Caderno de tgi1. Gabriel Invernizzi

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Trabalho de Graduação Integrado I

Gabriel Alves Invernizzi


Universidade de São Paulo Instituto de Arquitetura e Urbanismo

Gabriel Al nizzi Trabalho de Graduação Integrado I. Caderno Final O Retorno às Utopias: relações espaciais sob dominância do capital

Orientação Paulo Cesar Castral Manoel Rodrigues Alves

São Carlos Junho de 2014


O Retorno às Utopias relações espaciais sob dominância do capital


Sumรกrio


Preâmbulo ...................................................................................................................................... 5 1. Relações espaciais: a materialidade de são Paulo ............................................ 7 2. Relações espaciais: fundamentos teóricos ........................................................ 17 3. Pensamentos sobre arquitetura e cidade ............................................................ 21 4. Novas configurações espaciais para a mesma cidade ................................ 25

Referências .................................................................................................................................. 41


Pre창mbulo


Traçar, com o mínimo de exatidão, as associações entre a economia e o espaço da cidade não é um exercício simples, sobretudo quando o que está em questão é compreender a lógica de localização das atividades produtivas não como uma opção entre cidades ou regiões, mas sim entre distintos subespaços dentro de um mesmo contexto urbano. Ou seja, uma coisa é compreender por que certas atividades são vistas em São Paulo, e não em qualquer cidade brasileira; outra, é compreender por que elas são encontradas nesta ou naquela área em particular, dentro da mesma cidade. Não cabe, no trabalho que se apresenta, uma investigação detalhada a respeito das múltiplas determinantes da localização das atividades econômicas dentro da cidade de São Paulo; me deterei, assim, na leitura e articulação de dados coletados pelo Ministério do Trabalho e Emprego e espacializados em bases cartográficas pela Secretaria Municipal de Planejamento (SEMPLA) e pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Por sua vez, o aporte teórico, visando o adensamento deste debate, foi buscado no estudo Metamorfoses Paulistanas – atlas geoeconômico da cidade e, sobretudo, nas discussões de Flávio Villaça e David Harvey, acerca da produção do espaço da cidade. Num segundo momento, após pequena reflexão sobre o lugar da arquitetura enquanto conhecimento teórico-prático, coloco em questão a importância das correntes utópicas como possibilidade de se pensar outros cenários para a vida em sociedade, a partir do momento em que faz atritar certas relações que nos são dadas. Em seguida, apresento aquilo que é a síntese do processo, a espacialização desse raciocínio em forma de projeto de arquitetura.

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I

Relações Espaciais: A Materialidade de São Paulo


O fundamental é colocar em evidência os movimentos de deslocamento, aglomeração e dispersão das atividades produtivas da cidade, com enfoque no setor industrial e de serviços; entendendo que são estes que alteram, de forma mais pontual e marcada, a estrutura do território e, portanto, a paisagem da cidade. Por um lado, este enfoque de tipo ‘setorial’, que privilegia o alinhamento das cadeias produtivas, parece perder força explicativa na atual fase do capitalismo, onde a grande indústria tende a pulverizar seus sistemas de produção em muitos espaços diferentes, capturando vantagens locacionais em cada etapa da fabricação dos produtos, enquanto os serviços, principalmente aqueles mais intensivos em conhecimento, aparecem como o elo pelo qual transitam os fluxos de capitais, mercadorias e informações, permitindo que as grandes aglomerações se tornem competitivas dentro da rede de cidades mundiais. Por outro lado, contudo, a dinâmica que unifica processos territoriais e econômicos não pode ser interpretada dentro de um enfoque evolucionista, uma vez que o que está em jogo é a reconversão de toda a estrutura urbana, na qual a decadência de certos polos e o crescimento de outros novos é fruto da reacomodação das atividades econômicas do município. As características urbanas das grandes cidades e sua geografia econômica, portanto, são moldadas por forças dinâmicas, de natureza local e global, que impulsionam a formação de novas configurações territoriais. Essa expansão decorre da combinação entre os requisitos presentes no processo de renovação dos paradigmas produtivos e dos elementos econômicos e sociais presentes na metrópole. De fato, a formação desses novos polos guarda vínculos com a evolução da economia do município: enquanto na fase da economia cafeeira e da expansão industrial a área de comércio e negócios do município teve como núcleo o eixo formado pelo triângulo das ruas São Bento, Direita e Quinze de Novembro, na área central, e incorporou progressivamente outras áreas dos distritos da Sé e República; na fase de industrialização pesada nas décadas de 1950 e 1960, esse núcleo se desloca para a Av. Paulista; e alcança, finalmente, na década de 1990 as avenidas Nova Faria Lima e Engenheiro Luís Carlos Berrini, cujas áreas são tributárias de um novo tipo de desenvolvimento, fortemente ancorado na chamada economia pós-industrial da fase mais globalizada do capitalismo. Mas não se pode deixar de levar em conta o fato de que o núcleo

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decisório das empresas tem alta mobilidade territorial e, a cada fase do desenvolvimento econômico do município, apresenta novos requisitos locacionais que não estão presentes nas localidades mais antigas. Esse deslocamento da centralidade do município, por si só não gera o sucateamento das estruturas urbanas das áreas centrais; porém, quando esse processo vem atrelado à dinâmica do mercado imobiliário e a iniciativas, por parte de Estado, que acabam por privilegiar o capital privado, tem-se, então, um cenário no qual prédios, ou mesmo regiões inteiras, são consideradas “inaptas” para abrigar as novas formas de organização e gestão das empresas e com poucas possibilidades de concorrer com os modernos condomínios empresariais de categoria ‘AA’ que se instalaram nas novas áreas de expansão da cidade. Tal lógica impulsiona o translado das sedes das empresas e dos grandes conglomerados, aprofundando o processo de vacância imobiliária e o esvaziamento econômico e demográfico e reforçando a decadência dos antigos núcleos urbanos. Devido ao perfil muito concentrado da renda no Brasil, o mercado imobiliário opera preferencialmente visando estratos de renda elevada, que se concentra numa faixa particular do território, basicamente inserida no centro expandido, com transbordamentos para a zona Sul e Oeste, o chamado “complexo corporativo metropolitano”. Ao mesmo tempo, as iniciativas do poder público, no sentido de ampliar e qualificar as redes de infraestrutura urbana – tais como transporte, hospitais, escolas, parques – que serviriam para melhorar o acesso das populações residentes em áreas mais pobres aos serviços urbanos, inevitavelmente produzem a valorização imobiliária dessas áreas, o que acaba por expulsar os estratos mais vulneráveis, que se deslocam para novas áreas dentro e, frequentemente, fora do perímetro do município. A concentração espacial das atividades econômicas dentro da cidade favorece a conexão entre a demanda e a oferta de força de trabalho nos estratos médios e altos, mas segrega intensamente os estratos mais baixos, especialmente aqueles que habitam os extremos Leste e Sul do município. O Mapa 1 revela a concentração de oferta de trabalho no centro expandido (ou no chamado “complexo corporativo metropolitano”) em profundo contraste com a concentração populacional das regiões do município. O Mapa 2, por sua vez, demonstra a localização predominante dos empregos em indústria comparativamente aos empregos

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no setor terciário. Por mais que as grandes cidades deixem de ser espaços de aglomeração física das cadeias, para se tornarem espaços de articulação destas várias etapas dos processos de produção, não significa que as atividades propriamente industriais desapareçam dos contextos metropolitanos. A trajetória recente da cidade de São Paulo demostra que, por razões diferentes, atividades industriais tão distintas quanto fabricação de fármacos e de roupas se mantém fortemente concentradas na cidade e que sua localização interna a cidade se mantém basicamente a mesma de décadas atrás, a despeito das importantes mudanças urbanas havidas. Já os setores de serviços apresentam morfologia mais complexa, principalmente pelo número de empresas pessoais ou de pequeno porte, em que as decisões de localização das firmas estão muito condicionadas pelas preferências individuais de seus proprietários quanto ao local de moradia, estilos de vida e consumo. O padrão de localização das atividades industriais apontado anteriormente pelo mapa, mostra, sobretudo, a importância das grandes vias de entrada e saída da região, que a conectam ao interior do estado – principal área de interação econômica da cidade; ao porto de Santos – que a interliga com o mercado internacional; e com o restante do país – cujas conexões econômicas com o município são intensas. Dessa forma, as atividades industriais, e em grande medida também as atividades comerciais de maior escala, projetam-se, no que diz respeito a suas conexões econômicas, para “fora” do município. Segundo Álvaro Comin: “Esta disposição ‘centrifuga’ das atividades industriais parece bastante consistente com as tendências de desconcentração das atividades produtivas e de concentração relativa das atividades de comando, bem como com a enorme concentração do mercado consumidor brasileiro na região. O caráter ‘centrifugo’ dessas atividades não tem a ver com o fato de que elas tendem a se retirar do município, mas, sim, com o fato de que elas dependem de intensos fluxos de bens materiais e se destinam em grande parte ao mercado nacional, suprarregional (Mercosul) e internacional.” (COMIN (Org). 2012. p 18) Em se tratando do setor de serviços, este é o que, do ponto de vista da sua territorialidade, mais radicalmente alterou os padrões de

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Mapa II população e emprego 11


Mapa I indústria e serviços 12


uso do solo na cidade de São Paulo. Diferentemente da indústria, a dinâmica de crescimento do setor terciário é portadora de uma nova configuração territorial, cujo resultado mais expressivo é a conformação do chamado “complexo corporativo metropolitano”. Essa área da capital tem seu poder de aglomeração vinculado a duas grandes forças: A primeira delas está relacionada a lógica de funcionamento das empresas e, portanto, se refere às conexões intra e intersetoriais das cadeias empresariais que se consolidam em função da necessidade de subsidiar a tomada de decisões nas grandes corporações, o que ampliou a necessidade de serviços ultraespecializados em assessoria empresarial, jurídica e contábil, marketing, informática e telecomunicações, entre outros. Por mais que a dispersão territorial das atividades econômicas intensivas em conhecimento tenha se tornado uma possibilidade concreta, a partir das novas tecnologias de informação e comunicação, as relações técnicas e corporativas entre as empresas ainda são pautadas pela necessidade de proximidade física, decorrente dos contatos “face to face”. Em centros como São Paulo, esse processo tem consequências importantes, pois as estratégias locacionais das unidades de comando, altamente especializadas, tanto do setor público, quanto privado, acabam por agir como fator de arrasto para outras empresas, em função da alta dependência dos serviços que fornecem. Já a segunda é própria das políticas urbanas, que são atributos locacionais fundamentais para atração das empresas, fazendo com que estas gravitem em torno do núcleo econômico do município conforme as diversas possibilidades de combinação entre fatores, tais como investimentos públicos em infraestrutura urbana, regulação do uso do solo e mercado imobiliário. Os mapas 3 e 4 mostram essa dinâmica de adensamento dos serviços em uma região específica da cidade, que acaba por se tornar um polo, atraindo outros interesses, como o do mercado imobiliário, por exemplo. Podemos dizer, então, que a localização dos empregos terciários não é só ponto de emprego desse setor, mas também um local de atendimento da população nas suas compras e nos seus serviços. Como bem coloca Flávio Villaça, a segregação residencial só pode ser compreendida se articulada a outros tipos específicos de segregação, a saber, a dos empregos e dos locais de compras e serviços. Segundo o autor:

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“No quadrante sudoeste de São Paulo, concentram-se não apenas os locais de emprego dos mais ricos, mas também seu comércio (seus shoppings), suas escolas elementares e secundárias, as escolas de judô ou natação, os salões de beleza, os hospitais, os parques, os pet shops, as choperias e áreas de diversão (Vila Madalena ou Moema), os médicos, as academias de ginástica, os dentistas... até suas igrejas e cemitérios! Enfim, toda uma infinidade de serviços prestados aos mais ricos. Assim, os mais ricos minimizam os tempos de deslocamento para os locais de diversão, lazer, compras e serviços de todos os membros da família.” (VILLAÇA. 2012. p 64.) De um modo geral, a indústria tende a “imantar” os espaços que ocupa, atraindo atividades aparentadas e repelindo outras formas de ocupação, seja para a residência, seja para os serviços mais especializados e sofisticados. As atividades de serviços, ao contrário, requerem uma maior proximidade entre prestadores e usuários/consumidores finais; o que, por um lado, pode favorecer uma maior diversidade de usos e formas de ocupação, mas, por outro, do ponto de vista dos estratos sociais de mais baixa renda, implica em novo processo de segregação espacial.

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Mapa III serviรงos especializados 15


Mapa IV ensino superior e mercado imobiliรกrio 16


II

Relações Espaciais: Fundamentos Teóricos


Até aqui vimos, dentro de um quadro específico – a cidade de São Paulo – como a lógica interna de gerenciamento das atividades produtivos tem um componente central que diz respeito a organização espacial de suas unidades, e como esse componente é determinante dentro dos processos que constantemente alteram e modificam a geografia da cidade. Se faz necessário, agora, realizar o movimento inverso, tentando ir do particular ao geral, a fim de compreender, no campo da teoria, o desenvolvimento geográfico desigual do capitalismo. Harvey, em seu Enigma do Capital, após afirmar que “a produção do urbano, onde a maioria da população mundial em crescimento agora vive, tornou-se mais estreitamente ligada à acumulação do capital, até o ponto que é difícil distinguir uma da outra” (HARVEY. 2010. P 122) vai desenvolver as bases teóricas para a compreensão da dinâmica geográfica da acumulação do capital. Quando se trata do espaço urbano, o território pode ser compreendido como os processos históricos de espacialização das relações sociais de produção. A esfera territorial, assim, diz respeito ao modo como os homens, através do trabalho, organizam, no espaço, a produção social da vida. Em nossa atual sociedade, regida pelo modo de produção capitalista, os processos territoriais nascem como consequência do imperativo da acumulação. A fim de minimizar os custos de realização do valor da mercadoria e, assim, maximizar os lucros do capitalista, é necessário, reduzir o tempo de giro da produção. Ou seja, além de otimizar o tempo da produção, é preciso também fazer com que a mercadoria chegue às mãos do consumidor com o menor custo de deslocamento possível e, portanto, com o menor tempo de deslocamento possível. Os custos de deslocamentos são importantes, à medida que a expansão do mercado e as relações de troca dos produtos se conectam a isso. Nesse caso, a organização da estrutura territorial vai se dar pela localização “racional” das atividades produtivas, uma em relação as outras, a fim de reduzir em particular os custos de movimentação dos produtos. A necessidade de assegurar a continuidade dos fluxos geográficos do dinheiro, bens e pessoas gera uma das forças mais poderosas que atua sobre a produção do espaço urbano: o controle do tempo de deslocamento, através do controle sobre o espaço. Desse modo, decorre, não só a grande disputa social em torno da produção do espaço urbano, como também a segregação como um mecanismo espacial de

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controle dos tempos de deslocamento. Ao mesmo tempo, a diversidade geográfica, ou seja, a grande variedade de atributos físicos, sociais e culturais, é condição fundamental para a reprodução do capital. Uma vez que não é possível saber se este ou aquele local é capaz de fazer florescer um empreendimento de sucesso, se torna necessário sondar, investigar e arriscar todas as possibilidades afim de descobrir qual delas funciona. A concorrência e competição por lugares específicos, em meio a imensa diversidade do espaço da cidade, impulsiona o processo de expansão geográfica. O capital, altamente móvel nos dias atuais, tem um cuidado muito grande, até mesmo com as pequenas variações nos custos locacionais, pois geram lucros mais elevados. Portanto, não se pode compreender os processos de concentração e expansão geográfica dos centros urbanos, sem compreender as lógicas que os determinam. A bem da verdade, concentração e expansão geográfica são faces da mesma moeda, fruto de um mesmo processo, o processo de acumulação capitalista. Para Harvey: “A paisagem geográfica é igualmente moldada por uma perpétua tensão entre as economias de centralização, de um lado, e os lucros potencialmente maiores que vem da descentralização e da dispersão, por outro. O modo de funcionamento dessa tensão das barreiras impostas à circulação espacial, à intensidade das economias de aglomeração e das divisões do trabalho.” (HARVEY. 2010. p 136.) Quer dizer, existe uma relação de interdependência entre expansão e concentração territorial dos centros urbanos. Para o capital, expansão física territorial significa, na prática, expansão do mercado e, portanto, novas possibilidades de acumulação. Ao mesmo tempo, como já vimos, a acumulação é tão maior quanto mais próximos e racionalmente organizados estiverem os locais de produção e consumo, uns em relação aos outros; logo, concentração das estruturas territoriais é uma exigência. Sendo assim, a urbanização em si se torna um grande negócio para o capital. O processo de produção do espaço unifica as particularidades da concentração e expansão geográficas, ao empregar quantidade significativa da força de trabalho disponível e mobilizar capital excedente acumulado, recolocando-o em circulação e fazendo, com isso, que ele se torne operante e gere lucros novamente.

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III

Pensamentos sobre Arquitetura e Cidade


Acontece que, do ponto de vista da história, os elementos da equação do espaço não são estáticos; ao contrário, são dinâmicos e, por isso, verifica-se uma mudança dos locais de produção e dos mercados, em consequência da alteração dos recursos de circulação e transporte. Tal transformação altera as distâncias relativas entre os locais de produção e os maiores mercados e, consequentemente, provoca a decadência de antigos centros e a ascensão de novos. Dessa maneira, configura-se a paisagem do território. Ou seja, no modo de análise desenvolvido até aqui, a paisagem nada mais é que a “representação” da base territorial, a maneira como a estrutura do território se manifesta no espaço urbano. Assim, a paisagem física do espaço é criada à imagem e semelhança das próprias relações territoriais. Em cada momento histórico, os processos sociais e ou territoriais que fixam atividades produtivas em locais específicos do espaço veem uma redistribuição de seus fatores. Essa redistribuição não é indiferente às condições preexistentes, às heranças de objetos arquitetônicos anteriormente fixados ou ao ambiente construído até então; ou seja, aos resultados de processos territoriais que se acumulam no espaço ao longo do tempo e que ainda se fazem presentes na paisagem. É como se os tempos passados se cristalizassem em formas, seja na arquitetura, seja na paisagem. As formas e a organização espacial que estas estabelecem são frutos de processos territoriais e sociais passados, mas com os quais as novas organizações espaciais das atividades produtivas necessariamente têm que lidar. A arquitetura, por sua vez, é um elemento da paisagem. Muito embora abrigue atividades produtivas, a arquitetura (as arquiteturas ou objetos arquitetônicos) não é determinante na organização dos processos produtivos, nem do território como um todo. As localidades que o são. Assim sendo, este deve ser o limite prático para qualquer proposição arquitetônica que contenha em seu seio a articulação entre crítica social e o próprio campo da disciplina arquitetônica. Enquanto disciplina, a arquitetura engendra saberes específicos que são fundamentais na compreensão de problemas sociais que se manifestam espacialmente na cidade. Contudo, a arquitetura por si só, não tem capacidade, nem competência de resolver esses problemas, uma vez que a origem destes não se encontra em seu campo de autonomia.

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Em outras palavras, a arquitetura, enquanto representação ou manifestação, pode ser uma excelente ferramenta para compreensão da base estrutural (econômica) da sociedade e do território; mas, justamente pelo lugar que ocupa nos processos territoriais/sociais, não tem condições de realizar alterações profundas em sua organização. Por outro lado, a consciência deste limite pode liberar a imaginação e a crítica para percorrerem outros meandros, dentro ainda do largo caminho que tenta articular arquitetura, política e crítica social. Na história da arquitetura, as explorações mais profícuas desta “linhagem” foram identificadas sob o cunho da utopia. Desde o Renascimento, com Filarete e Da Vinci, passando por Boullée no século XVIII, os Falanstérios e Familistérios no XIX, a experiência de Léonidov, na União Soviética na primeira metade do século XX, até a década de 60 quando despontam o grupo Archigram, Yona Friedman, Constant Nieuwenhuys, atingindo a máxima radicalidade com os italianos do Archizoom e Superstudio, as propostas “utópicas” parecem conter em comum uma espécie de contradição inerente aos seus processos criativos: por um lado tencionam até o limite do possível a realidade dada; ao mesmo tempo são sempre factíveis, quando se considera os recursos técnicos, científicos ou mesmo econômicos da época para qual foram pensados. A ambivalência contida no centro desses projetos, ao friccionar aquilo que é estritamente necessário com o possível imaginado, o absurdo com o factível, inevitavelmente coloca a possibilidade – ainda que no nível da imaginação – de uma cidade outra em uma sociedade outra. É precisamente este aspecto que, antes subentendido, se revela através da contradição inerente a esses projetos: a possibilidade de se pensar uma nova sociedade. Finalmente, partindo, por um lado, da abordagem teórico-metodológica aqui apresentada e, por outro, da atualização das experiências que na história da arquitetura foram cunhadas de “utópicas”, procuro através deste trabalho, espacializar um raciocínio sobre arquitetura e cidade e que tem como substância os próprios processos territoriais que estruturam o espaço urbano contemporâneo.

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IV

Novas Confugarações Espaciais para a Mesma Cidade


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Lançamento de uma grelha ortogonal, racional, com espaçamento de 4000 metros entre eixos. Em cada cruzamento da quadrícula se localiza uma torre de 440 metros de altura e 1 hectare de área de projeção; as linhas que ligam um nó a outro são vias expressas, de 40 metros de largura, elevadas 210 metros do solo. A esta megaestrutura serão transferidas as grandes atividades econômicas que sustentam a cidade

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implantação geral

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A localização das atividades produtivas não mais se vincula ao solo urbano, portanto não mais é condicionada pela necessidade de escolha precisa dentro da imensa diversidade geográfica da cidade. A distribuição homogênea dos grandes núcleos de produção e consumo pela cidade permite a distribuição homogênea também da população urbana, uma vez que a cada 2800m – raio de influência de cada torre – existe um polo que atrai trabalho, serviços e consumo

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esferas de influĂŞncia

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Os grandes edifícios tocam o solo de forma abrupta, quase que negando a cidade original, ao exercer todo seu peso. Não obstante, a presença ostensiva do sistema de torres reorganiza o território, pelas funções que aloca, bem como redesenha e confere unidade a paisagem urbana, uma vez que a articulação de seus ponto é visível de qualquer lugar que se olhe

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o edifĂ­cio e a cidade

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Cada torre abriga as funções de produção, comércio e serviços, não só criando novos postos de trabalho, mas, sobretudo, transferindo os grandes mercados (shopping centers, lojas de departamento, supermercados, etc.), as grandes empresas e corporações (desde consultorias até planos de saúde, passando pelos aparatos políticojurídicos do Estado – que irão regular as atividades – e estabelecimentos de ensino que garantirão a reprodução da força de trabalho) e as indústrias para a megaestrutura, liberando imediatamente as antigas estruturas que abrigavam tais usos para sua reconversão em habitação

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indústria

serviços

serviços

comércio

funções

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No topo, o setor produtivo, as indústrias de manufatura, o coração que mantem o sistema sempre pulsante e ativo. Encostando o solo e em relação direta com a cidade, se encontram as atividades de comércio, onde a produção se realiza no consumo, fechando o ciclo, portanto a base do sistema. No centro, os serviços fazem o intermédio entre produção e consumo; é a graxa que mantém as engrenagens do sistema sempre bem lubrificadas e operantes. Por fim, as grandes vias elevadas são responsáveis pela circulação de toda sorte de mercadorias – incluindo força de trabalho – pela cidade

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produtos forรงa de trabalho

fluxos

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Funcionando em 100% de sua capacidade, cada torre abriga 60.000 postos de trabalho; num cenário onde 60% das atividades econômicas se localiza na megaestrutura, é possível empregar toda a população economicamente ativa da cidade ao alocar um contingente de 120.000 pessoas para cada uma das cerca de 80 torres; isso significa dobrar a oferta de trabalho de toda a cidade, o que permite diminuir a jornada para 4 horas diárias ou 20 horas semanais

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uso do solo urbano

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ReferĂŞncias


COMIN, Alvaro (Org.) et al. Metamorfoses Paulistanas: atlas geoeconômico da cidade. São Paulo: SMDU: CEBRAP: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2012. HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume. 2005. _____________ O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo. 2011. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp. 2009. VILLAÇA, Flávio. Reflexões sobre as cidades brasileiras. São Paulo: Estudio Nobel. 2012.

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