Quando esperar é a única saída
Em Porto Alegre, ser atendido em uma Unidade de Pronto Atendimento do SUS pode levar até 10 horas. Agendar ressonância magnética, no mínimo seis meses. Cirurgia no joelho, dois anos. A falta de profissionais e recursos ainda é a justificativa do governo, mesmo quando se estabelece a saúde do povo como uma prioridade de campanha.
Fernanda Orestes da Rosa e Gabriel Galli
"Cuidem da saúde do povo brasileiro, ele merece o nosso cuidado".
A frase do escritor gaúcho, médico e especialista em saúde pública, Moacyr Scliar, que, homenageado pela sua morte, em 2011, dá nome à Unidade de Pronto Atendimento da Zona Norte, não parece ser levada muito a sério pela Prefeitura de Porto Alegre. O local foi inaugurado no final de setembro de 2012 e é resultado de uma parceria entre o Grupo Hospitalar Conceição (GHC), o executivo municipal e os governos federal e estadual. A diretora do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS) Clarissa Barssin, denunciou à imprensa, em outubro de 2012, que a unidade foi aberta às pressas, sem estrutura, uma semana antes da eleição municipal, com a presença do prefeito José Fortunatti, reeleito com 65,22% dos votos válidos. "Na primeira semana de funcionamento, quem atendeu lá foram médicos da prefeitura, vinculados à gestão municipal. Foi claramente uma situação eleitoreira. Depois da nossa denúncia em outubro, entramos em negociações profundas e hoje podemos dizer que o número de médicos atendendo está normalizado", afirma. Na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Zona Norte, o paciente pode aguardar, nos dias mais movimentados, até 10 horas por uma consulta. Seria uma surpresa se a longa espera por atendimento já não estivesse introjetada no imaginário coletivo dos brasileiros.
A maior parte das Unidades usam a classificação de risco dos pacientes padronizada pelo Ministério da Saúde. Nela, uma pulseira colorida sinaliza quanto tempo se aguardará por atendimento. “Se você não estiver aparentando muita dor, é quase certo que vai ser o último a ver um médico”, conta o segurança Elvis Souza, 24 anos, que esperava há duas horas com uma lesão no braço. O método é chamado de Protocolo de Manchester. Se o paciente chega com risco de morte iminente, é acolhido às pressas e ganha uma pulseira vermelha. Do contrário, é recebido por recepcionistas, que fazem a primeira escuta, geram uma ficha de atendimento e encaminham para técnicos de enfermagem verificarem os sinais vitais, tais como pressão arterial e temperatura. Pessoas com traumas leves, queimaduras menores e convulsões, por exemplo, são sinalizadas com a pulseira amarela, significando que a avaliação, atendimento e diagnóstico devem ser feitos em até 30 minutos. Idosos e gestantes que não apresentem sintomas graves e pessoas com ferimentos menores, doenças psiquiátricas e diarreias são avaliados e atendidos em até 1 hora, com a pulseira verde. A azul é dedicada aos casos que não se enquadrem nas outras categorias e são encaminhados para assistência social e serviços de apoio do SUS. Na prática, a pulseira verde, que define atendimento em até 1 hora, na verdade parece servir mais como um aviso de que o caso só terá atenção bem mais tarde. A unidade atende 24 horas por dia, tanto nos dias de semana quanto aos domingos e feriados, nas áreas clínica, cirúrgica, odontológica e pediátrica. A equipe médica seria composta por 176 profissionais, entre médicos, dentistas, enfermeiros, técnicos de enfermagem e assistentes sociais. Lá, existem seis consultórios e 22 leitos de observação: 12 para adultos, quatro pediátricos, dois de isolamento e quatro para situações emergenciais. A estrutura, planejada para atender 450 pessoas por dia, tem como objetivo reduzir a superlotação nas emergências dos hospitais da Capital, atendendo casos considerados de menor gravidade e que não oferecem riscos imediatos à vida dos pacientes, com o compromisso de encaminhálos para acompanhamento médico aos postos de saúde mais próximos de onde residem, conforme suas necessidades.
De acordo com o coordenador administrativo da UPA Zona Norte, Alvarim de Souza Severo, a implantação da unidade ampliou em 8% o atendimento de pessoas da região, desafogando o Hospital Conceição e realizando em média 400 atendimentos por dia. Ele salienta que se pretende construir mais quatro unidades, mas não consegue esclarecer quando, nem com quais recursos. Assume também que, apesar de os casos de risco serem atendidos imediatamente, os outros podem levar até 10 horas para receberem atenção de médicos. Mesmo assim, defende o local: "A UPA Zona Norte é um exemplo do que deve ser feito em Porto Alegre. Temos sempre ao menos um médico de cada especialidade, 24 horas". Apesar disso, quando questionado sobre quantos médicos estavam atendendo no momento, dia 23 de maio, afirmou que três deles faltaram porque estavam de atestado e não havia nenhum substituto. No dia 15 de abril, uma paciente reclamava que o atendimento poderia levar até 10 horas para ser efetuado e havia apenas um médico clínico geral atendendo. No dia 29 do mesmo mês a recepcionista que atendia na UPA Zona Norte informou que a média de espera para atendimento estava entre três e cinco horas e que havia apenas um clínico geral, um pediatra e um odontologista. Já no dia no dia 2 de maio, às 10 horas da manhã, havia quatro clínicos gerais, dois pediatras, um odontologista e um cirurgião. Neste dia a média era de uma ou duas horas, em geral. “Imagino que as pessoas que chegam a esperar 10 horas para serem atendidas são, na verdade, classificadas com problemas de baixo risco. Mesmo assim, é um absurdo que uma pessoa aguarde todo este tempo em um ambiente que não é nem um pouco confortável. As pessoas estão indo lá por que precisam de algum atendimento médico, mesmo que ela não tenha uma gravidade absurda”. De fato, o conforto não é uma das características que mais se apresentam na sala de recepção da UPA. Os bancos de madeira são duros, e o ambiente é apertado para o número de pessoas esperando. Alguns pacientes reclamam da climatização precária, principalmente em dias de maior movimento. A dona de casa Cássia Lopes, 42 anos, vai com frequência à UPA por problemas respiratórios. Para ela, as pessoas mais idosas são as maiores prejudicadas. "Já acompanhei um senhor mais velho chegar aqui e
receber a pulseira verde. No final do dia ele tinha esperado muito e progrediu até a pulseira vermelha, quando o atenderam", denuncia.
Caos no SUS
As dificuldades não se resumem à urgência na saúde pública de Porto Alegre. Ao ligar para o Hospital de Clínicas, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e uma das maiores referências em bom atendimento na Capital, questionandose sobre o tempo para marcar uma ressonância magnética, a resposta é um triste “ih, o tempo para esse exame é bem longo”. O “bem longo” significa seis meses. Se o pedido for por uma cirurgia no joelho, pode chegar a dois anos. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado em 1988 com a promulgação da nova Constituição Federal, para universalizar o atendimento de saúde a todos os cidadãos. Anteriormente, a responsabilidade pela saúde era de vários ministérios. Com a implantação do sistema, a execução das políticas públicas passaram aos Estados e municípios, abrangendo 80% dos brasileiros. Antes disso, a pupulação era dividida em três categorias: os que podiam pagar pelos serviços de saúde privada, os que tinham direito à saúde pública por serem segurados pela previdência social e os que não possuíam nenhum direito. Segundo dados do Ministério da Saúde, o SUS tem 6,1 mil hospitais credenciados, 45 mil unidades de atenção primária e 30,3 mil Equipes de Saúde da Família (ESF). O sistema realiza 2,8 bilhões de procedimentos ambulatoriais anuais. É como se cada habitante do Brasil consultasse um médico 14 vezes por ano. Além disso, são realizados 19 mil transplantes, 236 mil cirurgias cardíacas, 9,7 milhões de procedimentos de quimioterapia e radioterapia e 11 milhões de internações. Além dos programas e das ações de atendimento especializados à saúde da mulher e dos trabalhadores, as campanhas de vacinação e a realização dos transplantes pela rede pública, foram criadas as Unidades de Atendimento para estabelecer uma realação intermediária entre as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e as portas de
urgências hospitalares, onde, em conjunto, compõe uma rede organizada de atenção à saúde. Com o processo de construção e idealização de todos os serviços prestados, em que se planejou um complexo sistema pensando em possibilidades de atendimento ao longo da vida inteira de uma pessoa, é questionável porque o SUS apresenta tantos problemas e tantas deficiências. Para o coordenador do curso de especialização em Saúde Pública da UFRGS, Roger dos Santos Rosa, a desqualificação dos serviços prestados devese basicamente a questões de gestão e políticas. “Podese notar alguns entraves, mas por exemplo, na questão do fornecimento de medicamentos antiretrovirais para a AIDS, nós tivemos uma evolução muito grande, algo que não acontece com facilidade em outros países”, acrescenta. Para a diretora do SIMERS, os problemas da UPA Moacyr Scliar podem estar ligados ao crescimento da população e, consequentemente, ao aumento de doenças, muitas decorrentes de fatores ambientais. “A violência, o estresse e os casos de dependência química exigem uma estrutura muito mais presente por parte do SUS. Neste momento, este não é só um problema da UPA, mas do governo e de gestão do sistema”, analisa Clarissa. Para ela, melhorar o atendimento passa por uma percepção de que “saúde se faz com gente atendendo gente”. Segundo ela, houve um desaparelhamento do SUS com a pouca valorização dos médicos. “Nós precisamos trazêlos de volta para o sistema de saúde pública. Não existe nenhuma outra categoria que, depois de passar em concurso público com estabilidade, abre mão da sua nomeação para trabalhar no setor privado e isso acontece com a classe médica”, explica. O SIMERS reivindica periodicamente a necessidade de estabelecimento de um bom plano de carreira por parte do Estado. Para o sindicato, a postura do governo durante muito tempo foi a de que se os profissionais da saúde não estão satisfeitos com o seu salário, devem procurar a iniciativa privada. E eles foram. A construção de mais hospitais, principalmente nas regiões mais necessitadas do Estado, seria uma medida que descentralizaria o atendimento em Porto Alegre e
amenizaria as longas esperas. Mas um dos entraves apontados por Rosa, são os gastos com a manutenção e gerenciamento de novos hospitais: “Seria viável logisticamente, mas o custo de construir um hospital talvez seja o menor, se formos pensar que há necessidade de manutenção e que isso sim é muito caro. Manter um hospital por três, cinco ou até mesmo dez anos é algo custoso”. A qualificação dos profissionais também é algo muito difícil. Com o quadro escasso de funcionários, tirar alguém da escala de trabalho para realizar cursos é algo muitas vezes impossível. Além disso, as unidades de pronto atendimento ficam superlotadas de pacientes que, muitas vezes, procuram atendimento para enfermidades que não devem ser tratadas neste ambiente. A falta de serviços de referência faz com que muitas pessoas não consigam consultar médicos responsáveis por tratar casos mais abrangentes, como os clínicos gerais. "Você não pode dizer para uma pessoa que está há semanas tentando entender o seu problema e não recebe atendimento ambulatorial que ela não deve estar na emergência, se é a única possibilidade que ela tem", pondera Rosa. Uma simples dor de cabeça constante que não recebeu a atenção devida pode ser sinal de uma doença mais perigosa, que só vai ser diagnosticada muito tempo depois, quando sintomas mais graves obrigarem o paciente a receber um atendimento de urgência de fato. A situação poderia ser resolvida com apoio de profissionais que se preocupem com a prevenção, o que se torna impossível quando só quem está muito doente recebe prioridade pelo sistema de saúde. De acordo com Clarissa, é necessário garantir a integralidade das ações do SUS, o tratamento equânime dos pacientes e, principalmente, a gratuidade do serviço. “O SUS não foi um sistema que surgiu de dentro dos gabinetes do governo e veio presentear as pessoas, pelo contrário. Ele foi idealizado na reforma sanitária, como uma das primeiras ações de resistência à ditadura. Devemos lutar pela sua continuidade”.