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REVERSOS & TRANSVERSOS
ARTISTAS FORA DO EIXO (E AMIGOS) NAS BIENAIS
Ayrson Her Clito
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O processo de racialização brasileiro, e o seu racismo subsequente, vem sendo problematizado pela história recente do país. É neste contexto, quando emergem novos sujeitos da vida política, como os afro-indígenas, que devemos entender a opção, inédita, da 35ª Bienal Internacional de São Paulo, por compor uma curadoria majoritariamente negra. A nossa proposta curatorial, na presente exposição, busca dialogar com esse momento transformador. Ao questionarmos sobre o lugar dos artistas do povo nas bienais, queremos denunciar as práticas históricas de segregação que orientaram muito das bienais brasileiras, ao tempo em que nos irmanamos como a ousadia do evento na sua luta contra as políticas de exclusão.
A ideia de popular, no sistema de arte brasileiro, sempre acompanhou discussões mais amplas sobre os conceitos de povo e identidade nacional. Tais reflexões estão associadas à criação da imagem de um Brasil independente e, supostamente, livre do seu passado colonial. Na primeira metade do século XX, essa questão sempre foi objeto de disputa, de diferentes grupos e regiões, cuja maior tensão se dá entre o grupo regionalista de Gilberto Freyre e o grupo modernista de São Paulo.
Freyre via a cultura popular como um acervo da identidade nordestina. Tal análise é embasada no entendimento de um Brasil profundo e tradicionalista, fruto da síntese miscigenada das três raças matriciais que constituem o povo brasileiro. Segundo a leitura desse autor, podemos pensar que esse acervo já é uma produção da modernidade. É por isso que ele tenta criar uma redoma de proteção, uma “política regionalista” de salvaguarda aos bens culturais populares.
Os artistas modernos associados ao projeto do Sudeste, em oposição a Freyre, irão se inspirar no acervo da cultura popular, para, a partir daí, criar as suas obras. É por isso que Tarsila bebe na palheta das cores caipiras das cidades coloniais mineiras. Com forte penetração nos aparelhos de Estado, importa salientar que essa corrente instaura as instituições e políticas públicas para salvaguarda da cultura popular brasileira. O anteprojeto de criação do SPHAN, coordenado por Rodrigo Mello Franco, por exemplo, fora escrito por Mário de Andrade.
Na década de 1950, uma terceira via para essa discussão foi aberta por Lina Bo Bardi. Informada pelo conceito de nacional popular do filósofo italiano Antonio Gramsci, ela irá construir todo o seu olhar político-estético. Seu diferencial é compreender o próprio modernismo enquanto uma experiência social e popular. Dessa forma, ela promove uma superação entre cultura moderna e cultura popular, retirando, dessa maneira, o reducionismo folclórico ao qual o tema do popular estava circunscrito. Por estarmos de acordo com a leitura de Lina, optamos pela denominação de “artistas do povo” em detrimento de “artista popular”.
O pensamento decolonial e o pensamento antirracista, no momento histórico atual, vêm pressionando as hierarquias tradicionais do sistema da arte, com seus diferentes sujeitos, linguagens e poéticas, promovendo, por consequência, uma profunda revisão nas concepções de arte. Daí que os marcadores étnicos-raciais e sociais, que enclausuravam artistas em rótulos, como “primitivos”, “primitivistas”, “naifes (ingênuos)”, “populares”, estão sendo explodidos em seus significados de subjugação política, denunciando a relação da arte com as estruturas de dominação e com as desigualdades sociais. Esse novo contexto exige profundas transformações ideológicas das concepções de cultura e uma ressignificação do campo do simbólico, o que levaria a uma transformação da ideia de cultura popular.
A presente investigação se debruça sobre o “fenômeno das bienais”, por ser ele um marcador crítico das produções artísticas, visto o seu caráter de incentivo e legitimação da produção da arte. Nosso objetivo é observar a inserção da arte do povo nas bienais. Para tal exercício, perguntamos sobre as relações entre: arte e mercado; arte e legitimação institucional; “artistas” e “artistas do povo”; arte popular e arte de vanguarda; arte e dominação; a emergência dos sujeitos artistas afro-indígenas. Para tanto, estabelecemos o seguinte recorte investigativo: 1) Bienais internacionais; 2) Bienais nacionais; 3) Bienal Latino-americana; 4) Mostra do Redescobrimento, e “amigos de produções poéticas semelhantes”.
Nossa trajetória, nesse universo tão complexo, se deu através de operações de aproximações, diálogos e deslocamentos, das distintas poéticas, dos artistas do povo e dos ditos artistas eruditos no sistema da arte brasileira. A partir de então, foi possível estabelecer uma espécie de revisão crítica dos espaços sociais e simbólicos, reservados a diferentes agentes no contexto dos grandes eventos de consagração artística (bienais). Por exemplo, ao reunirmos na exposição os trabalhos de Volpi e Lúcia Suanê, queremos enfatizar a profunda semelhança poética dos artistas. Os referidos artistas têm trabalhos de valor inquestionável pela crítica especializada. Então perguntamos: o que legitima o abismo do valor comercial entre as obras de Volpi e Suanê no mercado de arte?
O projeto modernista sudestino também admite contradições, quando seleciona artistas do povo, alçando-os aos mais elevados patamares da arte brasileira. Esse é o caso de Volpi e Djanira, que estão lado a lado com os “artistas” do modernismo. Em relação à arte contemporânea, encontramos Marepe, um artista baiano que, partindo da cultura popular, promove deslocamentos e apropriações, abrasileirando o conceito de ready-made. A mesma sorte de ser incluído nos altos circuitos, não teve Alcides Pereira nem Antônio Poteiro, que ficaram aprisionados a uma ideia exótica e tradicional da arte popular. Por essa razão, Alcides e Poteiro, normalmente, não são vistos como agentes formuladores da modernidade e contemporaneidade na arte.
Ideologicamente a modernidade utiliza imagens da cultura popular a serviço da dominação burguesa. Associá-la a um saber autêntico, puro, alheio às transformações da sociedade, produz dessa cultura do povo uma imagem alienada. No campo das artes visuais, relaciona-se arte popular a uma figuração ingênua, executada por “artista” autodidata, em oposição aos “artistas” ditos eruditos, produtores da vanguarda, como aqueles relacionados à arte abstrata. Convidamos para uma experiência de fruição nas obras de Ranchinho e Antonio Bandeira, respectivamente vistos como “artista do povo” e “artista de vanguarda”. O primeiro, autodidata, filho de boia-fria e com problemas mentais, produzia uma sofisticada pintura, comparada à dos grandes mestres do pós-impressionismo europeu. Mas, a sua condição de classe não lhe permitia usufruir do status de artista de vanguarda. O segundo, considerado mestre do abstracionismo brasileiro, mesmo autodidata, teve acesso à vanguarda artística internacional através de bolsas para estudo no exterior. Sendo eles artistas de elevado grau de elaboração estética, Ranchinho nunca ultrapassou as fronteiras hierarquizantes da arte.
É importante também ressaltar o caráter complexo de como as classificações serão subvertidas no mundo das artes. É o caso dos artistas Gilvan Samico e Juraci Dórea, que foram associados a concepções do Movimento Armorial 1 , mas que sempre foram vistos como artistas contemporâneos, vide a inclusão das suas obras em grandes curadorias históricas.
A pesquisa prossegue refletindo sobre arte contemporânea e arte popular. Vejamos um exemplo da pop art no Brasil. Esta, que se define como produção de um “folclore urbano”, onde o artista busca interpretar a cultura popular e a cultura de massa, terá em artistas como Aurelino dos Santos e Mirian Inêz representações atípicas, por transitarem entre os limites da arte popular e da pop art. Isso é evidente nas assemblagens de Aurelino, com materiais inéditos à moda das combiner de Rauschenberg, e na visualidade de Mirian, homenageando ícones da cultura pop brasileira.
Constatamos em nossa investigação que na história das bienais internacionais de São Paulo, a partir da segunda metade da década de 1960, com a consolidação das estéticas de arte contemporânea, se esvazia, gradativamente, a participação dos artistas do povo. Essa realidade vem sendo questionada no cenário artístico atual, pela inserção de novos e diversos sujeitos, que vem alterando e diversificando o perfil do artista e a ideia de arte. A grande visibilidade da arte dos povos originários e de artistas negros nas recentes edições das bienais no Brasil comprovam essas mudanças.
Desde o meu envolvimento na criação do núcleo curatorial Rotas e transes: Áfricas, Jamaica e Bahia, no projeto de Histórias Afro-Atlânticas, venho refletindo sobres os embates das ditas formas periféricas e subversivas (muitas delas nomeadas de arte popular) da produção artística com os sistemas hegemônicos da arte ocidental.
Movido por essa atenção às margens, quero entender como no Brasil trajetórias estéticas subalternizadas e vicinais denunciam formas de lutas e resistências das populações afro-indígenas, contra as politicas de controle e assujeitamentos coloniais.
Movimento Armorial: criado em 1970 por Ariano Suassuna e que propunha um conceito de arte “autenticamente” brasileira, popular, ao modo de Gilberto Freyre.
Nessa perspectiva, encontramos em espaços invisibilizados e não legitimados pelo sistema da arte, como as aldeias hippies, as comunidades originárias, os quilombos, uma contracultura estrategicamente potente nas suas investidas contra o status quo da arte contemporânea. São esses os territórios produtores de uma visibilidade áspera, tradutora de processos artísticos pulsantes. Daí que as obras de J. Cunha e Louco precisam ser compreendidas enquanto marcos da vanguarda tropicalista brasileira, longe do folclorismo a que estão aprisionadas.
Dalton de Paula e Xadalu Tupã Jekupé representam, nesta curadoria, esses artistas emergentes. Com uma produção artística comprometida e associada com as práticas antirracistas e decoloniais – fruto das políticas de reparação e das ações afirmativas –, os artistas em questão constroem suas poéticas afirmando o seu pertencimento étnico-racial. Visibilizando suas concepções cosmogônicas, lutando contra o apagamento e a reconstrução das memórias afro-indígenas, ao tempo em que lançam luzes sobre as suas ancestralidades, suas ações reivindicam que se reconheçam, dessa forma, os seus lugares de fala.
A ocupação de espaços institucionais da arte, com a desconstrução de seus paradigmas excludentes e suas práticas de dominação, é um movimento que vem ganhando força no sistema da arte. É preciso democratizar a produção, a difusão e a reflexão do simbólico. Todos têm que ser convidados para o debate – instituições culturais, públicos, artistas, curadores, críticos de arte, doadores, colecionadores, galeristas e empresários. Todos devem ser responsáveis pela construção de uma sociedade redimida das suas desigualdades. Só assim poderemos avançar e conceber um sistema de arte diverso e inclusivo.
RANCHINHO SEBASTIÃO THEODORO PAULINO DA SILVA
(1923, Oscar Bressane, São Paulo, Brasil 2003, Assis, São Paulo, Brasil)
Sem título, déc. 80 Untitled, 1980’s Óleo sobre cartão Oil on cardboard
35 x 50 cm 13.77 x 19.68 in
Crédito da imagem: João Liberato
ANTONIO BANDEIRA
(1922, Fortaleza, Ceará, Brasil 1967, Paris, França)
Campos queimados Burnt fields, 1964 Óleo sobre tela Oil on canvas
81 x 100 cm 31.88 x 39.37 in
Crédito da imagem: Jaime Acioli