Descaso na prevenção ao fogo

Page 1

REPORTAGEM

DOMINGO 24.2.2008 JORNAL ABC

Descaso na prevenção ao fogo Fotos Gabriel Guedes/GES-Especial

GAbriel Guedes

“O incêndio só acontece onde a prevenção falha.” O célebre alerta do Corpo de Bombeiros ressalta a necessidade de se precaver dos riscos de tragédias. E onde a vida já é colocada à prova diariamente a responsabilidade deve ser redobrada. Mas na prática nem sempre é assim. Em dois dos sete hospitais de Canoas, Novo Hamburgo e São Leopoldo, principais cidades da região, o ABC Domingo constatou problemas preocupantes na segurança contra o fogo. A situação mais crítica é do Hospital Centenário, único de São Leopoldo. No local, não há Plano de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI), exigido com base na legislação estadual. A inexistência do PPCI no Centenário, onde faltam diversos equipamentos de prevenção, levou a abertura de um procedimento investigativo pelo Ministério Público, com base em denúncia encaminhada pelo Corpo de Bombeiros da cidade. A questão se arrasta desde 2004. “Estamos preparando um cronograma detalhado para implementar o PPCI no prédio, que será apresentado à Promotoria”, explica o advogado da Fundação Hospital Centenário, Anuar Pereira Filho. A casa é administrada pela prefeitura. Em Canoas, o Hospital Nossa Senhora das Graças (HNSG), instituição beneficente mantida por repasses provenientes do Sistema Único de Saúde (SUS), subvenções governamentais e doações comunitárias, tem seu plano, mas desde 2005 não consegue mais renovar o Alvará de Prevenção e Proteção Contra Incêndio. A justificativa, conforme o engenheiro de Segurança do Trabalho do hospital, Eduardo Kazinski, é a série de intervenções no prédio para melhorias. “Cumprimos as normas. Apenas não temos o alvará renovado por uma questão de economia, já que tivemos dois setores reformados”, aponta. Juntas, as duas instituições onde foram constatadas irregularidades têm leitos para atender 740 pacientes e empregam cerca de 1,8 mil funcionários. Também em Canoas, o Hospital de Pronto-Socorro está com o PPCI em dia. A situação mais tranqüila foi verificada em Novo Hamburgo. O Hospital Municipal (HMNH), o único público na cidade, está encaminhando a documentação para renovar o alvará pela segunda vez. De acordo com o diretor-financeiro, Leonardo Hoff, o plano foi implementado no ano passado e inclusive já foi utilizado. A queda de um raio na madrugada do dia 6 de fevereiro de 2007 resultou em cinco horas de trabalho somente com a iluminação de emergência e na evacuação de três pacientes da Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

CASO GRAVE: no Centenário, o que deveria ser a saída de emergência da UTI Neonatal é uma sacada

Centenário expõe vulnerabilidade O Hospital Centenário vive um drama. O prédio construído há 74 anos não comporta as adequações exigidas pelo Corpo de Bombeiros. “A prevenção é uma questão de responsabilidade. A gente quer que o pessoal se ajuste. Estamos apenas exigindo o cumprimento da lei”, aponta o chefe da Seção de Prevenção de Incêndio (SPI) do Corpo de Bombeiros de São Leopoldo, major Jorge Petersen. “Realmente temos a dificuldade do prédio antigo, que requer intervenções melhor pensadas. Mas já estão sendo providenciadas as primeiras exigências”, contrapõe o chefe de Manutenção Preventiva do hospital, Ari Carlos de Leis Filho. O Centenário tem 150 extintores. Mas de acordo com levantamento feito pela Center Arquitetura, escritório contratado pelo município para elaborar o PPCI, ainda faltam 69. No último dia 16 de fevereiro,

PRIMORDIAL: local sem extintor o ABC Domingo registrou a falta de um extintor de pó químico no começo do corredor de acesso à UTI. Além disso, a instituição carece de 162 unidades de iluminação de emergência, 169 placas fotoluminescentes de sinalização, indicando a saída do prédio, rede de hidrante,

alarme de incêndio, Sistema de Proteção contra Descargas Atmosféricas (SPDA) e de uma Brigada de Incêndio. O que mais chama a atenção no hospital é a porta no lado de fora da UTI Neonatal, na parte recém-construída, com a aparência de uma sacada e somente vista do pátio interno. “É, deveria ser uma saída de emergência”, confirma Leis. O engenheiro da Center, João Carlos Alievi, argumenta que se trata de uma saída alternativa e não de emergência. “É um ponto de acesso para que uma viatura dos Bombeiros, com escada magirus, possa fazer um resgate, se necessário”, explica. Da sacada ao chão, são pelo menos quatro metros. Uma simples escada facilitaria qualquer operação. A UTI Neonatal só tem esta saída, além do acesso principal. No local, há dez incubadoras destinadas a crianças nascidas prematuras e com até 28 dias.

8

REPORTAGEM

DOMINGO 24.2.2008 JORNAL ABC Fotos Rivelino Meireles/GES-Especial

TRINTA DIAS DE TERROR

SEM SABER O QUE FAZER Quem responde por questões de segurança do Hospital Centenário não se atreve a afirmar que o local está preparado para enfrentar uma situação de emergência. “É difícil dizer”, tenta responder o chefe de Manutenção Preventiva, Ari Carlos de Leis Filho. O último treinamento, apenas sobre extintor, foi há cerca de dois anos e meio e teve a participação de 20 dos cerca de 800 funcionários. Com 29 anos de experiência, o chefe da Seção de Prevenção de Incêndio (SPI) do Corpo de Bombeiros de São Leopoldo, major Jorge Petersen, recorda de uma de suas missões mais dramáticas. Foi um incêndio no Hospital São Vicente de Paula, em Passo Fundo, no ano de 1989. “Não foi fácil retirar os pacientes, tendo em vista as condições deles. Alguns até dependiam de aparelhos. Na hora, a gente vai tirando as pessoas de qualquer forma. Ainda bem que não teve nenhuma vítima fatal, mas foi terrível”, relata. Petersen reitera que o PPCI tem a função de dar uma resposta rápida em caso de incêndio e se diz preocupado com o Centenário. “Estamos esperando o plano. Como não nos foi remetido, temos a obrigação de encaminhar denúncia ao Ministério Público para que seja cobrada uma atitude”, esclarece. Por uma questão de bom senso, o major descarta interdição. “Só se uma decisão judicial determinar. Sem hospital, os danos seriam maiores.” A promotora de Justiça Especializada de São Leopoldo, Luciana Moraes Dias, se negou a revelar detalhes do inquérito. A denúncia foi feita em 18 de outubro do ano passado. Segundo o advogado do Centenário, Anuar Pereira Filho, a intenção é encaminhar a questão para um acordo, por intermédio de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC). O município se comprometeria em implantar as adequações exigidas para um PPCI dentro de um prazo a ser negociado com o Ministério Público.

VAI DEMORAR Como instituição pública, a implantação do PPCI no Centenário deve demorar. Licitação e orçamentos estarão presentes no processo, com investimento maciço de recursos. O advogado do hospital, Anuar Pereira Filho, avisa que os equipamentos dependem de dotação orçamentária para serem adquiridos. No momento, apenas os 69 extintores estão sendo comprados.

9

REFORMA: Kazinski mostra novas instalações de segurança da UTI e, apesar do alvará expirado, assegura que HNSG segue as normas de prevenção

Em Canoas, hospital não tem o alvará A proximidade com o Corpo de Bombeiros de Canoas, distante apenas um quilômetro do Hospital Nossa Senhora das Graças (HNSG), pode garantir rápido atendimento no caso de um acidente. Mas não é o suficiente. O chefe da Seção de Prevenção de Incêndio (SPI) do Corpo de Bombeiros canoense, Carlos Alberto Andrade, revela que o Plano de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI) do HNSG deixou de ser executado. “Já foi feito. Mas não está mais em dia. Eles (hospital) não renovam o alvará de prevenção desde 2005.” A instituição, por outro lado, vê a questão apenas pelo

Plano prevê pelo menos 20 itens O engenheiro civil pós-graduado em Engenharia de Segurança do Trabalho Carlos Wengrover diz que o PPCI pode reduzir em até 80% o registro de ocorrência de incêndios, conforme estima o Corpo de Bombeiros. “Isso comprova a sua eficiência”, assegura. No caso dos hospitais, é uma medida indispensável. Os hospitais precisam cumprir no mínimo 20 itens de segurança, conforme estabelecem a legislação e as normas técnicas. Entre as exigências, de forma resumida, estão hidrantes e sprinklers de incêndio, iluminação de emergência, sinalização de saídas, sinalização de segurança contra incêndio e pânico, alarme contra fogo, saídas alternativas pelas janelas, para acesso à escada de bombeiros, pára-raios e treinamento de Brigada de Incêndio. “A implantação vai depender do porte da edificação, mas para dar uma idéia de ordem de grandeza, não ultrapassa a 10% do custo da construção.”, calcula Wengrover. “Mas para hospitais todo o cuidado é pouco. Deve ser feita também uma manutenção elétrica rigorosa e, para cada novo equipamento a ser instalado, um redimensionamento do projeto”, conclui.

aspecto burocrático e afirma: a prevenção está em prática. O major reconhece as dificuldades enfrentadas pelas finanças debilitadas do hospital e pelo prédio antigo, mas avisa que a corporação denunciará em março a instituição ao Ministério Público, caso não seja tomada uma atitude definitiva. “Foram feitas reuniões, dado os prazos’’, diz Andrade. Ele descarta qualquer pedido de intervenção. O engenheiro de Segurança do Trabalho do HNSG, Eduardo Kazinski, garante que o hospital tem todos os extintores, alarmes de incêndio, ilumina-

ção de emergência e sinalização, conforme foi constatado pela reportagem do ABC Domingo. “Temos obras que modificaram o layout do prédio. Estamos aguardando uma definição para apresentar um PPCI condizente com a realidade do hospital e evitar desperdício de recursos”, defende o engenheiro. O HNSG, segundo ele, está preparado para enfrentar uma situação de gravidade, inclusive contando com uma Brigada de Incêndio. Entretanto, Andrade aponta dois problemas: a hidráulica e a iluminação de emergência são precárias. “O prédio antigo re-

quer reparos, mais hidrantes e saídas adequadas de emergência. E ainda carece de sinalização”, acusa. Entre as modificações mais recentes, está a ampliação e melhoria da área destinada ao atendimento a convênios e da nova Unidade de Terapia Intensiva (UTI), inaugurada há cerca de oito meses. O prédio antigo tem corredores largos, que dão acesso aos 370 leitos e possibilitam a circulação dos mil funcionários da casa de saúde. Até 2005, quando foi inaugurado o Hospital de Pronto-Socorro, administrado pela prefeitura, o HNSG era o único de Canoas.

COMO É EM OUTROS HOSPITAIS Regina Segundo o Corpo de Bombeiros de Novo Hamburgo, o hospital está com o PPCI em dia. No entanto, de acordo com o major Cleber Valinodo Pereira, está em processo de readequação devido a algumas obras recentes. “A cada intervenção numa instalação, é preciso atualizar o PPCI”, justifica o militar. A direção do Regina preferiu não se manifestar sobre o assunto. Municipal de Novo Hamburgo

Unimed O alvará de prevenção vence em 25 de setembro. “Nos preocupamos com os aspectos mais elementares em prol de nossos pacientes, médicos e colaboradores”, declara o vice-presidente da Unimed Vale do Sinos e diretor-administrativo do hospital, Luis Carlos Melo. O programa de qualidade da cooperativa médica também observa questões de segurança. Hospital Universitário da Ulbra De acordo com os Bombeiros, o estabelecimento está com o PPCI dentro das normas e não há problemas. Ninguém da instituição foi localizado para comentar o assunto. Hospital de Pronto-Socorro de Canoas O chefe da Seção de Prevenção de Incêndio (SPI) do Corpo de Bombeiros canoense, Carlos Alberto Andrade, informa que o HPS (foto abaixo), inaugurado em 2005, foi construído dentro das normas vigentes, exigidas para novas edificações.

O PPCI foi implantado em 2007 e custou R$ 70 mil, incluindo a instalação da iluminação de emergência, adequação de portas de emergência e sinalização. “Era uma pendência e teve que ser resolvida. O PPCI é fundamental porque minimiza os efeitos de uma tragédia”, comenta o diretor-financeiro do HMNH, Leonardo Hoff. O hospital (foto acima), administrado pela prefeitura hamburguense, se prepara para encaminhar a documentação necessária para renovação do alvará, que expira no dia 2 de abril.

Em cerca de 30 dias, o Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo teve três incidentes que colocaram em xeque a manutenção e a segurança do maior complexo hospitalar da América Latina, com 2,2 mil leitos. Promotores do Ministério Público paulista afirmam que o hospital não cumpria as exigências para obter o auto de vistoria do Corpo de Bombeiros. Mesmo pressionada, a direção do HC ignorou as cobranças. O primeiro episódio e o mais notório, decorrente do descaso com o PPCI, na noite de 24 de dezembro de 2007, foi marcado por um incêndio no Ambulatório do Instituto Central, com a remoção de 200 pacientes. As imagens chocaram o País. Em 22 de janeiro passado, uma pane elétrica provocou apagão na Fundação Pró-Sangue e as coletas foram suspensas. Um dia depois, houve princípio de incêndio no setor de Endoscopia, no sexto andar do prédio dos ambulatórios. Em 2005, com o alvará vencido – que não era expedido por falta de cumprimento do PPCI –, a direção pediu prazo para reparar o sistema de prevenção e de combate a incêndios, mas não honrou a promessa. A direção do HC alegou atrasos na liberação de verbas e problemas em licitações para não cumprir o cronograma de reparos.

Entidades cobram mais segurança Envolvidos no dia-a-dia dos pacientes e dos hospitais, profissionais da medicina e da enfermagem também demonstram preocupação com o descumprimento das normas de segurança estabelecidas pelo Plano de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI). A vice-presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), Maria de Assis Brasil, reclama de instituições que, segundo ela, não têm nem o básico para trabalhar. “Imagina como fica então a questão das situações emergenciais. Hospitais do Vale do Sinos não fogem disso. São tragédias anunciadas”, critica. “Nossa fiscalização tem o objetivo primordial de garantir a prestação de uma assistência de saúde de qualidade ao usuário, tanto dos profissionais, quanto dos hospitais”, comenta a coordenadora do Departamento de Fiscalização do Conselho Regional de Enfermagem do Estado (Coren-RS), Dianne Mara Vittorassi. O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) optou por não se manifestar sobre o tema.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.