Um breve estudo sobre as estradas de ferro no Brasil

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O DECLÍNIO DAS ESTRADAS DE FERRO NO BRASIL


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Monografia elaborada para a disciplina AUP280 - Organização Urbana e Planejamento São Paulo, 2019


Informações

Autora Georgia Riquelme Barriga Sharp 9318640 Imagem da capa desenho do traçado da ferrovia Central do Brasil extraído de I Centenário de Ferrovias Brasileiras, do IBGE


De todas as máquinas corredeiras, flutuantes ou voadoras que o homem tem inventado, nunca houve nenhuma que se comparasse à majestade de um grande trem, a correr com sua dezena de vagões... botando fumaça e fogo pela chaminé, como um dragão das lembranças perdidas dos primeiros homens.

Rachel de Queiroz


Apresentação A realidade urbana das grandes cidades contemporâneas é marcada por problemas sérios de mobilidade e esse fenômeno acaba, muitas vezes, por se exemplificar nos engarrafamentos provocados pela quantidade excessiva de automóveis nas vias, o que faz com que o tempo de locomoção aumente significativamente, levando a uma péssima qualidade de vida da população. Isso nos é uma questão mais familiar considerando que nosso cotidiano se dá essencialmente no meio urbano, que protagoniza uma série de problemas e a mobilidade é um deles. O fundamento do urbanismo rodoviarista está muito além do perímetro de uma cidade. Sua sistemática engloba uma lógica que se estende por todo território e vai além da fronteira nacional, considerando termos de ligação viária.

Estamos inseridos numa realidade urbana em que o modal hegemônico é o rodoviário e ele afeta as diferentes escalas do território. E por que o veículo sobre rodas é tão essencial para a sociedade urbana no Brasil da atualidade? Numa abordagem mais imediata sobre o assunto, sabese que se optou por esse modal de transporte em algum momento e, se observarmos documentos, estudos históricos, percebemos que nem sempre foi assim, que, na verdade, essa configuração espacial viária se deu mais ou menos na metade do século XX, a partir da década de 1950. E não nos é estranho pensar isso e já associar com algum plano de governo, tanto que pensamos de imediato no governo Juscelino Kubitschek; ou seja, temos uma noção de que isso está ligado a articulações políticas.


Mesmo assim, a implementação desse sistema não é clara se observarmos isso com uma atitude imediatista. Antes das rodovias, tínhamos as ferrovias; a lógica viária nacional era estabelecida por elas certamente. A existência desse outro modal permite-nos pensar que uma infraestrutura correspondente já está instalada. E isso se torna concreto ao observarmos as ferrovias que cortam uma cidade em alguns casos e em outros, que deixaram de existir passando a ser apenas uma memória arquitetônica parcial. Estando num momento em que se formulam fortes críticas ao modelo de rodovias, justamente, porque houveram problemas de infraestrutura relacionados a esse modal, as ferrovias, que precederam as vias que hoje prevalecem, se colocam como alternativas a esse problema em muitos casos. Por mais que hoje elas sejam caracterizadas por um relativo atraso tecnológico, o que impacta diretamente na qualidade do transporte, existe uma questão que vai além disso. Trata-se da memória. Os trilhos representam essencialmente o que poderia ter sido e não foi, até porque eles fizeram parte da história de muitas pessoas; o trem foi importante por fazer um certo tipo de integração

interestadual, de caráter mais regional e nacional. Então, retomando a infraestrutura das vias férreas do passado como maneira de contestação dos problemas presentes, este estudo procura entender de que forma se sustentou um novo modelo viário para o país, que culminou da destituição das ferrovias em prol das rodovias.


Metodologia Para a elaboração deste estudo e na tentativa de entender em maior complexidade o fenômeno proposto abordado a decadência das ferrovias no Brasil - esta obra seguiu uma lógica de pesquisa, em primeiro momento, mais histórica, buscando entender os traçados viários e a estruturação do sistema, sem se ater a alguma linha férrea em específico. A partir dessa primeira busca e das leituras decorrentes disso, percebi que o tratamento mais específico da temática deste estudo não é tão recorrente, pelo menos considerando abordagens críticas da área de Ciências Sociais, que era onde eu buscava explicações mais estruturadas para esse fenômeno. De todas as obras lidas, a mais completa para este tema foi a de Dilma Andrade de Paula, Fim de linha - a extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955-1974. O

conteúdo dessa tese foi imprescindível para a elaboração desta monografia e, além disso, o recorte histórico abordado pela autora também favoreceu o entendimento do fenômeno e se aproximou essencialmente do recorte aqui adotado. Então, articulando estudos de caráter mais historiográfico, ilustrado e expositivo juntamente com uma visão mais crítica, que trouxe uma análise política, social e econômica mais completa, procurei elaborar uma síntese crítica, mas que não foi terminada até este momento.


O declínio Quando tratamos da temática das ferrovias, é preciso identificar uma diferença que, de início parece bastante sutil; de um lado, temos o transporte de cargas e de outro, o transporte de passageiros. Quando se utiliza o termo declínio para referenciar a decadência desse modal, englobam-se esses dois tipos de transporte. Mesmo assim, para cada um deles, as consequências se deram de maneiras diferenciadas. O transporte ferroviário de passageiros foi muito mais afetado que o de cargas, porque os ramais que supriam cidades do interior foram não só desativados, como também retirados, alterando completamente a mobilidade das populações do interior. Para o transporte de cargas, em comparação ao de pessoas, muito mais linhas foram mantidas exclusivas, por mais que

estivessem decadentes. E isso pode ser observado hoje em ramais que continuam sendo usados apenas para cargas, mas que antes eram usados também para passageiros. À medida que se desenvolvem as questões que explicam o declínio das ferrovias, não há uma incessante diferenciação entre transporte de cargas e de pessoas, salvo algumas exceções, porque o termo pode ser bem designado para ambos os casos. Mesmo assim, devemos ter em mente que os efeitos dessa decadência atuam de maneira diferente para cada um desses tipos de transporte.


Capitulo 1

Os antecedentes da ferrovia no Brasil A primeira estrada de ferro no Brasil foi construída em 1854 no Rio de Janeiro e ela ligava a antiga estação de Mauá à Raiz da Serra, caminho para Petrópolis. Sua construção foi possível devido à ação do Barão de Mauá, que investiu uma parte da porcentagem e levou a cabo o projeto, o que permitiu a execução da linha. É importante destacar que essa estrada se destinava originalmente a atender o fluxo de passageiros entre a corte e a cidade de Petrópolis bem como a receber as cargas da rodovia União e Indústria quando está última fosse concluída. (texto de Cechin) As estradas de ferro chegam ao Brasil baseadas numa lógica de modernização. Na Inglaterra, país que primeiro investiu na generalização

desse meio de transporte, as ferrovias mobilizavam diferentes setores da indústria, promovendo um eficiente desenvolvimento industrial e econômico. Elas eram portanto, sinônimo de avanço concreto e serviam como veias conectivas do país. Quando as ferrovias chegam ao Brasil, essa característica é desvirtuada e transformada essencialmente em um sinônimo vazio de modernização. A existência de uma via férrea trazia a ideia abstrata de avanço para o Brasil, mas isso não aconteceria da mesma maneira que aconteceu na Inglaterra. O Brasil era um país escravocrata, essencialmente patrimonialista, agroexportador; o Estado ainda não era uma potência econômica, o que impossibilitava grandes investimentos. Além disso, para projetar e executar vias


férreas, era necessário mão-de-obra especializada, o que não era comum no Brasil. Alguns estudos explicitam a questão da necessidade de uma mão-de-obra especializada que muito provavelmente era pouco significativa no Brasil, mas isso não significa que o período marcado pelo boom ferroviário não trouxe a especialização de uma mão-de-obra local, na verdade, justamente o contrário. No entanto, como o enfoque deste estudo não pormenoriza questões ligadas ao tipo de mão-de-obra, sua relação com a imigração e com a presença de capital estrangeiro, não cabe aqui entrar em maior detalhes sobre isso, mas é importante levantar essa questão que pode ser desenvolvida futuramente. De toda forma, as ferrovias não trouxeram um desenvolvimento industrial sistemático, porque grande parte do que era mobilizado para a construção das linhas era importado. O Estado não chegou a incentivar uma indústria interna com a presença das ferrovias.

Nestes países a estrada de ferro não herda praticamente nada e não acarreta industrialização. Ela vem apenas viabilizar uma estrutura produtiva existente [...] ela chega como um “hóspede convidado”, como um “acessório essencial” À produção agrícola. (texto de Cechin) Outro fator importante, é entender como foi o processo de concepção das linhas de trem. Como o Estado era fraco economicamente e não podia investir, seu papel essencial era facilitar para agentes particulares o investimento em ferrovias, minimizando o máximo possível os altos riscos financeiros. Em boa parte, as estradas de ferro foram todas concedidas e exploradas por muito tempo por aqueles que investiram nelas. Um adendo é que vale a pena dizer que não foram os ingleses que investiram majoritariamente em estradas de ferro no Brasil, mas sim capitalistas como o Barão de Mauá.


Os traçados ferroviários O Brasil estava inserido, no século XIX, numa lógica capitalista agroexportadora. Dentro do funcionamento do mercado mundial, o país exportava bens primários e esses produtos eram cultivados no interior e deveriam ser escoados para o litoral, de onde eram então transportados por navios a outros continentes. As ferrovias entram no Brasil nesse momento e, com sua tecnologia, torna mais eficiente o transporte de cargas entre o interior e o litoral. Dessa forma, sua presença está claramente atrelada a melhora de preços para o comprador e não para o produtor, então, essencialmente, as vias férreas foram implementadas para servir o mercado externo e não foram pensadas em sua grande parte para articular o território interno, como era na Inglaterra.

Desta forma, a ferrovia ficou praticamente reduzida a um oleoduto enquanto que nos outros padrões ela era o sistema de artérias por onde corria o sangue que alimentava a industrialização. José Cechin


Em 1954, o IBGE publicou uma obra em comemoração aos cem anos da ferrovia no Brasil. Nela foram colocados diversos mapas, ilustrando os traçados das estradas de ferro em todo território nacional existentes até o momento da publicação. Alguns desses mapas são expostos a seguir de maneira ilustrativa, de forma a se constituir uma visão mais concreta do que foram essas vias e de que forma elas aconteciam no território.


Ferrovias no Brasil em 1954.


Central do Brasil, 1898.



E.F. Leopoldina, 1898



Capitulo 2

O fim da era ferroviária A ferrovia foi o modal de transporte hegemônico no Brasil até a década de 1950. Alguns estudos dizem que, a partir de 1920, as ferrovias já estavam em processo de decadência e esse processo se agravou, adquirindo um caráter muito mais radical a partir de 1950. Os trilhos saíram para dar lugar às rodovias. Mas a forma que se deu esse processo não é, de todo modo, simples ou óbvia. A relação entre o desenvolvimento das rodovias e o desmonte das ferrovias é muito mais estrito do que parece. Na verdade, uma só surgiu em decorrência do fim da outra, numa lógica de competição e não de complementação de modais. Tal processo é explicado mais por articulações políticas do

que por necessidades econômicas. Isso quer dizer que o significado das rodovias não está relacionado diretamente a uma reestruturação econômica, mas sim a uma decisão política por um novo plano viário. O governo optou por essa reconfiguração devido a mudanças das dinâmicas espaciais associadas à condição primário exportadora do Brasil, que responde às questões colocadas pelo capitalismo internacional. Surgiram novas polarizações em localidades que não eram, necessariamente, supridas por linhas férreas. Essas novas localidades precisavam ser atendidas por vias as ligassem e permitissem o escoamento dos produtos. Admitiu-se que as ferrovias não dialogavam com a configuração territorial dessas novas áreas consideradas dinâmicas economicamente. Elas ficaram, portanto, negligenciadas a esse plano, este que favoreceu o modal das


rodovias. Eram consideradas, assim, antieconômicas e tiveram início então medidas que visavam a erradicação das ferrovias. E isso não só no sentido de desativação das linhas, mas, em muitos casos, na própria retirada de trilhos. É curioso observar essa questão quando consideramos os transportes de cargas e de passageiros através das estradas de ferro. O desmonte foi mais agravante no segundo caso, impactando em especial as cidades do interior do país, cuja população era suprida por esses ramais ferroviários. Muitas dessas ferrovias não existem mais, porque foram realmente retiradas e não só desativadas. As que permanecem, geralmente, não são utilizadas e sofrem um intenso processo de desgaste, o que, em muitos casos hoje impossibilita seu uso.

No caso do transporte de cargas, apesar da ênfase rodoviária permitir um maior escoamento de produtos, em quantidade, pelas rodovias, ramais ferroviários que estavam incubidos de transportar produtos não foram necessariamente desativados. Apesar da decadência, em muitos casos, eles ainda existem.

À época do boom das desativações, as chamadas ferrovias estratégicas foram priorizadas, para transporte de grãos e de minérios. As ferrovias mais afetadas nas décadas de 50-70 foram as de transporte inter-regional, particularmente o de passageiros. Dilma de Paula


Outra questão de extrema importância ao tratarmos desse tema é o uso das terminologias declínio e desmonte. Entendemos que o processo que possibilitou a ascensão das rodovias foi o mesmo que levou à decadência das linhas férreas. Isso porque o projeto que favoreceu uma o fez em detrimento da outra. Então, não foi só uma política rodoviária; na verdade, ela se afirmou a partir de um outro modal que foi colocado em plena decadência. E isso foi uma escolha política, articulada, planejada e executada. Ou seja, não foi somente um fenômeno de declínio das ferrovias simplesmente, como se fosse algo espontâneo. Muito além disso, foi um processo de desmonte totalmente premeditado politicamente. Para a mudança desse sistema viário, foram criadas agrupações, que foram primordiais para esse processo. São elas a GESFRA - Grupo Executivo para Substituição de Ferrovias e Ramais Antieconômicos, constituída em 1966 - a GEIA - Grupo Executivo da Máquina Automobilística, constituída em 1956 - e os departamentos DNEF Departamento Nacional de Estradas de Ferro - e DNER Departamento Nacional de Estradas de Rodagem.

É preciso lembrar também que, quando as ferrovias sofrem esse intenso processo de decadência, elas são estatizadas. Antes, elas, em sua maioria, estavam sob concessão de particulares. Quando essa mudança acontece, para proporcionar a junção das ferrovias sob o poder do Estado, é criada a RFFSA - que foi extinta em 2007 depois de ter passado por intensos processos de políticas neoliberais. A afirmação desses grupos permite a estruturação de um novo sistema viário, baseado na substituição de modais. A rodovia passou a ser vista não mais como um modal atrelado e dependente das ferrovias, como era até então; ela passou a ser considerada desbravadora do território a partir da divulgação de Política de Viação brasileira, atuais redes de comunicação, futuras redes. O ritmo em que ocorreram essas substituições não foi eficiente na verdade. Os ramais ferroviários foram extinguidos num ritmo muito mais acentuado que a construção das rodovias, que passariam a substituí-los. em 1974, estavam erradicados 7500 Km de vias férreas e somente 1770,4 Km de rodovias construídas (Dilma de Paula).


Isso fez com que muitas regiões tivessem problemas de mobilidade. Muitas estradas não foram sequer pavimentadas, a maioria delas. E, apesar do desmonte radical, não houve uma oposição forte ao governo, justamente, porque boa parte das ações se deu no contexto posterior ao golpe militar e, por isso, as manifestações que existiram criticando as medidas do governo nesse sentido dos transportes foram violentamente combatidas e abafadas.


Capitulo 3

Memória e Permanência Mesmo após a abordagem do desmonte das estradas de ferro no Brasil, resta uma discussão importante. Hoje a ferrovia é vista como um elemento de memória, de saudosismo.

O que teria favorecido a impregnação da memória social pela temática do trem? Sobre os mecanismos da memória, segundo Henri-Pierre Jeudy, o abandono, seja de lugares e/ou de objetos, é também um teatro de memórias plurais que tanto guarda ou preserva quanto expurga os sentimentos que impulsiona. É um “espaço de catarse social no qual a cólera e a revolta não têm por figuração mais que o eco das

imagens mnésicas”.(Jeudy,1990: 129) Há uma estética do abandono; os objetos/lugares produção de um sentido para o passado. O trem não mais existe, mas, como na música Ponta de Areia, de Milton Nascimento, as “casas esquecidas” e as “viúvas nos portais” sugerem sua sobrevivência enquanto símbolo de uma época. Dilma de Paula


O radical processo de erradicação das ferrovias em escala nacional, dando lugar a uma outra forma de transporte, criando um outro imaginário social, deixou um sentimento de depredação da memória coletiva. Como tudo é pensado, por parte das políticas públicas, em função do mercado externo e quase nunca nas necessidade internas do país, as ferrovias foram, em boa parte, extintas sem se considerar os impactos sociais que isso traria. Por mais que no momento de sua inserção também houvesse a determinação de traçados pela lógica capitalista em que o Brasil estava inserido, a consolidação do projeto viário de ferrovias estabeleceu uma memória social atrelada a uma relativa conexão entre as regiões. Por mais que a prioridade fosse outra, a conexão gerada permitiu um contato territorial antes inexistente do ponto de vista do tempo de locomoção e da integridade de regiões mais longínquas. Dessa forma, uma viagem de trem se configurou para os passageiros como algo de caráter mais sublime. E a extinção rápida dos ramais intensificou ainda mais uma memória de algo que poderia ter sido, mas nunca foi. Isso, somado às consequências contemporâneas resultado

da implementação das ferrovias alimenta ainda mais um caráter positivo em relação às ferrovias, porque além desse imaginário coletivo, elas acabam por tomar um papel de alternativas viáveis para a mobilidade.


Conclusão É verdade que o projeto das ferrovias se fundamentou na lógica primário exportadora do Brasil Império e favoreceu, essencialmente, o mercado externo, tornando mais eficiente o transporte de produtos agrícolas e barateando o preço. Por isso, os traçados costumam sempre seguir a orientação interior-litoral, de forma a escoar a produção do interior para as zonas portuárias, que continuam o transporte das cargas pelos navios. Mesmo assim, surge um fato de importância em toda essa sistemática. Os traçados não foram essencialmente planejados para passageiros, não que eles não tenham existido ou não transportassem pessoas, mas a lógica hegemônica pareceu ser sempre a do transporte de cargas. Mas, com a implantação de uma ferrovia, indiretamente se acaba criando um eixo de infraestrutura viária que toma um papel estratégico de comunicação entre as partes do

país e, por isso, pode muito bem, dentro de um certo raio de influência de uma estação por exemplo, criar núcleos urbanos. Esses núcleos passam a ser abastecidos pelas ferrovias, se liberado o transporte de passageiros nelas. Surge uma lógica urbana decorrente de traçados viários e isso não é necessariamente uma questão intrínseca ao transporte ferroviário. Em muitos casos, podemos tomar como exemplo esse fenômeno acontecendo em decorrência do setor rodoviário também. Então, basicamente, a ferrovia funciona como uma frente de expansão não só para o transporte da produção, mas como uma alternativa para as pessoas. Nesse sentido, pode ser que a localidade, a implantação de uma estação, não dialogue em nada com uma ocupação urbana próxima, abastecida por outras vias. Mas é


estratégico se assentar próximo às estações e isso não é um fenômeno estranho, na verdade, é bastante comum nos processos de urbanização. Tomando como um exemplo mais aproximado a cidade de São Paulo e seus arredores, a Estrada de Ferro SantosJundiaí coloca muito bem isso. Apesar de hoje não parecer muito óbvio, as estações implementadas trouxeram o desenvolvimento de núcleos urbanos. Seria interessante procurar por documentos que justificassem a localização de cada estação da linha férrea, isso num âmbito geral do estudo de ferrovias. Assim, se poderia entender melhor o locus e o impacto daquele polo de influência projetado com uma finalidade que não necessariamente a de ocupação urbana. De outros estudos, pode-se exemplificar tal fenômeno pelo bairro de Perus em São Paulo. Na verdade, essa região pode até representar um estudo de caso interessante quanto ao abastecimento viário da periferia do extremo norte da RMSP, em especial, justamente quanto a essa relação que finaliza este estudo, a da concorrência que se fomenta entre ferrovia

e rodovia a partir da década de 1950 e como a rodovia não desempenha, certamente, seu papel essencialmente integrativo, pelo menos, não no sentido de transporte de passageiros.

A questão da logística de transporte, portanto, está intimamente associada a decisões políticas decorrentes de governos empenhados em manter um relativo status quo baseado na condição sempre presente de um país dependente economicamente do mercado externo, de caráter essencialmente agroexportador. O plano viário se estruturou sempre para fora, pensando nessa dinâmica econômica externa, mesmo com as ferrovias, modal tão memorável e saudosista por parte da população brasileira. As rodovias, quando implantadas, continuam desempenhando esse papel, mas numa lógica diferente, tanto que as ferrovias passam a ser consideradas antieconômicas por não estarem alinhadas a essa nova lógica. Mesmo assim, havendo esse planejamento que não visa a uma melhoria da condição de mobilidade em qualquer


escala - municipal, nacional, regional, etc - mas sim a uma facilidade de escoamento de produtos - a carga é prioridade - os adensamentos urbanos se configuram de maneira não linear com esses planos. No caso das ferrovias, os núcleos favorecidos pela própria infraestrutura, geraram uma dinâmica diferente da primordial, de carregamento de produtos primários. No caso das rodovias, observando Perus por exemplo, eles não melhoram a mobilidade local. A população continua dependendo da ferrovia, que não dispõe de tanta qualidade, mas é a que faz a ligação mais lógica, mais direta, até o centro de empregos. Isso, observando um nível de escala regional da RMSP. Os ônibus existem, eles atendem a população, mas a lógica rodoviária não se coloca como algo muito melhor. Na verdade, o impacto da rodovia nessa região está atrelado a uma escala muito maior que é a interestadual, e por isso, em Perus, não há uma qualidade de acessos. Em outras palavras, a rodovia é hostil, corta o bairro, o fragmenta, para estabelecer outras ligações além dessa local. Trata-se de uma integração que conecta seus extremos fragmentando seus entremeios.


Bibliografia ALBUQUERQUE, Caio Junqueira de Souza. As primeiras concessões ferroviárias na Argentina e no Brasil: análise comparativa e evolução de quatro empresas, 1850-1888. Dissertação de Mestrado, PROLAM/USP. São Paulo, 2015.

MARTINS, Margareth Guimarães. Caminhos tortuosos: um painel entre o Estado e as empresas ferroviárias brasileiras, 1934 a 1956. São Paulo, 1995. Tese de Doutorado em História pela Universidade de São Paulo.

CECHIN, José. A construção e operações de ferrovias no Brasil do século XIX. Tese de Mestrado IFCH/ UNICAMP. Campinas, 1978.

DE PAULA, Dilma Andrade. FIM DE LINHA - A extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 19551974. Tese de Doutorado, UFF. Niterói, Rio de Janeiro. 2000.

Diversos autores. I Centenário das Ferrovias Brasileiras. Conselho Nacional de Geografia, IBGE. Rio de Janeiro, 1954.

SAES, Flávio A. Marques de. As ferrovias de São Paulo 1870-1940: expansão e declínio do transporte ferroviário em São Paulo. São Paulo/Brasília. HUCITEC/INL, 1981.


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