1
2
Paulo Ghiraldelli Jr.
O Nietzsche de Sócrates
CEFA 2010
SUMÁRIO
3
1. O efeito Xantipa 2. O grande erótico 3. Passeando com o daimonion 4. Um superego esquisito 5. A hora do suor 6. A equação 7. Akrasia 8. Auto-preservação 9. Ciúme 10. O efeito Platão 11. Alcebíades 12. Final
1. O efeito Xantipa Igualando os comportamentos do filósofo ao do sacerdote asceta, Nietzsche escreve sobre o quanto seria inimaginável ver um grande filósofo casado. Heráclito, Platão, Espinosa, Descartes, Leibniz, Kant e Schopenhauer não foram casados. “Um filósofo casado é coisa de comédia” – diz ele.1 Mas, é claro, ao dizer isso, ele logo se lembra do contra-exemplo de 1 Nietzsche, F. Genealogia da moral. São Paulo: Cia das Letras, p. 97.
4
Sócrates. Justamente o pai da filosofia, foi um homem casado! Teria sido o casamento de Sócrates apenas mais uma artimanha ou uma travessura do grande ironista? As reflexões de Nietzsche sobre o não casamento de vários grandes filósofos e o casamento de Sócrates é algo para se pensar. Como Sócrates conseguiu ser um grande filósofo e, ao mesmo tempo, um marido? Não é a atividade do filósofo uma aventura pública, uma façanha do homem preocupado com as grandes questões e, então, sem tempo e gosto pelos problemas menores do cotidiano doméstico? Sócrates foi mesmo, afinal, um marido? Alguém que se via filosofando por determinação divina, a partir do dito do Oráculo de Delfos, e que se meteu em campanha militar já maduro, também foi um simples marido, um homem comum. Como podia ele estar nas ruas de Atenas, com uma mulher a tiracolo, sem que ela fosse uma Simone de Beauvoir? É claro que há o filósofo casado. Ou quase isso. Richard Rorty diz, por exemplo, que John Dewey não foi só o filósofo que se apresentou como a consciência de sua nação, mas também se mostrou cidadão exemplar, pai dedicado e bom marido. 2 Aceitamos isso, se pensamos na vida americana do tempo de Dewey e na sua figura circunspecta. Todavia, quando lançamos nosso olhar para a filosofia em seus tempos heróicos (todo e qualquer tempo antes do nosso), parece que devemos concordar com Nietzsche: um filósofo casado faz rir. No entanto, Sócrates foi casado e teve filhos. Teria sido Sócrates, afinal, só um personagem – principal – de uma grande comédia, bem mais complexa que As nuvens, de Aristófanes? A vida de Sócrates estaria, então, resumida a uma peça burlesca? Nietzsche não dá o braço a torcer. Ele mantém sua tese do filósofo solteiro como aquele que pode ser chamado de filósofo. Mas, então, e Sócrates, como fica? Ora, Sócrates foi um homem casado e conseguiu assim se manter, diz Nietzsche, porque sua esposa, Xantipa, veio a calhar com a necessidade de sua vida filosófica. Mais do que isso, ela potencializou sua tarefa filosófica. Sócrates foi o grande dialético das ruas de Atenas e Xantipa lhe ensinou o perambular. Assim ele desenvolveu a filosofia da maneira que o fez. Ela teria agido contra a vocação de Sócrates se tivesse tornado o lar do filósofo aconchegante. Todavia, segundo Nietzsche, ao fazer da casa de Sócrates o lugar menos hospitaleiro do mundo, ao desenvolver talvez o pior gênio feminino que se poderia encontrar em toda a Grécia, Xantipa mais que 2 Rorty, R. 'The Education of John Dewey': The Invisible Philosopher <http://pgjr23.googlepages.com/dewey> consultado em 13/05/2009
5
devolveu Sócrates às ruas, aos ginásios e aos banquetes, ela tornou tais locais os cantos próprios em que a juventude poderia encontrar a Mosca de Atenas. 3 A filosofia é pública ou não é nada – sabemos disso. Essa situação pouco afável vivida com Xantipa, não quer dizer que Sócrates não tenha tido conhecimento do amor. Sócrates conhecia bem o amor. Conhecia, sim! E também a partir de mulheres. Mas, convenhamos, sabemos que ele era da caserna, era homem de viver com homens. Sócrates pertenceu, antes de tudo, à cidade. Ele era de Atenas. Ele se pôs como um patrimônio de Atenas. Sócrates não foi somente o pai da filosofia, ele se transformou no herói da filosofia e no forjador da herança grega oferecida a todos nós no Ocidente. Ao mesmo tempo, deste seu altar regado pela cicuta, o que havia de autêntico senão um homem casado? Ah! Mas ele sabia não se apresentar como um simples grego preocupado com o jantar. Sócrates, para Nietzsche, é exatamente isso: aquele que escapou por uma fresta do destino de ter desaparecido nos afazeres de um arrumador de quintal, e isso pela ação de um elemento contraditório, complexo: o efeito Xantipa! Eis aí a grandeza de Sócrates, espelhada em só um fato que, na verdade, corroeu seu destino e concomitantemente lhe deu aquilo que ele precisava para cumpri-lo, em favor de sua vocação e de sua missão. É difícil não ver aí, nesse fato, um atrativo para Nietzsche, uma estrelinha com o brilho propício para chamar a sua atenção e, mais que isso, provocar a sua admiração. O destino de Sócrates vindo pelas costas – como Nietzsche gosta disso! Todavia, a admiração de Nietzsche por Sócrates não termina aí. Admiração? Sim! Por meio de todo o desprezo e pelas linhas acusatórias de Nietzsche, há uma profunda admiração do filósofo alemão pelo herói ateniense. Digo mais: creio que há amor! É uma espécie de amor indignado ou, em alguns momentos, de declarado amor-ódio. O Sócrates de Nietzsche é um decadente. Mas Nietzsche, ele mesmo, se avalia claramente também como um decadente. Qual é a decadência de Sócrates? Qual é a de Nietzsche? Podemos olhar a filosofia da história de Nietzsche e perceber, com clareza, que se trata de um relato que conta o desdobrar do niilismo. A história nada seria senão ondas quebradas na praia de areias cada vez mais 3 Nietzsche, F. Humain, trop humain –I . Paris: Gallimard, 1989, 433, p. 260
6
acumuladas, sendo esses montes arenosos formados por camadas do niilismo. Sócrates é visto, nesse contexto, como um desses montes de areia. Ele é esculpido na areia do niilismo, um grande decadente. Mas Nietzsche também se vê assim. Sócrates seria mais deplorável que o próprio Nietzsche, por isso o filósofo alemão se sente capaz de avaliá-lo? Com que autoridade Nietzsche pode dizer o que diz de Sócrates? Na comparação ombro a ombro, no que Nietzsche ganha de Sócrates? Nietzsche diz que Sócrates é feio. Bem, assim Sócrates passou para a história, como feio, horrendo mesmo. Mas e daí? Nietzsche não é nenhum monumento estético. Além do mais, em tudo Sócrates foi melhor que Nietzsche, não foi? O helenista Alexandre Nehamas 4 faz uma observação curiosa e útil sobre essa comparação. Traduzo-a para o meu jargão. Enquanto que Sócrates é homem de beber a noite toda e, de manhã, aparecer novo em folha e com alta disposição, Nietzsche, por sua vez, não é alguém capaz de agüentar um copo de vinho sem, no dia seguinte, remoer de enxaqueca. Enquanto Sócrates, já maduro, se oferece para a guerra e dela volta herói, Nietzsche não pode se vangloriar de feitos de resistência e saúde, pois nem mesmo seu fácil emprego de professor lhe é suportável. Sócrates ganha a história por andar dias seguidos sem sequer parar para a água e a comida. Ora, Nietzsche não anda, ele se arrasta, e não larga sua bengala por nada. Sócrates apresenta mulher e filhos e, se já não bastasse isso, tem a seu favor o folclore de possuir uma amante e, de resto, põe Alcebíades de joelhos, completamente seduzido. Nietzsche pode apresentar, de modo convincente, algum êxito como conquistador? A existência e a vida de Lou Salomé não são exatamente as melhores testemunhas de Nietzsche como amante pífio e como um ex-futuro marido mesquinho? Assim, na comparação ombro a ombro, a decadência de Nietzsche é bem menos charmosa que a de Sócrates. Nietzsche é o cartógrafo do niilismo. Ele se vê como um decadente e, ao apontar Sócrates como tal, procura um espelho um pouco melhor que ele mesmo. Diante disso, penso que o melhor modo de olhar para “o Sócrates de Nietzsche” é através de uma determinação: devemos levar a sério uma curiosa frase de Nietzsche: “Sócrates, confesso francamente, me é tão próximo, que quase sempre eu movo uma luta contra ele”.5 4 Nehamas, A. The art of living. Berkeley: University of California Press, 1998, cap. 5. 5 Apud Kaufman, S. Socrates – Fictions of a philosopher. New York: Cornel University Press, 1989, p. 129.
7
Não podemos esquecer essa avaliação. Ela é a chave do “Sócrates de Nietzsche”. Há um profundo amor-ódio de Nietzsche por Sócrates. Ou ele move uma guerra contra a Mosca de Atenas ou este terrível personagem, grudado em seu pescoço, lhe arranca todo o sangue. Sem seu próprio sangue, Nietzsche irá olhar no espelho para ver um pálido Sócrates. Então, se esse é o perigo, que se ponham todos os exércitos nietzschianos contra Sócrates – eis o brado do filósofo alemão. Ou isso, ou então Sócrates, “o grande erótico”, como Nietzsche o chama, pode transformar o próprio Nietzsche em um Alcebíades. Mas, em alguns escritos de Nietzsche, já não é este o caso? Nas entrelinhas de seus aforismos e ensaios, não há um Nietzsche que agradece noite e dia, em orações, o mau gênio de Xantipa? Não seria Nietzsche, um eterno agradecido a Xantipa, a mulher que obrigou Sócrates a filosofar?
2. O grande erótico Sócrates é um “grande erótico”, diz Nietzsche. Ele é um sedutor incapaz de ser resistido. Quem negaria isso? Eis a quase prova: computando só a produção de livros e artigos contemporâneos, isto é, pós-Nietzsche, Sócrates é de longe o filósofo em relação ao qual há o maior número de textos dos scholars e filósofos. Caso isso não possa ser tomado como indício de sua atividade erótico-sedutora, tão forte que perdura até hoje, então duvido que alguém possa caracterizar o que é a sedução. Sócrates, diz Nietzsche, fascina os jovens atenienses – de algum modo, conquista os gregos. Não está Nietzsche, então, também caído pela Mosca de Atenas? A explicação de Nietzsche sobre o fascínio exercido por Sócrates não só é brilhante, é também divertida. Nas entrelinhas, é a exposição mais bem acabada da própria filosofia de Nietzssche. Sócrates, para Nietzsche, é um bufão. Ora, Nietzsche às vezes não se pergunta se também ele próprio não é um bufão? Mas, antes de falar da explicação nietzschiana a respeito do fascínio exercido por Sócrates sobre seus contemporâneos, devo lembrar algo que brota do coração dos textos do filósofo alemão, e que diz respeito à sua aflição diante de Sócrates. A impressão que tenho, digo sem temor: parece que Nietzsche sente que Sócrates o atrai para, talvez, jogar-lhe sob os ferros de um amor que irá lhe consumir. Algo muito mais devorador que o perfume de Lou Salomé. Como Nietzsche faz para se livrar dos braços do “grande erótico”?
8
Tentando não cair no campo imantado de Sócrates, Nietzsche prefere, então, levar uma luta contra o ateniense. Redescreve Sócrates segundo os objetivos de sua própria filosofia. Tenta recortá-lo de modo que, uma vez colocando o seu personagem ateniense na sua filosofia da história, ele, Sócrates, se comporte comedidamente e não se lance contra os incautos. Pois bem, se isso é plausível de ser assumido, temos de considerar o “Sócrates de Nietzsche” uma ficção? Trata-se de uma mera ficção? Eis aí uma hipótese minha, a ser investigada: o “Sócrates de Nietzsche” é uma ficção reativa, uma montagem para que Nietzsche possa lidar com o filósofo de Atenas sem cair de bruços, ainda que essa ficção seja altamente respeitosa diante do Sócrates histórico, aquele cuja imagem, com rigor analítico, poderia ser construída a partir dos escritos de Xenofonte, Platão e outros – quem desmentiria essa minha hipótese? Creio que isso cabe em uma investigação. Vale a pena perguntar sobre esse assunto ao próprio Nietzsche? Como Sócrates fascinava? Como se punha como sedutor? Nietzsche lembra que Sócrates é feio, horrendo, e que é incrível que ele tenha encantado os jovens gregos tendo sido dono de uma aparência que fugia da beleza exigida por esse povo, espelhada claramente em sua arte. Como ocorreu isso? A resposta ensaiada por Nietzsche começa pela idéia de que Sócrates atuou como “médico da alma”, um terapeuta dos gregos. Estes, quando Sócrates apareceu, estavam doentes. Eles haviam perdido a capacidade de conduzir suas vidas a partir de suas bases antigas, quando eram os heróicos helenos dos tempos homéricos. Essas bases eram os instintos. Os instintos, antes tão benfazejos arautos e avalistas da felicidade, tinham se transformado em sugadouros, tragando os gregos para uma vida em que o descontrole e as emoções livres já não pareciam louváveis. Sócrates era o mais doente dos gregos e, no entanto, por isso mesmo, aquele que havia conseguido dominar seus instintos por meio da razão. Sua medicina, aplicada a seu próprio caso com aparente êxito, era a da sugestão do uso da razão para tudo. Trouxe isso como pharmakon e boa nova para os gregos – remédio e evangelho. Tornou-se útil para eles. Mas, sabemos bem, ser útil não significa ser capaz de sedução. Sua sedução se fez porque ele trouxe o uso da razão por meio da dialética. Remédio e evangelho. Ou algo parecido: droga e diversão. Nietzsche não diz, mas a dialética nada é senão o uso do elenkhós.6 Trata-se do procedimento pelo qual Sócrates faz o interlocutor cair em contradição e, então, não conseguir dar respostas 6 Sobre o elenkhós: Ghiraldelli Jr., P. História da filosofia. São Paulo: Contexto, 2008, cap.1.
9
para as perguntas colocadas na conversa, as perguntas do tipo “o que é ____?” Assim, abre-se o espaço para a aporia. Esta, por sua vez, nasce do impasse do interlocutor, de sua demonstração de ignorância a respeito daquilo que ele dizia saber. Todo esse procedimento, o do elenkhós, é levado adiante como um jogo, como um entretenimento – nada além de uma simples competição. Aí está o gancho para a sedução. Os gregos sempre foram movidos pelo ágon, pelo desejo do jogo, pelo apetite voraz diante das competições. 7 Vendo que a medicina de Sócrates era divertida, que vinha em forma de competição, aderiram ao seu uso, o jogo. Passaram a imitar Sócrates. Pelo divertimento da dialética, começaram a se sentir bem, saudáveis. Não foi difícil, então, se tornarem usuários e, logo, praticantes hábeis de exercícios racionais que, em um sentido amplo, podem ser englobados na dialética. Quando se tem a maestria de uma prática, não se torna ela algo necessário para todos? Os gregos não demoraram com isso. Passaram a adotar os procedimentos racionais como o que havia de natural, e destituíram os instintos do antigo status. Eles se fizeram não-helênicos, foram negadores dos instintos. Deixaram para trás o passado homérico e a vida heróica. Foi assim que se despediram dos mitos e, então, adotaram a filosofia. Cometeram aquilo que Nietzsche vê como pecado: a troca da vida pela avaliação da vida. Avaliar a vida é colocar a razão sobre a vida. Médico e charlatão. Erótico. Fascinador. Sedutor pelo aproveitamento da alma helênica. Eis Sócrates, mesmo feio, podendo ter discípulos jovens. Platão insistiu na feiúra de Sócrates, tanto quanto outros. Mas, talvez Platão tenha feito isso apenas para quebrar o senso comum grego. Os gregos adoravam intercambiar adjetivos como “bom” e “belo”, sem muito problema. A idéia de intercambiar as palavras “bom” e “belo” sem estudo prévio foi levada em conta por Platão, pois ele mesmo entendia que deveria assim utilizá-las. Para tratá-las como quase sinônimas era necessário, antes, distingui-las de modo acurado. Ora, uma vez que Sócrates era feio e, no entanto, executor de uma vida reta – Sócrates, o bom cidadão –, Platão pôde ter insistido na feiúra de Sócrates exatamente para fazer o grego refletir também no uso mais discriminado de “bom” e “belo”. Antes que falar de Sócrates a partir dos antropólogos criminalistas de seu tempo, Nietzsche se apega a traços físicos de Sócrates porque percebe, nessa operação de Platão, uma questão mais complexa. Nietzsche destaca a feiúra de Sócrates e outros traços físicos com um objetivo especial, que é
7 Nietzsche, F. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 20
10
o de ver sua tese geral sobre a vida grega bem explicada. Mais que qualquer outro pensador, talvez até mais que Hegel, Nietzsche precisa explicar a vida grega clássica. Qual a razão da obsessão de Nietzsche pelos gregos? Apenas mania de filólogo, de quem necessariamente estuda línguas e lê os clássicos? Não ponho minhas fichas só nisso. É claro que a explicação sobre Sócrates, levada adiante por Nietzsche, se encaixa bem em sua filosofia da história. Mas, nada garante que um relato desse tipo não seja somente uma maneira de Nietzsche manusear Sócrates e, então, jogando luz sobre sua atividade, torná-la mapeada, conhecida, circundada e, então, banalizada. Não é a atenção de Nietzsche para com Sócrates apenas uma racionalização a mais? Mas, para que banalizar a atividade socrática? Ora, para fazer Sócrates perder sua força sedutora. Afinal, como o próprio Nietzsche afirma, “uma coisa explicada deixa de interessar”.8 Posso, sem medo, dizer que Nietzsche explica Sócrates e, com isso, nada desenvolve senão uma tentativa de se livrar do “mistério Sócrates”. A ordem de Nietzsche é esta: que o filósofo ateniense perca seu poder de sedução! Ora, e não é isso que pode ocorrer, se Sócrates aparece sem mistério, apenas com um filósofo a mais, no percurso do niilismo? Nietzsche pode estar, nesse intuito, simplesmente tentando, de um modo quase desesperado, fugir do campo imantado de Sócrates. Eis o quadro que posso enxergar. O “grande erótico” sedutor aparece no encalço de Nietzsche. O filósofo alemão percebe que ele pode ser o último dos efebos a cair aos pés de Sócrates. Caso Sócrates não tenha sido de fato culpado em relação à acusação de corromper os jovens, ele, uma vez com Nietzsche, faria valer tardiamente a sentença de sua condenação. Nietzsche, o último dos corrompidos ou o único dos corrompidos. Para não sucumbir, Nietzsche tenta uma manobra desesperada. Explicar Sócrates é sua cartada para que a força da Mosca desapareça ou, ao menos, diminua. Mas, explicar Sócrates é, em boa medida, explicar a própria capacidade de fascinação exercida por Sócrates. Para que isso ocorra é necessário que a explicação da capacidade de sedução manifestada em Sócrates seja uma boa explicação. Ela tem de tirar a aura do filósofo. Ela tem de esquadrinhá-lo, dissecá-lo, expor suas manhas e artimanhas, mostrá-lo 8 Nietzsche, F. Par-delà bien Et mal. Paris: Gallimard, 1980, 80. p. 82.
11
como “um filósofo a mais”. Mas, é possível isso? Será que Sócrates não esconde outras facetas que se agregam ao seu caráter? Será que tais facetas, quando menos se espera, não ressurgem e trazem o ateniense à vida, envolto ao mistério? Ora, se é assim, ele não está com suas forças diminuídas a partir dessa operação racionalizadora de Nietzsche. Nietzsche quer se enganar. Ele deseja acreditar que pode usar, ainda, do pharmakon de Sócrates, ou seja, da razão, para diminuir o charme do filósofo de Atenas. Mas, o “grande erótico” pode, a qualquer momento, pegá-lo novamente. Como? Sócrates possui uma carta na manga. O que o envolve em mistério e o que pode ser sacado a qualquer momento como arma contra a atitude iluminadora, explicativa, é a sua relação com seu daimonion. Como Nietzsche age se isso o assalta? Nietzsche dá a ração diária ao daimonion ou ele foge dessa estranha voz? Aqui, não há como não se expor. Eu mesmo tenho de dar de cara com o daimonion de Sócrates – seja o que for isso – para saber sobre o poder real de Sócrates sobre Nietzsche. Em resumo: temos de saber o que há e o que não há de verdadeiro a respeito do daimonion.
3. Passeando com o daimonion A scholar Sarah Kofman prefere tomar Sócrates como fruto declarado de ficções. Além daquela gerada por Platão, ela vê três outras importantes ficções sobre Sócrates para a filosofia. Hegel, Kierkegaard e Nietzsche são os filósofos que constroem escolhidas e distintas imagens de Sócrates. É significativo que ao traçar um quadro comparativo entre as três figuras de Sócrates, construídas por esses filósofos, é o Sócrates de Nietzsche – justamente o que, em geral, é mostrado como sendo o mais distante da figura histórica de Sócrates – o que menos cai em discordância com o que é dito pelos historiadores helenistas profissionais, em especial os de língua inglesa, que mais têm se envolvido com o tema. Fiel à bibliografia da filosofia continental, Kofman não fala nada do método socrático, o elenkhós, o procedimento de refutação. Em termos de método, ela se fixa na ironia e na maiêutica. A primeira é, de fato, algo que os historiadores confirmam como um procedimento socrático; a segunda, sabemos, tem uma referência no Menon, e cada vez mais tem deixado de aparecer como sendo uma atividade socrática. Ela, a maiêutica, tem sido apontada como uma maneira de Platão explicar a sua doutrina da “rememoração” e a sua Teoria das Formas, que
12
são de sua propriedade intelectual, não de Sócrates. Mas, enfim, não é sobre isso que importa as comparações do livro de Kofman. O que importa ali, ao menos para quem, como eu, está em meio ao próprio problema de Nietzsche com Sócrates, que é a faceta de sedutor do ateniense, é o da relação deste com o seu daimonion. Daimonion ou gênio – não há como evitar o assunto. Seria um deus? A história da filosofia consagrou o assunto. Sócrates tinha “uma voz” que a ele se dirigia. Tanto Xenofonte quanto Platão fazem referência ao daimonion de Sócrates. Em Memorabilia, Xenofonte caracteriza essa voz que falava a Sócrates como agindo não só negativamente. Platão, por sua vez, em A defesa de Sócrates, coloca na boca do filósofo a revelação de que o daimonion, a voz divina que falava a Sócrates desde sua infância, só agia negativamente. O trabalho do daimonion, nesse caso, era o de dizer “não” ou “pare!” diante de alguma atitude esboçada pelo filósofo. A presença do daimonion não atrairia tanto o interesse dos historiadores profissionais caso Sócrates fosse um místico. Mas essa presença do demiurgo causa curiosidade, euforia para alguns e irritação para outros. Há como não ficar intrigado? Que se preste a atenção nisto, na situação específica, problemática para os historiadores e scholars. A questão que atormenta é que não só Sócrates não é um místico como também ele diz claramente que sua filosofia implica em só aceitar aquilo que é assumido após ser peneirado pela razão. Como, então, ele concilia essa devoção à razão com a sua benevolência para com a autoridade da “voz do deus”? Hegel, Kierkgaard e Nietzsche, no livro de Kofman, falam do daimonion de maneiras distintas, particularizando as apresentações. Hegel diz que a voz é positiva e subjetiva, como um aspecto emergente da mente, mas não ainda o que chamamos de uma “voz da consciência”. Kierkegaard diz que é uma voz positiva, e que “representa a ironia”. Nietzsche, ainda no livro de Kofman, diz que a voz é negativa e positiva, e que é a voz do “instinto degenerado”. Antes de nos atermos – e certamente completarmos – o que aparece aí, em Kofman, como sendo a avaliação nietzschiana do daimonion, é útil ver como os atuais historiadores da filosofia tratam o assunto.
13
No campo dos historiadores atuais, há uma longa controvérsia sobre o papel do daimonion. O helenista Gregory Vlastos é o alvo da maioria das teses que, contra as interpretações racionalistas, que ele capitaneia, querem ver na voz ouvida por Sócrates um elemento provocativo, algo que faz a nossa imaginação sobre Sócrates alçar vôo. Todavia, se o objetivo de Nietzsche é o de se livrar de um Sócrates misterioso e, por isso mesmo, sedutor, a melhor interpretação é a de Vlastos. O que Vlastos diz? A voz identificada por Sócrates como a do seu daimonion nada é senão um pressentimento forte, uma forma de caudalosa impressão intuitiva (um “hunch”, diz Vlastos). Seja lá o que for que a voz diz, nunca há uma contradição entre a decisão tomada por Sócrates a partir de ponderação racional e a impressão deixada pela voz. Vlastos termina aí? Não! Às vezes, ele lança mão de outra tese, um pouco mais ampla. Neste caso, ele admite a voz como o que poderia vir do âmbito do sobrenatural, ou quase isso. Todavia, quando assim avalia, Vlastos diz que Sócrates administra a voz, ou seja, Sócrates interpreta o que a voz lhe comunica e, então, toma decisões que não fogem da atitude racional. A interpretação do conteúdo da mensagem da “voz do deus” garante o crivo socrático sobre essa manifestação e, assim, o que vence no final é a racionalidade do procedimento, a marca do Sócrates que nada conta e que nada admite para si que não tenha sido examinado racionalmente.9 Entre os adversários de Vlastos quanto ao papel do daimonion, a tese de Thomas Brickhouse e Nicholas Smith também é atraente. Esses helenistas dizem que a segurança de Sócrates quanto a seguir a voz que se comunica com ele “desde a sua infância”, vem exatamente dessa sua familiaridade com ela. Não é necessário, dizem esses autores, que qualquer um de nós venha a considerar a voz como sobrenatural, basta apenas entendermos que Sócrates, ao confiar na voz, não está sendo menos racional que nós, no modo cotidiano como agimos. Pois, quanto ao modo como acreditamos em afirmações, nós também agimos racionalmente a partir da experiência, da familiaridade com as coisas, e nem sempre indagamos sobre o caráter da fonte de informações que se transformam em crenças que levamos a sério. O conjunto de enunciados nos quais acreditamos nos leva a agir de um modo ou de outro, mas não necessariamente nos tiram do comportamento racional – simplesmente não nos perguntamos sobre o caráter da fonte das informações que temos como verdadeiras. Não raro, não temos como saber o caráter da fonte, e ainda assim, não podemos dizer que estamos agindo
9 Vlastos, G. Socrates – Ironist and moral philosopher. New York: Cornel University Press, 1991.
14
irracionalmente em relação ao conteúdo do que elas indicam, ao botar fé nelas, tomando-as como verdadeiras. Essa argumentação de Brickhouse e Smith 10, ou a de Vlastos, todas elas são as que nos faz ter a idéia de Sócrates como religioso, mas não como místico. O apelo de Sócrates à razão não fica maculado. Sócrates é devolvido, aqui, ao que ele é: um humano. Ou melhor: um terráqueo. É certo que Sócrates, nesse caso, ainda permanece uma personalidade forte, mas é difícil continuar afirmando que sua relação com o seu daimonion venha a ser curiosa a ponto de lhe dar uma aura especial. Então, uma vez sem essa aura, a figura de Sócrates tem de seduzir o leitor contemporâneo por características mais corriqueiras. Sendo isso verdade, a chance de Nietzsche escapar da sedução socrática, aumenta bem. No entanto, temos que lembrar: Nietzsche não conhece a bibliografia que conhecemos. A bibliografia a respeito de Sócrates disponível a ele, além das fontes originais, incluía os historiadores do século XIX, Grote ou Zeller, que estiveram relativamente aquém dos feitos da geração de Vlastos. Além do mais, ele próprio, Nietzsche, tem a sua particular leitura de Sócrates. O “Sócrates de Nietzsche” tem uma relação com o daimonion, e é isto que precisa ser notado. É com isso que vamos não só apreender melhor Sócrates, mas, talvez, entender Nietzsche de uma maneira fecunda.
4. Um superego esquisito Nietzsche, Sócrates e o daimonion. Um trio. Mais que um trio, a fonte de uma protopsicanálise. Nietzsche se veste de Freud para abordar Sócrates e seu daimonion. Freud é médico. Sócrates é visto como médico por Nietzsche. E ele próprio, Nietzsche, se põe como médico de Sócrates. Sim! Nietzsche prefere antes a roupa branca do doutor do que o cachimbo do psicanalista. Trazer Sócrates para a clínica parece ser possível, mas, no máximo, para colocar em seu peito o estetoscópio. Não é o caso de conduzir Sócrates ao divã, isso seria correr risco demais. Não que o filósofo alemão apavore-se com riscos. Mas, quanto a Sócrates, todo cuidado é pouco, e o alemão não ultrapassa o limite do chamado risco calculado. Sócrates como objeto de estudo de um tipo de psicanálise é o máximo que se pode conceder à Mosca de Atenas. Deixá-lo alcançar o divã é passar da conta, é arrojo
10 Brickhouse, T. & Smith, N. The Philosophy of Socrates. Boulder: Westview, 2000.
15
desnecessário. O alemão intui corretamente: no divã, Sócrates pode tornar-se dono da cena, proprietário de Nietzsche. O que funciona nesse caso é o que Adorno e Hokheimer ensinam como sendo a “dialética do Iluminismo”. A estrada é esta: a doutrina nova busca tirar a aura11 da concorrente, a velha doutrina. Na história do pensamento o ideário emergente racionaliza e desencanta o seu adversário veterano, que ele pretende superar, e para tal busca explicá-lo segundo uma visão racional. Ao final, acusa-o de não passar, ainda, de uma ilusão mitológica. Esse processo de continuo desencantamento12 que, talvez, Adorno e Horkheimer tenham aprendido antes de Nietzsche do que de Hegel, é o mesmo utilizado por Nietzsche contra Sócrates. Na clínica, o que Nietzsche quer de Sócrates é somente examiná-lo, como de fato o médico faz, atuando como profissional liberal e, ao mesmo tempo, como um pesquisador que, em princípio, deve estar altamente interessado no objeto de pesquisa. Todavia, o interesse aqui, tem de vir com o seguinte aviso: “há interesse, mas não paixão”. Nietzsche aborda Sócrates. Chama-o para a clínica. Mas, para evitar cair sob o poder de sedução do ateniente, utiliza a arma do desencantamento. Lidar com Sócrates sem torná-lo explicável, mapeado, um filósofo a mais, pode ser altamente perigoso. Pode-se perder a identidade nisso! O charme de Sócrates não precisa ser completamente retirado – isso o descaracterizaria e o tornaria inútil –, mas, é evidente, precisa ser minado, e a racionalização é a melhor forma de conseguir tal façanha. O melhor é abordar Sócrates de um modo positivo, positivista. Enquanto restar nele qualquer capacidade de manter uma aura, ele é ainda perigoso. Os jovens de Atenas que o digam! Uso o jargão da psicanálise, que vem para podermos falar do inconsciente. Trata-se do jargão que aparece na história do Ocidente logo após o tempo de Nietzsche. A terminologia do império de Freud é uma boa terminologia. Vamos utilizá-la. No mapeamento de Sócrates, o procedimento nietzschiano é o de assumir a “voz do deus”, que fala a Sócrates, de um modo recortado, estrito. Ela, a “voz do deus”, não é agrupada ao que Sócrates também conta, no dia do seu julgamento, a respeito de que tinha contato com as 11 Uso o termo, aqui, no sentido benjaminiano 12 Uso o termo, aqui, no sentido weberiano
16
divindades por meio de sonhos.13 A omissão do tema do sonho é proposital, pois Nietzsche, como o médico Freud, quer naturalizar as coisas. É serviço de médico isso, não é? A “voz” pode ser um distúrbio físico – assim é vista às vezes pelo filósofo alemão. 14 Ou “a voz” simplesmente pode ser um sinal do inconsciente, então, algo oriundo do Superego, na terminologia pós-nietzschiana. Diferentemente de Sarah Kofman, prefiro ver Nietzsche conferindo à “voz do deus” uma atitude negativa. Ou seja, na minha leitura, Nietzsche, quando ao daimonion, segue a informação de Platão. Quando conta sobre o papel da “voz”, Sócrates (no texto de Platão, não de Xenofonte) diz que ela só age para negar. Ela vem para dissuadir. Aparece para dizer “não”, diante da disposição de Sócrates de fazer alguma coisa. Ora, o que é a voz que dissuade e que martela a mente senão um tipo de combate crítico contra a positividade, algo como o Superego? Esse papel negativo, Nietzsche o nota muito bem, e o associa à produção da monstruosidade que surge como sendo a figura de Sócrates, enquanto um exagero de quem tem as energias naturalmente canalizadas para a reflexão, não para a vida. Em todos “os homens produtivos”, diz Nietzsche, o impulso positivo é o dos instintos, e isso conduz a vida enquanto um fluxo de atitudes, uma carreira de afazeres, feitos e façanhas, ou seja, tudo o que coloca as pessoas no campo do viver cotidiano. É o jorro do querer fazer, do atuar, do trabalho de todos quando estão à luz do dia. Enquanto que a força de censura, que dissuade, nas pessoas produtivas, é exatamente a reflexão, o que vem acompanhado pela expressão “ah, vou parar para pensar” – eis aí, sempre de maneira esporádica e não como regra, a capacidade racional se manifestando. Nas “pessoas produtivas” é a razão o elemento que faz o papel de Superego, ou seja, de crítica. Sócrates é a inversão dessa sanidade. Ele é o homem que tem uma vida inteira movida pela lógica. Nele, o contingente não é o “parar para pensar”. O pensar crítico e o impulso da reflexão lhe são estruturais. Nele, a tarefa cotidiana é a do inquérito que visa a refutação, é a tarefa da filosofia, do que vem para censurar e dissuadir. Em Sócrates o que surge para “fazer parar” não é a reflexão! O que o faz parar é uma voz nada racional, uma voz tão fora de propósito racional que ele, para conviver com isso, a toma como “a voz do deus”. No vocabulário estritamente nietzschiano, o que é dito é que “a sabedoria instintiva mostra-se, nessa natureza tão inteiramente anormal” – a de Sócrates –, “apenas para contrapor-se, aqui e 13 Plato. The apology of Socrates. In: Five Dialogues. Indianapolis: Hacket Publishing Company, 2002. 14 Nietzsche. F. O problema de Sócrates. O crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Cia das Letras, 2006
17
ali, ao conhecer consciente, obstando-o”. “Enquanto, em todas as pessoas produtivas, o instinto é justamente a força afirmativa-criativa, e a consciência se conduz de maneira crítica e dissuadora, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a consciência em criador – uma verdadeira monstruosidade per defectum!”15 Gregory Vlastos, tão acusado de transformar Sócrates em um racionalista extremado, não chega aos pés de Nietzsche nessa tarefa. O filósofo alemão diz que o correto é considerar Sócrates como “o específico não-místico, no qual, por superafetação, a natureza lógica se desenvolvesse tão excessiva quanto no místico a sabedoria instintiva”.16 O Superego de Sócrates ou a força que contraria Sócrates em momentos decisivos, como Nietzsche a aborda, é o que é assumido pelo filósofo alemão como o contrário de toda motivação de dissuasão que pode aparecer nas pessoas comuns “produtivas” (produtivas = não-filósofos). A pergunta, então, é esta: não é Nietzsche, como decadente, também esse homem que não pára de investigar? Não está ele, como Sócrates, preso a uma vida que o obriga, tão logo acorda e sente força para escrever, pronto para só filosofar? Nietzsche escreve toda sua obra em vinte anos! É pouco tempo. É um tempo mínimo se imaginamos suas fases de dor, devido à doença crônica. Então, tem ele algum momento que não é o de uso da razão? Não vive Nietzsche igual ao que encontra e denuncia em Sócrates? Não é por isso mesmo que ele teme que Sócrates o devore? Ora, e não é um narcisismo gigantesco de sua parte, essa sua visível admiração por Sócrates, apesar de toda sua aparente crítica? Penso que posso escrever assim, trocando “Sócrates” por “Nietzsche”: Nietzsche é o palhaço que se fez levar a sério.17 Ninguém que se apresenta assim, de modo invertido, poderia não ser outra coisa que não um ser cômico. Quem não sabe disso? No entanto, leva-se a sério Nietzsche, justo ele que não se cansa de avisar que temos de rir dele.
5. A hora do suor Levemos Nietzsche a sério, já que ele nos faz rir – é assim que Deleuze diz que ocorre quando se lê Nietzsche verdadeiramente. “Aqueles que lêem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, sem 15 Nietzsche, F. Nascimento da Tragédia. São Paulo: Cia das Letras, 1992, 13, p. 86 16 Idem, ibidem, p. 86. 17Nietzsche, F. Crepúsculo dos ídolos. Op. cit., p. 20
18
rir freqüentemente, e às vezes sem dar uma gargalhada, é como se não lessem Nietzsche”.
18
Em parte, ele tem razão. Não se pode ler Nietzsche sem rir, às vezes gargalhar. Nós o entendemos quando rimos. Diz Rorty, aliás, que o correto é rir com Nietzsche e, depois de uns anos, voltar e rir de ter conseguido rir com Nietzsche – pois o correto é “rir de tudo isso”.19 Vou antes pela sugestão rortiana do que pela deleuziana. Não há como não rir quando se imagina Nietzsche sozinho naquela sua casinha em Sils-Maria – o que poderia estar fazendo? A casa ao sopé da montanha é como uma casa de boneca. Ele poderia bem vestir uma túnica branca e uma guirlanda esquisita e, imitando Alcebíades, entrar pela sala, transformada em pátio do banquete de Agathon, para uma declaração de amor para Sócrates. Duvida-se disso? Você, leitor, duvida disso? Não há razão para uma grande dúvida quando imaginamos como Nietzsche trata inimigos, adversários e guerreiros. Inimigos, adversários e guerreiros – como Nietzsche lida com eles? Os inimigos não são tratados com ironia, são ridicularizados pelo sarcasmo. Kant, no chamamento de Nietzsche, não é só “o chinês de Konisberg”, ele é o dono da filosofia própria para o “homem perfeito”, o “funcionário público”. Eis a filosofia de Kant: “o funcionário público como coisa em si, alçado a juiz do funcionário público como fenômeno”. 20 Quando lemos “Resposta à pergunta ‘O que é o Iluminismo’”, de Kant, sabemos bem o que Nietzsche está falando. A troça faz gargalhar, mas, ao mesmo tempo, a inteligência aguda da observação nos conduz, finalmente, à compreensão da filosofia de Kant. Então, levamos a sério Nietzsche, o filósofo que nos faz rir. Ele nos faz rir daquilo que é a filosofia, algo que todos avaliam como uma atividade muito séria. Os adversários não são tratados com maldade, são postos em situações embaraçosas e, então, desprezados. Platão, aquele grande corpanzil que abriga uma voz de mulher, é acusado de ser um chato, tedioso e – pasmem! – de escrever mal, um mero “misturador de estilos” já notado como tal em sua própria época, ao menos pela opinião dos então bons letrados. Platão é “covarde perante a realidade” , tudo que há de contrário ao viril, ao homem do amor fati. “Para achar graça no diálogo Platônico, esse tipo de dialética espantosamente presunçosa e 18 Deleuze, G. O pensamento nômade. In: Nietzsche hoje. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 62. 19 Rorty, R. A trajetória do pragmatista. In: Eco, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 20 Nietzsche, F. Do exame de doutorado. Crepúsculo dos ídolos. Op.cit. 29, p. 80. Nietzsche, F. Crepúsculo dos ídolos. Op. cit., p. 103
19
infantil, é preciso jamais ter lido os bons franceses – Fontenelle, por exemplo”. 21 Nietzsche, dizendo isso, coloca Platão em baixo da cama e, depois, tenta pegar no sono. Mas, quanto aos guerreiros, Nietzsche os trata de modo especial. Contra eles, o alemão saca todas as suas armas. Ele sabe o que deve ser feito quando lida com inimigos guerreiros. Todo cuidado é realmente pouco aqui! Diante do guerreiro, não há uma palavra que não seja a de respeito. Na mais dura crítica, quando se trata de enfrentar o guerreiro, há o reconhecimento daquilo que Nietzsche mais admira: a virilidade. Nietzsche seria capaz, eu penso, de lançar ao céu e ao mar algumas de suas investidas mais esdrúxulas no campo filológico quanto a esta palavra – viril. Virtuoso, virtude, vir, vir e ir, vir-ir, viril, virilidade, virilha – bolsa escrotal, saco, bagos. Em uma só palavra: Sócrates. O aforismo 340 de A gaia ciência, “Sócrates moribundo”, anuncia esse espaço de erotismo. Nietzsche só faz elogios ao comportamento decadente de Sócrates, e esses elogios são claramente homoeróticos. Ele põe a pena no papel assim: “admiro a sageza e a coragem de Sócrates em tudo que fez, disse … e não disse”. E mais: “este demônio de Atenas apaixonado e trocista, este encantador de ratos que fez tremer e soluçar os mais impertinentes jovens, não era apenas o mais sábio dos tagarelas: foi também sábio no silêncio”.22 Platão nunca gostou de mulheres. Foi homossexual sem qualquer desvio. Sócrates foi amado por Alcebíades, mas é provável que não tenha tido rapazes. Mesmo quando fala de segredos do amor ensinados na juventude, e que seriam bem comuns se ensinados por um homem mais velho, Sócrates não menciona figuras masculinas no seu trajeto amoroso, ele lembra, sim, é da figura de Diotima. Sócrates é viril. Platão é feminino. Não posso imaginar um Nietzsche sem calafrios diante da figura máscula de Sócrates – não a retratada por outros artistas, senão a pintada pelo realismo napoleônico de David. Nietzsche parece se enxergar como um efebo. Essa admiração, que resvala a perdição, transparece nas palavras que citei e que repito aqui: “(…) encantador de ratos que fez tremer e soluçar os mais impertinentes jovens”. Ora, para que usar “tremer” e “soluçar”? Para que Nietzsche usa tais palavras senão como algo que lhe escapou pela boca e caiu no papel com todo o seu suor. Nietzsche admira o criminoso. Mais que admira, ele tem fantasias com a virilidade socrática. É como a menina rica que sonha ser raptada pelo brutamontes favelado. É como a menina louca que se enche de fantasias com o estupro levado a cabo pelo ladrão forte e rude. 21 Idem, ibidem, p. 102 22 Nietzsche, F. Gaia ciência. Lisboa: Guimarães, 1987, p. 256-7.
20
O trecho do parágrafo 340 diz mais: “Um homem como ele, um homem que tinha vivido alegre e, aos olhos de toda a gente, como um soldado, esse homem era um pessimista!” 23 Ora, a palavra homem é repetida três vezes. E para completar, o adjetivo “alegre” vem junto com o caráter másculo de soldado. Para que? O que tem a ver soldado como antagônico de pessimista? Nada! Não há justificativa para tal construção gramatical. A palavra soldado, no caso, não é usada por Nietzsche para se contrapor a pessimista. Ora, do modo como a frase está construída, a palavra “soldado” aparece ali com a função de qualificar a palavra homem – gratuitamente. Ela está ali como fruto espontâneo de uma mão que escreve “homem, homem, homem e … soldado”. É como se Nietzsche estivesse suspirando, inebriado pela masculinidade de Sócrates. Não há na obra de Nietzsche nenhum outro momento desse tipo. Ele não repete esse tipo de escrita com outros filósofos ou personagens. Há mais que identificação com Sócrates. Há mais que polêmica com Sócrates. Nietzsche odeia Platão por este ter podido viver ao lado de Sócrates durante tanto tempo. Após tantos séculos, diante de Nietzsche, a Mosca de Atenas arrebata mais um coração. É isso? Terminamos, então, admitindo a derrota de Nietzsche que, na luta contra Sócrates, é finalmente seduzido?
6. A equação Considerando o resultado até aqui alcançado, parece que não importa mais saber se Nietzsche consegue ou não tratar Sócrates explicativamente e, então, torná-lo um filósofo a mais. Há um destino para Nietzsche, e para este texto. É como se tudo fosse para um só túnel, o lugar escuro em que nosso herói alemão se deixa dominar por seu herói ateniense. Não por suposto fracasso ao tentar explicá-lo. O que ocorre é que a vitória de Sócrates sobre Nietzsche, conquistando-o, vem pelo lado não muito sofisticado, mas antes, pelo lado simplesmente cru, simples, simplório até: a potência viril vence a fenda feminina. É como se nenhum esforço propriamente intelectual de Nietzsche valesse a pena. A figura de Sócrates é arrebatadora diante do alemão – e isso é tudo! Termino assim este meu escrito? Eu finalizaria aqui, caso pudesse desconsiderar um detalhe da teoria socrática. E isso coloca Nietzsche, talvez, em vantagem. Pequena vantagem, mas ainda assim, vantagem – quero crer. Qual é o detalhe? Eis o ponto: à serpente da doutrina
23 Idem, ibidem, p. 227.
21
socrática pode-se oferecer o veneno de seu dono, a ironia. Ah! Debatedores gigantes! Sim, em um debate desses, ambos os lados são por demais experientes. Nietzsche pode mostrar que também sabe – e como sabe! – lidar com as coisas de modo irônico. A Mosca de Atenas que se cuide! Nietzsche não cede nada a Sócrates quando se trata de denunciar que o socratismo implica na defesa de uma equação pouco conveniente – pouco natural. Nada mais corrosivo para um superafetado lógico, mas que não quer se passar por tal, que ver sua doutrina simplificada em uma equação! Uma mera equação. Sócrates é mostrado como o homem que quer fazer ecoar por toda Atenas o refrão da fórmula “razão = virtude = felicidade”. 24 Como que uma equação dessas pode ser levada a sério? Não há nada mais anormal que isso, não é verdade? Nietzsche não pode nem um pouco se identificar com um filósofo simplório que prega algo tão pouco inteligível. Quem acreditaria em “razão = virtude = felicidade”? Quem poderia confiar na maluquice de que o homem que conhece (o homem da razão) é o homem virtuoso e que ambos se identificam com o homem feliz? Nietzsche, que denuncia isso, que mostra que a doutrina cabe numa equação, e que esta é doida, poderia se deixar conquistar por um filósofo assim? Uma equação é algo simples. E pior, no limite, uma equação é uma ... tautologia! Podemos duvidar que Nietzsche queira se identificar com Sócrates, o homem que passou uma vida para produzir algo tão pífio. É isto? Não cabe mais nada? Não temos que, enfim, olhar melhor essa equação? A equação não tem pé nem cabeça. Ou tem? Com que autoridade Sócrates pode colocar na praça tamanha esquisitice? Nietzsche confessa que ele próprio tenta entender “de que idiossincrasia provém a equação socrática de razão = virtude = felicidade”. Afinal, como ele diz, trata-se da “mais bizarra equação que existe, e que, em especial, tem contra si os instintos dos helenos mais antigos”.25 O exercício da razão – eis algo imperial. O conhecimento que, enfim, como todos dizem, vem do uso da razão, tem a ver com a possibilidade da conquista da virtude? E o homem que é 24 Nietzsche, F. Crepúsculo, op. cit. 25 Idem, ibidem, p. 19.
22
virtuoso, e que o é pelo conhecimento moral, também é o terráqueo feliz? “Razão = virtude = felicidade” – o que é dito nessa equação faz sentido? Para os modernos, não! Para Kant, nem pensar. A virtude nos obriga a optar pelo que não queremos – assim ensinam Kant e Jesus, apesar de Santo Agostinho e de vários outros filósofos da Igreja, que beberam nos gregos, apostarem na idéia de eudaimonia. Para os antigos, a equação é estranha? Sócrates não foi uma unanimidade com a sua equação. Mas, ao menos pela questão da eudaimonia, sua fórmula não era ininteligível. Para nós, modernos, felicidade é algo do âmbito subjetivo. Ora, a eudaimonia, a felicidade na acepção grega clássica, não é apenas subjetiva, é objetiva. Eudaimonia tem a ver com prosperidade, com realização, com conquista e feito. A palavra aponta para os feitos de uma vida toda, e até mesmo para o que uma linhagem familiar realiza ao longo de algumas décadas. Esse acúmulo que mostra, ao final, o quão próspera foi a vida de alguém ou de um grupo, é que dá tudo que a avaliação grega precisa para dizer que se está diante da felicidade. Aristóteles dizia que “uma andorinha sozinha não faz verão” exatamente nesse sentido e para este caso específico, o de que não se deveria avaliar a felicidade por um evento, mas pelo conjunto de realizações de prosperidade de uma pessoa ou família. 26 Portanto, não é difícil para o grego antigo admitir que a felicidade associa-se à disposição do caráter reto, dirigido para o exercício da virtude. Um não virtuoso não conseguiria ter em seu currículo boas façanhas e, ao final da vida, seria difícil dizer dele que foi alguém próspero. Nesse caso, então, seria difícil falar em felicidade, na acepção que este termo tem quando se pensa em eudaimonia. Notando isso, temos boa luz para a compreensão da eudaimonia em sua correlação com a virtude. Ao mesmo tempo, como poderia um homem agir assim, virtuosamente, ao longo de uma vida, que não fosse “de caso pensado”, isto é, com conhecimento do que quer fazer. Notando isso, temos outra luz, agora para a compreensão da relação entre o conhecimento moral e a virtude. Sócrates apostava todas as suas fichas na sua equação. “Razão = virtude = felicidade”. Ele tinha para si mesmo que, sem que um homem soubesse responder “o que é a coragem?” seria difícil para essa pessoa dizer quem era ou não corajoso. Nem mesmo o corajoso saberia se é 26 MacIntyre, A. A short history of ethics. London: Routledge, 1998, cap. 7.
23
ou não corajoso. O mesmo valeria para toda e qualquer palavra pedinte de uma definição. E isso era a doutrina de Sócrates, o que veio a ser conhecido por “intelectualismo socrático”. Os aspectos psicológicos de Sócrates e que, então, podem ser lidos ao sabor dessa sua doutrina, é tudo o que diz respeito a uma postura não endossada por Platão ou Aristóteles: a negação socrática da akrasia.
7. Akrasia Akrasia é a incontinência ou a fraqueza da vontade. O agente acrático é aquele que age contra o que seria sua melhor decisão, ou seja, contra a decisão que o favoreceria. Sócrates negou a possibilidade de alguém agir como o acrático. A existência do agente acrático não passaria de mera imaginação. Todos nós agimos, de acordo com Sócrates, segundo a nossa disposição de tomar a via correta e, assim, o melhor roteiro para nós mesmos. Ora, se em alguns momentos parece que pegamos a via errada, não agimos assim por fraqueza, isto é, por uma debilidade da nossa vontade racional, mas porque acreditamos, pela informação até então adquirida, que o caminho adotado era o correto. Ou seja, pegamos a via que é a melhor para nós, a que nos causa menor dano, por conta do que, graças à atividade intelectual, é o que sabemos sobre a situação. A aposta de Sócrates, neste caso, não foi a de colocar a decisão racional como um ideal a ser alcançado. Ele foi além. Assumiu que todos já agiriam assim, que seria impossível outra ação nossa, os terráqueos auto-denominados humanos, que não fosse assim, a de procurar o bem, o que é o melhor para nós. Eis aí o que foi a teoria socrática do não reconhecimento da incontinência. Concordamos com isso? Ora, Aristóteles e muitos outros não concordaram. Nós, nos dias atuais, não raro, temos dificuldade de compreender como Sócrates chegou a tal conclusão. Sua doutrina não nos parece um exagero racionalista? Essa perspectiva de Sócrates não é estranha? Todos nós estamos acostumados, segundo o nosso modo de se expressar, a dizer frases do tipo “ah, fraquejei, vou me prejudicar”. Por exemplo, posso sofrer de algo como diabetes e, mesmo sabendo disso e tendo clareza a respeito dos perigos de comer um doce, eu acabe por abrir a geladeira, conscientemente, e devore uma goiabada inteira. E o que digo? “Ah, fraquejei, vou
24
acabar pagando por isso”. Mais um exemplo. Tenho de escrever um texto para entregá-lo para meu editor daqui a três horas, e sei perfeitamente que irei perder um dinheiro necessário caso não faça isso, no entanto, decido conscientemente gastar meu tempo desenhando. Logo depois, vendo que perdi o tempo precioso, o que eu digo? “Ah, que droga, acabei fraquejando e não terminei o meu trabalho, vou passar apertado por isso”. Em ambos os casos, parece correto dizer que não agimos racionalmente, que não seguimos nosso intelecto ou nossa vontade racional, e que fomos atropelados por alguma fraqueza – a “fraqueza da vontade” ou akrasia. Ora, então como Sócrates conseguiu negar a existência do agente acrático? Não somos nós mesmos, a todo o momento, perfeitos agentes acráticos? Nossa dificuldade de compreender Sócrates, neste particular, não é a de Nietzsche. Ele não tropeça. Nietzsche apreende e compreende a perspectiva de Sócrates. Isso não é estranho. O que é estranho, ao menos à primeira vista, é ver Nietzsche concordando com Sócrates neste ponto delicado. Ele não titubeia em dizer que Sócrates está correto ao falar que “seja lá o que o homem faz, ele sempre age para o bem; isto é, de um modo que lhe parece ser bom (útil) de acordo com o grau de seu intelecto, na prevalecente medida de sua racionalidade”. 27 Ora, é isso mesmo! Essa é a posição de Sócrates, até um pouco tendente ao hedonismo, quando da identificação do que é bom com o que é útil. A decisão segue o grau de informação que se possui sobre a situação em questão. Isso é exatamente a negação do agente acrático. Não é de se espantar que Nietzsche, tão cioso quanto à capacidade de interferência dos instintos, acredite que essa posição socrática possa ser aprovada? Pois, afinal, essa posição é exatamente o supra sumo do chamado “intelectualismo socrático”. Nietzsche realmente a endossa? É claro que, se há realmente endosso de Nietzsche quanto ao socratismo, então temos de imaginar uma recaída? Novamente, apesar das críticas, neste particular, Nietzsche volta a agir como um efebo, prostrado diante de Sócrates? Então, o seu último trunfo, o de estocar Sócrates, reduzindo sua teoria a uma equação pouco plausível, não vale nada. É isso? Não! Não é bem assim. Creio que, também nesse caso, o esforço de Nietzsche não é em vão. Aqui, todo cuidado é pouco. O assunto é espinhoso. E creio que é neste ponto que posso apontar para o desfecho dessa história de amor-ódio.
8. Auto-preservação 27 Nietzsche, F. Humain trop humain. Op. cit., 102, p. 96
25
Para desvendar histórias de amor e de ódio, há quem goste de consultar cartomantes. Afinal, quem senão elas podem dar alguma opinião a respeito de um assunto sobre o qual não se deve dar opinião? Então, que ela ponha as cartas. Há uma história para ser contada? O baralho que é colocado na mesa tem cartas bem determinadas. Elas contam sobre o modo como nós aprendemos a dizer o que é passível de julgamento moral e o que não está sujeito a esse tipo de avaliação. Trata-se da velha distinção entre realizações da natureza e realizações dos homens, ou o que é natural e o que é da cultura – physis e nomos, se quisermos falar na linguagem original dessa dualidade. Nessa exposição do baralho, as cartas querem sugerir, para os que rodeiam a mesa, qual é o critério para a efetuação da distinção entre o que cai e o que não cai sob a rubrica “moral”. O modo tradicional de jogar essas cartas leva a um só final, o de se chegar à intencionalidade. Na busca do critério para se distinguir o que é passível de ganhar o qualificativo “moral” (e o que não é) o coringa que sobra nas mãos é o da intenção. Nietzsche lembra que, em geral, atribui-se condenação moral somente aos atos intencionais, e como a natureza não trabalha intencionalmente, ela está isenta de avaliação moral. Esse critério, no entanto, é visto por ele como um falso critério. Ele, Nietzsche, diz que também isentamos de juízo moral as atitudes intencionais – ao menos algumas. Seus exemplos são bons. Eis um ato intencional: matamos uma mosca simplesmente para nos livrarmos do desprazer do seu zumbido em nossos ouvidos. Não avaliamos tal ação moralmente. Ninguém faria isso. Eis outro ato intencional: colocamos numa cela alguém que cometeu um crime. Não fazemos condenação moral quanto a prender criminosos, nos parece natural que se tenha de agir assim. Ou seja, pela via individual ou pela via do estado, somos livres para causarmos danos a outros elementos da Terra e, nesse caso, nada há de não intencional. Ambos os atos – matar a mosca e prender o bandido – são perfeitamente intencionais, mas eles não são postos sob a determinação da condenação moral. Avaliando assim, Nietzsche quer mostrar que a intencionalidade não é um bom critério para distinguir o que é condenável moralmente e o que não é, ou, no limite, diferenciar o que é moral do que não é moral. Sua conclusão é simples: o que importa mesmo, para julgarmos algo e, então, introduzirmos ou não o vocabulário moral, é a autopreservação.28
28 Idem, ibidem
26
Em resumo, o que Nietzsche nos faz lembrar é que não deixamos cair sob qualquer impedimento moral aquilo que nos ameaça. O que nos dá desprezar ou nos causa dano deve ser evitado, e não pode ter a seu favor nenhum atenuante, muito menos, então, uma amortização vinda da moralidade. O zumbido da mosca é parado com a morte, a ação do criminoso é estancada quando o colocamos numa jaula. À primeira vista, o trabalho de Nietzsche, neste caso, é o de desvendar o papel da noção de intenção na constituição do que tomamos como o campo moral – isso só já dá uma boa estocada na modernidade, no cristianismo, ambos idólatras da intencionalidade. Todavia, o que realmente está em jogo não é unicamente isso. Ele quer mais. Ele quer pegar pela cauda também a noção de auto-preservação. Nietzsche inaugura aqui um caminho para uma parte da história da noção de autopreservação. A rota traçada por ele é dada em dupla forma. Em Sócrates, a auto-preservação não põe a cabeça para fora, ela é encoberta e mascarada pela idéia de intencionalidade; após Sócrates, a auto-preservação começa a ser admitida e, na modernidade, não demora em adquirir seu trono. Então, transforma-se em uma idéia básica para todas as ciências humanas. Até mesmo a filosofia engole essa idéia, e a venera. Nos tempos modernos a auto-preservação aparece como dogma da ciência. A maioria dos sistemas científicos modernos, e até mesmo a filosofia moderna, está assentada na sacrossanta auto-preservação. Tudo é explicado por auto-preservação, pois se imagina que, na cadeia de razões com a qual se explica alguma coisa, ao se chegar à justificativa que aponta para a autopreservação, não há mais nada a se investigar. Ela é tida como a causa das causas ou a razão das razões. A auto-preservação é tomada como o fato natural par excellence. Trata-se do fim não só natural, que justifica tudo, mas até mesmo o fim lógico. Natureza e lógica se casam na igreja da auto-preservação. A ciência moderna trabalha com a idéia de que todos os seres vivos possuem um tipo de “instinto de auto-preservação”. Todos os indivíduos o mantém como o que não pode ser discutido. Um sistema qualquer, social ou biológico, que não tem mecanismos de auto-preservação, é considerado não só fraco ou debilitado, mas anômalo. Uma pessoa que perde o impulso de auto-preservação é tida como louca – “verdadeiramente louca”. Há dúvida sobre isso? Não é assim que pensamos e não é assim que agimos?
27
Nietzsche é o filósofo que desafia essa compreensão. E nisso ele se põe contra Darwin. Ele não nega a evolução, claro, mas ele não vê a evolução darwiniana falando uma boa coisa quando a “sobrevivência do mais apto” é a regra do mecanismo evolutivo. Para Nietzsche, a vida é menos teleológica do que a evolução darwiniana gosta. O aleatório em Darwin, ainda é muito teleológico para o gosto de Nietzsche. Darwin ainda é muito cristão aos olhos de Nietzsche. O mecanismo da evolução tem uma válvula de escape que, ao final, pode acabar participando de dissimulações, aliando a benção da natureza ao mais fraco ou, dizendo de forma melhor, ao aleijão adaptado. O filósofo alemão acha que a vida não tem como princípio a auto-preservação. Caso se possa fazer uma cosmologia, o princípio que Nietzsche escolhe é o da superação, e isso antes por desmedida do que por um jogo no qual o vencedor é um tipo de mutante sortudo. O exemplo que ele fornece é curioso. Ele lembra de elementos biológicos que jogam os seus pseudópodes para apanhar um alimento e, então, pelo excesso, se divide em dois. Deveríamos denunciar a insanidade desse elemento biológico? Deveríamos vigiá-lo, pois ele teria saído do comedimento, deixando de lado a auto-preservação? Teríamos de acreditar que seu caminho correto era o de se manter na senda da adaptação? Ou seria mais interessante ver aí a manifestação do que Nietzsche chama de “vontade de potência”? Vida e vontade de potência são sinônimas nesse caso. A auto-preservação existe. Assim admite Nietzsche, pois sua tática não é de simplesmente negar aspectos das teorias da ciência. O que faz com a ciência é bem mais cruel, não é a simples negação. No caso, ele conduz sua argumentação para lançar a idéia de que a autopreservação não tem a universalidade provinda do perfume da lógica, uma fragrância adorada pela ciência, que a mostra e a utiliza. Além disso, ela não é um fato natural. O querer-mais é que é, digamos, natural. Ou melhor: cósmico. Aliás, vamos lembrar isto: a vontade de potência é cósmica. Nesse caso, devemos antes pensar em physis que na palavra que não a traduz corretamente, que é natureza. Quando pensamos em natureza, já estamos sob o modelo do que a ciência, hoje, nos diz o que. E então, antes de tudo, já engolimos a noção de autopreservação, que se tornou um princípio básico da noção moderna de natureza. Agora, quando pensamos em physis, ao modo dos gregos pré-socráticos, temos mais chance de acertar. A noção dos antigos nos leva antes para uma doutrina cosmológica do que para um naturalismo.
28
Como elemento universal e natural, compatível com a lógica, a auto-preservação é uma invenção – uma mera invenção. Nietzsche vê a auto-preservação como o que está na base da busca de legitimidade para uma série de atos humanos. O que ele observa é que, quando assim se coloca, a auto-preservação gera um grande engodo. Ela quer ser universal, mas não é. Ela é uma idéia. Um produto específico do que, na tipologia nietzschiana, viria da mente dos “fracos” (ou doentes, servos, escravos etc.). Como os “fracos” produzem a idéia de auto-preservação. Ou, melhor dizendo, em função do que eles a produzem? Ora, os “fracos” querem que ninguém os impeça de se protegerem. Mas, principalmente, eles querem ter o direito e o prazer de também causar dor ao outro, de revidar. Criam então a auto-preservação como um fato que escapa do controle de todos, que é legítimo por ser uma condição de todos os terráqueos – humanos ou não –, e que funcionaria como que uma ordem teleológica do mundo. E quando, no âmbito cultural, esse mecanismo dito natural não funciona, os próprios homens o recriam no âmbito legislativo. O que se tem então é a lei da “legítima defesa”. O que é uma defesa legítima? Apenas um sinônimo para o ataque do “fraco”. É o direito de revide, a autorização para que se possa causar dano a outro sem, no entanto, ser considerado mau, sem passar pelo crivo moral. A auto-preservação é própria dos fracos, dos que elevam a prudência a uma virtude para, então, torná-la, no limite, apenas um dispositivo acima de todos os homens. São estes mesmos, os “fracos”, que criam a moral, segundo o que Nietzsche ensina. Não à toa, são eles que se colocam como “os bem intencionados”. São eles que fazem da intenção o critério para a moralidade. E são justamente os “fracos” os que atribuem a todos, como uma propriedade natural do homem, a capacidade de deliberação consciente. Assim, quando o “forte” lhes infringe dor, eles podem acusá-lo de cometer maldade. Eles dizem: “foi intencional, portanto, houve deliberação no ato de causar o mal”. O ato de causar o mal poderia não ser deliberado, poderia ser estancado. Mas não foi. Eles podem jogar contra “o forte” uma condenação moral. Por isso mesmo, Sócrates não suporta a akrasia. O agente acrático é aquele que poderia ficar de fora da punição moral, criada pelos fracos. Mas, como Sócrates declara, o agente acrático não existe. Eliminando da Terra o agente acrático, Sócrates caminha no sentido daqueles que reivindicam para a intenção, para a consciência, todo e qualquer ato. Cria-se aqui a noção de responsabilidade, e junto com ela é gerada, no interior do coração, a culpa.
29
Ora, mas o que é tudo isso senão um bom trança-pés? Nietzsche grita aos quatro cantos sobre esse engodo. Pois a moral não é algo que exista legitimamente. Ela existe, sim, mas a sua legitimidade vem de uma fonte que não tem autoridade para tal sustentação. Sua legitimidade vem da idéia de que o que vale é a intenção, o berço da responsabilidade. Mas não há intenção, o que há, novamente, é o puro instinto. Na base, o que há é o instinto de autopreservação. Todavia, não como algo universal e indiscutível. Eis aí um instinto que funciona bem no “fraco”, no “servo”, no “homem da plebe”. O “homem da plebe” declara que todos nós agimos por intenção, mas que, para fins de condenação moral, o que cair sob a rubrica de “legítima defesa”, ou seja, defesa em função da auto-preservação, está isento de avaliação. Assim, o “fraco” ou o “homem da plebe” usa tanto da idéia de intenção quanto da idéia de auto-preservação como elementos que o favorecem. Em outras palavras, usa da religião cristã e da filosofia moderna, por um lado, e da ciência, por outro. Ora, mas que é o “homem da plebe”? O “homem da plebe” é Sócrates. Como Nietzsche bem denuncia, Sócrates é o típico “homem da plebe”. Por isso ele é o arauto dessa idéia de que só agimos em função do nosso bem, do que nos é útil. Criando essa ficção, Sócrates está em consonância com as forças do niilismo. A cada dia, mais e mais pessoas se convencem que tudo é feito “com consciência”, “por intenção”, por “deliberação da vontade”. Então, tudo é passível de moralização, isto é, de entrar para o âmbito do que cria a palavra responsabilidade e do campo das regras de punição. Eis então que temos a divisão social rígida: de um lado, os bons, os que têm boa intenção e boa vontade, de outro lado, os maus, os que não agiram causando danos por auto-preservação, mas única e exclusivamente por intenção, com o objetivo claro de causar dano proposital ao outro, por simples desejo de causar dano a outro. A intenção como lei de todos é o que coloca o ato do forte que causa dano ao “fraco” como um ato que merece um adjetivo claro: mau. No Evangelho de Jesus não há pecado só por atos, mas por pensamentos. A intenção é assumida como o que se deve avaliar antes mesmo da existência do ato. É nela que estará concentrada o erro, a maldade, o pecado. Todavia, quando é o “fraco” que, intencionalmente, causa dano ao “forte”, o truque está em dizer que, neste caso, funcionou algo muito bem legítimo, que é a preservação da vida, o que se torna legítima defesa ou busca de auto-preservação. Funcionam aí, então, os únicos instintos aceitos. Desse modo, o desejo de causar dano ao outro, a sede de crueldade do “fraco” contra o “forte” ou não é moralizada ou, se é moralizada, escapa de condenação, uma vez que cai para o âmbito
30
de um recurso necessário. Ou necessário pela natureza, como parte de reação biológica, ou tornado necessário pela sociedade, como parte de uma reação para se proteger ou proteger a família ou seus bens etc. Neste caso, a legislação repõe, no âmbito cultural, o que é o fato da natureza. De qualquer forma, o “fraco”, por meio desses mecanismos, vence o “forte”. Não há dúvida que a filosofia da história de Nietzsche não tem teleologia, todavia, ao final da história – os tempos modernos –, o que se pode assistir é só uma coisa: os “fracos” terminam por vencer os “fortes”, o que significa o advento do reino do niilismo, ou seja, a valorização da desvalorização. Tudo que há é a vida e, no entanto, a vida não vale nada. O homem moderno fala essa frase a todo instante, assim ensina Nietzsche. O homem moderno carrega um frasco de cicuta no bolso. Ele não vê o momento de poder tomá-la. Todavia, não raro, ele adia esse momento, pois, por bondade, ele diz que irá reservar a dose do veneno para um mais necessitado do que ele. Até no último momento, ele é o moralmente bom – o melhor que os outros, mesmo dizendo que não vale nada, que a vida não vale nada, que nada mais tem valor. A linha do raciocínio nietzschiano permite ainda mais conclusões. Os homens da linhagem de Sócrates criaram uma regra, festejada pela religião judaico-cristã, de que ninguém é inocente. Não há lugar para inocentes na Terra. Todo terráqueo é herdeiro de Adão. O pecado é de todos, uma vez que Adão pecou exatamente porque sabia o que não era para ser feito e, assim mesmo, fez. Adão foi o primeiro a agir com consciência, e o fez contra a lei. Cada discípulo de Sócrates que aprende que não existe o agente acrático, se torna um bom herdeiro de Adão. Todavia, entre os herdeiros de Adão, os “da plebe”, os “fracos”, causam dano a outro e, ao mesmo tempo, com a invenção da moral, eles podem lançar mão da idéia de “legítima defesa” para se esquivarem de serem tomados como maus e, enfim, contarem com a lei a seu favor. Passam a usar da lei como um escudo para causar dano a outro. Pela idéia de autopreservação, são capazes de utilizar do escudo como arma de ataque, enquanto o proclamam como a arma de defesa. Pois não é o escudo, então, par excellence, a arma de defesa?
9. Ciúme Creio que há nos dois últimos tópicos os elementos básicos que dão a medida do distanciamento de Nietzsche em relação a Sócrates. Mostram quanto Nietzsche consegue e o quanto não consegue lidar com Sócrates. É uma espécie de necessário distanciamento
31
explicativo. Isso é o que pode denotar, creio eu, que o filósofo alemão não sucumbe ao ateniense. Seria conceder mais poderes a Sócrates do que ele realmente tem, nós não enxergarmos, na maneira de Nietzsche tratar os temas postos nesses últimos itens como, finalmente, a postura sóbria de quem põe no seu devido lugar um filósofo – um amor. Será? Vou admitir, ao menos por enquanto, que Nietzsche consegue, ainda que em parte, realizar o ideal do século XIX, postulado por Augusto Comte, a saber, o não comprometimento suspeitoso com o seu objeto de estudo. Como que Nietzsche consegue isso? Da noite para o dia, ele, um crítico de Sócrates, envolvido em nítido amor-ódio, sai da condição de inebriado e retoma o bisturi do esclarecimento. Então, Sócrates é posto às claras. Há uma pista para essa possibilidade de alteração da alma nietzschiana? Mais hipóteses? Sim, eu as tenho. Desde os primeiros escritos de Nietzsche é possível notar a presença de uma assunção específica: Sócrates não escreveu nada e, então, ele é sempre uma ficção que pode assumir várias identidades, e não há perda nisso, e sim lucro. No início dos anos setenta, Nietzsche já tem claro que pode construir o seu Sócrates. Ele parece confiante quanto à sua capacidade de manipular Sócrates? E ele precisa manipular Sócrates? Não há dúvida que sim. Nada há de melhor para se fazer para não cair em paixão incontrolável que o exercício da capacidade de, ainda que minimamente, manipular o amado. Isso pode não ser verdade, mas quase todos nós acreditamos que é assim. Acreditamos que se podemos manipular o amado, teremos vacina contra a paixão inebriante para a qual ele nos convida – e da qual temos medo. Penso que Nietzsche acredita nisso. Ou, ao menos, como nós, ele quer acreditar nisso. Nos aforismos publicados postumamente, e que datam de 1885, portanto, quase ao final de sua trajetória, Nietzsche amplia a idéia de um Sócrates ficcional. Nietzsche não acredita em um Sócrates ficcional a partir da morte de Sócrates, mas antes. Ou seja, mesmo em vida, Sócrates nunca teria deixado de ser um personagem. Sócrates é visto por Nietzsche, então, como o homem possuidor de “uma mágica”, a saber, a de “não ter nenhuma alma”, 29 e por detrás disso ter outra alma e mais outra e mais outra e assim por diante. Ainda em vida, sua figura já permitiria múltiplas interpretações, portanto, exatamente aquilo que Nietzsche adora.
29 Porter, James. Nietzsche and “the problem of Socrates”. In: Ahbel-Rappep, S. & Kamtekar, R. A companion to Socrates. NY: Blackwell, 2006, p. 414
32
A plasticidade do Sócrates vivo é, como Nietzsche insiste, sua mágica. Aí está o elemento fascinante que Sócrates ofereceu não só a nós, mas aos seus contemporâneos. Essa plasticidade é levada a sério pelo scholar James Porter, que se ocupa das relações Nietzsche-Sócrates. Ele diz que, não raro, quando se olha para Sócrates e para Platão, não é difícil imaginar que, antes que o “Sócrates de Platão”, o que é objeto de curiosidade é o “o Platão de Sócrates”.30 Sócrates teria construído Platão. Conseguiu assim agir na medida em que não tinha, de fato, nenhuma identidade rígida, de modo que Platão conseguiu escolher o que queria em Sócrates para montar o seu Sócrates, o seu mestre e espelho e, assim fazendo, criar a si próprio como filósofo, como escritor e, enfim, como o Platão que conhecemos. Imaginamos que é isso que Nietzsche tem em mente. Então, ele consegue um trunfo sobre Sócrates. Pode se antecipar. Pode desenhar um esboço do ateniense e construí-lo de modo a não deixá-lo, ao fim e ao cabo, roubar a cena. Ter um psicólogo dentro de si mesmo, que é o que Nietzsche diz da sua qualidade de filósofo, é alguma coisa que não deve ser descartada. Aí reside, sem dúvida, uma marca que favorece Nietzsche no modo como se envolve com Sócrates. Pois, envolver-se com Sócrates e, ainda assim, sair ileso, não é tarefa para qualquer um. Nietzsche sai ileso? Não, não creio. Mas, ao menos, sai vivo? Sei apenas que, no trato com Sócrates, o problema de se apaixonar conduz à questão de ter de competir com um rival de grande porte: Platão. Nietzsche tem ciúmes de Platão. Pode-se pressentir isso ao vê-lo falar de Platão como aquele que teve ciúmes de Sócrates. Quando se é ciumento, é fácil ver o ciúme alheio. Esse jogo de empurrar o rival com os cotovelos permite a Nietzsche compreender “o Platão de Sócrates”. Para ele, a questão não é, então, a questão dos historiadores, de saber quem é o “Sócrates de Platão”. Ele sabe que o que importa, para ele, ao menos em determinado momento, é o “Platão de Sócrates”. Sua curiosidade está voltada para Platão, nesse caso, pois não poderia estar voltada para outro. Agimos assim mesmo em uma paixão. Assim é no início do relacionamento. Queremos saber como outros reagiram ao se apaixonarem pela figura que, sabemos bem, está prestes a nos conquistar. Em sua luta contra Sócrates, também Nietzsche, admitindo que pode cair prostrado diante da Mosca de Atenas, quer saber como que outros foram arrebatados e o que ocorreu com eles. Sua curiosidade é sobre o comportamento de
30 Idem, ibidem, pp. 414-15
33
Platão. Como Platão agiu para moldar o seu Sócrates e, então, se formar filósofo a partir desse mestre? Quem é Platão? Eis aí o que perturba Nietzsche. Aí está posto o real problema de Sócrates para Nietzsche. Sabe-se pouco sobre Sócrates? Mas, e sobre Platão, que escreveu tanto, sabese o que? Os historiadores mostram que mesmo a Carta Sete, talvez a única realmente escrita por Platão, não é uma garantia de que temos informações sobre a vida do filósofo. O que se sabe, no entanto, é que Platão é nobre. É com essa nobreza que Nietzsche lida. Ele quer entender o que é de Platão e o que é de Sócrates ao final do romance. Pois, enfim, ele quer saber o que será dele mesmo e o que será de Sócrates se ele cair realmente em paixão desenfreada. Ele quer vislumbrar o que sobrará dele mesmo se, porventura, puder sair vivo do seu relacionamento com o filósofo soldado. Platão é nobre, Sócrates é plebeu – é o que Nietzsche tem nas mãos para lidar com essa dupla. Nietzsche imagina que a filosofia que Platão às vezes endossa, não é própria de sua índole, não condiz com a índole de um nobre. Em um caso específico, há a pista: a questão da akrasia, do intelectualismo, parece ser algo que não combina com Platão. Para Nietzsche, há um endosso da negação da akrasia em Platão, mas, nesse caso, essa doutrina profundamente plebéia de Sócrates, é modificada. Ela é lapidada por Platão. Ela tem de se transformar em algo sadio, algo com algum sentido de nobreza. Nenhum “nobre”, “forte”, poderia agir conscientemente e tomar uma ação assim como sendo sua característica. É próprio da atitude “nobre” agir intempestivamente. A ação por consciência, como Sócrates a descreveu, não podia ser tomada como a regra de ferro de nosso comportamento. Seria não ver nada de nobre em nós todos. Platão não estava preparado para adorar Sócrates na sua própria condição de Sócrates, de homem do povo, das ruas. Para se educar com Sócrates, ele escolheu a dedo o que podia ser de Sócrates para, enfim, construir a si mesmo como quem ele queria ser, ou seja, Platão. Nietzsche está convencido de que é assim que Platão trabalhou. Ele diz, então, que o grande escritor de Atenas transformou a doutrina de Sócrates no seguinte sentido: quando cometemos um dano, o que ocorre nada é senão um erro intelectual, e uma vez reeducados, não iremos mais causar dano algum, não erraremos mais. Essa maleabilidade, essa suavidade em expor a doutrina socrática do erro, nada mais é que o socratismo burguês incorporado à etiqueta da mesa nobre. Com isso, Platão tentou manter-se nobre. Tentou tornar a doutrina socrática
34
alguma coisa possível de ser consumida por um nobre. Pois o nobre jamais iria aceitar ultrajar-se, jamais admitiria ter culpa por sua intempestividade, nem poderia alimentar má consciência. Então, diante do erro cometido, o nobre talvez pudesse admitir algo como: “ah, foi uma distração, foi algo que posso tomar cuidado e reaprender”. Isso teria sido a forma de acomodação do “forte” para uma vida em sociedade ou, de modo pior, uma vida em sociedade democrática. Assim, Platão teria dito: é preciso aprender com Sócrates, mas, é necessário, antes de tudo, admitir que a doutrina socrática merece polimento – eu, Platão, sou o polidor. Platão colocou todo seu empenho no sentido de fornecer uma interpretação da doutrina de seu mestre, diz Nietzsche, “como uma canção popular vinda das ruas”, de modo a poder fazer com seu tema infinitas variações. 31 O que há, então, são máscaras e multiplicidades na figura de Sócrates. O Sócrates de Platão, como Nietzsche escreve, pode ser posto em termos jocosos. Ele próprio anuncia que pode fazer uma “graça homérica” com isso, e então, em um pastiche de uma passagem da Ilíada, ele escreve, grafando em grego, que o Sócrates platônico nada é senão “Platão na frente, Platão atrás, e no meio quimera”. Conhecendo o gosto de Nietzsche pelo humor italiano, é fácil ver a conotação sexual nesse tipo de frase. Mas, cá entre nós, não é esta frase de Nietzsche algo prenhe de puro ciúme? Não é ela, antes de tudo, o tipo do humor que carrega boa dose de sarcasmo? Não há aí um pouco do Nietzsche despeitado? Afinal, foi Platão, e não ele, Nietzsche, quem conviveu com Sócrates. A convivência com Sócrates pode ser, temos de admitir, aquele prêmio que a vida deu a Platão, e não deu a Nietzsche. Nietzsche convive entre medíocres – ele sabe disso. Platão conviveu com Sócrates? Sim, mas não conviveu por muito tempo. Foi algo em torno de menos de oito anos. A relação de Platão com Sócrates não foi a longa relação de Aristóteles com Platão. Assim, é difícil dizer que Sócrates foi mestre de Platão. É mais fácil dizer que Platão deu a si mesmo o Sócrates que ele quis dar ou que ele conseguiu dar. Ao terminar essa sua tarefa, ele tinha, então, forjado sua própria obra de arte: sua vida, eis aí a construção grega: o “Platão de Sócrates”. Mas, no caso, este Sócrates foi forjado nas possibilidades da nobreza platônica. Nietzsche tem, então, o segredo que precisa nas mãos, o de como lidar com Sócrates e, ao mesmo tempo, fazer baixar a dose de ciúme que tem de Platão. É necessário assim agir, do contrário, toda a corrosão do ciúme pode devorar Nietzsche. O monstro do amor-ódio tem duas cabeças. Uma coisa é ser devorado pela paixão, outra, igualmente terrível, é ser devorado pelo ciúme. 31 Nietzsche, F. Par-delà bien Et mal. Op. cit. 190, p. 1003.
35
O mecanismo pelo qual Nietzsche tenta lidar com a relação que o perturba, a relação Sócrates-Platão, é este, e só podia ser este: exagerar a nobreza de Platão. Platão seria tão nobre, mas tão nobre, que jamais conseguiu captar Sócrates na sua rude filosofia. Platão era feminino, doce, culto, educado. Assim se comportou ao enfiar sutilezas na doutrina socrática. Somente alguém assim poderia ter transformado o problema de causar dano a outro em um mero problema de correção de erro por meio educativo. Esse é o Sócrates que Platão conseguiu deixar entrar em sua vida. É assim que Nietzsche vê a figura de Platão em sua relação com Sócrates. Nietzsche quer derrotar Platão. Quer mostrar que ele, Nietzsche, é mais corajoso, que ele pode conviver com um Sócrates muito mais duro, tosco e masculino. Nietzsche parece nos dizer algo assim: meu caro Platão, eu conviveria com Sócrates modificando-o menos que você, é o que eu faço agora.
10. O efeito Platão O que permite Nietzsche lidar com Sócrates, talvez não seja a estratégia de abordá-lo pelas questões que apontei até aqui, a redução da teoria socrática à equação “Razão = Virtude = Felicidade” e a exposição das relações entre a auto-preservação e a intenção. Pode-se dizer, em alternativa, que Nietzsche esfria seu amor-ódio por Sócrates à medida que se preocupa com o seu ciúme. Nietzsche pode tomar a devida distância prudente de Sócrates, então, se preocupando com o seu rival, Platão. Não é uma boa estratégia? É implausível isso? Tenho boas razões para acrescentar, além das estratégias mostradas, outras formas de Nietzsche manter sobriedade diante de Sócrates. Uma maneira de amar e, ao mesmo tempo, tomar distância do que entendemos ser a doença da paixão, a loucura, é a de fomentar outra doença, a do ciúme. Quando estamos apaixonados e, alucinadamente, nos perdemos na briga com o rival, nosso tempo de dedicação ao rival se torna tão grande que já não nos sobra um dia sequer para namorar o objeto de nosso amor. Na relação amor-ódio, é a mesma coisa. Xantipa devolveu Sócrates às ruas. Platão devolve Nietzsche à sobriedade filosófica – ou quase isso. Para Sócrates, houve o “efeito Xantipa”, para Nietzsche funciona o “efeito Platão”. Então, conhecer Platão se torna um imperativo. Nietzsche precisa saber quem é o seu rival.
36
“O Platão de Sócrates” – eis aí a figura com que Nietzsche gasta seu tempo, quando não pode gastar com o próprio Sócrates. O Platão de Sócrates é a imagem que Nietzsche quer saber desenhar. Ele imagina que a gravura final mostrará como ele mesmo, Nietzsche, pode ficar um dia, quando do balanço comercial sobre suas trocas com Sócrates. Entre outros lugares, é nos estudos schopenhauerianos de Nietzsche que o “Platão de Sócrates” se faz visível. Polemizando a respeito do belo – um tema caro a Platão –, Nietzsche enfrenta com determinação os escritos de Schopenhauer. A doutrina de Schopenhauer, como sabemos, coloca o belo como elemento moral. A estética funciona em favor da ética. A idéia básica de Schopenhauer é a de que há uma força metafísica que comanda o todo. Não é a Razão, como Hegel quis, e sim a Vontade. Desse modo, o mundo não tem ordem e teleologia, ele tem, em essência, apenas o destrambelhado furacão gerado pela Vontade. Nesse caos, do qual participamos, somos levados a cometer uma série de atos e, dentre estes, alguns que, pelo nosso sistema moral, são pecaminosos. Como então escapar disso? Como não participar do pecado? Simples: basta ir contra essa força metafísica, a Vontade. Ela está em tudo e, portanto, também em nós. É a nossa vontade (com v) que é parte da Vontade (com V). Assim, para negar a Vontade naquilo que podemos, o correto é bloquear a vontade, a nossa vontade. Podemos fazer isso, diz Schopenhauer, se nos voltamos para o belo, para o campo estético. Tanto quanto para Kant, também para Schopenhauer o belo reina no domínio do desinteresse. O caminho da estética é um caminho de ascetismo, de esquecimento dos desejos, de purificação. A rota da estética, que é a da contemplação do belo, nos empurra também para o caminho da ética, que, no caso, se realiza com a vontade controlada, pacificada.32 Nietzsche se insurge contra Schopenhauer. Este, fala que a beleza é “redentora do ‘cerne da vontade’, da sexualidade”.33 Nietzsche ironiza: “que estranho santo” é este, a tal de Beleza. E emenda de maneira dura: “para que existe beleza nos sons, cores e aromas, movimentos rítmicos da natureza? O que faz brotar a beleza?” E ele continua: “uma autoridade não menor que a do divino Platão (assim o chama o próprio Schopenhauer) sustenta uma outra tese: a de que toda beleza estimula à procriação – de que é esse o proprium de seu efeito, do que é mais sensual até o mais espiritual ...”.34
32 Sobre Schopenhauer ver: Ghiraldlelli, P. O corpo. São Paulo: Atica, 2007, pp. 93-99 33 Nietzsche, F. Crepúsculo dos ídolos. Op. cit. 22, p. 76. 34 Idem, ibidem, p. 76
37
Essas palavras de Nietzsche são a sua marca, certamente, mas a referência a Platão, neste caso, é algo estranho. Espera-se isso de Nietzsche? Não, sinceramente, não. Uma reação assim, contra Schopenhauer ou qualquer outro asceta e pessimista, poderia levar Nietzsche a evocar o culto de seu deus preferido, Dionísio. No entanto, ele recolhe como seu colaborador exatamente aquele que a história da filosofia, não raro, consagra como o inventor do amor rarefeito. Para o nosso espanto, Nietzsche evoca Platão! O filósofo alemão insiste em dizer que Platão percebeu e confessou, por meio de uma “ingenuidade possível apenas para a um grego, não a um cristão”, que “não haveria absolutamente filosofia platônica se não houvesse tão belos jovens em Atenas”. Na presença desses jovens, mirando-os, o filósofo enlouquece. É a imagem desses jovens que “lança a alma do filósofo numa vertigem erótica” não lhe permitindo repouso “até que tenha plantado a semente das coisas elevadas num solo tão belo”35. Pelejando contra Schopenhauer, Nietzsche chega, então, à origem da filosofia – como ela surge na Grécia e se distancia do mundo moderno e cristão. Ele lembra que não poderia haver na Grécia filosofia que não fosse feita, se comparada com a nossa, “de uma outra maneira”. Eis a outra maneira: filosofia como atividade pública. Nenhum grego poderia viver como uma espécie de Espinosa, como alguém que fica tecendo teias no cultivo de um amor intelectual a Deus. Filosofia, “à maneira de Platão”, diz Nietzsche, “seria antes definida como uma competição erótica, como aperfeiçoamento e interiorização da velha ginástica agonal e seus pressupostos...”. E Nietzsche se pergunta: “o que foi gerado, enfim, por esse erotismo filosófico de Platão”. E a resposta é por nós conhecida, e ele a repete: “uma nova forma artística do ágon helênico, a dialética”.36 Ora, sabemos bem que o próprio Nietzsche indica que não é Platão o erótico, e sim Sócrates. Se Platão aparece, agora, na boca de Nietzsche, como responsável pelo ágon que se transforma em dialética, então não há razão de duvidar que, aqui, estamos diante do “Platão de Sócrates”. O Platão de Sócrates é o filósofo que compreende de um modo correto a expressão “amor platônico”. Esta expressão, “amor platônico”, é o que muitos tomam hoje como o que aponta para o amor altamente espiritualizado. E isso não apenas é a visão do senso comum. Às vezes, até mesmo por erro, o platonismo (popular) oficial na história da 35 Nietzsche, F. Crepúsculo. Op. cit. 23, p. 76 36 Idem, ibidem, p. 77.
38
filosofia é posto assim nos manuais. Ora, o Platão de Sócrates, como Nietzsche o mostra aqui, não colocaria seu carimbo neste tipo de amor. Ele faria uma ressalva importante: não há amor nenhum que possa ser platônico se não percorremos o caminho ensinado pela sacerdotisa Diotima a Sócrates. No Banquete37, na história de Diotima que Sócrates conta, é exatamente isso que ocorre: o amor ao Belo é ponto de chegada, mas que só se efetiva se há o ponto de partida, e este é realmente individual, pessoalizado e erótico. Platão percebeu como ninguém o fez antes de Freud, exceto o próprio Nietzsche, que éros é uma força altamente transformável. O scholar E. R. Dodds diz sem pestanejar que Platão, no caso da consideração sobre eros, esteve “bem próximo dos conceitos freudianos de libido e sublimação”.38 Gregory Vlastos é o helenista que não deixa tal informação se perder. Como todos nós, pósfreudianos, ele também vê como a força do amor erótico se desloca dos indivíduos para uma série de atividades. Vlastos observa, como ele mesmo diz, que “Platão é o primeiro ocidental a perceber quão intensa e apaixonada pode ser nossa ligação a objetos abstratos, como reforma social, poesia, arte, ciências e filosofia – uma ligação que tem mais em comum com a fixação erótica do que o suspeitado pela visão de um pré-freudiano”.39 Como ele diz, Platão generalizou a força de eros. A “obsessiva intensidade louca que é compreendida como peculiar ao amor sexual” foi vista, por Platão, como o que também estaria na base de afetividades não sexuais, como o caso do “amor pela pátria” e coisas do gênero. Ele, Platão, entendeu, como ninguém antes, o papel motivacional decisivo de coisas como a elegância de uma dedução, ou o deleite com o fluir da mente quando uma generalização poderosa traz, repentinamente,
a
ordem
a
uma
massa
confusa
de
dados.
Ele viu a qualidade estética de tais objetos puramente intelectuais como conectada ao poder da beleza física, quando esta excita e encanta, mesmo quando se mantém fora de qualquer possibilidade de posse.40 Como nenhum outro, Platão foi aquele que percebeu que apesar do amor estar na origem pitagórica do termo filosofia, este amor estava bem mais para eros do que para philia. 37 Plato, Symposium. Indianapolis: Hacket Publishing Company, 1989. 38 Dodds, Plato and the irrational soul. In; Vlastos, G. (org.) Plato II. Notre Dame: University of Notre Dame, 1978, p. 221. 39 Vlastos, G. Platonic studies. Princeton: Princeton University Press, 1981, p. 27. 40 Idem, ibidem, p. 27.
39
Somente assim ele podia entender o que dava combustão à atividade intelectual chamada filosofia e similares. Este Platão erotizado nunca foi outro senão o “Platão de Sócrates”.
11. Alcebíades Admitimos até aqui que Nietzsche tem um interesse ciumento em relação a Platão, e ao mesmo tempo desenvolve um comportamento estratégico em relação ao ateniense. Envolverse com o ciúme pode ser uma boa doença para se escapar de uma doença maior, a da paixão. Mas não afirmei só isso. Eu disse que Nietzsche é curioso sobre si mesmo, enquanto um apaixonado por Sócrates. Então, conhecer Platão é, para ele, um imperativo para se saber o que pode ocorrer com quem se envolve com Sócrates. Todo esse conjunto de conjecturas não ganha nenhum objeção? Posso seguir tranqüilo com isso? Creio que não. Seria uma tolice não considerar que, em se tratando da relação entre Sócrates e um amante, a questão não se resume a olhar para Platão. Penso que a objeção que se ergue contra mim vem de quem aponta para Alcebíades. A pergunta que cabe aqui é a seguinte: Nietzsche faz melhor se observar alguém abertamente apaixonado por Sócrates? Alcebíades – não é o caso de ver o destino de Alcebíades, e não o de Platão? Não desconsidero isso. Examino o caso. Alcebíades foi brilhante estrategista, hábil orador, comandante militar firme e resoluto e, é claro, nobre. Foi herói de guerra. Também foi audacioso, intempestivo, violento, vaidosíssimo e belo. Ganhou a acusação de ter cortado genitais e cabeças de estatuas de deuses em Atenas – um crime. Bandeou-se de lado em conflitos entre Atenas e Esparta, terminou sua vida assassinado por enviados persas, quando estava para oferecer seus serviços militares ao rei Persa. Talvez tenha sido assassinado a mando de parentes de Platão que, enfim, eram oligarcas que governaram no período dos “Trinta Tiranos”. O motivo? Havia rumores de que Atenas esperava por Alcebíades, para fazê-la voltar à democracia. Alcebíades foi um dos jovens mais belos de Atenas. Em seu escudo dourado, feito sob encomenda, não havia nenhum emblema dos ancestrais, como poderia ser o costume de um nobre, o que o artefato carregava era a figura de Eros armado de um raio. Alcebíades esteve
40
entre os jovens que seguiram Sócrates. No Banquete, ele é a figura tragicômica que entra na casa de Agathon, quase ao final da reunião. Recordo essa passagem. O Banquete conta sobre a reunião de amigos na casa de Agathon, jovem poeta. O motivo é simples: a comemoração da vitória de Agathon em um importante concurso de poesia. Os convivas bebem, comem e falam do amor, ou seja, de eros. Cada um dá a sua visão sobre o amor. Sócrates é o último a discursar. Ele conta que ouviu de Diotima o que tinha de aprender a respeito dos “mistérios do amor”. E então, relata a história proferida por essa sacerdotisa. Nessa hora, o texto platônico ganha claramente um sentido filosófico. Ou melhor, o texto mostra um sentido filosófico se nós, já educados filosoficamente, esperamos que a filosofia não seja outra coisa que não o que Platão definiu como filosofia,
o percurso para a
contemplação das Formas. Sócrates fala da escada do amor. Ele ensina a doutrina de Diotima. O início não poderia ser outro senão a convivência entre as pessoas e, em especial, a vida entre homens livres de variadas idades. Começa-se pela apreciação do belo que existe em cada corpo belo e, depois, percebe-se que jovens diferentes possuem corpos belos que, ao menos quanto ao qualificativo belo, devem ser iguais. Então, o que é uma qualidade, a beleza, ganha um aspecto quantitativo. Cada corpo individual belo possui igual quantidade de beleza que, por sua vez, é homogênea. Esse é o passo para se admitir que a despeito da individualidade de cada jovem belo, a beleza de cada um participa de algo comum que, afinal, é o Belo – o belo em si. Caso não fosse assim, esses jovens não poderiam ser belos. O belo e o bom é o que buscamos – e nisso se tornam sinônimos. O que é belo é bom, é o que podemos apontar como a excelência, a perfeição – o que se quer alcançar. Nesse sentido, a essa altura da escada, o que é individual já ficou para trás. O processo conduziu aquele que o desenvolve, finalmente, ao topo da escada. Nesse caso, o que a filosofia entrega para quem sobe cada degrau, é o eidos ou as Forma, a Forma do Belo, no caso. Tanto o leitor de O Banquete quanto os presentes no evento são tomados de assalto quando começa o barulho no portão de Agathon. É a chegada de Alcebíades. Completamente bêbado e vestindo na cabeça uma guirlanda de hera e violetas, ele, cambaleante, tenta coroar as pessoas com aquele apetrecho. A coroa de hera é típica das musas. A violeta tem relação com Atenas. Alcebíades aparece em cena para coroar o vencedor do concurso com a guirlanda? E então, na verdade, coroa a festa, não é isso?
41
Alcebíades não percebe a presença de Sócrates e se assusta quando vê que, no lugar que ele vai se sentar, está seu velho mestre. Ele, Alcebíades, estava ali em busca de Agathon, e eis que topa com Sócrates, o homem que mexeu com seu coração no passado, e que, como fica claro no decorrer do texto, ainda mexe. Incentivado por todos ali a também fazer sua preleção sobre eros, sobre o amor, ele titubeia e, então, é empurrado a falar sobre o amor em homenagem a Sócrates. O vinho traz a verdade – ele próprio, Alcebíades, admite. Ele começa sua fala. Não ouviu nenhuma outra, nem mesmo a última, a de Sócrates. No entanto, sem o saber, toma o caminho inverso do de Sócrates. Ele se joga em um discurso de amor-ódio por Sócrates, pelo indivíduo Sócrates. Alterna xingamentos com elogios máximos. Mostra o quanto ele, em vários momentos, se ofereceu a Sócrates sexualmente, e quanto Sócrates não o levou a sério. Conta como Sócrates o salvou na guerra. Conclui que Sócrates é exemplo de autodomínio. Do começo ao fim, o que importa para ele, Alcebíades, é Sócrates, enquanto que avalia que, para Sócrates, nenhum dos moços bonitos ali importa. Sócrates se volta sempre, apenas para si mesmo, diz Alcebíades. Ele nunca é derrotado nos discursos, como não foi derrotado em nenhum momento nas agruras da guerra. E ele, Sócrates, como Alcebíades o descreve, é uma verdadeira “rocha”, incapaz de ceder aos encantos de um belíssimo jovem. Sócrates, ali presente, não desmente Alcebíades. Esse texto, O Banquete, comentado por historiadores, filósofos, scholars, helenistas de todo tipo e, enfim, literatos, é sempre apresentado sob duas grandes ênfases. Ou o comentador busca enfatizar a doutrina de Diotima, que seria a doutrina platônica da busca das Formas, ou o comentador fala de quanto Alcebíades não teria conseguido sair do campo do amor individual, jamais entendendo a doutrina filosófica. A filósofa helenista Martha Nussbaum pega uma via diferente. Chamando a atenção para a entrada de Alcebíades em cena, com um raio que corta o ambiente, e também para o escudo que contém o desenho de Eros segurando um raio, ela nota que Alcebíades é, ele próprio, Eros personificado – ou ao menos é isso que idealiza. Todos falaram de eros de diversas formas, até que um seu verdadeiro devoto, ou mesmo a personificação dele, entra em cena. Nussbaum interpreta O Banquete como sendo o oferecimento, da parte de Platão, de dois caminhos, ou pegamos a via de Sócrates, que é a doutrina de Diotima, ou pegamos a via de
42
Alcebíades. Ou aprendemos a via da ascese que leva às essências, ou ficamos com a via da experiência, que leva às vivências mundanas. Na visão de Nussbaum, ou vamos pela filosofia ou pela poesia. O ensinamento de Platão, como ela interpreta, é o de que não podemos ter as verdades da filosofia e as da poesia conjuntamente. Todavia, a própria Nussbaum, não sei o quanto de modo consciente, deixa ver que Alcebíades considera sua via tão filosófica quanto a de Sócrates. Nussbaum diz que Platão está nos dando um relato completo de duas opções de vida. Ou pegamos a via do belo que desemboca no Belo em si e, então, no Bom, ou pegamos a via do belo que se mantém erótico. Afirma Nussbaum que é como se Platão estivesse dizendo que há dois conhecimentos, como se ele estivesse falando “pensas que podes (...) ter esse conhecimento da carne pela carne e também o conhecimento do bem. Ora, diz Platão, não podes. Tens que te cegar a algo, desistir de alguma beleza.”41 Aprecio a visão de Nussbaum, mas a tomo por uma via, digamos, heterodoxa. A questão, então, para o meu propósito, não é de se escolher ou não as vias de Sócrates e de Alcebíades. O que importa é lembrar que ao se querer observar Alcebíades em seu amor-ódio por Sócrates, voltamos a observar, na verdade, Platão. Ou mais exatamente: caímos no enredo que Platão quer nos contar. Esse enredo é o que ele e somente ele preparou. Ele, Platão, ao final, traça o perfil do homem que seus parentes mandaram matar. Ele, Platão, traça o perfil de um Sócrates que, dessa maneira, finalmente pode tê-lo como discípulo, já que é um Sócrates que não cede ao erotismo meramente cru, que escravizaria. Platão mostra que há os que cedem ao erotismo cru, como Alcebíades. Mostra que Sócrates participou da vida desses jovens que, sendo belos, sabiam que poderiam trocar sua beleza pelo aprendizado com os mais velhos, e por isso recaíam sobre Sócrates. Todavia, deixa claro que também que este tipo de atitude, ele, Platão, não via como sendo a filosofia, ou ao menos não via como sendo a sua filosofia. Sua filosofia, a do Sócrates que segue Diotima, é, na verdade, a que forma o “Platão de Sócrates” – um Platão que não tem absolutamente nada contra o erotismo grego, mas que, em certo sentido, vê a desmedida das paixões de Alcebíades como algo que não poderia ser a filosofia daquele que iria formá-lo ou já o havia formado, seu mestre, Sócrates.
41 Nussbaum. M. A fragilidade da bondade. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 173.
43
Nussbaum vê o texto platônico oferecendo a nós a opção entre a verdade da filosofia e a verdade da poesia. Mas isso não é, enfim, a visão tradicional que existe a respeito de Platão? No entanto, Alcebíades, do modo como Platão relata o episódio da festa de Agathon – e isso Nussbaum parece não perceber – se entende ali como quem também está no percurso da filosofia. Quando inicia sua preleção, ele lembra aos que estão presentes no que é que todos eles estão engajados, e ele diz claramente que se trata do “frenesi báquico da filosofia”. 42 E pede então que os escravos e outros “não iniciados” ou tapem os ouvidos ou entre para a casa, mas não ouçam o que ele vai contar, pois não é para os “não iniciados”. 43 Alcebíades não se vê aí senão como quem está, plenamente, no interior da filosofia. Sócrates está ali presente e, durante todo o tempo, não corrige Alcebíades, mesmo tendo este dado autorização para tal. Poderíamos imaginar, sim, como Nussbaum, que se trata de uma disputa entre filosofia e poesia. Mas, Nietzsche, tão interessado em uma via de discurso que não repita a via tradicional da filosofia, pode ficar interessado em Alcebíades? Ora, Nietzsche não se interessa por Alcebíades. Mesmo sendo ele fã de historiadores e, inclusive, dos que escreveram sobre a vida de Alcebíades, Nietzsche não se entusiasma pelo guerreiro. Seus olhos estão fixos em Sócrates e, então, também em Platão. Prefiro entender que O Banquete não precisa ser lido como a disputa entre filosofia e poesia, como Nussbaum faz. Leio-o como quem vê Platão contando sobre entendimentos de eros e da filosofia. Desse modo, pode-se compreender perfeitamente o desinteresse de Nietzsche por Alcebíades. O guerreiro não é o representante da poesia, mas, com efeito, o representante de uma filosofia derrotada. O erotismo que Alcebíades fomenta conduz sua prática por uma estrada que não é o erotismo lapidado por Platão. Nietzsche, sempre atento à filosofia e única exclusivamente à filosofia, em especial a que comanda o discurso hegemônico no Ocidente, não quer saber a respeito de Platão. Nietzsche quer saber o quanto ele próprio, sendo um decadente, irá se transformar em mais um fantasma da decadência do socratismo. Contra essa minha leitura, pode-se objetar: mas a filosofia de Platão é, no limite, o abafamento de todo erotismo. O que há de interessante em observar, mesmo quando se procura os traços da decadência, em uma filosofia que seca rápido, que alcança o que há de pior tão cedo? 42 Plato. Symposium. Op. cit., pp. 69-70 43 Idem, ibidem, p. 70
44
Volto a Nietzsche, na crítica a Schopenhauer. Nessa crítica, como citei, Nietzsche não vê Platão como um mero repressor do erotismo. A interpretação que funde platonismo e cristianismo, vendo-os como responsáveis pelo que Foucault chama, a respeito da fusão entre marxismo e freudismo, “a hipótese repressora”, é uma péssima visão do que pode Nietzsche falar e fazer. Sem dúvida que Platão não é o homem do amor fati, mas isso não quer dizer que Nietzsche o toma como um deserotizador. Platão é o “Platão de Sócrates”, alguém consciente de que precisa continuar a tarefa medicinal, terapêutica de Sócrates. A “medicina da alma” desenvolvida por Sócrates nunca foi a favor da deserotização. Platão é o autêntico discípulo de Sócrates porque ele percebeu mais que qualquer outro ateniense que as filosofias deserotizadoras não iriam conquistar nenhum grego. Mas, ao mesmo tempo, nenhuma filosofia crua, ao sabor de um Alcebíades, poderia vingar. Então, Platão inventou um tipo especial de amor à medida que criou um tipo também especial de filosofia. No laboratório da Platão nasceu o amor filosófico. 12. Final O “caso” de Nietzsche com Sócrates não tem um fim. Ou melhor, não tem um fim enquanto um caso de amor-ódio. O que bota fim a tudo é a própria doença de Nietzsche. Enquanto escreve, Nietzsche não encerra o problema de sua relação com Sócrates. Mas, seria preciso? De tudo que digo aqui, há que se pedir mais de Nietzsche? Ele dá aqui, em todos os detalhes, o quadro claro de como que é seu envolvimento com Sócrates e, fazendo isso, não mostra um dos mais ricos leitores de Platão? Sim, mas isso é resultado acadêmico. Nietzsche não se relaciona com a filosofia para fins acadêmicos. Sua relação com Sócrates é a maneira como encontra para “forjar a si mesmo”. Encontramos filósofos que nos faz ver a injustiça do mundo e que redescrevem relações sociais para que possamos imaginar que há maneiras de viver melhor socialmente. Encontramos filósofos que nos colocam em redescrições de nós mesmos, em função de um projeto de autocriação. Rorty defende essa maneira de ler os filósofos, atentando para essa dupla mão, e coloca Nietzsche, ao lado de Heidegger, nessa última condição, diferente de filósofos como Dewey, Marx e Habermas, que ficariam na primeira. Nietzsche tem claro essa sua postura de abraçar a filosofia para o inventar de si mesmo em função de redescrições. Ele sabe que o amor-ódio que desenvolve em relação a Sócrates é isso, trata-se de um projeto
45
vital, do qual ele não consegue escapar, que diz respeito a ele próprio se tornar alguém que, em determinado momento, poderia conhecer Zarathustra, ou seja, o anunciador do Übermench.
Bibliografia Citada Brickhouse, T. & Smith, N. The Philosophy of Socrates. Boulder: Westview, 2000. Deleuze, G. O pensamento nômade. In: Nietzsche hoje. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 62. Dodds, Plato and the irrational soul. In; Vlastos, G. (org.) Plato II. Notre Dame: University of Notre Dame, 1978, p. 221. Ghiraldelli Jr., P. História da filosofia. São Paulo: Contexto, 2008 Kaufman, S. Socrates – Fictions of a philosopher. New York: Cornel University Press, 1989, p. 129. MacIntyre, A. A short history of ethics. London: Routledge, 1998 Nehamas, A. The art of living. Berkeley: University of California Press, 1998, cap. 5. Nietzsche, F. Gaia ciência. Lisboa: Guimarães, 1987 Nietzsche, F. Humain, trop humain –I . Paris: Gallimard, 1989, 433, p. 260 Nietzsche, F. Genealogia da moral. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p. 97. Nietzsche, F. Nascimento da Tragédia. São Paulo: Cia das Letras, 1992. Nietzsche. F. O problema de Sócrates. O crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Cia das Letras, 2006 Nietzsche, F. Par-delà bien Et mal. Paris: Gallimard, 1980, Nussbaum. M. A fragilidade da bondade. São Paulo: Martins Fontes, 2009 Plato, Symposium. Indianapolis: Hacket Publishing Company, 1989. Porter, James. Nietzsche and “the problem of Socrates”. In: Ahbel-Rappep, S. & Kamtekar, R. A companion to Socrates. NY: Blackwell, 2006 Rorty, R. A trajetória do pragmatista. In: Eco, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Rorty, R. 'The Education of John Dewey': The Invisible Philosopher <http://pgjr23.googlepages.com/dewey> consultado em 13/05/2009
46
Vlastos, G. Socrates – Ironist and moral philosopher. New York: Cornel University Press, 1991. Vlastos, G. Platonic studies. Princeton: Princeton University Press, 1981,