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TÍTULO ORIGINAL The Fallen Legacies TRADUÇÃO Joana Faro CAPA Julio Moreira REVISÃO Shirley Lima REVISÃO DE EPUB Juliana Latini GERAÇÃO DE EPUB Intrínseca E-ISBN 978-85-8057-413-5 Edição digital: 2013 Todos os direitos desta edição reservados à E DITORA I NTRÍNSECA L TDA . Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar 22451-041 — Gávea Rio de Janeiro — RJ Tel./Fax: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br
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CAPÍTULO UM Às vezes, eu me pergunto o que eles pensariam se soubessem que estamos aqui. Bem debaixo do nariz deles. Estou sentado com meu melhor amigo, Ivan, na grama apinhada de gente do parque National Mall, com o estúpido obelisco de pedra do Monumento a Washington assomando diante de nós. Deixei meu dever de casa de lado por um instante e, enquanto observo os turistas analisando seus mapas, os advogados e funcionários públicos percorrendo, apressados e distraídos, a Independence Avenue a caminho de uma reunião, quase me divirto. Estão tão preocupados com bobeiras como raios UV, agrotóxicos nos legumes e “níveis de ameaça terrorista” sem sentido, ou seja lá o que preocupa essas pessoas, que nem imaginam que dois garotos fazendo o dever de casa na grama sejam a verdadeira ameaça. Eles não sabem que não há nada que possam fazer para se proteger. O verdadeiro inimigo já está aqui. “Ei!”, às vezes tenho vontade de gritar, agitando os braços. “Sou seu futuro ditador maligno! Tremam diante de mim, babacas!” É claro que não posso fazer isso. Ainda não. O momento vai chegar. Por enquanto, eles passam por mim sem prestar atenção, como se eu fosse apenas mais um rosto comum na multidão. A verdade é que sou tudo, menos comum, mesmo que me esforce ao máximo para dar essa impressão. Na Terra, o protocolo de assimilação exige que eu seja conhecido como Adam, filho de Andrew e Susannah Sutton, cidadão de Washington, DC. Mas esse não sou eu de verdade. Sou Adamus Sutekh, filho do grande general Andrakkus Sutekh. Sou um mogadoriano. É a mim que eles deveriam temer. Infelizmente, por ora, ser um conquistador alienígena não é tão empolgante quanto deveria ser. Ainda sou obrigado a fazer os deveres de casa. Meu pai me prometeu que não é para sempre; quando os mogadorianos dominarem esta porcaria de planeta, vou controlar a capital dos Estados Unidos. Acredite, depois de passar os últimos quatro anos neste lugar, sei muito bem o que vou mudar. A primeira coisa será renomear todas as ruas. Nada dessas bobagens de Independência, Constituição, todo esse patriotismo imbecil. Quando estiver no comando, ninguém vai sequer lembrar o que é uma Constituição. Quando estiver no comando, minhas avenidas terão nomes apropriadamente ameaçadores. — Bulevar do Sangue dos Guerreiros — murmuro para mim mesmo, tentando decidir se soa bem. Não tenho certeza. — Rua da Espada Quebrada... — Hã? — pergunta Ivan olhando para mim. Ele está ao meu lado, deitado de bruços na grama e segurando o lápis junto ao indicador, simulando uma arma. Enquanto sonho com o dia em que serei o regente de tudo que a vista alcança, Ivan se imagina como um franco-atirador, abatendo os inimigos lorienos que saem do Lincoln Memorial. — O que você disse?
— Nada — respondo. Ivanick Shu-Ra, filho do grande guerreiro Bolog Shu-Ra, dá de ombros. Ele nunca gostou muito de fantasias que não incluíssem algum tipo de combate sangrento. Sua família alega ter parentesco distante com nosso Adorado Líder, Setrákus Ra, e, a julgar pelo tamanho dele, estou inclinado a acreditar nisso. Ivan é dois anos mais novo que eu e já é mais alto, com ombros largos e fortes, enquanto sou magro e ágil. Ele já parece um guerreiro e mantém seu cabelo preto e grosso aparado bem curto, aguardando, ansioso, o dia em que poderá raspá-lo por completo e receber as tatuagens cerimoniais mogadorianas. Ainda me lembro da noite da Primeira Grande Expansão, quando meu povo conquistou Lorien. Eu tinha oito anos na época, era velho demais para chorar, mas, mesmo assim, chorei quando soube que ficaria na órbita do planeta junto das mulheres e crianças. Minhas lágrimas duraram apenas alguns segundos, até meu pai, o general, me fazer voltar à razão com um tapa. Ivan observou meu acesso de raiva, chupando o dedo em silêncio, talvez novo demais para entender o que estava acontecendo. Assistimos à batalha do observatório da nave, com minha mãe e minha irmã mais nova. Aplaudimos quando as chamas se espalharam pelo planeta abaixo de nós. Depois que a luta foi vencida e o povo lorieno, destruído, o general voltou para a nave coberto de sangue. Apesar do triunfo, seu rosto estava sério. Antes de falar com minha mãe ou comigo, ele se ajoelhou diante de Ivan e explicou que o pai dele havia morrido a serviço de nossa raça. Uma morte gloriosa, digna de um verdadeiro herói mogadoriano. Ele passou o polegar pela testa de Ivan, deixando um rastro de sangue. Uma bênção. Só depois meu pai se lembrou de fazer o mesmo comigo. A partir daquele dia, Ivan, cuja mãe morrera durante o parto, passou a morar conosco e foi criado como meu irmão. Meus pais são considerados sortudos por ter três filhos nascidos naturalmente. Mas nem sempre acho que meu pai se sente sortudo por me ter. Quando minhas notas ou avaliações físicas não são satisfatórias, o general diz, de brincadeira, que talvez tenha de transferir minha herança para Ivan. Tenho quase certeza de que é brincadeira. Uma família de turistas chama minha atenção. Caminha pelo gramado observando o mundo através de câmeras digitais. O pai parou para tirar uma série de fotos do monumento, e eu reconsidero meus planos de demoli-lo. Em vez disso, talvez possa deixá-lo mais alto; quem sabe construir uma cobertura para mim no último andar. Ivan poderia ficar com o apartamento abaixo do meu. A filha dos turistas deve ter uns treze anos, como eu, é bonita de um jeito discreto e usa aparelho. Eu a vejo olhar para mim e me dou conta de que, inconscientemente, estou me colocando em uma posição mais apresentável, endireitando-me, baixando o queixo para disfarçar o ângulo brusco de meu nariz grande demais. Quando a garota sorri para mim, desvio os olhos. Por que me importaria com o que uma humana pensa de mim? Devemos nos lembrar sempre do porquê de estarmos aqui. — Você não acha incrível eles nos aceitarem facilmente como um dos seus? — pergunto a Ivan. — Nunca subestime a estupidez humana — ele diz, esticando o braço para dar um tapinha na página em branco do dever de casa que está a meu lado. — Vai terminar essa porcaria ou não? O trabalho de casa não é meu, é de Ivan. Ele está esperando que eu o faça para ele. Trabalhos escritos sempre foram um problema para Ivan, enquanto as respostas certas me ocorrem com facilidade. Olho para o dever. Ivan tem que escrever uma redação curta sobre uma citação do Grande Livro — o livro da sabedoria e da ética mogadorianas, que todo o nosso povo deve memorizar e seguir — dando a própria interpretação sobre o significado dos escritos de Setrákus Ra. — Não impedimos a besta de caçar — leio em voz alta, ainda que, assim como a maior parte de meu povo, eu conheça a passagem de cor. — Caçar é da natureza da besta, assim como se expandir é da natureza dos mogadorianos. Os que resistem à expansão do império mogadoriano, portanto, opõem-se à própria natureza. Eu olho para Ivan. Ele mira o dedo na família de turistas que eu estava observando, imitando com a boca sons agudos de raios laser. A garota de aparelho franze a testa para ele e vira as costas. — O que isso significa para você? — pergunto. — Não sei — ele grunhe. — Que a nossa raça é a melhor, e todos os outros têm que aceitar. Não é? Dou de ombros, suspirando. — É por aí. Pego a caneta e começo a escrever, mas sou interrompido pelo toque do celular. Imagino que seja uma mensagem de texto de minha mãe, pedindo que eu passe em alguma loja quando estiver indo para casa. Ela tomou muito gosto pela cozinha nos últimos anos e, admito, a comida aqui da Terra é muito melhor que a de Mogadore. O que eles aqui consideram “comida processada” seria preciosa em meu planeta de origem, onde os alimentos — entre outras coisas — são cultivados em tanques subterrâneos. Mas a mensagem não é de minha mãe. É do General. — Droga — digo, largando a caneta como se o General tivesse me flagrado fazendo o dever de Ivan. Meu pai nunca manda mensagens de texto. Ele é bom demais para isso. Se o General quer alguma coisa, devemos antecipar o que é antes mesmo que ele precise pedir. Algo muito importante deve ter acontecido. — O que foi? — pergunta Ivan. A mensagem diz apenas: CASA AGORA. — Temos que ir.
CAPÍTULO DOIS Ivan e eu saímos de Washington de metrô, pegamos nossas bicicletas na estação e pedalamos pelo subúrbio o mais rápido que conseguimos. Quando finalmente passamos a toda pelo portão de entrada de Ashwood Estates, já estou ao menos trinta metros atrás dele. Culpo o calor fora de época por deixar minha camiseta ensopada de suor e a mensagem de texto agourenta de meu pai pelo enjoo. Ashwood Estates é idêntico a muitos dos condomínios nobres nos arredores de Washington — ou pelo menos parece idêntico. Mas, em vez de pertencer a políticos e suas famílias, as mansões com gramados impecáveis que ficam do outro lado dos portões de entrada pertencem a meu povo, os mogadorianos, futuros conquistadores da Terra. E as casas em si são apenas uma fração do verdadeiro Ashwood Estates. Sob elas, existe um imenso labirinto de túneis que conecta as muitas instalações mogadorianas, o verdadeiro propósito deste lugar. Meu acesso ao quartel-general subterrâneo é bastante restrito. Não sei até onde se estende ou sua profundidade total. Mas sei que essa vasta rede subterrânea abriga muitos laboratórios, depósitos de armas, áreas de treinamento e provavelmente mais segredos do que posso imaginar. Também é lá embaixo que vivem os nascidos artificialmente. Se não fosse por nosso Adorado Líder, Setrákus Ra, a raça mogadoriana nunca teria sobrevivido tempo o suficiente para começar a Grande Expansão. Nos últimos cem anos, por razões ainda desconhecidas, as mogadorianas passaram a ter cada vez mais dificuldade para gerar filhos. Quando Kelly nasceu, os partos naturais eram tão raros que nossa antiga e orgulhosa espécie corria um grande risco de desaparecer por completo. Quando as crianças eram concebidas, muitas mulheres mogadorianas, como a mãe de Ivan, morriam no parto. Por isso, Setrákus Ra e uma equipe de cientistas trabalharam para produzir artificialmente uma nova geração de mogadorianos. Em vez de virem ao mundo da maneira normal, nossos irmãos e irmãs nascidos artificialmente se desenvolvem em gigantescos tanques químicos, dos quais, por fim, emergem como adultos formados, prontos para a batalha. Os mogadorianos nascidos dessa forma não apenas garantem a continuidade da espécie, como também, com sua força, velocidade e resistência aumentadas, são a base de nosso exército. As habilidades físicas superiores não são a única diferença entre os nascidos artificialmente e os mogadorianos naturais como eu. Fisicamente, eles foram projetados para a guerra, mas para serem soldados, não oficiais. Em sua sabedoria, Setrákus Ra os criou mais resolutos que os mogadorianos naturais — executando suas funções quase como máquinas — e, como são guerreiros inatos, o pouco que têm de pensamento racional costuma sucumbir à ira e à sede por sangue. Mas a diferença mais importante entre os nascidos artificialmente e os naturais, ao menos aqui na Terra, é o fato de terem uma aparência diferente do restante de nós. Enquanto um natural pode se passar por humano, os nascidos artificialmente, não. A pele deles é muito pálida por causa da vida subterrânea, e seus dentes são pequenos e afiados, mais apropriados ao combate corpo a corpo do que para comer. Por isso, até podermos revelar nossa presença, eles quase não têm permissão de sair ao ar livre. Então, quando vejo os nascidos artificialmente comemorando nos gramados de Ashwood Estates junto com seus superiores naturais, eu me dou conta de que algo muito importante está acontecendo. Ivan também percebe, e me lança um olhar confuso quando para de repente no final de nossa rua sem saída. Paro ao lado dele, sem fôlego. Todas as famílias de Ashwood Estates estão socializando diante de suas casas, brindando com garrafas de champanhe recém-abertas. Os nascidos artificialmente, com sua destoante palidez escondida por sobretudos e chapéus, parecem, ao mesmo tempo, animados e desorientados por estar ao ar livre. A atmosfera de júbilo é incomum na cultura mogadoriana. Normalmente, meu povo não é dado a exibições de alegria, ainda mais quando o General está por perto. — O que está acontecendo, afinal? — pergunta Ivan. Como de costume, ele me pergunta o que quer saber. Desta vez, apenas dou de ombros. Minha mãe está sentada nos degraus da entrada de casa, observando Kelly dançar espalhafatosamente pelo jardim com um leve sorriso. Minha irmã, girando de forma enlouquecida, nem sequer percebe que Ivan e eu chegamos. Minha mãe parece aliviada por nos ver. Embora eu não saiba qual é o motivo da comemoração, sei por que ela não se juntou aos outros na rua. Por ser a esposa do General, ela tem dificuldade de fazer amizade, mesmo com outros naturais. O medo que sentem de meu pai se estende a minha mãe. — Meninos — ela diz quando Ivan e eu nos aproximamos, empurrando nossas bicicletas pelo caminho da entrada. — Ele estava procurando vocês. Sabem que ele não gosta de esperar. — Por que ele precisa nos ver? — pergunto. Antes que minha mãe tenha tempo de responder, o General aparece atrás dela, na porta. Meu pai é um homem grande, tem mais de dois metros de altura, é musculoso e tem uma postura régia que exige respeito. Seu rosto é anguloso, um traço que infelizmente herdei. Desde que chegou à Terra, ele deixou crescer seu cabelo preto para esconder as tatuagens do couro cabeludo, e o mantém esmeradamente penteado para trás, como alguns dos políticos que já vi passando pelo National Mall. — Adamus — ele diz em um tom que não admite questionamento. — Venha comigo. Você também, Ivanick. — Sim, senhor — Ivan e eu respondemos em uníssono, trocando um olhar nervoso antes de entrar em casa. Sempre que meu pai usa esse tom de voz, alguma coisa grave está acontecendo. Quando passo, minha mãe aperta de leve minha mão. — Divirtam-se na Malásia! — Kelly grita depois que passamos, finalmente notando nossa presença. — Matem aquela Garde com tudo!
CAPÍTULO TRÊS Algumas horas depois, Ivan e eu estamos a caminho da Malásia a bordo de um avião frio e desconfortável, comprado como refugo de algum governo que não faz muitas perguntas. A área de passageiros não parece muito diferente do compartimento de carga abaixo — tem apenas bancos de metal com cintos de segurança puídos, onde Ivan e eu nos sentamos apertados entre guerreiros, alguns naturais, a maioria nascida artificialmente. Nossa viagem não é glamourosa, mas estou nervoso demais para me preocupar com conforto. É a primeira vez que saio em uma missão, ainda que minha função seja apenas observar. Meu pai é o copiloto. Sempre que passamos por uma turbulência, eu me pergunto se é uma alteração nas condições atmosféricas ou se ele simplesmente deixou o piloto nervoso. Para muitos dos mogadorianos no voo, este é o primeiro combate desde a Primeira Grande Expansão. Alguns passam a viagem lembrando a última vez que lutaram, gabando-se do número de inimigos que mataram. Outros, os mais velhos, ficam quietos, completamente concentrados na missão, olhando para o nada. — Acha que vamos poder usar uma arma? — Ivan me pergunta. — Duvido — respondo. Estamos nesta missão simplesmente porque sou filho do General e Ivan é seu protegido. Somos novos demais para ter alguma utilidade para a equipe de assalto, mas velhos o suficiente para observar a execução dessa loriena insurgente. Meu pai quer que a gente aprenda com isso. Como nossos instrutores sempre dizem, as simulações de combate das quais participamos nas aulas de prontidão para a batalha — onde podemos usar armas — não substituem a realidade. — Que droga — Ivan resmunga. — Não importa — falo, mudando de posição e tentando esticar as pernas. — Mal posso esperar para sair deste avião. Tudo o que acontece em seguida é um borrão. Aterrissamos. Encontramos a Garde e sua Cêpan. Como nos foi instruído, Ivan e eu ficamos para trás com o General, observando os guerreiros mogadorianos seguirem para a batalha. É horrível, completamente diferente das lutas descritas no Grande Livro. Mais de vinte mogadorianos contra uma velha e uma garota adolescente. A princípio, nosso objetivo é apenas capturar e interrogar as duas. Desde que chegamos à Terra, correm boatos sobre algum tipo de magia lórica que protege a Garde e nos obriga a matá-los em ordem. Ficamos sabendo de uma batalha nos Alpes, na qual um de nossos guerreiros encurralou um Garde, mas, de alguma forma, seu golpe letal voltou-se contra ele. O General proibira rumores sobre esse suposto encantamento lórico, mas meu povo toma cuidado mesmo assim. A velha resiste mais do que o esperado, mas logo é dominada. A Garde é ainda mais difícil — ela tem poderes, faz o chão tremer sob os pés de nossos guerreiros. Eu me pergunto como seria ter esse tipo de poder. Mas, se o preço é ser parte de uma raça em extinção que se esconde em cabaninhas à margem de um rio, eu dispenso. O plano de capturá-las muda quando nossos guerreiros percebem que podem ferir a Garde. Ou os rumores do encantamento lórico são falsos, como meu pai acredita, ou ela é a Número Um. O General a quer viva; mas, quando os guerreiros se dão conta de que podem matá-la, deixando-nos mais perto de nosso objetivo, a sede por sangue supera as ordens. Tudo termina quando um dos guerreiros crava a espada nas costas da Número Um. — Foi incrível! — Ivan grita. Até meu pai se permite um leve sorriso de aprovação. Sei que eu também deveria estar entusiasmado, mas minhas mãos não param de tremer. Eu me sinto grato por só ter tido que observar, por não ser um dos mogadorianos agora reduzidos a pó na margem de um rio malásio. Também estou grato por não ser lorieno, por não ter que passar a vida em uma fuga apavorada, com chances mínimas de escapar, só para morrer apunhalado pelas costas. Percebo que de algum modo estou me identificando com a Garde. O Grande Livro nos alerta sobre os perigos da empatia, então me contenho. Preciso superar esses sentimentos infantis. A batalha foi menos gloriosa do que eu esperava, mas ainda assim é uma vitória importante para o progresso mogadoriano. Restam apenas oito tarefas inacabadas para a visão de Ra se tornar realidade; nada será obstáculo à nossa expansão para a Terra. Nove Gardes mortos são um preço baixo a pagar por uma linda cobertura no topo do Monumento a Washington. Enfiam a Número Um em um saco mortuário e a jogam no avião com o restante da carga. A Arca Lórica que estava com ela também é levada, embora nem mesmo o mais forte de nossos guerreiros consiga abrir o cadeado. O amuleto de Um é arrancado de seu corpo por meu pai, embora eu não saiba o que ele vai fazer com uma joia lórica. O corpo da Cêpan é deixado para trás. Ela não tem mais importância para nós. Na viagem de volta, estamos bem menos apertados nos bancos do avião. Fico quieto, mas Ivan importuna os guerreiros que lutaram, pedindo detalhes sangrentos, até que o General ordena que se cale. Se eles fossem um time de futebol americano, tenho certeza de que os guerreiros sobreviventes estariam jogando Gatorade uns nos outros, como fazem os atletas humanos após uma vitória. Mas não somos um time de futebol americano. Somos mogadorianos. E meu pai nem sabe o que é Gatorade. Passamos o restante da viagem em silêncio. Durante o voo, o General se senta a meu lado. — Quando voltarmos para Ashwood Estates, tenho uma tarefa importante para você. Assinto com a cabeça. — Sim. Claro, senhor. Meu pai olha para minhas mãos, que ainda tremem, por mais que eu tente controlá-las. — Pare com isso — ele resmunga antes de voltar para a cabine.
CAPÍTULO QUATRO Embora eu a tenha visto durante a batalha, a garota que está sobre a placa de metal não é o que eu esperava. Desde a Primeira Grande Expansão, aprendemos que a Garde é a última real ameaça a nosso modo de vida. Aprendemos que são guerreiros violentos, apenas à espera de uma chance para lutar contra o progresso mogadoriano. Por algum motivo, eu achava que essa ameaça a meu povo teria uma aparência mais assustadora. Na morte, a Número Um não é grande coisa. Ela parece ter mais ou menos a minha idade, ou ser apenas um pouco mais velha, e sua pele, antes bronzeada, perdeu completamente a cor. Seus lábios estão azuis. Filetes de sangue seco mancham os cabelos louros. Seu corpo está coberto com um lençol branco, mas, sob as luzes fortes do laboratório, vejo através dele o terrível ferimento aberto em sua cintura. Estamos sob Ashwood Estates, no laboratório subterrâneo do Dr. Lockam Anu. Nunca me haviam permitido vir aqui, então tento apreender o máximo possível das estranhas máquinas piscantes sem encarar abertamente. O General não seria gentil se achasse que estou distraído. Estou parado ao lado de meu pai. Em silêncio, observamos Anu colocar com cuidado a cabeça de Um dentro de um estranho capacete mecânico. Anu é um velho encurvado com tatuagens no couro cabeludo repulsivamente enrugado. Ele contorna Um, conectando fios soltos a diodos abertos que cobrem o capacete. — Está pronto — Anu murmura, dando um passo para trás. — Finalmente — meu pai resmunga. Anu para perto do tornozelo esquerdo de Um, deslizando o dedo pela cicatriz do encantamento lórico. Uma das primeiras coisas que aprendemos quando chegamos à Terra foi identificar o encantamento lórico. Esquadrinhar cada tornozelo exposto, em busca dele, se tornou algo automático para mim há anos. — Quatro anos procurando uma criança com este símbolo — Anu comenta. — Você não se apressou mesmo, General. Quase consigo sentir meu pai cerrar os punhos. É como estar ao lado de uma tempestade em formação. Mesmo assim, ele não responde. O Dr. Anu comanda a equipe de pesquisa e ciência de Ashwood Estates e tem direito a certos benefícios, como fazer um comentário mordaz para o General sem ser espancado na hora. Anu olha para mim, com o olho esquerdo caído e meio fechado. — Seu estimado pai explicou por que estamos aqui, menino? Olho de relance para o General. Ele assente, dando-me permissão para falar. — Não, senhor. — Ah. “Senhor.” Que jovem educado você criou, General. — Anu indica uma cadeira de metal próxima sobre a qual pende um imponente e complicado aparato tecnológico. — Venha, sente-se. Olho de novo para meu pai, mas seu rosto não revela nada. — Você deixará sua família orgulhosa hoje, Adamus — vocifera o General. Fico aliviado por minhas mãos finalmente terem parado de tremer. Eu me sento. Anu se agacha diante de mim, e os ossos velhos estalam em protesto. Ele prende meus pulsos e tornozelos à cadeira com tiras de borracha. Sei que devo confiar em meu pai. Sou importante demais para ele deixar algo ruim acontecer comigo. Mesmo assim, não consigo deixar de sentir certo nervosismo enquanto sou amarrado. — Confortável? — o Dr. Anu pergunta, lançando-me um sorriso malicioso. — O que é isto? — indago, esquecendo a regra do General de não fazer perguntas. Meu pai olha para mim com uma paciência surpreendente. Talvez esteja tão desconfortável por ver o único filho ser amarrado quanto eu estou por passar por isso. — O Dr. Anu acredita que essa máquina vai nos permitir acessar a memória da garota loriena — meu pai explica. — Eu sei que vai — Anu corrige. Ele esfrega um líquido morno em minhas têmporas antes de prender dois eletrodos de borracha em mim. Os fios dos eletrodos estão conectados a um monitor perto da Número Um, e a máquina repentinamente começa a funcionar. — Vai arriscar sua vida por uma criação que não foi testada, Dr. Anu? — meu pai resmunga. — Não foi testada? — exclamo, forçando as amarras. Imediatamente me arrependo do tom de pânico em minha voz, que provoca uma careta no General. O Dr. Anu me lança um sorriso apaziguador. — Nunca tivemos alguém da Garde em quem experimentá-la, então é verdade, não foi testada. Ele dá de ombros alegremente, animado para testar a invenção. — Mas se baseia em uma teoria extremamente sólida. Dos naturais aqui de Washington, você tem a idade mais próxima à da garota, o que deve tornar o download de memória mais suave. Sua mente vai interpretar as lembranças da Garde como visões em vez de enxergar através dos olhos dela. Tenho certeza de que seu pai não iria querer o único filho no corpo de uma garotinha, não é? Meu pai se agita, irritado. O Dr. Anu olha por cima do ombro. — Só estou brincando, General. Você tem um filho admirável e forte. Muito corajoso. Neste momento, não me sinto muito corajoso. Vi a Número Um ser derrotada — ela mal conseguira se defender em vida; morta, certamente é inofensiva —, mas estar conectado a ela renova a aflição que senti na viagem de volta da Malásia. Quase ofereço Ivan para ser a nova cobaia de Anu, mas fecho a boca bem a tempo. Ivan gostou de ver Um morrer; só consegue falar disso. Para mim, basta pensar no que aconteceu para ficar com as mãos trêmulas outra vez. Eu me controlo — deixe de ser tão covarde, Adamus —, esta é uma grande honra, algo de que deveria me orgulhar. Tento não olhar para a garota morta quando Anu baixa do teto acima da cadeira um cilindro de metal coberto de circuitos que poderia pertencer a um foguete. A maioria dos fios conectados à Número Um se liga ao cilindro. Anu faz uma pausa e me olha antes de posicionar o aparato sobre minha cabeça. — Você vai sentir um pequeno choque. Talvez adormeça por alguns minutos. Quando acordar, vai poder nos contar o que ela sabia sobre os outros Gardes. Percebo que a mão livre de Anu está sobre meu ombro. Ele aperta com força. Há alguns dias, minha maior preocupação era escrever redações ruins o bastante para parecerem ter sido feitas por Ivan. Desde então, vi em primeira mão o guerreiro mogadoriano que esperam que eu me torne quando crescer, e não sei se estou disposto a isso. Agora tenho ordens de compartilhar temporariamente meu cérebro com uma inimiga mortal. Sei que é a vontade de meu pai, e que se a máquina funcionar vai ajudar nossa causa e trará honra à minha família. Entretanto... Não quero admitir, mas estou com medo. Anu baixa o cilindro sobre minha cabeça, cobrindo meu rosto. Ele e meu pai desaparecem de meu campo de visão. Ouço Anu andando pelo laboratório. Seus dedos apertam uma série de botões e o cilindro começa a vibrar. — Aqui vamos nós — Anu diz. Há uma explosão de luz no interior do cilindro — uma luz branca forte que queima meus olhos e parece penetrar até a nuca. Fecho os olhos, mas, de alguma maneira, a luz continua a passar. Sinto que estou me desfazendo, que a luz me atravessa, fragmentando-me em minúsculas partículas. A morte deve ser assim. Acho que grito. Então, tudo fica escuro.
CAPÍTULO CINCO É como se eu estivesse caindo. Minha visão é tomada por rápidas explosões de cor. Vejo formas — rostos indistintos, paisagens embaçadas —, mas não consigo distinguir nada. É como ficar preso dentro de minha tevê enquanto Kelly brinca de passar os canais. Nada faz sentido, e começo a ter uma sensação de pânico, como uma sobrecarga sensorial. Tento fechar os olhos com força, mas é inútil; está acontecendo dentro de minha cabeça. Quando acho que meu cérebro está a ponto de ser incinerado pelo bombardeio de cores, tudo entra em foco. De repente, estou em um ensolarado salão de banquetes. A luz entra no cômodo por uma claraboia, através da qual vejo árvores diferentes de quaisquer outras que já vi, com trepadeiras de flores vermelhas e laranja pendendo de galhos emaranhados. Embora nunca tenha estado ali — apenas visto de cima quando estava em órbita —, de alguma forma sei que é Lorien. Então me dou conta de que sei onde estou porque a Número Um sabe. Esta é uma de suas lembranças. No centro do salão há uma grande mesa coberta com comidas estranhas, mas de aparência deliciosa. Sentados ao seu redor estão lorienos usando vestidos e trajes sofisticados. Estremeço ao vê-los — são muitos, e meu primeiro instinto é fugir, mas estou paralisado. Não consigo me mover, estou preso nesta lembrança. Todos os lorienos sorriem, cantam. Não parecem nem um pouco alarmados pela aparição súbita de um mogadoriano em sua festa. Então percebo que não me veem. Claro que não, sou apenas um turista na mente da Número Um. E ali está ela, sentada à cabeceira da mesa. É muito nova, deve ter uns cinco ou seis anos, com o cabelo louro preso em duas tranças compridas que vão até as costas. Quando os adultos terminam de cantar, ela bate palmas, animada, e percebo que é a comemoração de seu aniversário. Não comemoramos essas ocasiões tolas em Mogadore, embora alguns grandes guerreiros celebrem a data de sua primeira matança com um banquete. Que lembrança inútil! O General não vai ficar impressionado se eu só voltar com informações estratégicas sobre festas de aniversário lóricas. Sem mais nem menos, o mundo fica embaçado outra vez e começo a cair. O tempo passa rapidamente e sou arrastado para o turbilhão, com uma sensação de falta de controle que me dá náuseas. Outra lembrança toma forma. A Número Um passeia por um campo aberto com os braços estendidos para que o mato alto roce a palma de suas mãos. Ela deve estar um ano mais velha que na festa de aniversário, continua sendo apenas uma criança, perambulando alegremente por seu planeta intacto. Que tédio. Um se abaixa e colhe flores, juntando os talos, depois os enrola no pulso, fazendo uma pulseira. Quantas cenas como esta ainda serei obrigado a assistir? Talvez, se me concentrar, eu consiga obter um pouco de controle sobre as lembranças. Preciso ver os outros Gardes, e não essa bobagem de menininha lórica feliz. Tento pensar no que quero ver — os rostos da Garde, de seus Cêpans —, então a lembrança do campo desaparece e me vejo em outro lugar. É noite, embora a escuridão seja iluminada por dezenas de incêndios nas proximidades. As duas luas lóricas aparecem em lados opostos do horizonte. O chão treme sob meus pés com uma explosão próxima. A Número Um e mais oito crianças correm por uma pista de pouso isolada em direção a uma nave. Seus Cêpans as apressam, gritando ordens. Algumas das crianças choram enquanto correm. A Número um, não; ela olha por cima do ombro quando um lorieno em traje lustroso dispara um cone de energia azul congelante na cara de um piken furioso. Os olhos da Número Um se arregalam de admiração e medo. É isso. A Primeira Grande Expansão. Exatamente a lembrança que preciso ver. — Corram! — grita o lorieno de malha para o grupo de jovens Gardes em fuga. Os Legados dele estão completamente desenvolvidos e são poderosos. Mesmo assim, ele morrerá nessa noite, assim como todos os outros. Passo os olhos pelas crianças, tentando captar a maior quantidade de detalhes que puder. Há um garoto de aparência selvagem com cabelo preto e longo, e outra garota loura, mais nova que a Número Um, sendo carregada por sua Cêpan. A Número Um é mais velha que a maioria das outras crianças, um detalhe que sei que ajudará meu pai a traçar perfis dos Gardes remanescentes. Conto o número de meninos e meninas, e tento memorizar seus traços mais marcantes. — Quem diabos é você? A voz soa mais clara que as explosões de guerra da lembrança, como se viesse de dentro da minha cabeça. Olho em volta e me dou conta de que a Número Um está parada bem a meu lado. Não a Número Um menina da lembrança — não, é a Número Um do jeito que a vi pela última vez: cabelo louro descendo pelas costas e postura desafiadora. Um fantasma. Ela está olhando diretamente para mim, à espera de uma resposta. Ela não pode estar aqui; não faz sentido. Agito a mão diante do rosto dela, certo de que a máquina de Anu está com algum tipo de defeito. É impossível que ela realmente esteja me vendo. A Número Um afasta minha mão com um tapa. Fico surpreso por ela poder me tocar, mas então me lembro de que ambos somos fantasmas aqui. — E então? — ela pergunta. — Quem é você? Seu lugar não é aqui. — Você morreu — é tudo o que consigo dizer. Um examina seu corpo. Por um instante, o enorme ferimento em seu abdômen aparece. Com a mesma rapidez, some. — Não aqui. — Ela dá de ombros. — Estas são as minhas lembranças. Então, acho que você não vai conseguir se livrar de mim aqui. Balanço a cabeça. — É impossível. Você não pode estar conversando comigo. Um estreita os olhos, pensando. — Seu nome é Adam, não é? — Como você sabe? Ela sorri maliciosamente. — Estamos compartilhando o cérebro, mog. Acho que isso significa que também sei algumas coisas sobre você. Diante de nós, a Garde em fuga terminou de embarcar, e os motores da nave são ligados. Eu deveria estar esquadrinhando a nave à procura de algum detalhe útil, mas estou distraído demais com a garota morta que zomba de mim. — Seu papaizinho assustador vai ficar muito decepcionado quando você acordar sem nada interessante para contar. Ela me segura pelo cotovelo, e a sensação é tão real que preciso lembrar a mim mesmo de que isto é basicamente um sonho. Um sonho que a Número Um de repente passou a controlar. — Quer as minhas lembranças? — ela pergunta. — Venha. Vamos fazer uma visita guiada. Enquanto a cena se modifica de novo, começo a entender o que está acontecendo. Estou preso aqui com minha inimiga mortal. E parece que ela está no comando.
CAPÍTULO SEIS Desta vez, a passagem de uma lembrança para outra é diferente. Antes eu caía através do tempo, caía através da memória. Agora fico imóvel e, de repente, me vejo parado do lado de fora de um rancho isolado em Coahuila, no México. Nessa lembrança, Um e sua Cêpan estão carregando caixas para dentro de casa. É dia de mudança. Este é o primeiro lugar em que Um e sua Cêpan — Hilde, o nome da Cêpan dela era Hilde — se fixaram depois que a Garde pousou na Terra e se separou. Espere aí — como sei de tudo isso? É estranho. Além de perceber que existo aqui, observando esse momento da vida de Um, também tenho uma noção geral de suas lembranças da época. Eu sei as coisas que ela sabe, e me lembro do que ela se lembra. As lembranças são tão vívidas que parecem ser minhas. É como se eu fosse ela. A Um Fantasma aparece a meu lado, observando sua versão mais nova e Hilde desempacotarem pratos na cozinha. Sua presença é sinistra e me causa certa tontura. Tento ignorá-la, mas ela simplesmente não para de falar comigo. — Ficamos aqui por um tempo — ela diz, parecendo quase saudosa. — Depois Hilde achou ter visto um mogadoriano bisbilhotando pela cidade, e tivemos de ir embora. A Garde se muda muito, de cidade para cidade, de país para país, de modo imprevisível. Meu pai vai querer saber disso. É completamente diferente da forma de agir mogadoriana: consolidamos nosso poder em bases ao redor do globo. Por isso é tão difícil encontrá-los. — Ela era meio chata às vezes — Um diz, observando a Cêpan. — Provavelmente muito parecida com o babaca do seu pai. Só que, sabe, não era maliiiiiiiiiiiigna. — Ela esfrega as mãos e dá uma risada maliiiiigna para enfatizar. — Cale a boca — disparo, mais zangado do que percebi que estava. — Você não o conhece. Mesmo sem querer, eu me pego analisando Hilde. Ela tem quase sessenta anos, e seu rosto é cheio de rugas, algumas naturais da idade e outras do envelhecimento precoce causado pelo estresse. Seu cabelo grisalho está firmemente preso em uma trança austera. Seus olhos têm certa severidade; sua voz é dura e controlada mesmo quando diz a Um — a Um “real” — em que armário os pratos devem ficar. Verdade seja dita, ela realmente lembra o General. — Mas eu a amava como a uma mãe — Um Fantasma diz, com a voz falhando de tristeza. Penso na velha morta que deixamos apodrecendo na Malásia e sinto um quê de culpa, mas logo me controlo. Ela está mexendo com a sua cabeça, Adamus. — Gostaria que você parasse de falar comigo — digo a ela. — É? Bom, eu gostaria que seu povo não tivesse me matado.
Depois do México, Um e Hilde se mudam para Austin, no Texas. Tento sair à força dessas lembranças, voltar para aquela noite na pista de pouso em Lorien, onde posso descobrir algo útil, mas Um não deixa. De alguma forma, ela me segura. Posso ser um intruso, mas a mente ainda é dela. Ela não consegue me expulsar, mas tem certo controle sobre que partes tenho permissão de visitar. Na maioria das vezes em que tento recuperar o controle, Um me obriga a assistir a uma de suas sessões de treinamento com Hilde. — Eu detestava isso — Um diz, sorrindo. — Espero que você sinta o mesmo. Hilde é mestre em artes marciais, embora esse seja um estilo de luta que nunca faria parte do treinamento mogadoriano, no qual a força bruta é valorizada acima de tudo. Hilde conhece as artes marciais defensivas, que se aproveitam do movimento do próprio agressor, golpeando centros nervosos que incapacitam temporariamente o inimigo. Preso nessas lembranças, quando fico entediado imito os movimentos de Hilde, treinando juntamente com a jovem Um. Sei que nada disso é real, que está tudo em minha mente. Ou na mente de Um. Não sei se existe alguma diferença. Meu corpo magro nunca foi útil no treino de combate mogadoriano, para a grande decepção de meu pai e a diversão de Ivan. Mas, na memória de Um, nunca me canso. Mesmo que o treinamento seja basicamente imaginário, é bom enfim me movimentar de maneira adequada para mim. Além do mais, minha função é obter informações. O estilo de luta da Garde é um dado essencial. Nas primeiras lembranças do treinamento, Um é uma aluna interessada. Ela pratica com Hilde do amanhecer ao anoitecer, ouvindo, extasiada, sua Cêpan falar sobre heróis lorienos que ela ajudou a treinar. Hilde é cheia de histórias sobre competições honradas e nobres batalhas travadas em Lorien. Seu propósito é inspirar, demonstrar a Um o espírito lórico de perseverança. Comparadas às histórias do Grande Livro, nessas é surpreendente a ausência de violência sangrenta e dizimação. — Um dia — Hilde diz — você tomará seu lugar entre eles como uma grande heroína de seu povo. Será conhecida como a Um que protegeu os Oito. Sinto o orgulho que a Número Um tem das palavras de Hilde, mas também a incerteza. Parte dela se pergunta como pode se opor sozinha aos mogadorianos, que conquistaram seu planeta inteiro em apenas uma noite. — Sempre me perguntei por que não tive a sorte de ser a número nove — Um reflete enquanto treino golpes ao lado de seu eu mais novo. — Mas nãããão. Eu tinha que ser a primeira. Também conhecida como a mais condenada dos nove idiotas condenados. Os Anciões me ferraram mesmo.
Em Austin, Hilde deixa Um começar a frequentar a escola, para ajudá-la a se misturar. Sou forçado a assistir às suas aulas. A escola me parece um despropósito. O General nem pensaria em nos deixar socializar livremente com os humanos. E, mesmo assim, conforme as lembranças passam, acabo me envolvendo na vida de Um. Ela faz amigos, passa a andar de skate. Começa a ter algo parecido com uma vida normal. Ao mesmo tempo, seu treinamento é prejudicado. Ela começa a faltar às sessões, mesmo depois que sua telecinesia se desenvolve, quando deveria treinar com afinco redobrado. Por mais rígida que fosse, Hilde não podia fazer nada contra Um se ela escapulisse por uma janela para ficar com os amigos. Como deixar de castigo a última esperança de uma raça em extinção? Não dou a mínima para a maldita vida social de Um. Essa garota é inimiga de meu povo. Sua morte é inevitável, já aconteceu. Mas... depois de vagar por suas lembranças é impossível não me colocar no lugar dela. Mesmo que ela viaje pela Terra sob a constante ameaça de execução, percebo que Um conseguiu ver mais deste planeta do que eu. O General nunca nos permitiu sair de Washington. Hilde pode ser uma Cêpan severa, mas mesmo assim permite que Um vá à escola, faça amigos, tenha uma vida que não é inteiramente dedicada à guerra.
Eu me pergunto como deve ser. Eu me pergunto como minha vida seria sem a necessidade de servir à expansão mogadoriana, sem os exercícios e o treinamento, sem as leituras supervisionadas do Grande Livro de Ra.
— Esta é, tipo, uma das minhas favoritas de todos os tempos — Um Fantasma diz, apresentando uma lembrança de si mesma dando um soco no rosto de uma líder de torcida. A líder de torcida tinha começado; implicava com Um desde que ela passara a frequentar a escola em Austin. É estranho, mas sinto parte da satisfação de Um. Claro, o soco causa sua expulsão da escola, o que é suficiente para Hilde realocá-las outra vez. Elas deixam Austin em uma velha perua e vão para a Califórnia. Um passa a viagem inteira mal-humorada no banco do carona, reclinado ao máximo, ignorando Hilde, absorta nas três conchas marinhas que faz levitar com sua telecinesia. Nós, mogadorianos, fomos alertados sobre a letal telecinesia da Garde. Ao ver Um fazer malabarismos com as conchas, franzindo o nariz de concentração, não me parece tão letal. É mais fascinante. E também não é só a telecinesia. A maneira como o cabelo louro está espalhado atrás dela... Viro as costas. Será que eu estava admirando a Garde morta cujas memórias roubei? Digo a mim mesmo que fiz isso com propósito de pesquisa, embora uma descrição de como o sol destaca as mechas de louro mais claro no lindo cabelo de Um provavelmente não seja o tipo de informação que meu pai espera de mim.
Quando elas chegam à Califórnia, Hilde tenta inspirar Um com algum tipo de magia lórica para que ela comece a levar o treinamento mais a sério. — Você vai querer ver esta — Um Fantasma diz, aparecendo a meu lado para assistir. Usando o que, a princípio, parecem ser esferas simples de vidro, Hilde cria um mapa flutuante da galáxia lórica. O cosmos em rotação, o grande sol laranja e o planeta Lorien, morto e cinzento. — Está vendo o que os mogadorianos fizeram? — Hilde pergunta à jovem Número Um. Um assente, com os olhos fixos no planeta destruído. Hilde se aproxima da esfera flutuante que representa Lorien e a sopra com delicadeza. A névoa de fumaça e o fogo somem da superfície do planeta. Lorien recobra a aparência que devia ter antes da Primeira Grande Expansão: fértil e exuberante, próspero. A imagem logo se desvanece e o planeta volta a ser cinzento. — É por isso que lutamos — Hilde diz em voz baixa, com os olhos cheios d’água. — Não só para vingar nosso planeta e nosso povo e para um dia devolver a vida a Lorien, mas também para impedir que a Terra tenha o mesmo destino. Entende por que você é tão importante? Não presto atenção à resposta murmurada por Um. Estou distraído demais pela visão de Lorien. Sua superfície está terrivelmente carbonizada, e a atmosfera destruída do planeta vaza para o espaço ao redor. Vendo o planeta assim, a maior vitória de meu povo não parece algo de que se orgulhar. — Você quer que aconteça o mesmo com o universo inteiro? — Um Fantasma pergunta, indicando seu lar destruído. — Eu nunca tinha visto isso — respondo, tentando manter a voz neutra. A imagem de Lorien me perturba. Esse tipo de pensamento é traição, mas, se nossa vinda para a Terra significa sequer metade da destruição imposta a Lorien, será que ainda valeria a pena viver aqui? — É essa a aparência do progresso mogadoriano? — Um Fantasma insiste. — Por favor — digo, balançando a cabeça. — Pare de falar comigo. Só quero que ela desapareça. Não quero que veja minha incerteza.
CAPÍTULO SETE Estou na praia. Aqui, não me sinto dentro das lembranças de Um, mas, se me concentrar bastante, consigo imaginar como deve ser o Oceano Pacífico molhando meus tornozelos e a área úmida entre os dedos dos pés. Nunca vi o mar. Quando finalmente acordar, gostaria de fazer isso de verdade. Tiro um instante para imaginar uma viagem à praia com o General. Meu pai está sem uniforme, vestindo um calção de banho florido, e retira do porta-malas do conversível de nossa família um cooler cheio de ingredientes para cozinhar. Minha mãe e Kelly constroem um castelo de areia enquanto Ivan e eu vemos qual de nós consegue nadar mais rápido para longe da areia. Ele ganha, porque até mesmo em minha fantasia sou realista. Volto nadando para a praia, e o General está esperando com um hambúrguer. — Sério? — Um Fantasma pergunta, parada na praia a meu lado, e me dou conta de que estou com um ridículo sorriso bobo no rosto. Rapidamente o desfaço. — Vocês mataram minha raça inteira para poder aproveitar um churrasco na praia? — Fique fora de meus pensamentos — digo sem forças, consciente da hipocrisia. — Pfff... — Um murmura, revirando os olhos para mim. — Eu até que queria, cara. Discutir com o fantasma de Um certamente não é o que meu pai descreveria como reconhecimento produtivo, então viro as costas, tentando ignorá-la. Nesta memória, a verdadeira Número Um está no final de um dia de surfe. Ela tem um talento natural, é a única de seu grupo de amigos surfistas que não caiu da prancha naquele dia. Depois de aprender a surfar e a andar de skate, ela começou a se perguntar se talvez a capacidade aumentada de equilíbrio não seria um de seus Legados. Eu nunca diria isso a Um, mas gostei da memória do surfe. Na verdade, eu nunca contaria isso a ninguém. — Por favor, pare de ficar secando meu antigo eu — diz Um Fantasma ao meu lado. — Não estou secando — protesto. A lembrança continua. Um sai da água, e sua prancha passa diretamente através de mim quando ela pula nos braços de um jovem humano bronzeado e musculoso. Wade. Um vinha se dedicando ao treinamento depois da miniatura de sistema solar feita por Hilde. Pelo menos até conhecer Wade. Wade tem dezesseis anos. Seu cabelo castanho na altura dos ombros é cheio de trancinhas de aparência suja. Ele dorme em uma Kombi velha, embora sua carteira tenha cartões de crédito pagos pelos pais — um fato que Um descobriu ao bisbilhotar as coisas de Wade para ter certeza de que ele não era um mogadoriano disfarçado. Até parece. — Eu me sentia como se meus pais tivessem planejado minha vida inteira — explicou Wade na noite em que ele e Um se conheceram, com o braço em torno dos ombros dela enquanto os dois se aninhavam diante de uma fogueira na praia. — Ir para a faculdade, me formar em Direito, trabalhar com o papai no escritório. Um plano de vida muito burguês. Simplesmente não era para mim, sabe? — Eu entendo — Um respondeu, muito mais interessada no braço musculoso de Wade do que no que quer que ele estivesse dizendo. Acho que ela gostava dele, ou pelo menos gostava da emoção de estar com ele, e, como bônus, o relacionamento dos dois irritava Hilde. Eu não entendia a atração. — Então deixei tudo aquilo para trás, entrei na Kombi e decidi descer a costa surfando. Sem nenhum tipo de plano. Eu só vou, tipo, existir por um tempo. — Wade fez uma pausa. — Ei, alguém já disse que seus olhos são expressivos? Um suspira. Ah, por favor, penso, e Um Fantasma aparece a meu lado. — Não me julgue — ela diz. — Ele era lindo, e eu era uma idiota. Quer dizer, eu não era tão idiota. Sabia que ele não tinha nada na cabeça, obviamente. Mas olhe para ele. Ele é lindo. — Não tenho como saber — digo, constrangido.
Esta lembrança aconteceu alguns meses antes da seguinte. Ainda estamos na praia e Um tira a roupa de neoprene e se senta na areia ao lado de Wade. Ela tem faltado ao treinamento com frequência para surfar com ele. Um e Hilde só se falam quando Hilde tenta repreendê-la. Não estou gostando dessas lembranças com Wade. Elas não têm relevância para a causa mogadoriana. Além disso... acho que Um poderia arrumar coisa muito melhor. — Eu estava me divertindo — Um diz, surgindo para se defender. — Eu gostava de fingir que era normal. Não digo nada. — Você nunca quis fugir de tudo isso? — Um pergunta. Ela sabe que sim. Ela também está vasculhando meus pensamentos. — Você e aquele babaca com quem você anda passam muito tempo em DC, mas nunca falam com outros adolescentes. — É proibido. — Por quê? — Interagir diretamente pode comprometer a integridade operacional — respondo, citando o Grande Livro. — Você parece um robô — Um retruca. — Eles não querem que você conheça os humanos porque seria mais difícil matá-los. Exatamente o que aconteceu comigo. — Como assim exatamente o que aconteceu com você? — Estou dizendo que você meio que gosta de mim — ela diz, olhando para mim de um jeito que me deixa desconfortável. — Eles não sabem o que fizeram ao mandá-lo para cá. Se você me conhecesse tanto antes, ainda ia querer me matar? Pensar nisso faz minha cabeça doer, e dispenso Um com um gesto. Não estou pronto para voltar à lembrança da margem do rio na Malásia. Então lembro a mim mesmo de que a Malásia está no futuro, não no passado. — Não se sinta mal — ela diz. — Também não sei se ia querer matar você.
CAPÍTULO OITO É assim que meu povo a encontra. O General não compartilhou esses detalhes comigo, mas agora os conheço: Wade acredita em fazer oposição ao capitalismo. Para isso, ele rouba lojas sempre que pode. Ele também fala, às vezes sem parar, sobre a incrível coleção de discos que foi obrigado a deixar para trás quando saiu da mansão dos pais. Isso coloca uma ideia na cabeça de Um. Ela vai roubar discos para ele em uma loja perto da praia. Parte dela quer impressionar Wade, a outra quer apenas experimentar a emoção da qual ele falou. Mas Um é flagrada saindo furtivamente para fora da loja com uma mochila cheia de mercadorias. O dono da loja é um tipo inclemente. Ele liga para a polícia. — Como Wade ia ouvir os discos? — pergunto. — A Kombi tem um toca-discos? Um ri enquanto vemos seu antigo eu ser algemado. — Nem pensei nisso. A Número Um é levada para a delegacia. Sua “avó” é contatada. A polícia pretende liberá-la com uma advertência, mas um detetive especialmente minucioso nota o encantamento lórico em seu tornozelo. Ele confunde o encantamento com uma marca feita com brasa e começa a questionar Um sobre afiliações com gangues. — É — Um zomba. — Sou de uma gangue chamada Invasores do Espaço. Atiramos nas pessoas quando passamos em nossas pranchas. Nenhum salva-vidas consegue nos deter. Parece que o detetive não acha a piada muito engraçada. Ele tira uma foto de Um. Tira uma foto do encantamento lórico. Ele disponibiliza ambas as imagens em um banco de dados estadual. No instante que o flash da câmera dispara, entendo o que aconteceu. Meu povo tem equipes monitorando a Internet dia e noite, até mesmo sites internos do governo, em busca de pistas exatamente como essa. Temos inteligências artificiais que não fazem nada além de esquadrinhar feeds de imagens em busca de qualquer coisa que se assemelhe a um encantamento lórico. Após quatro anos de buscas, Um é captada por nosso radar. Hilde não faz um sermão para Um quando a busca na delegacia. Ela não precisa de palavras para expressar sua decepção. Um sabe o que significa ter uma foto tirada pela polícia. Pela primeira vez, a rebeldia de Um é suplantada pelo medo. Ela prepara a mala com as mãos trêmulas antes mesmo de Hilde mandar. Lembro-me do tremor em minhas mãos quando a vi morta. Só naquele momento a guerra em que estamos começou a parecer real. Um devia estar se sentindo exatamente assim. Dessa vez elas viajam com pouca bagagem. Hilde acha que elas precisam sair dos Estados Unidos. As duas correm para o aeroporto e embarcam no primeiro voo internacional que conseguem. O destino é a Malásia. Um nota os dois homens pálidos de sobretudo no aeroporto, mas não percebe o que eles são. Eu percebo. Reconheço os meus. Apesar de todas as precauções, de todo o treinamento e de todo o conhecimento sobre os inimigos, algo que para mim é tão claro passa completamente despercebido por Hilde e Um. Uma equipe de mensageiros mogadorianos as descobriu. Conheço o protocolo em uma situação desse tipo. Quando meu povo tem um pista sobre um lorieno, mensageiros nascidos artificialmente são despachados para todos os possíveis locais de partida. Cobrimos tudo: aeroportos, estações de trem e de ônibus, quiosques de aluguel de carros. O objetivo deles não é atacar. Sua função é apenas ficar de olho na Número Um. — Vocês precisam despistá-los — pego-me murmurando. — Vocês precisam despistar os mensageiros antes de fugir. — Ah, valeu por me contar, cara — Um diz, parada a meu lado. Ela tem uma expressão triste e arrependida. Por alguma razão, estou me colocando entre os mensageiros e Um. Não faz sentido. Sou um fantasma aqui; eles olham através de mim. Além do mais, já aconteceu. Nada que eu faça pode mudar isso. Mesmo assim, sinto um frio na barriga quando elas embarcam no voo para a Malásia. Não vejo mais os mensageiros; eles desapareceram na multidão. Mas sei o que estão fazendo. Estão entrando em contato com meu pai ou com algum outro superior pelo rádio, providenciando uma equipe de mensageiros do outro lado do oceano para quando o voo de Um aterrissar. Minha equipe. Temo assistir ao que vem a seguir.
CAPÍTULO NOVE Hilde e Um se escondem em uma cabana de palafitas abandonada no Rio Rajang, tendo como vizinhos mais próximos macacos incansavelmente barulhentos que povoam a floresta. Hilde planeja uma viagem a Kuala Lumpur, onde vai sacar dinheiro de sua conta bancária, o suficiente para pagar a próxima mudança delas. O lugar é calmo, sem nenhuma das distrações dos Estados Unidos. Quando o rio está calmo, Um pratica telecinesia na margem. Quando a equipe chega — após um voo interminável passando por sabe-se lá quantos fusos horários —, já perdi a noção de que dia é. Só sei que o sol está começando a nascer. Hilde ouve a chegada do primeiro ataque. Nossos soldados não fazem o mínimo esforço para disfarçar sua aproximação; eles cercam a casa. Hilde acorda a Número Um no exato momento em que os guerreiros dão um chute na porta. A Cêpan se move rapidamente para uma velha. É fácil vê-la como a perita em artes marciais e treinadora de jovens Gardes que foi em Lorien. Ela se esquiva facilmente de um golpe de adaga, acertando um soco na garganta de um guerreiro desequilibrado. Antes que o primeiro mogadoriano sequer caia no chão, Hilde já envolveu com os braços a cabeça de um segundo, quebrando seu pescoço. Eu me pego torcendo por ela e me controlo. O mogadoriano seguinte a passar pela porta pula em direção a Hilde e lhe aplica um mata-leão; mas Hilde, em um movimento tão sutil que mal percebo, consegue usar sua força contra ele, jogando-o de costas no chão, apesar de ter o dobro de seu tamanho. É quando ele saca a arma do coldre. Humilhado, o soldado esquece as ordens para não feri-las e atira no peito de Hilde. Quando Hilde cai, Um grita. A casa inteira balança, as tábuas vibram repentinamente. Berrando de tristeza e agonia, Um bate com o pé no chão. Uma onda sísmica irrompe de seu pé, despedaçando as tábuas do piso e lançando os mogadorianos através das paredes de galhos entrelaçados da casa de palafitas. Seu primeiro Legado se desenvolveu. Tarde demais. O pouco que restou da casa está adernando sobre as palafitas. Enquanto os mogadorianos se reagrupam do lado de fora, Um toma Hilde nos braços. O ferimento é fatal. Hilde cospe sangue quando tenta falar. — Não é tarde demais para você — Hilde consegue dizer. — Você precisa fugir. Um chora. Ela se sente responsável; ela se sente impotente. — Eu decepcionei você — Um soluça. — Ainda não — Hilde responde. — Vá. Agora. Estou bem ao lado dela, instando-a a se mexer, embora saiba o que a espera na margem do rio. A Um Fantasma, a garota morta que fora minha companheira durante todas aquelas lembranças, me abandonou. Não aparece desde o aeroporto. Um hesita brevemente diante da ordem de Hilde, e então, sabendo que é sua única escolha, ela se lança por uma das janelas no exato momento em que as palafitas cedem e a casa desaba no rio. Os mogadorianos a encontram na margem. O telhado da casa passa inofensivamente através de mim ao despencar. Observo Um produzir outra explosão sísmica, experimentando seu poder recém-descoberto, e o chão úmido da margem do rio se abre e engole dois mogadorianos que avançavam. Eu me lembro disso. Olho rio abaixo, imaginando se ela me teria visto no lugar de onde eu observava com Ivan e meu pai. Não. Eu estava longe demais, e ela, focada demais na batalha a seu redor. Eu deveria estar apreciando a chance de rever essa grande vitória tão de perto. Não há nada que alguém como Ivan não desse para testemunhar isso outra vez. É como um filme da dominação mogadoriana. Ainda assim, quero virar as costas. Tive vergonha de admitir na primeira vez, mas agora não. Essa batalha — uma adolescente desarmada contra mais de vinte mogadorianos altamente treinados — me causa repulsa. Claro, Um não é completamente indefesa. O chão a seu redor continua a tremer, fazendo os mogadorianos tropeçarem e perderem o equilíbrio. Com a telecinesia, ela lança pedaços pontiagudos da casa destruída nos mogadorianos mais próximos. Os guerreiros atingidos se transformam em cinzas e se perdem na água turva do rio. Não sinto nada pelos soldados mortos. Somos ensinados a aceitar as perdas. Essas equipes de assalto são prescindíveis. Um está sobrecarregada. Mal consegue controlar seu Legado recém-descoberto, sua telecinesia está destreinada por causa dos meses em que faltou às sessões. Ela está quase exausta, e os mogadorianos continuam avançando. Finalmente, um dos maiores guerreiros nascidos artificialmente consegue se esquivar de seus ataques defensivos e a agarra por trás, puxando seus dois braços para imobilizá-la. Quando ele faz isso, Um grita de dor pouco antes de conseguir se soltar. Não foi um grito alto — provavelmente foi mais um som de surpresa que de dor —, mas é o bastante para os mogadorianos compreenderem. Eles a feriram. Ela pode ser ferida. E então as coisas mudam. Conheço o treinamento mogadoriano bem o bastante para ver a estratégia dos soldados se alterar instantaneamente. Eles sabem que é ela. A Primeira. A Número Um. Ela pode ser morta. E cada um deles quer ser aquele que vai matá-la. Um está tão apavorada, lutando às cegas, que nem sequer se dá conta do guerreiro mogadoriano que consegue obter essa glória; não sei o nome dele; ele é apenas um soldado anônimo sob o comando de meu pai. Ele se aproxima dela por trás, com a espada luminosa desembainhada. Não tem pressa, planejando com cuidado seus passos pelo chão vibrante. Quando está perto o bastante, o guerreiro ataca, cravando a espada nas costas de Um até a lâmina emergir de seu abdômen. A partir desse momento, ele será um herói para meu povo. Talvez a única coisa boa da morte é que não precisamos revivê-la. Não temos que nos lembrar da dor. Mas Um, sim. Embora estivesse sumida desde o aeroporto, a Um Fantasma reaparece de repente a meu lado. Ela está curvada e soluça, sua mente desesperada busca a minha através do elo que compartilhamos. Ela se sente morrer. Sua cabeça lateja de dor e medo. Enquanto isso, sinto desmoronar o bloqueio mental que ela estava mantendo, exatamente como as paredes da casa de palafitas. Ela perdeu o controle de suas lembranças. É a minha chance de retornar à pista de pouso lórica, de ver a identidade dos outros Gardes. Assim que o corpo da Número Um cai sem vida no chão, tudo começa a ficar confuso de novo, como aconteceu quando entrei pela primeira vez em sua memória. Só que agora estou no controle. Volto por suas lembranças, sabendo exatamente o que quero ver.
CAPÍTULO DEZ Estou sentado na praia, esperando Um sair da água. Quando ela sai, com a roupa de neoprene pingando e a prancha de surfe debaixo do braço, interrompo a lembrança. Então retrocedo um pouco mais, observando-a pegar uma onda e depois voltar à praia. Esta é a lembrança à qual escolho retornar. Repasso a cena incessantemente, sem saber quantas vezes a observei sair da água até que, por fim, a Um Fantasma surge a meu lado. Ela parece surpresa por me ver ali, mas se senta na areia comigo. Por um tempo, não dizemos nada; apenas olhamos o mar, observando a Número Um passar um de seus últimos dias felizes surfando. Parte de mim deseja poder pegar uma prancha e me juntar a ela, mas as coisas não funcionam assim. Este momento vai ter que bastar. — É uma pena você ter morrido — digo de repente com sinceridade. — É — responde Um. — Foi uma droga. Penso na imagem do sistema solar flutuante. O que vai acontecer quando meu povo começar a invasão na Terra? Será que esta praia vai ter a mesma aparência que as de Lorien têm agora? — Não entendo por que tudo isso tem que acontecer — digo. — Talvez você devesse perguntar a seu papai. Ele tem todas as respostas, não é? Assinto devagar, ainda que a simples ideia de falar sobre isso com o General me deixe enjoado. Um observa com um pequeno sorriso se formando nos cantos da boca. — Vou fazer isso — digo, repentinamente determinado. — Quero saber o motivo. — Que bom — responde Um, e aperta minha mão, embora eu sinta que parte dela ainda tem um pouco de repulsa por mim. Um calafrio percorre minhas costas e, sem saber bem por quê, retiro a mão depressa. — O que acontece agora? — pergunto a Um. — Agora — ela responde — você acorda.
CAPÍTULO ONZE Acordo em meu quarto. Meu quarto, em Ashwood Estates. Não estou mais na vida de Um. É de manhã, e meus olhos se ajustam lentamente à luz do começo do dia. É doloroso abri-los. Meu corpo inteiro está dolorido e fraco. Não consigo me sentar, mas respiro fundo algumas vezes e me concentro em mexer os dedos dos pés para recuperar um pouco da sensibilidade. Estou debaixo de dois cobertores. Um de meus braços — pálido, mais pálido que de costume — está sobre os cobertores, e dele sai um tubo plástico que vai até uma bolsa de nutrientes. Estranho. Quanto tempo dormi para precisarem pôr uma intravenosa em mim? Ouço um barulho perto da cama e, lenta e dolorosamente, viro a cabeça. Há uma garota ajoelhada no chão ao lado de minha cama, de costas para mim. É magra e desajeitada como uma pré-adolescente. Há algo estranhamente familiar nela, e tento lembrar de que casa da vizinhança ela é. O que está fazendo em meu quarto? A garota está com o jogo Crie-Um-Piken espalhado no chão diante de si. É semelhante aos kits de química da Terra e uma das poucas “brincadeiras” permitidas a nós, mogadorianos. Estou fraco demais para falar, ainda não consegui umedecer minha boca, seca como um deserto, então observo em silêncio a garota cortar com um bisturi o corpo de uma minhoca que se contorce. Depois ela enche um conta-gotas com uma solução transparente e pinga dentro do ferimento aberto na minhoca. A princípio, a minhoca apenas estremece, mas depois seu corpo começa a se retorcer e se modificar. Pedaços de carne flexível começam a brotar da região afetada pela solução. A garota pega uma pinça e os estica com cuidado, ajudando a formar seis pernas finas semelhantes às de uma aranha. Hesitantemente, o minúsculo piken consegue se sustentar sobre as pernas, içando o que sobrou do corpo da minhoca. Ele dá alguns passos rápidos pelo chão, depois cai. Com a cabeça inclinada, a garota observa o piken-minhoca tentar se levantar de novo. Ele não consegue, tombando sobre o que seriam suas costas, com as pernas chutando inutilmente o ar. Após alguns instantes de luta inútil, as pernas do piken param de se mover e ele se transforma em cinzas. A garota limpa as cinzas com uma toalha úmida e tira outra minhoca de uma caixa ao lado. Por algum motivo, aquilo me deixa incrivelmente triste. Não pela minhoca, mas pela garota. É perturbador ver a naturalidade com que ela altera e extingue a minhoca. É incômodo pensar em como meu povo dá tão pouco valor à vida. Assim que esse pensamento me ocorre, tenho uma sensação estranha e enjoativa no estômago. Ele vai contra tudo o que está escrito no livro; tudo em que meu povo acredita. A imagem de Um com uma espada mogadoriana cravada no corpo me vem à mente. Eu a afasto. Tento me mexer na cama um pouco mais, o que provoca um ruído. A garota vira a cabeça repentinamente e seus olhos se arregalam quando me vê olhando para ela. — Você está acordado! — ela grita, animada. Kelly. A garota é minha irmã. Mas... ela cresceu. Quando se levanta com um pulo, fica claro que está quase trinta centímetros mais alta que na última vez que a vi, que deveria ter sido na tarde do dia anterior, embora pareça que foi há muito mais tempo. Foi há muito mais tempo, aparentemente. — Quanto... — Tusso, com a garganta doendo. — Quanto tempo? — consigo dizer. Kelly já correu para a porta, chamando nossa mãe lá embaixo. Ela volta rapidamente para perto de mim. — Três anos — ela diz. — Por Ra, você dormiu durante três anos!
CAPÍTULO DOZE Olho para mim mesmo no espelho do banheiro. Estou mais alto. E também mais magro, embora não achasse que fosse possível. Seja o que for que meus pais puseram na intravenosa durante o coma, com certeza não criou músculos. Respiro fundo e observo as costelas se expandirem sob a pele extremamente pálida de meu peito. O simples ato de ficar parado diante do espelho, examinando meu corpo três anos mais velho, é exaustivo. Devo parecer vacilante, porque minha mãe me segura pelo cotovelo e me guia de volta à cama. Ela está em silêncio desde que enxotou Kelly com sua saraivada de perguntas do quarto, dando tempo para que eu me recompusesse. Sinto-me grato por isso. Minha mãe sempre foi a mais gentil da família, para a decepção do General. Pelo jeito que me olha, percebo que não esperava que eu acordasse. Ela acaricia meu cabelo. — Como está se sentindo? — ela pergunta. — Estranho — respondo. É verdade; meu corpo está fraco e não parece meu, tendo crescido sem mim. Mas não é só isso. É estranho estar novamente aqui com os meus, sabendo o que sei agora. Até minha mãe, que acaricia meu cabelo, tem o coração de um guerreiro violento, disposta a matar a Garde. Visualizo os mogadorianos rodeando Um, revivo seu medo e sua raiva. Não consigo deixar de ver o rosto de minha mãe em um desses soldados. Enquanto ela toma delicadamente minha mão entre as suas, imagino-a enfiando uma espada nas costas de Um. De repente, não confio em minha própria família. — Não me lembro de nada — digo, embora ela não tenha perguntado. — A máquina não funcionou. Minha mãe assente. — Seu pai ficará decepcionado. Decidi mentir quando ainda estava na memória de Um, quando estávamos sentados juntos na praia. Não vou contar a meu povo nada do que vi. Não que tenha descoberto algo que fosse ajudar Mogadore a ganhar esta guerra, de qualquer forma. O que eu diria? Que, ao contrário dos mogadorianos, os lorienos têm permissão de desenvolver a individualidade? Que a ausência de doutrinas como as do Grande Livro é, ao mesmo tempo, sua maior força e sua pior fraqueza? Que vi o que nosso povo fez a Lorien e que o lugar ficou horrível? É, seria ótimo. Fico feliz pela chance de treinar essa mentira com minha mãe. Quando chegar a hora de contá-la ao General, ele não será tão gentil. — Acho que o Dr. Anu terá de voltar para a prancheta — digo, sondando para ver se ela acreditou. — Isso não vai acontecer — minha mãe responde. — Como você não acordou... Ela hesita, mas não preciso que ela termine. Imagino o General entrando furioso no laboratório de Anu e puxando a espada. — Seu pai nunca gostou de Anu. Sinceramente, pela maneira como aquele homem falava, fico surpresa que não tenha acontecido antes. Passos pesados ressoam na escada. Então lá vem o General, enfim, para interrogar seu único filho legítimo, provavelmente para me repreender por não ter acordado antes. — E aí, magrelo? Ivan se encosta ao batente da porta, sorrindo. Quantos anos ele deve ter agora, quatorze? Com o seu tamanho, ele poderia jogar na defesa de um time de futebol americano universitário. Como eu, Ivan cresceu nos últimos três anos, mas também ficou maior de todas as maneiras possíveis. Imagino todo o treinamento de força e combate que fez sem mim, provavelmente orientado pelo próprio General. Eu me pergunto como suas notas de teoria mogadoriana ficaram sem minha ajuda. — Tirou uma boa soneca? — ele pergunta. — Sim — murmuro. — Obrigado. — Ótimo. Enfim, o pai quer falar com você lá embaixo. Sinto minha mãe ficar tensa a meu lado. Desde quando Ivan chama o General de pai? — Adamus precisa descansar — minha mãe repreende. Ivan dá uma curta risada de deboche. — Ele não fez outra coisa — diz, depois se vira para mim. — Vamos, vista-se. Há um tom familiar de autoritarismo na voz de Ivan. Muito semelhante ao do General.
CAPÍTULO TREZE Eu esperava que Ivan me levasse ao escritório de meu pai, mas descemos de elevador para os túneis que ficam sob Ashwood Estates. — Você acordou bem a tempo para a ação. — Ótimo — respondo, esforçando-me para não parecer indiferente. — O que está acontecendo? — Você vai ver. É importante. Quando a porta do elevador se abre com um barulho, Ivan me dá um forte tapa nas costas. Fraco como estou, cambaleio alguns passos para a frente. Provavelmente teria caído de cara no chão se Ivan não me segurasse. Ele me puxa para um abraço fraterno, mas, além da força intimidadora, sinto uma espécie de ameaça nos tapinhas brutos que dá em minhas costas. Minhas palmas da mão começam a suar. — Sério — ele sussurra. — Estou muito feliz por você ter acordado. O pai vai ficar contente por seu filho favorito finalmente estar recuperado. Ivan me leva para a sala de briefing. Ali, mais de vinte guerreiros mogadorianos estão sentados em um semicírculo diante do General. Meu pai está imponente como sempre, e sua presença altiva exige a atenção de todos ali reunidos, tanto que nenhum deles sequer nota quando eu e Ivan nos esgueiramos para dentro da sala. Projetada na parede atrás de meu pai, está a imagem de um homem ruivo com pouco mais de quarenta anos. A fotografia é granulada; parece ter saído de uma câmera de vigilância. — Este homem — entona meu pai, em meio ao briefing — chama-se Conrad Hoyle. Acreditamos, com base em diversas pistas e fontes, assim como em vigilância pesada, que ele seja um membro da insurgência lórica. Um Cêpan. Meu pai aperta um botão do controle remoto em sua mão forte. O rosto de Conrad Hoyle é substituído pela imagem de um chalé incendiado em uma área rural. — Uma de nossas equipes de mensageiros teve um confronto com Hoyle nesse local nas Highlands escocesas. Tivemos muitas baixas. Hoyle conseguiu escapar. Surge outra imagem. Conrad Hoyle, sentado em um trem, concentrado em seu laptop. Estava claro que quem quer que tivesse tirado aquela foto o fizera discretamente com a câmera de um telefone, algumas fileiras à frente de Hoyle. — Uma equipe secundária de mensageiros conseguiu encontrar o rastro de Hoyle e o segue desde então. Acreditamos que ele e sua protegida, um alvo prioritário da Garde, que sabemos ser uma garota de cerca de treze anos, se separaram. É muito provável que Hoyle e sua Garde tenham um esconderijo onde planejam se reencontrar. Uma cidade aparece atrás de meu pai, e eu a reconheço de meus estudos dos principais alvos urbanos da Terra. Londres. — Conrad Hoyle está indo para Londres — o General continua. — Lá, acreditamos que se reencontrará com a Garde e tentará desaparecer. Meu olhar percorre os guerreiros na sala. Todos prestam total atenção a meu pai, mas, mesmo assim, alguma coisa está estranha. — Seguiremos Hoyle até Londres e esperamos que ele nos leve até essa garota. E vamos aniquilar ou capturar ambos. De preferência, aniquilar. Enquanto o General faz seu pronunciamento, eu a vejo. Ela está sentada na primeira fila. Seu cabelo louro se destaca nessa reunião de mogadorianos corpulentos de cabelo escuro, mas ninguém mais repara nela. Ninguém sequer consegue vê-la. Lentamente, Um se vira em sua cadeira. Olha para mim. — Precisamos impedi-los — ela diz.
CAPÍTULO QUATORZE Todos deixaram a sala de briefing, à exceção do General e de Ivan. Estou sentado em uma carteira antes ocupada por um guerreiro mogadoriano. Eu me sinto tonto, exatamente como estava logo que acordei. Meu pai para diante de mim, analisando-me. Ele coloca um copo d’água sobre a carteira e eu bebo com avidez. — O que aconteceu? — pergunto. — Você desmaiou — Ivan debocha. Meu pai vira-se para Ivan. — Garoto — rosna ele. — Deixe-nos a sós. Enquanto Ivan sai da sala, mal-humorado, volto a pensar no briefing, na aparição de Um. Será que foi uma alucinação? Parecia tão real quanto as vezes em que conversamos dentro da memória dela. Mas tudo aquilo era como um sonho, uma ilusão. Ela não deveria ser capaz de aparecer para mim agora. Não faz sentido. Mas, por algum motivo, sei que não tive uma alucinação. De alguma maneira, Um ainda está dentro de minha mente. Eu me dou conta de que estou tremendo. Coloco a cabeça entre as mãos, tentando me concentrar, me recompor. O General não tolera esse tipo de fraqueza. Meu pai coloca sua grande mão em meu ombro. Olho para cima, surpreso ao perceber que ele me observa com algo semelhante a preocupação. — Você está bem? — ele pergunta. Assinto com a cabeça e tento me preparar para as mentiras que virão a seguir. — Ainda não comi — digo. Meu pai balança a cabeça. — Ivanick — ele resmunga. — Ele deveria cuidar para que você estivesse pronto antes de trazê-lo até mim. O General tira a mão de meu ombro, esquecendo o breve momento de afeição. Ao vê-lo recobrar a postura rígida, percebo que ele está de volta ao que interessa. O progresso mogadoriano. Acima de tudo. Custe o que custar. — O que você descobriu nas lembranças de Um? — ele pergunta. — Nada — respondo, encarando seus olhos duros. — Não funcionou. Eu me lembro de ter sido amarrado, depois tudo ficou escuro, e agora estou aqui. Senhor — adiciono rapidamente. Meu pai reflete sobre isso, avaliando-me. Então assente. — Era o que eu temia. Percebo que ele nunca imaginou que a máquina do Dr. Anu pudesse funcionar. Meu pai acredita em minha mentira porque esperava um fracasso. Fica óbvio que não se importava com o que aconteceria comigo no processo. Eu me lembro da aposta do Dr. Anu com meu pai, arriscando a própria vida com a certeza de que aquela tecnologia que não fora testada seria bem-sucedida. Funcionou, mas, mesmo assim, Anu foi morto. Esse era o modo de agir mogadoriano. — Três anos desperdiçados — meu pai lamenta. — Você passou três anos enfraquecendo e ficando para trás de seus companheiros. Para quê? Minhas bochechas queimam de humilhação. De frustração. De raiva. Mas o que meu pai faria se eu lhe contasse que a máquina de Anu funcionou, que me deu as lembranças de Um e, com elas, dúvidas? Obviamente, fico calado. — Essa insensatez prejudica nossa linhagem. E a minha imagem — meu pai continua. — Mas não é tarde demais para remediar isso. — Como, senhor? — pergunto, sabendo que ele espera que eu reaja com entusiasmo a qualquer oportunidade de aumentar minha honra. — Você irá conosco para Londres. E caçará essa Garde.
CAPÍTULO QUINZE As doze horas seguintes são um borrão. Meu pai manda fazer um novo uniforme para mim; minha mãe me serve refeições gigantescas, iguais às que os atletas comem antes de grandes jogos — se esses atletas tivessem o apetite de um piken adulto. Tenho permissão de dormir por algumas horas em minha própria cama, e, depois, no voo cruzando o Atlântico. Sinto-me quase grato por essa atividade intensa que não me deixa tempo para pensar na loriena viajando clandestinamente em meu cérebro, ou no que meu pai espera que eu faça. Chegamos a Londres na manhã seguinte. O General trouxe Ivan, assim como duas dúzias de guerreiros escolhidos a dedo, a maioria nascida naturalmente. Como é um Alvo Urbano Crítico, Londres já abriga uma base mogadoriana. Os mogadorianos da cidade requisitaram cinco andares em um arranha-céu do centro para servir como centro de operações. Eles são muito organizados, mas nunca foram visitados por um natural em um posto tão elevado quanto o do meu pai. Ficam em posição de sentido quando o General atravessa os corredores, chegando a olhar para mim e para Ivan com respeito enquanto o seguimos. Nenhum desses leais guerreiros detecta a incerteza que sinto dentro de mim. Para eles, pareço um dos seus. Meu pai assume o comando da central de Londres. Uma parede de monitores operada por dois mensageiros fornece informação em tempo real da rede de câmeras londrina. Outro conjunto de terminais vasculha a Internet em busca de atividade suspeita e de certas palavras-chaves relacionadas a Lorien. Antes de sair para localizar Conrad Hoyle, meu pai quer se inteirar da situação. O General ordena aos mensageiros que mostrem as imagens de várias câmeras de segurança enquanto ele avalia, em silêncio, diversos pontos da cidade em busca de vantagens estratégicas. — A unidade que está seguindo Hoyle informa que ele se encontra em um ônibus, aproximando-se do centro da cidade, senhor — um dos mensageiros declara, ouvindo essa informação no ponto em seu ouvido. — Ótimo — meu pai entoa. — Então é hora de irmos. Enquanto meu pai analisava as imagens das câmeras e planejava uma carnificina, eu estava jogado em uma cadeira próxima, ainda tonto. Ivan está a meu lado, com os braços firmemente cruzados, parecendo mais do que nunca uma versão jovem do General. Quando meu pai se vira para nós, Ivan me lança um olhar com o canto do olho. — Perdoe-me por falar sem permissão, senhor — começa Ivan —, mas não sei se seu filho está pronto. Meu pai cerra o punho. Seu primeiro instinto é bater em Ivan pela insolência. Mas depois ele olha para mim com uma das sobrancelhas levantadas. — É verdade? — pergunta. Sei o que Ivan está fazendo. Ele passou os últimos três anos conquistando, pouco a pouco, as graças do General, chamando-o de “pai”, assumindo meu lugar de filho por direito. Imaginando que eu já era, sua única preocupação havia sido o próprio avanço. Antes, eu nunca teria dado a ele a oportunidade de prejudicar minha imagem. Antes, não acho que ele teria tentado. A questão é que não sei quanto me importo em retrucar. Durante todo o tempo passado nas lembranças de Um e mesmo agora, que estou acordado, nem uma vez sequer fantasiei sobre minha prometida herança de Washington, DC. Como poderia, agora que sei o preço a ser pago? Ivan pode ficar com ela. — Talvez ele esteja certo — digo, encontrando o olhar duro de meu pai. — Fraco como estou, posso me tornar um empecilho à vitória mogadoriana. Empecilho. Vitória mogadoriana. Conheço todos os jargões que devo usar com meu pai. Eles não mudaram. O General dá uma última olhada para mim, com uma leve expressão de desgosto no rosto, antes de se voltar para Ivan. — Venha, Ivanick — ordena, saindo rapidamente da sala. Sou deixado sozinho com os dois técnicos. Eles me ignoram, colados à sua parede de monitores, observando o ônibus de Conrad Hoyle circular pela cidade. Percebo que este é o primeiro momento de paz que tenho desde que saí do coma. Fecho os olhos e baixo a cabeça entre as mãos, tentando manter a mente vazia, afastando os sentimentos conflitantes em relação a meu povo. Sinto-me aliviado por não ter que participar dessa missão. Não sei o que faria se me visse diante da tarefa de matar um Garde. Mas então, quem sou eu? Fui criado como um caçador implacável. — Então, esse é o seu plano? — uma voz familiar pergunta. — Simplesmente ficar aí sentado sem fazer nada? Levanto os olhos e vejo Um sentada a meu lado. Tomo um susto e quase derrubo a cadeira, arregalando os olhos. — Buuuu — ela diz, agitando os dedos. — Sério, cara. Tire essa bunda da cadeira e faça alguma coisa. — Fazer o quê? — pergunto, irritado. — Acha que eles pensariam duas vezes antes de me matar também? Um dos técnicos olha por cima do ombro, franzindo a testa para mim. — Disse alguma coisa? — o homem pergunta. Lanço a ele um olhar vago, depois balanço a cabeça lentamente, e ele se volta para os monitores. Quando olho para onde Um estava sentada, a cadeira está vazia. Ótimo. Agora sou louco. — Veja — um dos técnicos aponta. — Tem alguma coisa acontecendo. Volto minha atenção para a tela. O ônibus de Hoyle parou de repente. As portas se abrem, e uma torrente de passageiros em pânico começa a sair. Uma das janelas na parte de trás explode quando um homem é lançado através dela. Antes de tocar o chão, seu corpo se transforma em cinzas. — Ele nos descobriu — o outro técnico observa. Ambos estão inclinados para a frente, assistindo à ação. Há uma série de intensos clarões de tiros, e depois a traseira do ônibus pega fogo. Enquanto isso acontece, observo Conrad Hoyle sair pela porta da frente. Ele é muito maior do que parecia na foto. Hoyle segura uma submetralhadora em cada mão. — Por Ra! — o técnico exclama, parecendo quase tonto. — Esse vai ser difícil. — Deveríamos estar lá — o outro resmunga. A maioria dos pedestres está correndo para longe do ônibus em chamas, como qualquer pessoa sã faria. Mas outros estão indo em direção aos destroços: homens de sobretudos escuros, abrindo caminho com empurrões através da multidão apavorada. A equipe de assalto mogadoriana chegou. Eles são recebidos com uma salva de tiros de Hoyle, e buscam abrigo rapidamente antes de atirar também. Se meu pai e Ivan ainda não estão lá, sob os tiros de Hoyle, estarão em breve. Esse nobre combate deveria me agradar, como aos técnicos, mas não me agrada. Não quero ver Hoyle, um inimigo lorieno que nunca conheci, ser assassinado. Mas, apesar de meus sentimentos conflitantes em relação à missão, também não quero ver meu pai transformado em uma pilha de cinzas. Minha única escolha é virar as costas. Os técnicos estão tão absortos na ação que não ouvem quando a máquina que monitora a atividade na Internet apita. Aproximo disfarçadamente minha cadeira da tela, analisando a postagem assinalada em um blog. Está escrito: Nove, agora oito. O restante de vocês está por aí?
CAPÍTULO DEZESSEIS Basta apertar algumas poucas teclas para identificar o endereço de IP da postagem do blog — é aqui de Londres. Os técnicos não estão prestando a mínima atenção em mim, especialmente agora que chegam pedidos de apoio tático. Hoyle está sendo uma distração e tanto. Não demora muito e eu encontro um endereço a apenas alguns quarteirões da base mogadoriana. Descobri a localização da Garde fugitiva. Não o General, nem Ivan. Eu. Por um instante, sinto uma onda de orgulho. Tome essa, Ivan. Acho que ficar grande e forte não é tudo, afinal de contas. Agora, o que faço com essa informação? Eu deveria informar a localização da Garde aos técnicos, fazê-los contatar meu pai na batalha e trazê-lo de volta. Seria uma glória imensa para mim e para minha família, e mais um passo para o progresso mogadoriano. Fui criado para fazer isso. E quase faço. Mas, assim que a emoção da descoberta passa, percebo que não é o que quero. Quero ajudar essa Garde. Talvez possa evitar outra cena como a da Malásia. Espere. É isso o que eu quero ou é uma das sugestões de Um, um pensamento remanescente depois da viagem por suas lembranças? Se estou tendo alucinações com ela, será que ainda existe alguma diferença entre meus pensamentos e os de Um? — Que profundo! — Um exclama, olhando a tela do computador por cima de meu ombro. — Que tal resolver suas questões filosóficas depois de salvarmos a vida dela, hein? Isso resolve a questão. Minimizo o relatório antes que os técnicos o vejam e saio da sala. Sigo depressa pelos corredores agora vazios, já que todo o pessoal se juntou à emboscada a Hoyle. Pelo que imagino, só tenho o tempo que Hoyle continuar lutando. Depois disso, os técnicos certamente vão descobrir a postagem do blog e passar os detalhes para as equipes de assalto. Já estou sem fôlego quando chego à rua. Tenho que me empenhar. Os músculos de minhas pernas parecem estar a ponto de arrebentar depois de anos sem uso; meus pulmões estão queimando, pontos cinzentos flutuam intermitentemente em minha visão. Mesmo assim, tiro meu casaco, que me define como mogadoriano, e começo a correr. Sirenes tocam a distância enquanto as autoridades londrinas se dirigem ao local da batalha. Levo dez minutos para chegar à rua tranquila onde fica o prédio. Não consigo acreditar que o esconderijo da Garde estava bem debaixo de nosso nariz. Se tivéssemos esperado, Conrad Hoyle iria até nós, e todo o caos nas ruas poderia ter sido evitado. Claro, para mim foi uma sorte as coisas terem acontecido desse jeito. Estou ofegante quando chego à porta do prédio. É uma antiga casa geminada de tijolos, que agora abriga três apartamentos, segundo o interfone do lado de fora. Por sorte, uma senhora está saindo para passear com seu cachorro branco e peludo e consigo segurar a porta da frente antes que se feche. Corro para o apartamento do segundo andar, o único que não tem um nome colado no interfone lá embaixo. Bato à porta do apartamento, provavelmente com força demais. Se eu fosse a Garde fugitiva, esse tipo de batida alta me faria fugir pela escada de incêndio. Ouço um movimento súbito lá dentro, uma tevê sendo colocada no mudo, e depois silêncio. Bato de novo, com mais delicadeza dessa vez, e pressiono o ouvido contra a porta. Passos abafados se aproximam da entrada, mas a garota continua em silêncio. — Abra a porta — sussurro, tentando imprimir gentileza e urgência em meu tom de voz. — Você está em perigo. Sem resposta. — Seu Cêpan me enviou — arrisco. — Você precisa sair daí. Há uma longa pausa, e depois uma voz baixa responde. — Como vou saber se você está falando a verdade? Boa pergunta, mas não tenho tempo para isso. Conrad Hoyle provavelmente já foi dominado pela equipe de assalto mogadoriana. Eu poderia dizer a essa garota que seu Cêpan está morto, que meu povo chegará em breve. Poderia tentar arrombar a porta, mas duvido que tenha forças. Sem mais nem menos, Um aparece a meu lado no corredor. Seu rosto está sombrio e distante. — Fale sobre a noite em que eles chegaram — Um diz. — A noite em que seu povo chegou. Volto à lembrança de Um na pista de pouso, aos rostos assustados ao redor dela, à corrida ensandecida em direção à nave. — Eu me lembro da noite em que eles chegaram — começo, de modo hesitante a princípio, mas ganhando confiança à medida que vou falando. — Éramos nove com nossos Cêpans, todos correndo apavorados. Vimos um Garde rechaçar um piken. Não acho que ele tenha sobrevivido. Então eles nos empurraram para a nave e... Minha voz vacila. Narrar a última noite de Lorien me deixa estranhamente triste. Olho para onde Um estava, mas ela desapareceu outra vez dentro de minha cabeça. Meia dúzia de trancas com cadeados é destravada, e a porta do apartamento se abre.
CAPÍTULO DEZESSETE Seu codinome é Maggie Hoyle. Pelo pouco que vi de Conrad Hoyle, esperava que Maggie fosse uma minilutadora em treinamento. Mas ela é o completo oposto de seu Cêpan. Maggie não pode ter mais de doze anos; e é pequena para a idade, tímida, com uma juba de cachos castanhoavermelhados pendendo de ambos os lados do óculos fundo de garrafa. O único sinal de influência de Hoyle é uma pequena pistola que ela segura quando entro, o tipo de arma de aparência distinta que uma mulher rica carregaria consigo em um bairro perigoso. Maggie parece aliviada por baixar a arma assim que a porta se fecha atrás de mim. — Conrad está bem? A tevê muda no canto do pequeno flat está sintonizada no noticiário. Um helicóptero filma os destroços em chamas do ônibus de Hoyle. Parece que a luta terminou. Temos que ser rápidos. — Não sei — respondo, sem vontade de dizer que acho improvável que seu Cêpan tenha sobrevivido. Temos de ir embora, e não quero deixá-la nervosa. Não há tempo para tristeza neste momento. Maggie não só é muito mais nova que eu esperava, como também não tem nada da insolência que, depois de passar anos na memória de Um, eu julgava ser o padrão na Garde. Ela é inquieta e nervosa, não calma e confiante, e totalmente despreparada para lutar. Então somos dois. Observo o restante do apartamento. Não parece habitado. Maggie provavelmente se mudou na semana passada. Uma camada de poeira ainda cobre a lareira e as bancadas vazias. Há uma pequena mala aberta ao lado de um colchão de ar meio cheio, com pilhas de roupas espalhadas pelo chão ao redor, e uma tigela de cereais, com alguns marshmallows ainda flutuando no leite tingido de rosa, sobre uma escrivaninha. Esquadrinho o quarto, à procura da arca que, segundo aprendi, todo Garde tem, mas não a vejo em lugar algum. Ou não está com Maggie, ou ela encontrou um bom lugar para escondê-la. Ao lado da tigela de cereal está o laptop que me trouxe até aqui. O computador ainda está aberto na postagem do blog, no fim da página, onde entrariam os comentários. A coitadinha estava ali sentada, esperando que alguém respondesse, e quem apareceu fui eu. — Você não deveria ter feito isso — digo, indicando o laptop com a cabeça. Maggie sente-se culpada, correndo até o laptop para fechá-lo. — Eu sei. Conrad ficaria zangado — ela reconhece, olhando a cena na tevê. — Eu só estava com medo de que ele não voltasse e... Maggie se interrompe, parecendo envergonhada. Ela não precisa terminar; sei o que ia dizer. Que estava com medo de ficar sozinha. Medo. Solidão. Sentimentos semelhantes haviam levado Um a começar a andar com surfistas idiotas e roubar lojas. Na verdade, não quero admitir, mas são os mesmos sentimentos que tenho desde que acordei. — Que número você é? — Isso não importa agora — respondo. Lembro-me de meu curso sobre Legados. Nossos instrutores nos alertaram sobre os diversos poderes que a Garde poderia ter, e tento pensar em um que seja útil agora. — É esperar demais que você consiga se teleportar? — O quê? — ela pergunta, sem entender. — Seus Legados — explico. — Ah. — Ela balança a cabeça. — Não. Conrad disse que ainda preciso de alguns anos para desenvolvê-los. Maggie me observa enquanto atravesso a sala e me ajoelho diante da mala. — Por quê? O que você consegue fazer? Não respondo. Perto de sua mala há uma pequena mochila, que abro e vejo estar cheia de livros, romances de autores humanos de quem nunca ouvi falar. Despejo os livros e começo a enfiar punhados de roupas de Maggie ali dentro. Temos que levar pouca bagagem. Não presto atenção ao que estou pegando, só não quero que o peso a atrase se precisarmos correr. — O que você está fazendo? — a menina pergunta, ainda parada ao lado do laptop. — As malas — respondo. — Pegue apenas o que precisar. Sem dúvida, deixe o computador. Maggie não faz nenhum movimento para ajudar. Sinto que me observa, tentando descobrir o que está acontecendo. — Quero esperar por Conrad — ela diz, com a voz baixa, mas firme. — Ele não virá — respondo, tentando não soar irritado. Ela precisa começar a se mexer. Agora. Fecho o zíper da mochila e me levanto. — Você tem que confiar em mim. — Winston confiou em Julia e olhe o que aconteceu. Winston? Julia? Tento me lembrar do pouco que sei da cultura de Lorien, achando que é algum ditado lórico com o qual não estou familiarizado, ou talvez sejam outros membros da Garde que eu deveria conhecer; mas nada me ocorre. Decido chutar. — Não os vejo desde que chegamos à Terra — digo. — Hummm, eles são da Terra — Maggie diz. — Além disso, não são reais. Eu a encaro, confuso. — De 1984 — Maggie esclarece, notando minha confusão. — George Orwell. Um dos livros da mochila dela. Eu balanço a cabeça. — Nunca li. — De quem achou que eu estava falando? — Hã... — Você não é lorieno — ela diz, examinando meu rosto sombrio, minha pele pálida. — Não — respondo. — E também não é humano. Isso soa mais como uma acusação. Quando balanço a cabeça, Maggie se aproxima do local onde havia deixado a pequena pistola. Não faço qualquer movimento para impedi-la. Ela é observadora. Vejo as engrenagens de seu cérebro funcionando, analisando sua situação. Ela entendeu que existe um problema, mas não sabe se está a caminho ou se já chegou. — Se você é um deles, por que ainda não tentou me matar? — Maggie pergunta. Ela me faz lembrar um pouco de mim mesmo: pequena, inteligente e agarrada à crença de que pode resolver os problemas usando a cabeça. — Não sei o que sou — declaro, percebendo que é a verdade. — Mas não estou aqui para machucar você. Jogo a mochila para ela. — Você precisa fugir. Não importa se é comigo ou de mim. Mas fuja. Repentinamente, há um som alto de algo se quebrando, e a porta do apartamento se despedaça ao ser arrancada das dobradiças. Tarde demais. Tarde demais para fugir. — Adamus — rosna Ivan quando entra na sala. — Que prazer encontrá-lo aqui!
CAPÍTULO DEZOITO Seis guerreiros mogadorianos entram na sala atrás de Ivan. Dois deles ficam parados à porta; os outros se espalham, cobrindo as janelas, obstruindo qualquer rota de fuga possível. São uma máquina bem azeitada, e o protocolo nessa situação é claro: deter a Garde custe o que custar. Fico imóvel. Não estou armado, me esqueci de pegar pelo menos uma adaga quando saí do quartel-general mogadoriano. Mesmo que tentasse lutar — contra meu próprio povo, uma ideia que ainda não aceitei —, eu não teria a menor chance. Pelo menos é assim que justifico minha covardia. Maggie não enfrenta nenhuma de minhas incertezas. Ela pode ter me dado o benefício da dúvida, mas não a Ivan e à equipe de assalto. Ela sabe que está em perigo. Ela executa uma cambalhota digna de um ginasta na direção da mesa onde deixou a pistola. Maggie se move mais rapidamente do que eu esperava, e seus dedos quase se fecham em torno da arma. Mas Ivan é mais rápido. Antes de Maggie conseguir pegar a arma, ele chuta a mesa sobre ela. A quina a atinge em cheio na barriga, deixando-a audivelmente sem fôlego. Maggie, a pistola e a mesa desabam no chão. Maggie se recupera logo e tenta desesperadamente pegar a arma quando Ivan a chuta para fora de seu alcance. A pistola desliza e para a poucos centímetros de meu pés. Ivan pisa na nuca de Maggie, espremendo seu rosto no chão empoeirado. Ele deve ter quarenta e cinco quilos a mais que ela. Maggie se debate, gritando de frustração e dor, mas Ivan a mantém presa enquanto levanta a camisa, examinando as próprias costelas. A princípio, não entendo o que ele está fazendo. Mas depois me dou conta de que está procurando contusões. Se Maggie ainda estivesse protegida pelo encantamento lórico, o dano que Ivan causou ao chutar a mesa sobre ela teria aparecido nele. A não ser que ela seja a próxima da fila. Ivan acaba de confirmar que Maggie é a Número Dois. — Número Dois — ele diz, com um tom repulsivo de satisfação. — Meu dia de sorte. Enquanto Ivan está com a camisa levantada, percebo um ferimento na lateral de seu tronco. Parece um tiro de raspão. O sangue escorre por seu corpo, acumulando-se na cintura da calça. Ele me vê observando e sorri com orgulho. — Não se preocupe, amigo — Ivan diz. — Você precisava ver o outro cara. — Ele pisca. É então que entendo. Ivan não sabe o que estou fazendo aqui. Só o que lhe importa é que o protocolo de sua missão acaba de se alterar de apreender para eliminar. Ao compreender que Ivan estava se referindo a seu Cêpan, Maggie começa a lutar com vigor renovado. Ela consegue sair de baixo da bota de Ivan, mas tudo o que ganha com isso é um forte chute no peito. Ivan chuta Maggie com a mesma indiferença com que minha irmã criou e matou um piken. Maggie está no chão de novo, e dessa vez Ivan pressiona um dos pés sobre suas costas. Ela tosse, depois levanta a cabeça e olha para mim. Uma das lentes de seus óculos está quebrada. — Você disse que ia me ajudar — ela ofega. Ivan ri. Alguns dos outros mogadorianos da sala abrem sorrisos. — Foi isso que ele lhe disse? — Ivan exclama, divertindo-se. — O engenhoso Adamus! Você sempre foi o mais inteligente. Veio correndo até aqui sozinho para ficar com toda a glória enquanto o restante de nós estava lutando. Ivan aponta para a arma que está a meus pés. — Vá em frente — ele diz. — Ajude-a. — Suas palavras estão carregadas de sarcasmo. Pego a pistola com a mão trêmula e a seguro sem firmeza ao lado do corpo. Nenhum dos mogadorianos presentes sacou as armas. Eles realmente não têm ideia do que eu estava fazendo aqui. Claro que não acreditam na Número Dois. Por que confiariam nela, e não em um dos seus? Passo os olhos pela sala e forço um sorriso. Ivan acha que acabou de me dar um presente, e sei que preciso manter a farsa. Mas o que estou realmente tentando descobrir é quantos eu conseguiria matar antes que eles abrissem fogo. Dois? Talvez três? Eu começaria com Ivan, disso tenho certeza. A pequena pistola é extremamente pesada. É agora ou nunca. Mas não consigo. Não consigo matar meu próprio povo, assim como não consigo matar Maggie. Meus olhos encontram os dela, arregalados e suplicantes. Gostaria de poder ao menos lhe dizer que sinto muito, mas as palavras não saem. Estou apavorado demais até para falar. Largo a arma e desvio os olhos. — Não tem estômago para isso? — Ivan zomba, desembainhando sua adaga. — Não importa. Você fez a sua parte. Ivan se abaixa e pega um punhado do cabelo de Maggie, puxando sua cabeça para trás de forma a expor a garganta. Vejo um lampejo metálico ao redor de seu pescoço: o amuleto. Um sorriso se abre no rosto de Ivan quando ele também vê. Ele levanta a adaga, e sinto seu olhar sobre mim. Será que me considera covarde ou, pior, um traidor? — Pelo progresso mogadoriano — Ivan grita.
CAPITULO DEZENOVE Há centenas de fotografias do campo irlandês na pasta “Fotos!” de Dois. Mesmo quando chove, a paisagem é linda: viçosa e verde, colinas intermináveis, uma eventual névoa se aproximando. Vou clicando até chegar a um grupo de fotografias dedicado a uma cabra, um bicho magro e mestiço, com manchas castanhas que mais parecem marcas de lama no pelo branco. O animal de estimação que a Número Dois teve que deixar para trás ao fugir da Irlanda com Conrad. Vejo uma foto dela abraçando o pescoço da cabra. Eu me pergunto qual era o nome do animal. Olho para a mancha de sangue que coagula no chão do apartamento, como se buscasse uma resposta. Os outros mogadorianos foram embora, alguns para comemorar, outros para tratar dos ferimentos da batalha com Conrad. Fui deixado sozinho aqui para analisar o laptop da Número Dois. Não haverá download de lembranças dessa vez; vasculhar seus arquivos particulares será o mais perto que chegarei de conhecê-la. Há algumas fotos de Conrad nos álbuns de Dois. Na maioria das vezes, seu Cêpan sorri com indulgência, mas outras fotografias são espontâneas: Conrad lendo um livro perto de uma lareira, Conrad cortando lenha. Tenho a impressão de que tinham uma vida tranquila juntos, com bem menos conflitos que a de Um e Hilde. Além das fotos, há alguns documentos no laptop. Dois nunca fez um diário de verdade, mas escrevia muito. Há uma longa lista de “Livros para Ler”. Há rankings frequentemente atualizados de seus romances preferidos, e listas mais específicas como “Personagens Femininas Fortes” e “Vilões Mais Legais que os Heróis.” Leio essas listas, embora não entenda quase nenhuma das referências. Faço algumas notas mentais de livros que gostaria de ler. Acho que talvez Dois ficasse feliz se alguém, mesmo um mogadoriano, aceitasse algumas recomendações suas. Então penso no terror dos olhos de Dois quando Ivan baixou a adaga, em como fiquei ali parado e não fiz nada. No que estou pensando? Que, de alguma forma, vou consertar isso lendo todos os títulos da lista de “Livros que Me Inspiraram”? Como sou idiota e superficial. — Algo interessante? Meu pai está no vão da porta. Ele saiu ileso da luta com Conrad Hoyle. — Não — respondo, fechando o laptop de Dois. A verdade é que já deletei a única coisa interessante do computador dela. Uma resposta a seu imprudente post no blog. Deletei o comentário juntamente com a postagem original, embora tenha certeza de que os técnicos do quartel-general já saibam de sua existência. O General está diante de mim. Normalmente, devemos ficar em posição de sentido quando ele entra em algum lugar, mas não consigo encontrar energia para me mover. Permaneço na cadeira, olhando para ele. — Ivanick me contou que você não conseguiu matar a Garde — ele diz, com um misto de decepção e crítica na voz. — Eu teria conseguido matá-la — esclareço. — Qualquer um de nós teria conseguido matá-la. Ela era uma criança. O rosto de meu pai fica sombrio. — Não aceito esse tom de voz, garoto. — Ah, é? — retruco, e na mesma hora relembro a maneira como Um discutia com Hilde. Quero falar mais, mas penso melhor. Afinal de contas, olhe o que aconteceu com Um. — Desculpe, pai — digo no tom mais monótono que consigo. — Não vai acontecer outra vez. — Aquela criança teria matado você se os papéis estivessem invertidos — meu pai diz, e vejo, pela maneira como a veia de sua têmpora lateja, que ter uma conversa civilizada está exigindo grande autocontrole. — Ela aniquilaria todo o seu povo. É isso o que nos ensinam. O que Setrákus Ra nos disse. Mas Dois sabia o que eu era e não pretendia atirar em mim. Além disso, em nenhum dos arquivos de seu laptop havia uma lista de “Métodos de Genocídio Preferidos”. Mais uma vez, minha cabeça começa a girar quando todos os dogmas de minha criação são questionados. — Pai, não acho que isso seja verdade — digo em voz baixa. — Está duvidando do que lhe ensinei? Do que aprendeu no Grande Livro? Eu olho para o General. Encará-lo exige um pouco de esforço, seus olhos queimam por causa da raiva mal contida. — Sim — sussurro. Meu pai me dá um soco na cara. Seu punho é pesado como um tijolo, embora eu ache que ele conteve um pouco o soco, ou eu estaria inconsciente, e não teria meramente caído de costas na cadeira, com o lábio inferior ferido. Sinto sangue escorrendo por meu queixo, sinto seu gosto na boca. Sei que o sensato seria me encolher, evitar qualquer castigo adicional; mas me levanto, com o queixo erguido, à espera do próximo golpe. Ele não vem. Meu pai fica parado diante de mim, com os punhos fechados, encarando-me. Sinto um calor que nunca tinha sentido — raiva, raiva justa —, e essa emoção deve estar aparecendo em meus olhos, porque, de repente, o olhar inicial de desgosto de meu pai revela outra coisa. Algo com que não estou familiarizado. É respeito. Não por eu me colocar contra a morte de Dois — com certeza não por isso —, mas por ver que estou disposto a levar outro soco. — Finalmente — rosna o General —, você se sujou de sangue. Olho para minhas mãos. Elas estão brancas, macias e limpas. Lembro que observei a Número Dois morrer. Minhas mãos deveriam estar cobertas de sangue. E, sem mais nem menos, a raiva se esvai de mim e é substituída por outra coisa, algo pior. Falta de esperança. — Sinto muito por desafiá-lo — digo, olhando para baixo. — Você está certo, é claro. Sinto o General me observando por mais um instante, como se ponderasse o que fazer comigo. Então, sem mais uma palavra, ele sai do apartamento a passos largos, passando indiferente pelo ponto onde Ivan deixou a Número Dois se esvair em sangue. Caio de joelhos e apoio as mãos no chão, repentinamente sem fôlego. Por quanto tempo posso continuar assim, vivendo entre um povo que não entendo mais?
CAPÍTULO VINTE Quando voltamos para Ashwood Estates, fazem um banquete para Ivan. Todos esses condomínios suburbanos planejados têm salões comunitários para as festas da vizinhança. Já faz três anos que Um foi morta, e nosso salão comunitário não era usado desde então. Os moradores passam um fim de semana tirando a poeira, carregando lá para dentro uma grande mesa e preparando a comida. Eu não estava acordado para a última comemoração. Gostaria de poder dormir durante esta também. O General faz um discurso sobre a bravura de Ivan na batalha. Depois prende uma medalha em forma de espada mogadoriana ao peito dele, e Ivan sorri estupidamente enquanto meus vizinhos aplaudem em êxtase. Nenhuma menção é feita à minha chegada antecipada ao esconderijo de Dois, e meu pai não gasta sequer um instante exaltando os guerreiros que não voltaram para casa, mortos por Conrad Hoyle nas ruas de Londres. Não há tempo a perder com os fracos. Saio sorrateiramente sem terminar meu prato e volto para casa, desfrutando a silenciosa escuridão de meu quarto. A julgar pelos olhares intimidadores que meu pai tem me lançado desde Londres, tenho certeza de que ele ficou satisfeito por me ver saindo mais cedo. Sem minha presença, ele pode fingir que Ivan é seu filho legítimo. Ambos vão adorar. A noite está agradável e fresca, mas fecho a janela, querendo abafar o barulho do banquete. Observo as luzes do salão comunitário com os olhos apertados. Meus vizinhos desfrutam a maior comemoração desde a chegada à Terra graças ao assassinato a sangue frio de uma criança desarmada. Quando viro as costas para a janela, Um está parada no meio do quarto. É a primeira vez que aparece para mim desde Londres. Sua expressão é fria e acusadora, muito pior que os olhares de desdém que venho recebendo de meu pai. — Você a deixou morrer. Aperto as têmporas e fecho os olhos com força, tentando fazê-la desaparecer. Quando os abro, Um continua no mesmo lugar. — Seja qual for a parte de meu cérebro em que você estiver se escondendo —rosno —, volte para lá e me deixe em paz. — Você poderia ao menos ter chutado a arma para ela — ela diz, ignorando-me. — Ter dado a ela uma chance de lutar. É uma possibilidade que me aflige desde aquele dia: a arminha idiota de Dois diante de meus pés, a apenas uma curta distância dela. Eu havia repassado as possibilidades em minha cabeça e conseguido racionalizar o medo que estava sentindo naquela hora, definindo-o como autopreservação estratégica. Dois não tinha a mínima chance de sair viva daquele apartamento, quer eu ajudasse ou não. Mas isso não me faz sentir menos covarde. — Eles a teriam matado de qualquer forma — digo, com a voz trêmula. — E teriam me matado. — O que é sua verdadeira preocupação — Um retruca, revirando os olhos. — Salvar a própria pele. — Se eu morrer, o que acontece com você? — pergunto, levantando a voz. Quero que Um entenda. — Já estou morta, seu bocó. — Mesmo? Porque com certeza parece estar aqui agora, deixando-me pior do que eu já estava. Sinto muito por não ter conseguido salvar Dois, mas... Sou interrompido por batidas suaves à porta de meu quarto. Estava tão distraído com Um que nem sequer ouvi os passos subindo a escada. Sem esperar um convite para entrar, minha mãe abre a porta devagar, parecendo preocupada. Eu me pergunto quanto da conversa com minha amiga imaginária ela entreouviu. — Com quem você está falando? Lanço um olhar discreto para onde Um estava pouco antes. Ela desapareceu, voltou para meu cérebro. — Com ninguém — disparo, sentando-me ao pé da cama. — O que você quer? — Queria ver como você estava — minha mãe diz e, gentilmente, toma meu rosto entre as mãos. Ela examina a contusão em meu queixo, que está se tornando amarela, e o ponto cicatrizado em meu lábio inferior. — Ele não deveria ter feito isso. — Eu estava sendo insubordinado — digo. A resposta pronta para uma das repreensões do General vem fácil. Minha mãe se senta na cama a meu lado. Tenho a sensação de que ela quer dizer mais, mas não consegue encontrar as palavras. — Ele me contou o que aconteceu — ela começa, hesitante. — Com você e a criança da Garde. Ele queria mandá-lo para West Virginia, mas eu o demovi dessa ideia. Há uma base nas montanhas em West Virginia onde acontecem aulas de treinamento intensivo. Ouvi que, na verdade, o “treinamento” são horas intermináveis de trabalho em túneis subterrâneos. Para um natural como eu, ser mandado para lá seria o equivalente a um adolescente humano ir para uma academia militar. — Obrigado — respondo, sem saber exatamente por que minha mãe está me contando isso. Ela se levanta e vai até a janela, olhando as luzes do banquete. — Volte a seus estudos — ela diz em voz baixa. — Recupere suas forças. E, da próxima vez que tiver a chance de matar um Garde, mate. Minha mãe se ajoelha diante de mim, tomando meu rosto machucado entre as mãos. Ela me encara com uma expressão suplicante. Olho para ela decepcionado, sentindo que há algo mais que ela quer dizer. — Sim, mãe — respondo. Ela abre a boca, mas torna a fechá-la sem dizer uma palavra.
CAPÍTULO VINTE E UM Sou um jovem mogadoriano modelo. Sou dedicado a meus estudos. Minha compreensão do Grande Livro de Ra é louvada por meus instrutores, e minha dedicação ao progresso mogadoriano, inquestionável. Termino o curso de Planejamento Tático Avançado como o melhor da turma, e minha redação final, que descreve como a força de guerrilha mogadoriana poderia dominar uma cidade humana bem defendida com um mínimo de baixas nossas, parecia algo que meu pai poderia ter escrito quando era mais jovem. — Seu filho me dá a certeza de que nossos militares continuarão a prosperar na próxima geração — ouço por acaso um de meus instrutores dizer ao General. Meu pai responde apenas com um aceno austero de cabeça. Não nos falamos desde Londres. Já faz três anos. Mantenho meus outros planos táticos em segredo. Trancado no quarto, esboço um esquema para que um exército humano com a inteligência estratégica adequada consiga repelir uma força mogadoriana. Quando fico satisfeito, queimo as páginas na pia do banheiro e lavo as cinzas. O combate corpo a corpo continua não sendo meu forte. Ivan me escolhe como parceiro para todos os exercícios. Ao terminar, estou sempre machucado e dolorido, e Ivan mal chegou a suar. Ele é maior e mais forte que qualquer outro aluno, e, quando praticamos luta, vejo um vazio em seus olhos. É o mesmo olhar sombrio que ele me lançou quando estava parado sobre o corpo da Número Dois em Londres. É como se ele achasse que ainda estamos competindo pelas graças do General, mesmo que há muito tempo eu tenha abandonado a disputa. Ele ganhou, mas é idiota demais para perceber, e ainda me vê como um rival. Quando treinamos com espadas, ele “acidentalmente” corta meu braço, e preciso levar três pontos. — Vou endurecer você, Adamus — ele zomba, parado acima de mim, vendo o sangue escorrer por meus dedos enquanto seguro o braço. — Deixar seu pai orgulhoso. — Obrigado, irmão — respondo. O pouco tempo livre que tenho passo na capital. Não levo mais Ivan comigo, e não perco mais tempo observando humanos no National Mall. Encontro uma livraria tranquila onde passo as horas lendo os títulos de que me lembro da lista de livros favoritos de Dois. Começo com George Orwell. — Por que tive que ficar presa no cérebro do mogadoriano mais chato do universo? — Um reclama durante uma ida à livraria no fim de semana. Ela me visita com frequência, mais de uma vez por dia em algumas ocasiões. De certa forma, é minha única amiga. Ela implica comigo, mas sei que gosta desses momentos tranquilos que passo lendo algo que não o Grande Livro. Durante minhas aulas mogadorianas, sinto a mente dela se inquietando dentro de mim. Às vezes ela se manifesta, comentando que meus instrutores são abominavelmente pálidos ou, durante as lutas com Ivan, que a descoberta do desodorante seria um grande passo para o progresso mogadoriano. Aprendi a não me dirigir a ela em público, a limitar nossas conversas à noite, quando todos estão dormindo. É quando fazemos planos. Deito-me na cama, pensando. Um anda pelo quarto, ansiosa e entediada. — Devíamos fugir amanhã — ela diz. — Podíamos contar ao presidente que um monte de aliens nojentos está planejando uma guerra bem no quintal dele. — Ainda não — respondo, balançando a cabeça. — Saberemos quando for a hora certa. — E se essa hora nunca chegar? Passei dois anos assim, desempenhando meu papel, à espera de uma oportunidade de fazer a diferença. Mesmo com seus imensos recursos, meu povo demora a encontrar o restante da Garde. Há operações bem-sucedidas em outras células: uma missão no interior de Nova York captura uma Garde. Com mais frequência, as missões nunca se realizam porque o alvo desaparece, ou quem desaparece é a equipe de mensageiros. Não sei quanto tempo a Garde vai aguentar. Espero que consiga se organizar logo, mas temo que Um tenha razão, que eu esteja esperando por uma oportunidade que nunca se apresentará. E então, finalmente, chegam notícias da África.
CAPÍTULO VINTE E DOIS Pela primeira vez em anos, sou convidado à sala de briefing do General. — Temos informações confiáveis de que um membro da Garde pode estar escondido no Quênia — meu pai diz, passando a cópia da matéria de uma revista de turismo. A matéria foi publicada alguns meses antes e, considerando seu conteúdo vago, não é de surpreender que nossos técnicos tenham demorado tanto para desencavá-la. No artigo, ao falar sobre um pequeno mercado no Quênia, o jornalista descreve uma criança com uma estranha marca no tornozelo que é diferente de tudo o que ele já viu em outros integrantes de tribos locais. A descrição tem uma semelhança impressionante com o encantamento lórico. — Isso foi confirmado? — pergunto, antes mesmo que Ivan tenha terminado de arrastar o dedo pelas frases do meio da matéria. — Obter informações pelos métodos normais provou ser um obstáculo. — Não podemos exatamente nos infiltrar sem ser notados em uma comunidade como essa — digo, recebendo um severo olhar de irritação de meu pai, embora ele saiba que estou certo. — O que isso significa? — Ivan pergunta, demorando a entender, como sempre. Apenas nós dois estamos sendo instruídos pelo General. Seja o que for que meu pai planejou no Quênia, será a primeira vez que Ivan e eu ficaremos por conta própria. Ambos sabemos como essa missão é importante e perigosa. Estou um pouco surpreso que o General tenha me escolhido para esta tarefa — que sequer tenha me dado uma tarefa, na verdade. Será que ele não teme mais me colocar em risco? Chego à conclusão de que este é um bom momento para interpretar o aluno aplicado, para demonstrar meu comprometimento com o progresso mogadoriano. — Como eles estão no ambiente de uma aldeia africana — explico a Ivan, pronunciando as palavras com uma lentidão ofensiva —, seria extremamente difícil introduzir uma equipe de mensageiros. Eles saberiam que não somos da região, e nos arriscaríamos a revelar nossas intenções aos lorienos. É um planejamento inteligente da Garde. Não é, pai? — Sim — meu pai admite. — É verdade. — Por que não vamos lá e simplesmente destruímos a aldeia? — Ivan pergunta. — Para que se infiltrar? Eu dou um risada curta. — Quantos incidentes como o de Londres você acha que podem acontecer antes que os humanos comecem a ficar desconfiados? — E daí que eles fiquem desconfiados? — Então você colocaria em risco a segurança de todo o esforço de guerra para massacrar uma aldeia? — Adamus — o General adverte, com uma voz potente e ameaçadora. — Você gostaria de dar as instruções? — Não, senhor — respondo. Ivan dá um sorrisinho. — E, quanto à sua pergunta, Ivanick, é melhor uma abordagem mais sutil neste caso. Sinto Ivan murchar um pouco a meu lado. Não sei nem se ele conhece o significado da palavra sutil. — Conseguimos identidades falsas para não perturbar os locais sem necessidade — meu pai continua. — Vocês dois vão se infiltrar na aldeia e determinar se há de fato a presença de um Garde. Uma equipe de assalto estará mobilizada na floresta para o caso de vocês obterem confirmação. Meu pai me olha por algum tempo, avaliando-me. Então vira-se para Ivan: — Ivanick, você está no comando. Vai se reportar diretamente a mim. Ivan assente com entusiasmo. — Sim, senhor. É claro. O General se volta para mim. — Adamus. Não me decepcione. — Não, senhor — respondo.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS Ivan observa o mosquito picar seu antebraço, levantar um voo instável e depois cair morto no chão de madeira da cabana. Aparentemente, nosso sangue é venenoso para os insetos, embora isso não os impeça de tentar. Ivan olha com raiva para as mordidas inchadas e vermelhas nos braços. — A gente devia ter destruído este lugar — ele resmunga. Os três italianos bronzeados, assistentes humanitários que estão na cabana conosco, fingem não tê-lo ouvido. Não sei quem acham que nós somos, que história ouviram para permitir que fingíssemos também ser voluntários, mas percebo que estão com medo. Imagino que todos tenham parentes presos em algum lugar como West Virginia, que sua cumplicidade faça parte de algum acordo sórdido que meu povo lhes impôs. Gostaria de poder dizer a eles que não correm perigo, que tudo isso vai terminar logo, mas seria mentira. Chegamos à aldeia ontem em um jipe dirigido por um dos assistentes humanitários taciturnos. É um lugar pequeno, aberto na densa floresta. Consiste em cabanas ao redor de um único poço e de um modesto mercado a céu aberto. A aldeia fica no caminho para Nairóbi, então seu mercado atrai pessoas de aldeias menores nas proximidades, que vêm para trocar suas mercadorias uns com os outros ou vendê-las para os turistas que passam por ali de ônibus duas vezes por dia. Há uma pequena quadra de basquete perto da cabana dos assistentes humanitários, construída por seus predecessores para ajudar a criar uma ligação com os nativos. Crianças correm pelo chão batido, jogando uma bola de basquete gasta e escurecida na cesta sem rede. Ivan e eu somos a escolha perfeita para nos passar por assistentes humanitários. Temos a idade certa para isso: adolescentes idealistas usam o período entre o ensino médio e a faculdade para trabalhar como voluntários. É o tipo de atividade que ficaria muito bem em uma inscrição para a universidade. Claro que, para os mogadorianos, ajudar os menos afortunados seria considerado perda de tempo. — Ajuda humanitária — Um desdenha, aparecendo a meu lado. — Vocês têm um senso de humor doentio. Balanço a cabeça. Ela está certa, mas duvido de que o General se dê conta da grotesca ironia de nosso disfarce. Para meu povo, esses assistentes humanitários e as aldeias são apenas recursos táticos, peões para nos ajudar a expor o Garde que pode estar escondido na floresta. Hoje os assistentes avisaram que têm um novo carregamento de vacinas para as crianças da aldeia, algo para combater a malária. Uma por uma, as crianças locais fazem fila para cerrar os dentes e tomar a injeção. Quando entram na tenda, Ivan e eu as analisamos. A maioria chega descalça ou de chinelos, mas Ivan ordena que as que usam tênis ou meias os retirem. Nenhuma delas acha estranho. Humanos são crédulos demais. São muitas as crianças com a idade daquela que estamos procurando, mas nenhuma delas tem a cicatriz lórica. Cada tornozelo liso é um alívio para mim. Um dos meninos que está recebendo a injeção observa Ivan com atenção, depois diz alguma coisa em suaíli. As outras crianças da fila riem. — O que ele disse? — pergunto. O assistente humanitário que segura a agulha para, lançando-me um olhar nervoso. Então, em um inglês não fluente, responde: — Ele disse que seu amigo parece hipopótamo branco. Ivan dá um passo na direção do garoto, mas eu o detenho, colocando a mão em seu ombro. — O garoto está certo — digo ao assistente —, ele parece mesmo um hipopótamo. Levanto o polegar para o menino em sinal afirmativo e as crianças riem outra vez. — Isto é uma perda de tempo — Ivan diz com irritação, e vai para os fundos da cabana batendo os pés. Imagino que vá se reportar a meu pai: nenhum lorieno encontrado ainda; crianças quenianas implicaram comigo. Saio da cabana, observando os aldeãos em um dia normal. É inevitável me permitir uma fantasia, como eu fazia quando observava Washington, sobre o tipo de melhorias que poderiam ser realizadas neste lugar. Dessa vez não é um sonho de conquista; é de assistência. Com os avanços tecnológicos dos mogadorianos, poderíamos melhorar muito a vida destas pessoas. — A vida delas ficaria bem melhor — Um diz — se vocês deixassem a droga do planeta em paz. — Você está certa — respondo com um sussurro, sentindo-me um idiota. Na quadra de basquete, os times estão começando a se formar. Um menino com cerca de quatorze anos me vê assistindo e acena. Quando respondo com outro aceno, ele vem correndo até mim e diz alguma coisa que acho ser italiano. — Desculpe — digo. — Não entendi. — Ah — diz o garoto, e percebo que está se esforçando para tentar descobrir qual é minha língua. — Inglês? Americano? Assinto com a cabeça. O garoto é forte, alto para sua idade. Ele tem a pele escura, mas um pouco mais clara que a dos outros aldeãos, com algumas sardas de sol sobre as bochechas e o nariz. Ele tem uma aparência meio exótica. Está usando regata e short de malha, tênis de basquete de cano longo puído e meias compridas listradas. Meias compridas. Sinto um frio na barriga quando me dou conta de quem ele é. O Garde. — Desculpe — ele diz em um inglês lento, mas perfeito. — Os outros assistentes humanitários falam italiano. Meu inglês está um pouco enferrujado. — Não — respondo, engolindo em seco. — Seu inglês é muito bom. Ele dá um passo à frente para apertar minha mão. — Meu nome é Hannu. — Adam. — Como Adão, o primeiro homem. Isso é bom, mas agora precisamos de um décimo homem para igualar os times. — Ele aponta por cima do ombro para as crianças que esperam na quadra de basquete. — Quer jogar? O que eu quero é gritar para Hannu fugir. Olho por sobre o ombro, perguntando-me onde está Ivan. Não posso ser óbvio demais, não posso fazer uma cena. Se Ivan detectar qualquer coisa fora do comum, vai entrar imediatamente em contato com meu pai pelo rádio. Sua única vantagem neste momento é que meu povo não sabe quem ele é. Ainda existe uma chance para Hannu, e para quem quer que seja seu Cêpan, de escapar despercebido. Preciso afastá-lo da cabana dos assistentes humanitários. — Claro — digo, embora nunca tenha sequer tocado em uma bola de basquete. — Vou jogar. Antes de darmos três passos, Ivan aparece correndo para nos alcançar. Seu sorriso só pode ser descrito como forçado. — Adam — ele diz, falando comigo enquanto avalia Hannu. — Quem é seu novo amigo? — Hannu — o Garde responde, apertando a mão de Ivan. Pela careta de Hannu, dá para ver que o aperto de mão de Ivan é doloroso. — Outro americano. Legal. Tudo em Hannu é tranquilo, até mesmo a maneira relaxada com que nos conduz à quadra de basquete. Ele parece se sentir em casa, confortável. Confortável demais. Imagino há quanto tempo mora aqui — quantas vezes veio a esta quadra para treinar arremessos. Penso no comportamento paranoico dos outros Cêpans, na vida nômade que Um era forçada a aguentar, na existência reclusa de Dois. Parece que Hannu teve uma vida tão pacífica na Terra que se esqueceu de que existe uma guerra em curso. Algumas das crianças mais novas sorriem quando Hannu passa. Ele lhes dá tapinhas na cabeça, retribuindo os sorrisos, brincando com elas em suaíli. Eu me pergunto quantas línguas ele fala. — Você foi vacinado? — Ivan pergunta, direto como sempre. — Não me lembro de ter visto você lá. Hannu agita a mão com um sorriso sereno. — Eu? Sou forte como um touro. Deixe a vacina para quem precisa mesmo dela.
Um dos outros garotos passa a bola para Hannu e ele a lança em um arco baixo. A bola entra na cesta sem sequer roçar a borda. — Você mora aqui há muito tempo? — arrisco. — A vida inteira — ele responde. As crianças devolvem a bola para Hannu, e ele a joga para Ivan. — Tente uma jogada, grandalhão. Ivan aperta a bola com tanta força que, por um instante, temo que ela estoure. Então ele a arremessa na direção da cesta em uma terrível imitação do lance de Hannu, e a bola quica violentamente na lateral da tabela. Alguns dos meninos, incluindo o que chamou Ivan de hipopótamo, riem. — Boa tentativa — Hannu elogia alegremente, piscando para as crianças que riem. A expressão de Ivan fica sombria. Eu me intrometo, tentando levar a conversa para um caminho que desperte a suspeita de Hannu sem Ivan perceber. — É estranho quando desconhecidos aparecem do nada na aldeia? — pergunto. Hannu dá de ombros. — Recebemos turistas de ônibus às vezes. — Ele olha para Ivan. — Espero que vocês tenham trazido filtro solar. Seu amigo está ficando vermelho. Ivan segura meu braço antes que eu consiga formular outra pergunta esquisita. — Vamos, Adam, temos trabalho a fazer. Hannu fica com uma expressão decepcionada quando Ivan me arrasta para longe. — Então a gente joga depois? — Espero que sim — digo a ele. Assim que nos afastamos o bastante para não ser ouvidos, Ivan sussurra para mim: — Era ele! — Ivan está exultante. — Você pode ser inútil em uma luta, mas fareja um Garde melhor que qualquer de nossos mensageiros. Olho por cima do ombro. Hannu já nos tirou da cabeça e está ajudando alguns dos garotos mais novos a treinar os lances. — Não podemos confirmar que é ele — digo. — Ah, por favor, Adamus — Ivan resmunga. — Eu deveria tê-lo enforcado ali mesmo. — Não é bom desperdiçar o tempo do General até termos certeza — digo, tentando ganhar tempo. — Além disso, mesmo que seja nosso Garde, você não sabe se ele é o Número Três. Ivan me olha com descaso, e vejo que já se decidiu. Quando voltamos para a cabana, ele agarra pela camisa o assistente humanitário mais próximo e o empurra até a janela. — Aquele garoto — ele diz, apontando para Hannu. — Onde ele mora? O assistente hesita, mas vejo medo em seus olhos. — Não sei bem — ele murmura. — Fora da aldeia, acho. Perto da ravina. — Já serve — Ivan diz, afastando o assistente com um empurrão. Ele me olha de relance antes de se enfiar no quarto dos fundos. — Vou dizer ao pai que você disse “oi”. Então é isso. Logo a equipe de assalto estará aqui. Volto para a porta, observando Hannu driblar a defesa e fazer um arremesso de bandeja. — Ele é burro — Um observa, repentinamente parada a meu lado, olhando para Hannu. — Você precisa contar a ele. Eu assinto. Chega de esperar, chega de planejar, chega de sutileza. Nunca haverá uma oportunidade mais perfeita para desertar. Já deixei uma loriena morrer por causa de minha incerteza, por não agir a tempo. Não vou permitir que este seja capturado, ou algo pior. — Você está certa — sussurro para ela. — Fugiremos hoje à noite.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO É noite. A floresta a meu redor está repleta de ruídos estranhos. Eu deveria estar preocupado com o tipo de animais que vivem ali, quebrando galhos enquanto me espreitam, sibilando perto de meus tornozelos. Mas há outros predadores mais perigosos na floresta hoje. Predadores que preciso deter. Corro pela floresta apenas com uma vaga ideia da direção a seguir. Talvez correr não seja bem o termo correto — estou mais é tropeçando; parece que cada planta do chão da floresta está tentando me derrubar. É tão escuro aqui que estou praticamente cego. Meus joelhos e cotovelos estão arranhados por causa das quedas, meu rosto foi cortado pelos galhos. Mesmo assim, corro na direção da ravina. O comunicador em meu quadril chia de estática. Eu o surrupiei antes de sair às escondidas da cabana dos assistentes humanitários. Meu plano é simples, é o melhor que posso fazer nessas circunstâncias. Chegar até Hannu e seu Cêpan. Contar a eles o que está acontecendo e usar o comunicador para monitorar os movimentos de meu povo. Espero que, com o conhecimento que Hannu tem da floresta, possamos ficar um passo à frente da equipe de assalto, que logo chegará. Não será fácil — por causa da localização remota, meu pai autorizou uma unidade maior que o normal, incluindo um piken —, mas eu sei como os meus pensam, como atacam. Tenho uma chance de conseguir. Tudo o que preciso fazer é chegar antes a Hannu. Uma tarefa que esta mata cerrada não está tornando muito fácil. Quando a floresta começa a se tornar menos densa à minha frente, e o luar atravessa as copas das árvores, percebo que estou chegando. Ouço a água a distância, o rio correndo pela ravina próxima. Então eu a vejo. Uma cabana solitária e bem construída. A floresta em torno dela foi derrubada com esmero, deixando um espaço plano cheio de aparelhos angulosos de madeira escura. Conforme meus olhos se ajustam, percebo que os objetos são uma espécie de pista de obstáculos caseira. Então o treinamento de Hannu não se limita a jogos de basquete esporádicos na aldeia. Isso é bom. Ele precisará ser ágil para o que está por vir. Eu me aproximo da cabana com cuidado. A última coisa que quero é assustar Hannu e seu Cêpan. Se tiver qualquer semelhança com Conrad Doyle, o Cêpan de Hannu pode sair daquela cabana atirando. Eu paro, tenso, com os pelos da nuca eriçados. Passos ressoam atrás de mim pela mata. Começo a suar frio apesar do calor africano. Eu me viro e vejo Ivan saindo da floresta. Sob o luar, vejo um pingo de suor rolar por seu rosto, e ele dá um sorriso falso. — O engenhoso Adamus — ele zomba. — Pensou que ia conseguir se safar. Ele me descobriu. — De quê? — digo, tentando ganhar tempo. Olho para a cabana por cima do ombro. Não há movimento lá dentro, os sons que Ivan e eu estamos fazendo são abafados pela floresta. Vou deter Ivan se for necessário, mas espero não chegar a esse ponto. Talvez ainda consiga sair dessa situação na conversa. Volto à borda da clareira, parando a poucos centímetros de Ivan. — Saia daqui, Ivan — digo, tentando parecer o mais intimidador possível. Ele solta uma risada curta, incrédulo. — O quê? E deixar você tentar roubar toda a glória? Você provavelmente vai travar outra vez. Então entendo o que, em sua burrice, Ivan acha que estou fazendo aqui. Ele não acha que vim alertar Hannu; uma traição desse tipo nem sequer lhe passa pela cabeça. Ivan acha que vim sozinho capturar ou matar Hannu, como achou que eu havia feito com a Número Dois. — Você não trouxe nenhuma arma — Ivan observa ironicamente. — Vai matar o lorieno com conversa? Ele está certo. Vim desarmado, esperando que isso ajudasse a convencer Hannu a confiar em mim. Além do mais, nunca tive a intenção de lutar contra meu povo, só de fugir deles. Esperava conseguir evitar a violência. Com uma velocidade que surpreende Ivan, estendo a mão e arranco a adaga de seu cinto. Seu queixo cai quando eu arremesso a arma no meio da mata. — Adamus — ele exclama, parecendo magoado como uma criança cujo brinquedo favorito foi quebrado. — O que foi isso? É melhor você me ajudar a procurar. Agarro-o pela frente da camisa e aproximo meu rosto do dele. Ivan fica surpreso mais uma vez, não está acostumado a ser maltratado. Olho em seus olhos, tentando me conectar a ele. Sei que é loucura, mas Ivan era meu melhor amigo, apesar de tudo. Preciso acreditar que ele ainda pode me ouvir. — Por que fazer isso? — pergunto. — Matá-los não vai recuperar nosso planeta. Não vai conduzir ao progresso mogadoriano. Só vai causar mais matança. Mais vidas desperdiçadas. É isso o que você quer? — Do que diabos você está falando, Adamus? Ele está com os olhos fixos em mim, aturdido. Eu o sacudo. — Nem sempre nos damos bem — continuo —, mas você é como um irmão para mim. Você confia em mim, não é? Mudo, Ivan assente. — Então acredite quando digo que tudo o que nos ensinaram está errado — peço, em um tom de desespero. — Nossa causa é injusta, Ivan. Podemos mudar isso. Você pode me ajudar a trabalhar para... para o verdadeiro progresso mogadoriano. Vejo que ele está tentando entender minhas palavras, com o rosto confuso. Ele desvia os olhos de mim e olha por sobre meu ombro para a cabana onde Hannu e seu Cêpan dormem. Por um instante, eu me permito pensar que o sensibilizei. Então ele me empurra. Finalmente entendeu meu plano, e está enojado. — Eu sempre soube que você era fraco, Adamus — Ivan sussurra. — Mas não imaginava que também era um traidor. Então está decidido. Solto o comunicador de meu cinto e golpeio com ele a lateral do rosto de Ivan.
CAPÍTULO VINTE E CINCO Esperava que o golpe deixasse Ivan inconsciente. Deveria ter pensado melhor. Antes que eu consiga me distanciar, Ivan está de pé. Ele nem sequer se dá conta do fio de sangue que desce do corte que fiz acima de sua sobrancelha. A expressão vazia que eu via em seus olhos durante dezenas de sessões de treinamento aparece, e ele corre em minha direção. Ivan bate com o ombro em meu estômago e me levanta, jogando-me contra uma árvore. O ar sai de meus pulmões, explodindo em uma tosse úmida. Ivan agarra meu cabelo e bate minha cabeça na árvore. Vejo estrelas; tento me manter consciente. Desesperadamente, chuto Ivan, batendo com força a canela em sua virilha. Ele se dobra, como se fosse vomitar, e me solta. Cambaleio para trás, para dentro da floresta, tentando me recompor. Ivan volta a me perseguir antes que eu tenha a chance de me recuperar, dá um golpe duplo em meu peito, seguido por um direto no queixo que me faz cair por cima do tronco de uma árvore tombada. Eu me arrasto para trás, passando a língua pelo vão onde meu dente ficava. — Você pode fazer melhor que isso — Um diz, sentada com as pernas cruzadas sobre o tronco. — Cale a boca — murmuro. Ivan pula no tronco, posicionando-se acima de mim. Por cima do ombro, ele aponta para a cabana, com uma expressão insana nos olhos. — Você quer lutar comigo por eles? — rosna. — Pelo lixo lorieno? Você os prefere a nós? — Sim. — Então pode morrer com eles! Ivan pula do tronco, com a intenção de pisar em meu rosto. Rolo para o lado no último instante, chutando a lateral de seu joelho quando ele pisa no chão. Ouço algo estalar dentro da perna de Ivan, e ele uiva de dor. Eu me levanto com dificuldade. Recobro o equilíbrio, me recupero. Ivan vem em minha direção, agora mancando de leve, mas dessa vez estou preparado. Eu me esquivo de seus socos — todos diretos, desferidos com ódio — usando seu próprio movimento e sua velocidade contra ele. É algo que nunca havia experimentado em nossas sessões de luta, mas é exatamente o que Hilde ensinava à Número Um. Ivan me ataca de novo, frustrado, com golpes mais furiosos do que nunca. Eu me esquivo e, quando ele perde o equilíbrio, golpeio seu nariz com a parte de baixo da palma da mão. Ele cai. Piso na garganta de Ivan, pensando na Número Dois e na maneira como ele pisou em seu pescoço. Com o canto do olho, vejo um relance de luz vindo da cabana de Hannu. Mas talvez seja apenas minha imaginação. — Não é tão fácil quando revidam, não é? — provoco. Ivan afasta meu pé, mas eu seguro seu pulso com ambas as mãos. Ele me puxa para o chão e tenta montar em mim, socando-me violentamente com a mão livre, mas eu estou no controle. Jogo as pernas para cima e passo uma sob seu queixo e a outra por trás de sua cabeça, depois uso as mãos para sufocá-lo. Ivan leva um minuto inteiro para ficar inconsciente, socando minhas costelas o tempo todo com uma força cada vez menor. Quando para, empurro seu corpo para o lado, deitando-me de costas. Todo o meu corpo dói, mas estou vivo. Em volta de mim, a floresta está em um silêncio lúgubre. Mas então ouço o chiado de ordens transmitidas pelo comunicador meio quebrado que descartei no chão a alguns metros, e entendo o que está por vir. É tarde demais.
CAPÍTULO VINTE E SEIS Consigo me pôr de pé e cambalear em direção à cabana. Vejo sombras se esgueirando pela floresta a meu redor. São os mensageiros guardando o perímetro. Na porta da cabana, o corpo caído de um homem de cinquenta anos sangra por um enorme ferimento de espada. O Cêpan de Hannu. Morto como os outros Cêpans. O que significa que descobriram que o menino é o Número Três. Tenho vontade de cair de joelhos, de desistir. Joguei minha vida inteira fora esta noite — nunca mais poderei ir para casa; serei conhecido como traidor. Passarei o resto da vida fugindo e me escondendo, caçado, exatamente como a Garde. E para quê? Nem sequer consegui ajudar Hannu. Cheguei tarde demais, levei tempo demais lutando com Ivan. Não consegui nada. De repente, os fundos da cabana explodem e estilhaços voam em todas as direções. Lá está Hannu, vivo, correndo — e correndo rápido. Mais rápido do que é humanamente possível. Ele escapa antes que meu povo consiga cercá-lo, indo em direção à ravina. Ainda existe uma chance. É impossível acompanhar Hannu, mas corro o mais rápido que meu corpo permite, o ar passando dolorosamente por meus pulmões. Há outros perseguidores por perto; eu os ouço se deslocarem pela floresta. Apesar de todos os outros cheiros da mata, sinto o odor ácido do hálito do piken que investe na direção da ravina. Se eu conseguir encontrar uma maneira de chegar primeiro a Hannu, talvez ainda possa ajudá-lo. O som da água corrente fica mais alto. Não sei como Hannu planeja cruzar a ravina. Talvez seja forte o bastante para saltar sobre ela. Talvez conheça algum caminho secreto para descer. Não importa, desde que ele escape. Se ele conseguir, existe esperança. Vejo a silhueta de Hannu se aproximando da borda da ravina, a uns trinta metros de onde estou. Há um piken em seus calcanhares. Estou preocupado com ele — ele não tem para onde ir —, mas, quando chega à borda, Hannu pula, chegando ileso ao outro lado. É um pulo que eu nunca conseguiria dar, e o piken também não consegue. Ele está a salvo. Só que meu pai o está esperando do outro lado da ravina. Não há mais nada que Hannu possa fazer. O General agarra o garoto e o levanta com facilidade. Sua imagem é impressionante, como a de um herói mogadoriano tirada diretamente do Grande Livro. Ele hesita por um instante, observando seu prêmio, depois arranca o amuleto do pescoço de Hannu e o enfia dentro do manto. É impossível cruzar a ravina. A única coisa que posso fazer é observar meu pai rir e tirar a espada da bainha. O metal luminoso trespassa a noite, depois meu pai o enfia no peito de Hannu e o joga insensivelmente no chão. Ele está morto. Um grita dentro de minha cabeça. Ou será que sou eu? O General olha do outro lado da ravina. Por um instante, nossos olhares se cruzam. Ouço passos incertos se aproximando por trás de mim. Sei o que significam, mas não me viro para encará-los. Minha breve rebelião chegou ao fim. — Adeus, Adamus — Ivan sussurra quando me empurra pela borda da ravina em direção às pedras e à água lá embaixo.
CAPITULO VINTE E SETE O calor do sol toca meu rosto em um contraste maravilhoso com a salinidade fresca da brisa do mar. Eu me apoio para trás sobre os cotovelos e fecho os olhos. Viro o rosto para o céu, aproveitando o sol da Califórnia. Quando abro os olhos, Um está sentada na areia a meu lado. Ela é linda. Seu cabelo louro está solto, roçando levemente seus ombros expostos. É maravilhoso. Que sensação agradável! Não me lembro de já ter me sentido tão satisfeito. Por que ela parece tão aflita? — Adam, você precisa acordar. — Acordar do quê? — pergunto, sentindo que não tenho nenhuma preocupação na vida. Estendo minha mão e seguro a dela. Um não rejeita o contato; apenas me encara com um olhar suplicante. — Você precisa acordar — a menina repete. Sinto um frio repentino. De alguma maneira, meu corpo está em dois lugares ao mesmo tempo. O outro lugar é úmido e gelado. Doloroso. Meu corpo é jogado contra as pedras, golpeado sem parar por uma violenta corrente. Sinto que alguns de meus ossos estão quebrados e dores agudas perfuram meu corpo de cima a baixo. Afasto essa realidade. Tento me concentrar na Califórnia. — Por favor, acorde — Um implora. — Mas está ótimo aqui. — Se ficar aqui, você vai morrer. Quando abro a boca para responder, cuspo água barrenta do rio. Tento respirar, engasgando, lutando. A corrente é forte e me puxa para o fundo. Mas isso não faz sentido. Estou em uma praia da Califórnia. Toda a dor está em outro lugar, acontecendo com outro. Um está tão triste e desesperada que tenho de virar as costas. O sol está começando a se pôr no mar, tornando o céu laranja e roxo. Logo estará escuro e eu poderei descansar. — Acorde e lute — Um implora. — Por favor, Adam. Não sei se consigo.
Sobre o autor
Pittacus Lore é o Ancião a quem foi confiada a história dos nove lorienos. Passou os últimos doze anos na Terra, preparando-se para a guerra que decidirá o destino do planeta. Seu paradeiro é desconhecido.
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DE LORIEN
Eu sou o Número Quatro
O poder dos seis
A ascensão dos nove
Os arquivos perdidos: Os Legados da Número Seis
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