ROCHA DE SOUSA Das personagens ilustradas aos desastres principais
SテグMAMEDE GALERIA DE ARTE
Março 2016 04. Transportadores de Gases Letais 2004 AcrĂlico sb tela 80x80cm
MELANCOLIA E CAOS A PINTURA DE ROCHA DE SOUSA “Parece-me evidente que os puros efeitos visuais e a dramaticidade das imagens poderiam facilmente adquirir mais ênfase. Rocha de Sousa procura outra coisa: a Verdade, (…) compreende que é o alargamento da consciência que conta.” Rui Mário Gonçalves
A arte de Rocha de Sousa: crítico, professor, ficcionista, cineasta e artista, com uma obra plástica que hoje nos apresenta, reflete os vários aspetos da sua personalidade, sempre conduzidos pela imagem e por isso mesmo devolve-nos uma visão única da sociedade contemporânea e de um momento da nossa civilização. Não em espelho no entanto, mas na visão em abismo de uma melancolia, de um pathos com um sentido simultaneamente cultural e cósmico, espécie de destino fatal que assombra e ameaça a aventura humana. A “teoria dos desastres” na sua pintura, as suas catástrofes atuais e anunciadas são mais do que retratos subjetivos de uma realidade que todos conhecemos. São verdadeiros quadros de uma trajetória contemporânea que une o discurso das imagens e sobre as imagens ao grito expressionista de uma interioridade ameaçada pelas agressões exteriores e a uma sensibilidade romântica que se compraz na meditação sobre o espetáculo da dor que a própria natureza parece partilhar. E sobre tudo isto a orquestração sinfónica da composição vertiginosa e extremamente segura no bailado das linhas e das formas viscerais, orgânicas, abstratas e concretas em simultâneo, pontuadas pelos negros e por uma paleta austera de tons neutros e secos repentinamente acordada pela espécie de irrupção que subjaz a este universo. Desde 2003, estão representadas nesta exposição três importantes séries da pintura de Rocha de Sousa: “Desastres Principais” (1889-2003), “Personagens Ilustradas” (2003) e “Documentos Impossíveis” (2004). Os títulos de algumas séries são eloquentes dão-nos de certa forma a chave da sua estética: “Tumultos do Desejo e do Poder” (1980), “Naufrágios”, “Excerto da Obra Apocalipse Now”, “A última Morada, A Hora da Memória”, “Desastres Principais”. Bem como os títulos de alguns quadros: “Restos dos Desastres da Guerra”, “Crucificação”, “O Baile da Conflitualidade”, “Adormecimento”, “A Marcha dos Homúnculos”, “A Teoria do Desastre”, “Mutilações Civilizacionais”, “A Cidade do Lixo”. Entre a realidade e a ficção que se derrama caudalosamente sobre as imagens do colapso de uma era, a arte de Rocha de Sousa reflete o “mal-estar da civilização” já diagnosticado por Freud em 1930. A Éros e à pulsão de morte, na origem da cultura e da civilização, segundo Freud, deu a antropologia do imaginário de Gilbert Durand a correspondência no plano do inconsciente coletivo e individual, dos Regimes Noturno (de Éros) e Diurno (de Thánatos (morte) e Krónos (Tempo)), da imagem.
Na sua pintura reflete-se o regime de uma oposição, de um conflito sem tréguas, a noite de um erotismo negro e desencantado que parece a outra face de um conflito sem solução, antecâmara do Apocalipse, verdadeiro domínio da morte e de um tempo devorador que de um nível individual se eleva a um plano global e cósmico Lixo, mutilações, deformações, homúnculos e desastres, identificam, como na obra de grandes pintores europeus, o inglês Francis Bacon (1909-1992) ou mais recentemente o sérvio radicado em Paris Vladimir Velickovic (n. 1935), uma imagem central e fundadora de uma vertente icónica da contemporaneidade, a crucificação, com a dupla vertente do homem e da civilização, incapazes de se regenerarem sob o impulso vivificante do mito e do imaginário. Rocha de Sousa refez os mil caminhos das imagens para nesse longo périplo procurar o que se acha disperso no labirinto das suas próprias imagens, a integridade luminosa e intocada da alma e do rosto humanos na sua pureza e integridade originais, uma beleza que parece emergir, como uma remota salvação messiânica, da fogueira onde ardem calcinados todos os vestígios de uma fraude, de um traição imemorial infligida pelo homem ao homem. Dessa fragmentação onde a imagem se depura, se abstratiza, na procura de uma síntese ou de uma fórmula antigas, perdidas, das chamas de uma noite oceânica onde mergulhou há muito a existência humana vemos ressurgir, como na revelação de um negativo fotográfico, uma outra cor, uma outra luz, o dealbar de uma aurora que só após o longo e dolorosa hiato das trevas mais profundas assume todo o esplendor. A obra de Rocha de Sousa que ao longo de décadas exercitou o seu olhar e o seu espírito no estudo e na valorização da arte dos seus contemporâneos insere-se na linha de uma melancolia com um teor metafísico que De Chirico inaugurou no século XX. Sem rótulos e sem escolas, sem forçados “ismos”, acedeu a um estilo único, entre o real e o irreal, a imagem e a sua negação, o humano e o seu duplo, conquistando na sua pintura, como na sua pedagogia de algumas décadas, verdadeiramente o estatuto de um Mestre.
Maria João Fernandes
DAS PERSONAGENS ILUSTRADAS AOS DESASTRES PRINCIPAIS
Ninguém sabe se Deus existe e de que morte padece o homem, o crente do nada. As fantasias que tecemos à volta das nossas percepções, a qualquer hora do dia, são apenas um enquadramento do visível a tornar-se real. Tudo é tanto que precisamos baixar a guarda, deixando mergulhar as mãos no sangue do orvalho escorrendo das lâminas. Prece, espera, raiva de um passado insuportável. Mas as coisas em geral são reanimadas, um jornal aparece na mesa, os dedos enfim tocando na notícia, inquietos, ou daí a pouco voltando essa primeira página, fazendo aparecer a seguinte, quase sempre o olhar a deixar-se seduzir pelo rosto à direita, vendo os bocados da composição. E em baixo a mulher destroçada pelos combóios do vento. Hoje podemos fitar longamente aquela fotografia: quatrocentos e cinquenta mil curdos em fuga, atravessando a fronteira da Turquia, deixando atrás de si um rasto de corpos degolados e crianças esmagadas, cemitério ao sol e sob o brilho das adagas dos islamitas radicais — um Estado absurdo, sem terra, religiosamente alucinado em pleno século XXI, contra velhas fronteiras, outras etnias, o Ocidente inteiro. As novas tecnologias abriram para todo mundo a realidade em tempo real, as explosões e as ruínas, as guerras em efeito dominó, metade do Iraque em estilhaços, a Síria destruída, o Irão vigilante, a Ucrânia violada por ímpias invasões de rebeldes de carnaval, Putin sorrindo entre as enormes portas douradas que se abrem à sua passagem. A Rússia anexou a Crimeia, acompanhou mais dois roubos de território a leste. Combate-se por lá, de forma estúpida, a logística encerrada em camiões humanitários mandados por Moscovo, filas deles, todos forrados com lona branca. Sem letras. Sem números. Sem nota de origem nem títulos de guarda. Esta grave crise internacional, ricochete das várias bolas de neve que simbolizam as diversas promiscuidades da globalização, internacionalidades sem fronteiras, transportes de todos os tipos atravancando o espaço das vias, vem rodando a roda dos negócios ou negociatas, roendo o perfil dos princípios e ajudando a sepultar valores, vidas, indústrias, culturas. Tudo o que povoara o mundo nos anos 60, a Europa sobretudo, gente como Sartre, Camus, Huxley, Bergman, Tarkosky, Antonioni, entre muitos outros, os poetas, os músicos, um solene respeito pelo grande património gerado nas épocas mais longínquas, tudo isso começou a desfazer-se em vagas silhuetas, obras descartáveis, novas tecnologias resvaláveis e sobretudo um abaixamento dos polos avançados, em níveis de excelência, durante
quase todo o século XX, desastres rasgando os caminhos reais do futuro. E agora, à entrada desse futuro, as crises anunciam, cada vez com maior despudor, o insucesso dos grandes projectos e o valor de sustentação vindo das metas superadas pela ciência ou pelas artes. Podemos agora imaginar Picasso substituído através de aleatórios desenhos soprados em tinta pelas bocas de pequenos robots, de forma ocasional ou em telecomando. Tais alternativas, a par dos minimalismos obsessivamente radicais e outros inusitados modos de formar, abrem à criação plástica um verdadeiro universo imensamente tolerante para com o gesto e a mancha, instalações perecíveis, novos mitos, outros génios sem conta, tudo cada vez mais desmontável ou preso a grandes cadeias produtivas focadas na indústria das artes, como conservas de raízes, marcas, sinais, coisas intercoláveis, capazes de tornar a variação do espaço habitado uma paisagem infinitamente massificada pelas escolhas do efémero. Nenhuma civilização, desde que a história se tornou ciência, e no momento do seu ponto mais significativo, resistiu ao descontrolo daquelas relações, depois de ser e ter, ver e fazer; todas elas, em tais circunstâncias, após cumes de iluminação, entraram em falência, começando a desistir de grande parte dos seus objectivos, deixandose seduzir por maneirismos prosaicos e preguiçosos, pensando cada vez menos na conservação das obras ou dos pensamentos fundamentais da sua génese. O homem foi sempre assim, genericamente, fragmentandose ou não, desinteressando-se das regras, do sonho e dos seus próprios contextos técnico-artísticos: e sempre parecendo que não. Esta terrível sinopse, além de apontar para longas análises e buscas sobre as mais importantes civilizações que nos precederam, corresponde afinal a uma grande parte, entre datas inqualificáveis, dos “desastres principais” acontecidos sobretudo na idade contemporânea. Desde as guerras mais remotas às duas grandes guerras mundiais do século XX, o desrespeito da entidade humana e dos seus direitos (hoje consagrados mas sem resposta), ultrapassou a medida, mesmo genérica, da vida em comunidade, abrindo processos de retrocesso um pouco por todo o planeta, entre latitudes muito diferentes, com dinheiros assimétricos, quase um século depois de terem sido destruídas em breves segundos, com apenas duas bombas atómicas, duas significativas cidades no Japão, país na altura ainda em guerra com as forças Aliadas, fundamentalmente os Estados Unidos da América.
Mas toda a cultura que se formara e condensara por volta do século XV, no benefício da expansão territorial e oceânica, salpicada das memórias antigas, conjugando tais imagens, tais ideias, tais benefícios do ver e da representação com outros planos de pesquisa e descoberta, atingiria o século XIX num plano de abertura ao planeta, aos utensílios e obras de arte, ou numa espécie de esboço para o que podemos chamar de primeira globalização. Isso fez-se na trajectória da ocupação de mais terras pelos novos impérios, contendas quanto aos direitos de chegada e usufruto, povos locais manietados à crença de um trabalho que lhes era retirado das mãos, rotas comerciais sinalizadas por fortalezas, interesses cruzados ou trocas que provocavam depois importantes circuitos por essa Europa fora, migrações de trabalho ou crença. As catedrais românicas foram passando ao gótico, entre configurações em altura, como se tais agulhas significassem a ligação a Deus e muitos soubessem que a fé católica, dominando as nações, precisava cada
vez de maior presença, de maior fascínio, feita da raridade dos efeitos, talvez milagres — enquanto a submissão das massas de camponeses, a par dos artesãos, dos pedreiros, dos afeiçoadores da madeira, da pedra, do ferro, dominava a própria luz solar através de hábeis tratos de refracção pelos vidros de cor justapostos ao jeito das grelhas de chumbo, porventura na ambição de evocar os milagres dos santos representados ou estrelas, rosáceas, o movimento nos olhos de quem se imobilizava em contemplação.
Rocha de Sousa Excerto de um livro em preparação «que lugar para o Estado Islâmico»
05. Morte Sob a Força dos Ventos 2004 Acrílico sb tela 80x80cm
10. Pombo Degolado 1989 Acrílico sb tela 100x100cm
11. A Cidade do Lixo 1999 Acrílico sb tela 100x100cm
12. As Estranhas Valas Comuns 2003 Acrílico sb tela 100x100cm
02. Mutilações Civilizacionais 2004 Acrílico sb tela 80x80cm
03. O Medo Desnorteando a Noiva 2004 Acrílico sb tela 80x80cm
ROCHA DE SOUSA Professor Universitário (aposentado) pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, onde foi docente. Participou nos órgãos directivos e científicos dessa Instituição. Foi também Professor Convidado da Universidade Aberta, onde investigou e leccionou tecnologia do vídeo. Membro correspondente da Academia Nacional de Belas Artes, membro da A.I.C.A e com larga participação na S.N.B.A. Com uma larga actividade artística, expôs no país e no estrangeiro, em termos colectivos e individuais, num total de centenas de exposições (20 individuais). Participou em diversos campos de criação e espaços de cultura: ensaio, crítica de arte (Diário de Lisboa, Colóquio, Seara Nova, Sinal, Artes Plásticas), trabalho de conferências, visitas guiadas, além de pesquisa e ensaio em cinema e vídeo, com diversos filmes publicados, arte digital. Participou na Bienal de Veneza (anos 70). Professor Convidado na Universidade Aberta onde leccionou Tecnologia do Vídeo no Mestrado dessa área. Colaborou em várias séries sobre arte para a RTP, como Arte Portuguesa, As Coisas e as Imagens, A mão, o Homem em desenvolvimento, entre várias outras. Ao longo do seu percurso, publicou livros de carácter pedagógico, didáctico e técnico (Didáctica Educação Visual, Ver e Tornar Visível, Desenho: tpu19, Introdução às Artes Plásticas, ed. Gulbenkian, entre outros sobre autores como Teixeira Lopes, Chorão, Eduardo Nery, Dourdil. No plano literário tem publicado vários livros: Amnésia (teatro), Angola 61 – uma crónica de guerra - A Casa, Os Passos Encobertos, A Casa Revisitada, A Culpa de Deus, Belas Artes e Segredos Conventuais, Coincidências Voluntárias, Talvez Imagens e Gente de Um Inquieto Acontecer, Lírica do Desassossego, Narrativas da Suprema Ausência. 2014: Os Fantasmas de Lisboa. Texto Maria João Fernandes • Grafismo e fotografia Galeria São Mamede • Impressão Gráfica Vilar do Pinheiro • Tiragem 300 exemplares
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Capa: 09. A Queda dos Astronautas Anos 60 Óleo sb Tela 90x120cm
01. Os Apetrechos da Rapariga Invisível 2004 Acrílico sb tela 80x80cm
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