Mira! #1 Autorretrato

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MIRA! #1:

AUTORRETRATO MOMENTO DE OLHAR PRA SI, DE INVESTIGAR O EU. COMO É TEU CORPO, TEU ROSTO, TUA LINGUAGEM, TEUS HÁBITOS, TEUS VÍCIOS, QUEM ÉS TU, COMO TU TE VÊ. MIRA A TI MESMA E FAZ UM REGISTRO.


TENHO ME SENTIDO CADA VEZ MAIS ABSTRATA. SERÁ QUE ESSA É A SENSAÇÃO DE MORRER? SERÁ QUE NO MOMENTO EM QUE SE MORRE, A GENTE SENTE COMO UM GOLPE O NOSSO SER SE DISSIPANDO? SERÁ QUE MORRER DÓI? POR QUE VIVER DÓI, CONVENHAMOS. SERÁ QUE MORRER DÓI MAIS DO QUE VIVER? SERÁ QUE A MORTE SEGUE DOENDO ATÉ QUE A ÚLTIMA MEMÓRIA SUA É FINALMENTE APAGADA DA MENTE DA ÚLTIMA PESSOA QUE LEMBRA DE VOCÊ? SE ESSE FOR O CASO, O AUTO-RETRATO É UM DESSERVIÇO À DOR DE SI MESMO. MAS, DE QUALQUER FORMA, QUE OPÇÃO SE TEM? ESTAMOS AÍ, VIVOS, VAI

AUTORRETRATO É QUANDO O ARTISTA VAI LÁ E FAZ UM RETRATO DELE MESMO, DA FORMA QUE ELE QUISER. PRA MIM, NÃO FAZ MUITO SENTIDO, ME PARECE RETRABALHO. PORQUE TUDO O QUE SE FAZ É NECESSARIAMENTE UM RETRATO DE QUEM O FEZ. PRA QUE FAZER UM RETRATO DO RETRATO DOS RETRATOS? ISSO ME DEIXA CONFUSA, PORQUE AFINAL ONDE COMEÇA E ONDE TERMINA O EU? COMO FAZER UM AUTO-RETRATO SE NÃO SE TEM CLARO O QUE SE É? VAI FAZER AUTO-RETRATO DE QUE? ESSE TEXTO É UM AUTO-RETRATO: ESSA É MINHA CARA SEM NENHUM ROSTO.

EU NUNCA FIZ UM AUTO-RETRATO.

AUTORRETRATO. AUTO-RETRATO. AUTO-RETRATO TINHA QUE SER SEM HÍFEN. E HÍFEN TINHA QUE SER COM M NO FINAL.

AUTORRETRATO (SIM, ASSIM MESMO, SEM O HIFEN)


MEU AUTO-RETRATO É ESSA PÁGINA.

MEU AUTO-RETRATO É O BREU. A LUZ DE FORA QUE PERMITE QUE SE TENHA CONSCIÊNCIA DE ESTAR ADORMECENDO. EU AMO ESSA SENSAÇÃO. E DEPOIS ACORDAR COM A LUZ DO SOL, QUE ENTRA TÍMIDO E TE ACORDA DEVAGARINHO MAS NÃO TE DEIXA VOLTAR A DORMIR. A CIDADE SILENCIOSA LÁ FORA, EU AQUI DENTRO E O RESTO DO MUNDO INTEIRO. COMO É POSSÍVEL QUE EXISTA GENTE QUE NÃO GOSTE DE CAFÉ?

ESSE É O MEU AUTORRETRATO: CERVEJA ORIGINAL NUMA GARRAFA RETORNÁVEL DE 600ML, OFENSIVAMENTE GELADA, SENDO SERVIDA EM UM COPO QUALQUER DE VIDRO, NUM BAR QUALQUER COM MESAS NA RUA, LÁ PELA MEIA NOITE DE UM SÁBADO, NO CENTRO DA CIDADE. AQUELE CLIMA AMENO COM UM LEVE VENTINHO, SUFICIENTE PRA VOCÊ USAR UM CASAQUINHO DE LÃ FINO COM UMA ROUPA QUE NÃO APERTE. E UM SAMBA TRISTE NO FUNDO. TUDO BEM, TODO MUNDO É UM POUCO TRISTE E UM POUCO SÓ, CLARICE LISPECTOR DISSE ISSO UMA VEZ. EU TENHO REZADO PRA CLARICE LISPECTOR ME AJUDAR A DECIDIR O QUE FAZER COM A MINHA VIDA.

FAZER O QUE COM ISSO? UM AUTORRETRATO, SEI LÁ. TALVEZ UM AUTORRETRATO AJUDE A PESSOA A FICAR MAIS VIVA.

LOLA FLECK



UMA CARTA DE AMOR A MIM MESMA, UMA MULHER GORDA

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CHLOE SHEPPARD PARA POLAROID

ZANELE MUHOLI

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THE COVEN: MAGIA PRÁTICA

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CLAUDE CAHUN E MARCEL MOORE

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MEL BEVACQUA

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POR QUE ARTISTAS MULHERES UTILIZARAM AUTORRETRATOS PARA IMPOR SEUS ESPAÇOS NA HISTÓRIA DA ARTE?

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EM CONVERSA COM O COLETIVO HISTÉRICA

COLETIVO DE CYBER ARTE

DESAFIANDO NORMAS DE GENÊRO DESDE 1920

ESCULTURAS E FEITIÇARIAS

AMANDA SCHERKER

CINDY SHERMAN

REPENSANDO RETRATOS A PARTIR DAS REDES SOCIAIS

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Uma carta de amor próprio para mim mesma, uma mulher gorda A fotógrafa Chloe Sheppard usa as lentes de sua câmera para refletir sua jornada em direção à auto-aceitação Desde a primeira vez que usou sua câmera para salvar seus amigos de “selfies de merda” durante a adolescência, nos últimos dois anos, a fotógrafa Chloe Sheppard aprendeu o poder da resistência de afastar a câmera de seus entes queridos e se tornar uma mulher gorda. Em uma sociedade que continua desumanizando aqueles que não se enquadram nos rígidos padrões de beleza socialmente aceitáveis ainda aplicados em nossa cultura, fotografar-se com honestidade e orgulho tem sido um processo. Para

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pessoas plus size, tirar uma selfie não é simplesmente ajustar o contraste e postar no Instagram. Apesar de uma nova onda de ativismo body positive estar se infiltrando na consciência geral, para artistas como Sheppard, ver marcas divulgando este ativismo em um corpo tamanho 40 ou cobrindo estrias com glitter não representa um avanço grandioso na forma como tratam a imagem corporal e é tão significante quanto nenhuma representação. Mas em vez se esconder de si mesma e se encolher com a vergonha que mulheres gordas são ensinadas a sentir, Sheppard usa sua plataforma para mostrar a cada adolescente insegura de si mesma que não há problema em ser quem elas são. Em uma nova série de fotos feita em colaboração com a Polaroid Originals para o Dia dos Namorados, Sheppard se coloca em foco. Com a imagem de si mesma como talvez a mais vulnerável, ela rejeita o caminho do amor próprio que estampa camisetas e se aceita como uma embarcação tangível para mostrar que não há

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“Estou tentando ser a pessoa que gostaria ter admirado quando era mais jovem” - Chloe Sheppard.


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problema em gostar de quem você é, por quem você é. Para acompanhar sua nova série, Sheppard escreve uma carta de amor próprio que narra sua jornada pessoal através da política corporal e rejeita quem ela acha que deveria ser a favor de quem ela realmente é. “Comecei a tirar autorretratos aos 13 anos. Documentava tudo, inclusive eu mesma. No entanto, quando comecei a postar minhas fotografias nas redes sociais, nunca publicaria fotos “honestas” de mim mesma. Eu postava selfies em que sofri tentando parecer mais magra, mas nunca fotos que mostrassem como eu realmente era.” “Como uma garota de 14 anos obcecada com o Tumblr, nunca via corpos gordos mostrados de maneira artística e positiva, apenas em posts de “piadas” ou o que hoje são chamados de “memes”. Cresci sendo constantemente lembrada de que ser gorda era feio, que não era algo a ser desejado e que era sim um

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fardo - e isso foi ensinado por minha família, amigos, mídia, etc. Sei que minha família sempre quis o meu bem tentando o tempo todo me ajudar a perder peso, mas gostaria de poder ter visto uma pessoa gorda mostrando seu corpo de uma maneira positiva na redes sociais. Alguém mostrando que você pode ser gordo e ainda assim ser aceito; ter amigos; se apaixonar e não sentir constantemente que você é uma merda por causa de sua aparência. Estou tentando ser a pessoa que gostaria ter admirado quando era mais jovem.” “Quando comecei a levar a sério a fotografia, só fotografava garotas que eu achava que eram bonitas, porque estava ciente do quanto eu era diferente delas. Eu postava fotos dessas garotas porque sabia que era o que as pessoas queriam ver. Mas não quero esconder por trás dessas fotos que tiro de todo mundo. Quero empoderar outras garotas gordas e mostrar que elas não devem sentir a necessidade de se esconder atrás dos outros - pois merecemos ocupar


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os mesmos espaços e nos sentirmos bem com nós mesmos. “Recebo mensagens depois de postar autorretratos dizendo “é tão bom ver alguém romantizando um corpo como o meu”. Constantemente, pessoas gordas veem seus corpos sendo excluídos e mostrados como revoltantes. Quando isso é tudo que você vê, é isso que você se torna. Quando eu era adolescente, eu me odiava. Todos me diziam que eu era tão repugnante que eu acabei acreditando. “Ser gordo não é um padrão de beleza. A sociedade, eu gostaria de pensar, está se tornando mais receptiva. Mas o corpo gordo ainda está longe de ser igualmente representado em propagandas, lojas, séries de TV e filmes. Eu sou gorda, e isso é evidente nos meus autorretratos, então, publicando-os, acho que é uma maneira de dizer “sim, eu sei que todos vocês preferem que eu seja magra, mas não sou, e ainda tirando fotos minhas”. “Às vezes me sinto uma hipócrita. O amor próprio é importante para mim quando

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penso nos outros. Não quero que nenhum jovem odeie sua aparência e se sinta mal porque não está representado ou acabou por se se sentir feio. Mas na verdade eu não pratico amor próprio, nem me importo o suficiente. Eu ainda posto no meu Instagram privado sobre como eu gostaria de ser diferente, como eu odeio a minha aparência - mas eu sei que é porque foi isso que sempre me disseram para sentir. São meus velhos e péssimos hábitos e comportamentos autodestrutivos que estão se manifestando. Com cada autorretrato que eu posto, estou me erodindo deles. Sei que online, pode parecer que sou autoconfiante e confiante, mas na verdade eu sou apenas mais do que eu era quando tinha 15 anos. Ainda sofro, assim como todo mundo, e ainda mais como um garota gorda tentando navegar na indústria da moda e em estar apaixonada. Quero usar meu corpo para enviar uma mensagem a outras pessoas, para ajudálas e para mostrar que é possível ser gordo retratado romanticamente.

“Eu quero fazer isso para que, quando uma garota jovem e gorda abrir seu telefone, em vez de ver o mesmo corpo magro repetidamente, ela veja alguém que se assemelha a ela e que isso faça ela se sentir menos sozinha. Isso é o que eu nunca tive, mas sempre precisei. ”

A série fotográfica de Chloe Sheppard foi comissionada pela Polaroid Originals e fotografada na Eaton House Studio na ocasião do Dia dos Namorados para celebrar autoexpressão e amor próprio.




EM CONVERSA COM O COLETIVO HISTÉRICA

ZANELE MUHOLI EM ENTREVISTA, A ATIVISTA VISUAL FALA SOBRE CORAGEM, REPENSAR A HISTÓRIA E AS POLÍTICAS DE EXCLUSÃO.


Minha prática como ativista visual analisa a resistência negra - existência e insistência. A maior parte do trabalho que desenvolvi ao longo dos anos se concentra exclusivamente em indivíduos negros LGBTQIA e não conformes ao gênero, garantindo que existamos no arquivo visual. (Em Faces and Phases, concentrei exclusivamente em indivíduos LBTQ, por exemplo, tendo em mente que a política de gênero é complexa e fluida; os acrônimos estão sempre mudando e mudando.) A questão principal que levo para a cama comigo é: o que é minha responsabilidade como um ser vivo - como uma cidadã sul-africana lendo continuamente sobre racismo, xenofobia e crimes de ódio na grande mídia? É isso que me mantém acordado à noite. Assim, Somnyama não se refere apenas a belas fotografias, como tal, mas também a trazer declarações políticas. A série aborda a beleza e se refere a incidentes históricos, afirmando aqueles que duvidam sempre que falam consigo mesmos, sempre que se olham no espelho, para dizer: “Você é digno. Você conta. Ninguém tem o direito de prejudicar você por causa de seu ser, de sua raça, de sua expressão de gênero, de sua sexualidade, de tudo o que você é.” Somnyama é minha resposta ao racismo e políticas de exclusão que acontecem diariamente. Como uma série de fotos, também fala sobre ocupar espaços públicos aos quais nós, como comunidades negras, anteriormente tivemos negados - como você deve se manter atento o tempo todo em determinados lugares por causa de sua posição perante à sociedade, por conta

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do que os outros esperam que você seja, ou porque suas tradições e cultura são continuamente mal representadas. Muitas vezes acho que estamos sendo insultados, imitados e distorcidos pelo privilegiado “outro”. Muitas vezes nos encontramos em espaços onde não podemos mostrar inteiramente quem somos. Estamos aqui. Nós temos nossas próprias vozes. Nós temos nossas próprias vidas. Não podemos confiar nos outros para que nos representem adequadamente ou para permitir que eles neguem nossa existência. Por isso, estou produzindo este documento fotográfico para incentivar outras pessoas da minha comunidade a serem corajosas o suficiente para ocupar esses espaços, para criar sem o medo de serem difamados, corajosos o suficiente para assumir essas narrativas visuais. Além disso, quero ensinar aos outros sobre a nossa história, repensar sobre o que é a nossa história, recuperá-la para nós mesmos a fim de incentivar essas pessoas a usarem ferramentas artísticas, a usarem câmeras como uma arma para lutarem por seus direitos, para revidarem contra essas opressões. Eu quero usar meu próprio rosto para que as pessoas sempre se lembrem do quão importante nossos rostos negros são quando forem confrontadas por eles, para que esse rosto negro seja reconhecido como uma pessoa sensata, pensante e que está no seu próprio direito. E, por mais que eu gostaria que alguém se visse em Somnyama, eu precisava que fosse meu próprio retrato. Eu não queria expor outra pessoa a essa dor. Eu também estava pensando em como os atos de violência

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estão intimamente ligados ao nosso rosto. Lembre-se de que quando uma pessoa é violada, ela frequentemente começa com o rosto: é o rosto que perturba o agressor, é o rosto o que o leva a outra coisa. Portanto, o rosto é o ponto em foco nas fotos: encarando a mim mesma e encarando ao espectador, à câmera, diretamente. Vinda da África do Sul, eu duvido que teria sido possível desenvolver este projeto como uma pessoa negra antes de 1994, por causa do sistema de apartheid e das leis anteriormente em vigor. Em 2012, eu estava fazendo uma residência artística na Itália, onde fiquei em um lugar muito, mas muito bonito: um antigo castelo. Todavia, todas as manhãs eu era acordada por um som de tiros. Embora o espaço estivesse protegido e garantisse a nossa segurança, esses tiros contínuos me deixavam aflita. Quando perguntei de onde eles vinham, me disseram que eram de caçadores caçando javalis. A captura do dia foi descrita como um “porco preto selvagem”. Ao mesmo tempo, houve controvérsias no Campeonato Europeu de Futebol em 2012: jogadores italianos negros foram vítimas de racismo, tendo sido feitas imitações de macaco e bananas foram jogados contra eles em campo. Isso me fez pensar em como eles nos veem como pessoas negras - e como os corpos negros são rotineiramente expostos ao perigo. Qualquer coisa preta é sempre relacionada há algo selvagem, animalesco, incontrolável. É um conhecimento doloroso e não quero me aprofundar muito nele, embora ele não desapareça. Somente recentemente, em

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dezembro de 2017, uma das fotografias mais importantes da nossa história - a famosa imagem de Hector Pieterson tirada pelo fotojornalista sul-africano Sam Nzima foi bestializada pela escola Selborne College em East London, África do Sul. A imagem original mostra o corpo sem vida de Hector sendo carregado por seu colega Mbuyisa Makhubo em 16 de junho de 1976, quando a polícia sul-africana abriu fogo contra crianças na cidade de Soweto. Para ilustrar um folheto para um evento da classe em 2017, a cabeça de Pieterson foi removida e os rostos de Makhubo e Antoinette Sithole, irmã de Pieterson, foram substituídos por cabeças de cachorro. Se uma fotografia icônica que expõe a violência do regime do apartheid pode ser transformada em caricatura, o que aprendemos (ou ganhamos) em 23 anos de democracia no que diz respeito à ética de produções de imagens - ou em termos de empatia e afeição quarenta e um anos após a revolta de Soweto? Esta é a razão pela qual Somnyama existe. Utilizei materiais que falavam da minha identidade cultural presumida como uma africana, enquanto referenciava um modo histórico particular de representação. Todo esse estereótipo inspira um ódio profundo contra o corpo negro, da cabeça aos pés: traços faciais, olhos, lábios, tudo. Pode ser selvagem, como sem-cultura, ou como o cabelo é definido como “bombril”, “sujo” e todas essas coisas. Em agosto de 2016, houve um caso que ganhou destaque na África do Sul na escola Pretoria High School for Girls, onde as alunas foram repreendidas por uma das professoras por causa de seus

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penteados afro. Como estudante, como pode ser esperado que você estude se o seu educador lhe diz que seu cabelo natural é “desarrumado”? Você convive diariamente com essa pessoa em um espaço em que você supostamente deveria receber educação. É óbvio que é diferente em determinados lugares do mundo. Na América, Europa ou África, a experiência nunca é a mesma. Mas esse julgamento, essa discriminação, aquele sentimento persistente de que você não deveria estar ali, persiste - fazendo com que você continuamente tenha de justificar sua presença. Especialmente nos hotéis, o ritual de se hospedar no seu quarto pode ser traumatizante. Às vezes, você será a última pessoa atendida; outras vezes, fazem você se sentir perdido ou procurando instruções, em vez de ser tratado como um hóspede comum que está pagando para receber esse serviço. Fiz um retrato após uma das minhas experiências negativas em hotéis em setembro de 2016 em Nova York, com fios de lã emoldurando meu rosto, como um cachecol. O título desta peça é Dalisu, Nova York (2016), significa “fazer um plano”. A maioria das fotografias em Somnyama Ngonyama são baseadas em minhas experiências pessoais. Por si mesmas, elas podem não parecer extremas, mas se acumulam: todas essas pequenas perguntas irritantes levam a alguma coisa. Às vezes, parece que você está dentro de uma teia que cobre seu rosto e que faz com que constantemente você precise se afastar para conseguir respirar. No entanto, você ainda

está conseguindo enxergar através para verificar se o que está vendo ou ouvindo é real. Dalisu fala sobre a sensação de ser estrangulado vivo. Eu me senti enrolada e confinada, confusa e com raiva. Ao mesmo tempo, é uma afirmação para mim e para outros como eu - um chamado à ação. Um lembrete para nós mesmos, para não permitir que ninguém nos prejudique ou nos obrigue sermos comedidos. Kwanele é sobre a experiência de passar pela imigração de diferentes aeroportos, onde muitas vezes existe uma perseguição pelo perfil racial. O plástico em volta do meu rosto é o mesmo material da capa da minha mala. Portanto, a imagem fala sobre a necessidade de proteção, bem como a sensação de se sentir exposta, despida de dignidade e continuamente examinada ao passar pelo controle da alfândega. Podese dizer que, nesses momentos, muitas vezes se sente-se um lixo à medida que caminha-se de um lugar para o outro. Além disso, a imagem fala do doloroso inconveniente de ser atrasada por essas experiências recorrentes - humilhada e desnecessariamente exposta, como se você tivesse cometido um crime. Repetidas vezes, os seguranças interrogam: “De onde você vem? Qual o propósito de sua visita? Por quanto tempo você vai ficar aqui? Quem te convidou?”, e assim por diante. Você os escuta e responde a todas as perguntas. Mas você também está muito cansado, porque viajou da noite pro dia e pensa consigo mesmo: eu me sinto como minha mala agora. Eu me sinto um lixo. Eu não mereço receber todas essas perguntas.

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Enquanto você observa outra pessoa, que pode ser de uma raça ou etnia diferente, atravessar a alfândega sem ser incomodado mas, para você, as perguntas continuam: “O que você está fazendo para viver?” “Eu tiro fotografias...” “Que tipo de fotografia? Por favor me mostre.” Mas você não pode pegar seu telefone na segurança, respeitando a placa que diz: “Proibido o uso de telefones celulares”. Como você sabe, não viajo a lazer - é sempre a trabalho. A foto é sobre viajar como uma pessoa negra, como um fotógrafo.

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TRAZENDO DE VOLTA A CORAGEM NA INFÂNCIA DAS MENINAS, O COLETIVO DE CYBER ARTE THE COVEN ESTÁ DESTRUINDO IDÉIAS OBSOLETAS DA FEMINILIDADE COM SEUS SHOWS E ZINES PROVOCATIVOS.

The Coven “Menina triste muito discreta” Hobbes Ginsberg faz selfies delicadíssimas, honestas, que esmagam as construções de gênero. Para a artista de Los Angeles, o Tumblr é uma comunidade que entende o espectro fluido da identidade. "Acho que o grande público ainda tem muito o que fazer", diz ela. "Não apenas com identidades de gênero queer, mas com qualquer gênero que não seja cismasculino. Ainda temos um caminho a percorrer antes de estar enraizado na psique pública de que o jeito queer de ser é exatamente como as coisas às vezes são. ” Hobbes explora sua própria identidade com sonhadoras selfies pastel, ultrapassando os limites das definições de gênero e revelando uma vulnerabilidade à qual todos nos conectamos.


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Como você resumiria o que faz? Hobbes Ginsberg: Eu faço fotos e vídeos vagamente surreais e coloridos, focados em temas de depressão e no eu em constante mudança.

Por que você tira selfies? Hobbes Ginsberg: Comecei porque costumava tirar fotos de estranhos, esse era o meu negócio, e então senti que realmente precisava de uma pausa e comecei a me virar para dentro. Então, me concentrei em mim, conseguindo experimentar e criar algo completamente diferente do que estava fazendo antes. Agora, o auto-retrato me ajuda a navegar em minha própria narrativa. Posso experimentar e criar, não apenas em termos de fotografia, mas também a mim.

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O Tumblr tem sido uma saída importante para você? Hobbes Ginsberg: Se não fosse pelo Tumblr, provavelmente nós não estaríamos conversando agora. A comunidade da Internet tem dado um suporte incível para mim e para os meus colegas, de várias maneiras que eu não acho que estejam realmente acontecendo em outros lugares. Há um grande impulso pela diversidade e inclusão no Tumblr que, para artistas como eu, é uma necessidade para ter visibilidade a maior parte do tempo.

O que você acha das atitudes atuais em relação à identidade de gênero? Hobbes Ginsberg: Eu acho que em muitos círculos mais jovens (como o Tumblr) há um grande foco em entender o espectro da identidade queer. É por isso que eu pude realmente vir a tona e decidir o que significava para mim ser uma mulher queer, e esse tipo de espaço é incrível. Eu acho que o grande público tem muito mais o que fazer, não apenas com identidades de gênero queer, mas com qualquer gênero que não seja cis-masculino. Às vezes, sinto que estamos somente à beira de entender e aceitar a realidade sobre as desigualdades de gênero. Parece que estamos em um estágio de tokenismo, ainda temos um caminho a percorrer antes que as atitudes sobre a identidade de gênero realmente não precisem ser discutidas, por ter se enraizado na psique das pessoas que o jeito queer de ser é exatamente como as coisas são às vezes.

Qual é a sua mensagem para o mundo? Hobbes Ginsberg: Você está bem.

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CLASSIFICADOS


INTERNET

TELEVISÃO

VENDO o instagram de pessoas VENDO q fizeram ensino medio cmg e pensando nao eh possivel q um doc sobre Odair José. Obrigada essa gente Horrorosa tenha me por tudo Ancine!!!!!!! Obriagda por tudo causado um deficit de autoestima Brasil!!! VENDO tutorial bregafunk

de

passinho

(chorando) VENDO os stories da bela gil ajudando o filho dela a fazer biscoito ???? vendo video DUPLO TWIST CARPADO DAIANE DOS SANTOS VENDO LOGOS DE LANCHONETE passeando no street view por cidades do interior foi perfeito

VENDO COMO PERDER UM HOMEM EM DEZ DIAS vendo honey boo boo (tomamdo keep cooler comendo pipoca)

VENDO FILME

VENDO IMAGEM DE SORVETE NA TEVEVISAO.

VENDO DVD

acustico mtv - kid abelha

GERAIS Vendo a previsao do tempo p saber qnd meu humor vai melhorar (não aguento mais me sentir contrangida)

vendo arte ruim

me sentindo a mulher mais auto suficiente e fracassada q existe

VENDO FOTOS ANTIGAS eu fico sempre chocada como minha EMOCIONADA vendo programa da mae e meu pai eram charmosos juntos fatima bernardes

Vendo Cupom Mania

vendo videos de pessoas tirando pelo eu rio mtooo vendo vudeo cassetadaa

encravado e pensando..... o dominio de tecnicas eh uma coisa belissima!

VENDO um (01) video de qnd eu VENDO os anos de crossfit indo embora era crianca e quase chorando eu sou puro sol em cancer

UI!!!!!! fiquei arrepiada aqui vendo o mapa astral da tete espindola

VENDO PELO LADO POSITIVO

VENDO MINHAS PROPRIAS FOTOS

VIDRO EH UMA DAS COISAS Q ACHO MAIS BONITAS!!!!! vendo videos de fabricaçao de vidro!!!

e tendo um momento de auto apreciaçao

vendo significados ocultos em tudo

VENDO vlogs de make (simplesmte abistmada e sem reaçao)

VENDO ANGULOS & CIRCULOS ARCOS COMPASSOS RETAS

vendo videos de nail art na esperança de me sentir alegre

VENDO

Vendo fts do Baile da Vogue cujo a temática foi Signos

coisas q eu nao quero..........

VENDO

o fracasso dos outros VENDO ARTE1 E TOMANDONUMA TAÇA DE VINHO.. VENDO UM FILME

q a menina entrou p ocultismo e ta agr numa situscao horrivel!!!!!!!

VENDO CHAVES vendo filme e chorando VENDO o pogama do gugu VENDO DOCUMENTARIO SOBRE EVOLUCAO DOS ANIMAIS

VENDO O ESTOQUE DE BRINQUEDOS de plastico das minhas primas e sentindo apenas pavor

AI! AI! VENDO

minhas memorias sendo substituidas fico ate aliviada mas não tem jeito!!!! sou saudosa





Claude Cahun e Marcel Moore DESAFIANDO NORMAS DE GÊNERO DESDE A DÉCADA DE 1920


Claude Cahun (pseudônimo de Lucy Schwob (1894– 1954) e Marcel Moore (pseudônimo de Suzanne Malherbe (1892–1972) formaram um casal literário e artístico raramente estudado enquanto casal de mulheres criadoras. Perguntamonos se a ocultação de Suzanne Malherbe não está inscrita em seu trabalho e nas opções filosóficas que elas trilharam em um contexto cultural misógino, anti-semita e lesbofóbico da primeira metade do século XX. Fotógrafas, elas trabalharam a imagem das mulheres ou, mais exatamente, a persona, a máscara facial, os gêneros masculino e feminino, através de retratos de Claude Cahun, cuja contemporaneidade é surpreendente. Escritora, Claude Cahun antecipa o conceito contemporâneo de espaço virtual no seu texto Vues et Visions (ilustrado por Marcel Moore) que explora uma maneira nova de representar a homossexualidade feminina, sem cair na armadilha do masculino-feminino. Mas, optando pelo “falar neutro” e pela imagem óptica, elas não falaram

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no masculino, o que explicaria a invisibilidade do casal e de seu trabalho pelos surrealistas e, mais amplamente, a ocultação do desejo da mulher pela mulher, que se torna irrepresentável na sua abordagem.Descoberta no início dos anos 1990 graças ao trabalho de François Lepelier (Leperlier, 1992), a obra de Claude Cahun é conhecida, sobretudo pelos seus extraordinários autoretratos, nos quais ela se mostra de cabeça raspada. Mas ela inclui outras facetas igualmente importantes, tais como a narrativa de sonhos, textos que aparecem na revista do Mercure de France e outras revistas menos conhecidas como La Gerbe ou Philosophies, traduções e livros ilustrados de desenhos e montagens fotográficas (heliogravuras) realizadas por sua amante Suzanne Malherbe; esta última tem sido simplesmente ignorada por nossa modernidade que se interessou apenas pela figura de uma Claude Cahun surrealista e precursora de drag queens. Ou seja, embora tenham sido inseparáveis na vida, o foram igualmente em

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grande parte dos trabalhos fotográficos atribuídos a Claude Cahun, o que nos levar a indagar se a ocultação de Suzanne Malherbe, em relação a Claude Cahun não foi induzida pela própria obra. Em princípio, notemos que os críticos contemporâneos não procuraram saber quem tirava as fotos. Seria Claude Cahun? Mas, nesse caso, é preciso interrogar-se sobre o status do autor pois a modelo poderia ser, ao mesmo tempo, a fotógrafa? E o que dizer da revelação, feita a maior parte do tempo no seu laboratório particular em Nantes, Paris e depois Jersey, da qual Claude Cahun faz eco em Aveux nos avenus, dizendo:

“NO MINUTO EM QUE NOSSAS DUAS CABEÇAS (AH! NOSSOS CABELOS MISTURAVAM-SE INEXTRICAVELMENTE) SE DEBRUÇAVAM SOBRE UMA FOTOGRAFIA — RETRATO DE UMA OU DE OUTRA, NOSSOS DOIS NARCISISMOS SE AFOGANDO NELA, ERA O IMPOSSÍVEL VISTO NUM ESPELHO MÁGICO.”


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Impossível revelar de melhor forma o trabalho em comum. Em seguida, é um casal que entra na literatura sob uma dupla assinatura masculina: Claude Cahun para o texto, Marcel Moore para as ilustrações. Por que elas duas adotam pseudônimos masculinos? Para contornar a misoginia do mundo literário ou porque a identidade é precisamente o que lhes faz falta? Talvez menos no caso de Claude Cahun, enquanto praticamente nada sabemos sobre Suzanne Malherbe, que não deixou arquivos; Claude Cahun, ao contrário, escreveu uma longa carta em 1951 a seu amigo de Nantes, Charles-Henri Barbier, na qual ela conta os acontecimentos importantes de sua vida, trazendo uma nova luz à biografia de François Leperlier. Claude Cahun nasceu em Nantes em 1894, numa família judia. Ela recebe o nome de Lucie Schowb. Seu pai Maurice dirige o jornal nantês Le Phare de la Loire e sua mãe, MaryAntoinette Courbebaisse, está doente. “Eu tinha apenas quatro anos na época de sua primeira crise

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mas a lembrança ainda está viva”, escreve ela na carta. Mas sua mãe passa por novas crises e logo será internada numa clínica parisiense onde morreu, ao que parece, em 1937. Mathilde, sua avó paterna, terá uma grande influência sobre ela. “Minha admiração pela avó Mathilde, somada aos sentimentos que eu experimentaria, dez ou doze anos mais tarde, pelo filho e pela viúva de Leon Cahun, foi o motivo de… Claude Cahun — que representava (representa, a meus olhos) meu nome verdadeiro, mais do que um pseudônimo.” A esse traumatismo acrescenta-se o do caso Dreyfus, que fez com que seu pai envie Claude Cahun para estudar na Inglaterra até que, em 1909, um “encontro fulminante”, a retira desta atmosfera, onde a loucura paira como uma sombra: trata-se de Suzanne Malherbe, que tem dois anos a mais do que ela e cuja mãe liga-se ao pai de Lucy, antes de casar-se com ele em 1917, depois da morte de seu marido. Não

só elas vivem “uma paixão ciumenta, exclusiva”, mas ei-las também irmãs pelo casamento dos pais. “A estranha coincidência que nos reunia em família parecia arranjar tudo de forma ainda melhor. Mas é preciso levar em conta anos de revolta pelos quais eu tinha passado, o estado de espírito que eles tinham engendrado…” A constituição do casal, ou do duplo casal, está fortemente ancorada em uma espécie de destino, que, entretanto, não consegue apagar o fantasma da loucura materna. Claude Cahun é anoréxica e às vezes se droga com éter. Ou seja, nega seu corpo em um esforço desesperado de viver a ficção construída pela maior parte dos anoréxicos, como ressalta Henri Neuvecelle: “ser o sujeito de uma palavra neutra, desvinculada da imagem do corpo sexuado. Muito mais que ao homem, cabe à mulher este dilema singular: aceitar a imagem inconsciente do corpo (…) é aderir ao signo da negação e não de seu reconhecimento como


“EMBARALHAR AS CARTAS. MASCULINO? FEMININO? MAS ISSO DEPENDE DOS CASOS. NEUTRO É O ÚNICO GÊNERO QUE SEMPRE ME CONVÉM. SE ELE EXISTISSE NA NOSSA LÍNGUA, NÃO SE OBSERVARIA ESSA FLUTUAÇÃO DO MEU PENSAMENTO. EU SERIA, SEGURAMENTE, UM BOM EXEMPLO DELE.”

Para Claude Cahun, falar neutro equivale a escapar dos gêneros, da identidade sexual, como ela confessará em 1930:Casal de mulheres na vida íntima, é um casal de homens que assina a primeira obra realizada em comum. Lucy Schwob escolheu o pseudônimo de Claude Cahun, enquanto que Suzanne Malherbe, o de Marcel Moore.

pode igualmente considerarse a matriz da obra ou sua sombra silenciosa. A questão do casal articula-se com a questão do duplo, ou seja, da reduplicação da identidade masculina e/ou feminina com sua sombra. De que sexo é o autor de Vues et Visions? Ninguém sabe, mas o que se pode saber, em contrapartida, é como esse livro coloca em cena esta questão na construção do próprio livro, como se ele fosse um espelho usado para dissociar visualmente o semelhante e o diferente.

“C.C.” e “M.M.”! Admiráveis significantes de um amor “inicial” que se esconde sob a pluralidade dos possíveis significados de suas iniciais. É C que ama M, ou Cesse (CC), ela me ama, ou Moore, mais um pouco, ou morte, Marcel e Caim etc. Atrás do casal de homens que reivindica a paternidade da obra comum, esconde-se um casal de mulheres, que

Elas realizam uma montagem em página dupla de texto e de desenho. Cada página dupla é consagrada a uma história “vista”. Na página à esquerda, o narrador — é um homem, evidentemente — conta uma cena vista em Croisic, pequena vila de pescadores na Bretanha onde Claude Cahun passava sua férias. Na da direita, ele vê a

pessoa; recusá-la é privarse da possibilidade de uma identidade fiel a seus princípios”.

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mesma cena, mas que agora está situada na Antiguidade, com um tema diferente. Em “O Encontro”, por exemplo, o narrador de Croisic vê duas embarcações encontrando-se sobre o mar. Em Roma, ele vê duas cortesãs andando uma ao encontro da outra. Este duplo deslocamento no espaço e no tempo, durante o qual só algumas palavras diferem de um texto a outro, permite introduzir um olhar sobre a homossexualidade, mas de forma tão alusiva que um leitor distraído pode muito bem não ver nada, confundido pelos pseudônimos masculinos atrás dos quais se escondem as autoras. Por exemplo, no “encontro” o balé de sedução das duas cortesãs é “visto” assim pelo narrador: “Vestidas de jóias e seda, elas aproximam-se uma da outra e, apesar da imensidão do lugar deserto, elas se tocam de leve; em um momento, suas sombras azuladas confundem-se; em outro, elas retardam o passo, depois afastam-se e cada uma retoma seu próprio reflexo. Mas meu olho, seduzido por esta visão breve demais, as une

sem confundi-las” (Cahun, 1919) É nesse pequeno texto , que passou completamente despercebido por seus biógrafos e críticos que Claude Cahun se mostra nossa verdadeira contemporânea. Ela antecipa, com efeito, as pesquisas de arte contemporânea sobre o conceito de espaço virtual. Não é necessário representar a união de duas mulheres. É o olho que a produz no cérebro, no seu espaço mental, sem ter necessidade de recorrer à representação imagética. O narrador sugere a união. Cabe ao/à leitor/a visualizá-la. “Mas meu olho, seduzido por esta visão breve demais, reúne as duas sem confundi-las”, escreve Claude Cahun, mostrando que ela tem perfeita consciência de criar uma imagem óptica e, no sentido mais amplo, o espaço de uma visualização mental da homossexualidade feminina, contanto que o olhar se exercite. Como vai fazer a desenhista Marcel Moore para alcançar a mesma ideia de união “óptica”? Ela retoma a distancia do espelho com

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um desenho situado num pórtico que enquadra o texto sobre as duas páginas. No semi-pórtico da página da esquerda, onde a cena se passa em Croisic, ela desenha um rosto de mulher prolongado por nuvens. Na da direita, as nuvens são substituídas por um segundo rosto de mulher, religado ao primeiro por linhas sinuosas, e que sugere a ideia de um possível beijo entre duas mulheres. A desenhista é, portanto, menos “neutra” que o narrador, o que explica porque “ele” deve recorrer a procedimentos repetitivos para esconder o verdadeiro tema da união, como o fará Gertrude Stein no seu célebre A rose is a rose is a rose is a rose. Ela joga com a repetição a fim de criar um estado mental particular que prepara o terreno para a aparição do assunto tabu, no caso “ela”, já que a frase termina com “ela é minha rosa”, “ela” referindo-se a Alice Toklas. Em Vues et Visions, Claude Cahun e Marcel Moore criam um espaço mental onde duas cortesãs aparecem, unem-se e desaparecem. Se esse espaço está impregnado da atmosfera de Chansons de Bilitis, que elas certamente leram, dela

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afasta-se radicalmente pelo fato de que o casal não está nem mesmo formado. São suas sombras azuladas que se confundem por um instante, e não seus corpos, e “cada uma retoma seu próprio reflexo”, o que significa que o real (Vues) e o imaginário (Visions) permanecem no estado de simples miragens, sem que possam religar-se um ao outro. A homossexualidade feminina permanece, então, ela também, totalmente virtual e não se arrisca a corporificar-se — medo da anoréxica — já que, escapando ao corpo, ao casal e à dualidade, o narrador só pode falar de sombras e reflexos. Dessa forma, vê-se como o falar neutro escapa à reflexão sobre uma possível articulação entre o semelhante e o diferente, inerente a toda prática simbólica. As sombras, aqui, não são as projeções do sujeito, e sim palavras sem luz que fazem a imagem perder esse pano de fundo metafísico, pelo qual uma ausência remete sempre a uma presença — e reciprocamente. Dois “auto-retratos” de 1928 mostram como


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esse tema do reflexo e do duplo não saem do olhar especular característico do espelho. Num deles, vemos o reflexo do rosto de Claude Cahun, rosto num espelho, fazendo aparecer dois rostos idênticos, mas visto sob um outro ângulo, numa mesma fotografia; no outro, vemos um rosto fotografado de perfil que foi colado no mesmo rosto visto de perfil, mas invertido da esquerda para a direita. Ou seja, o rosto remetese apenas a ele mesmo, a sombra desapareceu e, com ele, o que sustenta o visível e que faz com que a imagem não seja uma simples cópia de um modelo. O duplo tornou-se uma reduplicação de uma mesma imagem, como se a divisão tivesse sido tão bem sucedida que o sujeito perdeu até mesmo a memória do seu outro elemesmo. Esse desaparecimento é tão perturbador que Claude Cahun não abandonou a representação do casal, muito pelo contrário. Ela o fotografa sob vários ângulos. O casal surrealista, como André Breton e Jacqueline Lambam. Ela utiliza também falsos casais heterossexuais, como esta cena de Banlieue onde ela se mostra

travestida de homem ao lado de Hélène Duthé vestida de mulher. Suzanne Malherbe a fotografa igualmente na companhia de Henri Michaux, na Ilha de Jersey em 1939; mas, curiosamente, não se encontra nenhuma foto das duas mulheres juntas, ou mesmo do casal C.C. e M.M. Paralelamente a esse desaparecimento do casal, o tema da máscara tornase leitmotiv de seu método fotográfico. “Sob esta máscara, uma outra máscara. Eu não acabarei nunca de mostrar estas faces”, está escrito em uma heliogravura feita por Marcel Moore para Aveux non avenus (1930). Efetivamente! Claude Cahun não pára de fazer o inventário de todas as suas máscaras: a cabeça raspada, de frente, de trás, de perfil, travestida de homem, de mulher, a boca em formato de coração, deusa hindu, sob uma redoma de vidro, num armário (o “closet”, diríamos hoje) como se fosse preciso inventariar as imagens projetadas sobre as mulheres, já que não se pode captar seu “verdadeiro

rosto”.Dessa forma, vêse como o falar neutro escapa à reflexão sobre uma possível articulação entre o semelhante e o diferente, inerente a toda prática simbólica. As sombras, aqui, não são as projeções do sujeito, e sim palavras sem luz que fazem a imagem perder esse pano de fundo metafísico, pelo qual uma ausência remete sempre a uma presença — e reciprocamente. Dois “auto-retratos” de 1928 mostram como esse tema do reflexo e do duplo não saem do olhar especular característico do espelho. Num deles, vemos o reflexo do rosto de Claude Cahun, rosto num espelho, fazendo aparecer dois rostos idênticos, mas visto sob um outro ângulo, numa mesma fotografia; no outro, vemos um rosto fotografado de perfil que foi colado no mesmo rosto visto de perfil, mas invertido da esquerda para a direita. Ou seja, o rosto remetese apenas a ele mesmo, a sombra desapareceu e, com ele, o que sustenta o visível e que faz com que a imagem não seja uma simples cópia de um modelo. O duplo tornou-se uma reduplicação de uma mesma imagem,

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como se a divisão tivesse sido tão bem sucedida que o sujeito perdeu até mesmo a memória do seu outro elemesmo. Esse desaparecimento é tão perturbador que Claude Cahun não abandonou a representação do casal, muito pelo contrário. Ela o fotografa sob vários ângulos. O casal surrealista, como André Breton e Jacqueline Lambam. Ela utiliza também falsos casais heterossexuais, como esta cena de Banlieue onde ela se mostra travestida de homem ao lado de Hélène Duthé vestida de mulher. Suzanne Malherbe a fotografa igualmente na companhia de Henri Michaux, na Ilha de Jersey em 1939; mas, curiosamente, não se encontra nenhuma foto das duas mulheres juntas, ou mesmo do casal C.C. e M.M. Paralelamente a esse desaparecimento do casal, o tema da máscara tornase leitmotiv de seu método fotográfico. “Sob esta máscara, uma outra máscara. Eu não acabarei nunca de mostrar estas faces”, está escrito em uma heliogravura feita

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por Marcel Moore para Aveux non avenus (1930). Efetivamente! Claude Cahun não pára de fazer o inventário de todas as suas máscaras: a cabeça raspada, de frente, de trás, de perfil, travestida de homem, de mulher, a boca em formato de coração, deusa hindu, sob uma redoma de vidro, num armário (o “closet”, diríamos hoje) como se fosse preciso inventariar as imagens projetadas sobre as mulheres, já que não se pode captar seu “verdadeiro rosto”.



MEL BEVACQUA Me conta um pouco sobre ti. Da onde tu vem, do que tu gosta, o que não gosta? Eu sou a Mel e eu nasci em Petrópolis no RJ, mas morei em muitos muitos lugares. Foi sempre uma bagunça minha vida desde cedo. Acho que talvez hoje eu esteja vivendo a parte mais organizada dessa vida, em que não é tudo uma bagunça e as coisas têm estrutura e também tem espaço pra eu me entender e criar e perceber do que eu gosto e do que eu não gosto. Eu gosto de arte (risos). Gosto muito da expressão artística - de todas as expressões artísticas eu acho. Mas principalmente da poesia e da escultura. E gosto muito de magia. Acho que nos meus interesses no que eu mais foco, o que eu mais gosto são coisas relacionados à magia e tudo que implica esse universo. Então eu acabo relacionando tudo à magia, né. Política à magia, arte à magia, identidade e gênero à magia. E filosofia à magia, visões de mundo. Então eu acho que eu gosto muito disso, de magia e de feitiçaria. E difícil algo que eu não gosto. Eu tenho tentado me abrir pra tudo menos pro fascismo (risos). Mas eu acho que é isso né coisas que eu gosto, coisas que eu não gosto, e acho que eu não gosto é fascismo... né. Não é só porque é o hype do momento, é porque sempre foi o meu babado. Mas enfim, vamos nessa. Como surgiu o processo de criar as esculturas? Então acho que surgiu de criar essas esculturas principalmente quando eu fui buscar. Primeiro o que me cruzou foram bonecas de pano, vamos começar por aí. Primeiro contato que eu tive com esse tipo de escultura foi através de bonecas de pano, essas bonecas comuns assim. Eu conhecia uma pessoa que fazia essas bonecas, ela me inspirou e ela também era da magia, desses babados assim e ela me mostrou essa visão da magia com a boneca e eu achei muito legal e eu comecei a fazer. Só que

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as bonecas precisavam de uma estrutura como máquina de costura, determinados tecidos, plumas, todo uma estrutura técnica que me incomodava. E eu fazia muito crochê também, até foi por isso que a gente se conheceu porque ela foi comprar meus crochês pra botar nas bonecas dela. E gostava muito do crochê por essa simplicidade, por ser só um fio e uma agulha. E trabalhei com arame quando trabalhei com artesanato. Na adolescência eu vendia artesanato em feira, como sobrevivência mesmo e aprendi várias técnicas mistas, mas muito do artesanato. Mas quando eu percebi essa visão do vodu mesmo - enfim vodu é outra coisa mas aqui a gente conhece por vodu, bonecas de vodu né. Então quando eu conheci esse mundo da feitiçaria de bonecas isso me atraiu muito. Só que essa feitiçaria com a boneca de pano eu achava muito exigente com os materiais então comecei a fazer essas bonecas juntando materiais que eu encontrava por aí, na rua, no lixo, em antiquários, em terrenos, em lugares abandonados. Então eu vou juntando muitos elementos, conforme for. Hoje em dia não tanto, hoje em dia eu até compro as coisas ou saio pra coletar coisas específicas. Tipo, ah eu vou na praia coletar elementos. Mas antigamente quando eu comecei era assim, eu juntava muita coisa e misturava com cola, amarrava, dava nó, com os elementos que eu tinha eu buscava criar uma expressão escultural e artística. Mas acho que o que me despertou eu acho que foi esse contato com essa ideia de que a boneca e a escultura poderiam ser feitiços. Quais elementos tu vê como importantes pra que esse momento de criação seja significativo pra ti? Se eu fosse pensar em elementos da composição material da boneca, pra mim é muito importante o arame, que eu vejo o arame quanto um esqueleto. Que representasse um mapa, um esqueleto do que é um corpo. Mas não tem nada que seja essencial e importante a não ser a preparação do ritual, isso sempre acontece. Sempre acendo velas, faço defumações, faço todo o processo de organizar os elementos e montar como se fosse um ritual. Como se fosse não, é um ritual. Então eu monto um ritual sempre pra fazer a boneca que tem a ver com a intenção daquela boneca com aquela energia que eu to sentindo que é aquilo que vai ser parido ali. Por exemplo, uma boneca que fala sobre meu lado mais intuitivo, minha intuição, eu botei vários elementos roxos, incensos de intuição, uma musica Philippe Glass, (?)), botar uma musica mais na vibe pra

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mergulhar naquela catarse. Sempre crio um ambiente pra entrar nele e realizar com muita força essa boneca. Então acho que o que é mais importante de toda boneca que eu faço, tem um processo ritualístico envolvido. É por isso até que eu gosto de terminar elas na mesma hora que eu começo porque eu não gosto de retomar um ritual, se eu começo um ritual eu gosto de terminar ele e deu. Aí o Me conta um pouco sobre ti. Da onde tu vem, do que tu gosta, o que não gosta? De quais formas tu entende elas como autorretratos? Primeiro porque eu busco a referência em mim, então acho que isso já é um autorretrato. Eu tento me expressar na boneca, ou um momento em que eu vivi ou um sentimento que eu vivi ou um elemento que eu queria adquirir em mim. Então seria um autorretrato ficcional. É algo que eu não tenho mas eu quero. Tipo, eu preciso de mais maleabilidade, então faço uma boneca que sou eu maleável. Então eu vejo como autorretrato assim porque eu expresso quem eu sou com base em mim numa outra linguagem. Elas têm expressões de um eu que sente alguma coisa ou que precisa de alguma coisa ou que tá passando por uma determinada coisa. Eu acho que sou parecida com elas. Uma coisa meio esguia, meio aleatória no sentido das cores e dos elementos. Outra coisa, todas elas têm elementos que já foram coisas que eu usei. Brincos, pulseiras, botões de roupa, anéis, maquiagens. Coisas que eram minhas e eu coloco nelas e aquilo deixa de ser meu (ou não). Quando uma pessoa externa vê teu trabalho, qual impacto tu espera ter sobre ela? Não sei o que eu espero das outras pessoas, na real isso é um problema meu sabia? Que eu não faço arte (pros outros) e isso é muito maluco né porque a gente sempre faz pros outros, de alguma forma. Mas eu nunca, eu não exponho a minha arte. Quando eu boto ela pras pessoas verem é mais porque eu fico curiosa do que as pessoas vão achar né. E geralmente as pessoas não veem muito como objetos artísticos e mais como bonecas mesmo. Sem entender que aquilo tem a profundidade que eu vejo. Então acho que eu também tenho uma imaturidade nesse sentido, eu não sei o que eu quero. E isso é uma grande questão pra mim, eu não sei o que eu quero expressar na minha arte pros outros e talvez isso enfraqueça. Eu vejo que isso enfraquece a minha arte. Eu não teorizo, não conceituo. Eu conceituo sobre tudo, sobre meus textos, sobre quem eu sou, sobre como eu

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me visto, sobre tudo na minha identidade. Mas sobre elas é como se fossem resultados de feitiços e eu espero que elas levem bom sentimento. Não sei, isso é uma questão pra mim. Como tu acha que a feitiçaria se entrelaça com o fazer artístico? Sobre feitiçaria, é isso que eu falei. Eu vejo que elas são sempre o processo de um ritual de feitiçaria e elas sempre tem intenção. Repito porque é isso, não tem outra coisa pra contar porque elas nascem de um processo de magia e elas tem intenção e elas continuam ali e eu cultuo elas. Tem uma boneca ali que representa meu casamento. Aí quando eu preciso que meu casamento precisa ser cultuado eu vou la e continuo cultivando ela. Dou um presente pra ela, converso com ela.

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POR QUE ARTISTAS MULHERES UTILIZARAM AUTORRETRATOS PARA IMPOR SEUS LUGARES NA HISTÓRIA DA ARTE?

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Durante o renascimento, havia um ditado bem conhecido: “Todo artista pinta a si mesmo”. Este ditado demonstra a importância do autorrretrato na época, mas também revela o preconceito de gênero inerente à noção de quem era considerado um verdadeiro artista. Assim, à medida que o autorretrato ganhou popularidade na era humanista, mulheres artistas se envolveram avidamente com gênero. Em seu excelente livro Seeing Aurselves: Women Self Selftretrits, Frances Borzello acompanha a história do autorretrato feminino através das épocas. Ela observa a importância singular dessa categoria específica para as mulheres como uma “maneira de apresentar uma história sobre si mesma para consumo público”, uma rara ruptura da típica objetificação da imagem feminina retratada por homens. Para a pintora renascentista italiana Sofonisba Anguissola, o autorretrato era uma questão de necessidade. Proibida - como todas as mulheres da época - de ter aulas de desenho anatômico, Anguissola voltou seu foco para modelos femininas, incluindo si mesma. Em seu autorretrato Self-portrait at the Easel Painting de 1556, ela retrata a si mesma como uma

mulher super pura, vestida de forma modesta enquanto pinta a Virgem Maria e Jesus Cristo. Anguissola fixa seus olhos no espectador, confusa como se tivesse sido interrompida no meio de sua pintura. Sua decisão de se pintar com as ferramentas de seu trabalho - paleta de tinta, pincel e mahlstick (um dispositivo usado para apoiar a mão do artista) - foi relativamente incomum em sua época. Essa inclusão sugere que ela estava resistindo ferozmente à invisibilidade como artista, determinada a provar a dedicação de sua habilidade e seu trabalho. O autorretrato da pintora italiana Artemisia Gentileschi, do século XVII, a retrata trabalhando, feito entre 1638 e 1639, assumindo um tom elevado e até reverencial. Ela se representou como “Allegory of painting””, figura descrita na famosa iconologia de Cesare Ripa, um livro barroco de iconografia, como uma mulher de cabelos escuros usando uma corrente de ouro. Gentileschi criou uma oportunidade de exibir as extensas demandas de pinturas e também o seu domínio de concentração sobre o seu trabalho. Associandose a uma alegoria simbólica, ela brilhantemente se mostrou

como a personificação da pintura. No processo, observa Borzello, ela “inventou um tipo de autorretrato que nenhum homem poderia pertencer”, enquanto também afirmava seus talentos em um mundo que preferia ignorá-los. No século 18, a França viu o florescimento da arte feminina. Alguns salões abriram suas portas para um número limitado de artistas femininas. Entre elas estava Adélaïde Labille-Guiard, que também se retratou no ato de pintar, desta vez acompanhada por duas alunas. Seu Self-Portrait with Two Pupils (1785) apresenta os detalhes não-românticos do estúdio de uma artista: um baú de pintor, uma tela sobressalente - ao lado do vestido elegante e altamente texturizado de Labille-Guiard, decorado luxuosamente com rendas e penas. Atrativamente, a artista se recusa a nos mostrar a tela em que está trabalhando. A estudiosa Laura Auricchio, entre outros, argumentou que o retrato é simultaneamente um esforço esclarecido de relações públicas para promover as habilidades do artista, bem como uma crítica às contradições inerentes a ser uma artista feminina. Os artistas da época dependiam cada vez mais da atenção

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do público para garantir comissões. Como uma mulher, Labille-Guiard violou as regras da feminilidade burguesa ao ativamente buscar atenção por seu trabalho. Nesta pintura, Labille-Guiard adiciona um desafio ao espectador, apresentando suas habilidades profissionais junto a toda a sua performance de feminilidade. Ao se representar com duas alunas, Labille-Guiard também declara sua solidariedade a outras artistas mulheres e seu papel importante como mentora. Embora tenha um tema semelhante, o famoso autoretrato de Marie Bashkirtseff “In Studio”, de 1881, dificilmente poderia ser mais diferente do de Labille-Guiard. A artista russa retrata um grupo de pintoras em uma aula de desenho anatômico, enquanto um menino jovem e seminu é o modelo. (No século 19, mulheres não tinham permissão para pintar modelos totalmente nuas). Ao mudar o gênero comum tanto da pintora quanto do modelo, Bashkirtseff elevou o status quo, o que impedia que as artistas recebessem o mesmo elogio que seus colegas homens. Ao mostrar essas pintoras trabalhando duro, ela exige uma maior visibilidade de seus esforços.

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Quando o mundo entrou no século 20, o retrato feminino mudou. Muitos artistas começaram interrogar a sexualidade e a gravidez, tópicos que outrora haviam sido escandalosos tabus. A estudiosa Diane Radycki descreveu Paula Modersohn-Becker como a primeira artista ocidental do mundo a retratar sua figura completamente nua em um auto-retrato. Enquanto ela carrega um barriga de grávida na pintura Self-Portrait on the sixth anniversary of marriage (1906), Modersohn-Becker não estava realmente grávida na época (na verdade, ela havia recentemente deixado seu marido para pintar em Paris). A crítica de arte Sue Hubbard sugeriu que possamos ler sua gravidez, assim, como metafórica; Modersohn-Becker se via em um período fértil de sua carreira artística, pronta para criar, livre das amarras de um casamento repressivo. Enquanto sua imagem nua lembra as pinturas de Paul Gauguin de mulheres taitianas usando guirlandas em volta do pescoço, Modersohn-Becker desafia as convenções de seu olhar masculino, bloqueando os olhos do espectador, então, declarando sua personalidade e dignidade.

A demanda por dignidade e respeito não era escassa quando se tratava das pinturas do ícone global Frida Kahlo. Em Arbol de la Esperanza (Árvore da Esperança), de 1946, Kahlo usou uma imagem dupla surrealista de si mesma para refletir sobre doenças e dores, força e feminilidade. Sua forma nua não provoca sensualidade - grande parte é coberta por lençóis brancos de hospital -, mas expressa o trauma médico que sofreu. Raramente na história da arte ocidental vemos a forma feminina como além de idealizado. Aqui, nos é mostrado toda a sua fragilidade. Enquanto isso, o outro eu de Kahlo fica sentada ao lado da cama, usando um lindo vestido, encarando diretamente o espectador e segurando um espartilho de aço rosa. Ela parece sugerir desafiadoramente que nem suas cicatrizes, nem sua doença diminuem sua feminilidade ou sua força. Os estilos artísticos surgiram e desapareceram no século XX, mas algumas tradições nos autorretratos de mulheres perduraram. O autorretrato de Loïs Mailou Jones (1940) evoca as pinturas dos seus antecessores. Em sua versão, Jones exibe quatro pincéis, orgulhosamente declarando sua presença como uma artista


negra. Ela tinha recentemente conhecido Alain Locke, um dos líderes do movimento New Negro, que a estimulou a explorar suas raízes africanas e sua identidade negra em sua arte. Nesta pintura, Jones retrata duas esculturas africanas atrás dela, como se declarasse sua dívida com as tradições dos artistas que vieram antes. A arte abstrata também trouxe novas camadas ao autorretrato feminino. Enquanto Yayoi Kusama é mais conhecida por seus pontilhados explorando o infinito, ela aplicou o mesmo pontilhado em seu próprio rosto. Em uma entrevista à BBC, Kusama explicou que “os pontos são símbolos do mundo, do cosmos. A Terra é um ponto, a lua, o sol, as estrelas são todas feitas de pontos. Você e eu somos pontos.” Em seu “Self Portrait (TWAY)” de 2010, ela literalizou esse sentimento. A pintura, com seus padrões complementares de pontos amarelos e roxos, indica que a pintora se vê em harmonia com o mundo ao seu redor. À medida que a arte feminista da década de 1970 ganhou destaque, o autorretrato feminino assumiu novos ângulos subversivos. Em suas fotografias em preto

e branco, Cindy Sherman refletia em imagens de mulheres ao longo da história da arte ocidental e da cultura visual. Em seu autorretrato Untitled (Madonna), de 1975, ela faz uma pose que simultaneamente lembra uma Virgem Maria e uma garota emancipada dos anos 20. Enquanto ela exala passividade feminina, essa postura é subvertida pelo que o espectador sabe - que Sherman foi responsável por criar essa imagem. Ao afirmar o controle sobre sua própria imagem, a artista confunde as expectativas sobre o que significa ser o “objeto” do olhar de uma platéia. As maneiras pelas quais a arte é consumida no século 21 fizeram mais para mudar o autorretrato feminino do que qualquer outra coisa. Nossa experiência cada vez mais digital da arte e do corpo feminino é exemplificada no projeto popular do Instagram de Amalia Ulman, que narra sua transformação semificcional em simbolos que ela viu popularizar on-line, como “menina bonita”, “sugar baby” e “deusa “. Seus meses de “performance” através de selfies no Instagram catapultaram o autorretrato feminino para a era da Internet. Ao mesmo tempo, o projeto de

Ulman confronta a questão da autenticidade na selfie, a forma mais moderna de auto-retrato. Em uma imagem de 2014, Excellences & Perfections (Atualização do Instagram, 5 de setembro de 2014), Ulman retrata a si mesma em uma sala espelhada, como se sugerisse que sua imagem online é uma de infinitas ilusões e transmutações. Os meios, ferramentas e tradições do autorretrato feminino mudaram drasticamente ao longo do tempo, mas o gênero manteve sua capacidade duradoura de transgredir e subverter as expectativas, exigindo ao mesmo tempo que o mundo reconheça e aprecie suas artistas femininas.

Amanda Scherker

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CINDY SHERMAN repensando autorretratos a partir das redes sociais

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Mimetismo na natureza foi observado pela primeira vez em borboletas, no século XIX. Certas espécies se confundem como vespas; outras têm marcas falsamente anunciando que são venenosas. O instinto de sobrevivência por si só não explica a possibilidade da camuflagem. O romancista Vladimir Nabokov relatou borboletas tão criativamente exuberantes que, ao se disfarçarem de folhas, imitaram os pequenos orifícios mastigados por larvas. Que predador poderia apreciar tal sutileza? Essas eram “delícias não-utilitárias” - era arte, ele disse - a natureza jogando “um jogo de intrincados encantamentos e decepções”. O filósofo francês Roger Caillois adotou uma visão mais sombria. “Por que o peixe linguado e o pregado pegam emprestado as cores e até os contornos do fundo do mar?” ele perguntou. “Por autoproteção? Não, por auto-aversão.” Por 40 anos, Cindy Sherman, o grande camaleão de nosso tempo, criou mais de 500 fotografias e quase tantos personagens distintos. Ela se transformou em vampiros e vítimas, garotas motoqueiras e babes assasinos, corações solitários e palhaços assassinos. Ela se transformou numa pintura de Goya e em uma Madonna amamentando; uma matrona da sociedade com olhos rosados, radiante de desprezo; o rosto de um cadáver pálido, a lividez se espalhando. John Waters a chamou de “imitadora feminina”. Ela disse brincando de maneira mais simples: “Eu coleciono seios”, referindo-se às próteses que ela usa em seu trabalho. Sua primeira série, o marco “Untitled Film Stills”, 1977-80, apresentou 70 fotografias em preto e branco de cenas

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de filmes de ficção, inspiradas em Hitchcock e Antonioni. Ela revelou alguns em produtos químicos muito quentes para dar a eles a aparência granulada e quebradiça de materiais promocionais baratos. A câmera persegue as mulheres, todas interpretadas por Sherman, enquanto elas ficam em becos escuros ou esperam para pegar uma carona em uma estrada solitária. Nós as vemos através das portas de banheiro entreabertas, refletidas em seus espelhos. Cada fotografia poderia ser legendada como: A última vez que ela foi vista viva. Outras séries se seguiram, cada uma investigando um tipo feminino e sua iconografia. Ela posou como personagens de contos de fadas, mulheres importantes com botox e estrelas de cinema envelhecidas. Uma imagem de sua série “Centerfolds” de 1981 - de uma mulher jovem deitada no chão, com cabelos curtos e bochechas coradas, segurando um anúncio pessoal amassado - foi vendido um em leilão por quase US $ 3,9 milhões em 2011, o maior valor pago por uma única fotografia. Seu trabalho é tão definidor que “você não pode pegar uma fotografia sem toda a história da obra de Cindy Sherman por trás dela”, disse a artista Marilyn Minter. De fato, seu trabalho é tão fundamental para a crítica feminista da arte e para as noções do “olhar masculino”, que pode ser difícil vê-las por si mesmas - elas chegam até nós incrustadas de teoria. A própria Sherman reluta em discutir o significado de seu trabalho; ela se diverte com o frenesi interpretativo que isso provoca. “O fato de seu silêncio agora é quase parte do cânone de Cindy”, disse a curadora Darsie Alexander na abertura de

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uma retrospectiva de 2012. Mas Sherman fala, mesmo que rispidamente sobre um ponto. As fotografias não são autorretratos, nem retratam suas fantasias. Ela se usa porque é mais simples, ela diz. Ela pode se esforçar mais do que qualquer modelo, e pode evitar conversa fiada. A partir de 1985, ela desapareceu brevemente de suas próprias obras de arte. A série “Sex Pictures”, 1989-92, apresentava uma combinação caleidoscópica de membros de manequins, orifícios que expeliam tampões e salsichas (“as fotos de sexo menos sexy de todos os tempos”, escreveu Jerry Saltz na New York Magazine).


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CRÔNICA AUTORRETRATO TEXTO POR LUÍSA FLECK

THE COVEN: MAGIA PRÁTICA TEXTO POR KATE NEAVE

UMA CARTA DE AMOR A MIM MESMA, UMA MULHER GORDA

FOTOGRAFIA DE HOBBES GINSBERG

FOTOGRAFIA DE CHLOE SHEPPARD

TODAS AS IMAGENS DA SÉRIE “SELFIES” DE HOBBES GINSBERG. TODOS OS DIREITOR RESERVADOS À ARTISTA

(TODAS AS IMAGENS) © CHLOE SHEPPARD, CORTESIA DA ARTISTA E POLAROID ORIGINALS EDIÇÃO DE TEXTO BRUNA JUSTINO

STYLING EMMA WYMAN

CLASSIFICADOS MARCELA FUTURO E GIULIA MÜLLER

ZANELE MUHOLI FOTOGRAFIA DE ZANELE MUHOLI TEXTO E INTREVISTA MARINI BATAGLIN / COLETIVO HISTÉRICA IMAGENS (TODAS): © ZANELE MUHOLI. COURTESY OF STEVENSON, CAPE TOWN/JOHANNESBURG AND YANCEY RICHARDSON, NEW YORK; (EM ORDEM DE APARIÇÃO): NTOZAKHE II, PARKTOWN, 2016 ZANELE MUHOLI, MAID X, DURBAN, SOUTH AFRICA, 2015

CLAUDE CAHUN E MARCEL MOORE TODAS AS IMAGENS DAS ARTISTAS. CORTESIA DO MUSEU DE ARTE MODERNA, NOVA YORK. TEXTO MARIE-JO BONNET

POR QUE ARTISTAS MULHERES UTILIZARAM AUTORRETRATOS PARA IMPOR SEUS ESPAÇOS NA HISTÓRIA DA ARTE TEXTO DE AMANDA SCHERKER

JULILE I, PARKTOWN, JOHANNESBURG, 2016

MEL BEVACQUA

ZANELE MUHOLI, STHEMBILE, CAPE TOWN, 2012

IMAGENS CORTESIA DA ARTISTA.

ZANELE MUHOLI, KWANELE, PARKTOWN, JOHANNESBURG, 2016

TEXTO MELINY BEVACQUA

ZANELE MUHOLI, DALISU, NEW YORK, 2016

CINDY SHERMAN

BESTER I, MAYOTTE, 2015 SEBENZILE, PARKTOWN, 2016 THULANI II, PARKTOWN, 2015 ZANELE MUHOLI, ZIPHELELE, PARKTOWN, JOHANNESBURG, 2016 ZANELE MUHOLI, BONA, CHARLOTTESVILLE, VIRGINIA, 2015

FOTOGRAFIAS POR CINDY SHERMAN. CORTESIA DA ARTISTA. TODOS OS DIREITOR RESERVADOS TEXTO PARUL SEHGAL



COMITÊ EDITORIAL GIULIA MÜLLER COLETIVO HISTÉRICA

COLABORADORAS LUÍSA FLECK MARCELA FUTURO MELINY BEVACQUA

PLANEJAMENTO GRÁFICO GIULIA MÜLLER

TRADUÇÃO DE TEXTOS BRUNA JUSTINO



@miramag www.mira.com.lat


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