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FATEFFIR-USA FACULDADE DE TEOLOGIA E FILOSOFIA FIDES REFORMATA

ASSEMBLY OF GOD CHURCH MANANCIAL 140 NE 5TH AVE - DEERFIELD BEACH, FL - 33442 USA TEL (561) 218 0860

FILOSOFIA DA RELIGIÃO

MESTRADO EM TEOLOGIA ESPECIALIZAÇÃO EM MINISTÉRIO ECLESIÁSTICO 1


Rev. Dr. Gilberto Sena, Ph. D., ThD.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. O1 RENÉ DESCARTES ................................................................................ 03 I – Quem foi René Descartes? ........................................................................ 03 II - Prova da Existência de Deus...................................................................... 08 III- Deus, a Ciência e o Livre Arbítrio................................................................ 11 IV - O argumento céptico da regressão infinita ................................................ 16 02 - IMMANUEL KANT .................................................................................... 23 V - Kant e o Problema Teológico: notas .......................................................... 23 VI - Kant: sobre Deus! ..................................................................................... 30 VII - Immanuel Kant: Deus como postulado da razão prática ......................... 32 VIII - A Ética Kantiana ...................................................................................... 34 03 – SHOPENHAUER ..................................................................................... 37 IX – Shopenhauer: A Dor ................................................................................. 37 X – A Felicidade é um Sonho ......................................................................... 49

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01 RENÉ DESCARTES I – Quem Foi René Descartes Descartes- (1596 - 1650) nasceu de uma família nobre dedicada à medicina e ao comércio. Os Descartes se fixaram em La Haye, Tourenne. Seu pai se chamava Joaquim e era conselheiro do parlamento britânico. René tinha uma saúde frágil, e era cuidado por sua avó. Entrou no colégio jesuíta de Le Flèche, que havia sido fundado dois anos antes, mas já adquirira notoriedade. Nesse estabelecimento René teve formação filosófica e científica. Foi um bom aluno, mas não encontrou a verdade que procurava, como escreveu no Discurso do Método. Aprendeu a filosofia pelo método escolástico, e René, apesar de ser católico, percebeu a diferença existente entre aquele tipo de ensino antigo e o recente espírito renascentista, baseado nas últimas descobertas e inovações científicas e culturais. Agradava a Descartes a matemática, por dar respostas exatas. A educação em Le Flèche havia sido religiosa, e havia um clima de atraso e submissão às instituições políticas, acompanhados de estudos das infindáveis controvérsias teóricas da escolástica. Portanto Descartes saiu de lá um pouco confuso e decepcionado. Mas apesar disso recomendava o colégio para os filhos de amigos. Entrou para a Universidade de Poitiers, curso de direito, e se formou. Como não ficou satisfeito com os conhecimentos adquiridos, resolveu entrar para o exército. Alistou-se nas tropas holandesas de Maurício de Nassau. Descartes tinha uma ligação com a Holanda, e foi combater os espanhóis.. Fez então uma forte amizade com um entusiasta da Física e da Matemática, Isaac Beckman, jovem médico holandês. Descartes relata que viveu uma noite extraordinária no final de 1619. Ele ficava nessa época sozinho em um cômodo aquecido, onde podia se entregar à atividade intelectual. Uma visão extraordinária, um insigth. Numa noite iluminada, teve uma revelação do fundamento de uma ciência admirável, de dimensão universal. Descartes resolvera viajar para procurar a verdade no Grande Livro do Mundo. Em 1619 sai da Holanda e viaja pela Europa. Estava finalizando o seu Tratado sobre o Mundo e Sobre o Homem quando lhe veio a notícia da condenação de Galileu por suas teorias 3


científicas. Além disso, a Inquisição estava correndo solta na Europa, Descartes sabia da morte na fogueira de Giordano Bruno e da prisão de < torná-la não resolveu Descartes isso por E Igreja. pela aceita bem ser podia ela ciência, da primazia a defendia que inovador, caráter um tinha obra sua Como> Descartes tinha um projeto filosófico. Cada vez mais ligado na matemática, queria associar as leis numéricas com as leis do mundo, resgatando a antiga doutrina pitagórica. Sua principal teoria afirmava-se na eficácia da razão. Queria refletir sobre a questão da autonomia da ciência e objetividade da razão frente ao Deus todo poderoso. As novas teorias científicas contrariavam as Sagradas Escrituras. Em 1620, renuncia à carreira militar e parte para a Itália. Escreveu alguns trabalhos nesse período. Em 1637 publica o Discurso do Método- para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Teve uma filha com Heléne Jans, essa filha morreu com cinco anos e ele a amava. Seu nome era Francine e a dor da perda afetou Descartes. Ao contrário do Discurso do Método, que foi escrito em francês, Meditações foi escrito em latim. Seus pensamentos suscitavam muitas críticas, entre elas a de Hobbes. Consagrado, Descartes se relacionava com a princesa Isabel, e mantinha correspondência. Princípios da filosofia foi dedicado à princesa Elizabeth de Boêmia. Em 1649 aceita um convite da rainha Cristina da Suécia e vai para lá, entregar os originais de seu último trabalho. A rainha Cristina costumava conversar de manhãzinha, quando fazia muito frio. Como Descartes não era muito parrudo, e sua saúde nunca foi das melhores, pegou uma pneumonia e morreu uma semana depois, ao deixar a corte, em 1650. Descartes afirmou no Discurso do Método, que quanto mais estudava mais se apercebia de sua ignorância (parece um pouco com Sócrates, não é?). No livro Os princípios da filosofia afirma que a filosofia é como uma árvore, as raízes são a metafísica e a ciências como a medicina, a mecânica e a psicologia os ramos da árvore. A psicologia não era muito desenvolvida na época de Descartes. Descartes critica a lógica dialética, afirma que ela parte de verdades já conhecidas e é inútil para desvendar novas verdades. Também critica a matemática, pois, apesar de fornecer conclusões irrefutáveis, muitas vezes possui regras em demasia, sem nenhum fim prático, sendo muito abstrata. Descartes criou a geometria analítica, determinando um ponto do espaço no plano cartesiano. A geometria analítica estuda as curvas, superfícies e figuras geométricas, tendo relação com algumas equações. Essas equações podem ser aplicadas no plano formado pelas absissas e ordenadas. Assim a álgebra e a geometria foram unidas por Descartes que muito se orgulhava de sua descoberta. Ele também introduziu alguns discursos de óptica. Aplicou o raciocínio 4


matemático nas regras de seu método. Pois era preciso usar a razão para se chegar à verdade universal. Descartes sempre buscou o avanço da ciência, e quando ela conhece a natureza se torna senhora dessa. Apesar de ter ainda alguns resquícios da escolástica, Descartes se esforçou para ir além e chegar no pragmatismo. Toda a escolástica e o edifício da ciência aristotélica faziam parte do passado. E com Descartes dá a entender era preciso ir para a frente. Por isso ele é considerado o fundador da filosofia moderna. No seu estilo claro mas pleno de construções, demonstrações e imagens ele nos dá as quatro regra do método: a) jamais acolher algo como verdadeiro, a não ser que seja absolutamente evidente, e não acolher no juízo o que não seja claro e indubitável. É a regra da evidência. b) a segunda regra, que tem um jeito matemático , diz para dividir as dificuldades em quantas partes fosse possível e necessário para resolvê-las. c) a terceira regra é conduzir com ordem os pensamentos, começando com os mais simples e indo para os mais complicados, dos mais fáceis de conhecer para os compostos. Descartes também afirma, em outro trecho, que não se fia nos primeiros pensamentos. Na terceira regra é preciso fazer uma síntese da realidade complexa, que foi decomposta em partes menores. d) a última consiste em fazer em toda a parte enumerações e revisões completas, para nada se omitir. Leibniz zombou da aparente banalidade do método. Descartes aplicou-o e afirma que ele facilitou o desvelamento de certas questões, usando a razão como instrumento para tirar as dúvidas. Ele adverte que é um método que usou exclusivamente para si, como uma maneira de dirigir seu pensamento. Pois a razão, (bom senso) para Descartes, é o que há de mais bem distribuído no mundo, e o que diferencia a capacidade é o modo como cada um conduz seus pensamentos, chegando à resultados diferentes. Como uma pessoa que está construindo uma casa, e necessita de um local para dormir enquanto a obra está sendo feita, Descartes fez uma moral provisória, para não permanecer irresoluto em suas ações. A primeira máxima é obedecer as leis e costumes de seu país. A segunda é ser firme e resoluto em suas ações e não ir adiante nas opiniões duvidosas ou falsas. Assim, com essa determinação podemos ser capazes de distinguir o que não é verdade. Descartes afirma que cada homem possui a noção inata do que é verdade. Deus dá essa noção, se, por intuição, temos muita certeza de uma coisa , ela é verdade. nesse ponto, Descartes valoriza a intuição, ao lado da razão. A menor distância entre dois pontos é uma reta, e não 5


devemos ter remorsos de nossos atos. Descartes pretendia com isso se livrar de ter um espírito fraco e vacilante. A terceira máxima moral é primeiro vencer a si próprio, depois a fortuna, o destino. Primeiro modificar os desejos pessoais, e não a ordem do mundo. Tudo o que Descartes diz ter realmente em seu poder são os seus pensamentos. Assim nossa vaidade não toma conta e não remoemos nossos infortúnios nem lamentamos a falta de riqueza ou virtude. Descartes prossegue dizendo que a melhor ocupação é cultivar a razão. É o que melhor podemos fazer, pois é impossível dominar o universo e o que não atingimos é inacessível. Descartes, ficou rolando nove anos pelo mundo, vivendo sem luxos desnecessários, e solitário. Realizando meditações metafísicas, chegou à dúvida metódica. Para se passar do pequeno Eu, (que é subjetivo e depende de muitos fatores para ser conclusivo) para o mundo objetivo é necessário tomar como certas algumas coisas. Mas, supondo que tudo o que se vê é falso, sua memória é cheia de mentiras. Nesses parâmetros, a única coisa verdadeira é que não há nada de certo no mundo. Descartes realça que não estava sendo cético, pois esses são indecisos e ele buscava a verdade através da dúvida. Pois há uma força que engana sempre. Mas se ela engana, não se pode negar que se está recebendo a ação. Mesmo se não houver diferença entre o sonho e o estado acordado, ele pensa enquanto duvida. Assim Descartes chegou à verdade Penso, Logo existo (em latim: Cogito, ergo sum). Por pensamento Descartes considera tudo o que é de fato, e que nós nos tornamos conscientes disso. São pensamentos todas as operações intelectuais e da imaginação, bem como da vontade. Assim Descartes se fecha em sua subjetividade, na sua mente e pôde supor que não existe mundo. Mas a sua alma existe, e ela é puro pensamento. E um tópico interessante de sua teoria é a dualidade. A alma é uma substância distinta do corpo. E antes de confirmar como verdadeira a existência física do mundo, Descartes demonstra a existência de deus. Afirma que quem conhece é mais perfeito do que quem duvida. Tudo aquilo que ele conhece tinha de vir de alguma coisa. Ele acha que é necessário existir algo a quem ele depende e que seja perfeito. É a lei da causalidade, Deus é causa final de tudo. Descartes desenvolve o argumento ontológico para a existência de Deus. Antes dele, Santo Anselmo já o tinha feito. O Deus cartesiano é infinito, imutável, independente, onisciente, criador e conservador. Deus é uma idéia inata, que já vem junto com o nascimento. Deus garante a objetividade do mundo. Existem também as idéias factícias, construídas por nós mesmos, e as adventícias, que vem de fora. Descartes diz que existe uma luz interior dada por Deus, que dá confiança e certeza, pois é impossível que Deus seja mentiroso e enganador. E nossa consciência de Deus, do infinito, essa percepção que 6


o homem pode ter da divindade e da perfeição é como ―a marca do artista em sua obra‖. Hegel mais tarde afirmou que é impossível ao homem conhecer o infinito, pois ele só pode empregar categorias finitas. E o ser humano erra, erro que provém do juízo. E no juízo o intelecto e a vontade influem. A pressão, influência da vontade sobre o intelecto se não for bem administrada resulta no erro do juízo. Como em Santo Agostinho, é o mau uso do livre arbítrio que faz o errado surgir. Meu intelecto como tal, em si, não é errado, mas meus pensamentos e atos podem ser. Descartes afirma que a realidade exterior pode ser conhecida através da razão. As propriedades quantitativas são evidentes para a razão, as propriedades qualitativas são evidentes para os sentidos. Descartes fala da existência das substâncias, como a já citada alma e a extensão, ou matéria. A matéria ocupa lugar no espaço e pode ser decomposta em partes menores. Existe só um tipo de matéria no universo. O universo é composto de matéria em movimento. Não existe o espaço vazio, ou o vácuo dos atomistas. Visando a análise científica racional, Descartes chega à conclusão que os animais e os corpos humanos são autômatos, como máquinas semelhantes ao relógio. Na quinta parte do Discurso do Método, ele faz uma descrição fisiológica, o corpo é uma máquina de terra, construído por Deus, e suas funções dependem das funções dos órgãos. A alma está ligada ao corpo por uma glândula cerebral, onde ocorre a interação entre espírito e matéria. Na teoria mecanicista de Descartes, o corpo é uma máquina e deve entregar o controle das ações para alma. E Descartes afirma que a soma de todos os ângulos de um triângulo sempre será igual à dois retos. Essa frase foi tomada por Spinoza, a quem Descartes influenciou, e significa uma verdade, independente dos vai-e vem das opiniões baseadas nos sentidos.

II - Prova da Existência de Deus 7


Vimos já como Descartes, pela aplicação da dúvida metódica, assumiu a existência do cogito, isto é, da sua existência como ser pensante. Contudo, levantavase a questão de existência do mundo que o rodeava. A negação do valor dos sentidos como meio de acesso ao conhecimento verdadeiro colocava-o, de fato, perante a situação de ter que duvidar da existência da árvore que estava naquele momento a ver. Descartes aceitava que o mundo tivesse sido criado por Deus, aceitava que, se Deus existisse, ele seria garantia e suporte de todas as outras verdades. Mas, como saber se Deus existe ou não? Como provar a sua existência se apenas podia ter a certeza da existência do cogito? Nas suas obras, Descartes apresentou três provas da existência de Deus. 1ª Prova a priori pela simples consideração da idéia de ser perfeito ―Dado que, no nosso conceito de Deus, está contida a existência, é corretamente que se conclui que Deus existe. Considerando, portanto, entre as diversas idéias que uma é a do ente sumamente inteligente, sumamente potente e sumamente perfeito, a qual é, de longe, a principal de todas, reconhecemos nela a existência, não apenas como possível e contingente, como acontece nas idéias de todas as outras coisas que percebemos distintamente, mas como totalmente necessária e eterna. E, da mesma forma que, por exemplo, percebemos que na idéia de triângulo está necessariamente contido que os seus três ângulos iguais são iguais a dois ângulos retos, assim, pela simples percepção de que a existência necessária e eterna está contida na idéia do ser sumamente perfeito, devemos concluir sem ambiguidade que o ente sumamente perfeito existe.‖ Descartes, Princípios da Filosofia, I Parte, p. 61-62. A prova é magistralmente simples. Ela consiste em mostrar que, porque existe em nós a simples idéia de um ser perfeito e infinito, daí resulta que esse ser necessariamente tem que existir. 2ª Prova a posteriori pela causalidade das idéias Descartes conclui que Deus existe pelo fato de a sua idéia existir em nós. Uma das passagens onde ele exprime melhor esta idéia é: ―Assim, dado que temos em nós a idéia de Deus ou do ser supremo, com razão podemos examinar a causa por que a temos; e encontraremos nela tanta imensidade que por isso nos certificamos absolutamente de que ela só pode ter sido 8


posta em nós por um ser em que exista efetivamente a plenitude de todas as perfeições, ou seja, por um Deus realmente existente. Com efeito, pela luz natural é evidente não só que do nada nada se faz, mas também que não se produz o que é mais perfeito pelo que é menos perfeito, como causa eficiente e total; e, ainda, que não pode haver em nós a idéia ou imagem de alguma coisa da qual não exista algures, seja em nós, seja fora de nós, algum arquétipo que contenha a coisa e todas as suas perfeições. E porque de modo nenhum encontramos em nós aquelas supremas perfeições cuja idéia possuímos, disso concluímos corretamente que elas existem, ou certamente existiram alguma vez, em algum ser diferente de nós, a saber, em Deus; do que se segue com total evidência que elas ainda existem.‖ Descartes, Princípios da Filosofia, I Parte, p. 64. A prova consiste agora em mostrar que, porque possuímos a idéia de Deus como ser perfeito, somos levados a concluir que esse ser efetivamente existe como causa da nossa idéia da sua perfeição. De fato, como poderíamos nós ter a idéia de perfeição, se somos seres imperfeitos? Como poderia o menos perfeito ser causa do mais perfeito? Deste modo, conclui, já que nenhum homem possui tais perfeições, deve existir algum ser perfeito que é a causa dessa nossa idéia de perfeição. Esse ser é Deus. 3ª Prova a posteriori baseada na contingência do espírito ―Se tivesse poder para me conservar a mim mesmo, tanto mais poder teria para me dar as perfeições que me faltam; pois elas são apenas atributos da substância, e eu sou substância. Mas não tenho poder para dar a mim mesmo estas perfeições; se o tivesse, já as possuiria. Por conseguinte, não tenho poder para me conservar a mim mesmo. Assim, não posso existir, a não ser que seja conservado enquanto existo, seja por mim próprio, se tivesse poder para tal, seja por outro que o possui. Ora, eu existo, e contudo não possuo poder para me conservar a mim próprio, como já foi provado. Logo, sou conservado por outro. Além

disso,

aquele

pelo

qual

sou

conservado

possui

formal

e

eminentemente tudo aquilo que em mim existe. Mas em mim existe a percepção de muitas perfeições que me faltam, ao mesmo tempo que tenho a percepção da idéia de Deus. Logo, também nele, que me conserva, existe percepção das mesmas perfeições. Assim, ele próprio não pode ter percepção de algumas perfeições que lhe faltem, ou que não possua formal ou eminentemente. Como, porém, tem o poder para 9


me conservar, como foi dito, muito mais poder terá para as dar a si mesmo, se lhe faltassem. Tem pois a percepção de todas aquelas que me faltam e que concebo poderem só existir em Deus, como foi provado. Portanto, possui-as formal e eminentemente, e assim é Deus.‖ Descartes, Oeuvres, VII, pp. 166-169. Descartes demonstra agora a existência de Deus a partir do fato de que não nos podemos conservar a nós próprios. Se não podemos garantir a nossa existência, mas apesar disso existimos, é porque alguém nos pode garantir essa existência.

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III- Deus, a Ciência e o Livre-arbítrio Para Descartes, o Deus criador transcende radicalmente a natureza. Deus Foi "inteiramente indiferente ao criar as coisas que criou". Não se submeteu a nenhuma verdade prévia. Em virtude do poder de seu livre-arbítrio, criou as verdades. Eis por que Deus quer que a soma dos ângulos de um triângulo seja igual a dois ângulos retos. Acrescentemos que, para Descartes, Deus criou o mundo instante por instante (é a "criação contínua"). O tempo é descontínuo e a natureza não tem nenhum poder próprio. As leis da natureza só são o que são a cada momento, em virtude da vontade do criador. É importante compreender que essa transcendência radical de Deus possui duas conseqüências fundamentais. O livre-arbítrio humano e a independência da ciência. 1.

- O homem não é uma parte de Deus. A transcendência do criador

afasta qualquer panteísmo. O homem, simples criatura ultrapassada por seu criador (concebo Deus porque descubro em mim a marca de sua infinitude, mas não o compreendo), recebo, assim, uma autonomia que será perdida no sistema panteísta de Spinoza. O homem é livre, pode dizer sim ou não às ordens de Deus. É certo que, na Quarta Meditação, Descartes fala da liberdade esclarecida, dessa liberdade que não pode tratar da verdade ou do bem, dessa liberdade que é antes um estado de libertação do que uma decisão pura, situada além de todas as razões. Mas nos Princípios e sobretudo nas cartas ao Pe. Mesland, de 2 de maio de 1644 e 9 de fevereiro de 1645, Descartes afirma radicalmente o livre-arbítrio, o poder de recusar a Verdade e o Bem até mesmo na presença da evidência que se manifesta. Esses textos esclarecem a teoria do juízo presente na Quarta meditação. O entendimento concebe a verdade e é a vontade que dá as costas a ou afirma essa verdade. Deus propõe e o homem, por intermédio de seu livre-arbítrio, dispõe. Desse modo, Deus não é o culpado dos meus erros nem dos meus pecados. Sou eu que me engano, sou eu que peco. Meu livre-arbítrio me faz merecedor ou culpado. 2. - Do mesmo modo, a transcendência de Deus vai tornar possível uma ciência puramente racional e mecanicista da natureza. a) A natureza, segundo Descartes, já o vimos, não possui dinamismo próprio. Todo dinamismo pertence ao criador. Na medida em que a natureza é despojada de toda profundidade metafísica, Descartes pode eliminar as noções aristotélicas e medievais de forma, alma, ato e potência. Toda finalidade desaparece e a natureza é 11


reduzida a um mecanicismo inteiramente transparente para a linguagem matemática. A natureza nada tem de divino, é um objeto criado, situado no mesmo plano da inteligência humana, e, por conseguinte, inteiramente entregue à sua exploração. Isto consiste, ao mesmo tempo, na rejeição de todo naturalismo pagão (a natureza não é uma deusa) e na fundamentação metafísica do racionalismo científico. b) Nem tudo tem o mesmo valor na obra científica de Descartes. Se sua ótica e suas considerações sobre a expressão algébrica das curvas (ele é, juntamente com Fermat, o inventor da geometria analítica) constituem incontestável contribuição científica, sua física (dada, aliás, mais como uma possibilidade racional do que como a verdade certa) não passa de um romance. Mas o espírito dessa física e da fisiologia cartesiana - que não passa de um capítulo da física - nada mais é do que o espírito do mecanicismo. Quando Descartes declara que os animais são máquinas, ele coloca, em princípio, que é possível explicar as funções fisiológicas por intermédio de mecanismos semelhantes àqueles que fazem mover os autômatos que vemos "nos jardins de nossos reis". O detalhe das explicações não passa de um sonho. Mas a direção tomada é a ciência moderna. Para Descartes, o mundo físico não possui mistérios. As coisas se determinam reciprocamente (leis do choque), por contato direto, num espaço em que não existe o vazio. O Problema do Homem: a Moral 1. - No Discurso sobre o Método, Descartes adota uma moral provisória pois a ação não pode esperar que a filosofia cartesiana engendre uma nova moral! Recordemos seus três preceitos: a) Submeter-se aos usos e costumes de seu país. b) Antes mudar os próprios desejos que a ordem do mundo e vencer-se a si próprio do que à fortuna. c) Ser sempre firme e resoluto em suas ações; saber decidir-se mesmo na ausência de toda evidência, à semelhança do viajante perdido na floresta que, ao invés de ficar fazendo voltas, adota uma direção qualquer e nela se mantém! (O cartesianismo, antes de ser uma filosofia da inteligência, é uma filosofia da vontade). 2. - É certo que a moral definitiva de Descartes não apresenta uma unidade perfeita. Influências estóicas, epicuristas e cristãs estão presentes nela. Mas, na realidade, essa complexidade reflete a própria complexidade da condição humana. Na plano das idéias claras e distintas, Descartes separa claramente as duas substâncias, alma e corpo: a essência da alma é pensar; a do corpo é ser um objeto no espaço. E no entanto, o pensamento está preso a esse fragmento de extensão. A alma age sobre o corpo e este age sobre ela. (Para Descartes, o ponto de aplicação da alma ao 12


corpo é a glândula pineal, isto é, a epífise.) Mas isso não esclarece a união da alma e do corpo, que é um fato de experiência, puramente vivido e ininteligível. Na medida em que Descartes considera o homem no que ele tem de essencial, enquanto espírito, ou quando se ocupa do composto humano, sua moral assume aspectos diferentes: a) Consideremos o homem enquanto espírito, enquanto liberdade: o valor supremo é a generosidade. "A verdadeira generosidade que faz com que um homem se estime, no ponto máximo em que ele pode legitimamente estimar-se, consiste, em parte, na consciência de que nada lhe pertence verdadeiramente, exceto essa livre disposição de suas vontades... e em parte no sentimento de uma firme e constante resolução de bem usá-la, isto é, de nunca lhe faltar vontade para empreender e executar todas as coisas que julgar melhores, o que é seguir a virtude perfeitamente". b) Se considerarmos o homem enquanto espírito unido a um corpo, somos obrigados a levar em conta as paixões, isto é, a afetividade em sentido amplo. Paixão é, para Descartes, tudo o que o corpo determina na alma. E Ele, que nada tem de asceta, acha que devemos antes dominá-las do que desenvolvê-las. Isso porque ele se coloca do ponto de vista da felicidade. O bom funcionamento do corpo, as ligações harmoniosas entre os espíritos animais e os pensamentos humanos são altamente desejáveis. A moral surge, então, como uma técnica de felicidade e, nessa técnica, a medicina desempenha importante papel. A moral surge aqui como uma aplicação direta ao mecanicismo cartesiano. O Programa Cartesiano "De acordo com o prefácio dos Princípios" Gostaria de explicar aqui a ordem que, parece-me, devemos seguir para que nos instruamos. Primeiramente, o homem que ainda só possui conhecimento vulgar e imperfeito, deve, antes de tudo, encarregar-se de formar uma moral que seja suficiente para ordenar as ações da vida, porque isso não deve ser adiado e porque devemos sobretudo procurar viver bem. Após isso, também deve estudar lógica, não a da Escola - pois ela nada mais é do que uma dialética que ensina os meios para fazer entender a outrem as coisas que já se sabe ou então de emitir opiniões, sem julgamento, sobre as que não se sabe; desse modo, ela antes corrompe o bom-senso do que o desenvolve - mas aquela que ensina a bem conduzir a razão na descoberta de verdades que se ignora. E porque ela depende muito do uso, é bom que ele se exercite, por muito tempo, na prática de regras pernitentes a questões fáceis e simples como as da matemática. Depois, quando já tiver adquirido o hábito de encontrar a verdade nessas questões, ele deve começar a aplicar-se à verdadeira filosofia cuja 13


primeira parte é a metafísica, que contém os princípios do conhecimento, entre as quais está a explicação dos principais atributos de Deus, da imaterialidade de nossas almas e de todas as noções claras e simples que estão em nós. A segunda é a física, na qual, após ter encontrado os verdadeiros princípios das coisas materiais, examinamos em geral como o universo é composto; depois, em particular, qual a natureza da terra e de todos os corpos que se encontram mais comumente em torno dela como o ar, a água, o fogo, o ímã e outros minerais. Após o que também é necessário examinar em particular a natureza das plantas, dos animais e, sobretudo, do homem, a fim de que se seja capaz de, depois, encontrar as outras ciências que lhe são úteis. Desse modo, a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica, o tronco a física e os ramos que daí saem todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber: a medicina, a mecânica e a moral; eu acho que a mais elevada e mais perfeita moral, que pressupõe inteiro conhecimento das outras ciências, é o último grau da sabedoria. Ora, assim como não é das raízes nem do tronco que colhemos os frutos, mas da extremidade dos ramos, assim a principal utilidade da filosofia depende das utilidades de suas partes, as quais só podemos aprender por último. Mas, embora eu as ignore quase todas, o zelo que sempre tive no sentido de prestar algum serviço ao público levou-me a publicar, há uns dez ou doze anos, alguns ensaios sobre as coisas que me parecera ter aprendido. A primeira parte desses ensaios foi um discurso sobre o método de bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências, na qual apresentei sumariamente as principais regras da lógica e de uma moral imperfeita que pode ser seguida provisoriamente, enquanto ainda não se estabelece algo de melhor. As outras partes foram três tratados: um da Dióptrica , outro dos Meteoros e o último da Geometria . Pela Dióptrica , pretendi mostrar que se pode avançar bastante em filosofia para se chegar, por seu intermédio, ao conhecimento das artes que são úteis à vida e porque a invenção das lunetas de aproximação, que eu aí explico, é uma das mais difíceis das que já foram procuradas. Pelos Meteoros , procurei fazer com que se reconhecesse a diferença existente entre a filosofia que eu cultivo e aquela ensinada nas escolas em que se tem o hábito de tratar da mesma matéria. Finalmente, pela Geometria , pretendi demonstrar que eu descobrira várias coisas ignoradas até então e, desse modo, fazer acreditar que ainda podemos, nesse campo, descobrir várias outras, incitando, dessa forma, todos os homens a procurarem a verdade. Depois disso, prevendo a dificuldade que muitos teriam para conceber os fundamentos da metafísica, procurei explicar seus pontos principais num livro de Meditações que não é grande, mas cujo volume foi aumentado e cuja matéria foi muito 14


clarificada pelas objeções que várias pessoas muito doutas me enviaram sobre o assunto e pelas respostas que lhes dei. Finalmente, quando me pareceu que esses tratados procedentes haviam preparado bem o espírito dos leitores para receber os Princípios da Filosofia , eu os publiquei então; dividi o livro em quatro partes, das quais a primeira contém os princípios do conhecimento e que podemos denominar filosofia primeira ou metafísica. Eis por que, a fim de bem compreendê-la, é preciso ler antes as Meditações que escrevi sobre o mesmo assunto. As outras três partes contêm tudo o que há de mais geral na física, a saber, a explicação das primeiras leis ou princípios da natureza e a maneira pela qual os céus, as estrelas fixas, os planetas, os cometas e o universo em geral são compostos; depois, em particular, a natureza desta terra, do ar, da água, do fogo e do ímã - que são os corpos que podemos encontrar mais comumente em torno dela - e de todas as qualidades que observamos nesses corpos como o são a luz, o calor, o peso e semelhantes; por meio disso, penso ter começado a explicar toda a filosofia ordenadamente, sem ter admitido nenhuma das coisas que devem preceder as últimas sobre as quais escrevi.

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IV - O argumento céptico da regressão infinita Teremos maneira de saber se sabemos alguma coisa? O céptico defende que não. O problema pode parecer estranho; e, se o problema pode parecer estranho, a resposta céptica pode parecê-lo ainda mais. Muitas vezes temos boas razões para duvidar de que saibamos certas coisas; há, todavia, outras coisas de que nos parece difícil duvidar seriamente. Mas o céptico pensa ter um bom argumento1. O seu argumento pode ser formulado do seguinte modo: Se há conhecimento, então as nossas crenças estão justificadas; mas as nossas crenças não estão justificadas; logo, não há conhecimento. Ora, este argumento é válido2. Se for sólido, teremos de aceitar a sua conclusão; se não queremos aceitar a sua conclusão, teremos de mostrar que não é sólido. Mas por que razão deveremos preocupar-nos com a conclusão céptica? Porque não poderemos aceitá-la, ainda que com uma reserva sorridente — e passar tranquilamente adiante? Essa é uma possibilidade. O que há de insatisfatório com ela é que, se a aceitamos, dificilmente haverá um adiante a que passar. Muitos filósofos pensam que a conclusão céptica é inaceitável; e que temos, por conseguinte, boas razões para nos ocuparmos dela. Se isso é verdade, então temos de regressar ao argumento céptico e procurar determinar o que há de errado com ele. Será o argumento céptico um argumento sólido? Válido, é; se é válido, então será sólido na circunstância em que todas as suas premissas são verdadeiras. Serão? A primeira premissa parece indisputável; isto porque não parece possível haver conhecimento sem justificação. Mas a segunda premissa não parece tão evidentemente verdadeira; e isto porque não é óbvio que as nossas crenças — ou, ao menos, algumas delas — não estejam justificadas. Se o céptico pretende que o seu argumento é sólido, então deverá defender a sua segunda premissa. O argumento céptico da regressão infinita procura fazê-lo. Este argumento pode ser formulado do seguinte modo: Todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças; se todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças, então há uma regressão infinita; se há uma regressão infinita, então as nossas crenças não estão justificadas; se as 16


nossas crenças não estão justificadas, então não há conhecimento; logo, não há conhecimento. Ora, este argumento é válido; logo, e mais uma vez, se não queremos aceitar a sua conclusão, teremos de mostrar que pelo menos uma das suas premissas é falsa. Mas será? E, se o for, qual? Descartes e o argumento céptico da regressão infinita Descartes procura responder ao argumento céptico da regressão infinita mostrando que a sua primeira premissa é falsa; isto é, mostrando que não é verdade que todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças. Mas esse não é o seu principal problema. A Descartes não parece satisfatório mostrar que o céptico pode estar errado3: ele pretende mostrar que o céptico está, efetivamente, errado. O seu principal problema pode ser formulado do seguinte modo: "Como poderemos garantir que o nosso conhecimento é absolutamente seguro?" A dúvida cartesiana Como o céptico, Descartes parte da dúvida; mas, ao contrário do céptico, não permanece nela. A dúvida cartesiana é muito especial, por diversas razões. A primeira é que Descartes não duvida por duvidar: ele duvida porque procura um conhecimento absolutamente seguro; isto é, um conhecimento que resista à dúvida mais obstinada, um conhecimento do qual não haja razões para duvidar. Por isso se diz que a dúvida cartesiana é metódica: é um método para encontrar o conhecimento absolutamente seguro que Descartes procura. Mas, se o que se procura é um conhecimento absolutamente seguro, então é necessário começar por duvidar de tudo o que simplesmente possa parecer duvidoso; é necessário explorar todas as possibilidades de erro, mesmo as mais remotas; isto porque resistir à dúvida é uma condição necessária para o tipo de conhecimento que procuramos. Claro que isto é um exagero: na maior parte do tempo, não temos razões para duvidar da maior parte das coisas. Por esta razão dizemos que a dúvida cartesiana é hiperbólica. Na maior parte do tempo, por exemplo, acreditamos nos nossos sentidos. Mas, pensa Descartes, os nossos sentidos, por vezes, enganam-nos; ora, se os nossos sentidos nos enganam, ainda que apenas por vezes, então o melhor é não acreditarmos neles nunca; isto porque, como diz, é prudente não confiar em quem nos engana, nem que seja uma só vez. Mas também a razão, na qual acreditamos na maior parte do tempo, nos engana por vezes, mesmo nos cálculos mais simples; por isso, devemos também desconfiar da razão. Por examinar cuidadosamente todas as possíveis fontes de erro se diz que a dúvida cartesiana é sistemática. 17


O gênio maligno O gênio maligno, que surge nas Meditações, é uma possibilidade muito remota; mas é uma possibilidade; logo, não podemos deixar de considerá-la. Mas quem é este gênio maligno? Este gênio maligno é uma espécie de deus; é gênio, porque os seus poderes são, supostamente, superiores aos poderes humanos; mas, por ser maligno, não pode ser o verdadeiro Deus, uma vez que Este é bom (ocupar-nos-emos da justificação desta crença mais adiante). Este gênio maligno tem uma obsessão: enganar-me. É ele que me induz a acreditar que tenho duas mãos, que tenho um corpo, que há uma realidade exterior a mim, ou que 2 + 3 são 5. Mas tudo isto pode ser falso. Todos os meus pensamentos podem ser mero produto da acção maligna deste gênio. Isto não é tão implausível quanto pode parecer: de fato, é como supor que se vive permanentemente numa realidade virtual. Pode, inclusivamente, suceder que eu esteja enganado quanto ao meu corpo; talvez o meu corpo não seja aquilo que os meus olhos me dizem que ele é; talvez eu não tenha sequer um corpo — nem, se isso é verdade, olhos que me digam como ele é. Talvez eu não seja senão um cérebro numa cuba, que um cientista perverso se entretém a estimular, de maneira que eu pense os pensamentos e tenha as sensações que ele quer que eu pense e tenha. O itinerário cartesiano Aqui está Descartes aparentemente imerso num oceano de dúvidas: os sentidos, diz, enganam-me, a razão engana-me e, para complicar tudo, pode suceder que um gênio maligno não faça senão enganar-me. Parece que a única certeza que tenho é de que duvido. Mas, diz Descartes, "notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade — eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava" (Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 28). E, mesmo que um gênio maligno persista em enganar-me, é, ainda assim, necessário que eu exista para ser enganado. O cogito "Penso, logo existo" — o cogito, como ficou conhecida esta crença — parece uma crença básica: uma crença que não se infere de coisa alguma. O cogito é uma intuição racional, uma evidência. Como seria possível duvidar dele? Se não é possível duvidar dele, então é o tipo de conhecimento que procuramos: resistente à dúvida. 18


A primeira premissa do argumento céptico da regressão infinita parece, pois, definitivamente falsa. Afinal, nem todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças; isto porque encontrámos uma que, aparentemente, não tem necessidade de qualquer outra que a justifique. E a melhor parte é que é possível encontrar mais conhecimentos deste tipo: basta ver o que há no "penso, logo existo" que o torna indubitavelmente verdadeiro. E o que há, pensa Descartes, é isto: é que "vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir" (Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 28). Se isto é verdade, então o que quer que eu possa conhecer muito claramente — e, já agora, também muito distintamente — será verdadeiro. Mas parece faltar um fundamento mais sólido a este conhecimento. Com efeito, do fato de eu ver clara e distintamente que, dado um triângulo, é necessário que a soma dos seus ângulos internos seja igual a dois ângulos rectos, ainda não se segue que haja no mundo qualquer triângulo. Como posso saber que não estou a alucinar ao pensar que existem triângulos? Na ausência de um fundamento mais sólido para o conhecimento, nenhuma razão temos para acreditar que, por mais claras e distintas que as nossas idéias sejam, elas tenham a perfeição de serem verdadeiras (Ver Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 33). Deus Sei que penso, e existo; mas, por vezes, duvido, e engano-me; logo, não sou perfeito. No entanto, tenho a idéia de perfeição; caso contrário, como poderia pensar que não sou perfeito? Mas de onde me chegou a idéia de perfeição? Ou a idéia de perfeição foi criada por mim, ou a recebi do mundo exterior, ou me chegou de outro sítio qualquer. Mas a idéia de perfeição não pode ter sido criada por mim; isto porque não sou perfeito, e o imperfeito não pode criar o perfeito. Pela mesma razão, não a recebi do mundo exterior, uma vez que no mundo exterior nada parece haver mais perfeito do que eu mesmo. Logo, a idéia de perfeição só pode ter sido posta em mim por um ser absolutamente perfeito: Deus, para tudo dizer numa palavra (Ver Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 29). Mas poderemos estar seguros de que Deus existe? Descartes pensa que sim. Isto porque, diz, um ser absolutamente perfeito é um ser que tem todas as perfeições; se não tiver todas as perfeições, então não será absolutamente perfeito. Ora, a existência é uma perfeição; isto porque de uma coisa que não existe dificilmente se pode dizer que é perfeita. Mais perfeita do que a casa dos meus sonhos é a casa dos meus sonhos tornada realidade. Logo, se Deus é um ser absolutamente perfeito,

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então necessariamente existe. E Deus é um ser absolutamente perfeito. Logo, Deus existe necessariamente. O mundo Se Deus existe e é perfeito, então não pode querer que eu esteja enganado acerca da existência do mundo ou das leis da natureza que Ele mesmo criou; isto porque, se o fizesse, não seria bom, e a bondade é uma perfeição; logo, o mundo existe, e eu posso conhecê-lo. "Na verdade, diz Descartes, aquilo mesmo que há pouco adotei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras as coisas que concebemos muito clara e distintamente, não é certo senão porque Deus é ou existe, ser perfeito de que nos vem tudo o que em nós existe. Donde se segue que as nossas idéias ou noções, coisas reais que provêm de Deus, não podem deixar de ser verdadeiras na medida em que são claras e distintas" (Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Sá da Costa, 1982, p. 32). Assim, Deus parece ser o fundamento de que Descartes carecia para alicerçar convenientemente o conhecimento sem erro que procurava. Descartes parece ter finalmente encontrado o seu rochedo, no meio de um mar de dúvidas. Mas terá ele resolvido o problema? O fundacionismo cartesiano tem sido objeto de muitas críticas. Vamos referir aqui apenas três. Críticas ao cogito4 Alguns filósofos pensam que Descartes foi longe demais ao afirmar "eu penso"; um deles, o filósofo Georg Lichtenberger, observou: "Deveríamos dizer 'há pensamento' exatamente como dizemos 'troveja'". A idéia é que a referência a um "eu" como sujeito do pensamento é abusiva. Não dizemos que alguém troveja, mas que uma trovoada está em curso; analogamente, diz Lichtenberger, Descartes não pode pretender escapar à dúvida nomeando um "eu" que pensa: tudo o que pode dizer é que "há um pensamento em curso". Se devemos levar a sério a hipótese do gênio maligno, então não temos mais razões para acreditar no "eu" que pensa do que no "eu" físico, histórico e social. Neste ponto, o argumento de Descartes parece ser o seguinte: Não posso duvidar da minha existência; mas posso duvidar da existência de corpos; logo, não sou um corpo. É discutível que seja este o argumento de Descartes; mas, se é esse, é falacioso. Considere-se o seguinte contra-exemplo5:

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Não posso duvidar de que estou aqui na sala; mas posso duvidar de que uma pessoa que está aqui na sala receberá amanhã más notícias; logo, eu não sou uma pessoa que receberá amanhã más notícias. O círculo cartesiano O cogito, só por si, dificilmente poderia constituir um fundamento sólido para o conhecimento. De fato, é a existência de Deus que garante a Descartes que não se engana quando pensa clara e distintamente. Mas, por outro lado, parece que Descartes só pode saber que Deus existe porque compreende clara e distintamente a Sua existência, a existência de um ser perfeito. Se este é o argumento de Descartes, como pensam alguns críticos, então é falacioso, pois trata-se de um argumento circular: para saber que as idéias claras e distintas são verdadeiras, tenho primeiro de saber que Deus existe; mas, para saber que Deus existe, tenho primeiro de saber que as idéias claras e distintas são verdadeiras. Será que da idéia da perfeição se segue que existe um ser perfeito? A terceira e última crítica que referiremos aqui questiona a validade da demonstração cartesiana da existência de Deus a partir da idéia de causalidade. Vimos anteriormente Descartes argumentar que a idéia de perfeição só pode ter sido causada por um ser perfeito; mas, para alguns críticos, esta idéia está longe de ser clara e distinta. Quem nos garante que não é ainda o gênio maligno a manipular a nossa mente, e a enganar-nos quando pensamos que a idéia de perfeição só pode ter sido causada por um ser perfeito? Na verdade, Descartes ainda não afastou completamente a hipótese do gênio maligno. E, afinal, que razões temos para acreditar que a idéia de perfeição tem de ser causada por um ser perfeito? Teremos sequer razões para acreditar que tal idéia tem de ser causada? Posso ter a idéia de uma pessoa perfeitamente pontual, por exemplo. Será que esta idéia exige uma causa perfeitamente pontual? Isto não parece fazer sentido. Talvez a idéia de uma pessoa perfeitamente pontual acabe por ser a definição de uma pessoa perfeitamente pontual. Mas a definição de uma pessoa perfeitamente pontual é uma idéia que posso ter sem jamais ter encontrado tal pessoa, ou mesmo que tal pessoa não exista (ver Simon Blackburn, Pense: Uma Introdução à Filosofia, Lisboa, Gradiva, 2001, p. 43). Parece, pois, que Descartes não conseguiu demonstrar satisfatoriamente a existência de Deus; e, se não conseguiu demonstrar satisfatoriamente a existência de Deus, então o cogito não é garantia suficiente de um conhecimento à prova de erro. Por isso, alguns filósofos pensam que Descartes não conseguiu resolver 21


satisfatoriamente o problema e que, se queremos refutar definitivamente o céptico, teremos de encontrar outros fundamentos para o conhecimento. É desse modo que pensam os fundacionistas clássicos como Locke, Berkeley e Hume. Notas 1.

Claro que, se o céptico pensa ter um bom argumento, então a sua

posição resulta consideravelmente enfraquecida; isto porque o céptico não pode pretender ter um bom argumento e duvidar da lógica; ora, se o céptico não duvida da lógica, então a sua posição resulta consideravelmente enfraquecida. Mas essa é uma discussão que não faremos aqui. 2.

Sabemos que este argumento é dedutivamente válido porque tem uma

forma válida. A sua forma é conhecida por modus tollens. 3.

Um argumento válido com pelo menos uma premissa falsa tanto pode

ter uma conclusão verdadeira como falsa; logo, o fato de um argumento válido ter uma premissa falsa não é uma condição suficiente, embora seja uma condição necessária, para ter conclusão falsa. 4.

Para as críticas ao cogito, ver Simon Blackburn, Pense: Uma Introdução

à Filosofia, Lisboa, Gradiva, 2001, pp. 37, 38. 5.

Um contra-exemplo a um argumento dado é um argumento com a

mesma forma do argumento dado, mas claramente inválido.

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02 -

IMMANUEL KANT

V - Kant e o Problema Teológico: notas Propomo-nos aqui uma breve reflexão sobre o lugar e o estatuto da problemática teológica no pensamento de Kant. Mas, como balizar tal hipótese no interior de um pensamento, que no decorrer da história da filosofia, tanto quanto pela sua própria autodenominação, caracterizase por um jargão que o nomeia, em face de seu entorno filosófico, de pensamento crítico? Devidamente analisado, o pensamento kantiano é elaborado no interior de um cenário filosófico onde o recurso à figura divina não se apresenta como simples ponto facultativo, pelo contrário, é representativo apoio para solucionar inúmeras questões e reivindicações da filosofia moderna. Poderíamos nos perguntar se o cogito cartesiano se sustenta sem recorrer a um fundamento externo. O próprio Leibniz, cujo pensamento exerceu profunda influência na formação do jovem Kant, para justificar o acordo entre as substâncias recorria a uma harmonia préestabelecida por Deus. Nem mesmo Newton pôde isentar-se definitivamente da figura divina, pois para explicar o plano e a direção das revoluções planetárias sustentou a hipótese de uma intervenção divina, não obstante tenhamos que situar seu método, no que tange a uma investigação localizada dos fenômenos, noutro âmbito que o da metafísica. Como é sabido, a Crítica da Razão Pura desponta na história do pensamento kantiano como forma sistemática de tratamento de problemas capitais da filosofia moderna, mas, também, desferindo um golpe fatal nas pretensões dogmáticas da metafísica. As tradicionais provas da existência de Deus são ali caracterizadas como fundadas em raciocínios ilusórios de uma razão cuja crítica e mensuração de seus limites deveriam ser feitos com urgência. Postura amadurecida do filósofo de Königsberg; a metafísica não pode falar de Deus com pretensões objetivas, o entendimento aí raciocina em suspenso. Mas em razão de que, por força de que necessidade, a partir de qual expediente poderíamos mensurar tal conseqüência do pensamento de Kant? Se pudermos aventar aqui uma hipótese, cremos que essa deverá ser buscada fora do terreno teológico propriamente dito, afinal, Kant não era teólogo.

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Desde o denominado período pré-crítico, Kant percorre uma problemática que nos parece de capital importância para se compreender a gênese da filosofia transcendental e que, conseqüentemente, nos oferece uma pedra de toque para uma significativa ponderação das conseqüências de sua filosofia madura: trata-se da questão do método da metafísica. Não obstante o caráter revisionista, mas também crítico, encontrado em suas primeiras produções, curiosamente, não vemos Kant, de início, banir do seio da metafísica o problema da existência de Deus, ao contrário, o filósofo repensa o problema a partir dos novos contornos metodológicos que pretende aportar à metafísica. Se a Crítica da Razão Pura estabelece limites à metafísica, por outro lado, é necessário notar, que ela também remaneja seus conceitos, aliás, notadamente, o conceito de Deus, presente nas produções pré-críticas de Kant. Um texto de 1755 permite-nos pensar a problemática teológica na conjuntura de questões filosóficas do século XVIII: a História Geral da Natureza. Numa descrição superficial dos conflitos intelectuais do século XVIII alemão, encontramos, de um lado, a ciência newtoniana, que inaugurava um método de explicação dos fenômenos baseando-se na observação da natureza, de outro, a metafísica leibniz-wolffiana, que mantinha uma tradição explicativa do mundo baseada numa relação direta entre ser e pensar. A História Geral da Natureza, apesar do confessado matiz newtoniano, admite e mantém, mesmo entre uma argumentação mecanicista quanto à origem e história do universo, a força da prova físico-teológica da existência de Deus. Explicar mecanicamente o universo não significava, para Kant, ofuscar ou negar a existência divina. O intento do filósofo estava voltado para mostrar que ―(...) podemos nos desprender de um antigo e infundado preconceito, e de uma filosofia preguiçosa que, sob a aparência da piedade, busca esconder uma ignorância inerte (...)‖ (KANT, 1984: 173). Isto é, Kant não dirige a menor afronta à religião, apenas, a uma filosofia que, para legitimar o fim de suas investigações, remete tudo a Deus como fundamento explicativo. A História Geral da Natureza, então, nos leva a pensar que o discurso da ciência da natureza é perfeitamente legítimo, ao menos no sentido de que ele transita num terreno que lhe é apropriado. Mas, e a metafísica? Teria ela um modo legítimo de discursar sobre as coisas? Kant, já em 1755, havia notado que essa ciência portava problemas que diziam respeito, mais do que a seus objetos, a seu próprio método. A Nova Dilucidatio de 1755 já tentava repensar os princípios utilizados pela ontologia. Mas será nos anos 60 que o filósofo tecerá duras críticas à metafísica. Em 1763, numa obra de sugestivo título, O único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus, Kant aperfeiçoa um argumento já ensaiado na Nova Dilucidatio 24


(Cf. KANT, 1983: 46) e, embora esteja a tentar uma prova da existência de Deus, derruba importantes pressupostos da metafísica tradicional. A prova parte de um pressuposto inverso ao da ontologia leibniz-wolffiana, pois o filósofo não admite mais a idéia de que seja possível determinar a existência por uma mera possibilidade dada em pensamento. À parte a prova propriamente dita, é o próprio método da metafísica que está sendo criticado e repensado (Cf. KANT, 2004: 50) Apesar das críticas efetuadas, é necessário reconhecer que Kant ainda está longe da descoberta da filosofia transcendental. Durante os anos 60, de fato, ele redirecionou a metafísica, mas a crítica completa e o sistema da razão ainda estão longe de serem constituídos. Neste processo evolutivo, a Dissertação de 1770 carrega um peso notável, pois permite ao filósofo distinguir regiões de conhecimento, de maneira que o método ali consistirá, justamente, em cuidar para que cada ciência permaneça dentro de seu domínio próprio. Mas, se Kant teria nisso um ganho metodológico, não havia percebido que criara outro problema, pois, as regiões do conhecimento, seja das ciências empíricas ou da metafísica, eram designadas a partir do próprio sujeito e, entre esse e o objeto seria necessário encontrar um princípio de ligação. Leibniz resolveria tal problema recorrendo à harmonia pré-estabelecida por Deus, todavia, tal solução, para Kant, seria, mais uma vez, o indício de uma preguiça de pensar. Testemunho disso encontramos em sua célebre carta a Marcus Herz de fevereiro de 1772, na qual ele afirma: (...) que o Deus ex Machina é, na determinação da origem e da validade de nossos conhecimentos, aquilo que de mais absurdo se pode escolher e tem para lá do círculo vicioso na série das conclusões dos nossos conhecimentos, ainda a desvantagem de dar incentivo a todo capricho ou quimera piedosa ou extravagante. (KANT, Carta a Herz: 144) Solucionar esse problema é o que colocará o pensador na trilha de descoberta da filosofia transcendental, a qual deverá ser entendida como um pensamento que tem de resolver toda sua problemática nos limites de uma estrutura transcendental que configura o circuito imanente da subjetividade. No texto de 1763, acima citado, Kant já havia, de certo modo, percebido uma tendência inevitável da razão a pôr uma existência necessária como fundamento de todo possível, no entanto, ali o pensador reflete de modo inteiramente dogmático e, embora não a deduza por uma análise conceitual, como o faz o argumento ontológico, a afirma como condição necessária de toda possibilidade. Mesmo no âmbito da crítica transcendental, Kant aponta para esta mesma inevitabilidade, para esta suprema condição dos raciocínios da razão, contudo, a afirmação de uma existência objetiva 25


tornara-se, agora, uma ilusão. Assim, segundo ele: ―Nada disto, porém, significa a relação objetiva de um objeto real com outras coisas, mas apenas da idéia com conceitos, e deixa-nos em completa ignorância acerca da existência de um ser de tão excepcional eminência‖ (KANT, 2001: A579/B607). A prova de 1763 torna-se, com a Crítica da Razão Pura, inteiramente ultrapassada. Mas, devemos considerar que a primeira Crítica não encerra as coisas por aí. Uma idéia da razão não pode ser considerada inteiramente despropositada; ela guarda ainda um sentido regulador. Entendida desse modo, uma idéia da razão não possui, portanto, o caráter da objetividade. Porém, isso não significa que ela deva ser abandonada, pelo contrário, o giro copernicano, operado pela crítica de Kant, mostra que é unicamente nela que se encontra o critério para a consideração das coisas em geral, isto é, se a idéia de Deus não prova uma realidade objetiva, o fato de que tal idéia é no homem uma condição transcendental, implica que o ser humano considere o mundo como se Deus existisse. Se há no homem a idéia de que as coisas do mundo derivam sua existência de um ser supremo, então o homem assim deve continuar a considerar, embora isso não seja objetivamente provado. Em tal caso, diz-se, por exemplo, que as coisas do mundo têm de ser consideradas como se derivassem sua existência de uma inteligência suprema. Desse modo, a idéia é, em verdade, somente um conceito heurístico e não um conceito ostensivo e indica, não como é constituído um objeto, mas como, sob a sua orientação devemos procurar a constituição e ligação dos objetos da experiência em geral. (KANT, 2001: A670/B698) Na ―Dialética transcendental‖, ao considerar a teologia racional, Kant nota que ela parte da pressuposição de algo que deve estar além da série cosmológica (Cf. KANT, 2001: A566/B594). Também no caso da idéia teológica, enquanto um princípio regulador, nota-se que tal idéia se coloca, enquanto um modo de consideração da unidade empírica do mundo, como pressupondo uma espécie de finalismo na natureza. Assim, a idéia teológica indica que a ordem e beleza que se vê na natureza pode ser ajuizada teleologicamente, como se fosse derivada de uma inteligência suprema. Tal maneira de ajuizar permite uma consideração sistemática do mundo, o que por uma consideração meramente empírica jamais aconteceria, uma vez que o critério empírico da causalidade, na tentativa de determinação do todo, sempre pede uma causa antecedente, correndo, pois, o risco de pôr a causa inteligível como objeto, o que gera uma antinomia da razão. Pelo contrário, a consideração do mundo, a partir da idéia como princípio meramente regulador da investigação, apenas impõe a consideração de uma unidade ideal, e não real. ―Esta unidade formal suprema, 26


fundada unicamente em conceitos racionais, é a unidade das coisas conforme a um fim, e o interesse especulativo da razão impõe a necessidade de considerar a ordenação do mundo como se brotasse da intenção de uma razão suprema‖ (KANT, 2001: A686/B714). Desse modo, vê-se que as reflexões da primeira Crítica conduzem novamente ao pressuposto teleológico daquela prova físico-teológica com a qual nos deparamos já na História Geral da Natureza de 1755. É certo, que o pensamento crítico não tem condições de voltar às antigas afirmações dogmáticas de Deus. A teleologia, isto é, a compressão de uma finalidade nas coisas da natureza guarda, como justificativa, aquele como se, lembrando que tal finalismo radica na estrutura transcendental da faculdade humana de ajuizamento, enquanto visa ou deve visar à máxima unidade sistemática na compreensão do mundo. Tais reflexões nos levam para o interior da terceira crítica de Kant, a Crítica da Faculdade do Juízo. Todas as ciências, segundo Kant, devem formar um sistema, isto é, toda ciência deve ter uma disposição arquitetônica, de modo a sustentar-se e formar uma completude. E na consideração de uma totalidade, ou seja, de uma unidade sistemática, sempre é possível um ajuizamento teleológico. Isso, no entanto, de acordo com Kant, não é motivo para se introduzir Deus como justificativa daquela conformidade a fins que o sistema pode aparentar. A disposição arquitetônica de uma ciência pretende, justamente, evitar o recurso ao que seja externo à própria ciência. Pois antes ainda de nos interrogarmos sobre as causas da própria natureza, encontramos nesta e no decorrer da sua produção, produtos tais que são nela gerados segundo leis da experiência conhecidas e segundo as quais a ciência da natureza ajuíza os seus produtos. Por conseguinte também tem de procurar a causalidade destes nela própria, segundo a regra dos fins. (KANT, 1995: 224) Isto é, não se deve fazer uma dedução teológica a partir da conformidade a fins que se possa ver na natureza como, por exemplo, pretende a prova físico-teológica 1[1]. Isso indica que se a teologia será reabilitada, o será por uma outra via, não por meio da ciência natural. Há duas maneiras pelas quais o homem pode, conforme mostra-nos a terceira Crítica, considerar a natureza. Primeiramente, por meio da faculdade de julgar determinante, a qual compreende a natureza como um vasto mecanismo regido pelas leis da causalidade. De outro modo, pode considerá-la por meio de um juízo reflexionante, ou seja, pressupondo na natureza uma finalidade. A segunda

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pressuposição permite a Kant inserir na natureza a idéia de um fim que, resultado de uma intenção, como pressupõe o juízo teleológico, encontra-se no próprio homem. Isso porque o homem, considerado como ser racional, é uma causalidade inteligível, portanto, uma causalidade que no seu agir moral visa à própria ação como um fim. Kant insere a consideração sobre a finalidade moral, pois é daí que se derivará o restabelecimento da teologia, por uma teologia ética. O filósofo nota que uma teleologia física ou uma teologia física, não servem para pensar uma divindade – ainda que não se tratasse de uma determinação objetiva – pois, poder-se-ia pensá-la como uma causa que não considera a finalidade a partir de uma vontade. (...) pelo contrário ficará sempre por descobrir, se aquela causa suprema é em todos esses casos o seu fundamento originário, segundo um fim terminal e não sobretudo através de uma inteligência determinada pela simples necessidade da sua natureza para a produção de certas formas (segundo a analogia com aquilo que nos animais chamamos o instinto artístico), e sem que para isso seja necessário atribuirlhe unicamente sabedoria e, ainda menos, uma sabedoria suprema, ligada a todas as outras qualidades exigíveis para a perfeição do seu produto. (KANT, 1995: 282) O homem é um ser que, pela própria constituição de suas faculdades, mais propriamente, por ter uma razão que é prática, é capaz de agir intencionalmente, ou seja, agir por uma causalidade que não é natural, mas inteligível. Isso significa que o homem é capaz de pôr um fim no seu agir, que é a própria liberdade enquanto independência das tendências de sua natureza. Em decorrência, se a consideração da teleologia física levava a pensar uma causa inteligente do mundo, assim, esta teleologia moral, esta constituição do homem, enquanto ser que é capaz de ser um fim em si mesmo e também o fim último da criação – considerando-se, pois, que esta finalidade inteligível, pela qual o homem se caracteriza, não pode ser um fim interno da natureza – esta consideração teleológica permite, portanto, pensar, em conformidade com nossa constituição subjetiva, num ser que é causa e mais ainda, um legislador moral do mundo como reino dos fins. A reflexão kantiana segue, portanto, rumo a uma união entre teleologia e moral a partir da necessidade de um ser divino como causa moral do mundo. A prova moral da existência de Deus não recobra a teologia por meio de qualquer afirmação determinante, ou seja, objetivo-constitutiva do juízo, mas, Deus torna-se um pressuposto necessário de modo subjetivo para a razão prática do homem. A questão moral parece assim, assumir o topo da crítica transcendental efetivada por Kant. A figura de Deus, que se viu nas obras de Kant ora assumida, ora criticada, desde o período pré-crítico na História Geral da Natureza, em O Único Argumento, e que fora 28


criticada duramente como uma ilusão da razão na primeira Crítica, reaparece como pressuposto da subjetividade transcendental. Parece-nos, então, que não seria equivocado investigar se a filosofia de Kant permite pensar uma relação entre o homem e Deus, para o que, seria necessário salvaguardar o domínio da autonomia, tanto quanto a nova localização que a teologia recebe no sistema crítico.

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VI - Kant: sobre Deus! Na próxima vez que a T. me perguntar qual é o pensamento de Kant sobre Deus terei de conhecer este texto da Crítica da Razão Pura: "A felicidade é o estado de um ser racional no mundo no qual em toda a sua existência tudo está de acordo com o seu desejo e vontade, e depende, portanto, da harmonia da natureza com todo o seu fim, tal como com o princípio determinante essencial da sua vontade. Ora, a lei moral, enquanto lei da liberdade, tem autoridade através da determinação de princípios que são para ser totalmente independentes da natureza e da sua harmonia com a nossa faculdade do desejo (enquanto incentivos); o ser racional atuante no mundo não é também, contudo, a causa do mundo e da natureza em si. Consequentemente, não há qualquer fundamento, na lei moral, para a existência de uma conexão necessária entre a moralidade e felicidade proporcional de um ser que pertence ao mundo como sua parte e portanto dele dependente, e que por essa razão não pode, pela sua vontade, ser uma causa desta natureza e, no que respeita à sua felicidade, não pode pelos seus próprios poderes fazê-lo harmonizar-se completamente com os seus princípios práticos". Contudo, na tarefa prática da razão pura, isto é, na procura necessária do bem supremo, tal conexão é postulada como necessária: temos o dever de tentar promover o bem supremo (que tem portanto de ser possível). Assim, a existência de uma causa de toda a natureza, distinta da natureza, que contenha o fundamento desta conexão, a saber, a correspondência exata da felicidade com a moralidade, é também postulada. Contudo, esta causa suprema há-de conter o fundamento da correspondência da natureza não apenas com uma lei da vontade de seres racionais, mas também com a representação desta lei, na medida em que fizerem dela o fundamento supremo e determinante da vontade, e consequentemente não apenas com a forma da sua moral mas também com a sua moralidade enquanto seu fundamento determinante, isto é, com a sua disposição moral. Logo, o bem supremo do mundo só é possível na medida em que se pressuponha uma causa suprema da natureza que tenha uma causalidade em harmonia com a disposição moral. Ora, um ser capaz de ações de acordo com a representação de leis é uma inteligência (um ser racional), e a causalidade de tal ser de acordo com esta representação de leis é a sua vontade. Logo, a causa suprema da natureza, na medida em que tem de ser pressuposta para o bem supremo, é um ser que é a causa da natureza pelo entendimento e vontade (logo, o seu autor), isto é, 30


Deus. Consequentemente, o postulado da possibilidade do bem supremo derivado (o melhor mundo) é igualmente o postulado da realidade de um bem supremo original, nomeadamente da existência de Deus. Ora, era para nós um dever promover o bem supremo; logo, há em nós não apenas a justificação mas também a necessidade, como uma carência conectada ao dever, de pressupor a possibilidade deste bem supremo que, dado que só é possível sob a condição de existir Deus, conecta o pressuposto da existência de Deus inseparavelmente com o dever; isto é, é moralmente necessário pressupor a existência de Deus. Deve-se ter em atenção que esta necessidade moral é subjetiva, isto é, uma carência, e não objetiva, isto é, em si um dever; pois não pode haver o dever de pressupor a existência de seja o que for (dado que isto apenas diz respeito ao uso teórico da razão). Acresce que não se deve pensar que é necessário pressupor a existência de Deus como um fundamento de toda a obrigação em geral (pois, como foi suficientemente mostrado, esta repousa unicamente na autonomia da própria razão). O que pertence ao dever aqui é apenas o empenho em produzir e promover o bem supremo no mundo, cuja possibilidade pode portanto ser postulada, dado que para a nossa razão isto só é pensável sob o pressuposto de uma inteligência suprema; pressupor a existência desta inteligência suprema está assim conectado com a consciência do nosso dever, apesar de este pressuposto pertencer à razão teórica; com respeito apenas à razão teórica, enquanto um fundamento da explicação, pode chamar-se hipótese; mas em relação à inteligibilidade de um objeto que nos é dado pela lei moral (o bem supremo), e consequentemente de uma carência para propósitos práticos, pode chamar-se fé e, efetivamente, uma fé racional pura dado que a razão pura só por si (tanto no seu uso teórico como prático) é a fonte na qual tem origem."

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VII - Immanuel Kant: Deus como postulado da razão prática A felicidade é o estado de um ser racional no mundo no qual em toda a sua existência tudo está de acordo com o seu desejo e vontade, e depende, portanto, da harmonia da natureza com todo o seu fim, tal como com o princípio determinante essencial da sua vontade. Ora, a lei moral, enquanto lei da liberdade, tem autoridade através da determinação de princípios que são para ser totalmente independentes da natureza e da sua harmonia com a nossa faculdade do desejo (enquanto incentivos); o ser racional atuante no mundo não é também, contudo, a causa do mundo e da natureza em si. Consequentemente, não há qualquer fundamento, na lei moral, para a existência de uma conexão necessária entre a moralidade e felicidade proporcional de um ser que pertence ao mundo como sua parte e portanto dele dependente, e que por essa razão não pode, pela sua vontade, ser uma causa desta natureza e, no que respeita à sua felicidade, não pode pelos seus próprios poderes fazê-lo harmonizar-se completamente com os seus princípios práticos. Contudo, na tarefa prática da razão pura, isto é, na procura necessária do bem supremo, tal conexão é postulada como necessária: temos o dever de tentar promover o bem supremo (que tem portanto de ser possível). Assim, a existência de uma causa de toda a natureza, distinta da natureza, que contenha o fundamento desta conexão, a saber, a correspondência exacta da felicidade com a moralidade, é também postulada. Contudo, esta causa suprema há-de conter o fundamento da correspondência da natureza não apenas com uma lei da vontade de seres racionais, mas também com a representação desta lei, na medida em que fizerem dela o fundamento supremo e determinante da vontade, e consequentemente não apenas com a forma da sua moral mas também com a sua moralidade enquanto seu fundamento determinante, isto é, com a sua disposição moral. Logo, o bem supremo do mundo só é possível na medida em que se pressuponha uma causa suprema da natureza que tenha uma causalidade em harmonia com a disposição moral. Ora, um ser capaz de ações de acordo com a representação de leis é uma inteligência (um ser racional), e a causalidade de tal ser de acordo com esta representação de leis é a sua vontade. Logo, a causa suprema da natureza, na medida em que tem de ser pressuposta para o bem supremo, é um ser que é a causa da natureza pelo entendimento e vontade (logo, o seu autor), isto é, Deus. Consequentemente, o postulado da possibilidade do bem supremo derivado (o 32


melhor mundo) é igualmente o postulado da realidade de um bem supremo original, nomeadamente da existência de Deus. Ora, era para nós um dever promover o bem supremo; logo, há em nós não apenas a justificação mas também a necessidade, como uma carência conectada ao dever, de pressupor a possibilidade deste bem supremo que, dado que só é possível sob a condição de existir Deus, conecta o pressuposto da existência de Deus inseparavelmente com o dever; isto é, é moralmente necessário pressupor a existência de Deus. Deve-se ter em atenção que esta necessidade moral é subjetiva, isto é, uma carência, e não objetiva, isto é, em si um dever; pois não pode haver o dever de pressupor a existência de seja o que for (dado que isto apenas diz respeito ao uso teórico da razão). Acresce que não se deve pensar que é necessário pressupor a existência de Deus como um fundamento de toda a obrigação em geral (pois, como foi suficientemente mostrado, esta repousa unicamente na autonomia da própria razão). O que pertence ao dever aqui é apenas o empenho em produzir e promover o bem supremo no mundo, cuja possibilidade pode portanto ser postulada, dado que para a nossa razão isto só é pensável sob o pressuposto de uma inteligência suprema; pressupor a existência desta inteligência suprema está assim conectado com a consciência do nosso dever, apesar de este pressuposto pertencer à razão teórica; com respeito apenas à razão teórica, enquanto um fundamento da explicação, pode chamar-se hipótese; mas em relação à inteligibilidade de um objeto que nos é dado pela lei moral (o bem supremo), e consequentemente de uma carência para propósitos práticos, pode chamar-se fé e, efetivamente, uma fé racional pura dado que a razão pura só por si (tanto no seu uso teórico como prático) é a fonte na qual tem origem. Crítica da Razão Prática, 1788, pp. 5:125-126

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VIII - A Ética Kantiana Na Crítica da razão prática, Kant faz o exame do comportamento moral. Em suas investigações prévias acerca do conhecimento, ele negou a possibilidade de conhecermos realidades que não passam pelo conhecimento sensível. Para Kant, portanto, não e possível dizer nada sobre a alma humana e sobre Deus, pois eles ultrapassam a nossa. capacidade de entendimento. Isso colocou um problema em relação à tradição moral, até então alicerçada na existência de Deus. Sendo impossível provar a existência ou não de Deus, Kant fundamentou a moral na autonomia da razão humana, isto é, na idéia de que as normas morais devem surgir da razão humana.

Dessa forma ele recusou todas éticas anteriores, fundamentadas normas e valores de origens diversas (as éticas heterônomas, ou seja, vindas de fora do sujeito, impostas por outras fontes que não a razão).

Vejamos como Kant chega a conclusão.

Ele entende que a razão é característica universal dos seres humanos, sendo a característica propriamente humana, que nos distingue dos outros seres da natureza. Assim, para impedir que os indivíduos se deixem levar pelos seus desejos paixões ou motivos particulares, é a razão que deve indicar quais são os deveres e normas a serem seguidos de uma forma universal.

Com isso Kant quer dizer que, ao agirmos, devemos pensar se aquilo que estamos fazendo poderia ser feito também, por todas as outras pessoas, sem prejuízo para a humanidade. Essa deve ser uma orientação para nos guiar nos momento de decisão. 34


Para Kant, também, o fundamental na avaliação de uma conduta moral é a intenção de quem a praticou, independentemente dos efeitos que tal conduta possa vir a provocar. E a melhor intenção é aquela que se volta para o cumprimento do dever, uma vez que, para o filósofo, o dever tem a sua origem em um princípio racional.

Quando uma orientação é elevada à forma de um dever, é porque os homens, no uso de sua razão, entendem que aquela orientação é uma necessidade racional e, por isso mesmo, universal. Agir de acordo com o dever é, em última análise, agir de acordo com os princípios racionais. A formação da vontade conforme a razão é que produz a qualidade moral das ações humanas. Mas não basta, para uma ação ser considerada moralmente boa, que ela esteja de acordo com o dever. É preciso mais do que isso: é necessário que ela seja feita por dever. Ou seja, é necessário não apenas que a ação se conforme ao dever, mas também que o indivíduo reconheça naquele dever o principio racional que o sustenta como tal.

Essa intenção bem determinada em relação à aceitação e ao cumprimento do dever é o que ele designa boa vontade. Para Kant, a boa vontade é o que caracteriza a ação moralmente correta.

E onde fica então a liberdade do indivíduo?

Kant dirá: "A liberdade é a condição da lei moral". O que eqüivale a dizer que só pode ser considerada uma ação moral aquela que for realizada de forma livre e autônoma. Sem liberdade, não há ação verdadeiramente moral.

Ora, como conciliar essa ação livre com o respeito ao dever?

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Kant responde a essa questão propondo uma concepção de liberdade que coincide com o atendimento ao dever, pois para ele a liberdade seria uma possibilidade advinda da razão, a qual nos liberta dos caprichos e inclinações próprios dos sentidos. Dessa forma, embora a liberdade humana seja uma questão problemática no âmbito da razão pura (já que não se pode provar a sua existência ou não), Kant a coloca como uma exigência da moralidade. Do mesmo modo, as idéias da existência de Deus e da imortalidade da alma são necessidades morais do homem. A ética kantiana é, portanto, uma ética formalista (ela não fornece os conteúdos morais, apenas o imperativo categórico que deve servir como orientação na escolha desses conteúdos), baseada em uma antropologia racionalista, ou seja, na concepção de uma natureza humana racional e livre. A importância de Kant para a filosofia é enorme, sendo um dos filósofos que mais influenciam o pensamento contemporâneo, seja nas áreas do conhecimento, da moral ou a estética.

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03 – Schopenhauer Arthur Schopenhauer. Nasceu em Danzig (na época uma cidade livre do báltico) em 22 de Fevereiro de 1788, morreu em Frankfurt em 21 de Setembro de 1860. Filósofo alemão do século XIX.

IX - Schopenhauer: A Dor

Se quereis a certeza das diferenças entre o prazer e a dor, comparem a impressão do animal que devora outro, com a impressão do devorado. SCHOPENHAUER

A VIDA É DOR Quem deseja, sofre; quem vive, deseja; a vida é dor. Quanto mais elevado é o espírito do homem, mais sofre. A vida não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de sermos vencidos. A vida é uma incessante e cruel caçada onde, às vezes como caçadores, outras como caça, disputamos em horrível carnificina os restos da presa. A vida é uma história da dor, que se resume assim: sem motivo queremos sofrer e lutar sempre, morrer logo, e assim consecutivamente durante séculos dos séculos, até que a Terra se desfaça. DEUS, CRIADOR Se é certo que um Deus fez este mundo, não queria eu ser esse Deus: as dores do mundo dilacerariam meu coração. Se imaginássemos um demônio criador, ter-se-ia o direito de lhe censurar, mostrando-lhe a sua obra: "Como te atreves a perturbar o sagrado repouso do nada, para criares este mundo de angústia e de dores?" 37


NOSSO INFERNO O inferno de nossa vida supera o de Dante no ponto de que cada um de nós é o demônio do seu vizinho. Há também um arquidemônio, a quem os outros obedecem: é o conquistador, que dispõe os homens uns em frente dos outros e lhes grita: "Vosso destino é sofrer e morrer; portanto, matem-se mutuamente". E assim procedem os homens.

O MELHOR DOS MUNDOS Se mostrássemos aos homens as horríveis dores e os atrozes tormentos a que está constantemente exposta sua existência, tremeriam de espanto; e se ao mais convencido otimista fizéssemos visitar os hospitais, os lazaretos, as salas de tortura dos cirurgiões, as prisões, os campos de batalha, os tribunais de justiça, os sombrios refúgios da miséria, e se por último, o fizéssemos contemplar a torre de Ugolino, acabaria por reconhecer de que modo é este "o melhor dos mundos possíveis".

NOSSO MUNDO, MODÊLO DE HORRORES Se considerarmos a dificuldade que teve Dante em descobrir o céu e suas alegrias, logo se verá que classe de mundo é o nosso. Por quê? Porque o nosso mundo nada apresenta de análogo. E para descrever o Paraíso viu-se o poeta obrigado a dar parte das notícias que lhe deram os seus antepassados, sua Beatriz e vários santos. Sem dúvida, Dante descobriu muito bem o Inferno. Por quê? Porque achou o assunto e o modelo na realidade do nosso mundo.

A TRAGICOMÉDIA DE NOSSA VIDA Vista e examinada minuciosamente de alto e de longe, a vida de cada homem tem o aspecto de uma comédia; em sua total consideração ou em seus aspectos mais dignos de apreço, se apresentará como uma contemplação trágica. O afã e o trabalho de cada dia, os desejos e receios cotidianos, as desgraças de cada hora, os acasos da sorte sempre disposta a nos enganar são outras tantas cenas da comédia.

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As aspirações iludidas, as ilusões desfeitas, os esforços baldados, os êrros que completam nossa vida, as dores que se acumulam até terminar na morte, o último ato, eis a tragédia. Parece que o destino quis juntar o escárnio ao desespero, e, fazendo de nossa vida uma tragédia, não nos permite conservar a dignidade de uma personagem trágica. Por isso é que em todos os atos da vida representamos o lamentável papel de cômicos.

DA DOR AO ABORRECIMENTO A dor e o aborrecimento são os dois últimos elementos entre os quais oscila a vida do homem. Os homens exprimiram esta oscilação de modo curiosa; depois de haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e dores, que deixaram para o céu? justamente o aborrecimento.

RIO ABAIXO A vida é um mar cheio de escolhos e turbilhões que o homem evita à fôrça de prudência e cuidados, sem embora desconhecer q ue, à medida que avança sem poder retardar a marcha, corre para o definitivo e inevitável naufrágio, a morte, fim fatal de sua acidentada navegação, é parte ele muito mais perigoso que todos os turbilhões e escolhos de que conseguiu escapar. DISFARCES DA DOR Nossos esforços para banir a dor de nossa vida não conseguem outro resultado senão o de fazê-la mudar de forma. Em sua origem tomam o aspecto da necessidade, cuidado, para atender as coisas materiais da vida, e quando, após um trabalho incessante e penoso, conseguimos afastar a horrível máscara da dor neste determinado aspecto, adquire outros mil disfarces, segundo a idade e as circunstâncias: o instinto sexual, o amor apaixonado, a inveja, o rancor, os ciúmes, a ambição, a avareza, o temor, a enfermidade, etc. Toma o aspecto triste e desolado do tédio, da sociedade, quando não encontra outro modo de se apresentar. E se com novas armas conseguimos afastá-la novamente, recuperará sua antiga máscara, e a dança recomeça.

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CONDENADOS À MORTE Na primeira mocidade, colocamo-nos perante o destino, como as crianças, que, em frente ao pano de um teatro, impaientes e alegres, esperam as maravilhas que virão surgir em cena. É uma felicidade não podermos saber nada de antemão. Para quem sabe o que realmente vai se passar, as crianças são inocentes condenados não à morte, mas à vida, e que desconhecem ainda a sua sentença.

TODOS DESTERRADOS Se não fosse a dor, poderíamos dizer que a nossa existência no mundo não teria nenhuma razão de ser. É um absurdo pensar que a dor, que nasce da vida e enche o mundo, seja apenas um acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça pessoal apresenta-se com uma exceção, mas, como somos todos desgraçados, a desgraça geral é a regra. VIVEMOS COMBATENDO Na desgraça, pensar em outros que são mais desgraçados, é o nosso maior consolo: é este o remédio eficaz ao alcance de todos. Porém, como os carneiros, que saltam no prado, enquanto o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, assim, em nossas horas felizes, não sabemos que desastre nos prepara o destino, justamente nesse momento: enfermidade, ruína, loucura, perseguições, etc. Tudo que defendemos, resiste-nos, tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. A história nos diz que a vida dos povos é uma sucessão de guerras e revoltas; os anos de paz não passam de curtos entreatos. O mesmo acontece com a vida do homem, em constante luta contra as penas ou o aborrecimento, males abstratos, e contra seus semelhantes. Em todas, as partes e ocasiões temos que travar combate com um adversário. A vida é uma guerra sem quartel, e a morte nos encontra com as armas na mão. O TEMPO, MAIS UM TORMENTO A rapidez do tempo, que se conserva atrás de nós como um vigia dos forçados, é mais um tormento da existência, que nos faz viver apressadamente sem sossego e sem deixar-nos respirar.

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São poupados semente aqueles que o tempo condenou ao aborrecimento.

NECESSIDADE DA DOR Todos nós necessitamos sofrer certo número de preocupações, de penas e misérias, da mesma maneira que um barco tem necessidade de lastro para conservar seu equilíbrio. Se assim não fosse, se súbito nos libertássemos do peso da dor e das contrariedades,o orgulho do homem o faria em bocados ou pelo menos ele seria levado às maiores irregularidades e até à loucura furiosa, do mesmo modo que o nosso corpo rebentaria se repentinamente deixasse de sentir a pressão atmosférica. O quinhão de quase todos os homens durante sua vida resume-se em pesares, trabalho e miséria, porém, se todas as aspirações humanas se realizassem, como que se preencheria o tempo? O que preencheria sua vida? Se os homens vivessem no país das fadas, onde nada exigisse esforço e onde as perdizes voassem já assadas e recheadas ao alcance da mão, num país, onde cada um pudesse obter a sua amada sem dificuldade alguma, eles morreriam de tédio ou se enforcariam, outros despedaçar-se-iam entre si, causando-se maiores males que os impostos pela natureza. E isto demonstra que para nós não há melhor cenário que aquele que ocupamos, nem melhor existência do que a atual. Se pensamos (e só é possível ter-se uma idéia aproximada) na dor, nos tormentos de todas as espécies que o sol ilumina no seu curso, sentimo-nos propensos a desejar que a sua luz perca o poder criador da vida, como acontece com a Lua, e que a superfície do nosso planeta se faça tão gelada e estéril como a do astro da

noite. A GRANDE MENTIRA DA VIDA Nossa vida é um episódio que perturba, sem nenhuma utilidade, a serenidade

do nada. Mesmo aquele que não considera a existência como uma carga, à medida que passam os anos tem a consciência clara do que a vida é, em todos os seus aspectos, uma imensa mistificação, para não dizer uma formidável zombaria.

O ESPECTADOR SE ABORRECE

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O homem que sobrevive a duas ou três gerações pode ser comparado ao espectador de um circo, que assiste às mesmas farsas duas ou três vezes seguidas. Como a farsa estava calculada para uma única representação sua repetição não causa efeito no ânimo do espectador, o qual se aborrece por estarem dissipadas a ilusão e a novidade. UMA BELA EXPRESSÃO A vida é uma carga enfadonha e aborrecida, uma tarefa que devemos desempenhar com tanto trabalho, que involuntariamente pensamos no descanso: e neste sentido a palavra defunctus é uma bela expressão.

VITIMAS E ALGOZES Povoado por almas torturadas e por diabos que torturam, o mundo é um imenso inferno.

A FILOSOFIA NÃO É O CATECISMO Ainda ouvirei dizer que a minha filosofia entristece tudo, isto porque digo a verdade àqueles que só gostariam que eu lhes dissesse: "Deus, Nosso Senhor fez tudo muito bem". Ide à igreja, e deixai os filósofos em paz, ou, pelo menos, não lhes exijam que ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo.

Recorrei aos filosofastros e

encomendai-lhes teorias ao vosso gosto. Não há nada que dê mais prazer ou que seja mais fácil do que perturbar o otimismo dos que ensinam filosofia. A DOR DE VIVER Se o ato da geração fosse somente obra de razão e reflexão, em vez de ser uma necessidade ou uma voluptuosidade, subsistiria a espécie humana? Não sentiríamos piedade pela geração futura, para lhe poupar a dor de viver, ou, ao menos, não hesitaríamos em impor-lhe a sangue frio tão pesada carga? INVEJA E COMPAIXÃO Não há uma só pessoa que seja verdadeiramente digna de inveja; e quantas são dignas de compaixão.

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PRANTO, DOR E ABORRECIMENTO Nossa razão se obscurece ao considerarmos que as inúmeras estrelas fixas, que brilham no céu, não têm outro fim senão o de iluminar mundos onde reinam o pranto, a dor, e onde, no melhor dos casos, só vinga o aborrecimento; pelo menos a julgar pela amostra que conhecemos. O MUNDO, LUGAR DE EXPIAÇÃO Brama criou o mundo por uma espécie de pecado ou desvario, e permanece nele para expiar sua falta. - Muito bem! - Segundo o budismo, uma perturbação inexplicável criou o mundo, produzindo-se depois um longo repouso na beatitude serena, chamada Nirvana, que será conquistada pela penitência. Perfeitamente. Para os gregos o mundo e os deuses eram a obra de uma necessidade insondável, explicação admissivel, porque nos satisfaz provisoriamente. Ormuzd combate com Ariman: isto podemos admitir. Mas um Deus como esse Jeová, que animi causa, por seu bel-prazer, criou este mundo de lágrimas e dores, e que ainda se alegra e se aplaude de o haver criado, achando-o bom, isso já é demasiado forte. Sob este ponto de vista, podemos considerar a doutrina dos judeus como a última entre todas as que professam os povos civilizados, sobretudo, sendo que tomemos em consideração de ser ela a única que não possui qualquer vestígio de imortalidade. Ainda que a teoria de Leibnitz fosse verdadeira, embora se admitisse que entre os mundos possíveis este é o melhor, essa demonstração não nos daria nenhuma teodicéia, porque o Criador não se limitou a criar o mundo, mas também a possibilidade de sua criação: por isso deveria ter criado um mundo melhor. A dor que enche o mundo protesta irada contra a hipótese de uma obra perfeita devida a um ser infinitamente bom e sábio, e também todo poderoso. E, por outra parte, é bem evidente a notória imperfeição, a burlesca caricatura que é o homem, obra acabada da criação. Não é possível explicar essa dissonância. Quando consideramos o mundo como obra de nossa própria culpa, e, portanto, como alguma coisa que não pode ser melhor, as dores e miséria da humanidade são provas em apoio desta tese. Se o mundo é obra de um criador, as dores voltam-se contra ele dando lugar a cruéis sarcasmos; mas se é obra nossa, a acusação é contra o nosso ser e a nossa vontade. Isto nos faz pensar que viemos ao mundo já viciados, como os filhos de pais gastos pelos desregramentos, e que se a nossa existência é tão miserável, e tem por 43


desfecho a morte, é porque assim merecemos, para expiar nossa culpa. Generalizando, nada é mais certo: a culpa do mundo é que causa os sofrimentos, e entendemos esta relação no sentido metafórico, e não no físico e empírico. Por isso, a história do pecado original reconcilia-me com o Antigo Testamento; para mim é a única verdade metafísica que o livro contém,- expressa em forma alegórica. A nada se assemelha tanto nosso destino como à conseqüência de uma falta, de um desejo culpado. Para ter orientação na vida, e considerar a vida em seu verdadeiro aspecto, basta habituarmo-nos ao pensamento de que este mundo é um vale de lágrimas, em lugar de penitência; a penal colony, como a definiram os mais antigos filósofos, e alguns padres da Igreja. (Santo Agostinho, De civit, Dei; o que em todas as épocas o confirma o bramanismo, o budismo, Empédocles e Pitágoras. Cícero, em sua "Fragmenta de filosofia" conta, que nas antigas iniciações dos mistérios se ensinava: nos ob aliqua scelera suscepta in vita superiores poenarum luendarum causa natos esse. O verdadeiro cristão considera a vida como a conseqüência de uma falta, de uma culpa, de uma queda. Se nos habituássemos a essa idéia, não pediríamos à vida senão o que ela nos pode dar: receberíamos resignados, como uma lógica, as dores, os contratempos e desenganos que o mundo nos oferece, pois sabemos que aqui estamos para suportar a pena de viver, a que nos condenaram. Vanini, que achara mais fácil queimar que refutar, diz: Tot, tantísque homo, re letus miseriis, ut si christianae religioni non repugnarei, dicere auderem: si daemonis dantur, ipsi, in hominum corpora transmigrantes, sceleris poenas luunt. (De admirandi naturac arcanis). Não é mister que eu diga o que vale a sociedade de nossos semelhantes; aqueles estão conscientes que mereciam outra melhor, assim como se sabe que não é a menor pena do presidiário a sociedade em que ele se encontra. Um espírito elevado, uma alma delicada, um gênio pode sentir a mesma necessidade de isolamento que um nobre prisioneiro que se encontra na cadeia rodeado de criminosos vulgares. Se sempre nos lembrássemos de que viemos ao mundo para expiar uma culpa, acolheríamos sem surpresa e sem indignação as imperfeições de nossos semelhantes, os tormentos que aqui sofremos, cuja miserável constituição intelectual e moral se revela até no rosto. A certeza de que o mundo e o homem não podem mudar nos encheria de dó pelo próximo. Com efeito, que podemos esperar de tais seres?

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Penso, às vezes, que a melhor maneira dos homens se cumprimentarem em vez de ser "Cavalheiro, Senhor, Sir", poderiam ser, "companheiro de sofrimentos, soci malorum, my fellow-sufferer"... Por mais irritante que pareça esta expressão, tem mais fundamento que as usuais, e recorda-nos a paciência, indulgência e amor ao próximo, e, usada por todos, beneficiaria a cada um. A DOR É A ÚNICA POSITIVA Do mesmo modo que o rio corre manso e sereno, enquanto não encontra obstáculos que se oponham à sua marcha, assim corre a vida do homem quando nada se lhe opõe à vontade. Vivemos inconscientes e desatentos: nossa atenção desperta no mesmo instante em que nossa vontade encontra um obstáculo e choca-se contra ele. Sentimos ato contínuo tudo o que se ergue contra a nossa vontade, tudo o que a contraria ou lhe resiste: ou o que é mesmo, tudo o que nos é penoso e desagradável. No entanto, não prestamos atenção à saúde geral do nosso corpo, mas percebemos ligeiramente aonde o sapato nos molesta; não pensamos nos negócios e só nos importamos com uma ninharia que nos incomoda. Isto quer dizer que o bemestar e a felicidade são valores negativos, e só a dor é positiva. É um absurdo acreditar o contrário; que o mal é negativo. Ele é positivo, porque se faz sentir. Toda a felicidade, todo o bem é negativo, e toda a satisfação também o é, porque suprime um desejo ou termina um pesar. Acrescentamos a isto que, em geral, nunca sentimos uma alegria maior que a que sonhávamos, e que a dor sempre a excede. Se quereis certeza das diferenças entre o prazer e a dor, comparem a impressão do animal que devora outro, com a impressão do devorado.

BOLHAS DE SABÃO O homem só vive no presente, que se converte no passado, e afunda-se na morte. Exceto as conseqüências que podem influir no presente, e que são filhas de sua vontade, ou de seus atos, a sua vida passada já não existe. Devia portanto serlhe indiferente que este passado fosse de prazeres ou tristezas. O presente foge-lhes das mãos, transformando-se no passado. O futuro é incerto. 45


Fisicamente, o andar não é mais do que uma queda evitada a cada instante; da mesma maneira a existência é a morte suspensa, adiada, e a atividade de nosso espírito não é mais que uma luta constante contra o tédio. É pois fatal que a morte alcance a vitória. Por haver nascido lhe pertencemos, e durante nossa vida não faz senão brincar com a presa antes de a devorar. E assim como quem faz bolhas de sabão, e apesar da segurança de que acabará por rebentar, se entretém em fazê-la aumentar de volume, assim seguimos o curso de nossa existência, prodigalizando-lhe cuidados e atenções.

A FELICIDADE NÃO PODE VIVER NO PRESENTE A vida é uma constante mentira, quer nas coisas pequenas como nas grandes. Quando nos faz uma promessa, não a cumpre, a não ser para mostrar-nos que era pouco desejável o nosso desejo. Da mesma maneira nos engana a esperança quando não se realiza o que esperávamos. E se a vida cumpre o que nos prometeu, é só para nos tornar a tirar. A beleza do paraíso, que à distância admiramos, desaparece logo que nos deixamos seduzir. A felicidade está no futuro, ou no passado; o presente é uma pequena nuvem escura que o vento impele sobre a planície cheia de sol. Diante e atrás dela, tudo é luminoso; só a nuvem é que projeta uma sombra.

A VIDA NA PAZ E NA GUERRA, E SUA FINALIDADE A vida nunca se apresenta como um mimo que nos é dado gozar, mas sim como uma tarefa que tem de se cumprir à força de trabalho; disto nasce e toma origem uma concorrência sem tréguas, uma luta sem fim, uma miséria geral, uma agitação em que tomam parte todas as forças do espírito e do corpo. Milhões de homens, reunidos em nações, trabalham para o bem público, trabalhando assim cada um em seu próprio interesse, porém, as vítimas deste trabalho morrem aos milhares. Às vezes, por preconceitos absurdos, outras, por uma política sutil, as nações se aniquilam numa guerra. É preciso que o sangue do povo corra em abundância para expiar a culpa de alguns, ou para realizar os caprichos de outros. Enquanto reina a paz no mundo, a indústria e o comércio prosperam, as invenções se multiplicam, os navios sulcam os mares, transportando para toda parte produtos do mundo, as ondas tragam milhares de homens. O tumulto é imenso, enquanto uns se agitam e movem, outros meditam. 46


Mas qual é a suprema finalidade de tantos esforços? Manter, no caso mais favorável, a vida de seres efêmeros em uma miséria suportável, e uma ausência relativa de dor que o tédio aceita constantemente, e ademais a reprodução destes seres, e a renovação de seus esforços. INDEFESA DO HOMEM De todos os seres, o homem é o mais necessitado: só tem vontades e desejos, um conjunto de centenas de necessidades. Abandonando a si próprio, vive na terra sem segurança nenhuma a não ser sua miséria. A luta pela vida, cada dia renovada, a necessidade que o constrange, e as imperiosas exigências materiais, preenchem a sua existência. Ao mesmo tempo, outro instinto o atormenta; o de perpetuar a sua raça. Ameaçado por todos os lados pelos perigos que o rodeiam, usa de sua prudência sempre vigilante para poder escapar. Com passo inquieto, lançando em volta olhares angustiosos, segue o seu caminho em luta constante com os casos e com seus inúmeros inimigos. O homem não se sente seguro entre os da sua raça e nem nos mais longínquos desertos.

Qualibus in tenebris vitae, quantisque periclis degitur hocc'aevi, quodcunque est! Lucr. 11, 15. TRABALHAR OU ABORRECER-SE A necessidade imperiosa do homem é assegurar a existência, e feito isto, já sabe o que fazer. Portanto, depois disso, o homem se esforça para aliviar o peso da vida, torná-la agradável e menos sensível: "matar o tempo", isto é, fugir ao aborrecimento. Livres da preocupação de assegurar a existência, e livres seus ombros de todo fardo moral ou material, eles mesmos constituem sua própria carga, e sentem-se felizes porque viveram uma hora desapercebida, embora isto significa que sua vida a qual se esforçam com tanto zelo para prolongá-la, ficou encurtada pelo mesmo espaço de tempo. O aborrecimento merece tê-lo em conta; ele se reflete na fisionomia. O aborrecimento é a origem do instinto social, porque faz com que os homens, que pouco se amam, se procurem e se relacionem. O Estado considerado como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para o combater.

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O aborrecimento como o seu extremo oposto, a fome, pode impelir o homem aos maiores desvarios; o povo precisa panem et circenses. Fundado na solidão e na inatividade, o rude sistema penitenciário de Filadélfia faz do aborrecimento um instrumento de suplício tão terrível, que mais de um condenado tem-se suicidado para fugir a ele. A miséria é sofrimento pungente do povo; o desgosto é para os favorecidos. Na vida civil, o domingo significa o tédio, e os seis dias, o desgosto

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X - A Felicidade é Um Sonho Sentimos a dor, mas não a ausência da dor; sentimos a inquietação mas não a ausência; o temor, mas não a tranquilidade. Sentimos o desejo e a aspiração, como sentimos a sede e a fome; mas, apenas satisfeitos, se acabam, como o bocado que, uma vez engolido, já não existe para o nosso paladar. Enquanto possuamos os três maiores bens da vida, saúde, mocidade e liberdade, não temos consciência deles, e só com a perda deles é que os apreciamos, porque são bens negativos. Somente os dias de tristeza é que nos fazem recordar as horas felizes da vida passada. À medida que os prazeres aumentam, nossa sensibilidade diminui; o hábito já não é um prazer. As horas passam lentamente quando estamos tristes; correm rapidamente quando são agradáveis; porque a dor é positiva e faz sentir sua presença. O aborrecimento nos dá a noção do tempo e a distração nos faz esquecer. lsto prova que a nossa existência é mais feliz quando menos a sentimos: de onde se deduz que mais feliz seríamos se nos livrássemos dela. Uma grande alegria, assim não a julgaríamos se ela não viesse atrás de uma grande dor. Não podemos atingir um estado de alegria serena e duradoura. Esta é a razão porque os poetas são obrigados a rodear seus protagonistas de tristes ou perigosas circunstâncias, para no fim os livrar delas. No drama e na poesia épica, o herói sofre mil torturas: nos romances os heróis lutam pondo em relevo os tormentos do coração humano. "A felicidade não passa de um sonho - dizia Voltaire, tão favorecido pelo destino? - a única realidade é a dor". E acrescenta: "Há oitenta anos que a experimento e nada faço senão resignarme e dizer a mim mesmo que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, e os homens para serem devorados pelos desgostos". O ETERNO ESTRIBILHO Vista exteriormente assombra a insignificância da vida da maioria dos homens, vista interiormente é sinistra e lúgubre. Formada por inúmeras dores e aspirações impossíveis, o homem passa sonhando pela meninice, mocidade, virilidade e velhice, rodeado de idéias banais.

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Os homens assemelham-se a relógios que não sabem porque andam: cada vez que um novo ser nasce, dá-se corda no relógio da vida humana para seguir repetindo o eterno e gasto estribilho de uma caixa de música, frase por frase, compasso por compasso, com pequenas variações. JOGUETES DA NATUREZA O homem, cada um dos homens, é um sonho a mais, um sonho fugaz criado pela tenaz e constante vontade de viver, imagem efêmera que o espírito infinito da natureza desenha na página do tempo e do espaço; impressa nela alguns instantes logo se desfaz para dar lugar a muitas outras. O mais triste, o ponto que nos deve fazer pensar profundamente, é que a vontade de viver há de pagar cada uma dessas imagens efêmeras e caprichosas com o preço de dores profundas e inúmeras, e da morte por longos anos. Eis porque nos tornamos repentinamente sérios perante um cadáver. O TEATRO E OS ARTISTAS O mundo é um vasto campo de batalha onde os seres somente devorando-se uns aos outros conseguem conservar e defender a vida; onde todo animal carnívoro é o túmulo vivo de tantos outros; onde o viver significa sofrer longos tormentos; onde a capacidade para a dor aumenta na proporção da inteligência, e atinge, portanto, no homem o mais elevado grau. Os otimistas quiseram adaptar o mundo ao seu sistema, e apresentá-lo a priori como o melhor dos mundos possíveis. O absurdo é evidente. Dizem-me para abrir os olhos e contemplar a beleza do céu iluminado pelo sol, as montanhas, os vales, as torrentes, as plantas, os animais, que sei eu! Acaso será o mundo uma lanterna mágica? A contemplação é bela, confesso, mas aí representar, é coisa completamente diferente. Após o otimista surge o homem que nos fala das causas finais, e elogia as sábias leis que preservam os astros de se chocarem no seu percurso; que evitam o mar e a terra de se confundirem, e os mantém separados; que faz com que nem o frio nem o calor sejam eternos, e que, pela inclinação da eclítica, não permite a primavera, ser eterna podendo assim amadurecer os frutos, etc. Mas tudo isso não são mais que simples conditiones sine quibus non. Porque se os planetas devem ter uma existência mais longa, embora seja o período que demora em chegar a eles a luz de uma estrela longínqua, e se não desaparecem após o nascimento, era preciso que as coisas 50


estivessem mal arquitetadas, para que a base fundamental ameaçasse ruína. Chegamos aos resultados desta obra tão elogiada, e observamos os atores que se movimentam nesta, tão sábia e solidamente construída. Vemos que a dor aparece juntamente com a sensibilidade, e à medida que esta se torna inteligente, a dor e o desejo caminham par a par, e o primeiro chega a tal desenvolvimento que finalmente, a vida do homem nada mais é que um assunto trágico ou cômico. A sinceridade de certos homens não lhes permite a união ao coro dos otimistas, e com eles entonar a aleluia.

A VIDA É UM PESADO GRACEJO Se considerarmos a vida objetivamente, é duvidoso que ela seja preferível ao nada. Atrever-me-ia até a dizer que se a reflexão e a experiência pudessem fazer um acordo, elevariam a voz em favor do nada. Se batêssemos nas pedras dos sepulcros e perguntássemos aos mortos se querem ressuscitar, moveriam negativamente a cabeça. É esta a opinião de Sócrates na Apologia de Platão. O alegre e feliz Voltaire dizia: "Amamos a vida, porém o nada não deixa de ter o seu lado bom". Em outra parte dizia: "Ignoro o que seja a vida eterna, mas esta é um pesado gracejo".

DE ONTEM A HOJE A juventude é uma infatigável aspiração de felicidade; a velhice, pelo contrário, é dominada por um vago e persistente sentimento de dor, porque já estamos nos convencendo que a felicidade é uma ilusão, que só o sofrimento é real. Por isso, o homem sensato deseja mais sofrer que gozar. Em plena juventude, quando eu ouvia bater à porta, saltava de alegria, e pensava: "Bom!Alguma coisa sucede". Mais tarde, experimentado pela vida, o mesmo ruído sobressaltava-me de angústia, e pensava: "Que sucederá, meu Deus?...

A DURA JORNADA Na velhice ao perder os sonhos da sua juventude todo homem que estudou a história do passado e a da sua época, e recolheu o fruto da sua experiência e da alheia, se não estiver com o espírito perturbado por preconceitos muito arraigados, chegará à conclusão de que este mundo é o reino do acaso e do erro, que é governado a seu modo sem compaixão alguma, auxiliados pela maldade e pela loucura, que ao homem empolgam constantemente. 51


Mil trabalhos e esforços é preciso para impor uma idéia nobre, porque dificilmente encontra uma oportunidade de apresentar-se, enquanto que a vulgaridade artística, os sofismas, a malícia e a astúcia reinam de geração em geração, aqui e alhures sem serem interrompidos.

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CONCLUSテグ Esperamos que o aluno ao concluir o estudo desta apostila possa estar capaz de refletir filosoficamente sobre temas da Fテゥ Cristテ」.

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