Mentira

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Escola Superior de Propaganda e Marketing Curso de Graduação em Design com Habilitação em Comunicação Visual e Ênfase em Marketing Projeto Integrado Projeto III | Cultura e Informação | Professora Marise de Chirico Língua Portuguesa III | Professora Regina Ferreira de Novaes Produção Gráfica | Professor Antonio Celso Collaro Projeto Gráfico: Bianca Taipina, Felipe Castellari, Gabriela Sumodjo, Rafael Ochoa e Thais Jacoponi ___________________________________________________________________________ V5 16m Veríssimo, Luis Fernando As mentiras que os homens contam/ Luis Fernando Veríssimo. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2001 166 p.: ilustr.

ISBN 85-7302-338-4

1. Literatura brasileira - Crônica. I. Título CDD B.869.4 ___________________________________________________________________________


Dedicamos este livro a todos aqueles que n達o mentem.


Mentir de forma consciente e voluntĂĄria tem mais valor do que dizer a verdade de forma involuntĂĄria. PlatĂŁo


SUMÁRIO 10 15 33 47 71

Prefácio A Mentira Farsa Homem que é Homem Bibliografia


PREFÁCIO Querido leitor, Antes de começar, gostaria de perguntar para você, por que todo mundo faz careta ao ler a palavra prefácio? Quer dizer, nunca conheci nenhum admirador de prefácios, ou qualquer pessoa que tenha orgulho de assumir que tenha lido um prefácio inteirinho sem ter dado uma piscadinha mais lenta de algumas horas. Mas, e se eu disser que é nele que estão contidas todas as informações sobre o livro. Alguém o leria? Neste caso você ficaria menos sem graça quando perguntassem sobre o tema do livro, ao invés de demorar um minuto na tentativa de inventar uma história depois de disfarçadamente ler o título. Aliás, falando em situações constrangedoras, me diga quem nunca contou uma mentirinha fajuta em horas desesperadoras? Como aquela típica cena de filme em que o casal é pego em flagrante pelo policial e alega firmemente que não estava fazendo nada demais, “era só um beijo de despedida”. E quando você está atrasado pro trabalho e põe a culpa no trânsito de São Paulo? Ou então, se você mora no Paraná e chegou atrasado em casa, sempre tem aquela desculpa ”Mulher,fiquei parado ali na marginal, perdi a hora para chegar em Congonhas porque estava fechado

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de novo devido a chuvas constantes”. Lógico que com uma dessas, não tem nem como argumentar, né? Ninguém bota fé na previsão do tempo. Agora, colocar um homem com uma cruz na mão na frente da tevê o torna incontestável, ele é de fato um enviado de Deus, afinal ele sabe fazer o sinal da cruz e falar em diferentes tonalidades. Mas não vamos nos desviar de nosso assunto principal… Este livro foi criado a partir de pequenos contos sobre a mentira criados por um escritor muito simpático que toca jazz e diz não ser nada engraçado. Ou seja, Luis Fernando Veríssimo. Depois que ler esses contos, sua vida nunca mais será a mesma.

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João chegou em casa cansado e disse para a mulher, Maria, que queria tomar um banho, jantar e ir direto para a cama. Maria lembrou a João que naquela noite eles tinham ficado de jantar na casa de Pedro e Luíza. João deu um tapa na testa, disse um palavrão e declarou que, de maneira nenhuma, não iria jantar na casa de ninguém. Maria disse que o jantar estava marcado há uma semana e seria uma falta de consideração com Pedro e Luíza, que afinal eram seus amigos, deixar de ir. João reafirmou que não ia. Encarregou Maria de telefonar para Luíza e dar uma desculpa qualquer. Que marcassem o jantar para a noite seguinte. Maria telefonou para Luíza e disse que João chegara em casa muito abatido, até com um pouco de febre, e que ela achava melhor não tirá-lo de casa àquela noite. Luíza disse que era uma pena, que tinha preparado uma Blanquette de Veau que era uma beleza, mas que tudo bem. Importante é a saúde e é bom não facilitar. Marcaram o jantar para a noite seguinte, se João estivesse melhor. João tomou banho, jantou e foi deitar. Maria ficou na sala vendo televisão. Ali pelas nove bateram na porta. Do quarto, João, que ainda não dormira, deu um gemido. Maria, que já estava de camisola, entrou no quarto para pegar seu robe de chambre. João sugeriu que ela não abrisse a porta. Naquela hora só podia ser chato. Ele teria que sair da cama. Que deixasse bater. Maria concordou. Não abriu a porta. Meia hora depois, tocou o telefone, acordando João. Maria atendeu. Era Luíza, querendo saber o que tinha acontecido.

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— Por quê ?— perguntou Maria. — Nós estivemos aí há pouco, batemos, batemos e ninguém atendeu. — Vocês estiveram aqui? — Para saber como estava o João. O Pedro disse que andou sentindo a mesma coisa há alguns dias e queria dar umas dicas. O que houve? — Nem te conto — contou Maria, pensando rapidamente. — O João deu uma piorada. Tentei chamar um médico e não consegui. Tivemos que ir a um hospital. — O quê? Então é grave. — A febre aumentou. Ele começou a sentir dores no corpo. — Apareceram pintas vermelhas no rosto — sugeriu João, que agora estava ao lado do telefone, apreensivo. — Estava com o rosto coberto de pintas vermelhas. — Meu Deus. Ele já teve sarampo, catapora, essas coisas?

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— Já. O médico disse que nunca tinha visto coisa igual. —Como é que ele está agora? — Melhor. O médico deu uns remédios.Ele está na cama. — Vamos já para aí. — Espere! Mas Luíza já tinha desligado. João e Maria se entreolharam. E agora? Não podiam receber Pedro e Luíza. Como explicar a ausência das pintas vermelhas? — Podemos dizer que o remédio que o médico deu foi milagroso. Que eu estou bom. Que podemos até sair para jantar - disse João, já com remorso. — Eles iam desconfiar. Acho que já estão desconfiados. É por isso que vêm para cá. A Luíza não acreditou em nenhuma palavra que eu disse.

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Decidiram apagar todas as luzes do apartamento e botar um bilhete na porta. João ditou o bilhete para Maria escrever. —Bota aí: 'João piorou subitamente. O médico achou melhor interná-lo. Telefonaremos do hospital”. — Eles são capazes de ir ao hospital à nossa procura. — Não vão saber que hospital é. — Telefonarão para todos. Eu sei. A Luíza nunca nos perdoará a Blanquette de Veau perdida. — Então bota aí:''João piorou subitamente. Médico achou melhor interná-lo na sua clínica particular. O telefone lá é 236 - 6688.'' —Mas esse é o telefone do seu escritório. — Exato. Iremos para lá e esperaremos o telefonema deles.

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— Mas até que a gente chegue ao seu escritório... —Vamos embora! Deixaram o bilhete preso na porta. Apertaram o botão do elevador. O elevador já estava subindo. Eram eles! — Pela escada, depressa! O carro de Pedro estava barrando a saída da garagem do edifício. Não podiam usar o carro. Demoraram para conseguir um táxi. Quando chegaram ao escritório de João, que perdeu mais tempo explicando ao porteiro a sua presença ali no meio da noite, o telefone já estava tocando. Maria apertou o nariz para disfarçar a voz e atendeu:

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— Clínica Rochedo. “Rochedo?! ''espantou-se João, que se atirara, ofegante, numa poltrona. —Um momentinho, por favor— disse Maria. Tapou o fone e disse para João que era Luíza. Que mulherzinha! O que a gente faz para preservar uma amizade. E não passar por mentiroso. Maria voltou ao telefone. — O Sr. João está no quarto 17, mas não pode receber visitas. Sua senhora? Um momentinho, por favor. Maria tapou o fone outra vez.

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— Ela que falar comigo. Atendeu com a sua voz normal. —Alô, Luíza? Pois é. Estamos aqui. Ninguém sabe o que é. Está com pintas vermelhas por todo o corpo e as unhas estão ficando azuis. O quê? Não, Luíza, vocês não precisam vir para cá. — Diz que é contagioso — sussurrou João, que com a cabeça atirada para trás preparava-se para retomar o sono na poltrona.

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— É contagioso. Nem eu posso chegar perto dele. Aliás, eles vão evacuar toda a clínica e colocar barreiras em todas as ruas aqui perto. Estão desconfiados que é um vírus africano que...

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Quand o sendo ouviu o ruíd o da p aberta or , cama e diss a mulher so ta do apart e, ela r ament — Céu e rgueu eal o s, -s O am meu marid mente disse e ligeiro na o! :
 a menos nte ergueu 
 c s e ta — O q om o mari do do mbém, es ue foi p que co que vo — Eu m a fr antado, cê di ase.
 — Foi sse “Céus, m disse?
 o e — Ele que eu pen u marido!”
 sei, m me dis as s — Tal vez nã e que ia pa não quis a cre r o a — Ser ia sort seja ele. Tal São Paulo!
 ditar.
 vez se e dem quarto ja u ais . — O q Rápido, esc . É ele. E vem m ladrão.
 u on — Ent ê? Não. Tud da-se dent vindo para o o men ro do a ão em os ba rmário —Oa !
 rmário ixo da cam o armário!
 a.
 é melh or.

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upa de ou sua ro ando g e p , a m ca ns pulou da rmário, pe O amante eira e entrou no a ”. Começou a rir, ad do cima da c e estar acontecen mbrar que tinha d po se le a “isto não oladamente. Até o da cama. Ouviu tr d n o.
 o la d c ri o s a a e d m s us sapato e abrir. E a voz do ando?
 e s o d a ix de uarto s convers porta do q uem você estava isão. E você -— Com q guém. Era a telev São Paulo?
 m nin para — Eu? Co não disse que ia levisão.
 ão tem te v o c ê n o rt a u q e é que . Aqui no — Espere d e a s s u n t o . O q u d o e m c a s a ?
 n ude e s t á fa z e odia se conter; — Não m p o ã N ário a rir. fazia o arm começou O amante sentindo que assim ca com a mão. mesmo ntar:
 apou a bo sacudir. T iu o marido pergu 
 se? Ouv rulho é es — Que ba o está em São você nã . Por que a s s re te — Não in

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s...
 sapato ria aos s e t s E se refe ronto. 
 Paulo? precisei ir, p as o marido apertados. io. c o — Nã nte gelou. M ue estavam patos. Silên e q a a a , s t m s r s a o e o t b a O o endo a os sap tirand própri evia estar banheiro s d o ra Agora da porta d omeça c a i o e d rio se O ruí fechada. mant o. O a rta do armá berro. s r i i o e p h e n m d a o a po s. deu u o no b Marid a vez quand e ele quase seus sapato r r t e a t u rir o ubitamen he entreg l s abriu ulher para m a Era

Ela fech o atirou de u a porta do arm á pudesse novo na cama a rio e se ntes que avisar q ue não eram ele os dele, aqueles sapato eram os s do marid o.

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arido rindo. M . Voz b a e s cio eiro go silên o banh Porta d o quarto. Lon aa de volt ido: do mar apatos...

ss — Este é que tem?
 ocê e u q ?
 seus. V o —O s ã o s o ã m o? S que — De , de quem sã o m o meus. o —C e tirar.
 unca foram d ad u o b aca examin eu tos n e t a n p e a s s s iam — Este . Mulher obv se conta do om c io o , c d a n n da Silê r cim :
 atos e da po os sap amante, ain er, agressiva lh u O . m o a err zd e ar.
Vo falta d

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— Onde foi que você a rranjo — Estes sa patos não sã u estes sapatos?
 — Exatame o meus, eu nte. E de qu já disse!
 em são? Co casa com u m o é que voc m par de sa ê sai de pato e cheg a com outro ?
 — Onde foi — Espera a que você a — Eu cheg í. .. 
 n d o u ? Vamos, re uei em casa sponda!
 com os me sm os sapatos Estes é que que saí. — São os sa não são os patos que v meus sapato ocê tirou. V s.
 ocê mesmo estavam ap disse que ertados. Log o, não eram os seus. — Só um m Quero explic omentinho. ações.
 Silêncio. Ma Só um mom rido tentan entinho!
 do pensar e m alguma c dizer.
Finalm oisa para ente, a voz da mulher, triunfante:

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do san s a s. P orça f que 
 s . ! — s. do s sua a n t a er oa to olu esp upand abs s sapa os u o — r t e s ta st tad ag — E rido re ue.
 absolu com e r aper 
 sta pé. Ma o ataq rteza uarto m e meu :
 e a q a r c i a e d t o o p e ent enh i nes o po que — T entre eles nã es do r, friam .
 não e só, maior ulhe icação m h l tro E ol ue são cio. A a exp den tro q n i m r ê u o u l i p ro s á en aq óh em para d Out tão s m o n :
 ro h ulou .
 — E arido out Ele p patos m m 
 sa u. O ual? co va chego eu os Q a t c — u es ê e u oc — E ndo v o e esq a i qu rmár a do

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Silêncio terr ível. respiração se O amante prenderia a não precisa sse de ar. A mulher con tinuou:
 — Mas, ness e caso, onde é que estão seus sapato os s?
 O homem, se m muita con vicção:
 — Você pod eria ter entr egue os me sapatos para us o homem de ntro do armário, por engano.
 — Muito be m. Agora, a lém de adúlt você está m era, e chamando de burra. Muito obrig ada.
 — Não sei n ão, não sei n ão. E eu ouv vozes aqui d i entro...
 — Então faz o seguinte. Vai até o armário e ab re a porta.

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O ama

nte se ntiu qu Mas a gora n e o armário seu co ão era sacud do ma ração. Ouviu o seu riso. E ia. rido a ra o os p Prepar proximando és descalço s o u s e do -se corren do do para dar um armário. quarto pulo e an sair Derrub tes que o m e do aparta ar m a tinha o ria o marido ido se recup ento eras s pé na p — Voc s maiores. M assagem. A se. ê sabe fina a s a mu , é clar lher fa l, o , lou:
 q em q ue n arruina ue abrir ess o momento a por ndo não ho uver n o nosso casa ta estará conseg inguém mento . u que vo iremos conv aí dentro, nu Se cê pen iver co nca m sou qu e havia o fato de . Será o fim.

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?
 ante lguém er um am osso a r e v u uv on se ho ior. Se ho armário, ma farsa E p — o rá nu será tro d rato. — Aí ecas den ansforma teatro ba ulo. r c de cu ento se t oria. Em om o ridí g c m e r t a cas ceira ca convive r de te oderemos m.
 p tos, o fi o Nã será ns minu m é abrir Tamb s de algu eciso r p 
 i : u Depo ido disse aneira, e ardar r m u o ma ualquer io para g r q á e — D a do arm .. t . p a or ha roupa n i am

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se. e eu dis u q o n pense abriu a porta a. Mas — Abr nte, o marido ante se e m Lentam io. Marido e a dois disse r á os d m r a m do o enhu N . m a u quatr r encara pois de três o Com licença” e :“ nada. 
D marido disse a roupa. o su s minuto u a pendurar te de dentro o ç e a, m n e come iu lenta edindo licenç a s e t n p a m m a é O u mb a. Paro ário, ta do arm iu para a port Disse:
 ”. ig e se dir uviu um “Psiu o o quand migo?
 — É co

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— É — disse o marido — Os meus sapatos. 
O amante se lembrou que es tava com os sapatos erra dos na mão, ju ntou com o resto da sua ro upa. Colocou os sapatos do marido no chão e pegou os se us. Saiu pela porta e não se falou mais nis so.

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Homem que é Homem não usa camiseta sem m an g a, a n ã o s e r para jogar basquete. Homem que é Homem n ã o g o s t a d e canapés, de cebolinhas em conserva ou de qu a l q u e r o u t r a c o i s a que leve menos de 30 segundos para mastiga r e e n g o l i r . H o m e m que é Homem não come suflê. Homem que é H o m e m — d e agora em diante chamado HQEH — não deixa s u a m u l h e r mostrar a bunda para ninguém, nem em baile d e carn ava l . H Q E H não mostra a sua bunda para ninguém. Só no v e s t i á r i o , p a r a outros homens, e assim mesmo, se olhar por m a i s d e 3 0 segundos, dá briga.

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HQEH só vai ao cinema ver filme do F ra n c o Z e f f ire lli quando a mulher insiste muito, e passa t o d o o tempo tentando ver as horas no escu r o . H Q E H não gosta de musical, filme com a J ill C la y b u rg h o u do Ingmar Bergman. Prefere filmes com o Lee Marvin e Charles Bronson. Diz que at o r m e s m o era o Spencer Tracy, e que dos novos, ti r a n d o o Clint Eastwood, é tudo veado.

E o HQEH tem razão. Confesse, voc ê e s t á c o m e l e . Você não quer que pensem que voc ê é u m p r i m i t i v o , um retrógrado e um machista, mas l á n o f u n d o v o c ê torce pelo HQEH. Claro, não concor d a c o m t u d o o q u e ele diz. Quando ele conta tudo o qu e v a i f a z e r c o m a Feiticeira no dia em que a pegar, v o c ê s a c o d e a cabeça e reflete sobre o component e d e m i s o g i n i a patológica inerente à jactância sexua l d o h o m e m latino. Depois começa a pensar no q u e f a r i a c o m a Feiticeira se a pegasse.

HQEH não vai mais a teatro porque tam b ém n ã o gosta que mostrem a bunda à sua mu lh er. S e v o c ê quer um HQEH no momento mais baixo d e s u a vida, precisa vê-lo no balé. Na saída ele d iz q u e até o porteiro é veado e que se enxe rg ar m a i s alguém de malha justa, mata.

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Se você não sabe se tem um HQEH d e n t r o d e v o c ê , faça este teste. Leia esta série de sit u a ç õ e s . E s t u d e - a s , pense, e depois decida como você r e a g i r i a e m c a d a situação. A resposta dirá o seu coefi c i e n t e d e H Q E H . Se pensar muito, nem precisa respon d e r : v o c ê n ã o é HQEH. HQEH não pensa muito! Existe um HQEH dentro de cada brasileiro, s e p u l t a d o sob camadas de civilização, de falsa sof istic a ç ã o , de propaganda feminina e de acomod ação. S i m , d e acomodação. Quantas vezes, atirado n a f re n t e d e u m aparelho de TV vendo a novela das 8 — u m a h i s t ó r i a invariavelmente de humilhação, renú n cia e s u p e r a ç ã o femininas — você não se perguntou o q u e e s t a v a fazendo que não dava um salto, ven cia a re s i s t ê n c i a da família a pontapés e procurava um a rep r i s e d o Manix em outro canal? HQEH só vê f u teb ol n a T V. Bebendo cerveja. E nada de cebolinh as em c o n s e r v a ! HQEH arrota e não pede desculpas.

Situação 1 Você está num restaurante com nom e f r a n c ê s . O cardápio é todo escrito em francês. S ó o p r e ç o e s t á em reais. Muitos reais. Você pergunt a o q u e s i g n i f i c a o nome de um determinado prato a o m a î t r e . V o c ê tem certeza que o maître está se esf o r ç a n d o p a r a n ã o rir da sua pronúncia. O maître levará m a i s t e m p o p a r a descrever o prato do que você para c o m ê - l o , p o i s o que vem é uma pasta vagamente ma r i n h a e m c i m a d e uma torrada do tamanho aproximad o d e u m a m o e d a de um real, embora custe mais de c e m . Vo c ê c o m e de um golpe só, pensando no que o s o p e r á r i o s s ã o obrigados a comer. Com inveja. Sua acom p a n h a n t e

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pergunta qual é o gosto e você respon d e q u e não deu tempo para saber. O prato p rin cip a l vem trocado. Você tem certeza que p ed iu u m “Boeuf à quelque chose” e o que vem é um a fatia de pato sem qualquer acompanh am en t o . Só. Bem que você tinha notado o nom e: “Canard melancolique”. Você a prin cíp io s e n t e pena do pato, pela sua solidão, mas m u d a d e idéia quando tenta cortá-lo. Ele é um d u ro, pode agüentar. Quando vem a conta, você n o t a que cobraram pelo pato e pelo “boeu f ’ q u e não veio. Você: a) paga assim mesmo p ara n ã o dar à sua acompanhante a impressão d e q u e s e preocupa com coisas vulgares como o d in h e i r o , ainda mais o brasileiro; b) chama di screta m e n t e o maître e indica o erro, sorrindo para d ar a entender que, “Merde, alors”, estas coisas acontecem; ou c) vira a mesa, quebra u m a garrafa de vinho contra a parede e, seg u ra n d o o gargalo, grita: “Eu quero o gerente e é m e l h o r ele vir sozinho!

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Situação 2 Você foi convencido pela sua mulhe r, n a m o r a d a ou amiga — se bem que HQEH não t e m “amigas”, quem tem “amigas” é ve a d o — a entrar para um curso de Sensitivação O r i e n t a l . Você reluta em vestir a malha preta, m a s a c a b a sucumbindo. O curso é dado por um j a p o n ê s , provavelmente veado. Todos sentam n u m c í r c u l o em volta do japonês, na posição de l ó t u s . M e n o s você, que, como está um pouco for a d e f o r m a , só pode sentar na posição d o a r b u s t o despencado pelo vento. Du r a n t e 1 5 m i n u t o s todos devem fechar os olho s , j u n t a r a s p o n t a s dos dedos e fazer “rom”, a t é q u e s e i n t e g r e m na Grande Corrente Univer s a l q u e v e m d o Tibete, passa pelas cidades s a g r a d a s d a Í n d i a e do Oriente Médio e, estranh a m e n t e, b e m e m cima do prédio do japonês, a n t e s d e v o l t a r p a r a o Oriente. Uma vez atingido e s t e e s t á g i o , t o d o s devem virar para a pessoa a o s e u l a d o e

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estudar seu rosto com as pontas dos d e d o s . Não se surpreendendo se o japonês c h e g a r p o r trás e puxar as suas orelhas com forç a p a r a lembrá-lo da dualidade de todas as c o i s a s . Durante o “rom” você faz força, mas n ã o consegue se integrar na grande corre n t e universal, embora comece a sentir u m a se n s a ç ã o diferente que depois revela-se ser câ im b ra . V o c ê : a) finge que atingiu a integração para n ã o c o r t a r a onda de ninguém; b) finge que nã o e n te n d e u bem as instruções, engatinha fazend o “ ro m ” até o lado daquela grande loura e, na h o r a de tocar o seu rosto, erra o alvo e aga rra o s seios, recusando-se a soltá-los mesm o q u e o japonês quase arranque as suas orelh a s; c ) d iz que não sentiu nada, que não vai se g u ir a d ia n te com aquela bobagem, ainda mais d e m a l h a preta, e que é tudo coisa de veado.

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Situação 3 Você está numa daquelas reuniõe s e m q u e h á lugares de sobra para sentar, mas to d o m u n d o senta no chão. Você não quis ser di f e r e n t e, s e atirou num almofadão colorido e ta r d e d e m a i s descobriu que era a dona da casa. S u a m u l h e r está tendo uma conversa confidenci a l , d e m ã o s dadas, com uma moça que é a cara d o C h a r l t o n Heston, só que de bigode. O jantar é à americana e você não tem mais um j o e l h o p a r a colocar o seu copo de vinho enquan t o u s a o s outros dois para equilibrar o prato e c o r t a r o pedaço de pato, provavelmente o mesmo d o restaurante francês, só que algumas seman a s mais velho. Aí o cabeleireiro de cabelo mec h a d o ao seu lado oferece:


— Se quiser u sar o m e u . . . —Oseu . . . ? — Joel h o . — Ah.. . — El e e s t á d e s o c u p a d o .

Você: a) resolve entrar no espírito da f e s t a e c o m e ç a a tirar as calças; b) leva seu copo de v i n h o p a r a u m canto e fica, entre divertido e irônic o , o b s e r v a n d o aquele curioso painel humano e org a n i z a n d o u m pensamento sobre estas sociedades t r o p i c a i s , q u e passam da barbárie para a decadênc i a s e m a e t a p a intermediária da civilização; ou c) pe g a s u a m u l h e r o u namorada e dá o fora, não sem ant e s d e r r u b a r o Charlton Heston com um soco.

— M as e u não o con h eço. — Eu ap resen to. E ste é o meu jo e lh o . — Não. Eu d igo, você... — Eu, hein ? Q u anta formalid ade. A p o sto q u e se e u est ivesse oferecen d o a p ern a to d a v o c ê ia p e d ir r efer ênc ias. Ti-au.

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Se você escolheu a resposta a para tod as as s i t u a ç õ e s , não é um HQEH. Se você escolheu a resp os t a b , n ã o é um HQEH. E se você escolheu a resp osta c, t a m b é m não é um HQEH. Um HQEH não resp on d e a t e s t e s .

Um HQEH acha que teste é coisa d e v e a d o . Este país foi feito por Homens que eram H o m e n s . O s desbravadores do nosso interior bra vio n ão t i n h a m nem jeans, quanto mais do Pierre Card in . O q u e s e r i a deste pais se Dom Pedro I tivesse se atrasad o n o d i a 7 em algum cabeleireiro, fazendo massag em f a c i a l e cortando o cabelo à navalha? E se tivesse g r i t a d o , e m vez de “Independência ou Morte”, “ I n d ep e n d ê n c i a o u Alternativa Viável, Levando em Cons id eraçã o T o d a s as Variáveis!”? Você pode imaginar o Ru i B a r b o s a d e sunga de crochê? O José do Patrocí n io d e c o l a n t ? O Tiradentes de kaftan e brinco numa orelh a s ó ? H o m e n s que eram Homens eram os bandeiran tes. C o m o s e sabe, antes de partir numa expedição, os b a n d e i r a n t e s

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subiam num morro em São Paulo e a b r i a m a b r a g u i l h a . Esperavam até ter uma ereção e dep o i s s e g u i a m n a direção que o pau apontasse. Profis s ã o p a r a u m H Q E H é motorista de caminhão. Daqueles q u e, d e p o i s d e comer um mocotó com duas Malzib i e r, d o r m e m n a estrada e, se sentem falta de mulhe r, l i g a m o m o t o r e trepam com o radiador. No futebol H Q E H é b e q u e central, cabeça-de-área ou centroav a n t e. M e i o - d e - campo é coisa de veado. Mulher do a m i g o d e H o m e m que é Homem é homem. HQEH não t e m a m i z a d e colorida, que é a sacanagem por ou t r o s m e i o s . H Q E H não tem um relacionamento adulto, d e c o n f i a n ç a mútua, cada um respeitando a liber dade do o u t r o , n u m a transa, assim, extraconjugal m a s a s s u m i d a , e n t e n d e ? Que isso é papo de mulher p r a d a r p r a t o d o m u n d o . HQEH acha que movimento gay é c o i s a d e v e a d o .

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HQEH nunca vai a vernissage.

HQEH não está lendo a Marg u erite Y o u r c e n a r , não leu a Marguerite Yourcenar e n ã o v a i l e r a Marguerite Yourcenar.

HQEH diz que não tem preconceito m a s q u e se um dia estivesse numa mes ma s a l a c o m t o d a s as cantoras da MPB, não desencos t a r i a d a p a r e d e .

Coisas que você jamais enc o n t r a r á e m u m H Q E H : batom neutro para lábios r e s s e q u i d o s , p a s t i l h a s para refrescar o hálito, o te l e f o n e d o G a b e i r a , entradas para um espetácu l o d e m í m i c a .

Coisas que você jamais deve d i z e r a u m H Q E H : “Ton sur ton”,“Vamos ao balé?”, “Prove estas cebolinhas”.

Coisas que você jamais vai o u v i r u m H Q E H d i z e r : “Assumir”, “Amei”, “Minha porção m u l h e r ” , “A c h o q u e o bordeau fica melhor no sofá e a r á f i a e m c i m a d o p u f ” .

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Não convide para a mesma mesa: u m H Q E H e o S i l v i n h o . HQEH acha que ainda há tempo de s a l v a r o B r a s i l e j á conseguiu a adesão de todos os H o m e n s q u e s ã o H o m e n s que restam no país para uma camp a n h a d e r e g e n e r a ç ã o do macho brasileiro. Os quatro só não têm se reunido m u i t o seguidamente porque pode parecer coisa d e v e a d o .

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A mentira é um agente infeccioso dispersando-se pelos falsos caminhos da sociedade.Vaga sem destino, critério ou seleção.

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Bibliografia Instituto Estadual do Livro. Luis Fernando Veríssimo. Porto Alegre: IEL, 3ªed. 1991. VERÍSSIMO, Luis Fernando. As Mentiras que os Homens Contam. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. LUIS FERNANDO VERÍSSIMO. Literal Terra. Disponível em <http://literal. terra.com.br/verissimo> REVISTA ÉPOCA.Por que as pessoas mentem. Solange Azevedo, Celso Masson, Andres Vera com Danilo Soares.Disponível em < http:// revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI27316-15228,00POR+QUE+AS+PESSOAS+MENTEM.html>

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Esta obra foi composta em Glypha 35 Thin, Frutiger Bold e Frutiger Extra Black Condensed. Foi impressa com o miolo em papel CouchĂŠ fosco 150 g/m2 na grĂĄfica Power Graphics, em abril de 2011. Capa revestida com papel Supreme Duo Design 300g/m2.


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