Direitos e Garantias dos Adolescentes Autores de Ato Infracional

Page 1

DIREITOS E GARANTIAS DOS ADOLESCENTES AUTORES DE ATO INFRACIONAL: DAQUELAS HISTÓRIAS QUE TENTAM SER PASSADO, MAS ATINGEM O NOSSO PRESENTE

de la Torre, Antonella Nerea

Resumo Os adolescentes autores de ato infracional têm em suas mãos todas as ferramentas legais, ou seja, todos os direitos e garantias necessários que visem resguardá-los dos arbítrios do Estado. Esse sistema perpassa todas as fases atravessadas pelo adolescente processado: o momento da sua apreensão, o trâmite em juízo e o cumprimento das medidas sócio-educativas decorrentes de sentença judicial. Além disso, a realidade mostra que tanto na fase policial, quanto nos tribunais e na etapa executória, os mecanismos utilizados são alcançados pela antiga cultura de exclusão e punição, supostamente já superada ao longo da evolução do Direito da Criança e do Adolescente e contra a qual se combateu até nossos dias. Apresenta-se aqui, aferrando-se a uma metodologia basicamente histórico-comparativa, esse afastamento que atinge a nosso presente, baseado na discórdia entre o que dizem as nossas leis e o que fazem os nossos juízes. Frente a ele, questiona-se: qual é o rol do advogado?

Palavras chave Direitos da Criança e do Adolescente – Ato Infracional – Medidas sócio-educativas


Vem se dispor um chamado à conversa. Sabido é que os adultos formam parte de uma comunidade de entendimento discursivo, mas não estão sozinhos nela. Repudiando os enquadres, mas valendo-se deles quanto categorias inegavelmente presentes como recursos da comunicação da sociedade atual, deve-se reconhecer que são duas mais as gerações que, além da conformada por aqueles, compõem dita comunidade: a dos jovens e dos idosos. Todos falam, mas nem sempre todos são escutados, sendo, por isso, relegados ás vezes da posição de sujeitos do discurso. No presente, vai se propor o objetivo central de falar deles, os invisíveis, os excluídos da conversa, trazendo à discussão a questão, no Brasil, dos direitos das crianças e dos adolescentes que cometeram atos inflacionais. Deve-se ser plenamente consciente de que a infância, na sua generalidade, começou ser falada

não

muito

tempo.

Essa

categoria,

então,

constitui

um

assunto

consideravelmente recente no debate teórico da nossa sociedade. Nesta última, sem dúvidas, resultou ser mais fácil chegar a Marte do que a um grupo de pessoas que conformam o conjunto de nossos próprios semelhantes: as nossas crianças. É assim que, junto com a ausência da fala, se reproduziu uma carência de salvaguarda das

suas

garantias

fundamentais,

inerentes

a

sua

condição

de

pessoa

e,

fundamentalmente, a essa peculiar situação de desenvolvimento na qual se encontram. A proposta deste artigo é, conseguintemente, falar daqueles aos quais se atribui a prática de ato infracional, entendendo a relevância da análise do seu estado atual no seio da sociedade, à hora de lutar pelo o seu reconhecimento, a sua proteção e a sua formação integral. “Os direitos da criança representam hoje, talvez, o desafio mais importante que se produziu até agora para uma refundação do pacto social da Modernidade e a realização de uma sociedade nacional e internacional mais condizente com os princípios do desenvolvimento e da dignidade humana. Quem sabe, a questão infantil seja hoje a que pode levar a democracia frente aos seus limites, aquela que é a questão limite da democracia”1.

1

BARATTA, Alessandro. “Criança, democracia e liberdade no sistema e na dinâmica da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças”. Conferência proferida no encontro “Direito e Modernidade”, Florianópolis, 1996.


Necessário é começar, antes de ingressar no estudo histórico, deixando em claro o que é um ato infracional no contexto do Brasil. Pode-se conceituar como a comissão pela uma criança ou pelo um adolescente, de algum fato descrito na legislação penal como crime ou contravenção. “É da concepção do ato infracional como desvalor social que deriva, portanto, o sistema de repressão à criminalidade infanto-juvenil, conjunto de normas destinado a sustar ações comprometedoras da desejada paz social”2. A evolução do assunto no plano jurídico conheceu uma série de etapas, as quais foram relegando-se e superando-se as umas às outras, até chegar ao estado de coisas atual, produto de uma virada trazida pela adoção da Doutrina da Proteção Integral, tanto a nível nacional como internacional. Assim, foram-se deixando ao lado certos dogmas e paradigmas que sempre segregaram às crianças e aos adolescentes, tratando-os ora como criminosos, ora como objetos. Isso teve o seu fundamento, principalmente, numa cultura da exclusão social, na qual os menos favorecidos, ou seja, aqueles pertencentes às classes sociais mais baixas, compostas por uma considerável parcela de infantes, sempre foram colocados num segundo plano pela aquela classe encarregada de ditar as regras de comportamento. Sabido é que todo crime é político. Então, quem diz o que é crime e quem diz o que é anormal? As respostas surgem de uma parcela pequena da população, aquela que governa e decide criminalizar os comportamentos contrários ao padrão pelo qual opta. As políticas criminalizantes não são senão construções históricas do poder. “Com o surgimento do Estado Contemporâneo, caracterizado pelo dever estatal de efetivar os direitos fundamentais, a ideia de proteção á infância vai, gradativamente, sendo consagrada como uma das funções estatais obrigatórias, seja no plano internacional, seja no nacional e paralelamente distanciando-se da seara criminal para se situar autonomamente como ramo próprio do Direito”3. Destarte, no século XX, verificaram-se três grandes fases evolutivas. A primeira delas distingue-se pela uma forte criminalização da infância, sendo a sua origem coincidente

2

PAULA, Paulo Alfonso Garrido de. “Ato Infracional e Natureza do Sistema de Responsabilização”. ILANUD. São Paulo, 2006. 3 GOMES SILVA, Marcelo. “Ato Infracional e Garantias: Uma crítica ao Direito Penal Juvenil”. Conceito. Florianópolis, 2008.


com o surgimento dos Códigos Penais de caráter nitidamente retribucionistas, onde havia uma responsabilização indiferenciada entre menores e adultos. A segunda das etapas, conhecida pela a sua atitude tutelar, espalhou-se com a formulação e aplicação das chamadas “leis menoristas”, ou seja, aquelas legislações e projetos que abordavam exclusivamente o tocante às crianças e aos adolescentes. Elas criaram uma importante confusão conceitual entre menor carente e delinquente, entre o infante que necessitava de apoio social e que estava em conflito com a lei. Regravam-se pelos princípios de harmonia, ordem, integração e normalidade. Procuravam uma sorte de saneamento social para evitar desvios em relação à ordem instituída, definindo a sociabilidade do indivíduo como aquela capacidade de se adequar ao seu entorno social. As críticas foram várias, sendo a mais reconhecida, aquela que sentencia a geração de um “sistema sócio-penal de controle de toda a infância socialmente desassistida, como meio de defesa social em face da criminalidade juvenil”4. Finalmente, a verdadeira mudança nas questões relativas à infância brasileira só se deu a partir da década de 80, inaugurando uma terceira fase. Internamente, foi com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e em nível internacional, com a Convenção dos Direitos da Criança, de 1989. Tais instrumentos foram seguidos do Estatuto da Criança y do Adolescente, de 1990 e marcaram, em conjunto, uma profunda virada, estreitamente ligada ao afastamento da ideia de resolução dos problemas sob o prisma da criminalização. Assim, no nível constitucional, destacam-se três artigos que se vão transformar nos principais lineamentos guia à hora da abordagem da temática infanto-juvenil. Já no seu art. 6º a Constituição Brasileira consigna a proteção à infância como direito social5, contra todo e qualquer tipo de violência. Prevê também, no seu art. 227, que a sua garantia constitui uma responsabilidade solidária e um dever conjunto da família, da sociedade e do Estado6. Reconhece ademais, a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento7.

4

MACHADO, Marta de Toledo. “A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos”. Manole. Barueri, 2003. 5 BRASIL. “Constituição da República Federativa do Brasil”, de 1988. Art. 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. 6 BRASIL. “Constituição...”. Art. 227. “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e


Por fim, o art. 228 preconiza tanto a inimputabilidade dos menores quanto a sua sujeição às normas da legislação especial8. No âmbito infraconstitucional brasileiro, a substituição do Código de Menores, de 1979, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído por Lei 8.069/90, simbolizou a primeira conquista substancial da América Latina na luta pelos direitos da infância e da juventude. Entre os avanços que têm um maior destaque, chama atenção a transição da Doutrina da Situação Irregular para a da Proteção Integral. Respeito à primeira, pode-se apontar que nela, tanto os menores que praticavam infração penal como aqueles em perigo moral ou com desvio de conduta, ligados a uma inadaptação familiar ou comunitária (deixando a determinação desta situação livrada à discricionariedade do juiz), eram possíveis destinatários de medidas de institucionalização e adoção. Observava-se uma indiscriminada legitimação das ações judiciais, uma irrestrita aplicação de internações com prazo indeterminado e uma falta de compromisso total no ditado de políticas sociais efetivas. A Doutrina da Proteção Integral, em contrario sensu, se ressume nas disposições apresentadas pelo art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, se diz que as pessoas em formação gozam de todos os direitos fundamentais do ser humano, sem prejuízo da proteção integral devida especialmente em razão dessa particular condição de pessoa em desenvolvimento9. Em função do exposto até aqui, conclui-se que, paulatinamente, foi-se verificando um olhar diferenciado respeito dos infantes e jovens que reconheceu neles necessidades próprias das pessoas em formação, aperfeiçoando a sua situação. Atualmente, pode-se afirmar, pelo menos no plano legal, uma superação da confusão conceitual até então institucionalizada, distinguindo-se aquele menor vitima de exclusão

comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 7 BRASIL. “Constituição...”. Art. 227. “O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: [...] respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”. 8 BRASIL, “Constituição...”. Art. 228. “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. 9 BRASIL. “Estatuto da Criança e do Adolescente”. Lei Nº 8.069, de 1990. Art. 3º: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.


social, destinatário de atendimentos protetivos, daquele outro, ator de ato infracional, ao qual destinam-se atendimentos de natureza sócio-educativa. Neste último caso é que vaise fazer ênfase neste ensaio. Segundo o Estatuto, um adolescente pode ser conceituado como aquela pessoa cuja idade oscila entre os 12 e os 18 anos (sendo uma criança, se tiver menos de 12). Caso um adolescente cometer um fato descrito na legislação penal como crime ou contravenção, encaminha-se para ele a imposição de uma consequência jurídica como resultado da sua conduta, determinando-se, deste modo, uma sorte de responsabilização juvenil. Essas consequências vão-se dar conhecer com o nome de medidas sócioeducativas. “Grassa divergência, entretanto, no meio acadêmico e na práxis, acerca da caracterização dessas medidas, ou seja, se têm elas cunho punitivo, pedagógico ou outro caráter que se atribua”10. As medidas são enumeradas no art. 112 do Estatuto, sendo elas as seguintes: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semi-liberdade e internação em estabelecimento educacional. Se realizar-se uma análise sintática e semântica do assunto, comprova-se que “em nenhum momento, tanto a Constituição, quanto o Estatuto, reportam-se ao efeito retributivo ou mesmo intimidatório da medida, mas sim como o fito de oportunizar e facilitar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de dignidade, pelo armazenamento de experiências e pela compreensão dos atos”11. É por isso que não se pode afirmar que para que aconteça a responsabilização é preciso passar pela punição. Deve-se considerar a relação do jovem com o ato, sendo necessário, nesse sentido, dar-lhe voz a ele, conhecer a sua história e a sua subjetividade, para assim poder apresentar-lhe, posteriormente, um universo de possibilidades alternativas de construção do seu projeto de vida que se condiga com uma pacífica inserção na sociedade e o devido respeito dela. Deve-se considerar o sujeito infrator na sua individualidade e articular isso com as expectativas da sociedade na qual vive. Vislumbra-se aqui o surgimento de um novo paradigma.

10 11

GOMES SILVA, Marcelo. “Ato Infracional e Garantias...”. GOMES SILVA, Marcelo. “Ato Infracional e Garantias...”.


Não obstante contar com as aproximações apresentadas acima, “a falta de acordos semânticos na área da Política Jurídica tem dificultado a elaboração de um saber teórico sobre o assunto, impedindo sua configuração como disciplina autônoma”12. Mas, é imprescindível, contudo, que esse novo paradigma que se define tão complexo à hora de ser voltado em construções teóricas, esse paradigma ligado a uma projeção e a uma escolha de um caminho a seguir, saia do papel. É preciso falar dele. Por quê? Simplesmente porque a realidade denúncia distorções e arbitrariedades. Não se respeitam os direitos nem as garantias dos adolescentes. E o problema, como pode-se constatar, não radica na ausência de regulamentação, senão na falta de teorização e aplicação das normas previstas no ordenamento jurídico e dos princípios que regem a execução das medidas sócio-educativas. Portanto, numa sociedade punitiva, medidas que pretendem adotar um caráter pedagógico podem facilmente ser transformadas em punição. Infelizmente, “a prática da Justiça da Infância e da Juventude herdou uma cultura menorista e penalista, ameaçando sua vocação para a garantia da justiça no desenvolvimento de crianças e adolescentes”13. É aqui onde comporta uma grande saliência o rol tanto do político do Direito quanto do operador jurídico, os quais, inseridos na sociedade, não podem resultar alheios à sobrevivência dos moldes do Direito Penal e à severidade repressiva e acusatória com que são abordados os procedimentos com adolescentes. A justiça de nossos tempos traz em seu bojo estigmas de punição, segregação e dominação. A resposta pela qual se tem que apostar é aquela que passa pela efetiva aplicação das garantias já previstas. A Constituição não é uma carta de boas intenções, uma sorte de totem para ser reverenciado, mas nunca tocado. É base, linha mestra de toda e qualquer concretização de Direito. O futuro depende do fato de apostar nela. Submeter a nossa Justiça a uma oxigenação constitucional é o desafio. Foi posto e fica bem claro.

12 13

GOMES SILVA, Marcelo. “Ato Infracional e Garantias...”. GOMES SILVA, Marcelo. “Ato Infracional e Garantias...”.


Bibliografia 

BARATTA, Alessandro. “Criança, democracia e liberdade no sistema e na dinâmica da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças”. Conferência proferida no encontro “Direito e Modernidade”, Florianópolis, 1996.

BRASIL. “Constituição da República Federativa do Brasil”, de 1988.

BRASIL. “Estatuto da Criança e do Adolescente”. Lei Nº 8.069, de 1990.

GOMES SILVA, Marcelo. “Ato Infracional e Garantias: Uma crítica ao Direito Penal Juvenil”. Conceito. Florianópolis, 2008.

MACHADO, Marta de Toledo. “A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos”. Manole. Barueri, 2003.

PAULA, Paulo Alfonso Garrido de. “Ato Infracional e Natureza do Sistema de Responsabilização”. ILANUD. São Paulo, 2006.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.