INVERTIDO NO AMOR Maximiliano Souza I Olhei entediado para o rosto enrugado da síndica que continuava fazendo o relatório do mês. Eu sempre lhe dizia para se ater apenas aos fatos, mas a criatura parecia achar relevante falar de cada briga de vizinhos e eu era obrigado a ficar atento aos assuntos mais importantes que porventura surgissem. Como se aquilo me interessasse. Danilo estava na outra ponta da mesa, analisando as contas do mês com um ar compenetrado, o longo cabelo preso em um rabo de cavalo, contrastando com a roupa social. Só se vestia daquele jeito quando estava trabalhando. Mas ainda era possível ver as unhas longas e bem cuidadas, as sobrancelhas desenhadas e outras coisas que lhe davam um ar bem andrógino. A mulher continuava falando. Ignorei aquela voz monótona e fiz uma leitura rápida do relatório escrito, marcando o que pareceu influenciar diretamente meu cotidiano. Só queria evitar problemas futuros. Depois a interrompi: ─ Dona Eliana, apenas faça a reunião para a escolha dos pisos com os locatários. Irei levar em consideração a opinião da maioria. Com relação ao elevador, os moradores que não cumprirem as regras referentes aos animais devem ser multados. Multe aqueles para quem já enviou a carta de advertência, se estão reincidindo. O mesmo para os que não estão cumprindo a regra do silêncio. ─ Isso pode não deixá-los muito satisfeitos... ─ Os que estiverem insatisfeitos podem vir rescindir o seu contrato a qualquer hora. Que se sintam livres para ir buscar um lugar com regras menos rígidas para morar. – Repliquei com mau humor. Agradeci ao fato de ter optado por só ter locatários. Se tivesse proprietários os problemas seriam maiores. Olhei no celular. ─ E quanto à sua parte, Danilo? Este me olhou por cima da papelada. ─ Vou verificar as empresas que mandaram o orçamento dos pisos primeiro. Depois te mando um e-mail. Disse sorrindo para a mulher que o olhou com a costumeira estranheza. Afinal, ela já o vira todo produzido em outras ocasiões, então devia ficar confusa em vê-lo vestido com roupas tão formais. Levantei-me dando por encerrada a reunião. ─ Mas ainda... – Balbuciou a mulher. ─ Tem algo mais? – Perguntei sério. Sempre havia mais. Imaginava se ela via em mim algum tipo de terapeuta de grupo. Mas era uma senhora esforçada e confiável com quem trabalhava há anos. ─ Ainda tem o problema da infiltração nos apartamentos... – Disse timidamente, à guisa de uma desculpa por não ter informado logo sobre um assunto tão importante. Resisti à vontade de suspirar alto. Tornei a me sentar, no que fui imitado por Danilo. ─ Você precisa aprender a ser mais paciente. – Recomendou Danilo enquanto caminhávamos em direção à saída do prédio. ─ Pelo contrário, ela que deveria aprender a ser mais direta.
Ele deu risada. ─ A pobrezinha resolve tudo sozinha e só pede sua atenção por uma única vez ao mês. Seja mais razoável. ─ Quer subir para comer alguma coisa? ─ Perguntei ignorando a recomendação. ─ Ah! Não! Hoje eu estou com a minha agenda cheia! Você fica reclamando dessas suas reuniõezinhas, mas hoje eu tenho de ir conversar com o Mister H. – Disse fazendo uma careta. ─ O que o seu avô quer dessa vez? – Disse sorrindo por conta da careta que ele fazia. ─ Deve ser aquele dia do mês. – Exclamou dando de ombros. – O dia de torturar o neto gay. Chegamos ao estacionamento onde ele entrou em seu carro vermelho. ─ Força na peruca, bicha! – Falei imitando sua frase predileta. Ligando o carro e pondo as mãos bem cuidadas no volante ele falou: ─ Nem ligo. O velho não pode fazer nada enquanto eu for um gênio. ─ Gênio e modesto. ─ Não, não. Gênio, modesto e lindo! – Deu uma piscadela se despedindo e colocou o carro em movimento. Passei pela portaria e como o porteiro estivesse ajudando um morador com um controle de estacionamento enguiçado, apanhei minha correspondência acenando com os envelopes brevemente para que ele visse e depois segui para os elevadores. Enquanto esperava dei uma olhada nas mensagens do celular. Havia sentido o vibracall durante a reunião. Era um recado de Juliete: TIVE DE COBRIR UM VOO. DA UMA OLHADA NA TIA? BJS. Como sempre, ela continuava levando sua vida de forma pouco planejada. Muito diferente de Julio. “Essa minha irmã é muito desajuizada. Tenho sempre de ficar de olho nela.” Isso era o que ele vivia dizendo. Sorri de uma forma melancólica ao me lembrar dele enquanto descia no décimo andar. Iria alimentar a gata antes de retomar o meu serviço. Procurei no bolso meu chaveiro onde sempre carregava a reserva do apartamento 103, tendo em vista as idas e vindas de Juliete. Depois que Mônica, sua colega de quarto, se mudara, ela me entregara a cópia da chave dizendo que se ficasse sem notícias suas por mais de três dias que tratasse de invadir o apartamento, antes que encontrassem sua carcaça parcialmente comida pela gata. Abri a porta e entrei me deparando com o animal perto da entrada. Como já estava acostumada com estas minhas visitas, ela se aproximou e enganchou-se em minhas pernas com a certeza de que eu era aquele que lhe propiciaria uma refeição. Agachei-me para apanhá-la, afagando seu pelo longo enquanto a ouvia ronronar. Estava indo para a cozinha quando vi uma mala no meio da sala. Não tive tempo para especular sobre aquilo, pois um homem nu surgiu vindo do corredor. Ele não me viu a princípio, pois estava com a toalha sobre a cabeça, enxugando os cabelos molhados. Tinha um corpo bem proporcionado e definido. Não deixava de ser uma bela surpresa.
Lembrei-me de repente que Juliete estivera falando a respeito da possibilidade de seu irmão caçula vir morar com ela, caso passasse no vestibular. Como não a havia visto nas últimas semanas, talvez o mais coerente fosse concluir que ele tivera êxito. Observei um pouco incrédulo o rapaz enquanto este finalmente retirava a toalha do rosto e se deparava com a minha presença. Qual era mesmo o seu nome? Tinha me esquecido. Quando o havia visto da última vez não passava de um pirralho chorão. Agora já era um homem. Fiquei chocado com a passagem do tempo. Quantos anos fazia desde aquele dia? Cinco? Seis? Observei divertido ele tirar a toalha da cabeça e metê-la entre as pernas como alguma Diana pega no banho. Suas orelhas ficaram vermelhas e o embaraço em seu rosto era evidente. Achei graça. Apesar da aparência, ainda era só um pirralho. Como não desse mostras de reação, resolvi facilitar, me dirigindo para a cozinha enquanto dizia com calma: ─ Vim apenas dar a comida da gata. Colocando a ração no prato, ouvi enquanto ele se movimentava pela sala e corria para o quarto. Não pude deixar de sorrir ante a lembrança de seu rosto surpreso. Achei melhor ir embora, antes que ele voltasse. Não tinha de me preocupar em colocar a água, já que ele estava por ali. Simplesmente passei pela sala, reparando que a mala havia sumido, e saí pela porta da frente.