Heterotopias e Transgressão na Arquitetura: Os Jardins do Minhocão

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HETEROTOPIAS E TRANSGRESSÃO NA ARQUITETURA OS JARDINS DO MINHOCÃO

Gabriel Ribeiro


HETEROTOPIAS E TRANSGRESSÃO NA ARQUITETURA os jardins do Minhocão

Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenize

Orientadores: Cesar Shundi e Marcos Carrilho

Gabriel da Silva Martinez Ribeiro São Paulo 2020


Banca Examinadora _________________________________ Prof. Dr. Cesar Shundi Iwamizu _________________________________ Prof. Dra. Helena Aparecida Ayoub Silva _________________________________ Prof. Ms. Daniel Corsi da Silva

RESUMO O presente trabalho busca uma abordagem projetual embasada nos conceitos de heterotopia de Michael Foucault, assim como transgressão e erotismo em Bernard Tschumi. Para tanto, o Minhocão é posto como objeto de estudo e área de intervenção, em conjunto com outras referências pertinentes ao tema.


Parcerias Revisão da Introdução e Capítulos I e II:

Marie Henry

Consultoria de softwares:

Bruno Futema

Capa e Encadernação:

Renata Bruni | Débora Silvério

Fotografias de modelos físicos:

Gihad Arabi


AGRADECIMENTOS

Mãe, pelo amor Pai, pela razão Letícia Godoy, pelo despertar Rubem, pela irmandade Mau, Breno, Vander, pela marca Mamá, pelo amor fraternal Venise Melo, pelo compartilhar Felipe Rodrigues, pelo whisky Rafa e Renan, BORA Shundi, por acreditar Corsi, por ensinar

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 I ESTUDOS PRÉVISO

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REFERÊNCIAS DE PESQUISA

os jardins do MARECHAL107

III TRANSGRESSÃO 125 VIDA E MORTE 125

PROJETOS EXEMPLO 34

projetos acadêmicos - 8°sem.

concurso “Imagine Parque Minhocão” 38

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Parc de la Villette Bernard Tschumi Paris 1987 127 OS JARDINS DO MINHOCÃO 10 mirante SÃO JOÃO 138

IV CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ENSAIOS 41

II HETEROTOPIAS corpos & outros espaços 53 CORPOS 53 corpo, EMPENA 58 antes do CORPO72 OUTROS LUGARES 74

A BUSCA POR HETEROTOPIAS

Gordon Matta-Clark: Fake States

Croquis Patrimoniais no Minhocão Atelier BOW-WOW

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Renata Lucas 86

MAIS OUTROS LUGARES - Margareth Rago

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OUTRAS HETEROTOPIAS 94 A casa de Jajja 94 The Slab Stack 100

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“A convergência do pensar prévio com o prazer produz o Deus” (JUNG, 2015, p.170)

INTRODUÇÃO

Mais um exercício de projeto arquitetônico no Minhocão, no Elevado Pres. João Goulart, antes Elevado Costa e Silva, às vezes Parque Minhocão. Como objeto de estudo, o viaduto já foi seccionado em inúmeros cortes, teve diversas projeções planificadas, ideias que viraram discussões, que voltaram a rabiscos, originaram os primeiros croquis, foram sabatinados em palestras, debates, concursos, livros, textos acadêmicos etc. Já foi hipoteticamente demolido, repartido, subtraído em

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frações ou, no todo, acoplado a outros corpos, e teve sua carga aumentada pela adição de mais massa. Renderizações e desenhos experimentaram traçar seu futuro. Projetos já ocuparam os lotes no seu entorno, praças foram requalificadas e novas surgiram, estruturas de apoio foram adicionadas a ele, seja como parque ou avenida. E ainda muitos outros irão contar histórias fictícias, projeções de vontades voláteis na medida do tempo, sempre em busca da solução ideal, contextualizada, seguindo os valores construídos em sociedade. Essa “cicatriz urbana” ou “monumento entrópico”, segundo Rafael Henrique Neves em sua dissertação de mestrado pela Unicamp, em 2017, “(...) espalham-se sobre o território urbano. Não emergiram através de forças centrais, mas da adaptação interativa do meio, onde o objeto se adapta ao ambiente”. Para Neves, o Minhocão como monumento entrópico: (...) não ressalta a história, um objeto do caos, genérico, advém da experimentação das diversas manifestações espontâneas da infraestrutura, não desenhado para tal intento. Sua concretização como monumento não emerge da forma como conteúdo acabado permanente, mas das ações imprevistas, de baixo para cima, que subverteram a condição original da via (NEVES, 2017, pg.133).

É um vórtice para nossos dilemas urbanos, palco tanto de um cotidiano cansado pelo sistema socioeconômico, quanto alvo dos discursos mais a quem da realidade socioeconômica, “um importante catalisador das ações humanas sobre o espaço urbano” (NEVES, 2017) e,

se dissipa, que se revela complexo em todo o seu corpo. A infraestrutura parece convergir todas as aspirações e decepções de se pensar a cidade; por um lado, a proeza da engenharia e do progresso tecnológico, por outro, a decadência do desenho urbano harmonioso. Um monumento da ambiguidade, onde teoria e prática, plano e acaso ficam a planar a procura da gravidade existencial de um ícone, mas que apenas revela-se às avessas. (NEVES, 2017, pg.28).

O viaduto também é palco de debate politizado, sejam quais forem os discursos. É, justamente, criação política, exercício de uma força descomunal, compatível à época de sua origem, nos anos 1970: uma imposição com roupagem democrática passou por cima de bairros, tornando-se muro divisor, autopista para veículos abaixo e, acima, laje para quem não tem teto. Muito é possível encontrar quando vasculhamos por suas sombras. Tudo que ele é e que desejam que ele seja torna-se terreno fértil para outros olhares. Há tentação em procurar resolver seus problemas, aproveitar seus espaços lindeiros, juntar legislação urbana com criatividade e então projetar mais uma potencial resposta para a região. Mas esse é um movimento que incomoda. Apesar de muito planejamento, tudo o que surgiu de fato ao seu redor, foram edificações que satisfizeram seus patrocinadores, supostamente dentro dos limites legislativos.

(...) um colossal cenário que ao mesmo tempo converge e

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À luz de todos esses cortes, adições e supressões de seu volume impositivo, a intensidade do Minhocão é também convite para que não se exerça o que é esperado de uma arquitetura conformada. O particular do presente estudo está na potencialidade de olhar a cidade fora da perspectiva usual na qual a arquitetura é um instrumento de consolidação da ocupação do solo. Em um trabalho final de graduação, o método costuma seguir o seguinte padrão: escolha da área, análise cartesiana, escolha do lote e desenvolvimento da arquitetura. Essa lógica evidencia a racionalização dos elementos constitutivos da cidade, resultando em diversas camadas planimétricas. Os objetos arquitetônicos são projetados, então, em função dessas análises, com o apelo modernista para a resolução final pelo arquiteto ou arquiteta. Fora do trabalho acadêmico, projetos arquitetônicos são lançados como produtos financeiros (ROLNIK, 2009) e publicitários, sendo projetados como objetos de desejo, cujo único fim é o consumo. E consumir não significa necessariamente desfrutar, mas também, no momento da transferência da posse, a alienação do bem privado, passado, de um para outro, o esgotamento imediato do ato, finalizando seu propósito e deixando para trás o germe da próxima vontade. O desejo perde seu significado anterior e se esvai. Como exemplo, condomínios residenciais para a classe média, onde são comuns os espaços que ocuparam os folhetos de modelos renderizados passarem de sonho a pesadelo, quando o memorial descritivo, preparado para a eventual judicialização, não contemplava as imagens apresentadas a seus compradores. Ou, mesmo quando compatíveis, projeto ideal com concretizado, o desejo ainda não se dá por satisfeito, sendo apenas deslocado ao próximo objeto

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de consumo. Ao capital, interessa apenas o lucro, a consumação máxima da sua promessa. Tais projetos também cumprem sua clara função social na dinâmica na qual se inserem: chegam os tapumes que antecedem a demolição do que há no espaço demarcado. Erguese o estande de vendas e, depois, o prédio. Presente desde o começo, a renderização do futuro empreendimento apresenta-o isolado, rodeado de áreas verdes e a cidade ao fundo, como vista deslumbrante. E mesmo sem a apelação de recursos publicitários, estando finalizado, o objeto transmite à cidade sensação semelhante àquela entregue aos seus proprietários: o vislumbre de um consumo imediato, seguido de obsolescência programada e, por fim, o destino inevitável de se juntar aos seus iguais nas prateleiras empoeiradas dos empreendimentos urbanos. Essa prática serve ao sistema econômico vigente e se desenvolve conforme sua necessidade. Não à toa passou a ser incorporada ao mercado a requalificação de prédios antigos para moradia ou serviços – tudo começa com sua inviabilidade econômica. Anos abandonados, tais peças de patrimônio imobilizado melhor seriam caracterizadas como patrimônios intangíveis, pois são inalcançáveis e de nada servem, apenas à avareza Aprisionados no próprio sistema que os incorpora, eles atraem outro recurso ignorado: o ser humano na condição de miséria econômica. A ideia de habitar imóveis abandonados como moradia passa a ocupar, portanto, a mente daquele que é excluído das possibilidades econômicas. Em um processo de resistência à lógica vigente, movimentos são organizados em torno da pauta do direito à moradia. Trava-se uma luta em que as instituições governamentais costumam hora apoiar as súplicas

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de quem quer um teto, hora as ordens do capital, o que retrata a configuração da política atual. Neste embate, o triunfo do capital vem em sua capacidade de adaptação, sequestrando a criatividade que procurou enfrentalo. Depois de originar suas próprias intempéries, resíduos do seu propósito maior, o crescimento, suas válvulas de descompressão, caracterizadas em revoltas, movimentos, etc., utilizam a criatividade (instrumento movido por esperança) nestes lugares desprezados pelo capital. Então, após a exaustão das peças destas válvulas, sob intensa pressão sistêmica, a criatividade é incorporada pelo capital, recebendo de imediato seu uniforme publicitário, que deturpa o que antes era necessidade, em desejo. As insatisfações geradas pelo reconhecimento da situação descrita anteriormente, fazem surgir questões estruturais para o desenvolvimento do trabalho de finalização de graduação: por que escolher uma área, aplicar os métodos de análise, escolher um lote e desenvolver uma arquitetura, se o emprego da criatividade é historicamente incorporado ao sistema vigente? Nesse sentido, (...) Com a falência da ordem racional na organização do mundo moderno, vê-se frustrada uma das últimas possibilidades de reconstituição de um sistema de valores fixos capaz de ancorar a produção, e, como consequência, encontra-se igualmente frustrada a chance do homem em afugentar o sentido da angustia. A civilização experimenta portanto, então, um estado de ânimo absolutamente afetado por um sentido de impotência e negatividade (MENDONÇA, 2000).

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Aqui, serão abordados tanto conceitos sobre esta

máquina sistêmica constituída pelas dinâmicas globais, quanto sobre o entendimento dos topos sob ótica foucaultiana, abordando as utopias concretizadas, ou heterotopias, e como hoje se revelam em partes englobadas pelo capital. Margareth Rago contextualiza, para as lutas das minorias, o conceito de heterotopia. O dilema exposto anteriormente parece não oferecer saída, mas a compreensão da lógica sistêmica e optar pela ação, se faz mais necessário que o temor de sua incorporação eliminatória. Seguindo por esse caminho, serão apresentados exemplos de rompimento da lógica, tanto nas perspectivas de leitura dos lugares, quanto em soluções que buscam uma alternativa econômica ou fuga da realidade em busca da transcendentalidade por meio da beleza, seja no campo ideal ou em intervenções concretizadas. O suporte teórico à quebra da lógica vigente neste trabalho vem, principalmente, dos estudos de Bernard Tschumi, com provocações de Neil Leach a respeito do conteúdo político dentro da estética. O método não pôde ser outro, senão o da compilação das derivas permitidas nesta quarentena, e, principalmente, a aceitação de uma deriva interna. Nas próximas páginas, tal experiência estará exposta enquanto parte da leitura e entendimento do processo projetual. Os achados não serão postos em uma cronologia linear, mas, sim, em um sentido de amarração narrativa em conformidade com a vivência, que nada tem de serial. Surgirão análises de outros projetos desenvolvidos, construídos ou não – estudos dos lugares que se faziam pertinentes ao desenvolvimento da sensibilidade necessária para responder à indagação do sequestro da criatividade pelo

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capital. Buscando ultrapassar concepções políticas e repensando conceitos em arquitetura, a liberdade do projeto apresentado, é, por si só, uma experimentação de desapego, pois a verdadeira beleza foi encontrada no processo deste trabalho.

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2018 - 2019 2020 -

2015 - 2018 2019 - 2020


I ESTUDOS PRÉVIOS As páginas anteriores contêm um tipo de mapa comum ao estudo urbanístico, chamado mapa Nolli, mas que não está corretamente ilustrado, pois não contempla a permeabilidade dos térreos. É comum encontrá-lo também como “mapa de cheios e vazios”. Uma de suas utilidades é a verificação das formações urbanas, possibilitando as análises necessárias para evidenciar, por exemplo, as diferenças entre uma cidade renascentista italiana e uma modernista, como Brasília.

Fazem-se necessárias duas observações sobre os mapas: 1) A respeito da composição dos elementos e informações do primeiro mapa: com a área abordada nesse trabalho

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em mente, ao suprimir o minhocão e a explicitação da escala, o leitor inicia uma busca mental para identificar o espaço observado, associando-o a representações guardadas em sua memória. A clareza vem na sequência dos mapas seguintes, reforçada pelo isolamento do minhocão no segundo mapa e concluindo com a sua inserção, no terceiro mapa. O exercício descrito anteriormente representa uma das definições de espaço abordadas por Bernard Tschumi em O Paradoxo da Arquitetura, de 1975. O autor aborda a arquitetura enquanto cosa mentale, questionando a própria natureza do espaço e propondo uma experiência, portanto, fora dele, a nível mental. O que constitui o paradoxo é a grande diferença entre o espaço idealizado e o espaço real, aquele constituído da práxis social (TSCHUMI, 1996). Mais à frente será discutida a importância da compreensão de ambas as possibilidades desse espaço e o consequente resultado projetual.

Este tipo de representação foi escolhida a fim retomar a ideia do sequestro da criatividade realizado pelo capital, direcionando as ferramentas de estudo para a lógica mercadológica. O sistema atual se beneficia de uma anestesia intelectual, onde o movimento de ignorância do significado de um objeto é acobertado por um discurso de validação estética. Sob essa ótica, “a embriaguez da estética conduz a uma estética da embriaguez, e a conseguinte diminuição da consciência crítica” (LEACH, 2001). É preciso estar atento, portanto, à simplificação da análise de mapas Nolli como apenas de “cheios e vazios”, pois tal movimento pode levar a conclusões superficiais: onde há vazios espaciais, há a propensão em se realizar algo; onde há vazio de função econômica, a mesma propensão. Para exemplificar as insatisfações geradas por abordagens simplistas do espaço também cometidas por profissionais de arquitetura e urbanismo, munidos de ferramentas ultrapassadas e conservadoras de análise e desenvolvimento projetual, seguem dois trabalhos desenvolvidos em grupo, no segundo semestre de 2019. Os projetos variam na escala abordada (metrópole/bairro), mas são ambos na área do Minhocão.

2) Os edifícios representados destacados no terceiro mapa, não legendado, são os edifícios em que o autor residiu, de 2015 até o momento. Para este trabalho, além da relevância de estudos teóricos e do resultado atingido, é evidente a importância da vivência do espaço como parte do processo, ideia trabalhada também por Tschumi.

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REFERÊNCIAS DE PESQUISA Este trabalho não se debruça no “olhar cartesiano”, conforme designado por André Martins Nogueira, em sua dissertação de mestrado de 2016, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assim como André, outros pesquisadores realizaram tais análises, além de levantamentos históricos, artísticos, culturais, movimentos sociais, etc. Durante o trabalho serão mostradas partes de outros estudos desenvolvidos na mesma área ao longo dos anos da graduação deste autor, os quais culminaram na decisão por não realizar e expor tais tipos de pesquisa, em acordo com a decisão da abordagem que se pretendeu. Fica um breve catálogo de documentos recentes que abordaram o Minhocão como objeto de pesquisa, a fim de encaminhá-los ao leitor interessado no assunto. No estudo destas obras, fica clara a conclusão dos autores referente a tais pesquisas, marcadamente nos mestrados de Neves e Nogueira, assim como nos tccs de Maia e Smelstein, e nos temas principais abordados pelas autoras Cintia Marino e Maria Guillén, os quais entenderam que “’parece existir uma incongruência entre a ‘realidade’ do fenômeno urbano, que é complexa e não-linear, e a aplicação dos métodos de planejamento urbano, em grande medida deterministas, lineares e reducionistas’. Contrariamente aos ideais reducionistas das grandes narrativas, a cidade, como corpo complexo, marcado por uma diversidade de inter-relações de seus personagens, condiciona a apreensão da organização com outro modelo que não suprime as qualidades (ou ao menos algumas qualidades) desconhecidas de agentes estressores além das abordagens modernistas”, completa Neves, ao citar Samuel

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Santos. Os trabalhos abaixo estão devidamente referenciados na Bibliografia. Seguem aqui organizados de modo a facilitar o escaneamento do QR code, por título, seus respectivos autores e meios de acesso rápido às referências: O DESCORTINAR DA ARQUITETURA ATRAVÉS DO METAPROJETO Rafael H. Neves

ELEVADO COSTA E SILVA: DO ARTEFATO AO ARTIFÍCIO André M. Nogueira

VERTICALIZAÇÃO E MODERNIDADE: SÃO PAULO 1940-1957 Taís L. Okano

A RESSIGNIFICAÇÃO DO ELEVADO: PERSPECTIVAS SOBRE O VIADUTO JOÃO GOULART Felipe Fachini Maia (indisponível para consulta online)

MINHOCÃO À DERIVA: O ELEVADO (DES)CENTRALIZADO Marcel Smelstein

MINHOCÃO E ARREDORES: CONSTRUÇÃO, DEGRADAÇÃO E RESILIÊNCIA Eduardo L. L. Assunção

CIDADE EM FESTA, CIDADE EM DISPUTA Cintia E. C. Marino

SOB[RE] O MINHOCÃO: APROPRIAÇÕES, ARTE E FESTA Maria I. C. Guillén

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PROJETOS EXEMPLO projetos acadêmicos - 8°sem. Este exercício de planejamento urbano visava primeiramente a compreensão da área para, então, fazer uma proposição urbanística para o viaduto. O grupo propôs a permanência do mesmo, transformando-o em parque com um VLT (veículo leve sobre trilhos) disposto ao centro. Foram distribuídos elementos de transposição para o parque, como é de costume à maioria das propostas feitas para a área. Desenvolveu-se mobiliário urbano, projetou-se áreas verdes e se considerou a acessibilidade, elementos supostamente focados no uso atual do Elevado. Tais elementos se revelaram contraditoriamente limitadores das atividades identificadas no espaço, pois buscavam uma definição higienista de qualidade de vida, apelando à estética publicitária e tendo apenas alcançado uma possibilidade de investimento econômico.

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Em outro projeto, seguindo a lógica da ocupação do espaço vazio, porém buscando a integração dos resquícios existentes, propôs-se conectar edifícios tombados a uma nova praça interna pública por meio do programa apresentado: fruição no térreo atraída e alimentada pela disposição de comércio, com uma área pública que se adequa à escala do lugar em relação à rua e aos edifícios vizinhos. Faz-se, também, a conexão entre o Elevado e o térreo por meio de um ponto atrativo – um cinema –,recurso muito comum em projetos idealizados para a área. A manutenção dos prédios históricos se dá, portanto, por um arranjo programático econômico-cultural. Ocupando o fundo dos lotes, separados pela praça interna criada, foi proposto um prédio empresarial e um museu.

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concurso “Imagine Parque Minhocão” No mesmo ano de 2019, porém no semestre anterior, foi lançado o concurso Imagine Parque Minhocão, pela plataforma Projetar. org, em parceria com a Associação Parque Minhocão. Aberto a estudantes e profissionais, focava-se estritamente na realização de um parque, com tendência à manutenção da estrutura do Elevado. O resultado, em geral, valorizou projetos que trabalharam a disposição de elementos de paisagismo e mobiliário e o arranjo de atividades comuns a parques contemporâneos. Em conjunto com Breno Quaioti, Bruno Futema e Maurício Addor, o trabalho apresentado focou em dois pontos: estruturas para suporte ao parque e o Minhocão como suporte às atividades que já ocorrem em seu espaço, adequando apenas o piso e inserindo elementos que ressaltassem a conexão do parque com a cidade, ou o “enquadramentos de uma obra viva”W – como dito no memorial. A permeabilidade proposta, por sua vez, é característica pouco comum à implantação de parques, vistos como refúgios da agitação metropolitana e não seus interlocutores. No esforço de análise das relações entre os visitantes do parque e a cidade, propôs-se, segundo o memorial, “um respiro em meio à rotina frenética dos habitantes, ao mesmo tempo, que se apresenta como um marco de reflexão sobre os caminhos tomados pela própria cidade ao longo de seu desenvolvimento” (PROJETAR.ORG, 2019). Entendeu-se a condição do Minhocão como “não somente agente, mas também testemunha participante e confidente da história da capital paulista” (PROJETAR.ORG, 2019).

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ENSAIOS elementos construtivos / relacionamentos humanos Da realização do projeto para o concurso já existiam algumas percepções sobre a ideia de espaço. Quando se caminha no Minhocão, é possível perceber as suas poucas limitações: as fronteiras laterais se conformam na altura de 9 metros até o chão, uma barreira psicológica; o piso asfáltico, ocupando toda a largura da via, é pouco confortável para atividades de permanência; e as faixas de trânsito auxiliam, com eficácia, o convívio entre ciclistas e transeuntes. O elemento central chama atenção e será visto com mais atenção no capítulo final. As atividades que ocorrem no Minhocão são facilitadas pelos elementos construtivos existentes. Da relação “atividades humanas” com “elementos construtivos”, podemos passar a chamá-los de elementos arquitetônicos. A seguir são apresentados alguns ensaios realizados durante este processo, tendo como ponto central os elementos construtivos do Minhocão, sendo uns tratados separadamente e outros pensados como massa única em seu relacionamento com as arquiteturas vizinhas, com o espaço ao redor, com outros novos elementos , em seu relacionamento com as pessoas e como suporte total.

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As duas primeiras imagens vêm da reflexão do que a inserção de um simples elemento arquitetônico pode alterar no espaço – quais relações antes não existentes ele pode originar, ou quais ele pode modificar ou subtrair? Certamente que é impossível prever todas as relações, mas a inserção tende interromper qualquer inércia que possa existir. As feiras de rua, como a feira de Santa Cecília, que ocorre todos os domingos na Rua Sebastião Pereira, são exemplos típicos de como tais elementos dão suporte a potenciais alterações na dinâmica social.

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O próximo ensaio explorou o relacionamento da laje do Minhocão com as perspectivas mais comuns a ele: sua parte de cima e sua parte de baixo. Quando próximo a edifícios nos dois lados, parece crescer uma sensação de estar dentro de um túnel – os sons reverberam mais, a umidade é notável, raramente sentimos o calor compatível com o dia, a poluição é mais perceptível, os cheiros são desagradáveis e intensos (óleo, excrementos, fumaça) e os automóveis parecem dominar o ambiente. Sobre a laje, emparelhados por edifícios, vem a sensação de vivenciar um vale – convidando o olhar ao fundo, criando a sensação de um horizonte mais distante. Tal percepção se faz acentuada no trecho entre a Praça Marechal e a Rua Helvétia, com composição destacável na vista para a Av. São João, onde, após um breve respiro, o vale se prolonga até o protagonismo do prédio conhecido como Edifício Banespa. Em sequência, um experimento com possibilidades de arranjos das vigas do Minhocão, em alusão ao seu desmonte, como marco e memória do que fora antes. O levantamento de perfis dos edifícios sugere a escala. Estes arranjos poderiam ter propósito de outros edifícios, marcar o desenho urbano ou, simplesmente ser um epitáfio, num decreto similar ao apresentado por Chris Burdem em Inhotim, em sua obra Beam Drop (2008). Por último, após serem reunidas imagens de acontecimentos tanto sobre quanto sob a laje do Minhocão, estas foram impressas e coladas em peças individuais, permitindo a composição aleatória ou arbitrária, o que reflete o entendimento a respeito dos diversos acontecimentos que ali se dão.

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Quero um trabalho com um cinema, onde eu vá quando for proibido, nunca quando for permitido. Quero uma casa com meus mortos, para descansar ao lado dos que já me colocaram inúmeras vezes para repousar, e agora dormem para sempre. Quero meu jardim no meio da rua - pra ser meu e de mais ninguém que não queira um jardim para os outros. Quero minha escola de samba parando o trânsito, travando o fluxo das mercadorias, interrompendo a linha da produção, carnavalizando e escandalizando o pudor que nos amarra com juntas e nos faz o gado de cada dia. Quero a minha cama ao lado da sua.

II

HETEROTOPIAS corpos & outros espaços CORPOS Os exercícios apresentados são alguns dos que compuseram aqueles cadernos que carregamos para esboçar e escrever nossos pensamentos – o cumprimento do espaço imaginário, relembrando Tschumi. Ao mesmo tempo, surgiam questionamentos acerca da relação da arquitetura no lugar: Qual seu significado? E seu papel? Seria função ou arte? Deveria auxiliar, suportar, modificar ou criar novos espaços? Dessas questões parece surgir a ideia de que a arquitetura compõe os espaços, afinal, sem elas, seria possível o espaço? Estas e outras indagações são minuciosamente exploradas por Tschumi nos textos O Paradoxo da Arquitetura e Questões sobre Espaço, ambos do ano de 1975. Uma das definições exploradas sobre Arquitetura é a de Hegel, a qual Tschumi explica como sendo qualquer coisa

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que não apontasse para a utilidade, ou seja, um suplemento artístico. Talvez possamos, a partir disso, supor que Arquitetura seriam anexos às engenharias, ou mesmo suporte, anterior a elas, seja física ou conceitualmente. A princípio, parece idêntico ao conceito elaborado por Tschumi sobre a inutilidade na Arquitetura. Para explorar tal conceito de inutilidade, o autor cita Quaremère de Quincy: “dentre todas as artes, aquelas filhas do prazer e da necessidade, com as quais o homem formou parceria a fim de ajudá-lo a suportar as dores da vida e transmitir sua memória a futuras gerações...” (TSCHUMI, 1996). Frente à compreensão de haver um consumo desenfreado de Arquitetura, em que “O projeto arquitetônico se reduz a um jogo de formas vazias e sedutoras, e se apropria da filosofia como verniz intelectual para justifica-las” (LEACH, 2001), Tschumi define: (...) claro, a arquitetura irá salvar sua natureza peculiar, mas apenas quando ela se questionar, quando negar ou perturbar a forma que a sociedade conservadora espera dela. Novamente, se ultimamente houve alguma razão para se duvidar da necessidade da arquitetura, então a necessidade da arquitetura pode bem ser a sua não-necessidade. (TSCHUMI, 1996, pg.88).

A Arquitetura é realizada justamente quando procura romper com a anestesia infligida pela saturação da estética vazia. Para Leach, esse problema interfere diretamente no processo de projeto: Assim como o olho do arquiteto, não há nada mais

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inocente que o lote que é dado ao arquiteto para construir, ou que a folha de papel em branco, na qual desenha seu primeiro esboço. Seu espaço ‘subjetivo’ está carregado de significados demasiado objetivos. É um espaço visual, um espaço reduzido a cópias, a meras imagens, a esse ‘mundo da imagem’; que é o inimigo da imaginação. (LEACH, 2001, pg.28).

Quando é dado um lote, diversas referências são buscadas no armazenamento de nossa memória. Procuramos aquelas que ganhariam nossas curtidas nas redes sociais, mas que se fazem vazias. Seguindo o processo, mais projetos vazios são criados, as imagens então publicadas nas redes sociais e assim se caracteriza um processo retroalimentador.

É preciso dar passos atrás para identificar as questões principais e então questioná-las, sem o risco de perder-se em um vórtex – em Arquitetura, o espaço, sua abstração fundamental. É necessário compreender como ele existe, suas condições, o que o faz acontecer. No meio de tantos caminhos filosóficos que mais se assemelham aos corredores infindáveis e mal iluminados descritos por Kafka em O processo, Michael Foucault abre uma porta. Das conferências realizadas em 1966, temos O corpo utópico e Heterotopias, e, em 1967, De outros espaços. No primeiro texto, Foucault começa falando de seu corpo, “o lugar que não posso mais escapar”, que “está aqui, irreparavelmente, jamais em outro lugar”(FOUCAULT, 2013a), e nessa linguagem claustrofóbica, adiciona, porém com certa glória: “meu corpo é

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o contrário de uma utopia, é o que jamais se encontra sob outro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo.” (FOUCAULT, 2013a). Nessa filosofia em forma de beleza, o corpo é definido como lugar, prisão, espaço finito, porém absoluto, retornando à singeleza de ser corpo. No discurso, insatisfeito com seu corpo, Foucault acentua que, “realmente nada belo”, ele ainda nota seu corpo, diariamente. O próprio corpo não cai na indiferença, diferente de espaços externos, “como as chaminés”. “Meu corpo é o lugar sem recurso ao qual estou condenado. Penso, afinal, que é contra ele e como que para apagá-lo que fizemos nascer todas as utopias”, estas que são o “lugar fora de todos os lugares” (FOUCAULT, 2013a), para então considerar que a primeira utopia do homem possa ter sido um “corpo incorporal” – a alma. Adiante, começa a tomar forma o relacionamento do corpo com o que é externo a ele:

estar lá onde estará nosso cadáver, se considerarmos que o espelho e o cadáver estão, eles próprios, em um inatingível outro lugar, descobrimos então que unicamente as utopias podem fazer refluir nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo. (FOUCAULT, 2013a, pg.15)

E entre a morbidez e o conformismo, esboçando nossas tentativas de alcançar a fuga do próprio corpo, Foucault exalta o outro, o outro corpo, o relacionamento, o existir percebido em seu máximo apenas na condição da existência alheia. Aqui, de forma inevitavelmente integral, a conclusão: Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é sentir o corpo refluir sobre si, é existir, enfim, fora de toda utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que nos percorrem, todas as partes invisíveis de nosso corpo põem-se a existir, contra os lábios

Meu corpo, está de fato, sempre em outro lugar... Pois é em

do outro os nossos se tornam sensíveis, diante de seus olhos

torno dele que as coisas estão dispostas, é em relação a ele

semicerrados, nosso corpo põem-se a existir, contra os

– e em relação a ele como em relação a um soberano – que

lábios do outro os nossos se tornam sensíveis, diante de seus

há um acima, um abaixo, uma direita, uma esquerda, um

olhos semicerrados, nosso rosto adquire uma certeza, existe

diante, um atrás, um próximo, um longínquo. (FOUCAULT,

um olhar, enfim, para ver nossas pálpebras fechadas. O

2013a, pg.14).

amor, também ele, como o espelho e como a morte, sereniza a utopia de nosso corpo, silencia-a, acalma-a, fecha-a como

E ainda sobre utopia, aquele desejo do corpo desmaterializado, continua:

se numa caixa, tronca-a e a sela. É por isso que ele é parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam,

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Se considerarmos que a imagem do espelho está alojada

amamos tanto fazer amor, é porque no amor o corpo está

para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos

aqui. (FOUCAULT, 2013a, pg.16)

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corpo, EMPENA A escura Rua Ana Cintra conta uma história não rara, mas que atesta as disfunções existentes do ordenamento social. Quando projetado, o Elevado arrasou um único quarteirão no processo – corta e esmaga uma faixa em seu centro. O antigo terminal de bonde localizado na avenida São João, onde hoje funciona uma subestação de energia, fora retirado. Posteriormente, a estação de metrô é implantada à margem do Minhocão, com uma praça, e o terminal de ônibus, alocado embaixo do viaduto. Tudo, teoricamente, bem resolvido: amplo espaço público, com o histórico largo de Sta. Cecília e a nova praça, com transporte urbano conectado ao metropolitano pelo metrô. Entretanto, são poucos os que podem dizer, hoje, que têm prazer em passar pelas sombras dessa área. Esse rasgo não teve resolução urbana para o interior das quadras. Resultado: o espaço foi ocupado por quem não possuía condição para ir a outros lugares – é local de cortiços, evidência do descaso deste ordenamento social que não contempla tais situações. Outra consequência, esteticamente impetrada: a legislação propunha a criação de empenas cegas, com o objetivo de casar dois edifícios, um faceando o outro, proposta comum na região central. Na rua Helvétia, por exemplo, estão duas empenas viradas para o Minhocão, sem que haja quaisquer movimentos por parte do poder público em entender e melhorar os paredões que escondem o horizonte na cidade. Elas permaneceram praticamente intocadas mesmo depois da construção do Minhocão. Foram surgindo, ao longo desse trabalho, hipóteses resolutivas para o problema dessas empenas, mas sua insuficiência levou a outro movimento – na decisão de contar 58


tia Rua Hel vé

Minhocão

Ru

Av. São João

aA

na

Cin

tra

SITUAÇÃO


a história de uma delas, em que uma criatura se expressa diante de seu criador, o Minhocão. Independente, ela cria sua própria narrativa e se relaciona com os demais corpos, à sua maneira. Nesta exposição, a criatura convida ao olhar contemplativo sobre si e sobre o que necessita dizer e mostrar. É fato que propostas mais racionais poderiam ser utilizadas na tentativa de solucionar a empena, como trabalhar o térreo, reorganizando os espaços do prédio residencial para criação de novos comércios ou também a abertura de janelas, a inserção de varandas utilizaria da própria estrutura do prédio, etc. São, inclusive, soluções ainda mais pertinentes nesse período de quarentena. No entanto, evidenciar a presença da empena pareceu a proposta de um novo florescer na cidade. A criatura empena, tantos anos apenas revestida por camadas de tinta, se faz ser como num movimento de espátula que descasca uma parede. O movimento de canteiro é aplicado nela por ela mesma, descolando-se, despertando em vida. Sua roupagem, uma pele dourada de chapa corrugada de latão, ganha brilho e se destaca, mostrando sua força já existente, apenas potencializada em seu próprio crescimento. As transposições em contraste, a escada vermelha e elevador monolítico branco, descolam-se propositalmente da pele dourada por meio de um jogo estrutural – são adereços do personagem principal. Os detalhes no desenho servem àqueles com quem a empena se relacionará: a entrada é destacada por um corte e um banco faz apoio à entrada do elevador (também recortado na pele para melhorar a comunicação visual com o entorno). A transposição pela escada circunda a pele, criando momentos variados no percurso, incluindo uma plataforma no mesmo nível do Parque Minhocão, possibilitando até alguém cair na tentativa de saltar de um para o outro (as diversas decisões dos seres humanos). 62



PLANTA TÉRREO

PLANTA 1° PATAMAR

PLANTA 2° PATAMAR

PLANTA COBERTURA




antes do CORPO Independente do destino do Elevado, de sua demolição ou permanência, o impacto nesta área em particular se mostra rigidamente consolidado: permanecendo a estrutura, as empenas e a laje do Minhocão conformam uma área em que as pessoas, nas calçadas estreitas, se vêm cercadas por muros (as empenas) e pela via, sem contato com janelas dos edifícios, nem suas portas e nem o comércio. O trecho se caracteriza, quase que exclusivamente, como área de passagem, guardando um ar inóspito. Com a preocupação de promover qualidade ao habitar dos residentes do prédio com empena, esboçou-se um projeto de simples execução material, mas talvez complicada burocraticamente, em que a planta térrea do Edifício Cícero Augusto Vieira, sofre alteração na fachada voltada para o Minhocão. Propõe-se a alteração de seu acesso, antes um longo corredor devido à expectativa de uma edificação futura no lote vizinho, passando tal acesso para a Rua Ana Cintra e abrindo o restante da fachada para potenciais espaços comerciais. A reforma proposta mudaria a relação dos transeuntes com o entorno imediato e, consequentemente, suas sensações.

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Quero um trabalho com um cinema, onde eu vá quando for proibido, nunca quando for permitido. Quero uma casa com meus mortos, para descansar ao lado dos que já me colocaram inúmeras vezes para repousar, e agora dormem para sempre. Quero meu jardim no meio da rua - pra ser meu e de mais ninguém que não queira um jardim para os outros. Quero minha escola de samba parando o trânsito, travando o fluxo das mercadorias, interrompendo a linha da produção, carnavalizando e escandalizando o pudor que nos amarra com juntas e nos faz o gado de cada dia. Quero a minha cama ao lado da sua.

OUTROS LUGARES Após a percepção do próprio corpo, seguido do desejo de se desprender dele, fugindo para a utopia (o “lugar sem lugar dos seus sonhos”), Michael Foucault (2013a) afirma acreditar “(...) que há... utopias que tem um lugar preciso e real” – estes seriam os contraespaços: “Há [lugares] que são absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purificá-los” (FOUCALT, 2013a). E, então, nos faz imaginar a infância por meio da lembrança da cama de nossos pais: É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali

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se pode virar fantasma entre os lençóis; é, enfim, o prazer, pois no retorno dos pais, se será punido. (FOUCALT, 2013a, p.20).

Em tom gracioso, como o imaginar infantil, Foucault fala do lugar de seus próprios sonhos, sua própria utopia. Diz sonhar com uma ciência que teria como objeto estes espaços, as heterotopias, caracterizando a heterotopologia. Por fim, discorre sobre os princípios dessa nova ciência, tendo todas as sociedades suas próprias heterotopias, que assumem, sempre, formas distintas. As sociedades poderiam ser classificadas pelos tipos de heterotopias que elas constituem. São elas: heterotopias biológicas, como a “viagem de núpcias”; heterotopias de desvio, as “casas de repouso, as clínicas psiquiátricas, daí também, com certeza, as prisões”. (FOUCALT, 2013a). “As sociedades chamadas primitivas, por exemplo, têm lugares privilegiados ou sagrados ou proibidos – como nós mesmos, aliás” (FOUCALT, 2013a). Além disso, esses lugares podem ser desfeitos e diluídos pela sociedade, que também pode “(...) organizar uma que não existisse ainda” (FOUCALT, 2013a). Como exemplo, o autor demonstra a tentativa de fazer desaparecerem as casas de prostituição em países europeus, na década de 1940, ou os cemitérios, que com a modernidade, passaram a ser relegados às periferias das cidades. Em oposição, teatros, cinemas e jardins persas eram as utopias sociais da época: O tradicional jardim persa é um retângulo dividido em quatro partes que representam os quatros elementos de que o mundo é composto, no meio do qual, no ponto de

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junção dos quatro retângulos, encontrava-se um espaço

O navio é a heterotopia por excelência. Civilizações sem

sagrado: uma fonte, um templo. E, em torno do centro, toda

barcos são como crianças cujos pais não tivessem uma

a vegetação do mundo, toda a vegetação exemplar e perfeita

grande cama na qual pudessem brincar; seus sonhos então

do mundo devia estar reunida. (FOUCALT, 2013a, p.24).

se desvanecem, a espionagem substitui a aventura, e a truculência dos policiais, a beleza ensolarada dos corsários.

Seguindo com exemplos, na concepção moderna de museus, eles procuram conter os vários tempos (um espaço de coleção do tempo). O teatro e as feiras, são heterotopias crônicas, alterando o lugar num espaço de tempo definido. No mesmo grupo estariam as colônias de férias e o carnaval. As heterotopias são a contestação de todos os outros espaços: [...] criando uma ilusão que denuncia todo o resto da realidade como ilusão, ou, ao contrário, criando outro espaço real tão perfeito, tão meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado. (FOUCALT, 2013, p.28).

É nesse ponto que se percebe uma conexão com o conceito de inutilidade de Tschumi, encontrando o motivo de existência da arquitetura justamente no sonho, nas vontades do inconsciente, na refutação do que se espera da Arquitetura pelo conservadorismo: Arquitetura parece sobreviver na sua capacidade erótica apenas quando ela nega a si mesma, onde transcende o paradoxo natural negando a forma que a sociedade espera dela. Em outras palavras, não uma questão de destruição ou subversão avant-garde, mas de transgressão. (TSHUMI, 1996, p.78).

E Foucault assim encerra:

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(FOUCALT, 2013a, p.30).

A BUSCA POR HETEROTOPIAS Após estudar a fundo a teoria apresentada nesse trabalho, a pesquisa passou a verificar como algumas heterotopias tomaram forma recentemente. Houve uma arbitrariamente, admitese, dirigida àquelas heterotopias questionadoras dos lugares regulares, ressignificando-os em utopias realizadas.

Gordon Matta-Clark: Fake States Nos anos de 1970, Gordon Matta-Clark comprou 15 lotes em Nova York. Não eram lotes quaisquer, pois possuíam características dimensionais incomuns, como 0,3m x 33m, ou 1,6m x 1,3m, etc. Além disso, faziam fronteiras incomuns com os demais lotes, posicionados no interior de uma quadra ou compondo uma tira delgada entre a rua e outro lote, quase como seu canteiro. Os organizadores do livro Odd Lots: Revisiting Gordon MattaClark’s Fake States, buscaram narrar esse processo, tarefa que se mostrou exaustiva, pois “os materiais originais que constituíam Fake States se recusavam a serem compilados de maneira facilmente compreensível, de forma a constituírem um artefato unitário” (KASTNER; NAJAFI; RICHARD, 2005). Os lotes foram originados pelas reformulações urbanísticas sequenciais. O livro descreve o processo realizado

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para registro do reparcelamento dos lotes no qual, a cada alteração, um novo mapa era gerado: permanecia registrada a situação anterior e eram desenhados novos limites com a indicação de dimensões e um sistema de cores para diferenciação do período de cada mudança. O livro reúne a maior parte dos documentos de aquisição dos lotes por Matta-Clark, assim como fotos da época da compra e fotos atuais, possibilitando sua comparação. Também contém imagens dos mapas originais e croquis do artista. Os organizadores do livro desconhecem o intuito verdadeiro do artista quando realizou as compras (os lotes foram arrematados em leilões). Alguns amigos de Matta-Clark, por exemplo, acreditavam que ele convidaria artistas para realizarem intervenções nestes lotes. A obra de Kastner, Najafi e Richard reflete sobre como as diretrizes governamentais podem influenciar diretamente no parcelamento da cidade, apresentando ocasiões em que o sistema burocrático é ineficiente quando opera no traçado urbano. Ao invés de serem incorporados aos lotes vizinhos, tais lotes, por quaisquer que fossem os motivos legais, permaneciam isolados, agregando utilidade ao seu entorno apenas quando usados irregularmente, como estacionamentos ou gramados.

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Croquis Patrimoniais no Minhocão / Atelier Bow-Wow A situação de parcelamentos estranhos encontrada em Fake States se reproduziu, também, no entorno do Minhocão. Com sua implantação no início da década de 1970, dezenas de lotes foram alterados, afetados por completo, seguindo o processo de desapropriação exigido na época. Alguns lotes, consequentemente, sofreram intervenção semelhante à encontrada em Nova York: suas são incomuns, a exemplo de um lote na Rua General Jardim, esquina com a Avenida Amaral Gurgel, de dois metros de largura por 23,5 metros de comprimento. Outro exemplo é o lote na esquina da Avenida General Olímpio da Silveira com a Rua Francisco Estácio Fortes, um triângulo de ponta arredondada onde faz a esquina. São lotes atualmente qualificados como “croqui patrimonial” e passarão gradativamente a ser transformados em Registro de Área Pública (RAP). Atualmente, continuam desocupados ou foram incorporados a edificações vizinhas. Alguns tiveram edifícios construídos em seu terreno. O lote da Rua General Jardim, em um primeiro momento, chegou a ser objeto de estudo para esse trabalho. Imaginou-se um comércio em sua extensão, o que direcionou imediatamente a desenhos na escala do detalhe. Não foi dada continuidade ao trabalho. O Atelier Bow-Wow, escritório japonês, publicou o livro Pet Architecture, no qual são apresentadas edificações existentes em Tóquio que preenchem lotes semelhantes aos discutidos. Os arquitetos, no livro, utilizam tais exemplos como comparação de abordagem em edifícios projetados por eles.

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Renata Lucas Sobre a artista Renata Lucas, Clara Kim, no livro Renata Lucas, esclarece a relevância da obra da artista frente às cidades e megalópoles. Kim (LUCAS, 2007) explica que “A vastidão e superpopulação das cidades de hoje exigem a aderência a algum sistema de ordem, seja ele real ou percebido” e “(...) num tal ambiente, os mitos, medos , ansiedades e imaginações influenciam e determinam o comportamento humano, mantendo as pessoas em suas respectivas zonas de conforto e deixando-as espacialmente – e, portanto, mentalmente – divididas”. Renata Lucas opera diretamente nos elementos arquitetônicos, subtraindo, adicionando, movendo e realizando outras alterações na composição material de um lugar, questionando zonas de conforto e provocando reflexões sobre da própria necessidade e sentido dessa ordem. Esse trabalho se alinha com a obra da artista, pois Lucas transgride a ordem do topos, criando heterotopias com o manejo, nas palavras de Kim (LUCAS, 2007), de “materiais de construção básicos: compensado, tijolos e concreto – o principal material moderno que atinge ao instinto humano de sobrevivência e abrigo”. Aqui são expostas três obras de Renata. Em Cruzamento, no ano de 2003, painéis de compensando são dispostos em um cruzamento no Rio de Janeiro, eliminando a ordem que coordena a passagem de pedestres e automóveis, assim como a passagem de cada transeunte. Como resultado, o pedestre se sente livre para cruzar até a esquina mais distante, sem se subjugar ao ordenamento. Falha, realizada no Paço das Artes, em 2003, é composta por diversos painéis de compensado deitados no chão e conectados por dobradiças – cada pessoa pode criar

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seu ambiente, manipulando as combinações possíveis com os elementos. Por último, Atlas, na galeria Millan Antonio, em 2006, na qual a artista simultaneamente demole partes da divisa entre a galeria e a casa ao lado, inserindo uma nova fronteira, ampliando a área vizinha, restringindo significativamente o espaço da galeria, principalmente no fundo. Criou-se um espaço de uso limitado, além de parte da galeria ter sido transformada em garagem para uma oficina próxima.

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conceito de heterotopia. Sua previsão é de que haverá “uma contestação do espaço que vivemos simultaneamente mítica e real” (FOUCALT, 2013b). Margareth Rago, em Inventar Novos Espaços, Criar Subjetividades Libertárias, em 2016, faz uma leitura do texto foucaultiano de 1967 em conjunto com Vigiar e Punir, de mesmo autor. Rago (2016) constata a valorização do ócio na antiguidade, “(...) sem [o qual], não poderia haver criação, apenas repetição monótona do mesmo, submissão à esfera da necessidade”, em contrapartida à sociedade atual: (...) Ocupar-se ininterruptamente passa, portanto, a ser valorizado não apenas como maneira de tornar-se útil e produtivo, mas também de proteger crianças, jovens e adultos tanto quanto a si mesmo contra as ideias subversivas

MAIS OUTROS LUGARES - Margareth Rago O último texto de Foucault a ser abordado é fruto de uma conferência chamada De Outros Espaços, de 1967, na qual o autor resgata os conceitos sobre os quais discursou no ano anterior, especificamente as heterotopias. Nele, o filósofo discorre sobre a rede que é a sua época, na qual pontos são conectados no decorrer do tempo e os lugares são “uma forma de relação entre vários lugares” (FOUCALT, 2013b). O autor diferencia os espaços entre internos – aqueles que constituem “(...) o espaço da nossa percepção primária, o espaço dos nossos sonhos e o espaço das nossas paixões” (FOUCALT, 2013b) – e os externos, aos quais ele passa a discorrer. Foucault busca explicar a utopia como “(...) lugares que têm uma relação analógica direta ou invertida com o espaço real da Sociedade” (FOUCALT, 2013b), e então emenda no

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e contra “outros vícios”, como o alcoolismo, as drogas e a prostituição, como afirmavam as elites dirigentes. Não é de estranhar-se que o consumo logo preencha esse vazio inquietante. (RAGO, 2016, p.11).

Utilizando-se do conceito de heterotopia, Rago comenta: Foucault chamou, então, a atenção para o fato de que a arquitetura, desde final do século XVIII, passou a responder aos problemas da população, da saúde, do urbanismo, preocupando-se com a organização do espaço para fins econômico-políticos; enquanto antes, estava ligada à necessidade de manifestar o poder, a divindade, a força. (RAGO, 2016, p.21).

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Neste ponto, Rago narra como algumas arquiteturas foram desenhadas para vigiarem o ser humano também por meio do controle psicológico, por exemplo no caso do Panóptico, um tipo de penitenciária na qual os detentos são dispostos em celas que circunscrevem uma torre de vigia – eles nunca sabem quando estão sendo vigiados e, portanto, são controlados pelo medo. Adiante, a historiadora relata outros tipos de sociedades desenvolvidas – a nazista alemã e a fascista italiana – em que a arquitetura foi também utilizada como ferramenta de repressão do tempo livre, organizando a maneira em que as pessoas aproveitariam seu ócio:

Leach (2001), comenta sobre o mesmo assunto: “A distração como forma de lazer se converte em complemento de um dia de trabalho cheio de repetições vazias de significado. (...) o lazer se incorpora ao negócio e adquire do último suas características essenciais, sua própria monotonia de atitude.” Nessa narrativa, a autora ressalta a importância dos movimentos de resistência, os quais propunham ideais divergentes aos da imposição da ordem e moralidade, refletindo tais ideais no uso do espaço. Margareth Rago, por fim, contemporaliza: Nessa luta pela transformação da cidade, sem dúvida, evidenciam-se novos territórios livres, “zonas autônomas”,

Está claro que tão grande investimento para organizar

com a ocupação de inúmeras áreas, de prédios abandonados

a vida dos trabalhadores tinha como objetivo declarado a

a parques esquecidos, com outras propostas de uso e

domesticação dos seus corpos e a erradicação dos conflitos

ocupação. Não é apenas a cidade filógina que se volta

sociais, das greves e de outras formas de resistência, assim

contra a cidade fálica, mas a cidade dos prazeres, mais

como a eliminação das comissões de fábrica e dos sindicatos

erotizada e alegre, que busca espaço no mundo higienizado

geridos pelos próprios operários. (RAGO, 2016 p.34).

e asséptico do capital. A cidade das artes, musical e colorida ganha espaço, ao enfrentar a cidade cinza do trabalho e da

Vale a transcrição da citação feita por Pinheiro e Soares (2009):

racionalidade econômica. (RAGO, 2016, pg.59).

O desenvolvimento de novos espaços e tempos para o lazer vai se caracterizando pelo desperdício da vida em práticas cada vez mais estimuladas pelo consumo e pela força capaz de manter aquecida a escala produtiva. Ou seja, é em atividades assim que o homem alimenta o “tempo livre” para com isso voltar ao trabalho, perpetuando, deste modo, a lógica capitalista de produção. (apud RAGO, 2016, p.52).

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OUTRAS HETEROTOPIAS A casa de Jajja Alinhado ao olhar que procura outros princípios norteadores que não os do sistema de produção vigente, o projeto executado A Casa de Jajja, fruto de um Trabalho Final de Graduação (TFG) publicado em 2019 por Mariana Montag (com quem o autor possui preciosa amizade e participou, a convite, de um programa de voluntariado em uma escola na mesma comunidade), evidencia a importância da observação e convivência com a comunidade estudada e não a costumeira arbitrariedade e imposição de diretrizes e arquiteturas assépticas. O projeto está situado em Kikajjo, área rural próxima à capital de Uganda, e traz como afirmação de que A casa da Jajja é um projeto emancipatório sobre moradias autoconstruídas para mulheres rurais” (MONTAG, 2019a). O projeto foi executado logo após a apresentação da tese final da arquiteta, em coparticipação com mulheres e homens da comunidade, assim como voluntárias mulheres de diferentes nacionalidades, num esforço intenso de experimentação de novas relações horizontais, costumeiramente hierarquizadas no canteiro de obra O projeto carrega uma análise em que o foco são as relações humanas, melhor descritas pelas frases que caracterizam sua essência: Lá conhecemos a Jajja Imaculate, uma senhora de 75 anos de muita força e fé, avó de Rose e Gift. Desenhamos e discutimos uma casa juntas. A arquitetura da casa não [foi] apenas uma moradia para Jajja, mas uma prática emancipadora questionando os papeis de gênero, onde o

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processo de construção será feito através de oficinas de capacitação para mulheres. (MONTAG, 2019a).

A linguagem do memorial reflete de forma transparente as intenções do fato arquitetônico, onde o plural serve como elemento que enterra a figura do “arquiteto gênio”. Também é revelada a preocupação, não apenas intenção, quanto ao assunto chave: As vozes femininas do vilarejo rural de Kikkajo não são as únicas que não estão sendo escutadas, as mulheres rurais estão por todos os cantos do mundo trabalhando como força humana fundamental para sustentar nosso sistema. (MONTAG, 2019a).

A multiplicação dos conceitos do projeto às outras “mulheres rurais” se faz tão importante quanto a concretização da Casa de Jajja. O projeto está aberto à sua própria superação, em favor de seu valor principal: as técnicas e resoluções encontradas são um mero instrumento, longe de serem objetivo final, capaz de mudar conforme a transformação de entendimento do próprio percurso. “A casa será uma escola de capacitação em construção para mulheres, beneficiando outras pessoas durante o processo” (MONTAG, 2019b). Etapas são concluídas, mas o processo jamais se encerrará. Sobre a casa, Montag apresenta: O lar sempre foi visto e delegado sob os cuidados das mulheres, principalmente nas zonas rurais. No entanto, o planejamento e construção foram delegados aos homens. E se as mulheres, as usuárias das casas desenvolvessem suas próprias casas? (...) O projeto ainda visa a escalabilidade, de

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modo que as mulheres envolvidas possam dar continuidade gerando uma cooperativa e rentabilizando o processo. (MONTAG, 2019b)

“O partido do projeto foi compreender a relação dos hábitos locais com os elementos essenciais do morar: o fogo, a água e o descansar” (MONTAG, 2019b). Fogo, aqui, não é a representação de alguma relação tribal resgatada, mas o instrumento cotidiano, da vivência, onde a lenha é preparada para o fogo, o qual é mantido vivo ou revivido durante o dia até à noite, escura devido à iluminação precária. A água também não está acessível ao virar de uma torneira – é o trabalho das crianças ir coletá-la em poços privados a aproximadamente 100 metros de distância, o que torna o recurso escasso, literalmente contado para as diversas atividades diárias. Ao final do dia, o repouso em uma rotina em que as atividades básicas se estendem por um longo tempo, em contraponto com a suposta tecnicidade metropolitana (mesmo com suas discrepâncias sociais): a miséria, sob a ótica capitalista ocidental, lá é a regra, não a exceção. O projeto apenas conseguiu suplantar a perspectiva narrada acima pelo envolvimento de Mariana e das demais participantes com a comunidade, vivendo meses no local. Assim, foi possível organizar os espaços de acordo com tais vivências: As tarefas diárias do lar em sua maioria são feitas do lado de fora casa buscando uma sombra de árvore da forte incidência solar. Sendo assim, a Casa busca ter a flexibilidade de estar aberta, entre-aberta ou totalmente fechada. (MONTAG, 2019b).

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Na mesma sensibilidade, sendo o ponto principal dessa análise, a disposição dos ambientes da casa deixa a área social propensa ao contato, tanto com os trabalhos diários, quanto com a projeção de outras unidades: a planta comportaria um espelhamento em suas laterais, assim como houve a previsão da implantação de outras casas dispostas em volta de um pátio central. Esta decisão projetual verificou o arranjo social existente em que os espaços não se restringem à unidade familiar como é entendido na cultura eurocêntrica moderna. Há um compartilhamento do espaço, trabalhando de modo diferente os conceitos de privacidade. O resultado, mesmo feito a várias mãos e mentes, não deixou de ser surpreendente à autora: a dimensão da casa é anormal para a senhora de 75 anos que, hoje, a aproveita para alugar o segundo quarto como fonte de renda extra, levando a uma outra dimensão, até mais simples, a ideia projetual de proporcionar independência à Jajja. O tamanho da casa também resultou em outra situação imprevista: a casa é grande o suficiente para receber atividades religiosas, o que acontece com certa frequência. Na celebração da conclusão da obra foi inclusive realizada uma missa.

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The Slab Stack Aqui, o grupo composto por Victor Sardenberg, Huey Hoong Chan, Isabella Previti e Jorge Ruiz, promete maximizar a relação retorno-investimento na construção de um edifício. O projeto, na realidade, é uma crítica em forma de startup, compreendendo a linguagem arquitetônica, a publicitária e a da especulação do capital. No site do projeto, são realizadas promessas em textos, reforçadas por iconogramas, acentuadas pela sucinta exposição do trabalho exercido, em tese, pela inteligência artificial por eles desenvolvida – ferramenta similar às utilizadas no ramo de startups. Em conversa informal com os autores do projeto, declararam que ele é uma exacerbação do modelo moderno ideal proposto por Le Corbusier, a Maison Dominó, ocorrendo a máxima sobreposição das lajes para o melhor retorno de capital. É um modelo exagerado de exemplos que já existem, como o 432 Park Avenue, que é o edifício residencial mais alto do mundo. Ainda relataram que, apesar de todos os apartamentos terem sido vendidos, não houve ocupação de qualquer um deles, por serem a maioria destinados a investimento. Então quando o que habita é o capital, não físico mas especulativo, as alturas das lajes podem ser mínimas, e é isso o que o diagrama de inteligência artificial mostra, que quanto menor a distância das lajes, maior o acúmulo de capital. Esta intervenção virtual evidencia a prioridade do capital frente às necessidades sociais. O capital, após assumir ao longo dos anos, um caráter virtual e especulativo, em que as transações virtuais extrapolam as dimensões de espaço e tempo

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– sem a necessidade por um equivalente real de confirmação (e sem sequer haver tal possibilidade) – evolui em busca e crescimento, trazendo essas características para o mundo dos corpos, suplantando as necessidades corporais no próprio meio físico, priorizando sua especulativa existência virtual. A heterotopia do capital, o lugar de seu sonho máximo, começa a ser concretizada, ocupando todos os vazios espaciais com os vazios de suas promessas virtuais, de existência incerta. As imagens do projeto expõem o absurdo da proposta, deixando implícita a conjuntura do resultado final: o capital acumulado não está em seu espaço virtual infinito e, ganancioso, extrapola sua própria dimensão, incorporando-se no espaço físico para que nada exista além dele. Sobrepõem-se a tudo que é humano, eliminando até o vazio e o espaço de nossos sonhos. Seu empilhamento dá outra dimensão ao nada, antes compreendido como o vazio e, agora, a plena ocupação pelo capital. Sua heterotopia é a eliminação de todos os topos, heterotopias e utopias nossas.

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os jardins do MARECHAL

F

Minhocão

Rua Albuquer

que Lins

Praça Marechal Deodoro

C

C

SITUAÇÃO

Este projeto vem da percepção de alguns segredos da estação Marechal Deodoro. Nele, há dois jardins, inacessíveis às pessoas que passam por lá, podendo apenas ser visualizados precariamente. Também há pinturas, telas de Gontran Guanaes Netto, entituladas A Liberdade do Povo, também pouco lembradas. Os jardins arte e as obras em tela estão em grandes aberturas no solo, buracos, possíveis de ver do térreo, da área das catracas e da plataforma do metrô. Além, esses fossos também esperam anos a adição de edifícios, estando estruturalmente planejados. O projeto procura mostrar isso tudo que está escondido. O foco é no fosso afastado, no lado ímpar da rua Albuquerque Lins. Retira-se o gradil para a liberdade do jardim, retiramse vigas da cobertura e, assim, encrusta-se uma sequência de escadas projetadas para não atrapalhar a perspectiva já existente, principalmente da janela do nível das catracas (a comparação entre a foto do existente e o projetado na maquete reforça a tentativa do projeto de se por de lado e ressaltar o existente). A viga mantida no meio é suporte para um único cabo que mantém em equilíbrio a estrutura apoiada nas laterais. A escada termina acima desta viga. É então posto em estrutura metálica o esqueleto de um suposto edifício, com proporções diferentes das usuais, a fim de manter certa leveza visual na estrutura. Montantes suportam cortinas de diversos tamanhos, tendo as criações de Beniamino Servino como referência. Está posto o edifício que nunca foi e nem será, a escada que finalmente chama ao jardim mas o priva da conexão tátil com as pessoas. Tudo se conforma a favor desses segredos existentes na metrópole e convida a ficarmos atentos a todos outros não descobertos.

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PLANTA TÉRRO

PLANTAS MESANINO

PLANTA SUBSOLO

PLANTAS SUPERIORES





Os prazeres da pessoa que pensa são maus, por isso ela não tem prazer. Os pensamentos do sentimental são maus, por isso não tem pensamentos. Quem prefere pensar a sentir deixa apodrecer seu sentir no escuro. Não amadurece, mas faz brotar no mofo trepadeiras doentias que não alcançam a luz. Quem prefere sentir a pensar, este deixa seu pensar no escuro, onde tece sua teia em cantos sujos, tramas desoladoras em que ficam presas moscas e mariposas. O pensador sente o repugnante dos sentimentos, pois o sentimento nele é sobretudo repugnante. O sensitivo pensa o repugnante dos pensamentos, pois o pensar nele é sobretudo repugnante. Portanto, a serpente está entre aquele que pensa e aquele que sente. São mutuamente veneno e terapia. (JUNG, 2015, p.164)

III TRANSGRESSÃO

VIDA E MORTE No texto Arquitetura e Transgressão, Tschumi introduz que apenas pela transgressão a Arquitetura pode sobreviver. A sociedade, ansiosa por um mundo de regras e moralismos, mas que “secretamente se deleita em crimes, excessos, e violações de proibições de toda sorte” (TSCHUMI, 1996), tem na arquitetura o reflexo de um puritanismo, arquitetos que fetichizam sobre as regras. Politicamente, a consciência social tem suspeitado do mais leve traço de hedonismo nos esforços arquitetônicos e o tem rejeitado como uma preocupação reacionária. E da mesma maneira, arquitetos conservadores relegaram à Esquerda tudo que seja remotamente intelectual ou político, incluindo o discurso sobre prazer. Em ambos os lados, a

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ideia de que arquitetura possa existir sem justificativa moral ou funcional, ou mesmo responsabilidade, foi considerada desagradável. (TSCHUMI, 1996, pg.82)

Esta sociedade carrega uma aversão ao que lhe questiona, às concretizações dos sonhos, ou, às utopias. Relembrando Foucault, o cadáver, o corpo sem vida, é o cumprimento da nossa primeira utopia, a libertação deste corpo. Assim, o medo de encarar esta utopia, a morte, vê-la como natural, gera restrições a tudo que nos lembra dela.

prazer do espaço pode beirar à loucura; aquele que promove o intelectual pode se deslocar da realidade, ficando paralisado em sua mente. É quando o arquiteto teórico sensualista passa a comentar diretamente os princípios que regeram o projeto do Parc Lac Villette, de 1987. Tschumi, citando Abbé Laugier: (...) quem sabe desenhar bem um parque não terá dificuldade em traçar o planejamento para a construção de uma cidade, de acordo com sua área dada e situação. Tem que haver regularidade e fantasia, relacionamentos e oposições, e casuais, inesperados elementos que variam o

Morte é tolerada apenas quando os ossos são brancos: se

cenário; grande ordem nos detalhes, confusão, perturbação,

arquitetos não podem ter sucesso na missão deles por

tumulto no todo. (apud TSCHUMI, 1996, pg.85)

pessoas e casas saudáveis e viris, ativas e úteis, éticas e felizes, eles podem ao menos se confortar em frente às ruínas do Partenon. Vida jovem e morte decente, esta era a ordem arquitetônica. (TSCHUMI, 1996, pg.71)

A saída não seria um completo afastamento da regra, a sua eliminação, mas a sua transgressão. Isso significa contemplar vida e morte ao mesmo tempo. Citando André Bretón, em The Second Manifesto, Tschumi aponta para esse meio termo, um ponto em que imaginário e realidade não são contraditórios. Quando a arquitetura como cosa mentale, as suas representações e teorias, o mundo das ideias, se reúne à arquitetura vivenciada, que tem na sensualidade o seu suporte, encontra-se este ponto. “É vida e morte ao mesmo tempo, quando vivência do espaço é o seu próprio conceito”. (TSCHUMI, 1996). Tschumi nos alerta de que as medidas extremistas em cada polo nos trariam consequências. Aquele que enfatiza o

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Parc de la Villette Bernard Tschumi Paris / 1987 A abordagem de Tschumi ao projetar o parque é a contrária ao tradicional - ele não pensa nos usos, pré estabelecendoos, conformando-os por elementos arquitetônicos, mas na oportunidade dos eventos. O arquiteto diz trabalhar justamente menos com o contexto histórico que com a ocorrência destes eventos em momentos ucrônicos. Tschumi desenha espaços que recebam utopias - seu objetivo é proporcionar o espaço para a imaginação, em que ele deixa de ser o projetista principal, passando esta atribuição a quem estiver presente no espaço. O diagrama de inserção em 3 camadas indica a

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abordagem para o projeto: os jardins são utopias disformes, que enfatizam a irracionalidade; os follies são palco de projeções de utopias, facilitadores de usos, mais ou menos adequados à intenção, dependendo dos elementos arquitetônicos neles dispostos, também servindo de projeções mentais de localização dos indivíduos no parque; as linhas marcam os eixos de disposição dos edifícios de maior porte (e não necessariamente projetados pelo arquiteto). Tudo combina para dar ao outro, que não o projetista, a liberdade para usar os espaços como bem entender. A materialidade é utilizada na tentativa de favorecer essa projeção pelo indivíduo. Os follies usam de elementos arquitetônicos claros em variadas operações na formação de cada um deles, caracterizado pelo uso de formas geométricas básicas, a fim de utilizar a expressão simbólica na tentativa de levar aos indivíduos suas próprias memórias e, principalmente, suas projeções. Inclusive o emprego de uma única cor tem essa função, numa tentativa adicional de ser neutra, porém marcante, pontual. Tschumi ainda utiliza tais pontos para, dessa vez de forma mais dominadora, estimular projeções: em contraste aos jardins, em que na perspectiva humana perdem seu desenho, ficam sem definição, os follies estão dispostos cartesianamente, gerando no mesmo plano da perspectiva humana a projeção da localização, trazendo uma mínima orientação para conforto das pessoas. Ele ainda utiliza desta projeção, agora no campo da memória, ao introduzir follies na cidade, condicionando o pensamento por meio dos objetos arquitetônicos ao próprio parque - o parque entra na mente antes mesmo do corpo passar os limites do parque.

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OS JARDINS DO MINHOCÃO Bernard Tschumi, ao realizar o Parque La Villette, é fiel ao seu discurso: com pontos, os follies, insere arquiteturas de uso indeterminado; os mesmos pontos são referências de perspectiva, organizados numa malha ortogonal, racionalizando o espaço – conecte os pontos e você se achará no parque. Os pontos não se restringem ao parque, mas invadem a malha da cidade, trabalhando na memória das pessoas; a linha ortogonal da planificação se esvai na perspectiva da realidade: as linhas não existiriam sem os pontos, reforçando o trabalho existente entre arquitetura erigida e arquitetura mental. Mais significativo, sob os pés, os jardins são o devaneio de Tschumi, a expressão da sensualidade, o fugir da racionalidade. Todos estes elementos trabalham de forma a utilizar a escala a seu favor. E funciona de acordo com o discurso, mas, importante, conexo com as suas condições espaciais. Olhar para o minhocão e tentar projetar o esquema ponto, linha, plano de Tschumi, em busca dessa conjunção entre realidade e sensualidade deve ter uma estratégia diferente da abordada pelo arquiteto. Os elementos constituintes dessa formulação trocam de papéis. A linha não é mais ortogonal no desenho, porém, na forma do viaduto, se mantém linear na expectativa de quem estiver sobre ela - a saída apenas acontece no escape desse eixo; a mesma linha cria a perspectiva sobre a cidade (em Paris, tal perspectiva era imaginária), sendo tão enfática que antecipa-se na mente de quem passa por ela, projetando a sua continuidade, antecipando a expectativa ou memória; ela também se materializa, saindo do papel, impondo-se como organizadora.

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O plano abaixo do elevado é a malha urbana, ortogonal, racionalizada no seu desenvolvimento. A sedução não se encontra neste plano. A ortogonalidade, aqui marcada pelas ruas que estranhamente conversam com o eixo do viaduto, contém os traços da urbanização e suas consequências. É nela que estão registradas as vontades políticas, as conjunturas econômicas, os problemas sociais. Ela, somada à linha, são a base desta intervenção. Sobre estas condições que são adicionados os pontos, agora não como referenciais, mas como fugas dos elementos criados pela racionalidade. Estes pontos, os projetos deste trabalho, atuam, cada um à sua maneira, enfatizando as relações entre corpos: o corpo arquitetura com os corpos humanos, os corpos humanos com corpos humanos, os corpos arquiteturas com os corpos arquiteturas. Desta forma, agem como conectores, transposições assombrosas a um outro plano. É aqui que acontece a transcendência do plano topos ao almejado plano utópico, concretizado pelas heterotopias. Diferente do Parc La Villette, os jardins do Minhocão não são compostos por paisagismos costumeiros a outros parques – apesar da tentativa frustrada da implantação de jardins verticais. Aqui, os jardins são realizados em outros planos: ocorre no asfalto do viaduto, livre de desenho urbanístico, criado pelas pessoas que realizam o que podem nele, dividindo organicamente o espaço em área de encontros, de descanso, reflexão, exercícios, etc., no qual o imaginário suporta o sensual. Um expoente deste fato foi a implantação de uma piscina, realizada por Luana Geiger. Outro elemento são os vazios, os vãos entre os edifícios, resultados da malha de ruas e praças – há até uma relação direta

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nesta observação: quanto mais o urbanismo procurou satisfazer o transporte, criando largas avenidas, retilíneas, maior a amplitude do elemento vazio. E aqui o vazio aparece repleto de vida, em luzes, movimentos, atividades e silêncio. Mas os vazios talvez não fossem percebidos se não houvesse o contraste com os edifícios. Estes conformam os outros elementos dos jardins do Minhocão. As empenas foram destacadas no trabalho de Andrés Sandoval, o qual mapeou em Empenas, de 2014. Nele, o artista, arquiteto e urbanista, ilustra estes elementos em diversas texturas, quando começaram a ser comuns as aplicações de grafites e outros painéis no local. Por fim, os edifícios ainda proporcionam um último espetáculo, frisando os criadores de todos esses elementos. O ser humano é posto de frente com outros seres humanos por meio das janelas. Painéis modernistas de milhares de janelas. Pessoa pública em contato com pessoa privada, uma espiando, a outra admirando, não importa a ordem. São trocados sorrisos embaraçados, cumprimentos trocados, olhares são desviados. É como se o Minhocão possuísse diversos quadros vivos, canais de todos os assuntos, em diversas escalas. E nesses jardins, por meio desses elementos, nessas heterotopias, os seres que se sujeitam a deixar o comodismo, a transgredir as imposições do privado, que se reduz em medo e se encolhe em violência, estes têm a benção de ter seus corpos elevados.

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mirante SÃO JOÃO Nada como vivenciar algo para ter a experiência exata que pode ser propiciada. Caminhar sobre o Minhocão é uma delas. É cuma redundância em que, em cima do Elevado, sentimo-nos elevados sobre a cidade. É a melhor descrição que podemos declarar sobre essa experiência de caminhar, correr, descansar, observar, andar de bicicleta, passear com o cachorro, com amigos. Até ser roubado no Minhocão é diferente, caso em que se observa ir diminuindo na longa perspectiva o personagem em fuga. A cidade perde aquele aspecto perturbador do agito – até o trânsito é percebido de uma forma poética, um movimento sem som, no qual a lentidão dos veículos assemelha-se mais . Mas, na realidade, escondida sob os pés, estão problemas potencializados da cidade. É uma dialética, onde tranquilidade está acima da desgraça de muitos.


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SITUAÇÃO


Focando no aspecto levitador, o centro do minhocão tem utilidade urbana tanto para veículos como para pessoas – o que foi proposto como divisor da mobilidade urbana é talvez o banco mais longo existente. É banco, mesa, cama de cachorro, apoio para encontros, etc. É um exemplo maravilhoso de como a relação com a arquitetura é feita pela espontânea desconstrução da ideia que a criou arbitrariamente. Assim, é proposta uma escada que se apoie nesse centro. Sua estrutura tem seus esforços resolvidos em si mesma, mantendo a independência com o minhocão (com uma hipotética demolição, a obra poderia continuar na mesma coordenada geográfica). É uma peça que se resolve em seu próprio balanço – sua solução é explicita, contrária às vontades de esconder o desenvolvimento arquitetônico, tão forte no contemporâneo (WISNIK, 2018). Isso atesta uma vontade de aproximação e crença na capacidade humana, colocando a questão de ser arquitetura ou escultura, sendo ambas, convidando o motorista das tardes de semana a ir visitar o local quando possível para pessoas. E é um convite à introspecção – uma peça isolada, que suporta poucas pessoas em seu topo, a fim de elevar os pensamentos de quem com ela se relaciona, direta ou indiretamente.


1 - chapa de aço 2mm; perfil tubular 120/120/10mm; 2 - chapa aço 2mm; U 1-chapa de açode 2mm; perfil montante tubular 120/120/10mm 30/30/5mm; perfil tubular U60/60/5mm 2-chapa de aço 2mm; montante 30/30/5mm; perfil tubularde 60/60/5mm 3 - chapa aço expandida GME1 7,5mm 3-chapa de aço expandida GME1 7,5mm


IV CONSIDERAÇÕES FINAIS 1. Pouco se falou neste trabalho da sombra do Minhocão. Encarar este lugar foi uma decisão difícil: o vórtex tragava as vontades, não deixando escapatória. Afinal, como demonstrado, a vivência do autor na área é significativa. Olhar novamente para ele e projetá-lo como objeto de estudo intenso, por mais um ano, se mostrava exaustivo, o que se potencializou com a pandemia instalada e todas as suas perturbações na nossa realidade. Durante o processo surgiram várias hipóteses projetuais, utópicas e realistas, de escala metropolitana a pequenos detalhes, de programas necessários a meras conjecturas estéticas. Então primeiro ocorreu a aceitação de enfrentar a área, no conhecimento de que não poderia se dar uma abordagem usual, caso contrário resultaria em desgaste ainda maior. O desafio era justamente utilizar a força do próprio vórtex contra o seu sentido natural. Foi eliminada a intenção de realizar um cemitério vertical – proposta trabalhada durante o primeiro semestre do TFG. Analisando a ideia, era uma externação justamente daquilo que se desejava enterrar, tudo que representasse morbidez e sofrimento. Nesse estado, não se apresentava qualquer vontade de trabalhar na área escura do Minhocão, quanto menos se encontrava alguma solução projetual. Foi um período de compreensão da sombra, de aprender a entendê-la e usá-la, para dela emergir e encontrar a solução que nenhuma resposta prática poderia dar, a qual veio apenas pela percepção, aceitação e deleite no processo.

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2. Especulando sobre o destino a ser dado para o Minhoção: Demolição: os projetos que transferem o fluxo de veículos para próximo à linha do trem precisariam resolver sensivelmente o desenho a ser dado ao nível da rua nas áreas que hoje são a sombra do Minhocão. As vias atuais facilmente permaneceriam como avenidas caso não houvesse esse cuidado. A dificuldade maior em replicar o parque elevado nesta cota é o cruzamento com as ruas perpendiculares. A necessidade de se replicar o parque se dá pela ausência de qualquer outra opção adequada de lazer na região. Manutenção e progressão em parque: os novos acessos em fase de implantação indicam um avanço na consolidação como parque – consolidação que vem sido gradual e lenta ao longo dos anos. O desenho que procurasse a organização das atividades transformaria os usos atuais, descaracterizando o parque: a inserção de vegetação diminuiria os espaços úteis já restritos; a separação em áreas de permanência, áreas de circulação de pedestres e áreas para circulação de maior velocidade, principalmente bicicletas, retiraria as liberdades que hoje existem, em que os próprios visitantes do parque se coordenam, mesmo com imperfeições. Um desenho higienista provavelmente restringiria significativamente os arranjos culturais existentes. Tais eventos procurariam outras áreas, o que talvez traria uma maior atenção para a área de baixo do Minhocão. 3. O trabalho de mestrado de Rafael H. Neves, O descortinar da arquitetura através do metaprojeto, aborda de maneira contemporânea o caso, apontando um rumo à solução do

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problema. Com profundo embasamento teórico, a dissertação procura por metodologias projetuais que consideram a complexidade das relações urbanas. Certamente é um estudo indispensável a quem deseja propor soluções para a área e será de grande serventia àqueles que queiram encarar situações urbanísticas contemporâneas. 4. A ciência proposta por Foucault, a heterotopologia, hoje certamente abordaria os espaços virtuais. São estes um topos ou por si só constituiriam heterotopias? O entendimento do espaço o qual possuíamos antes do mundo virtual pode estar completamente defasado. A criação desta nova realidade parece tão relevante quanto à noção de espaço empírico e espaço mental. Parece ter sido adicionado um novo campo à Arquitetura, um campo que não é de seu domínio, o que evidenciaria o seu rumo atual, tornando-se mais do que nunca uma área necessariamente multidisciplinar.

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IMAGENS p.6 - autoria própria p.22 - autoria própria p.24 - autoria própria p.26 - autoria própria p.35 - coautoria p.35 - autoria própria p.39 - coautoria p.40 - coautoria p.43 - autoria própria p.45 - autoria própria p.47-51 - autoria própria p.59-73 - autoria própria p.79-80 - Odd Lots: revisiting gordon matta-clark’s fake states p.82-83 - mapas PMSP; fotos próprias p.84 - autoria própria p.85 - Pet Architecture - BOW-WOW p.88-89 - Renata Lucas p.96 - cedidas pela autora p.99 - cedidas pela autora p.102 - www.theslabstack.com p.106-123 - autoria própria p.128 - https://miesarch.com/work/1384 e https://www.e-architect.com/paris/ parc-de-la-villette p.130 - https://www.architectural-review.com/buildings/parc-de-la-villettein-paris-france-by-bernard-tschumi e https://commons.wikimedia.org/wiki/ File:Folie_N8_@_La_Villette_@_Paris_(33893431256).jpg p.134 - http://outrosurbanismos.fau.usp.br/espacos-vazios-urbanismos/ e Empenas p.136 - fotografias e imagens próprias p.138-149 - autoria própria

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