Garota dos sonhos, Lauren Mechling

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Eu estava passeando tranquilamente pelo corredor do ­aeroporto, cuidando da minha vida e pensando no novo visual que teria com o delineador líquido que havia comprado no duty‑free em Paris, quando o vi ao longe: o cadeado cor-de-rosa. Estava pendurado em uma bolsa de mão cor de vinho ornada com franjas passada pelo ombro de uma mulher que estivera no mesmo voo que a minha família, voltando para Nova York. Ela viera na primeira classe e, quando embarcamos, fiquei surpresa com a forma com que havia prendido seu cabelo castanho para cima em um penteado perfeitamente desalinhado. Os franceses são assim — mesmo seu desalinho é perfeito. Só que agora eu a estava examinando por um motivo diferente. O cadeado em sua bolsa era igual ao que eu havia visto no meu devaneio na área de espera antes do nosso voo. Sem pensar duas vezes, me separei da minha família e disparei em frente. Enquanto me aproximava dela, vi que era mais jovem do que eu havia pensado — provavelmente não muito mais velha do que eu. Era um desses tipos 5

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lindos mas mortais, com olhos frios de ônix e maçãs do rosto bem definidas. Mais para estrela de Hollywood, menos para francesa sofisticada. E não havia dúvidas a respeito do cadeado. Era exatamente igual ao que eu ha­ via imaginado. Se ela sentiu que eu a estava seguindo, não demonstrou. Só continuou trotando, os saltos clicando no piso duro. Apressei o passo e, quando cheguei mais perto, vi que seu trench coat estava puxado apertado em volta de um volume enorme e suspeitosamente irregular. O que ela estava escondendo ali dentro? Fiquei um pouco para trás e a observei enquanto ela entrava e saía da multidão. E aí eu devo ter piscado devagar demais, sei lá. Ela havia sumido. Comecei a entrar em pânico — sem dúvida, ela ia apron­ tar algo escuso e agora eu a havia perdido. Aí, mais um vislumbre do cadeado cor-de-rosa — ela tinha dado uma guinada para o lado do corredor e aberto a porta do banheiro. Uma aba do casaco ondulou e a porta se fechou. Dei uma espiada por cima do meu ombro. Minha família estava quase me alcançando e eu sabia que eles queriam sair do aeroporto o mais rápido possível. Mas tinha que haver um motivo para eu ter visto o cadeado cor-de-rosa no meu devaneio. Ela parecia suspeita e eu precisava descobrir o que estava escondendo debaixo daquele casaco. Abri caminho por um grupo de comissárias e parti como uma flecha para a porta. Preparando‑me para o pior, eu 6

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a abri. A garota estava curvada por cima de uma mesa ao lado de uma fileira de pias. Pelo espelho eu podia ver sua expressão concentrada e as dobras iguais a uma sanfona que haviam se formado em sua testa. Ela estava transportando drogas? Montando uma bomba nuclear? Ou talvez tivesse sido contratada por uma agência de adoção do mercado negro para contrabandear um bebê ilegalmente! Eu me esgueirei por trás dela, meus olhos fixos no ca­ deado cor-de-rosa. Ainda não tinha um plano, mas tinha que chegar ao fundo disso. E então, sem realmente pensar a respeito, estiquei a mão e agarrei seu ombro. Ela o puxou de volta e então se virou rapidamente. Seu casaco estava desabotoado e havia um cachorrinho na bancada, mal se equilibrando nas pernas enquanto bebia água numa tigela de plástico. — Posso ajudá‑la em alguma coisa? — vociferou a garota para mim. — Não, eu... eu pensei que você era outra pessoa. Ela me encarou e o volume agourento — ou, como acabou se mostrando, o cãozinho sedento — tirou a cabeça da água e espirrou. Mal consegui balbuciar um pedido de desculpas e saí aos tropeços. Eu e minhas visões idiotas.

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1 Uma suposta mente brilhante

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—  laire! — gritou papai pelo corredor do aeroporto. — Zeep zeep! Estava se esforçando ao máximo para soar autoritário, mas com seu sotaque francês, ele me fazia lembrar do Pepe Le Gambá. Minha família inteira havia parado de andar correndo e estava olhando para mim como se eu fosse pessoalmente responsável pelo quanto se sentiam cansados e mal‑humorados depois de um voo de oito horas de volta para casa. Mamãe deu um bocejo exagerado e meu irmão caçula, Henry, sobrecarregado com sua mochila enorme, caiu contra as pernas dela. A garota com o cachorrinho saiu do banheiro e me lançou um olhar cauteloso. Ela deslizou na minha frente e não pude deixar de dar mais uma olhada no cadeado 9

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cor-de-rosa pendurado em sua bolsa. Era com certeza o mesmo que eu havia visto na minha mente antes de embarcarmos. Infelizmente, era só isso. Não significou nada. — Estou indo! — gritei. Eu tinha visões desde pequena, mas normalmente elas eram idiotas ou não queriam dizer nada, como o Henry segurando um guarda‑chuva verde com um desenho de um sapo ou, digamos, um cadeado rosa‑shocking — coisas que eu veria depois na minha frente, mas que nunca me levavam a nada significativo. Houve uma vez em que vi algo que valia a pena: uma foto de um gato tigrado cochilando dentro de um chapéu. Quando vi a mesma imagem em uma das caixas de chapéu da minha avó Kiki, espiei dentro e encontrei montes de cópias de carbono de cartas trocadas entre Kiki e minha mãe na época em que a mamãe ainda estava na faculdade. De repente, tudo fez sentido — meus pais e a Kiki não se encontravam com regularidade só por causa de uma diferença de estilos de vida, era o que eles me haviam feito acreditar. Tinha havido uma enorme desavença. Kiki desaprovara violentamente minha mãe ter ficado noiva de seu “professor falido de francês” e, quando meus pais foram em frente e se casaram escondido, Kiki escreveu uma carta digna de novela para a minha mãe dizendo algo como “ter sido excluída do casamento da minha única filha foi mais doloroso do que você, que ainda não tem filhos, pode imaginar. Acho que nunca irei me recuperar totalmente.” 10

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Essa revelação foi importantíssima — e não só porque explicava tanta coisa sobre a minha família. Também me dava motivos suficientes para acreditar que a minha próxima visão poderia levar a alguma descoberta monumental. Uma esperança à qual eu me agarrava com todas as minhas forças. Eu nunca disse uma palavra sobre as cartas a Kiki, mas ela já sabia tudo sobre as minhas visões. Eu tive que contar a ela — no instante em que você pensa em guardar um segredo dela, ela sente o cheiro. E não achou muito estranho quando contei. Disse que era culpa dos meus pais, já que foram eles que haviam escolhido o meu nome. — Não se faz isso com uma garota cujo sobrenome é Voyante — ela resmungou. — Não que Claire não seja um nome lindo sozinho...* De sua parte, meus pais disseram que me batizaram em homenagem à tia‑avó do meu pai, Claire, que morreu durante uma onda de calor parisiense no verão em que eu nasci. Meu irmão caçula, Henry, é legalmente Henri ou, como meu pai pronuncia, An‑rri. Minha mãe, que acha que é francesa, tenta pronunciar da maneira francesa, mas ela se esquece pelo menos a metade das vezes. Na esteira de bagagens, minha mãe estava baixando a francesa que tem dentro de si. — Voilà! Lá estão! — gritou, acenando com sua garrafa de água Evian para o outro lado da esteira como se sua mala também pudesse estar procurando por ela. Mesmo *Clairvoyant: clarividente, em francês. (N. da T.) 11

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quando está berrando, a voz da mamãe é leve e feminina, o oposto da minha voz grossa e rouca. — Você as está vendo? — perguntou papai. Ele apertou os olhos e se esticou na ponta dos pés para olhar para além da multidão. — Ah, lá está a minha, vindo bem atrás da sua! — E então puxou mamãe para perto e a beijou, como se o fato de suas malas estarem perto uma da outra fosse a coisa mais romântica do mundo. Acho que é assim que as coisas são quando sua mãe não só é bonita, mas também é gata. E não estamos falando de gata‑para‑uma‑mãe. Ela é injusta e inteiramente gata, com enormes olhos sonolentos e membros finos como gravetos. O destino quis que eu parecesse com o meu pai, ou pelo menos com como ele seria se fosse uma garota de 15 anos e não um professor de francês de meia‑idade. Eu sou baixinha e loura, com uma boca em forma de Cheerio, reta como uma tábua e com uma superbunda — estou mantendo os dedos cruzados pelos acontecimentos futuros. A única forma que encontrei de usar meu cabelo volumoso é em um rabo de cavalo alto. A maioria das pessoas diz que a coisa mais diferente em mim é que eu tenho um olho verde e um cor de mel, mas acho que meu amigo Louis acertou na mosca quando disse que estou sempre enrugando o nariz como um pato confuso. Atraente, eu sei. Enquanto reuníamos nossas malas e nos dirigíamos para a saída, podíamos ver nossa amiga e vizinha Cheri‑­ Lee Vird esperando por nós em seu Honda verde no meio‑fio. 12

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— Iuhuu! — Ela enfiou seu cabelo ruivo curto para fora da janela do carro. Mamãe e papai não acreditam em pagar por táxis (ou, por falar nisso, por livros novos ou cereal de marca) e sempre arrumam alguém para nos pegar no aeroporto. Cheri‑Lee normalmente é esse alguém. — Desculpe se a deixamos esperando — disse mamãe quando estávamos todos espremidos dentro do carro. Tínhamos mais malas do que cabia no bagageiro, então Henry sentou no meu colo na configuração ah‑tão‑confortável de cotovelo‑espetando‑o‑baço. Desde que nos deixara no aeroporto no começo do verão, Cheri‑Lee havia decorado um pouco seu carro. Um bando de andorinhas vermelhas de plástico estavam presas ao feltro que cobria o teto e ela colara rosas turquesa no volante. No último ano, havia começado a passar por uma fase de trabalhos manuais, tingindo camisolas antigas e comparecendo a seminários sobre carimbos com batatas. Parecia que a festa ainda não havia acabado. — Vocês devem estar exaustos — disse Cheri‑Lee, ajustando o retrovisor. — Viajar pode ser tão desnorteante. — Como professora universitária de poesia, Cheri‑Lee acha que é seu dever apresentar palavras interessantes. — Fiquei presa na biblioteca nos últimos três meses. Não há nada como iluminação fluorescente para manter longe aquela cor de verão. Pelo amor do sistema decimal de Dewey, di­gam‑me que o seu verão foi melhor. — Oui — disse papai. — Acho que foi melhor. — Incomoda‑se de explicar? — Cheri‑Lee entrou em outra pista. 13

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— Fomos a todos os lugares — comecei a falar. — Paris, o campo, o Sul. Vimos parentes, castelos antigos, lojas de queijos não pasteurizados, praias de nudismo... — Seus europeus loucos e selvagens! — Cheri‑Lee riu nervosamente. — Agora, Claire, espero que tenha aproveitado ao máximo, louco e selvagem não é exatamente a especialidade da Hudson. Ainda assim, não há nada errado em um novo começo! Sheila com certeza adorou o novo começo dela. Pff. Por que ela tinha que falar na Henry Hudson dez minutos depois de termos pisado o chão? Mas também, se esperássemos cem anos, eu ainda não ia querer falar sobre a Henry Hudson High, a escola na qual ia começar a estudar em alguns dias. Era uma escola de nerds, no Lower East Side, conhecida por seus departamentos competitivos de matemática e ciências, clube de xadrez de nível nacional e problemas recorrentes com amianto. Também era a escola na qual a filha de Cheri‑Lee, Sheila, estudava. Sheila e eu éramos muito amigas, tão amigas que, no verão depois do sexto ano, convenci meus pais a me deixarem não ir às nossas férias anuais na França para ficar com Sheila na Colônia de Férias Maple Rock. O problema foi que a Sheila frequentou uma “pré‑colônia” de dois dias para ex‑frequentadores e, quando eu finalmente cheguei, a antiga fanática por espadas e feitiçaria conseguira se tornar normal e ficar amiga de todos os garotos populares de quem ela zoava em suas cartas para mim nos dois verões anteriores. Eu não podia acreditar — assim 14

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que cheguei, ela agiu como se mal me conhecesse. E as coisas não melhoraram quando fiquei amiga de Hayden Chapman, seu namorado gatinho de cabelo desgrenhado­ do verão anterior. Nunca aconteceu nada entre mim e Hayden, mas Sheila — e o resto da Colônia de Férias Maple Rock — estava convencida do contrário. Dois anos depois, Sheila e eu ainda mal nos falávamos, mas mamãe e Cheri‑Lee estavam constantemente armando para nos unir novamente. — Você vai ter uma educação tão boa — piou Cheri‑Lee. Papai, o maior defensor da Henry Hudson, virou‑se e me deu uma piscadela de aprovação. Cheri‑Lee continuou: — Acredite em mim, essa escola não tem nada a ver com a Farmhouse. Senti como se fosse sufocar. Isso era para ser encorajador? Eu não tinha o menor desejo de sair da Escola Farmhouse, meu lar espiritual nos últimos nove anos, uma escola “para os dotados e talentosos”, o melhor lugar do mundo. Alguns membros de uma trupe de teatro comunista a haviam fundado nos anos 1940 e lá havia tudo que uma criança poderia querer em uma escola: turmas pequenas, nada de provas, uma cozinha de testes onde os alunos podiam conduzir seus próprios experimentos com fondue de chocolate. Havia até uma família agregada de coelhos vivendo no jardim. Havia, no entanto, uma coisa terrível a respeito da Farmhouse: como eles não davam provas normalmente, a escola fazia com que todos os alunos da oitava série fizessem o exame de admissão para a Henry Hudson como 15

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treino. Era anunciado como medida de precaução contra futuros desastres no vestibular. Se alguém não passasse na prova da Hudson, tinha que ter aulas de acompanhamento até pegar a manha de fazer exames. Eu não dava muita importância ao teste, nem mesmo quando acabei gabaritando. Não era como se houvesse chances de eu acabar em uma escola como a Henry Hud­ son. A Farmhouse valorizava a criatividade, a comunidade e a excentricidade, as mesmas coisas que meus pais defendiam. Supostamente. Isso foi antes da minha carta de admissão chegar. A Henry Hudson era gratuita. Mamãe e papai estavam financeiramente duros. Faça as contas. Eu não iria de jeito nenhum. Houve um monte de gritos e chutes. Caí em prantos à mesa do jantar, em várias ocasiões. Quando isso não funcionou, entrei em greve de silêncio por dois dias. Mamãe e papai ainda não haviam cedido, então eu apelei para Kiki, mas ela também não me ajudou em nada. — Sinto muito, querida — disse ela —, mas tendo em vista que eu só gastaria meu dinheiro em um bom colégio interno e não tenho interesse em que você viva mais longe de mim do que já mora, temo não poder ser de grande ajuda. É claro que Henry pode ficar na Farmhouse. Na opinião da mamãe e do papai, Henry é um gênio que merece um lugar na escola para dotados e talentosos criativamente. E eu não demonstrei nenhum sinal de talento, a 16

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não ser saber a letra da maioria das músicas dos grupos femininos dos anos 1960 ou perseguir garotas inocentes e cachorrinhos em banheiros de aeroportos. Apesar dos meus amigos da Farmhouse dizerem que sabiam que a culpa não era minha por estar indo embora, tudo mudou — e rápido. Eu sempre fora bastante popular, mas depois que o boato de que eu ia embora se espalhou, as pessoas começaram a agir de forma estranha. Meus pais disseram que era porque eles estavam com inveja por ter me saído tão bem no teste, mas eu sabia a verdade: eles estavam zangados comigo por eu me mandar. E, no final do ano, quando Sarah Blumenthal deu uma festa e convidou todo mundo menos o mudinho da sala, Cyd Federman, e eu, não fiquei tão surpresa assim. — Cheri‑Lee está falando com você — disse Henry, me cutucando na coxa. Olhei pela janela do banco de trás e percebi que já estávamos passando pela Houston Street. Faltavam só alguns dias para o Dia do Trabalho e pessoas de short e chinelos estavam se arrastando como se não tivessem para onde ir. — Você devia ir lá em casa visitar a Sheila antes do começo das aulas — estava dizendo Cheri‑Lee — Tenho certeza de que ela tem montes de conselhos para lhe dar. — Isso seria maravilhoso — se intrometeu mamãe. — Vou ver o que posso fazer — exclamou Cheri‑Lee. — Sei que a escola tem reputação de ser meio careta, mas a galera da Sheila é uma graça. Ninguém do grupo usa protetores de bolso. Ah, e você sabia que estão na mesma classe? Isso é que é acaso! 17

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— Isso é... ótimo — gemendo internamente, dobrei as mãos em volta da cintura de Henry e enterrei meu nariz em seu ombro. Eu não queria falar sobre acaso, ou sobre mais nada, para dizer a verdade.

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