades terapêuticas fosse mínima. O próximo passo foi abrir um restaurante que quebra qualquer preconceito quanto ao sabor considerado de gosto duvidoso por quem não conhece a

nem necessário, mesmo sendo recriminada pela família. Depois de consultar uma nutricionista e aprender como montar um novo cardápio, Sophia conta que aprendeu a cozinhar. “Eu estava fazendo uma decisão muito importante e precisava arcar com ela, já que, em casa, todos comem carne menos eu.” Para quem adota o estilo de vida vegetariano, pode ser difícil conviver com pessoas que não entendem os motivos da escolha. Além disso, os vegetarianos carregam o estigma de querer converter todo mundo, o que nem sempre é verdade, já que os carnívoros podem ser bem piores. “Não sei quantas vezes tive de ouvir de familiares e de conhecidos que tudo não passa de frescura e que eu preciso de um bife pra sobreviver”, Sophia explica. Mesmo com as dificuldades, quem decide seguir a filosofia vegetariana não se arrepende. Com essa prática é possível defender os direitos dos animais e ter uma vida mais saudável – assim como o ex-fisiculturista Jim Morris, que prefere pensar antes de comer, e acredita que não estaria tão saudável se não tivesse adotado a dieta vegana.

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Vida pós-carreira

O futebol 40 anos atrás não era tão diferente de quanto é hoje. Os salários talvez não fossem astronômicos, mas, desde aquela época, os atletas já ganhavam bem. “Essa história de que jogador de futebol ganhava pouco é uma lenda”, conta João Carlos “Motoca”, ex-jogador do Botafogo-SP. Balada, glamour, casarões: tudo isso já existia. Faltava, no entanto, a gestão que muito se vê hoje. Gestão do financeiro do atleta e, acima de tudo, da vida pessoal. Muitos se veem perdidos uma vez que a carreira dentro dos gramados acaba. Saudosismo, talvez, mas que faz parte do ego do indivíduo 39


texto por Gabriel de Castro imagens de arquivo

E

u tinha o estilo que o Neymar tem hoje, era um ponta esquerda rápido, driblador, destro, mas tinha uma perna esquerda boa também.” Em alguns minutos conversando com João Paulo Campos, ex-jogador de futebol de Monte Azul Paulista-SP, é notório o quanto o ex-atleta gosta de relembrar os tempos no gramado. João Paulo rodou o interior paulista: passou por Garça, Sertãozinho, Jaboticabal, entre outras cidades. “Aí um dia, um rapaz de Jaboticabal me chamou para um jogo que ia ter entre a faculdade de educação física de Jaboticabal e a faculdade de educação física de Santos. O time de Santos tinha jogador como o Pelé, Pepe… E então nesse jogo eu fui tão bem que acabei indo para a Vila.” Em Santos, João Paulo teve seus momentos de fã ao jogar com o maior jogador de todos os tempos, mesmo que por pouco tempo - foram apenas duas partidas juntos. Do litoral paulista, João Paulo retornou ao interior e foi para o Botafogo-SP. Não ficou por muito tempo lá, tendo sido vendido para o XV de Piracicaba. “Lá no XV a estrutura era ótima”, conta João Paulo, “na época, o presidente era o Romeu Italo Ripoli, um cara inovador. Ele pagava o mesmo

salário para todo mundo, mas dava mais incentivo para a gente em caso de vitória.” O resultado disso foi a maior conquista da história do XV, o vice-campeonato paulista de 76, quando o time piracicabano perdeu para o Palmeiras na final. Passou ainda por Corinthians (onde foi vice-campeão brasileiro ainda em 76), por Vasco (sendo campeão carioca em 77), Ponte Preta, Figueirense e até pela Universidad de Guadalajara, do México. Quando retornou ao Brasil, passou por diversas terras até encerrar sua carreira, em meados de 90. “Teve um dia, não me lembro ao certo o ano, acho que 84, eu estava no XV, e a gente ia jogar contra o São Paulo no Morumbi. Tinha o lateral do São Paulo, o Forlán, e eu joguei muita bola para cima dele. Foi um passeio do XV. No final do jogo, fui pedir a camisa para ele e ele ficou bravo, cara”, conta o orgulhoso João Paulo. Falando de temperamento, o próprio ex-jogador não era exemplo de disciplina. “Esquentado” em campo, ele diz que sua irritação era causada pelos adversários. “Os caras batiam muito. Um dia, lá na Rua Javari contra o Juventus, o lateral dele veio e me disse: ‘Vai apanhar para caramba. É hoje que o filho chora e a mãe não vê! Vou dar no meio!’. No começo eu era meio irritado mesmo, mas depois comecei a acostumar”. Mas, infelizmente, os tempos de boleiro chegaram ao fim. “Bate uma saudade”, confirma João Paulo, “foi muito duro, porque você se acostuma com a vida de um jeito e de repente tem que parar. Mas assim que parei já ingressei na vida de técnico para continuar ali no mesmo meio”. Como treinador, começou no Monte Azul Paulista mesmo, e depois passou por clubes de Minas Gerais, o próprio XV de Piracicaba e até pelo Lokomotiv, da Rússia. Hoje em dia, João Paulo trabalha com a prefeitura da cidade e também em uma academia particular, trabalhando com crianças. “No começo é difícil. Não tem mais aquele glamour de ser jogador, o salário de jogador. A primeira coisa da qual você fica longe é a mídia”, conta João Paulo, “parece que fica um vazio dentro da gente, não tem mais aquela adrenalina, o sentimento de dar um drible, de fazer um gol, até de por um meião antes do jogo começar”. Contudo, apesar dessa saudade, o ex-ponta não lamenta ter parado.“Foi uma carreira muito boa, de muitas alegrias”, diz, “só que dá uma saudade muito grande de tudo, ainda mais dos companheiros”.

João Paulo (canto direito inferior) fez parte de uma das melhores equipes da história da Ponte, sendo vicecampeão paulista em 1979, ao lado de Dicá, maior jogador da história do clube de Campinas

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SÁBADO À TARDE, ENTREVISTA logo após o almoço. Marcada para às 13h, chego na casa de João Carlos da Silva com um leve atraso de cinco minutos. Toco a campainha e logo sou recebido pelo ex-jogador. “João Carlos Motoca”, como meu pai fala, foi um dos grandes jogadores nascidos na minha cidade, Ibitinga, localizada no centro-oeste paulista. Na época em que o time da cidade, o Rio Branco, ainda existia a nível profissional, Motoca era o camisa 10 da equipe. Além do time da sua cidade natal, Motoca também defendeu a camisa de Sertãozinho, Portuguesa, Rio Branco de Americana, Comercial e Botafogo-SP. O último foi por onde teve o maior destaque. Ao lado de Sócrates e Zé Mário, Motoca era um dos destaques da equipe de 77, que foi campeã da Taça Cidade de São Paulo sobre o São Paulo. “Fiquei bem largado. Tive uma separação. Enquanto eu era jogador, minha mulher estava do meu lado. Quando parei, ela me largou”, conta Motoca. Isso acontece bastante, diz o ex-jogador, tanto que existem abrigos que recebem esses atletas aposentados que se veem perdidos na vida após a carreira. “Se você não tiver cabeça, é isso que acontece: muito ex-jogador acaba largado na sarjeta, acabado mesmo”, completa. Amigos, churrasco, tomar uma cerveja no bar. Tudo isso, segundo Motoca, foi pelos ares com a sua aposentadoria. “Você desaparece. Teve um cara lá do Botafogo-SP que foi meu padrinho de casamento e que quando eu fui pedir emprego para ele depois, ele me fechou a porta na cara”. João Carlos Motoca teve sua melhor fase no Botafogo-SP mesmo. No mesmo clube, no entanto, sofreu uma lesão no joelho que o obrigou a fazer uma cirurgia, o que, naquela época, era praticamente como uma assinatura de fim de carreira. Marcado pela sua velocidade e pelo seu fôlego, Motoca saiu do Botafogo e foi treinar no Comercial, onde atuou em 1980. A contusão, contudo, fez com que a carreira do ex-ponta decaísse. Daí para frente, ainda atuou no Rio Branco de Americana e encerrou sua carreira no homônimo de Ibitinga. “Essa história de que jogador de futebol ganhava pouco é uma lenda”, conta Motoca, “Na minha época, um jogador ganhava uns 16 contos por mês, o que dava para eu comprar um terreno aqui em Ibitinga. Só que só queria saber de noitada”. Carro do ano, casa com piscina e sauna, glamour de jogador: Motoca aproveitou tudo isso em sua carreira de jogador, inclusive as baladas. Faltou, porém, administrar melhor o dinheiro. “O dinheiro era relativo”, conta. Os tempos de jogador, para Motoca, estão lá atrás. O ex-atleta até guarda lembranças, fotos e até figurinhas, mas não se prende ao passado. Dentro de campo, foram bons mo-

mentos, mas nada que o prenda no passado. Por mais que aterrorizem a vida dos jogadores durante a carreira, as concentrações deixam saudades em Motoca. Como quase todo ex-atleta, o ibitinguense sente mais falta dos amigos, da convivência diária. “Saudades daquele café da manhã, daquele almoço”, conta em meio a risadas. Atualmente, trabalha como técnico em uma escolinha de futebol na cidade. Ao contrário do que se vê de muitos jogadores, Motoca é sincero e tem opiniões formadas sobre muitas das coisas do futebol. Ao ser questionado como são as crianças na escola em que treina, foi simples: “algumas são boas, mas algumas precisam mesmo é ir estudar”. Jogador até os 36 anos, um dos principais nomes da história do Botafogo-SP e do time da cidade natal, o Rio Branco, Motoca poderia estar em uma posição financeira muito melhor. Faltou, como ele mesmo diz, gestão de carreira. “Hoje em dia, os atletas tem empresários desde pequeno. Já tem alguém que cuida direito da carreira, do dinheiro que entra. Antigamente não tinha quem administrar”, conta, “Eu não aproveitei para fazer o meu ‘pé de meia’, mas eu poderia ter feito”. Ele ainda completa: “Para quem engraxava sapato quando era criança, acho que o que eu tenho agora está de bom tamanho, certo?”

No canto direito inferior, segurando a bola, Motoca fez parte do Botafogo de Ribeirão de 77, junto de Zé Mario e Sócrates

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NO FIM DO MUNDO Na vastidão branca do deserto gelado, um intricado jogo que envolve delicados biomas, políticas internacionais e pesquisa científica mostra a importância do continente para a manutenção climática e pacífica da humanidade

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foto: Marina Bandeira Klink


por Lucas Loconte fotos de Marina Bandeira Klink e Richard Harker

“Nós sempre nos autodefinimos a partir da habilidade de superar o impossível. E nós contamos esses momentos. Os momentos em ousamos mirar mais alto... Quebrar barreiras... Tentar alcançar as estrelas. Tornar conhecido o desconhecido. São as realizações das quais mais nos orgulhamos. Mas perdemos isso tudo. E talvez tenhamos esquecido de que ainda somos pioneiros e nós mal começamos. E que nossas grandes realizações não podem ficar para trás porque nosso destino está acima de nós”.

(Interestelar; Jonathan & Christopher Nolan)

Maori, da Nova Zelândia, foram os primeiros a chegarem ao continente – mas, como nunca foi encontrado algum registro, a primeira viagem ao continente se dá quando o Capitão James Cook cruza com as tripulações dos navios Resolution e Adventure o Círculo Polar Ártico três vezes entre 1772 e 1775, desfazendo o mito do Terra Australis - sem, no entanto, avistar o continente devido ao gelo e um denso nevoeiro. Na primeira metade do século XIX, navios baleeiros e foqueiros chegam à região das Ilhas South Sandwich. Nesse meio tempo, ocorrem algumas explorações esporádicas por parte de navegadores europeus e dos Estados Unidos. Em 1895, ocorre o VI Congresso Internacional de Geografia, e os seus participantes lançam um apelo pela exploração da Antártica devido aos benefícios científicos que poderiam advir do continente. Assim, começa uma corrida para o Ártico, e em 1898 o barco Bélgica, formado pelo zoólogo romeno Emile Racovtiza, pelo geólogo polonês Henryk Arctowski, pelo navegador e astrônomo belga George Lecointe, pelo médico americano Dr. Frederick Cook e pelo norueguês Roald Amundsen realizam a primeira invernagem na Antártica. Amundsen se torna uma referência na história ártica quando, em 14 de dezembro de 1911, conquista o Polo Sul, colocando os pés no centro do continente. Além disso, ele também se torna responsável por registrar os polos magnéticos do globo e desenvolver técnicas de sobrevivência no Ártico ao adaptar o tipo de vestimenta dos Netsilik, povo indígena que reside no Canadá. A corrida da Antártica trouxe severas disputas entre seus participantes, mas todos eles deixaram sua marca na história ao repassar os conhecimentos de navegação, cartas náuticas e registros. É dessa época que saem grandes obras de memórias e diários de bordo que auxiliaram navegadores de outros períodos.

Desde o primeiro momento em que um homem colocou um barco na água, sua intenção sempre foi a de explorar e de conquistar o novo: por terra, pelo mar, pelo ar e pelo espaço, fomos motivados e inspirados a nos revolucionar e conquistar o que ainda não dominávamos. As grandes navegações aconteceram entre os séculos XV e XVII, e serviram basicamente para os europeus buscarem novas rotas de comércio. Nessas viagens, os navegadores se deparavam com novos continentes e a expansão da cultura europeia tinha início. Mas existia um lugar que ninguém poderia colonizar – um deserto branco onde ninguém conseguiria sobreviver. Naquela época, os mapas traziam um gigantesco continente ao sul. Sabia-se da sua existência, mas não sabiam para o que servia aquele pedaço de terra e o que tinha lá. Essa região era conhecida como Terra Australis e se acreditava que ela balanceava o peso da Europa, Ásia e África no globo. Hoje, a Antártica se tornou um lugar fascinante para navegadores, cientistas, curiosos e amantes da natureza, mas ainda desconhecido. Muitas das pesquisas e visitas por parte de turistas acontecem só em algumas ilhas nos arredores do continente, as chamadas ilhas subantárticas – o interior ainda foi pouco explorado, e acredita-se que tem muito a ser descoberto em termos científicos. O papel desempenhado pela Antártica na dinâmica climática, política e científica é bem relevante. Hoje, o desempenho do Brasil na pesquisa científica começa a ganhar força; as relações políticas dos países que fazem parte do Tratado da Antártica envolve paz e solidariedade. E o turismo – que poderia ser o aspecto mais prejudicial – se torna um importante meio de preservação e conscientização sobre esse imenso continente gelado. ALGUNS HISTORIADORES dizem que os povos vizinhos à Antártica, como os Aush, da Terra do Fogo, e os

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É UM SÁBADO DE MANHÃ quando o telefone toca e a esposa do navegador Amyr Klink, a fotógrafa Marina Bandeira Klink, diz que posso conversar com ele. Enquanto combinava a entrevista, a Marina me dava dicas e “lições de casa”, me orientando a ler alguns aspectos da história da Antártica e a pesquisar sobre alguns exploradores que tiveram importância no processo de conquista do continente. Amyr é natural de São Paulo, e nasceu em 25 de setembro de 1955. Sua inspiração por viagens e pelo mar veio através da cidade de Paraty (RJ), que começou a frequentar ainda pequeno. Em 1984, ele realizou a primeira travessia solitária a remo no Atlântico Sul, viagem contada no livro Cem Dias Entre Céu e Mar, e em 1986 faz a primeira viagem para a Antártica. É em 1994 que começa a construção do Paratii 2, e o desenvolvimento do veleiro mais moderno já construído no país só acaba em 2001. Com o passar do tempo, ele se torna uma espécie de referência sobre a navegação antártica, levando a família (e alguma tripulação) para as viagens que, de alguma maneira, transformaram os Klink. Na conversa que tive com o navegador, começo perguntando sobre esses grandes navegadores – e descubro que muito do que havia pesquisado e entendido era bem mais complexo e profundo. Amyr relembra que as expedições lideradas por Nathaniel Palmer entre 1820 e 1830 serviram para procurar novos celeiros para caçar baleias. “Era no pior sentido de exploração que se fez as primeiras viagens para o Ártico. Mesmo os irmãos Enderby, que acabaram patrocinando a segunda ou terceira circum-navegação do continente Antártico, tinham um propósito voltado para exploração econômica”. Ele argumenta que esses eventos foram importantes “porque eles foram construindo o caminho da viabilidade técnica de se ir para lá. É uma região de navegação difícil, isolada. O southern ocean é um oceano difícil, tempestuoso, com uma série de obstáculos de visibilidade, ondas grandes, ventos irregulares, neblina, gelos à deriva... E eu acho que a partir da corrida para o pólo é que se começa a criar um propósito de pesquisa científica a parte da exploração econômica”. Amyr também comenta que essas expedições realizadas por exploradores como Amundsen, Robert Falcon Scott ou Ernest Shackleton serviram mais para mistificar a região do que transformar a navegação e exploração da Antártica em uma atividade séria. “(A Antártica) é uma região aonde os cientistas não entendem nada da navegação, e eles estavam simplesmente preocupados com aspectos ligados à ciência. Lá é uma região que demanda habilidades técnicas em navegação muito grandes. Eu acho que uma expedição como a do Shackleton nada colaborou para a navegação ficar séria, ela simplesmente ajudou a mistificar ainda mais”.

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A ANTÁRTICA GANHOU NOVA IMPORTÂNCIA a partir do começo do século XX pela questão científica e várias expedições realizadas de barco e avião. Durante um tempo, o continente ficou inexplorado – os interesses e o momento histórico eram outros, e os investimentos para as viagens eram direcionadas para outras coisas. Em 1956, a atividade exploratória na Antártica voltou com tudo: o contra-almirante George Dufek pousa com sucesso em 31 de outubro de 1956 uma aeronave no Polo Sul. No ano seguinte, um grande número de expedições são montadas e começa uma nova corrida pelo polo, com vários países querendo controlar e explorar o continente. Em dezembro de 1959, o Tratado da Antártica é assinado, entrando em vigor em junho de 1961 e autorizando as nações participantes a realizar a exploração científica do continente, em regime de cooperação internacional. Logo, o papel da ciência no continente também ganha contornos políticos. A pesquisa científica então se torna importante ao trazer respostas sobre as relações climáticas e ambientais, bem como a funcionalidade do bioma ártico. Ao mesmo tempo, se feita de maneira incorreta, pode ser mais prejudicial do que o próprio turismo, que começa a se popularizar. Amyr disse que “a pesquisa feita sem vigor, sem um planejamento ou sem conteúdo e densidade, desenvolve algo completamente absurdo”. Ele cita o caso da Argentina, que deve ter uns “40 ou 50 abrigos abandonados, navios completamente decrépitos e tripulações completamente inexperientes. Eles têm uma força de atuação nas bases terrestres que é altamente condenável”. O Brasil também está atrasado nesse sentido. A Estação Antártica Comandante Ferraz foi destruída em fevereiro de 2012 depois de uma explosão na Praça das Máquinas. Para 2014, está prevista a construção da nova estação, bem mais moderna e com várias facilidades, como saída direta para o mar e um prédio elevado. No entanto, os pesquisadores brasileiras possuem uma paixão e um conhecimento que vai se tornando referência internacional. O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jefferson Cardia Simões, é o pioneiro da ciência glaciológica no Brasil. Em uma conversa por telefone, ele contou que o principal objetivo da participação brasileira é estudar as relações do ambiente antártico com o ambiente sul-americano, e traz um enfoque para as mudanças climáticas, tentando entender como essas al-

terações no meio-ambiente afetam a Antártica e como a Antártica afeta o dia-a-dia. Ao mesmo tempo em que a ciência traz um amplo mapa de conhecimento sobre o continente gelado, o turismo acaba gerando uma nova onda de conscientização nos visitantes, que chegam em grandes navios durante o verão antártico, que vai de novembro a fevereiro. Falando de turismo se cria aquele pensamento de sujeira e destruição – mas hoje essas viagens são feitas com tanto cuidado que o impacto é bem menor. Para regular e orientar agências de turismo e idealizar viagens seguras e com o mínimo de prejuízo ao meio ambiente, foi criada em 1991 a International Association of Antarctica Tour Operators (Associação Internacional de Operadores de Turismo da Antártica, ou IAATO). Suzana Machado D’Oliveira é a representante da IAATO no Brasil, e já realizou inúmeras viagens para a Antártica. Ela explicou numa conversa por Skype – dois dias antes de embarcar para a Antártica – que essas viagens para o Ártico e a consequente popularização desse tipo de expedição transformou o turismo antártico numa das mais bem construídas e reguladas atividades desse estilo. Antes de embarcar, os passageiros recebem guidelines, diretrizes de “como se conduz em terra as atividades, como se conduz a observação de baleias, de focas... São listas que integram o Field Operation Manual, que é mandado para todas as companhias de viagem e que estão inclusas todas as diretrizes de como proceder em diferentes atividades feitas enquanto em terra ou usando os zodíacos como plataforma”. Suzana contou que existe também uma coisa chamada site guidelines, que oferece orientações de onde se visitar, já que as regiões livre de geleiras e de acesso aos barcos de turismo são poucas. Até o número de pessoas em terra é restrito: se antigamente os visitantes da Antártica caminhavam de uma colônia para outra de pinguins, hoje existem diretrizes para cada lugar especificamente. Existem regiões que só recebem 100 pessoas em terra em qualquer momento (o que, às vezes, equivale a número de passageiros de um navio); em lugares mais sensíveis, vai ter um número ainda menor de pessoas em terra. Até a navegação é regulada, e existe toda uma comunicação por parte dos funcionários da IAATO para criar rotas de navegação e, assim, impactar o mínimo o ambiente.

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foto: Arquivo Pessoal

Acima, o professor Jefferson Cardia Simões, um dos especialistas na ciência glaciológica no país, em uma de suas missões na Antártica; ao lado, Suzana Machado D’Oliveira, representante brasileira na IAATO, órgão que regula o turismo no continente. Ambos defendem um pouco mais de seriedade tanto no conhecimento sobre o continente, bem como na conscientização ambiental e nos investimentos governamentais em programas de pesquisa e defesa do meio ambiente.

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O turismo para a Antártica hoje se tornou muito comum: milhares de pessoas visitam o continente durante o verão (que vai de novembro a janeiro ou fevereiro) em quebras-gelos ou navios adaptados para o clima e o mar mais severo. E todos voltam com a mesma sensação de pequenez diante das maravilhas da natureza, além de ter a sua consciência ambiental reforçada por guias altamente treinados e por medidas de segurança que servem para não causar nenhum tipo de dano para a natureza local (fotos: Richard Harker)

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UM BOM LUGAR É FEITO DE HISTÓRIAS. A Antártica tem essa magia para aqueles que leem relatos de viagem ou acompanham expedições científicas e de exploração. Para muitos dos entrevistados, perguntei o que eles sentiam quando atravessavam o Drake, uma região que serve como passagem da América do Sul para o Ártico e possui condições meteorológicas bem desagradáveis. A resposta de todos foi a mesma coisa: não tem nada de especial, é só um momento de muita tensão na viagem. Mas, se você lê sobre o Drake, você imagina uma espécie de portal para um novo mundo. Mesmo chegando aos confins da terra, você se depara com uma nova fauna, um novo clima, um novo tipo de interação – e a fascinação das explorações clássicas tomam conta do viajante. A Antártica é um polo de ciência, desenvolvendo inúmeras pesquisas que podem auxiliar o entendimento da dinâmica climática da terra; também se torna referência em diplomacia, já que alguns países que fazem parte do Tratado da Antártica podem não ter boas relações fora do continente gelado, mas lá, a cooperação é outra. Finalmente, o turismo é exemplo e a conscientização dos passageiros dos grandes navios é grande, e eles se tornam embaixadores da Antártica, disseminando as informações aprendidas durante a viagem. Mas, o mais importante, é que a Antártica se torna um continente de paz. E o mundo, em alguns momentos, precisa repensar suas realizações e abrir os olhos para um lugar que se torna importante para a existência e a dinâmica humana.


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A MÚSICA QUE BATE EM NOSSOS CORAÇÕES O projeto Pulsa Nova Música e sua proposta de manter a música nacional correndo em nossas veias texto por Maria Eduarda Amorim

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m dia quente, mil coisas para resolver e só uma vontade: ouvir uma música boa e relaxar. Enjoada de todas as minhas playlists com música que já sei cantar de trás para frente, fui atrás de alguma coisa nova. Mas por onde começar? Com tantos artistas surgindo a cada dia nesse mundo cibernético fica difícil ouvir tudo e analisar o que é realmente bom. Foi então que encontrei o site Pulsa Nova Música, “uma rede de amantes e apoiadores da nova música nacional.” O projeto é um agregador que divulga e valoriza a criatividade de quem produz música e qualquer outro conteúdo relacionado à música nacional. A ideia de apoiar a música nacional surgiu em 2009 quando os jornalistas Junior Passini, Leandro Filippi e o produtor e fotógrafo Christian Camilo (editor-chefe do Pulsa Nova Música) criaram o Rock ‘n’ Beats, um site de notícias dedicado não só a música nacional como estrangeira, que hoje tem cerca de 65 mil acessos por mês. O Pulsa Nova Música nasceu em 2010, na época, ele trazia uma série de vídeos com bandas e compositores da cidade de Campinas, no interior do estado de São Paulo. Atualmente, o projeto tem em média 3 a 4 mil acessos por mês no site, mais de 4 mil “likes” no Facebook, 19189 vizualizações no YouTube e 307 seguidores no Twitter.

tica. Os textos do Pulsa Nova Música apresentam um caráter mais poético e até mesmo apaixonado sobre a obra analisada. Christian Camillo, Michael Baleeiro e Camila Carneiro - outra colunista do projeto - concordam que a maior dificuldade em se escrever sobre a nova música é a quantidade de coisas novas que surgem a cada dia. Como o projeto não é um site noticioso, os redatores precisam de tempo para viver a música. “Dá vontade de passar os dias todos divulgando as músicas maravilhosas que chegam até nós, mas infelizmente ainda não é possível”, comenta Camila. Além de textos, vídeos e podcasts, os colaboradores do Pulsa Nova Música trabalham muito com fotos e vídeo bem intimistas das bandas, filmados e editados por Christian Camilo. Christian, Camila e Michael veem o futuro da nova música nacional de maneira positiva, mesmo com um público brasileiro muito dividido entre gostos e gerações e ainda com certo bloqueio em abrir os ouvidos para músicas novas - que não são tão “comerciais”. Os três têm o desejo de que a música brasileira continue em evolução e cresça cada vez mais, com mais reconhecimento e valorização. Sonham com grandes festivais, compositores novos e velhos trabalhando lado a lado e uma cultura interessada na nova música. Esperam que os artistas continuem trabalhando com pura sinceridade e prazer, fazendo pulsar incansavelmente a nova música brasileira. “Quando um povo entende que não existe arte ruim ou boa ele descobre o verdadeiro valor por trás de uma obra, que é o da conexão. Se você não gostou de determinada música, é porque ela não foi feita pra você. Ela pode ser mal usada (por pessoas ignorantes), e ela pode ser muito boa, se de alguma maneira se conectar com algo dentro de você”, argumenta Christian. Este ano o projeto recebeu um apoio cultural via Lei de Incentivo para produzir um festival em Santa Bárbara do Oeste, o “Onde Pulsa a Nova Música”, que teve a participação de Carlos Miranda (do Ídolos), Pablo Miyazawa (editor-chefe da Rolling Stone BR) e Lúcio Ribeiro (do Popload) e contou com bandas como Nevilton, Soulstripper, Oito Mãos e About a Soul. Em fevereiro de 2014, o festival deve ter sua segunda edição. Além disso, o Pulsa Nova Música também realiza uma parceria com o clube Beco 203, em São Paulo, para produzir shows de novos artistas. A equipe completa do projeto é composta por Christian Camilo, Michael Baleeiro, Camila Carneiro, Wesley Rocha, Felippe Pompeo e colaboradores. “Somos fotógrafos, jornalistas, somos o público, somos quem ama escrever e quem ama sorrir com a criatividade e a coragem do compositor brasileiro”. O Pulsa Nova Música é uma ótima fonte para quem quer conhecer novos artistas que compõem música de verdade, da forma inocente e apaixonada.

Quando um povo entende que não existe arte ruim ou boa ele descobre o verdadeiro valor por trás de uma obra, que é o da conexão. CHRISTIAN CAMILO, editor-chefe

Segundo o produtor Christian Camilo, o Pulsa é trabalho de colaboradores, não é um site de notícias. Portanto quem escreve “deve viver a música, gostar dela e escrever em formato de crônica, resenha ou um post descompromissado, ou seja, não é possível rotular os trabalhos que são divulgados”. Michael Baleeiro, um dos colunistas do projeto, costuma escrever sobre shows: “Adoro trabalhos em estúdio, mas ver o artista no palco, apresentando todo o seu talento, realizando as coisas que fez no estúdio na sua frente, interagindo com o público, para mim, é uma das melhoras partes da música.” Ele complementa dizendo que procura assistir shows de artistas de que gosta para escrever sobre em sua coluna, mas que muitas vezes fica impressionado com o trabalho dos demais. Os novos artistas brasileiros por sua vez veem no projeto uma chance de ter seu trabalho divulgado de uma maneira diferente, não somente através de uma resenha ou crônica crí-

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Quase uma máquina do tempo EP de estreia de Daniel Debiagi, “Drama Flor” busca sua identidade em sons do passado

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texto por Gabriel de Castro

s minutos pelos quais o tímpano fica suscetível ao som de “Drama Flor”, álbum de estreia de Daniel Debiagi, passam a inevitável sensação de que voltamos no tempo. Com um ar vintage, o EP conta com seis músicas de composição própria e mistura sons de MPB, blues, samba e até tango. Natural de Cachoeira do Sul, Daniel Debiagi cresceu em um ambiente artístico. Já quanto criança, participava de um grupo de dança; com 11 anos começou a fazer aulas de violão e descobriu que também gostava de cantar. “Cresci entre vinis de festivais nativistas e ouvindo muita música brasileira e latina, isso contribuiu para que minhas referências musicais se tornassem bastante ricas”, conta o músico. Em 2000, mudou-se para Porto Alegrel para cursar Arquitetura e Urbanismo na UFRGS, o que o afastou dos palcos - mas que, em compensação, o aproximou das composições. No seu EP de estreia, a influência da MPB é perceptível desde a primeira música. Vander Lee, Caetano, Vitor Ramil, Adriana Calcanhotto, Mercedes Sosa e Jorge Drexler são alguns dos artistas que inspiraram o álbum. No entanto, o lado lírico não é esquecido pelo autor, que cita Clarice Lispector, Altair Martins e Mário Quintana como influências no trabalho de composição. Além das letras e dos arranjos bem planejados, o que

também merece atenção é o casamento entre todos os instrumentos presentes nas gravações. Cada um reconhece seu devido espaço na melodia da música e não sobrepõe o som do “companheiro”. “A vontade de fazer esse registro já era antiga e em 2012 voltei a praticar técnica vocal com a cantora/atriz/produtora Marisa Rotenberg, especialista em canto brasileiro, e dessa parceria nasceu a oportunidade de ela produzir meu disco”, conta Daniel. O disco foi gravado entre março e outubro de 2013, contando com a participação de diversos músicos gaúchos nos vários instrumentos presentes no EP. Além de MPB, o álbum apresenta toques de blues e samba, presentes especialmente nas músicas “Resto de Ti” e “Meio Mundo”, respectivamente. O tango, muito presente no sul do país, também se faz presente em “Empezar”, última música do álbum. Certas faixas do disco eram mais melancólicas, como Daniel fala, mas, com os novos arranjos, ficaram mais sutis. “Algumas das músicas deste EP, além de traduzirem o sentimento daquele momento, foram escritas para mim mesmo, são frases que eu precisava ouvir”, ele diz. “[Quanto a ter uma música especial no álbum,] Meu lado dramático melancólico gosta bastante de ‘Resto de Ti’, na hora de cantar essa no palco é especial”.

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Os entraves do curta-metragem no Brasil Custos altos, pouca visibilidade, escassez de equipamentos... Conheça alguns dos obstáculos das produções independentes brasileiras texto por Jéssica Zen

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azer um curta-metragem no Brasil não é fácil, principalmente quando o curta é independente e é produzido nas universidades. Os recursos quase que inexistem, os atores que aceitam atuar são aqueles que, muitas vezes pela experiência, se arriscam nos papéis oferecidos, ou até os próprios alunos que, sem a adesão de atores profissionais, se lançam feitos kamikazes para dar corpo ao projeto. Uma das maiores dificuldades é lidar com altos custos que uma produção audiovisual como essa tem, seja com a aquisição de equipamentos (câmera, microfones, etc.) até a contratação de atores e locais para a gravação. “Na faculdade, precisamos nos virar com o que temos. Os equipamentos são dos próprios alunos ou emprestados ou alugados, pois há uma falta de equipamentos de qualidade dentro da própria universidade”, enfatiza a estudante de Rádio e TV da Unesp, Diana Vanderlei, 21 anos, uma das produtoras do curta “Horla”, ainda em fase de produção. Além de todo o processo produtivo e criativo desenvolvido na própria universidade, outro obstáculo ao qual qualquer cineasta e produtor está sujeito é o financiamento. “Não há um mercado forte, infelizmente poucos são os investidores, principalmente estando no mercado independente”, comenta Daniel Sewell, vencedor do prêmio Loco de Ouro pelo seu curta-metragem “Ação”. Ele explica que, para produzir, “quase sempre é preciso estar ligado a uma grande produtora”. Os entraves são grandes: o mercado de cinema no país é fechado, restrito às grandes produtoras, restam apenas os festivais e os editais abertos pelo ministério da cultura para financiar uma produção que chega a custar entre 5 a 80 mil reais. No entanto, a visibilidade dos curtas em relação aos longas é bem menor, o que dificulta ainda mais o apoio de investidores que não veem muitas perspectivas neste tipo de formato e é por isso que os festivais e as mostras são tão importantes na exibição dos trabalhos tanto de cineastas renomados como Jorge Furtado , em seu “Ilha das flores”, até novatos como é o caso de Daniel e Diana. Para Diana, no entanto, o maior desafio em sobreviver de curta-metragem no Brasil é conseguir um espaço nas grandes exibições.

“Estas são uma grande oportunidade para apresentar o trabalho e talento de um cineasta, porque infelizmente, hoje, o mercado cinematográfico no Brasil ainda é muito restrito e fechado a novos talentos. Além disso, o mercado cinematográfico no país ainda prefere trabalhar com cineastas mais experientes e que, de certo modo, possuem mais fama. Ter uma produção exibida em uma mostra de renome ou premiada em um festival é um ótimo ‘cartão de visitas’ para ingressar em um estúdio ou uma produtora”, comenta. A produção por sua vez, na universidade, acaba sendo limitada, mas, inversamente, criativa. Isto, ao mesmo tempo que inibe as grandes produções, permite que a equipe busque outras alternativas baratas, mas suficientemente boas para suprir a falta de um equipamento ou de um cenário vislumbrante. Apesar das dificuldades e dos obstáculos que o mercado cinematográfico impõe, e por isso mesmo a produção de um curta ser mais simples e barata, ainda assim ele é um formato audiovisual visado até pelos grandes cineastas: “nem os mais famosos deixam esse formato de lado”, acrescenta Daniel. Esse cenário semiescuro, fechado, parecendo ser engolido pela captação de recursos e pela pouca visibilidade oferece também o prestígio e o reconhecimento para quem “deu o sangue” na realização de um projeto, como é o caso de Daniel, vencedor do prêmio Loco de Ouro de melhor curta-metragem pelo seu curta Ação, “Foi muito bom e inesperado receber o prêmio de melhor curta. Ele foi produzido no meu primeiro ano de faculdade, foi meu primeiro trabalho. Foi o primeiro Loco de Ouro, mas quem julgou foi a Paula Barreto, produtora de filmes nacionais como Lula - O filho do Brasil, por exemplo. É um grande estímulo ganhar um prêmio desse logo de cara, pois todos sabemos que não é muito fácil ganhar a vida nesse ramo aqui no Brasil. Foi muito legal”, conclui. Aos poucos, as cortinas vão se abrindo para os curtas no Brasil, não só as cortinas dos grandes festivais, das grandes mostras de cinema, mas também de cada televisão e de cada tela do computador. Para o curta independente não importa a tela, importa apenas estar nela.

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IRRESISTÍVEL, MAS NÃO ATÉ O FIM

texto por Lívia Neves

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á quem diga que a literatura “pornô” está surgindo agora. Mas isso pode ser coisa de gente desentendida. Muito antes de lançarem os atuais best-sellers como “50 Tons de Cinza”, as prateleiras das bancas e das livrarias eram preenchidas com coleções que contavam aventuras de meninas como “Sabrina”, “Bianca” e “Julia” protagonistas dos livretos eróticos da década de 70. Mas o sucesso dos recentes romances com alto teor sexual acabou despertando o interesse do público e do mercado. Eu mesma nunca tinha lido nada muito revelador até decifrar as linhas do primeiro livro da saga “Crepúsculo”. O fato de uma menina – neste caso, a Bela – desejar tanto um homem e ter fantasias relatadas pode ser um choque para quem nunca leu textos deste estilo. Depois de ler a sequência da autora Stephenie Meyer acabei gostando desse ritmo e desse tema que mostra um lado pouco falado pela mídia e pelas pessoas: o desejo sexual feminino.

uma virgem que está descobrindo seus desejos mais profundos. A estudante Chloe Mills sabe bem o que quer: terminar seu MBA e conseguir um emprego dos sonhos na empresa de comunicação Ryan Media Group, a qual presta serviços há um bom tempo. Centrada e determinada, a jovem cumpre todos os seus afazeres com muito empenho até conhecer o seu chefe e entrar em conflito constante com ele. Bennet Ryan é realmente um cretino. Sempre que pode ele dá um jeito de exigir demais ou maltratar a sua bela e sedutora estagiária. Um empresário sério, responsável e duro. Mas só por fora. Por dentro, Bennet se revela um verdadeiro garoto, daqueles mimados que não aguentam ficar sem aquilo que desejam. E, neste caso, ele desejava sua funcionária. Sem enrolação, o livro já mostra a que veio nas primeiras páginas. Para ser mais exata, na marcação nove, sendo que a narrativa se inicia na quatro. A história não começa pelo primeiro encontro do casal, mas pela primeira transa que acontece após meses de muita troca de farpas entre os dois. Em uma sala do escritório da empresa, Bennet dá o primeiro passo e alisa o corpo de Chloe. Sem dizer nada, a jovem fica estática, mas depois se rende ao próprio desejo de fazer sexo com aquele homem tão irresistível. Os momentos entre eles são descritos com muitos detalhes e passam sensação de inclusão na cena. Pratiquei o voyeurismo na própria imaginação, se é que isso é possível! As autoras descrevem o cenário, as ações e os pensamentos, gerando uma identificação entre o personagem e o leitor. É bem intenso a coisa toda. Porém, o que parecia mais um filme pornô – com muita ação e pouco diálogo – vai se tornando uma bela historinha de amor. Com a aproximação constante dos dois, o sentimento possessivo de ciúme vem à tona e os protagonistas passam a descobrir um sentimento mais forte que apenas o desejo sexual. Chloe e Bennet começam a se apaixonar, mas eles sabem que não podem colocar o emprego dela a perder com um relacionamento no qual nenhum dos dois é capaz de assumir o que sente. E assim como já dizia o ditado: só se dá valor quando perde, o casal acaba se separando por conflitos de interesse profissional. Toda a densidade e a complexidade da narrativa se esvai quando a saga da reconquista começa. Os últimos capítulos mostram que as autoras se inspiraram nos romances de Nicholas Sparks – como “O Diário de Uma Paixão” - ou que elas, no fundo, gostam é de um romance de novela. O final comprova. Chloe e Bennet ficam juntos e tudo acaba muito bem para os dois tanto no emprego quanto no amor, que deixa de ser sexual para se tornar “puro”.

A história não começa pelo primeiro encontro do casal, mas pela primeira transa (...)

Em uma vertente mais picante, vamos dizer assim, também acompanhei a história de “Anastacia Steele” e “Christian Grey” - personagens do drama de “50 Tons de Cinza”. O livro é ainda mais profundo e trata o sexo de uma maneira mais intrusiva e explorou os fetiches humanos e o sadomasoquismo. E, continuando nessa linha, uma outra sequência ganhou fama. As histórias dos “Irresistíveis”. As aturoras Christina Hobbs e Lauren Billings, que escrevem com o pseudônimo de Christina Lauren, criaram uma série de livros que contam a vida de personagens extremamente sedutores. O “Cretino Irresistível” - em inglês, “Beautiful Bastard” - é o primeiro da linhagem. Ele conta como o cretino Bennet Ryan se apaixona pela sua estagiária Chloe Mills. Em resumo, os protagonistas são duas pessoas muito dedicadas e competentes no trabalho e dividem um longo período de tensão sexual até se conhecerem pessoalmente. O contato direto entre os dois acaba desandando e a relação profissional deixa de ser o único laço entre eles. Aos poucos, a narrativa expõe o lado psicológico de Chloe e Bennet, ou melhor, Sr. Ryan e Srta.Mills e envolve o leitor nas pequenas aventuras eróticas que vivem. Diferentemente de “50 Tons de Cinza”, o “Cretino Irresistível” pode decepcionar quem procura um longo drama de

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TRISTEZA DO JECA Sozinho, o seu Dito, de 73 anos, vive como o Jeca Tatu em pleno século XXI. Ele já se tornou uma figura mítica numa região onde as grandes fazendas de gado dão lugar para as plantações, e o contraste entre o novo e o velho fica cada vez mais evidente

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fotos e texto por Lucas Loconte

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onheci o Jeca no domingo de Páscoa de 2012. Caminhávamos sob um sol forte e já estávamos cansados. O passeio da manhã serviu para fazer o reconhecimento da região e o início do planejamento de um projeto que recuperaria o Rio Fanchona, que corta muitas das fazendas próximas a Echaporã, uma minúscula cidade no interior de São Paulo. O Fanchona e a região tem uma grande importância na história da minha família, já que minha mãe e minhas tias passaram um bom tempo de sua infância na fazenda do meu avô. Com o cultivo irracional da terra, boa parte da vegetação e da paisagem local foi modificada drasticamente. Se você pega imagens de 40 anos atrás e compara com uma foto tirada hoje, vai ver estradas de terras esburacadas e repletas de depressões e erosões. A paisagem é um pouco monótona: entre lombadas construídas para evitar o desmoronamento de barrancos, os pés secos da mandioca, as plantações de cana de açúcar e pastos que ficam num tom entre o verde e o marrom dependendo da época do ano, algumas cabeças brancas do gado olham curiosas para os estranhos visitantes. Naquele domingo de manhã, o gado nos seguia enquanto passávamos pelo pasto das fazendas vizinhas. Os pássaros cantarolavam alguma coisa meio triste, as maritacas faziam a sua barulheira rotineira e, vez ou outra, um grasnado destacava a presença de alguma outra espécie. Passamos por um lugar que tinha uma grande depressão e meu primo relembrou algumas histórias que o velho Dito havia contado sobre a região. “Vocês já conhecem o Ditão?”, ele perguntou, animado. “Ainda não”, respondi. Logo, invertemos o caminho que levava para a Fazenda Asteca, atravessamos algumas cercas e logo se tornou nítido o porquê o seu Dito era apelidado de Jeca Tatu: a cerca de arame farpado que dividia a sua terra das outras era remen-

Boa parte da vida de Benedito Rocha, conhecido como Dito, poderia ter sido retirada da letra de uma música de raiz: hoje, o senhor de 73 anos mora sozinho num rancho de “uns 30 alqueires. Com alguns problemas de saúde que o impossibilita de realizar atividades antes comuns ao seu dia-a-dia, ele conta que a vida no campo não é mais tão fácil. Em uma tarde de sábado, numa prosa muito da boa na varanda do seu “barraco”, ele vai lembrando suas histórias. Sua rotina consiste normalmente em cuidar de uns porcos e das poucas cabeças de gado, tocando-os de um canto para o outro.

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Cercas com arame farpado amarrados a mourões que vieram de troncos derrubados pelo próprio fazendeiro - “tinha tanto medo de quando elas [as árvores] caíam, que eu dava uma machadada e saía correndo”. O gado é “encoleirado” com uma forquilha de madeira chamada cangaia, utilizada para impedir a fuga pelas cercas rústicas e semidestruídas: se o animal tenta passar para as fazen¬das vizinhas, eles se enroscam e lá vai o velho Dito soltar a cria.

dada em vários pontos; os mourões eram todos irregulares, e os troncos variavam muito de grossura e estavam podres. A terra era triste. O pasto, seco. O gado, magro. As carcaças, visíveis. As latas de cerveja, espalhadas pelo chão. Os cachorros vieram latindo em nossa direção, mas logo abanaram o rabo. Cachorro de fazenda é sempre assim: faz um escarcéu mas não pensa duas vezes para fazer festa a um estranho. Meu primo chamou pelo vizinho de terra. Um senhor de cabelos amarelos e desgrenhados, pele vermelha e judiada e roupa encardida e larga logo surgiu de dentro de um paiol, cumprimentando-nos. Seu nome é Benedito Rocha. Até pouco tempo atrás, morava num casebre sem energia elétrica; hoje, a casinha em que mora foi construída pelo homem com sérias limitações da idade e de saúde. Ele vive com uma pequena aposentadoria do governo e ainda tem o hábito de ir até Echaporã de cavalo vender seus queijos, comprar os mantimentos do mês e gastar o resto do dinheiro na pinga. A primeira conversa com o Dito aconteceu neste domingo de Páscoa e serviu para descobrir um pouco como era o bioma da região tantos anos atrás. A segunda, aconteceu alguns meses depois, quando ficamos proseando sobre a sua história. Num primeiro momento, a gente fica desconfiado. São tantas “histórias de pescador”, que mais parece que ele saiu de um livro do Monteiro Lobato ou de alguma obra so-

bre o sertão. De repente, tudo faz sentido: era uma outra época, com outros valores e outros hábitos. As histórias não são mais contos impossíveis: elas se tornaram um fascinante resgate da memória rural. O SEU DITO NASCEU em “39 do dia 12 de fevereiro”. Desde sempre, morou naquela região. A disposição das terras é feita da seguinte maneira: existe a Fazenda Asteca e o Sitinho, pertencentes ao meu primo, o rancho do Dito e uma fazenda vizinha. A propriedade do Dito é um “rasgo” entre as outras propriedades e é bem malconservada. Como vive sozinho e sem tecnologia, são os urubus que vão indicar o dia em que ele bater as botas. A família do seu Dito é muito simples. O pai dele tinha uma grave doença respiratória e fez com que muito novo ele assumisse a família ao lado de tios e primos mais velhos. Ele relembra algumas histórias, como um problema que enfrentou com um grileiro, aquelas pessoas que falsificavam documentos e “roubavam” terras das outras pessoas. O Sitinho pertencia ao avô do Dito, e um desses grileiros da região enganou a família e roubou parte da propriedade deles. Como tudo se resolvia de outra maneira, um dos tios do Dito matou o homem. Ele foi julgado e, depois de 30 dias de cadeia, “desapareceu no mundo”, como o sobrinho conta. A terra que hoje ele mora foi comprada e regularizada com a

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A única companhia de seu Dito são os quatro cachorros que rodeiam a sua varanda e sinalizam a presença de estranhos - e de uma onça que circula pela região. Vasculhando a propriedade, é possível encontrar alguns ossos e carcaças de animais que morreram ao longo dos anos. Na imagem maior, um crânio de tatu; no detalhe, a ossada de um boi. Caminhando, também é possível encontrar outras ossadas, inclusive de animais que morreram queimados num incêndio criminoso que aconteceu em abril de 2012.

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ajuda de órgãos responsáveis. “Você vê, quando eu era molequinho pequeno, eu fui pro Paraná, perto de Santa Fé do Sur, Centanário. Quando ia pra fazenda do meu avô, você passava de cavalo e via fileira de gente morto, matado tudo por pistoleiro que pegava as terra”, ele relembra. Naquela época, a violência era outra, e era muito comum os pistoleiros e fazendeiros brigarem pelo tamanho de suas propriedades. Ele conta que a sua tia foi empurrada para dentro do Fanchona, e sumiu. Nunca acharam o corpo dela e desconfiavam que isso tenha sido encomendado pelo grileiro. Mas nem sempre as mudanças que vêm com o passar do tempo são boas: a violência na zona rural fica cada vez maior, e essas pessoas que moram sozinhas são as principais vítimas de assaltos ou roubos. O tráfico de drogas toma conta das cidades pequenas e assusta os moradores mais simples. Seu Dito conta uma vez que foi encurralado por uma dupla de bandidos que o amarram, o espancaram e levaram tudo que ele tinha. Como não quer criar problemas com os outros, o seu Dito não anda com armas e não possui facões ou coisas do tipo em casa. Pelo seu histórico com a bebida, os bandidos veem nele uma presa fácil, e logo o pouco que o Jeca tem vira objeto de troca dentro do mundo do tráfico de drogas. Em abril de 2012, um vizinho traído colocou fogo na propriedade do homem que seduziu sua mulher. Ventava muito e o incêndio perdeu o controle, atingindo a propriedade do seu Dito e dos meus primos. Nas terras do Jeca, vários animais morreram queimados com esse ato criminoso, e ainda é possível ver o estrago feito pelo fogo. “É tudo culpa do bicho mulher, sabe? O que o moço daí do lado procurou, né? Vai tomar o que não é dele, acaba morrendo ‘memo’”. O RANCHO DO SEU DITO tem uns 30 alqueires, e ele mora sozinho depois que a família foi para a cidade e a esposa, com quem tem um filho e o que o visitou uma única vez na vida, o abandonou. A única visita que recebe é de uma sobrinha, que aparece uma vez por mês. Sua rotina se baseia em cuidar das poucas cabeças de gado que tem e dos dois ou três porquinhos que correm soltos pela propriedade, provocando os cachorros e guinchando quando eles reagem. Sua companhia são os quatro cachorros que rodeiam a sua varanda e sinalizam a presença de estranhos – e de uma onça que circula pela região. É essa vida do campo que torna as coisas um pouco mais curiosas: o seu Dito conta histórias da época em que ele via onças, jacarés, porcos do mato, capivara e grandes cobras circulando pela região. Tanto que ele já ficou “morto vinte dia” quando tomou uma picada de cascavel. Em outro momento, ele também foi mordido por um desses animais pestilentos e perdeu o movimento em dois dedos.


Além do número pequeno de gado, o seu Dito também cria porcos. Na época da visita, haviam apenas dois porquinhos, que corriam de um lado para o outro e provocavam os cachorros, dispa¬rando e guinchando quando os animais se irritavam e saiam correndo atrás deles. O chiqueiro dos animais serve também como mangueira nas épocas de vacinação ou abate. Bem ao lado da rudi¬mentar construção existe um paiol, onde Dito estoca legumes, verduras e outros alimentos para o seu consumo.

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Dos jacarés, ele conta uma história que vem da época de seu pai e seu tio, quando ele ainda era criança. Um dia, resolveram caçar o bicho que nadava pela região e assustava as pessoas. E o seu Dito conta que é complicado de matar um jacaré, já que, depois de morto, ele ainda movimenta o rabo e o corpo. “Não é só com um tiro que mata eles, tem que amarrar bem a boca e laçar o bicho até ele ficar quieto”. Ele lembra que matou um “com um machado. Naquele tempo, chovia muito em janeiro, dava aquelas enchentes medonhas. Aí o rio subia, e eles ficavam dormindo na beirada, assim, quietos. Você ia pér-por-péu (pé-por-pé), chegava perto e dava com o machado na cabeça dele e pronto, tinha carne pra mais de mês!”. Pergunto se ele não ficou com medo do jacaré ataca-lo. “Não! Eu marretei ele bem marretado, porque o jacaré é brabo, heim! O jacaré chega a morder uma pessoa, Deus me livre...”. Ele cria até uma argumentação interessante sobre essas novas leis ambientais que obrigam a conservação da beira do rio e das árvores nativas. Existia uma época em que o homem plantava e cortava, mas para o seu uso. Quando as empresas madeireiras e a exploração da terra para pecuária e plantio começaram a se espalhar, o desgaste da terra foi muito forte, e não foi culpa desse pessoal da roça. O seu Dito não acha certo essa imposição de não poder tocar em algumas árvores da sua propriedade sem autorização do IBAMA. “A gente num tem nada a ver com o que foi feito anos atrás; o hoje, é hoje”, ele argumenta. Dá pra notar essa falta de orientação por sua parte, mas ele não está mentindo: esse pessoal que foi criado e vive na zona rural tem uma percepção da natureza diferente daqueles que vão da cidade para o campo e acabam aproveitando o corte de árvores e o plantio para uso econômico. Como ele mora sozinho e tem toda essa limitação física e vinda da idade, o seu pedaço de terra é cuidado de qualquer jeito. Ele não dá conta e nem consegue fazer mais tudo sozinho, já que passou a vida inteira debaixo do sol e com uma enxada na mão. Vasculhando a propriedade, é possível encontrar alguns ossos e carcaças de animais que morreram ao longo dos anos, como um crânio de tatu e a ossada de um boi. Um contador de histórias nato, o seu Dito não perde uma conversa. Perguntei sobre as andanças que ele fazia quando mais jo¬vem, e fiquei um tempão ouvindo os causos das cavalgadas que realizou para tocar o gado de uma fazenda para outra. Numa das viagens, “pra lá de Marília nós pousemo, e era véspera de São João. Tinha um tantão de gente num bailão, ‘rapai’. Eu sempre gostei de um ‘fandango’, ai eu cheguei tava sujo de poeira, de terra, na ‘culata’ acudindo a boiada ligeira. Cheguei lá, ‘rapai’ e uma moça chamo pra dança, e falei “Ó moça, você vai me ‘descurpa’, mas eu num

vo dança com você. A gen¬te tomo banho tudo agora, mas ó o jeitão de pó de bate na estrada”, “num tem nada vamo dança”. Joguei a capa no pau do barranco e agarrei essa ‘muié’ até o dia ‘amanhecê’”. Seu Dito é uma figura que não existe mais. O seu jeitão de Jeca Tatu, com a fala mansa, o sotaque caipira, os erros gramaticais, as histórias que não morrem ao longo dos anos e o modo simples de viver constroem o personagem que ele virou. Mesmo com toda a dificuldade da idade, ainda tem o fôlego de pegar o seu berrante e tocar. Comento que ele já viu muita coisa, e ele confirma. “Esse foi um lugar muito bom, muito divertido, né”. E não só isso: esse é um lugar que tem história - e quanta história.

Seu Dito é uma figura que não existe mais. O seu jeito simples, a fala mansa, o sotaque caipira, os erros gramaticais, as histórias que não morrem ao longo dos anos e o modo simples de viver constroem o personagem que ele virou. Mesmo com toda a dificuldade da idade, ele - que já ficou “morto vinte dia” por conta de uma picada de cascavel - ainda tem o fôlego de pegar o seu berrante e tocar.


“Aqui foi um lugar muito bom, abençoado por Deus. Aqui ninguém via falar em briga, falar em morte. (...) Aqui é um lugar d’uma benção de Deus”.

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Verdadeiro ou Falso

Santo Sudário, o tecido que supostamente envolveu o corpo de Jesus Cristo, é mais um objeto de separação entre a religião e a ciência 74


texto por Felipe Altarugio

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quilo que a ciência não consegue explicar chama-se milagre! Ai está a fé!” Quem diz isso é Vera Tostes da Silva, uma das organizadoras de uma exposição itinerante no Brasil sobre o Santo Sudário, pedaço de tecido que teria envolto o corpo de Jesus Cristo. Junto com o Padre Alexandre Paciolli, idealizador e curador da exposição, ela reuniu artefatos, réplicas, fotos e montou um elaborado conjunto de elementos que apresenta os dados científicos e a versão religiosa dos fatos ligados ao Santo Sudário. A exposição, intitulada , percorre várias cidades brasileiras. “Os fatos estão todos lá: todas as marcas do corpo, das flores, os grãos de pólen, estão impressas e documentadas no Sudário”, comenta Vera, “Inúmeros pesquisadores tentaram reproduzir a imagem do Sudário, mas, mesmo com todas as técnicas e conhecimentos científicos dos dias de hoje, ninguém conseguiu reproduzir uma imagem que tivesse as propriedades de negatividade, tridimensionalidade, translucidez e holografia que tem o Sudário”. Há séculos, discussões a respeito da autenticidade de ícones, relatos e artefatos religiosos permeiam a comunidade científica. Por muito tempo, o embate entre a Igreja e a ciência levantou intensas argumentações e debates na sociedade, que envolvem desde a comprovação de acontecimentos e crenças nos signos sagrados até elementos relacionados à moral e à ética, como as questões referentes ao aborto ou ao uso de anticoncepcionais. Com o tempo, instaurou-se até um clima de rivalidade entre representantes religiosos e pesquisadores científicos. Parte dos estudiosos dedicaram seus trabalhos e pesquisas quase que exclusivamente à refutação de crenças impostas pela Igreja Católica, instituição por muitos anos dominante e opressora. Entre os artefatos religiosos tidos como sagrados pelo catolicismo, o Santo Sudário é destaque. O tecido que supostamente teria envolvido o corpo de Jesus Cristo é objeto de estudo, inclusive, de uma ciência própria: a sindonologia, ciência que se dedica exclusivamente a estudar esse importante símbolo da fé cristã. O Santo Sudário, como é chamado popularmente, ou síndone, como é tratado pela ciência, é uma peça retangular de linho, com dimensões aproximadas de 4,5 metros de comprimento e 1,10 metros de largura. Nele, está marcada a imagem de um homem, de cerca de 1,80 metros de altura,

foto: AFP/Antonio Callani

Cientistas tentaram reproduzir o Santo Sudário utilizando técnicas medievais

que parece ter sido crucificado e que tem marcas de ferimentos consistentes aos ferimentos descritos pela Bíblia na crucificação de Jesus Cristo. Em 1898, o tecido foi fotografado pela primeira vez, pelo italiano Secondo Pia. O fotógrafo descobriu que o negativo da fotografia apresentava uma imagem positiva da figura humana marcada no sudário, sendo este, portanto, uma espécie de “negativo” da imagem do homem que ficou impressa no linho. Mesmo depois de tanto tempo, ainda não é possível determinar que processos possibilitaram o registro da figura no sudário. Durante muito tempo, considerou-se a possibilidade de farsa, já que foram encontrados resquícios de tinta ocre no linho. Entretanto, hoje o que se sabe é que seria impossível que alguém tivesse pintado a figura no manto devido à superficialidade da formação da imagem, e nenhuma técnica de pintura, principalmente nos séculos XIII e XIV, é capaz de tal efeito. O consenso entre os pesquisadores é de que a tinta existente no sudário seja fruto de uma das inúmeras – e fracassadas – tentativas de restauração. Em 1988, três equipes de cientistas, em Zurique, Oxford e no Arizona, realizaram testes de datação por radiocarbono,

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Peça original do santo sudário está exposta na Catedral de Turim na Itália, e, eventualmente, fica à exposição para o público

foto: O Globo

com resultados concordantes entre si: os procedimentos desenvolvidos nos três laboratórios dataram a peça como original da Idade Média, aproximadamente entre os anos de 1260 e 1390, mais de mil anos depois da vida de Cristo, segundo a Bíblia. À época, a descoberta causou alvoroço entre membros da Igreja e da ciência. Há, contudo, controvérsias em relação a esse processo de datação. Pouco tempo depois, foi descoberta a existência de bactérias no tecido que deturpam as análises baseadas na datação por Carbono 14. Além disso, as diversas restaurações a que foi submetido o tecido também teriam influência nos resultados. Anos mais tarde, a possibilidade de erros no procedimento foi admitida pelos cientistas. Apesar da fama de ser instituição que impõe suas verdades, a Igreja Católica deixa a cargo de cada indivíduo a crença ou não na autenticidade da história do santo sudário. Em 1998, após uma visita à Catedral de Turim, onde a peça está guardada nos dias atuais, o Papa João Paulo II escreveu:

O TESTE DO CARBONO 14 O isótopo do carbono denominado Carbono 14 é o isótopo radioativo do carbono com número de massa 14 (6 prótons e 8 nêutrons) e é o isótopo com maior meia-vida conhecido: aproximadamente 5730 anos. Ele é formado na atmosfera através da reação descrita abaixo: 7N14 + 0n1 → 6C14 + 1H1 Depois de formado, o Carbono 14 é absorvido por animais e vegetais. Para datar com mais precisão artefatos antigos, cientistas examinam as amostras dos átomos de Carbono 14 presente nos tecidos analisados, calculando a quantidade do radiocarbono.

“O sudário é um desafio à nossa inteligência. Ele requer, antes de qualquer coisa, que cada pessoa – particularmente o pesquisador – entenda humildemente a profunda mensagem que ele passa para a nossa razão e a nossa vida. O fascínio misterioso do Sudário provoca questões a respeito do Linho sagrado e da vida de Jesus. Sendo uma questão de fé, a Igreja não tem conhecimento específico para se pronunciar sobre essas questões. (...) A Igreja insiste que o Sudário deva ser estudado sem posicionamentos pré-estabelecidos, convidando os pesquisadores a proceder com liberdade interior e atenção tanto ao método científico quanto à sensibilidade dos fiéis.”

Quem descobriu o método foi o cientista Willard Libby, que observou que a quantidade de Carbono 14 nos tecidos diminui com o passar dos anos. Sabendo a quantidade de radiocarbono, é possível, baseando-se nos dados sobre a meia-vida do isótopo, definir com precisão quanto tempo se passou.

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empreender é exercitar a curiosidade texto por Jéssica Santos e Lucas Loconte

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er criativo, observador, crítico, curioso, pesquisador, persistente e gostar de ser desafiado. Essas são algumas características indispensáveis ao bom empreendedor, aquele profissional que se compromete a enxergar solução onde a maioria das pessoas enxergam problema. Por aqui, a prática ganhou tanto destaque despertando alguns visionários para a necessidade de criar empresas que oferecem assessoria para quem deseja empreender porém tem dúvidas, insegurança e não sabe por onde começar a desenvolver sua valiosa ideia. Empreender não significa somente criar um produto ou um serviço, mas é também desenvolver aperfeiçoamentos para negócios já existentes. Um bom empreendedor deve estar sempre buscando novas ideias, caminhos, soluções, oportunidades de negócio, orientando-se pelas necessidades das pessoas nos mais diversos ramos do consumo. Uma pesquisa divulgada no início de 2013 pelo Data Popular indica a existência de 1,5 milhão de jovens empreendedores no Brasil, entre 16 e 24 anos da qual a maioria (52,6%) é da classe média. Dentre os motivos que inspiram os jovens a empreender 46,4% respondem que essa é a maneira que encontram para fazer o que gostam de verdade seguidos de 22,1% que querem ganhar mais dinheiro com a sua própria ideia. O cenário promissor coloca o Brasil em terceiro lugar no ranking mundial de empreendedores e destaca a criação de empresas voltadas para as melhorias das condições sociais da nova classe média. O caminho para o sucesso é longo e marcado por algumas dificuldades. Não basta uma boa ideia, é preciso planejamento, execução eficiente, visão ampla e crítica, paciência e trabalho em grupo. Engana-se quem pensa que é possível empreender sozinho para poder desfrutar de todos os lucros, é preciso abandonar o egoísmo e reconhecer a necessidade da contribui-

ção do outro para a realização de um trabalho de qualidade. O profissional empreendedor deve ser capaz de reconhecer suas habilidades e fragilidades para que a partir daí possa buscar pessoas aptas a complementar e contribuir com a execução de um trabalho completo e de qualidade. Existem três tipos de empreendedores: o técnico, com facilidade para dominar ferramentas e tecnologias de manuseio complexo; o gestor, pessoa com habilidade para controlar várias etapas de uma produção e partes de uma empresa, além de executar tarefas ricas em detalhes conseguindo, no entanto, manter a preocupação com o andamento do trabalho e as pessoas envolvidas na sua execução. E, por fim, temos o empreendedor visionário com ampla e sensível habilidade para enxergar oportunidades de negócio, identificando lacunas nos mais diversos locais e contextos para desenvolver projetos de sucesso. Mas o empreendedorismo não é o único caminho para quem quer mudar de atividade profissional. As vezes as pessoas se sentem insatisfeitas com seu trabalho, mas não tem uma grande ideia de novo negócio ou dinheiro para investir. Nesses casos é preciso refletir e buscar o auto-conhecimento, o que em muitos casos não é fácil. Pensando nisso algumas empresas ganharam destaque oferecendo atendimento personalizado para os que se veem inquietos realizando seu trabalho e se sentem no dever de buscar informação sobre como transformar insatisfação em prazer e problemas em oportunidades. A seguir, você vai conhecer quatro importantes projetos e as histórias de seus idealizadores, pessoas que tomaram para si a missão de orientar outras na identificação de suas habilidades, a inspirá-las na busca da felicidade na profissão e inseri-las no universo criativo para promover projetos que movam ideias, pessoas e compartilhem o conhecimento.

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ORIENTAÇÃO | CAROLINA NALON SABE QUANDO VOCÊ PERCEBE que tem uma vocação especial para orientar outras pessoas a descobrirem o que gostam de fazer, suas habilidades e fragilidades profissionais? Pois essa é a história de Carolina Nalon, formada em Biologia pela Universidade de São Paulo e que se viu atraída pela necessidade de direcionar as pessoas a se encontrar profissionalmente. Hoje, ela é uma das mais importantes especialistas de coaching de carreira no Brasil e fundadora do Instituto Tiê Coaching - uma iniciativa empreendedora - onde é sócio-diretora. Após concluir a faculdade, em 2010, Carolina se distancia da biologia e passa a buscar aperfeiçoamentos na área de treinamento e orientação profissional. No mesmo ano, entra para a Sociedade Brasileira de Coaching, profissionaliza-se com cursos no Brasil e trabalha no exterior por um tempo. Em 2012, funda o Tiê Coaching que tem como missão apresentar soluções para quem não está satisfeito com o que faz ou não sabe qual carreira escolher. A necessidade de realizar outra atividade, distinta de sua formação, surge quando Carolina percebe que não poderia ensinar e orientar seus clientes a buscar o que amavam fazer, se ela própria não estava servindo de exemplo. Depois de um tempo de reflexão e de uma conversa com uma amiga, que lhe contou a lenda do pássaro Tiê-sangue, ela decide mudar e investir no que lhe parece uma habilidade e uma missão: aconselhar pessoas a buscarem a sua realização profissional. Mas antes de seguirmos com sua trajetória vale a pena conhecermos a lenda que lhe serviu de inspiração. Tiê era uma linda índia que não gostava de guerra. Ela desejava viver como os pássaros para poder desfrutar de sua liberdade e explorar as belezas naturais. Um dia, porém, teve de lutar contra uma tribo inimiga e acabou ferida, falecendo pouco tempo depois. O deus Tupã, ao ver seu sangue espalhado pelo chão decide realizar o desejo da guerreira, transformando seu sangue em um belo pássaro sonhador e desbravador do espaço: o Tiê-sangue. Do inglês, coaching significa instrutor, ou seja, aquele que vai nos guiar na realização de uma tarefa ou atividade por possuir credibilidade, habilidade e conhecimentos es-

pecíficos para tal. A expressão se popularizou e passou a ser empregada para designar pessoas capacitadas a orientar outras na execução responsável de transformações na vida profissional, encorajando-as a se dedicarem àquilo que as fazem feliz e a descobrir suas habilidades. O especialista em coaching - o coache - busca demonstrar para as pessoas que elas possuem o controle de sua vida e que a felicidade depende unicamente de suas escolhas e ações. COM NOME DEFINIDO, o Instituto surge empenhado em oferecer assessoria para os que estão insatisfeitos com suas carreiras, estudantes indecisos com a escolha da profissão e pessoas que decidiram mudar sua vida profissional, mas precisam de auxílio para que esse momento seja vivido de forma responsável e planejada. A empresa, localizada em São Paulo, oferece oficinas e workshops de coaching de carreira e comunicação não violenta, atingindo um público amplo e variado - inquieto - nas palavras de Carolina. Essas atividades estão disponíveis individual e em grupo e são realizadas em parceira com a 99Jobs, responsável pela divulgação do trabalho do Tiê em sua gigantesca base de usuários na internet e encaminhamento dos interessados. De sua experiência nos Estados Unidos, Carolina explica que os coaches de lá compartilham conhecimento e informações, enquanto os brasileiros concorrem no ramo, e declara que está trabalhando muito para mudar esta realidade por aqui. O empreendedorismo entre os jovens, do qual Carolina faz parte, tem se destacado no cenário nacional, numa clara demonstração de seus idealizadores de desenvolver ideias e projetos que permitam às pessoas se descobrirem e serem livres para escolher e compartilhar o que gostam de fazer. Carolina Nalon é exemplo de jovem profissional que apostou numa iniciativa empreendedora visando auxiliar pessoas a perceberem suas habilidades, fazendo com que elas se comuniquem e conheçam melhor. Sempre me interessei muito por comportamento humano e fazer com que as pessoas despertem é o que mais me dá vontade de trabalhar, conclui ela.

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foto: Arquivo Pessoal


CRIATIVIDADE | BEL PESCE BEL PESCE É A DEMONSTRAÇÃO de um empreendedor nato, curioso e sempre ligado a tudo que acontece ao seu redor. Desde pequena ela sempre demonstrou interesse por conhecer o funcionamento das coisas e foi uma criança muito questionadora. Sua imaginação parecia se alimentar de conhecimento o tempo todo e em todas as situações. Muito observadora ela tentava compreender como as pessoas conseguiam criar ideias, planejar e produzir as ferramentas que utilizavam no dia-a-dia. Destaque entre as demais crianças, Bel observava seu pai saindo para trabalhar e pensava, como é o trabalho dele? Como as pessoas se organizam para fazer determinado produto? Nada muito filosófico, declara ela, mas sem dúvida surpreendente para uma criança. Leitora desde muito novinha, Bel conta que não houve influência direta de uma única pessoa, houveram histórias bacanas das quais ela foi selecionando aspectos que contribuíram para que ela fosse curiosa sobre tudo que a despertava. Aos três anos ela viveu uma experiência divertida e desafiante. Colecionadora de figurinhas, Bel ia sempre à banca de jornal comprar e trocar os adesivos com os quais começou a aprender a ordem dos números. Um dia ela chamou a atenção do vendedor que percebe que a menina tinha todas as figurinhas muito bem organizadas e decide desafiá-la com uma brincadeira. Bel teria que responder corretamente quantas figurinhas ela conseguiria comprar com o dinheiro que havia levado e qual seria o troco, se acertasse ela ganharia do dobro de adesivos. Daí surge seu interesse pela matemática e ela aprende a tabuada trocando figurinhas. Outras pessoas vão surgindo e percebendo a desenvoltura e interesse de Bel pela prática do conhecer. Foram de experiências assim que ela foi ganhando destaque e conseguiu aprender muita coisa. Algumas sozinha, outras com apoio de professores e familiares. Ela já fez de tudo um pouco: customizou bijuterias, criou sites, sempre buscando pôr em pratica ideias que se convertiam em objetos ou serviços utilizados pelas pessoas. Hoje, com 25 anos, Bel Pesce é a mais jovem e prestigiada empreendedora do Brasil. Autora de dois livros e criadora da FazInova, ela acredita que muitas coisas podem ser melhoradas e que existem níveis de deficiência entre as áreas, que vão desde acesso à informação até falta de interesse das pessoas. Pensando no cenário atual do empreendedorismo, Bel explica que um dos maiores problemas é a questão da ilu-

são de que uma ideia tem que dar certo e gerar lucros rapidamente, ou seja, a falta de informação sobre a realidade. É necessário e importante que os jovens saíam da faculdade com conhecimento técnico e que estejam abertos a adquirir outras habilidades como aprender a lidar com pessoas, gestão, planejamento e com o tempo que um negócio demora para se firmar no mercado e ser reconhecido. Nesse sentido, ela destaca a busca por informações e a observação das coisas simples do dia-a-dia nas quais podem ser identificadas oportunidades de negócios significativas. A FazInova surge com essa missão, disponibilizando conteúdos que auxiliam as pessoas a se desenvolver tanto no lado comportamental quanto na utilização de ferramentas úteis para sua ideia de empreendimento. Uma das tendências identificadas por Bel é a de que os jovens estão bastante interessados em criar seu próprio negócio, mas novamente ela chama atenção para a necessidade de alguns esclarecimentos sobre o universo do empreendedorismo. Alguns jovens são iludidos pela ausência de chefes, horários fixos de trabalho e possibilidade de ganhar salários exorbitantes, mas ela explica que os chefes são substituídos pelos clientes, o sucesso é um final incerto, pois nem todos os projetos dão certo e, além disso, é preciso tempo, paciência e planejamento. Portanto, engana-se quem pensa que abrir seu próprio negócio é a maneira mais rápida e fácil de ganhar dinheiro. Empreender demanda responsabilidade e compromisso com o amadurecimento da ideia. Desse modo, buscar informações sobre a área que se pretende investir e pensar nos detalhes é o primeiro passo para quem pretende desenvolver um modelo de negócio sério, bem estruturado e antenado com as tendências e realidade de mercado. Buscando preencher alguns vazios, a FazInova - que também é uma iniciativa empreendedora - é criada em 2012 para auxiliar pessoas a desenvolver seus modelos de negócio de uma maneira que permite conciliar felicidade e vida profissional. A ideia é descobrir, desenvolver e conectar pessoas criativas, contribuindo para um país mais empreendedor e moderno. Seu sonho é que daqui a alguns anos a empresa tenha franquias espalhadas por todo o país e que possa contribuir com todos os tipos de negócio em sua fase de criação, planejamento e execução. Sua empresa é composta por uma equipe bem pequena, apenas quatro pessoas e ela própria, que faz um pouco de tudo. Elas se dividem entre relacionamento com o

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público, área financeira e administrativa, o site e os cursos de coaching online e gratuitos. Através da FazInova, Bel pretende mudar uma tendência que notou durante os anos em que morou nos Estados Unidos. Quando ela falava que era brasileira as pessoas logo demonstravam entusiasmo, ela então perguntava quais das nossas empresas elas conheciam e poucas sabiam responder. Isso a marcou bastante e serviu de inspiração para que ela desenvolvesse um projeto que pode contribuir para mudar esse cenário. A empresa busca pessoas capaci-

tadas para ensiná-las a desenvolver suas habilidades e criar projetos que façam do Brasil um país conhecido por suas ideias e negócios de sucesso. Para ela, temos ótimas histórias e pessoas muito capazes, o que falta é informação, orientação para que elas saibam como criar, gerir, aperfeiçoar suas habilidades e até mesmo descobrir seus talentos e se conectarem com outras pessoas para estabelecer parcerias e ampliar seu horizonte no mundo dos negócios.

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foto: Ryan Lash


CURIOSIDADE | JULIANA MENDONÇA E CRIS SCHMIDT ALBERT EINSTEIN DISSE UMA vez que “a curiosidade é mais importante do que o conhecimento”. Esta frase serve muito bem para definir o continuecurioso, canal do YouTube criado pelas cinegrafistas Juliana Mendonça e Cris Schmidt com o objetivo de incentivar o senso de curiosidade e questionamento dentro ou fora de uma empresa. Você deve se perguntar como isso funciona, e é bem simples: o projeto apresenta histórias de pessoas que revolucionaram a sua vida profissional (e, consequentemente, a pessoal) de modo inusitado. Com episódios em vídeo curtos, uma edição caprichada e uma aguçada sensibilidade para trabalhar com cada personagem e com cada história, o continuecurioso consegue criar reflexões profundas sobre o trabalho e estilo de vida – e cada

um vai tirar suas próprias conclusões ao final de cada episódio. Juliana pontuou que acha interessante que as pessoas ouçam suas inquietações internas e cheguem à conclusão do que precisam em determinado momento. O projeto mostra gente seguindo um caminho não convencional de trabalho, seja porque a profissão não agrada ou porque a estrutura de uma empresa ou corporação não faz mais sentido na vida pessoal de cada um. O formato que elas escolheram - uma websérie documental – ajuda no desenvolvimento do projeto, pois este é um assunto vasto, cheio de prós e contras. A cada episódio elas podem levantar novas discussões através do depoimento do entrevistado.

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INSPIRAÇÃO E RENOVAÇÃO. A ideia do projeto surgiu da vontade da Juliana e da Cris de falarem sobre novas maneiras de trabalho e novas maneiras de enxerga-lo. As duas como freelancer já estavam vivendo esse caminho profissional pouco conhecido e muitas vezes visto como um plano B. Elas queriam saber se existiam mais pessoas seguindo esse caminho desconhecido, quem eram esses personagens e o que eles pensavam sobre trabalho. Durante 6 meses elas fizeram o planejamento do projeto, e, no final de 2012, filmaram o primeiro episódio, lançando o vídeo em janeiro de 2013. O mais surpreendente foi a rápida aceitação do público e repercussão: só no primeiro dia, elas tiveram mais de 10 mil visualizações em uma plataforma não muito utilizada, que era o Vimeo. Hoje, o canal já passa de 486.000 visualizações, e a página no Facebook já possui mais de 41.900 “curtir” – um público imenso de curiosos em busca de inspiração e renovação. Mas nem tudo são flores: elas contam que, independente da dificuldade em relação a dinheiro e a tempo, o pior é ter de lidar com a ansiedade de querer fazer muito pelo projeto. Segundo Juliana, as ideias explodem e elas devem ter muita calma e cabeça fria pra decidir o que vão conseguir fazer no momento e o que vão conseguir no futuro. O mais curioso é saber como elas chegam nas histórias que contam – seja de um sócio administrativo de um banco que hoje é um agricultor, de uma publicitária que virou chef de cozinha ou de uma artista plástica que se tornou curadora do Museu do Futebol. São sempre histórias de pessoas que abandonaram carreiras de sucesso para ir atrás de outra car-

reira de sucesso, como elas ressaltam. Elas dizem que esse esclarecimento é importante porque é muito comum acharmos que a nossa realização pessoal está distante do sucesso. Muitas histórias chegam através do site, e-mail e Facebook, onde as pessoas se indicam ou indicam alguém pra participar da websérie. Esses possíveis personagens se candidatam e a dupla entra em contato. Elas só perguntam duas coisas para escolher a história do próximo episódio: o que ela tem de diferente das que já foram contadas e se ela é sincera. Juliana reforça que a realização profissional não necessariamente está ligada a uma vida mais saudável e tranquila, assim como o sucesso não precisa ser oposto de tranquilidade. A opção por uma coisa ou outra está na nossa cabeça. Juliana relembra a história de quando conheceram um grande empresário durante uma reunião. Uma pessoa perguntou o que ele gostava de fazer no tempo livre, e ele respondeu: “Todo o meu tempo é livre. Escolho aquilo que faço a todo momento.” O continuecurioso mostra que a maior dificuldade está em fazer escolhas, aceitá-las e seguir em frente. Qualquer grande mudança vai ser difícil, não só a de carreira. Assim, elas explicam que desenvolver a aceitação da complexidade das pessoas e das coisas através da curiosidade e da ação é a principal missão e responsabilidade do projeto. Ninguém é igual a ninguém, todos gostamos de coisas diferentes, e por isso não precisamos seguir os mesmos caminhos de vida e de profissão. Acreditamos que a curiosidade é poderosa. Ela nos leva a pensar, desenvolver e agir.

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foto: Arquivo Pessoal


INSPIRAÇÃO | JAQUE BARBOSA E EME VIEGAS EXISTEM ALGUNS MOMENTOS da vida em que começamos a repensar nossas escolhas pessoais e profissionais e procuramos uma espécie de “válvula de escape”, buscando inspiração para fazer o diferente e nos destacarmos dos demais. O publicitário Eme Viegas percebeu que existia uma lacuna no mercado: faltava um site eu fosse focado em inovação nas mais diversas áreas. Publicitário há mais de 10 anos e tendo passado pelas maiores agências do país, ele sabia o valor que uma boa referência tem – ela pode inspirar a solução que você tanto busca. Mas se você é um publicitário e estuda apenas referências de publicidade, estará fadado à repetição e não à inovação. Isso também acontece com arquitetos, ilustradores, designers, decoradores, estilistas, empreendedores, planejadores e todas as outras profissões criativas. O cotidiano desses profissionais é recheado de sites, feeds RSS, newsletters e tweets para sua informação, mas o tempo para consumir esse conteúdo é curto. Pensando nisso, o formato editorial do Hypeness foi composto por textos curtos, imagens grandes e vídeos para ninguém perder tempo. Com o posicionamento Inovação e criatividade para todos, o Hypeness foi criado para divulgar os conteúdos mais inovadores em áreas como arte, design, negócios, cultura, entretenimento e tecnologia para os criativos pensarem cada vez mais fora da caixa. Hoje, o site atinge uma média de 3 milhões de visitas por mês, e os desafios não ficam menores com o passar do tempo e com o crescimento do projeto – eles apenas se transformam.

redação do site aprova, dá dicas de como abordar melhor o tema, de qual linha seguir, etc. Para encontrar temas inovadores, é feita uma varredura em sites do mundo inteiro, e os editores apostam na curadoria e na experiência conquistada ao longo dos quase 4 anos de projeto para escolher os conteúdos com mais potencial. O que mais os motiva é a quantidade de pessoas atingidas pelos acessos diários do site e o feedback dos leitores. Jaque conta que existem desde pessoas que escrevem dizendo que trocaram de carreira devido uma inspiração que viram no Hypeness, estudantes que contam que descobriram o que querem fazer da vida depois de lerem uma história inovadora, leitores que contam que não ficam um dia sem acessar o site, profissionais criativos que fazem brainstorm acessando o conteúdo do site e até histórias como de uma pessoa que contou que o pai de 65 anos recomendou o site para ele. Como profissionais, Jaque e Eme se reinventaram. Esta nova geração tem nas mãos um privilégio que seus pais não tiveram: o poder de descobrir o que te faz feliz e transformar isso em negócio. Hoje uma pessoa não precisa escolher uma profissão para se encaixar e ter que permanecer nela pelo resto da vida. As pessoas são diferentes, por que deveriam se encaixar nas mesmas profissões? Ela argumenta que, se você não se identifica com nenhuma das profissões tradicionais, é muito provável que você precise criar uma nova. Mas é impossível fazer isso se você tem medo de abandonar o trabalho das 8h às 18h, somente por uma estabilidade ilusória. É possível ganhar mais dinheiro e ser muito mais feliz indo atrás do seus sonhos. Por mais que seja difícil tomar coragem para largar tudo e recomeçar, eles defendem que esse é um ato necessário para encontrar a felicidade e se satisfazer como profissional. Hoje, eles são muito felizes com o que fazem. Dizem que estão realizados, mas isso não significa que o sonho parou com o Hypeness ou o outro site deles, o Casal Sem Vergonha. Eles ainda possuem diversos projetos na manga e, conforme vão conseguindo administrar melhor o tempo, vão investindo em novas ideias.

DESAFIOS. Jaque Barbosa, mulher de Viegas e diretora de conteúdo do Hypeness, conversou com a gente por e-mail e contou que, no início, o mais difícil era entender o que o público queria, descobrir qual a melhor linguagem para falar com os leitores e como fazer o conteúdo chegar para mais pessoas. Hoje os desafios se concentram em como fazer o site crescer a cada dia, inovar e se destacar dos concorrentes, encontrando pautas sempre frescas. O site conta hoje com uma equipe de 7 colaboradores não fixos, chamados de “Caçadores de Inovações”. Esses colunistas enviam as pautas que acham bacanas, e a direção de

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foto: Cris Schmidt / Juliana Mendonรงa


Espelho, espelho meu Existe alguém mais _______ do que eu? Belas, submissas, aventureiras ou independentes, as princesas ainda estão à procura de uma identidade


texto por Vanessa Souza ilustração por Maria Tebet Princesas Disney

Q

uando eu era bem pequena, fui presenteada com a fita de vídeo da Branca de Neve e os Sete Anões. Não sei quantas vezes foi preciso que eu assistisse à história para chegar a uma certa conclusão que meu pai, até hoje, relembra de vez em quando. Acredito que tenham sido várias sessões de “eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou” para articular o raciocínio: por que a bruxa, conhecedora de tantos feitiços e poções, inventou de ficar feia e velha para tentar matar a Branca de Neve em vez de se transformar na mulher mais bela segundo os conceitos do Espelho? Já que era essa a lógica que o príncipe parecia usar para decidir qual mulher era a melhor candidata a se casar com ele... Branca de Neve foi a primeira princesa a estrelar um filme da Disney, em 1937. À imagem e semelhança das mulheres da época (ou do que se esperava delas), a órfã, vítima da inveja da madrasta por ser “a mais bela de todas”, é ilustrada tendo a beleza como seu maior talento. Além de cozinhar, cantar e falar com animais, é claro. No entanto, a narrativa não nos leva a atentar a esses detalhes: o mais exaltado é a beleza inocente da pura Branca de Neve. Sua sucessora, Cinderela (1950), também vive em um mundo onde as mulheres são reduzidas a rostinho bonito e sobrenome forte para conquistar o Príncipe Encantado. O baile realizado para que o jovem real encontrasse sua esposa usava o infalível método de apresentar as meninas fisicamente e apenas citar o nome e a filiação delas. Nada de conversar com o moço. Nada de falar nem que fosse só umas palavrinhas. Era bom estar muito bem arrumada para conseguir esse ótimo casamento: as meninas também não aparentavam estar muito interessadas na personalidade do príncipe. Aprenderam desde criança que o importante era que elas fossem perfeitas o bastante para arrumar um emprego, digo, um marido que as sustentasse. Mas, antes de garantir o casamento, as princesas são vistas cantando sobre o dia em que o amor da vida delas chegaria. O homem predestinado para elas apareceria, o casal se apaixonaria e viveria feliz para sempre. Tudo isso aconteceria porque sim. A submissão, seja ao destino, à madrasta ou a um príncipe, é característica marcante das primeiras princesas Disney. Aurora, estrela de A Bela Adormecida (1959), fica dois terços da duração de seu filme dormindo.

Linha do tempo

Sobre

Mais

Branca de Neve 1937

Aceita em casa pelos Sete Anões por oferecer serviços domésticos. Em troca, eles a tratam como se fosse sua mãe de verdade. Afinal, essas são as funções desejáveis da mulher da época.

Cinderela 1950

O sapatinho de cristal que ela perde ao fim do baile é tão pequeno que só poderia caber em um pé tão delicado quanto ao de Cinderela. Isso e sua beleza são os motivos pelos quais ela é a mulher perfeita para o Príncipe Encantado.

Aurora 1959

Personagem principal de um filme em que passa aproximadamente 20 minutos acordada. Espaço livre para que as fadas madrinhas Flora, Fauna e Primavera protagonizem a história no lugar da princesa.

Ariel 1989

Primeira princesa a salvar seu príncipe de algum perigo – em vez do contrário – e a confrontar seu pai em uma decisão. Mesmo assim, ela cede à magia da bruxa Úrsula, que a aconselha a “não subestimar o poder da linguagem corporal”.

Bela 1991

É inteligente e valoriza o conhecimento acima da beleza, mas o príncipe sob a aparência de Fera ainda acha que o jeito mais fácil de fazer uma mulher se apaixonar por ele é aprisionando-a num castelo.

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Enquanto isso, príncipe, bruxa e fadas madrinhas decidem qual será o destino da personagem principal. Depois de 30 anos do lançamento da última princesa, a Disney resolveu voltar a apostar no gênero e lançou A Pequena Sereia. Ariel abre uma nova linhagem de personagens femininas que não ficam esperando as coisas acontecerem e até mesmo salvam seus pretendentes, em vez de o contrário ocorrer. No entanto, a abordagem dessa história dá dois passos para trás quando Ariel concorda em perder sua voz para virar humana e ir atrás de alguém que viu só uma vez na vida. Em outras palavras, ela trocou sua liberdade de expressão para se encaixar nos moldes que agradariam o homem por quem ela se apaixonou depois de passar só alguns minutos observando. Ainda assim, há em A Pequena Sereia uma característica nova se comparada com as princesas anteriores: a vontade de explorar um mundo que ela não conhece. Por viver no fundo do mar, sua vontade é conhecer a cultura dos seres humanos. Bela, de A Bela e a Fera (1991), tem consciência de que o vilarejo onde vive é muito pequeno para ela, que adora ler e, assim, descobrir outros mundos. O grande avanço do filme, desta vez, é quebrar o estereótipo de que a maior qualidade que uma princesa pode ter é ser bonita (por mais que Bela não seja feia nem no nome) e começar a narrativa afirmando o quanto a inteligência e o conhecimento são importantes. Inclusive, logo nos primeiros minutos do filme, um personagem masculino – Gastão, que faz de tudo para se casar com Bela e obviamente não é bem sucedido – diz que mulheres não deviam ler para não terem ideias e começarem a pensar, tendo como resultado Bela o chamando de “primata”. Jasmine, de Aladdin (1992), e Pocahontas, do filme homônimo (1995), herdaram o pensamento sagaz e essa vontade de não obedecer a uma regra simplesmente porque é uma regra. As duas se recusam a casar com o pretendente que o pai escolheu e lutam para ficar com quem elas realmente amam, ainda que Pocahontas não se case com seu escolhido ao final do filme. Já Mulan, heroína do filme de mesmo nome de 1998, vive numa sociedade muito mais sexista do que as outras princesas recentes. Quando ela tenta convencer o oficial que veio convocar os homens para lutar na guerra de que seu pai já está bastante debilitado, este ouve que deve ensinar sua filha a ter mais respeito na presença de um ser humano do sexo masculino. Mesmo assim,

Jasmine 1992

Cansada de ser princesa, decide fugir de seu palácio para saber como é a vida das pessoas comuns. Antes de se casar com Aladdin, Jasmine beija Jafar – a única princesa a beijar dois homens em um filme.

Pocahontas 1995

A índia norte-americana tem um interesse amoroso inter-racial pelo caucasiano John Smith. No entanto, eles acabam não vivendo “felizes para sempre” porque Pocahontas prefere ficar com seu povo em vez de viajar com ele.

Mulan 1998

Escreve no braço uma cola para se lembrar das qualidades que uma mulher deve ter para se casar e, assim, ser capaz de recitá-las para a casamenteira. No entanto, fica claro que o talento de Mulan é o planejamento estratégico na guerra.

Tiana 2009

Por mais que sua mãe passe uma boa parte do filme sonhando com o dia em que Tiana vai encontrar um ‘príncipe encantado’, a maior preocupação da garçonete é continuar trabalhando para ter seu próprio negócio.

Rapunzel 2010

Talentosa e inteligente, é mantida presa no alto de uma torre por uma mãe impostora. Consegue fugir ao convencer o ladrão que entra em sua casa a levá-la até as lanternas coloridas que aparecem no céu todo ano em seu aniversário.

Merida 2012

Seu gosto por tiro com arco e flecha é apoiado pelo pai e criticado pela mãe, que, mesmo estando sempre no controle da família, continua reproduzindo alguns valores patriarcalistas. Merida, por sua vez, só quer ser livre.

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As princesas mais recentes já têm a liberdade de lutar e fazer coisas rotuladas de ‘função masculina’ sem precisar se passar por um homem

para salvar seu pai de morrer em batalha, ela decide se vestir de homem e ir para a guerra. A história de Mulan tem dois lados que se opõem quando analisada: o fato de ela ser mulher e ter ido lutar parece bastante promissor quando se pensa na quebra do que é o suposto papel da mulher na sociedade. No entanto, ela ainda teve que se passar por homem para fazer isso, correndo inclusive risco de morte caso fosse descoberta. Merida, de Valente (2012), já não precisava se submeter a isso. A ruiva dos cabelos cacheados e bagunçados tinha como maior hobby o tiro com arco e flecha. Arqueira de mão cheia, quando os herdeiros dos reinos vizinhos foram competir por Merida no esporte, ela anunciou que também competiria por sua própria mão e... ganhou. Rapunzel, em Enrolados (2010), se defende do homem que invade sua torre e o prende habilidosamente, usando uma frigideira como arma. As duas princesas mais recentes da Disney já têm a liberdade de lutar e fazer coisas anteriormente rotuladas de “função masculina” sem precisar se passar por um homem. No entanto, elas ainda são tuteladas por alguém: Rapunzel tem Mamãe Gothel, que a proíbe de descer da torre e dá as ordens de o que a princesa pode ou não fazer, e Merida tem sua própria mãe recitando incansavelmente como uma herdeira de família real tem que se portar, se vestir, agir e por aí afora. Por mais que o filme Valente vá ainda mais à frente na questão da independência da mulher quando ilustra a personagem principal sendo capaz de cuidar de si mesma e não tendo interesse romântico nenhum – o tempo que era dedicado a montar o cenário perfeito para os pombinhos dos filmes anteriores se apaixonarem é usado aqui para abordar o relacionamento entre mãe e filha –, Merida não é totalmente livre, principalmente se formos considerar que, na hora de seu discurso para convencer os reinos que competem por sua mão de que ela não iria se casar, ela só repete o que sua mãe dita para ela por meio de gestos enquanto se esconde atrás de

todos. É o que Merida queria, mas não foi decidido por ela. O restaurante que a personagem principal de A Princesa e o Sapo (2009) se esforça para abrir, de certa forma, também não é uma vontade só dela, mas um sonho que seu falecido pai tinha e que ela sentia que deveria realizar. Tiana é a primeira protagonista do gênero que trabalha fora, algo que a aproxima ainda mais da nossa realidade hoje. Além disso, ela segue a corrente multirracial que foi apresentada nas princesas durante os anos noventa, sendo a primeira negra. Sobre isso, a professora de Antropologia e doutora em Ciências Sociais da Unesp de Bauru, Larissa Pelúcio, oferece uma reflexão curiosa: porque a princesa negra é americana e tem um sonho burguês se na África existiu monarquia e princesas de sangue real? “Não tem nenhuma princesa que conta a história da luta das mulheres do norte da África no processo de descolonização do Imperialismo”, ela discute. O motivo pelo qual é muito mais fácil mostrar uma jovem que sonha em ter seu próprio negócio do que, por exemplo, uma garota resistindo à apropriação e ao apoderamento dos europeus sobre seu espaço e seu povo e sendo bem sucedida (por mais “delírio ficcional”, nas palavras de Larissa, que isso seja) é simples: não há interesse em reiterar uma história que é uma mácula, como a escravidão foi. No fim das contas, Larissa conclui que “os produtos culturais, de forma mais ou menos intencional, são conservadores sem evidenciar que o são”. Ainda há muito o que melhorar na imagem das mulheres retratadas pela Disney, principalmente por ter histórias direcionadas ao público infantil e exercer uma influência tão grande sobre as crianças logo cedo em suas vidas. Afinal, o que mais se vê são garotinhas vestidas de princesas para o carnaval provavelmente sem saber muito bem o que isso significa. Eu mesma me fantasiei de Branca de Neve para alguma festinha da pré-escola, mesmo que hoje em dia fosse bem possível que eu decidisse me vestir de Atchim ou Soneca.

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Mochil達o:

relatos da cultura andina em um mundo globalizado

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texto por Mariana Tavares imagens por Carolina Baldin Meira

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azer uma viagem como mochileiro pode ser uma boa oportunidade para quem tem interesse em viajar com pouco dinheiro e ter contato com outras culturas. Foi com esse desejo que uma amiga e eu nos programamos para fazer um mochilão pela América do Sul. Decidimos que os países que gostaríamos de conhecer eram Argentina, Bolivia e Peru. A viagem duraria um mês, começando no dia 20 de novembro até o dia 19 de Dezembro. O primeiro destino era Buenos Aires, onde encontraria minha amiga que estava fazendo intercambio na cidade. Ao comprar a passagem escolhi o Aeroparque – aeroporto que fica no centro da cidade - e não o Aeroporto de Ezeiza - que ficava longe da capital argentina. Para fazer um mochilão é necessário ter uma mochila grande e própria para aguentar a viagem. Escolhi uma mochila de 45 litros que possuía uma estrutura de metal que não força a coluna e a mantém reta. O tamanho dessa mochila era o suficiente para eu aguentar seu peso. Contenção é a palavra de ordem para montar sua mochila. Ainda mais se você é mulher: lembre-se que muitas vezes você estará sozinha e terá que andar longas distancias com aquele peso nas costas. Então planeje levar o que você aguente carregar. Com essa consciência, montei minha mochila com roupas o suficiente para uma semana sem ter de lavá-las. Nada de luxos, roupas confortáveis, que não ocupassem muito espaço e que fossem versáteis para o dia e para a noite. Com o roteiro que montamos, passaríamos por regiões desérticas: com temperaturas muito altas durante o dia e muito frio à noite. Por isso, comprei roupas térmicas para proteger de baixas temperaturas (mal sabia o quão necessária elas seriam). Mochila pronta e nas costas, parti para o Aeroporto de Guarulhos onde a viagem começaria. Cheguei em Buenos Aires na parte da manhã e logo encontrei minha amiga. Tomamos um ônibus na porta do aeroporto e seguimos para San Telmo, bairro em que ela morava. A primeira surpresa foi o quão barato era o ônibus, cerca de 1,70 pesos argentinos ou 0,45 centavos de real. Hospedei-me na moradia estudantil “Casa Grande”, deixei minhas malas e fui fazer câmbio dos dólares que havia

levado. Pretendia ficar em Buenos Aires por 9 dias então achei melhor trocar todo o dinheiro de uma vez. Para fazer o câmbio, fui avisada de que o governo argentino mantém o câmbio do dólar congelado e que, caso eu optasse pelo modo convencional, perderia muito dinheiro. Por isso, me aconselharam fazer a troca na rua Florida, onde havia o câmbio negro. A princípio fiquei com medo de estar fazendo algo ilegal e de o lugar ser um beco onde eu seria assaltada. Mas ao chegar lá, vi que a rua era um ponto turístico e que os cambistas gritavam descaradamente que compravam dólares. Escolhemos um que nos pareceu confiável e fomos trocar o dinheiro. O câmbio de 1 dólar equivale a quase 10 pesos argentinos e o câmbio de 1 real é quase 4 pesos. É importante conferir todas as notas que você recebe e verificar se elas são verdadeiras. Dinheiro em mãos, sai com minha amiga para almoçar e conhecer um pouco a cidade. Durante os 9 dias que fiquei em Buenos Aires, pude me encantar com a cidade, que possui uma forte influencia europeia em sua organização e principalmente na arquitetura. Conheci pontos turísticos famosos e ao mesmo tempo tive a experiência de frequentar lugares como os moradores da cidade. Para aqueles que pretendem visitar Buenos Aires algum dia, existe um mapa interativo na internet que ajuda a andar por lá de carro, a pé, ônibus e até mesmo de bicicleta. É muito fácil se locomover pela cidade, que, além do mapa, conta com um transporte público muito eficaz. RUMO AO NORTE DA ARGENTINA – SAN SALVADOR DE JUJUY. Seguindo o nosso roteiro, começaríamos o mochilão indo pra San Salvador de Jujuy, a última província na divisa com a Bolívia. Pegamos um ônibus em Buenos Aires, com 15 horas de viagem até chegar em Jujuy. Planejamos ficar 5 dias na cidade, que é pequena e muito receptiva. Todos os dias saímos bem cedo para pegar um ônibus para alguma cidadezinha próxima. No norte da Argentina há uma grande presença de descendentes de indígenas e as cidades menores procuram preservar suas origens e cultura. A região é considerada patrimônio da Humanidade da UNESCO e possui lugares lindos para se conhecer, como a cidades de Pumamarca (uma das

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Em Pumamarca a valorização da cultura indígena era muito forte, um grafite na entrada da cidade exemplificava com a frase “ Somos cultura que caminha em um mundo globalizado!”

O deserto de sal das Salinas Grandes dispões uma área de 212 quilômetros quadrados e está localizada 3.450 metros acima do nível do mar. Na foto abaixo, a igreja e todos os elementos são feitos de sal.

mais bonitas e pequenas, onde se pode conhecer o deserto de sal das Salinas Grandes), Humahuaca (parte central da formação geográfica da Quebrada de Humahuaca) e Tilcara, onde há as ruínas de Pucara, que pertenceram a uma civilização pré-inca. No último dia, pegamos um ônibus para La Quiaca, cidade argentina que faz divisa com a Bolivia. Estavamos com medo da Bolívia, pois tínhamos poucos sites com informações confiáveis sobre o país. Havia apenas muitos relatos de blogs que criticavam policiais corruptos e um transporte ruim. Cruzamos a fronteira da Bolívia e pegamos um trem até Oruro. Foram 18hrs de viagem com uma paisagem bela pelo deserto. Durante o dia, as temperaturas se mantiveram altas e durante a noite muito frias. Chegamos em Oruro na parte da manhã e não tivemos uma boa impressão inicial na cidade. Em Oruro não há muitas atrações turísticas para conhecer. A maior parte das opções estão em cidades próximas que fazem parte do departamento de Oruro, mas não da cidade.

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CULTURA VIVA, O MUNDO DA BOLÍVIA. No dia seguinte seguimos para La paz. Conforme o ônibus se aproximava da cidade, a altitude ia aumentando, até chegar a 3660 metros. La paz foi construída em um vale e é considerada a sede do governo, apesar de a capital da Bolívia ser Sucre. As construções das casas populares são muito curiosas. Grande parte delas mantem-se apenas no tijolo sem qualquer pintura. O padrão de beleza arquitetônico é manter o tijolo a vista, mas com vidros espelhados. E assim, essa semelhança pode ser percebida ao longo do país. La paz é a maior cidade da Bolívia e requer atenção. Os relatos da internet avisavam que existem muitos táxis clandestinos na cidade e que esses não são uma boa opção para turistas. Então, ao chegarmos no terminal rodoviário, fomos buscar orientação para tomar um táxi seguro. De lá seguimos para a rua Illampu, que conforme as pesquisas demonstravam era a rua com maior número de hostels e hotéis. De fato, a rua possuía muitas opções de lugares para se hospedar. Consultamos os preços e escolhemos ficar num hostel com muitos mochileiros de vários países. Surpreendentemente, descobri que naquela região havia um movimento de turistas de Israel, ao ponto que os restaurantes possuíam menus especiais com comidas típicas e escritos no Alfabeto hebraico. Nosso hostel não era diferente, a maioria dos hospedes eram israelitas. No mesmo dia, saímos para pesquisar os preços dos tours

que iríamos comprar para o Lago Titicaca. A ideia era visitar Copacabana (parte boliviana do lago) e depois Puno (parte peruana do lago). Por ser uma região turística, havia muitas opções de empresas para comparamos os preços. É importante ressaltar que toda vez que se organiza um roteiro de viagem, os preços encontrados na internet sempre estão acima da média. No caso, como estávamos viajando fora de temporada, encontramos bons preços em todos os lugares que passamos. O mesmo ocorreu com o tour pelo lago Titicaca, que saiu mais em conta do que o planejado, sobrando dinheiro para realizar outros tours na Bolívia, como o Chacaltaya, um pico da Cordilheira dos Andes a 5 421 metros de atitude. Lá pudemos conhecer a neve e uma estação de esqui desativada. O tour que havíamos pago pelo lago Titicaca incluía tudo: refeições, hospedagem, transporte, taxa e ingresso, guia turístico. Se você deseja fazer a viagem por conta sem uma empresa, ela se torna mais econômica. Existe a opção de viajar para essas cidades pegando ônibus nos terminais e pagando tudo a parte. No nosso caso, optamos pela comodidade e segurança. Cada passeio programado valeu muito a pena e fica a indicação para conhecer. Chegando em Copacabana, pegamos um barco, que durante 1hora e meia andou pelo lago Titicaca até chegar na Ilha do Sol, maior ilha do lago. A vista era impressionante e a altitude também, porque quando chegamos à ilha ainda

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La Paz é a cidade mais populosa da Bolívia. E diferentemente do que muitos pensam, não é a capital do país, a capital da Bolívia é Sucre e cabe a La Paz ser sede do governo e pólo econômico cultural do país.

havia uma grande escada para subir o morro, até chegar ao centrinho local. Durante todo esse trajeto, estávamos com um guia que nos contava cada detalhe da história do seu país e as curiosidades do lago. Passamos uma noite na ilha: a noite mais gelada da viagem. Frio à parte, na manhã seguinte acordamos e seguimos de volta para Copacabana. Almoçamos na cidade e depois pegamos um ônibus até a fronteira com o Perú. Burocracias terminadas, havia um ônibus do outro lado da fronteira nos aguardando para nos levar até Puno. Mas, no meio da viagem, fomos surpreendidas por uma manifestação contra o aumento da água na região. Ironicamente, o povo que vivia ao lado do grande lago reclamava do abuso do governo em

cobrar altas taxas e, para manifestar, fizeram barricadas na estrada com fogo, cacos de vidro e inúmeros obstáculos que tiveram de ser atravessados por nos a pé. Tivemos que caminhar cerca de 3 km para passar pela manifestação e encontrar o terceiro ônibus que nos aguardava no fim do protesto. A experiência foi cansativa, mas curiosa por saber que indiretamente estávamos vivenciando um protesto, tal como muitos vistos no Brasil. A apreensão do guia demonstrava que a situação era muito instável e, com medo, ele procurava nos apressar a andar o mais rápido possível para passar toda a manifestação. No final da noite chegamos em Puno, onde fomos para o hotel que estava incluso no tour.

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A BELEZA DO ANTIGO IMPÉRIO INCA. Conforme programado, na manhã seguinte iríamos conhecer as Ilhas flutuantes de Puno, um dos momentos mais especiais da viagem. No começo não estava muito empolgada com o passeio do dia, o cansaço do dia anterior estava espalhado por todo meu corpo que doía de ter carregado o mochilão. Mas, ao chegar nas ilhas, todos os sentimentos mudaram para um encantamento com aquela cultura tão diferente que eu estava vendo ali. Índios que encontraram no totora (um tipo de capim flutuante) a subsistência para construir ilhas e sustentar suas famílias. Tal método é existente desde a era pré colombiana e, atualmente, além de preservado, tornou-se um famoso ponto turístico do país.

Ao chegarmos na ilha, ouvimos uma pequena apresentação dos métodos e rotinas de lá. O presidente – único homem da pequena ilha do Amor — nos explicava cada detalhes de seu trabalho. Fui convidada para conhecer a moradia de uma das Cholitas que vivia na ilha. Ela também me ofereceu suas roupas para ver como eu ficaria vestida com elas. Oportunidade aceita, pude ver um pouquinho mais do que era a cultura daquele povo, como viviam e o quão pesada eram as roupas daquelas mulheres. Tudo o que existia era feito de totora, desde o chão até o alimento (uma parte comestível do capim), e o barco que usavam para levar os turistas de uma ilha a outra. Voltamos da ilha e fomos almoçar. No Perú existem mui-

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Tal como o Cristo Redentor no Brasil, Macchu Picchu é considerada umas das 7 maravilhas do mundo moderno. E é um dos pontos turísticos mais visitados do Peru. O preço dos ingressos mudam de acordo com o visitante em média U$25 para peruanos, U$30 estudantes e U$50 adultos .

lugar com arquitetura bem colonial e importante centro turístico. Foi nessa praça que procuramos a empresa para nos levar a Macchu Picchu. Tiramos o dia todo para pesquisar preços de tour, que variam bastante de uma empresa a outra. São muitas opções de transporte que te levam até o povo de Macchu Picchu. A alternativa mais confortável para chegar até lá é o trem, que é também a opção mais cara de transporte. Todos os preços são passados em dólares e, se você pretende gastar menos, o melhor é fazer a viagem de ônibus — por mais torturante e sinuosa que possa ser a viagem, não é nada que um dramin não resolva. Além do transporte, é importante lembrar que em Macchu Picchu existe desconto para estudantes: basta ter a carteirinha internacional fornecida pela ISIC, que possui sede em Cusco, caso você pretenda tirá-la na hora. Com essa opção, obtivemos um desconto de 20 dólares na compra do tour. Para aproveitar o dia todo nas ruínas de Macchu Picchu, optamos por pagar um tour de 3 dias e 2 noites, o que é ideal para quem pretende ir e voltar de ônibus. No total gastamos cerca de 105 dólares com tudo incluso e com entrada para Wayna Picchu (montanha dentro de Macchu Picchu) — preço bem abaixo do divulgado na internet. Entretanto, é importante atentar que esse foi o preço de baixa temporada e que, na época de mais movimento, o pacote se torna mais caro. Acordamos cedo para pegar a van que seguiria para Macchu Picchu. Foram 6 horas de viagem em uma estrada bem sinuosa e muito bela. Chegamos à hidrelétrica e seguimos a viagem a pé. Caminhamos em grupo durante 2 horas e meia pelos trilhos do trem, beirando o rio Urubamba. A vista da estrada é belíssima e a caminhada não é cansativa por ser em linha reta. A viagem até a vila de Macchu Picchu leva o dia todo, chegamos no hostel ao entardecer. Só no dia seguinte, às 5 horas e meia da manhã seguimos de ônibus até as ruínas de Macchu Picchu. Existe a opção de subir até as ruínas a pé,

tos restaurantes baratos, que custam torno de 5 novos soles (moeda do país) em reais. O câmbio é equivalente, mas em comparação com o Brasil, nunca se encontraria um restaurante que serve dois pratos (às vezes com sobremesa) por 5 reais. Passamos o dia no hotel aguardando o tempo para tomarmos o ônibus para Cusco. Viajamos durante a noite e chegamos a Cusco ao amanhecer. Tivemos sorte de encontrar o dono de um hostel (que já havia sido indicado para nós) que nos ofereceu um bom preço por um quarto duplo com banheiro privado. E lá nos hospedamos, no Mirador del Inka. Em Cusco, os melhores hostels e hotéis estão localizados próximo a parte central da cidade, na praça de armas — um

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Algumas lendas rondam o povo de Isla de Uros, tal qual a história de que os colonizadores espanhóis nunca colonizaram as ilhas flutuantes, pois não os encontravam. Os índios sabiam como se esconder no meios da vegetação de totora. Uma experiência muito interessante é passar a noite nas ilhas flutuantes. Existe a opção de se hospedar lá e ter uma experiência única de como eles vivem, pescam e montam sua rotina. Em Uros, há várias ilhas diferentes para serem visitadas. Cada turista conhece duas pequenas ilhas diferentes, sendo a última um restaurante de comidas típicas. O turismo no local é controlado pelos índios que buscam dividir o número de visitantes entre todas as ilhas para que todos consigam lucrar.

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são 800 lances de degraus, então, para evitar o desgaste, optamos por pagar pelo ônibus. Ao chegar nas ruínas, encontramos nosso guia turístico, que nos acompanhou durante 2 horas e meia, explicando e contando histórias sobre o local. Deixo a dica de que a economia de conhecer o local sem guia turístico não vale a pena, perde-se muita informação e detalhes interessantes sobre o lugar. A beleza de Macchu Picchu é mágica e, depois de curtir algumas horas desbravando e conhecendo o local, chegou a hora (previamente agendada) para visitar Wayna Picchu. Subimos todos os degraus até chegarmos ao topo. O esforço físico é muito grande e exaustivo, pois em alguns pedaços da subida há cabos de ferro para se segurar, o local é escorregadio e muito íngreme. Mas apesar de todo o sofrimento para chegar ao cume, o prêmio final vale o esforço. A vista que se tem de Macchu Picchu é impressionante, podendo avistar toda a cidade. A descida é mais tranquila, apesar de mais medonha para quem tem medo de cair daqueles degraus tão pequenos. Ao voltarmos para as ruínas, caminhamos mais um pouco e tiramos mais fotos antes de irmos embora para o hostel. O dia foi muito cansativo e esse é o benefício de se hospedar uma noite a mais no local. Com essa opção você pode aproveitar o dia todo nas ruínas, descansar durante a noite e só no dia seguinte fazer toda a caminhada até a hidrelétrica para pegar o ônibus de volta a Cusco. Viagem de volta concluída, chegamos em Cusco a noite. Voltamos para o hostel, onde estavam nossas mochilas maiores. Para ir embora de Cusco, havíamos comprado passagens de avião até Lima, onde havia opções de voos internacionais de volta para o Brasil. A empresa que faz esse trajeto é a TACA e o valor da passagem custa em torno de R$330,00. A viagem de ônibus demora 24 horas em estradas perigosas e por isso preço mais caro foi nossa opção, por uma questão de tempo no cronograma e segurança. Ao chegarmos em Lima, sentimos o caos que já havíamos lido nos relatos da internet. A cidade é a segunda maior da América do Sul, perdendo apenas para São Paulo e por isso, existe uma grande preocupação com os turistas de se perderem e tomarem táxis clandestinos, que, como na Bolívia, não são boas opções. Quando saímos da área de desembarque, vários taxistas credenciados começaram a falar ao mesmo tempo oferecendo transporte e nos seguindo até a saída do aeroporto para nos amedrontar dos riscos de sair de lá sem eles. Naquela altura da viagem, eu já estava praticamente sem dinheiro e queria evitar ao máximo pegar táxis. Vi na internet

que existia um ônibus que levava você até a região turística de Miraflores. Com essa informação, fui procurar ajuda dentro do aeroporto, em que funcionários me explicaram onde poderia tomar esse ônibus. Felizmente, tudo correu muito bem, as pessoas da rua nos ajudaram a pegar o ônibus e até nos defenderam do cobrador que tentou cobrar mais de nós. Hospedei-me no hostel que tinha visto na internet e segui para praia com minha amiga para conhecer o Oceano Pacífico. Naquele mesmo dia, ela tinha um voo de volta para Buenos Aires antes de voltar para o Brasil. Eu ainda tinha mais dois dias para conhecer a cidade. A nossa tentativa de ir a praia falhou. As praias são muito distantes da cidade por conta da formação geográfica e pela proteção contra tsunamis — o que foi novidade para nós duas. Jamais imaginei que na Bolívia e no Perú havia abalos sísmicos e menos ainda que Lima convivia com o perigo de tsunami na cidade. No dia seguinte acordei bem cedo, determinada a conhecer um pouco os arredores do bairro. A região de Miraflores abriga vários hotéis e cassinos muito chiques. Além disso, a influência norte-americana é enorme com outdoors e fast foods que não existem no Brasil. Na hora do almoço, fui até o mercado central para provar o famoso Ceviche, receita de peixe cozido no limão, temperado com pimenta ardida, cebola roxa e coentro, que é uma delícia. A minha dica para quem visitar o Perú é experimentar duas comidas típicas famosas: o Ceviche e o Cuy (um tipo de porquinho da índia servido inteiro no seu prato), o qual não tive a oportunidade de provar. Este era meu último dia de viagem e a vontade de ficar mais para conhecer novos lugares e ter novas experiências me rondavam. Uma tristeza de voltar começava a aparecer a cada roupa que eu reorganizava na mochila. A experiência e a vivência de um mochilão é tão intensa que te faz amadurecer. Muitos momentos te cobram mais atenção, cuidado e responsabilidade por saber que você está num país diferente e com uma cultura totalmente incomum à sua. Por mais que os países façam fronteiras com o Brasil e que quase todos tenham cara de brasileiro, as diferenças são nítidas a cada momento. Diferenças que tornam sua experiência ainda mais fantástica de poder emergir numa cultura nova. Para todos os que possuem um espírito curioso, com vontade de conhecer e aprender coisas novas, deixo o conselho para que façam viagens como essas, que custam pouco e valem muito mais a pena do que trocar um celular ou comprar algo material. A bagagem que se adquire não tem preço e esta é uma experiência que todos deveriam experimentar em algum momento da vida.

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A ARTE EM NARRAR FATOS texto e ilustração por Felipe Altarugio

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s histórias em quadrinhos já fazem parte do imaginário da humanidade. Consagrada já depois de muitas gerações, as HQs nos contam anedotas, sátiras, caricaturas, histórias de super heróis, entre tantas outras narrativas. Contudo, não estamos ainda tão acostumados a ler material jornalístico em quadrinhos. O gênero do comic journalism é relativamente novo, bem como seu conceito e os estudos a seu respeito. Mesmo assim, temos obras de destaque na área, como Maus, de Art Spiegelman, vencedor do Prêmio Pulitzer em 1992. Quando surgiu a pauta do jornalismo em quadrinhos, com ela despontou a ideia e o desafio que fiz a mim mesmo de usar um pouco de metalinguagem e escrever uma matéria em quadrinhos sobre jornalismo em quadrinhos. O grande desafio, muito mais que o desenho, foi conseguir elaborar uma narrativa, já que HQs necessariamente necessitam de personagens para o desenvolvimento do enredo. Escolhi, então, a história da comunicação como ponto de partida da história, personificando o processo histórico da evolução comunicativa. O resultado dessa minha tentativa está nas próximas páginas da revista. Nesses quadrinhos, tento, ainda que breve e superficialmente, imergir o leitor no universo do comic journalism. Nesses quadrinhos, ainda, faço referências a obras de grandes autores desse estilo, como Art Spiegelman e Joe Sacco, os quais recomendo veementemente a leitura.

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