Rua augusta traduzida em conceitos

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO- MONOGRAFIA

ORIENTADOR: RICARDO CARVALHO LIMA RAMOS ALUNA: GIULIANA ÍSIS GARCIA BELLO JUNHO, 2016



Em memรณria de Yolanda Fabri Garcia



M O V I MENTO

2016



Era uma quarta-feira - fácil de lembrar, baseada no prato que comi aquele dia: feijoada - sentada em frente à vitrine de um restaurante, as cortinas estavam abertas e me sentei em direção à rua, as pessoas desciam a Augusta, geralmente acompanhadas, conversando, com os olhares direcionados; pressupunha eu, estarem indo almoçar com seus colegas de trabalho, algumas se entregavam, vinham com seus crachás pendurados ao pescoço, outras com uma sacola de alguma loja da rua. Poucas me notavam, menos ainda notavam minha câmera e acredito que ninguém sequer tenha reparado que ela estava ligada, captando tudo aquilo que fugia aos meus olhos e se perdia em minha memória. Seus corpos passavam rápido demais, alguns eram obrigados a se girar, para evitar os esbarrões, mas desacelerar nunca, parecia até existir alguma placa de velocidade para os pedestres e ai daquele que não a respeitasse... ” Giuliana Bello 03/02/2016



INTRODUÇÃO

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Entre outras flanagens vividas, essas foram motivo e embasamento do presente trabalho, o qual tem a intenção de captar a essência da Rua Augusta, mais especificamente a região da Baixa Augusta, e traduzi-la em conceitos que a possam definir, através da análise de seu contexto histórico e de movimentos socioculturais que ocorreram na mesma. A partir do momento que tentamos conhecer a rua através de sua história, o principal conceito no qual nos deparamos é o de movimento, associado à rua, às diferentes mudanças de sua apropriação, ao uso e ao principal público frequentador. Baseado no livro A Cidade Errante, de Marta Bogéa, o movimento também é analisado em relação ao homem, à sua capacidade e até mesmo à sua necessidade de se mudar e se desenraizar de seu território: os nômades. Por último, propõe-se a análise do movimento em relação à arquitetura e sua competência de responder aos anseios do homem, podendo se tornar móvel, como a vanguarda moderna, que resgata a itinerância da construção, já existente nos povos nômades, e com sua premissa de genérica consegue desenvolver um desenho estável, porém flexível, com a criação da planta livre. No âmbito da caracterização da rua Augusta e darlhe uma forma, toma-se por base o conceito de fragmento apresentado por Massimo Canevacci em seu livro: A Cidade Polifônica, onde ele reflete sobre a cidade de São Paulo, através de suas observações pessoais e considera a rua Augusta como o maior exemplo e síntese do que é a metrópole.


“Assumindo-se São Paulo como um modelo urbano que multiplica e exacerba combinações e convivências entre múltiplos gêneros comunicativos, intimamente entrelaçados e apresentando-se um ao lado do outro de maneira frequentemente dissonante, sem solução de continuidade, apoiando-se e diferenciando-se entre si, pois bem: tudo isso encontra na rua Augusta sua expressão mais autêntica, mais pura e mais suja a um só tempo. ”

E por fim, ao analisar a rua através de seus usuários surge a conceito da experiência, que é a vivência e o envolvimento do homem com o espaço. Ideia desenvolvida por Michel de Certeau, em seu livro A Invenção do Cotidiano que nomeia de praticantes ordinários, aqueles que se relacionam com a rua de uma maneira mais profunda, que se apropriam e utilizam a cidade, criando assim sua própria cidade. Certeau nos mostra que há um diferente conhecimento espacial e uma nova apreensão por esses praticantes, do que o desenvolvido projetualmente, esse conhecimento é baseado em um saber subjetivo, lúdico e até amoroso. Esse praticante ordinário é ilustrado por Charles Baudelaire, como o flanêur, nome que vem do francês, que significa “passeante”, ele desenvolveu a definição de ser “a pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la” Paola Berenstein Jacques também discute em seus textos a forma como o homem se relaciona no espaço, dessa vez nomeando o praticante ordinário de errante, aquele ”que se preocupa mais com as práticas, ações e percursos, do que com as representações, planificações ou projeções” A experiência dos errantes segundo Paola Jacques está ligada a três características: o ato de perder-se, da lentidão e da corporeidade. As três são opostas ao que

< CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica, Studio Nobel, São Paulo 2004 pág.216

< BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do Capitalismo. Obras Escolhidas, 1989

< JACQUES, Paola. Corpografia Urbana, 2008


nos é padrão atualmente. Enquanto a cartografia tenta nos orientar e localizar, o errante abre mão de qualquer bússola e prefere o perder-se; a lentidão nega a velocidade e o rítmo acelerado do caminhar que nos é imposto e a corporeidade contrasta com a busca pelo imaterial e virtual da sociedade contemporânea.

> CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica, Studio Nobel, São Paulo 2004 pág.216

Partindo do principio de que a Rua Augusta se caracteriza por sua fragmentação, diversidade e poder de síntese que tem da cidade de São Paulo, conforme Massimo Canevacci, em seu capítulo sobre a rua Augusta, a descreve: “ a rua se sedimentou, exagerando ao máximo o que é o estilo, a cultura urbana de São Paulo. A co-habitação. A redundância.”, o projeto proposto tem o intuito de reafirmar o caráter da via e construir uma arquitetura flexível, que seja o tempo permitir uma apropriação e gerar uma vivência rica e lúdica na cidade, criando novos praticantes ordinários/ flanêur/errantes. Para isso, o objeto proposto foi um Edifício Colaborativo, assim como nomeou a autora do projeto que baseou-se nas lojas colaborativas localizadas na rua, que são espaços compartilhados, para que diferentes lojistas possam usufruir de uma mesma infraestrutura e em um espaço reduzido possam apresentar sua marca. A ideia é criar um espaço em que não apenas o produto arquitetônico seja importante, mas a troca, a possibilidade de movimento e a espontaneidade também estejam presentes.



movimento da rua augusta __________________________________

Desde o surgimento da rua Augusta no final do século XIX, a rua passou por diferentes transformações. Tentaremos ao longo desse capítulo, pontuar os principais acontecimentos e mudanças que ocorreram na via.


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O traçado da via atual surge por volta de 1870, a fim de suprir a necessidade de expansão da cidade, além do triângulo histórico, com a divisão de duas chácaras que eram respectivamente de Martinho Prado e Mariano Antonio Vieira. Segundo Felipe Pissaro a primeira urbanização ocorreu de maneira heterogênea, tanto em sua tipologia de construção, quanto em seu público frequentador. As moradias das classes médias e populares seguiam estritamente aos códigos de construção, já os palacetes da elite eram moradias que seguiam a criação de seus arquitetos, para os quais o poder público “fechava os olhos”. Conforme Antônio Paim Vieira (1952) citado por Felipe Pissaro (2013, p.28) a intenção era atrair a elite paulistana para a região, que prometeria ser um “espaço exclusivo, alto e com vista”, porém uma intenção frustrada, já que era considerada “perto demais do cemitério e longe demais da cidade”. O resultado da primeira ocupação da rua foi o de uso misto, onde era compartilhado: serviços modernos e uso residencial, além de ser uma das principais ligações entre o que é hoje, o centro antigo e a Avenida Paulista. Grande parte dos terrenos da região pertenciam à família Prado, mais especificamente a Dona Veridiana Prado, os quais ganharam novos usos, conforme os acordos que Veridiana estabelecia com a elite paulistana. Como exemplo, o quarteirão situado na esquina da rua Caio Prado e a rua Augusta se tornou o colégio Des Oiseaux, seu terreno entre a rua Martinho Prado e a Rua da Consolação foi cedido 22

< PISSARDO, Felipe. A Rua Apropriada :um estudo sobre as transformações e usos na Rua Augusta (São Paulo, 1891-2012) Dissertação de mestrado 2013


da rua augusta

à Prefeitura para a construção do Velódromo(hoje praça Roosevelt). A região foi se valorizando com essas novas construções, que atraem novos empreendimentos ligados à educação e ao esporte. O que acaba estimulando um novo estilo de vida “moderno e cosmopolita” (PISSARO, 2013 p.32) voltado para a elite paulistana, porém o público é sempre diversificado e segregado por regiões, de maneira espontânea e informal: > PISSARDO, Felipe. A Rua Apropriada :um estudo sobre as transformações e usos na Rua Augusta (São Paulo, 1891-2012) Dissertação de mestrado 2013, p.45

“(...)concentrando-se na região mais próxima da avenida Paulista os palacetes e sobrados de classe média-alta e na parte intermediária da rua (entre a Antônia de Queiroz e a rua Mathias Ayres) as edificações de uso misto e casas de classe média, média-baixa e de operários.”

A via também recebe investimentos públicos de infraestrutura, que cooperam para sua melhora e consolidação, como o novo eixo de ligação entre bairros, conforme é possível verificar no texto publicado no Jornal O Estado de São Paulo (06/01/1903) citado na dissertação de Pissardo: “A locomoção e a circulação a pé pelas ruas eram cada vez mais facilitadas pela instalação de equipamentos urbanos que, garantindo limpeza, iluminação e segurança nas vias públicas, serviam de base para a estruturação de um estilo de vida urbano moderno. Equipamentos modernos são instalados na rua como os combustores a gás em 1903 e a linha de bondes elétricos em 1909.”

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da rua augusta < Figura 01 Fotos da antiga estação de energia para os bondes elétricos da Light, entre às ruas Peixoto Gomide e Mathias Ayres. Fonte: Acervo do Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo (1921), Extraído da dissertação de mestrado de Felipe Mello Pissardo 2013, p.22

< Figura 02 Fotos do estado atual da estação de energia da Eletropaulo, Extraída da dissertação de mestrado de Felipe Mello Pissardo 2013, p.23

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Em 1918, por questões de interesses da Cia City-companhia imobiliária de luxo da época- que faz uma parceria com a Light para levar a rede de bonde para além dos terrenos da Vila América, para garantir o sucesso e inaugurar o novo empreendimento deles, na inédita cidadejardim. A partir de 1940, a rua Augusta entra em uma nova fase. Desde a década de 1910, se inicia a popularização do carro, o que faz com que a arquitetura das casas e comércios se adaptem a essa nova necessidade do homem, as novas garagens vão ocupar os espaços dos jardins e dos quintais. (PISSARDO, 2013, p.23).Em 1925, já há relatos de trânsito intenso na via. Em 1938, com o novo plano Prestes Maia, que tenta criar um novo anel viário, em torno do centro para desafogar o trânsito a rua Augusta passa a absorver esse imenso fluxo de veículo, ela se torna entrada e saída do centro. Sendo o carro, agora, o principal meio de locomoção da mesma. O cenário da cidade como um todo se modificava, São Paulo se espraiava para a periferia e verticalizava o centro. Na mesma época, as habitações também sofreram alterações, a verticalização do centro reverberou na Augusta, onde surgiram apartamentos, de até 3 andares, mais simples, voltadas ao público de classe-média. Os bairrosjardins tendiam a crescer, levando com eles a população de elite, que já se retiravam da região, conhecida hoje como baixa-augusta. 26

A arquitetura continuou se verticalizando, construin-


da rua augusta > Figura 03 Edíficio Ibaté 2013, Localizado na esquina da Rua Augusta com Rua Antôno Carlos Foto autoria: Marcos O. Costa 2013

do torres destinadas à classe média e térreo destinado à locação para comércio. Edificações que compõem a paisagem da rua até a atualidade. Como exemplo do Edifício Ibaté, do arquiteto Franz Heep, construído em 1953 e habitado e preservado até os dias atuais. Outro fator de grande influência na arquitetura foi a criação das galerias, que já existiam no centro de São Paulo e começaram a aparecer na rua Augusta a partir da década de 1960, “com o intuito de otimizar o espaço” (PISSARO,2013. P.106), porém diferentemente do que existia no centro essas eram contidas dentro de um lote, não serviam como ruas internas nos quarteirões. Galerias como Ouro Velho e Ouro Fino, apareceram para imitar modelos de Shoppings Centers, que estavam na moda e eram sucesso nos Estados Unidos e em Buenos Aires, por sua 27


Rua Augusta Ronnie Cord Entrei na Rua Augusta a 120 por hora Botei a turma toda do passeio pra fora Fiz curva em duas rodas sem usar a buzina Parei a quatro dedos da vitrina Hay, hay, Johnny Hay, hay, Alfredo Quem é da nossa gang não tem medo Hay, hay, Johnny Hay, hay, Alfredo Quem é da nossa gang não tem medo Meu carro não tem breque, não tem luz,não tem buzina Tem três carburadores, todos os três envenenados Só pára na subida quando acaba a gasolina Só passa se tiver sinal fechado Toquei a 130 com destino à cidade No Anhangabaú eu botei mais velocidade Com três pneus carecas derrapando na raia Subi a galeria Prestes Maia Tremendão Hay, hay, Johnny Hay, hay, Alfredo Quem é da nossa gang não tem medo Hay, hay, Johnny Hay, hay, Alfredo Quem é da nossa gang não tem medo

< Música de Ronnie Cord, Relata as práticas de racha dos jovens da época. 1963


da rua augusta

facilidade de ser um ambiente protegido, sem o desconforto das intempéries naturais da rua. O público jovem é um dos principais da época, sua apropriação do espaço mostra registros de paqueras e práticas de rachas, atividade comumente praticada na rua, que estava tomada pelo espírito transgressor adolescente. Após a Construção do Conjunto Nacional (1956) e do shopping Iguatemi (1966), a luxuosa via que apresentava um “leque de butiques”, segundo Villaca (2001, p.265) entra em uma nova fase: seu decline. > PISSARDO, Felipe. A Rua Apropriada :um estudo sobre as transformações e usos na Rua Augusta (São Paulo, 1891-2012) Dissertação de mestrado 2013, p.50

“Os problemas de infraestrutura, grandes congestionamentos e a construção de uma imagem negativa em relação ao lado central da rua a partir de 1970, influenciaram na diminuição da frequência dos consumidores de alto poder aquisitivo e em uma transformação de uso dos edifícios nessa seção da rua, abrindo espaço para a proliferação de casas de meretrício, boates e bares.”

Com a mudança de programa da região, a prostituição, que antes era Indoor, passa a ser comumente vista na rua. Massimo Canevacci relata suas percepções, através de sua vivência na rua Augusta: > CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica, Studio Nobel, São Paulo 2004 pág.217

“Passa-se de maneira absolutamente normal e contígua de famosos hotéis de cinco estrelas, que têm as melhores cozinhas da cidade, a casas meio arruinadas, a pequenos palacetes nos quais se anunciam as aventuras e os tabus mais promíscuos: saunas mistas, somente para adultos, massagens only for men. E ao seu lado, sem pausa, para respiração, escolas elementares ou médias que, quando fecham, à noitinha, fazem com que o inocente público de suas estudantes misture-se na rua com o das mocinhas prostitutas também da sua idade. Ambos esses fluxos precedem de poucas horas a invasão de transexuais muito jovens-descarados e provocantes- que não se oferecem nas esquinas mais escuras ou afastadas, mas sim diante de normalíssimas pizzarias. Todos convivem com todos.”

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Isso fez com que o colégio De Oseaux se mudasse para o colégio Madre Alix, localizado no Bairro dos Jardins o que afastou o público jovem, antes tão presente e participativo da paisagem da rua. Na década de 1990, se inicia o que podemos marcar como uma nova fase: a romantização e especulação da mídia sobre o lado obscuro e degradante da rua. Ela ganha espaço na arte, seja pela literatura, filmes, artes plásticas ou fotografia. E se torna tema ou plano de fundo de filmes e novelas. Nos anos 2000, a prefeitura vai iniciar uma “revitalização do espaço”(PISSARDO,2013,p.142) a fim de acabar com a prostituição, eles fecham as casas noturnas ou tentam atrair um novo público frequentador, que será o jovem universitário, de classe média-alta, se tornando comum festas universitárias no local. Por último, a nova fase que a rua Augusta vive é a de especulação imobiliária e a criação de novos empreendimentos, voltados à classe média-alta, propondo um novo tipo de implantação, que destoa profundamente das características fundamentais dos prédios da região, as construções tem recuo em suas quatro faces, o térreo não é destinado ao público, e inversamente ao modelo antigo, costuma ser murado. Tereza Caldeira (2000), citada por Claudio Delicato, assim define esse novo tipo de tipologia: “O novo conceito de moradia articula cinco elementos básicos: segurança, isolamento, homogeneidade social, equipamentos e serviços. Conclui-se que a residência enclausurada, fortificada e isolada, um ambiente seguro no qual alguém pode usar vários equipamentos

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< CALDEIRA, Tereza tese de doutorado Condomínios Horizontais: a ilusão de viver junto e isolado ao mesmo tempo, 2007, p.02


da rua augusta > Figura 04 Cartaz do novo Empreendimento na rua Augusta, pela ESSER Construtora. A propaganda valoriza a localização centralizada da rua e a variedade de usos ao seu redor, além da infraestrutura de transporte.

e serviços e viver só com pessoas percebidas como iguais é a imagem mais sedutora e que confere o maior status”.

Novo empreendimento da construtora Lopes, em construção atualmente, entre as ruas Marques de Paranaguá e D. Antônia de Queirós. Pode-se notar pela planta e pela imagem os recuos e o distanciamento do edifício com a rua, separado, por muros e guarita. Conclui-se que a rua Augusta sempre foi muito sensível e suscetível às mudanças que ocorriam na vida da cidade de São Paulo. Alterando seu público, uso, tipologia de construção e sua imagem midiática. O que caracteriza a via é ser um espaço capaz de absorver e fazer essas alterações periodicamente em sua forma física, resultando em um ambiente que guarda em si marcas de diversas épocas e acontecimentos importantes na vida paulistana. 31



movimento do homem: nomadismo __________________________________

No seguinte capítulo tentaremos analisar o movimento humano: o nomadismo e suas responsabilidades pelas mudanças que ocorreram na via.


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A ideia de movimento relacionada ao homem nos remete imediatamente ao termo nomadismo. Bem se sabe que os primeiros povos pré-históricos eram nômades, ou seja, povos que não se fixavam em lugares durante muito tempo.(Dicionário Aurélio,2000) Por questões de impotência e falta de recursos frente à natureza e por questões de sobrevivência, o homem antigo era “obrigado” a se deslocar periodicamente em busca de suprimento, porém com o desenvolvimento da técnica seu poder sobre as intempéries aumentou, dandolhe chance de fixar-se e tornando-o sedentário. Hoje vemos um novo cenário, a mídia anuncia a volta do nomadismo. Ainda que continue existindo condições que obriguem o homem a sair de seu território, como conflitos civis e desastres naturais, discutiremos aqui sobre a capacidade dele se desenraizar, trazida pela revolução tecnológica. O desenraizar-se não se aplica apenas ao estado físico do corpo do homem contemporâneo, mas também ao seu estado de espírito da “onda” em que ele vive atualmente pela busca constante da emancipação, desprendimento e liberdade. Zygmunt Bauman, em seu livro Modernidade Líquida, desenvolve a ideia do homem estar voltando ao estado de nômade. Ele diz que o movimento e a pressa se instauraram no mundo atual, afetando o ritmo humano e as relações que as pessoas estabelecem umas com as outras, afirmando o aumento cada vez maior do número de conexões estabelecidas e de informações trocadas. Porém, há cada vez menos comprometimento ou aprofundamento nestas relações. A busca da sociedade atual pelo movimen34


do homem <

Figura 05 Imagem do Filme Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos, adaptado ao cinema por Nelson Pereira dos Santos. O romance escrito em 1938, retrata a vida dos retirantes da seca, em busca de áreas do sertão, menos castigada. O nomadismo se dá por condições naturais, as quais o homem não é capaz de superar e, assim como Graciliano escreve em seu livro, o homem se minimaliza a condições animais, influenciado pelo meio.

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to fez o duradouro e o eterno perderem força numa cultura em que o novo norte é o Carpe Diem. ”Rockefeller pode ter desejado construir suas fábricas, estradas de ferro e torres de petróleo altas e volumosas e ser dono delas por um longo tempo. Bill Gates, no entanto, não sente remorsos quando abandona posses de que se orgulhava ontem; é a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da substituição que traz lucro hoje - não à durabilidade e confiabilidade do produto.”

A globalização, apoiada na tecnologia e na informática, mudou a noção de tempo e quebrou barreiras que antes existiam, barreiras estas tanto físicas como ideológicas; se por um lado nosso poder de mover-se no espaço aumenta cada vez mais em um curto intervalo de tempo, por outro, nossas opiniões têm uma abrangência ainda maior e sua “viralização” acontece de maneira instantânea e imediata, através da internet. Bauman chama de senhores ausentes, aqueles que não precisam estar presentes fisicamente para que seu negócio esteja funcionando. Hoje, segundo o filósofo, “a meta da política é manter as estradas abertas para o tráfego nômade.”(BAUMAN,2000 p.150) A interação do homem com outras culturas fez com que a sua própria sofresse modificações. Hoje, conforme defende o autor, diminuiu-se o preconceito e dissolveramse as “verdades absolutas”. Vivemos em um mundo que é líquido, fluido, que se recicla e substitui. Conforme diz Gates, está em constante mudança e em movimento, ou seja, é o homem que está se transformando. Atualmente, o interesse pelo duradouro foi substituído pelos 3R’s (reduzir, reciclar, reusar), que ganhou um status de cool e se tornou estilo de vida da geração Y. 36

< BAUMAN, Zygmunt Modernidade LÍquida Zahar, Rio de Janeiro 2000, p.147


do homem <

Figura 06 Foto de Christopher McCandless, jovem americano que renunciou ao seu estilo de vida e abriu mão de tudo o que lhe ligava à materialidade, testando a si mesmo na busca por descobrir o que era autêntico e o que não era. Opta por viver como nômade, faz uma viagem ao Alasca, deixando tudo para traz e sem qualquer tipo de segurança e comunicação com a civilização.

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Por conta dessas inquietações o homem vai procurar novos lugares para se assentar que correspondam àquele estado de espírito no qual ele vive, a liberdade e emancipação almejada vão fazer com que ele saia de casa, que antes compartilhava com familiares, para viver sozinho, ou compartilhar com completos estranhos, como são os casos das “repúblicas” e “pisos compartilhados”. O nomadismo vai criar um tipo de espaço nômade, que é descrito no livro de Careri, o espaço nômade é: “Um infinito vazio desabitado e muitas vezes impraticável: um deserto em que é difícil orientar-se, como um imenso mar onde o único rastro reconhecível é o sulco deixado pelo caminhar, um rasto móvel e evanescente. A cidade nômade é o próprio percurso, o sinal mais estável dentro do vazio, e a forma dessa cidade é a linha sinuosa desenhada pelo subseguir-se dos pontos em movimento.”

Esses vazios (na visão dos sedentários) ou não tão vazios assim (na visão dos nômades), essa paisagem pouco definida e efêmera criada pelos nômades é originária, segundo Careri, pela atividade do vagar, vagabundear, caminhar. O nomadismo, segundo sua definição, tem como sinônimo o verbo vagabundear que, segundo o dicionário Aurélio, é: vadiar; andar sem destino; viver ociosamente. Os surrealistas e dadaístas experimentaram o vagabundear, como atitude de experimentação e manifesto. Os Dadas encontravam-se em lugares banais da cidade e organizavam excursões, com o intuito de viver esses lugares que eram esquecidos pelos moradores, eram contra a cidade futurista, que: 38

< CARERI, Francesco Walkscapes: O caminhar como Prática Estética. Gustavo Gili, Barcelona 2013, p.40


do homem > CARERI, Francesco Walkscapes: O caminhar como Prática Estética. Gustavo Gili, Barcelona 2013, p.74

“Era atravessada por fluxos de energia e por voragens de massas humanas, uma cidade que perdeu toda possibilidade de visão estática e que é posta em ação pelas máquinas em velocidade, pelas luzes, pelos ruídos, pelo multiplicar-se dos pontos de vista perspectivos e pela metamorfose contínua do espaço.”

Eles valorizam os lugares banais da cidade e nesses locais desmistificam a arte, “alcançando a união entre arte e vida, entre sublime e cotidiano”. (CARERI, Walkscapes. 2013, p.74) Os surrealistas também organizavam deambulações, porém estes a realizavam nos arredores de Paris, nos campos, e caminhavam com a intenção de “explorar os limites entre a vida consciente e a vida de sonho”. O retorno da ideia de nomadismo está cada vez mais forte e vêm-se apoiando nos avanços tecnológicos e da informática. O desprendimento, tanto afetivo, quanto físico das pessoas com seus territórios está cada vez mais comum e mais pregado, isso faz com que os corpos se desloquem e se desloquem cada vez mais rápido.

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movimento na arquitetura __________________________________

O presente capítulo discute a ampliação do nomadismo além do homem, para tudo aquilo que lhe cerca, no caso a arquitetura, mostrando como sua mobilidade corpórea extrapolou limites físicos dando mobilidade, também, à arquitetura.



NÔMADA :

(CO) Nuestra vida tende a atravessar nuevos espacios, permanentemente, en vez de dominar un espacio único: hemos vuelto a ser una cultura nómada. Imaginamos que estas cualidades emergentes del espacio deberían tener alguna relación con la forma de arquitectura, y ésta nueva forma de entender el espacio nos liberaria de los condicionantes de un espacio único y nos forzaría a crear nuevas técnicas de manipulación de éste en las que los condicionantes del suelo, sus limites y su naturaleza incrementarían su complejidade.”

Alejandro Zera & Farshid Moussavi.

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NÔMADE: Nossa vida tende a atravessar novos espaços, permanentemente, em vez de dominar um espaço único: voltamos à uma cultura nômade. Imaginamos que essas qualidades emergentes do espaço deveriam ter alguma relação com a forma da arquitetura, e essa nova forma de entender o espaço nos livraria dos condicionantes de um espaço único e nos forçaria a criar novas técnicas de manipulação do mesmo, das quais os condicionantes como o solo, seus limites e sua natureza incrementariam sua complexidade. Tradução da Autora


(VM) La primera vez que la idea de impermanência quedó associada a la arquitectura fue con Raymond Wilson em 1967. Hasta entonces la idea de nomadismo estaba associada a las personas y no a las casas. Ray Wilson fui uno de los pioneiros em este campo. Hizo um estúdio profundo de la producción industrializada de elementos arquitetônicos móviles, analizando y classificando lo que el mercado ofrecía: las casas móviles -in-móviles, los diferentes tipos de caravanas, los Autnomous Living Packages y los mini-macro-buses. Wilson escribía: ‘La impermanência se ha introducido em el pensamento contemporâneo. Es la manifestación de uma tecnologia avanzada , no sólo en la movilidad de las personas, las casa sino también en los materiales, que pueden ser usados em otros ciclos.’ ”

Ray Wilson, Architecture and Assemble Line.

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A primeira vez que a ideia de impermanência foi associada a arquitetura foi por Raymond Wilson em 1967. Até então a ideia de nomadismo era associada as pessoas e não as casas. Ray Wilson foi um dos pioneiros nesse campo. Fez um estudo profundo da produção industrializada dos elementos arquitetônicos móveis, analisando e classificando o que o mercado oferecia: As casas móveis –nos –móveis, os diferentes tipos de caravanas, os Autonomous Living Packages e os mini micro-ônibus. Wilson disse: ‘A impermanência se introduziu no pensamento contemporâneo. É a manifestação de uma tecnologia avançada, não apenas a mobilidade das pessoas, das casas, mas também dos materiais, que poder ser usados em outros ciclos.’” Tradução da Autora


(CO) Si en los anos sessenta el nómada es todavia un cruce entre el autómata de ciênciaficción de Archigram y el hombre natural de Reyner Banham (el hippy) lo que ejemplifica el trabajo de reflexiones como las de Toyo Ito es como esse sujeito, ya descrito en su itinerância e imprecisíon , ha abandonado por completo aquella militância técnica y vital volcando sus interesses a un mayor reconocimiento de ella propia subjetividade. Algo que comenzaría por uma reconstitución de su próprio cuerpo y por una subjetivacíon después de la experiência que viene associada al médio productivo y a sus prácticas derivadas, es decir, el consumismo.”

Inhaki Ábalos & Juan Herreros Diccionario Metápolis de Arquitectura Avanzada Ciudad y Tecnologia em la Sociedade de la Información. 2000

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Nos anos sessenta o nômade era ainda estava dividido entre a automação da ciência -ficção do Archigram- e o homem natural de Reyner Banham (o Hippie) o que exemplifica o trabalho de reflexões como as de Toyo Ito é como esse sujeito, já descrito em suas itinerância e imprecisões, abandonou por completo aquela militância técnica e vital voltando seus interesses a um maior reconhecimento da própria subjetividade. Algo que começaria por uma reconstrução de seu próprio corpo e por uma subjetivação depois da experiência que vem associada ao meio produtivo e a suas práticas derivadas, ou seja, o consumismo. Tradução da Autora


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A definição de nômade segundo o Dicionário Metápolis diz que o ato de ser nômade é algo natural do homem e que esse ato de perambular deveria ser e é acompanhado pela arquitetura. Voltando ao tempo, os primeiros povos nômades foram responsáveis por criarem uma arquitetura vernacular, ou seja, uma arquitetura que tira proveito dos materiais e técnicas locais. O próprio termo é oriundo da palavra vernaculus, do latim, que quer dizer doméstico, nativo. Esse tipo de arquitetura, criada para servir a esse tipo de homem cobrava não apenas que fosse desenvolvido um abrigo, ou que resolvesse questões básicas de conforto, mas que principalmente fosse móvel, e mesmo enquanto sendo uma construção efêmera, que fosse estável. “Amparados numa tecnologia de construções leves para transportar –e ágeis para montar e desmontar-, constroem tendas cujas estruturas contam com a engenhosidade do projeto de arma/desarma para o sucesso do seu deslocamento.”

Sendo assim, a construção gira em torno do deslocamento e sua forma e materiais são resultado da experimentação, que busca responder e suprir as necessidades de movimento da construção, gerando uma arquitetura que se constitui a partir da repetição. Quando o homem consegue dominar a natureza ele se torna sedentário e as construções adquirem uma nova forma frente a esse novo estilo de vida. A leveza necessária anteriormente foi substituída por materiais pesados e resistentes e a estética e a proporção passam a ser temáticas citadas e valorizadas. Pensando nos nossos constru46

< BOGÉA, Marta. Teses de Doutoramento FAU-USP Cidade Errante: Arquitetura em Movimento São Paulo 2006, p.33


n a a r q u ite tu r a

tores mais antigos: os gregos e romanos, eles conseguiram eternizar suas arquiteturas e fazer com que elas fossem duráveis. Paola Berenstein Jacques, em seu livro A Estética da Ginga, diz que a arquitetura sempre esteve ligada à ideia do durável: > JACQUES, Paola Estética da Ginga A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica Casa da Palavra,São Paulo 2011, p.45

“O homem construiu sua história a partir das ruínas de outras épocas. Os povos da antiguidade construíam para a eternidade, a referência temporal era o tempo dos deuses. Um mesmo canteiro de obras conhecia diversas gerações de construtores. Não construímos mais pirâmides, mesmo assim quando pensamos numa casa, pensamos ainda em uma construção resistente, feita para durar. Constatamos que os arquitetos têm uma preocupação prática com o tempo, têm o prazer de desafiar o Cronos e, talvez, ainda, uma atração megalômana pelo eterno.”

Essa intenção de conquistar o eterno não está apenas relacionada aos cálculos estruturais de um projeto, mas também à sua estética. Vemos hoje, novos empreendimentos de construtoras que projetam -no que eles chamam- “estilo neoclássico”, que os edifícios seguem a construção civil padrão, de alvenaria e sistema arquitravado, porém são coroados com frontões, os pilares ganham capitéis e entablamentos, qualquer elemento que possa remeter à antiguidade e remeter à antiguidade é: se associar à ideia de equilíbrio, de perfeição e de eterno.

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movimento < Figura 07 Foto do Parthenon de Atenas. Grécia A obra guarda em si uma memória de eterno, de solidez e proporção, hoje as novas arquiteturas copiam seus elementos, como as colunas, o arquitrave, os frisos, para tentar de alguma forma reproduzir a sensação de duradouro que tem o templo.

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n a a r q u ite tu r a

A partir da Revolução Industrial, com a inserção de máquinas no meio de trabalho e com as mudanças nos meios de transporte -surgimento do carro-, o foco passa a ser os aspectos dinâmicos, o “móvel” ganha a atenção das pessoas. Marta Bogéa em seu livro coloca: > Manifesto futurista San’t Elia

“(...)o deslocamento, seja no movimento de objetos seja no movimento de pessoas, corresponde, como em uma curva de Moebius, ao entrelaçamento de um mesmo fenômeno: movimentam-se os corpos no espaço, movimenta-se o espaço parar abrigar novos corpos.”

A vanguarda europeia Futurismo proclama a cidade movimento, uma cidade que é buliçosa, que está pronta para receber a construção e a destruição que os movimentos causam. “(...)devemos inventar e refabricar a cidade futurista, como se fosse um imenso canteiro de obras, tumultuoso, ágil, móvel, dinâmico e a casa futurista como se fosse uma gigantesca máquina. As casas durarão menos que nós, cada geração deverá construir sua cidade.”

Essa vanguarda exalta a transformação e a destruição. O movimento modernista na arquitetura será capaz de criar um novo tipo de morar que permite a transitoriedade e reafirma o manifesto futurista. A “casa de aluguel”, surgiu no início do século XX, uma morada fixa, que permite a alteração e a mudança de seus moradores, porém deve ser uma construção flexível. O modernismo, arquitetura vanguarda, se preocupa em identificar elementos fixos e elementos flexíveis dentro de um programa e os agrupa, criando assim a Planta Livre. Mies Van der Rohe em Farnsworth House identifica e agru49


movimento < Figura 08 Estrada de Ferro Central do Brasil 1924 Quadro de Tarsila do Amaral, retrata o contraste entre a estrada de ferro da emergente SĂŁo Paulo industrial com paisagem rural ao fundo.

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n a a r q u ite tu r a

pa as áreas “molhadas”, criando um núcleo rígido, que é responsável por fazer a passagem da tubulação hidráulica, liberando e dando transparência ao resto da planta. A fiação elétrica, também, não é mais embutida nas paredes, que agora foram substituídas pelo vidro, elas estão nos forros, a planta é totalmente livre para abrigar os mais diversos usos e layouts. O modernismo trata de identificar o “fixo” e torna o restante da construção flexível, permitindo variadas ocupações.

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movimento


n a a r q u ite tu r a < Figura 09 Fransworth House, 1951 Mies van der Rohe A obra é exemplo de liberdade e mobilidade na arquitetura, sua planta é livre, com um núcleo rígido, o qual leva a tubulação da cozinha e do banheiro.

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movimento

O Plug In City em 1964 do grupo Archigram, foi um projeto ideológico, que propunha construir uma cidade “tentacular”, que seria uma grande estrutura, onde estava pregada a circulação e toda a infraestrutura e que permitiria ser conectada às unidades residenciais. “A arquitetura, entendida tradicionalmente como a arte/ciência de planejar e construir o habitat artificial do homem, sempre foi pensada pelos arquitetos a partir de princípios fundamentais como a rigidez, a estaticidade, a estabilidade e a durabilidade. As vertiginosas mudanças econômicas, sociais e culturais da época solicitavam novas alternativas de planejamento espacial fundamentadas em princípios como a mobilidade, a flexibilidade, a instabilidade, a mutabilidade, a instantaneidade, a efemeridade, a obsolescência e a reciclagem. A partir destes princípios foram surgindo os projetos do Archigram.” Vituvius. 22/04/2016

O plug-in city, bem como outros projetos do grupo (Walking City e The Instant City) eram discussões sobre um novo tipo de urbanismo, que partem da estética do inacabado e se contrapõem ao modernismo, propondo um estilo de vida nômade.

> Figura10 Ilustração do Projeto Plug-In City 1964- Peter Cook Archigram

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< Archigram, grupo de jovens arquitetos de 1960, que se fundamentavam nas mudanças que estavam ocorrendo na Londres pós segunda guerra mundial e queriam que a arquitetura se afetasse às mudanças que estavam ocorrendo em relação ao transporte, ao sistema de comunicação e às novas tecnologias eletrônicas.


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n a a r q u ite tu r a



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REFERÊNCIAS

BIBLIOGRAFIA BAUMAN, Zygmunt. Modernidade LÍquida. Rio de Janeiro: Zahar,2000. BARATTO, Romulo. The Plug-In City, 1964 / Peter Cook, Archigram. Arch Daily: 2014. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um Lírico no Auge do Capitalismo. Obras Escolhidas. Editora Brasiliense,1989. BOGÉA, Marta. Teses de Doutoramento FAU-USP,Cidade Errante: Arquitetura em Movimento. São Paulo: Editora Senac,2006. CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed.34/ EDUSP, 2000. CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica, Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2004. CARERI, Francesco.Walkscapes: O caminhar como Prática Estética. Barcelona: Gustavo Gili, 2013. GAUSA, Manuel; GUALLART, Vicente; MULLER, Willy; SORIANO, Federico; PORBAS, Fernando; MORALES, José.

Diccionario Metápolis de Arquitectura Avanzada. Ciudad y 57


Tecnologia em la Sociedade de la Información. Actar, 2000. JACQUES, Paola. Arquitextos: Corpografia Urbana.Vitruvius,2008. JACQUES, Paola. Estética da Ginga, A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. São Paulo: Casa da Palavra, 2011. PISSARDO, Felipe. Dissertação de mestrado. A Rua Apro-

priada: um estudo sobre as transformações e usos na Rua Augusta (São Paulo, 1891-2012).São Paulo,2013 MÚSICA Ronnie Cord- Rua Augusta Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=OByqAxGeW84 IMAGENS Figura 01 Fotos da antiga estação de energia para os bondes elétricos da Light, entre às ruas Peixoto Gomide e Mathias Ayres. Fonte: Acervo do Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo (1921), Extraído da dissertação de mestrado de Felipe Mello Pissardo 2013, p.22 Figura 02 Fotos do estado atual da estação de energia da Eletropaulo. Fonte: Dissertação de mestrado de Felipe Mello Pissardo 2013, p.23 58


Figura 03 Edíficio Ibaté 2013, Localizado na esquina da Rua Augusta com Rua Antôno Carlos Foto autoria: Marcos O. Costa 2013 Fonte: https://marcosocosta.wordpress.com Figura 04 Cartaz do novo Empreendimento na rua Augusta, pela ESSER Construtora. Fonte: https://www.esser.com.br/ Figura 05 Imagem do Filme Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos, adaptado ao cinema por Nelson Pereira dos Santos. Fonte: http://anovademocracia.com.br/no-46/1822-vidas -ainda-secas Figura 06 Foto de Christopher McCandless. Fonte: http://www.extremos.com.br/ Figura 07 Foto do Parthenon de Atenas. Grécia Fonte: http://www.guiageo-grecia.com/partenon.htm Figura 08 Quadro Estrada de Ferro Central do Brasil de Tarsila do Amaral,1924 Fonte: http://www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/educativo/acerto7.html Figura 09 Fransworth House, 1951.Mies van der Rohe 59


Fonte: http://www.farnsworthhouse.org/ Figura10 Ilustração do Projeto Plug-In City.1964- Peter Cook Archigram Fonte: http://www.archdaily.com.br/

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F R A G MENTO

2016



> Figura 01 Casa abandonada esquina da Rua Augusta com Rua Peixoto Gomide 2016



> Figura 02 Calรงada da Rua Augusta 2016



> Figura 03 Muro de EdifĂ­cio Rua Augusta 2016



> Figura 04 Tapume de obra Rua Augusta 2016



> Figura 05 Calรงada e canteiro de รกrvore Rua Augusta 2016



> Figura 06 Edifícios Residênciais Rua Augusta 2016



> Figura 07 Porta de Loja Rua Augusta 2016


Figura 08 > GalpĂŁo Rua Augusta 2016




> Figura 09 Piso da Galeria Le Village Rua Augusta 2016



> Figura 09 Galeria Ouro Velho Rua Augusta 2016



> Figura 10 Estação Transformadora de Distribuição Rua Augusta 2016



> Figura 11 Fachada dos escritรณrios da Galeria Le Village Rua Augusta 2016



conceito __________________________________

Não foi à toa a decisão de debater o conceito de fragmento, a intenção de colocá-lo aqui é criar a partir dele uma imagem, uma ilustração ou uma figura do que é hoje a rua Augusta. E dizer que sua imagem geral é resultado da união de diversos fragmentos.



Fragmento: nome com a força do verbo e, todavia, ausente: rachadura, rastros sem restos, interrupção como palavra quando o cessar da intermitência não para o devir; mas ao contrário, o provoca na ruptura que a ele pertence.” Maurice Blanchot, L’entretien infini


fragmento

Em geral, a definição de fragmento é de algo que se quebrou, se partiu. A definição de fragmento adotada no Livro A estética da Ginga, de Paola Berenstein Jacques é de Maurice Blanchot, em L’édriture du Desastre, e será o mesmo que adotaremos aqui: “ Os fragmentos são separações inacabadas; o que eles têm de incompleto, de insuficiente, trabalho da decepção, é sua deriva, o sinal de que, nem unificáveis, nem consistentes, eles se deixam separar por marcas com as quais o pensamento, ao declinar, imagina conjuntos furtivos que, ficticiamente, abrem e fecham a ausência de conjunto, mas, definitivamente fascinado, não para, sempre mantido pela vigília nunca interrompida. Daí a impossibilidade de dizer que tenha havido intervalo, pois os fragmentos, destinados em parte ao branco que os separa, encontram nessa distância não o que os termina, mas o que os prolongará, o que já os prolongou, fazendo-os persistir por suas incompletude, sempre prontos a se deixar trabalhar pela razão incansável, em vez de permanecer a palavra deposta, deixada de lado, o segredo sem segredo que nenhuma elaboração consegue preencher.”

Maurice Blanchot expõe a incompletude dos fragmentos, servindo de premissa para a exploração e a descoberta. Muito ao contrário de ser um rompimento, o fragmento é a continuidade, a perpetuação e memória. O pedaço que sobra remete a algo do passado, não o revela, mas dá pistas, cria curiosidade e dúvidas. Anne Cauquelin aponta duas visões sobre o fragmento: uma pejorativa e outra supervalorizada. Como pejorativa ela diz que o fragmento vai contra uma unidade, ele sinaliza o desaparecimento e se iguala a uma fenda, uma fissura dissonando da harmonia inicial do todo, da completude. 32

< Frase de Maurice Blanchot, extraído do seguinte livro: JACQUES, Paola Estética da Ginga Casa da Palavra, RJ 2011, p.50


conceito

Quando supervalorizada ela é a unidade, ou seja, ela perde o caráter de fragmento, considerando a adjetivação vulgar. Ela é fechada em si mesma, indivisível, é suficiente para a compreensão de seu todo e se destaca do restante. Portanto, para Cauquelin, quando visto como algo positivo, o fragmento perde sua característica de pedaço e se torna unidade, deixando de ser fragmento e voltando à ideia de que se fosse um fragmento não seria algo positivo. O fragmento existe para designar a si mesmo, ele é autorreferente e por sua característica anárquica ele provoca tensões, criando a “ordem fragmentária”, que é como uma ordem em transição; ele acaba com qualquer ideia de linearidade e, apesar do desenho da rua Augusta ser retilíneo, ele cria vazios, descontinuidades, sobreposições, acabando com a ideia de “começo-meio-e-fim”. No livro A Cidade Polifônica, de Massimo Canevacci, ele adjetiva a rua como: hiperfragmentada. “(...) como uma montagem de fragmentos díspares entre si, ‘desordenados’ ”. A aleatoriedade, o ocasional, o efêmero e a incompletude são características do fragmento e também da baixa Augusta, refletido em sua construtibilidade, seus usos, suas ocupações, apropriações nas mudanças e alteridade de seu público. Fragmento, como dito anteriormente, significa parte do todo. No caso, as partes, são os vestígios de arquitetura, 33


fragmento

nunca apagadas, mas sempre sobrepostas. Elas deixaram restos, pistas do programa antigo, da construção antiga, da cor antiga da casa, que se revela nos descascados de tinta nas paredes. Assim, a rua Augusta vai se formando, por pequenos pedaços que contam histórias do passado e constroem a variação e diversidade que é característica presente da rua, complementando o público atual, que procura nela seu pedaço de fragmento correspondente. Entre esses fragmentos diversos, que encontramos na rua, a atividade programática é um exemplo disso, tão variados são os usos e por consequência seu público que parece como se alguém tivesse feito uma espécie de colagem para desenhar o baixo Augusta. Como diz Canevacci, ela é um: ”modelo híbrido”, onde em cada lote ou em um mesmo lote diferentes atividades acontecem, tendo a permissividade da alteridade da região. Os usuários se transformam com o passar do dia, das 8h-18h quem frequenta as calçadas da rua são os trabalhadores das redondezas, o homem engravatado que desce da Paulista procurando restaurantes com o preço mais acessível, o comerciante que tem sua loja em uma das galerias, a mulher que vai tomar o ônibus para voltar para casa. Já às 19h o trabalhador desce a rua com a gravata frouxa, para um happy hour, para tomar uma cerveja nos bares que horas antes serviam o “bom e velho” PF, a noite o público principal é mais jovem e até menor de idade, que encontra na rua todo o tipo de permissividade e liberdade que deseja, entre bebidas, drogas e sexo fácil. A imagem fragmentária vai contra a ideia de unidade da arquitetura, os arquitetos têm uma atração mega34


conceito

lomaníaca pelo sólido, fixo e estável, com a pretensão de vencer o Cronos e tornar suas obras imortais e fechadas nelas mesmas, sem espaços a alterações. Imaginar a fragmentação de suas obras é imaginar o fim delas. No livro a Estética da Ginga, Paola Jacques discute sobre o fragmento na arquitetura. > JACQUES, Paola Estética da Ginga Casa da Palavra, RJ 2011, p.46

> “resumo máximo” termo usado por Canevacci em seu livro a Cidade Polifônica, para definir a Rua Augusta

> JACQUES, Paola Estética da Ginga Casa da Palavra, RJ 2011, p.46

“A imagem tradicional da arquitetura sempre esteve ligada à ideia do sólido e do fixo. E mesmo que os arquitetos contemporâneos apresentem suas obras como instáveis, em pedaços, em movimento, elas permanecem sólidas, estáveis e fixas. É possível, no entanto, simular uma construção imaginária numa tela de computador e ir modificando-a sem parar, decompondo-a ao infinito, o que redundará em uma multiplicidade de formas efêmeras, impossíveis de serem construídas em tempo real.”

Paola diz que o tempo do fragmento é o instante e que vivemos em uma época de simultaneidade, do acontecimento imediato. Portanto podemos dizer que vivemos na época do fragmento e essas mudanças tão rápidas não podem ser concretizadas, gerando o que Paola chama de “equilíbrio dinâmico”. Naturalmente estamos produzindo uma sociedade mais fragmentada, a Augusta é apenas exemplo e “resumo máximo” da cidade de São Paulo e desse processo que ela vem passando.

“A fragmentação da sociedade contemporânea poderia ser analisada em sua dimensão temporal. Mudanças muito rápidas são impossíveis de serem concretizadas em tempo real, o que engendra defasagem, intervalo. A desordem aparente pode ser o resultado de uma ordem que muda rápido demais, e o desequilíbrio, o que um equilíbrio dinâmico. A desordem se resume numa ordem temporal que parece complexa, mas cuja complexidade-bem como a descontinuidade, uma continuidade com intervalos-pode ser observada nas mudanças contínuas. O movimento constante faz o

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fragmento

fim permanecer indeterminado. O inacabado se impõe, a ordem é incompleta e mutável. É um movimento em potencial em direção à completude ou algo como a incerteza de futuro e a sugestão de inúmeras possibilidades de prolongamento. O inacabado incita à exploração, à descoberta. ”

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< Figura 12 Richard Hamilton Just What Is It That Makes Today’s Homes So Different, So Appealing? Colagem 1956



< Figura 13 Vik Muniz Releitura da Medusa de Caravaggio Obra realizada a partir da coleta de lixos.



< Figura 14 Archigram Instant City 1969



< Figura 15 Cartaz Construtivista Russo


<

Figura 16 Paul Citroen Metropolis 1923




collage city

collage city __________________________________

A collage city O termo collage originou-se da palavra colagem, que por definição é: procedimento que fixa uma série de papéis a uma superfície.

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fragmento

A palavra collage, criada por Max Ernst em 1918, faz alusão à colagem, mas se refere a destacar de uma obra uma mensagem e inseri-la em um novo contexto, ou seja, uma recomposição de fragmentos. Jacques Lacan considera que até mesmo a personalidade de uma pessoa não é única, mas sim resultado de uma miríade de imagens, fragmentadas e casuais, efeito que se pode assemelhar a uma colagem cubista ou dadaísta. As vanguardas artísticas que reinventaram e conceituaram esses mecanismos de composição foram os dadaístas, surrealistas e cubistas, que incorporaram a bricolagem como um novo tipo de procedimento na atividade de criar arte. A arquitetura foi influenciada por esse procedimento. No fim do século XX, foram propostas por Colin Rowe e Fred Koetter projetos urbanos, que tinham como ponto de partida a fragmentação, isso é, articular peças as quais sobrepostas e justapostas criam megaobjetos ou edifícios-massa. “Nos dias de hoje, a collage está presente não só no campo da arquitetura e das artes, mas no cinema, na publicidade, no teatro, no vídeo, em instalações, inclusive no menu do Windows, onde aparecem os dois ícones principais: a tesoura e a cola. Apesar da resistência da arquitetura em reconhecer a collage como elemento constitutivo do processo de criação, não podemos negá-la como imanente ao processo de criação de um projeto.”

O projeto de Peter Eisenman, o Memorial aos Judeus Assassinados na Europa, em Berlim, é uma das maiores obras que representa a fragmentação. A dispersão toma maior importância que o volume único, em obras como 48

> Figura 17 Colin Howe Estratégia de Fragmentos.

< SILVA, Gladys Neves. Collages Arquitetônicas. Arquitextos 2008


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collage city


fragmento

essa o que ganha força são as relações que se podem estabelecer entre objetos para determinar um lugar. A intervenção consiste em um campo de lápides ondulantes, são 2.711 lápides em concreto cinza, com medidas iguais porém alturas distintas entre si e por sua leve inclinação. Em uma das pontas, embaixo das lápides há uma sala de exposição subterrânea. A obra nega o local, sobrepõem-se a ele duas topografias, a da praça e a dos planos das lápides, essas topografias expõem a instabilidade da ordem, que se mostra colapsada e em crise.

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collage city > Figura 18 Peter Eisenman Memorial aos Judeus Assassinados na Europa Berlim, Alemanha 1998-2005

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anexo A: a imagem __________________________________

A seguir são 2 fotografias tiradas na rua Augusta, retratando as sobreposições e intervenções que existem como elemento formador de paisagem. As imagens são montadas a partir de camadas, onde cada plano se transforma em um fragmento, que só tem sentido se agrupado junto aos outros pedaços.

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REFERÊNCIAS

BIBLIOGRAFIA JACQUES, Paola. Estética da Ginga, A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. São Paulo: Casa da Palavra, 2011. MONTANER, Josep Maria. Sistemas Arquitetônicos contemporâneos.Barcelona: Gustavo Gili, 2009. SILVA, Gladys Neves. Collages Arquitetônicas. ArquitextosVitruvius, 2008. SILVA, Marcos Solon Kretlin. Redescobrindo a arquitetura do Archigram. Arquitextos- Vitruvius,2004. FIGURA Figura 01 Casa abandonada esquina da Rua Augusta com Rua Peixoto Gomide 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 02 Calçada da Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria

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Figura 03 Muro de Edifício Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 04 Tapume de obra Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 05 Calçada e canteiro de árvore Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 06 Edifícios Residênciais Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 07 Porta de Loja Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 08 Galpão 65


Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 09 Piso da Galeria Le Village Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 10 Galeria Ouro Velho Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 11 Estração Transformadora de distribuição Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 12 Fachada dos escritórios da Galeria Le Village Rua Augusta 2016 Fonte: Autoria Própria Figura 13 Richard Hamilton Just What Is It That Makes Today’s Homes So Different, So Appealing? Colagem-1956 66


Figura 12 Vik Muniz Releitura da Medusa de Caravaggio Figura 13 Archigram Instant City 1969 Fonte: http://www.archdaily.com.br/br/tag/archigram Figura 14 Cartaz Construtivista Russo Fonte: http://designices.com/cartazes-do-construtivismo -russo/ Figura 15 Paul Citroen Metropolis 1923 Fonte: https://www.moma.org/ Figura 16 Colin Howe Estratégia de Fragmentos. Fonte: Livro Sistemas arquitetônicos contemporâneos Figura 17 Peter Eisenman Memorial aos Judeus Assassinados na Europa Berlim, Alemanha 1998-2005 Fonte:Autoria Própria 67





EXPERI MENTO

2016



homem contemporâneo X praticante ordinário

homem contemporâneo

X praticante ordinário __________________________________

A proposta do seguinte capítulo é fazer um contraponto entre o homem contemporâneo, vítima do mundo líquido - ideia desenvolvida pelo sociólogo Zygmunt Bauman - e o praticante ordinário de Michel de Certeau. Ou seja, comparar e apontar as diferenças entre a temporalidade e velocidade com que vivem cada tipo de homem e defender o praticante ordinário como sujeito responsável pela criação e transformação da rua Augusta.

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experimento

Em seus livros, Zygmunt Bauman desenvolve o conceito de mundo líquido, onde ele afirma que a pósmodernidade criou um novo mundo, onde os conceitos, as crenças, as religiões e as certezas se dissolveram em inúmeras interrogações, dúvidas e questões a serem debatidas e relativizadas. No livro Vidas Desperdiçadas, Bauman coloca a globalização como responsável pela transformação do estilo de vida do homem, para ele, ela é eliminadora, traiçoeira e excludente.“ A globalização mudou a trajetória de vida desta geração, acabou com sonhos e projetos, criou dicotomias, rompeu com tradições e acelerou suas vidas”.

< A vida transformada em lixo: O refugo Humano. Resenhas Online, São Paulo, 071.04. Vitruvius nov. 2007.

Segundo ele, com a nova velocidade - fruto da internet - e com os novos padrões, criados a partir da geração X, o homem contemporâneo vive em um mundo de incertezas, onde tudo está em constante transformação, onde tudo o que agora é novo daqui há um tempo se tornará lixo. No livro Modernidade Líquida, no capítulo Vida Instantânea, Bauman segue com a mesma ideia, extrapolando -a ao universo da economia e dá o exemplo de Rockefeller e Bill Gates. Enquanto o primeiro queria construir diversas coisas e acumular benfeitorias em seu nome, o segundo construía sua genialidade por “rapidamente se livrar de suas criações”, era “livre da obsessão de agarrar-se às coisas”. O Carpe Diem foi instaurado na sociedade pós-moderna, se tornou tema de filmes (como em A Sociedade dos Poetas Mortos) educando a população a ter uma nova visão sobre o mundo e a valorizar uma coisa que antes não era importante e nem mesmo citada: o instante. 06

< BAUMAN, Zygmunt. Modernidade LÍquida. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2000, p.143

< WEIR, Peter. Dead Poets Society.Thouchstone Pictures 1989


homem contemporâneo X praticante ordinårio

> Figura 01 Cena do filme Sociedade dos Poetas Mortos

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experimento

Esse homem contemporâneo, tão analisado pelo sociólogo, chama a atenção por explorar os segundos do relógio, sua noção de tempo mudou, a quantidade de informação que recebe hoje é superior à sua capacidade de absorção, a intensidade com que ele é obrigado a viver os momentos chega a ser insana. E novas doenças como a depressão e frustação surgem nessa nova geração “afogada em informações e faminta por sabedoria.” O homem, hoje, é cobrado a conhecer muito de muito, a ser um acumulador de experiências, a conhecer o mundo, a estar em muitos lugares ao mesmo tempo, a viver desapegado e a conquistar sua independência financeira e psicológica cada vez mais cedo. A individualidade, que reina hoje serviu para afastar o homem do outro homem, porém não permitiu a ele seu auto-conhecimento.

< Expressão usada por Zygmunto Bauman em entrevista do jornalista Marcelo Lins com o sociólogo.

Em oposição a esse homem que luta contra o relógio para conquistar sonhos, que talvez nem sejam seus, antes dos 30/40 anos, temos o praticante ordinário, como nomeou Michel de Certeau, ou o errante, segundo Paola Berenstein, ou o flaneur, conforme Charles Baudelair, ou, em uma visão mais nacionalista, o homem lento, de Milton Santos. Para Certeau, o praticante ordinário é aquele que vivencia a cidade de “dentro”, quer dizer, o homem que pratica a cidade, que caminha, que está inserido na malha urbana, que, diferentemente do urbanista, não vê a cidade de cima, do alto, através de mapas. Certeau valoriza o ato de caminhar, como um ato de análise e interação, que aproxima e relaciona o homem 08

< CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, 1-Artes de Fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.


homem contemporâneo X praticante ordinário

à cidade: > CERTEAU, Michel A Invenção do Cotidiano. 1-Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes 1998

“O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos. O ato de caminhar parece, portanto encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação.”

O praticante ordinário, que vive a cidade através da caminhada, desenvolve uma nova percepção da cidade, subjetiva, lúdica e amorosa, seu reconhecimento sobre a mesma não depende mais do visual e sim do sensitivo. > JACQUES, Paola Corpografias Urbanas Arquitextos, Vitruvius 2008

O errante, de Paola Berenstein, avalia o papel dos urbanistas de maneira involuntária, vez que testa e usa a cidade através de seus corpos, de sua interação com o meio e faz uma crítica positiva ou não aos desenhos urbanos. O flaneur, de Charles Baudelair, é o parisiense do século XIX que perambula pela cidade, sem rumo predeterminado. Por definição, a palavra deriva do verbo flâner, que significa “para passear”. O flâneur é um observador que caminha pelas ruas, apreendendo cada detalhe, sem ser notado, sem se inserir na paisagem, ele busca uma nova percepção da cidade. E, finalmente, o homem lento, citado por Milton Santos, é aquele que, por questões econômicas, não tem acesso à aceleração do mundo contemporâneo. Ele se refere aos moradores de rua como homens lentos e como exemplo máximo do que é experimentar e vivenciar a rua, já que, de fato, a habitam. Diferente do errante/flaneur/praticante ordinário, o homem lento vive a rua por uma questão social, de exclusão e falta de escolha, já o outro grupo é 09


experimento

lento propositalmente, de maneira consciente e intencional, com o intuito de formar uma opinião crítica. Hoje, o homem contemporâneo é desestimulado e criticado se vive como um praticante ordinário, talvez por estar vinculado a questões sociais, mas principalmente por questões culturais. O ato de caminhar lentamente dissoa dos demais pedestres apressados e com objetivos, é nítido o incômodo das pessoas frente a alguém que não cumpre o ritmo acelerado que está silenciosamente imposto no ato da caminhada. Durante o dia, a rua Augusta serve de passagem, não apenas para os automóveis, mas também para os usuários que trabalham nas redondezas; o ato de vivenciar a rua é apenas destinado ao público noturno, que usa como foyer, fumódromo, comércio, entre outras coisas, as calçadas da via.

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homem contemporâneo X praticante ordinårio

> Fugura 02 Entrada da Galeria Le Village Rua Augusta 2015

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experimento

> Figura 03 Interior Galeria Le Village Rua Augusta 2015

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homem contemporâneo X praticante ordinårio


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Figura 04 Pipoqueiro Rua Augusta 2015

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>

homem contemporâneo X praticante ordinårio



homem contemporâneo X praticante ordinário

a n e x o B o flaneur __________________________________

Ele é sírio, florista e aos 74 anos encena nosso personagem de flaneur descrito até agora. Abrahim Samy, conhecido como Sr. Habib (querido em árabe), vende flores há 40 anos de bar em bar na rua Augusta. Explica que escolheu o ofício para conversar com as pessoas. “Rosas tem a ver com amor”. E completa: “com dor também”. Percorre cerca de 15km por noite no baixo Augusta vivendo e interagindo com tudo aquilo e aqueles que ali estão.

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Giuliana: Como o Sr. veio parar na rua augusta? Habib: A rua Augusta é tradicional, as pessoas sempre têm vontade de conhecer aqui e vir trabalhar. G: O Sr. que escolheu vir trabalhar aqui ? H: Sim. G: Quantos anos o Sr. tinha ? H: 20 e poucos anos. G: Como o Sr. vem da sua casa para cá ? H: Ou de metrô ou a pé. G: Quantas horas por dia o Sr. passa aqui na rua H: Umas 16 horas, mais ou menos. G: E o Sr. Não para? Não tem uma horinha que dá para descansar ? H: Até tem...mas eu não descanso, meu negócio é andar, as vezes só paro para almoçar, é uma tradição do meu povo. G: O Sr. tem uma localização fixa de trabalho ? H: Fico em frente de qualquer casa, tenho passagem livre em todos os lugares, 45 anos que estou sempre aqui, todos me conhecem. G: Qual é seu principal público atual ? H: Maior clientela é a noite, o pessoal que vem passear, sair para se divertir. G: O público mudou bastante ao longo dos anos em que trabalha aqui ? H: Sim, principalmente o estilo das pessoas, mas sempre para melhor, de maior cultura e respeito. G: Me fala um motivo para o Sr. nunca ter saído daqui. H: Só gente bacana, em todas as casas tenho amigos, não pretendo nunca sair daqui, pretendo continuar e, te digo uma coisa, não preciso tanto fazer isso, mas faço porque gosto.


Figura 05 Sr. Habib Rua Augusta 2015

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>

homem contemporâneo X praticante ordinårio



práticas da corpografia

práticas da corpografia __________________________________

No seguinte capítulo, tentaremos explicar de que maneira se dão as práticas da corpografia, que são através de 3 atividades: educar a se perder, praticar a lentidão e praticar a corporeidade.

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experimento

Segundo Paola Jacques, as experiências se dão geralmente com 3 atividades, sendo elas: educar a se perder, praticar a lentidão e praticar a corporeidade. No que diz respeito ao perder-se, a autora diz que há no homem sempre uma obsessão pela direção e orientação, porém o errante abre mão do Norte para andar sem destino. Ao praticar tal desorientação, uma nova cartografia é criada, o errante deixa de seguir nomes de ruas e avenidas para criar referenciais que possam reorientá-lo, fazendo com que deixe de ver a cidade de cima, através de um mapa de GPS, para vê-la fazendo parte desse mapa, olhando o que há ao seu redor e estabelecendo conexões. Em outras palavras, no ato de se perder o homem se desorienta, para em seguida reorientar-se, porém dessa vez apreendendo o espaço e se colocando no espaço de uma nova forma, uma forma em que a cidade deixa de ser cenário e passa a ser palco e ele o ator da cidade, tudo o que há ao seu redor ganha algum tipo de significado, relação e entrosamento com o mesmo. A lentidão, por sua vez, pode ser ligada à velocidade, mas para Guattari e Deleuze o rápido e o devagar estão associados a uma questão qualitativa da percepção do homem sobre o espaço. Para eles, um errante pode se deslocar rapidamente, o que muda é a maneira como vê o espaço. A lentidão que aqui se coloca como prática é um “estado de espírito lento”, uma desaceleração na maneira de se relacionar com o mundo, de enxergar a cidade, de captar não apenas sua imagem, pronta e óbvia, mas seu sentido e significado, num verdadeiro estado de contemplação. 22

< JACQUES, Paola Corpografias Urbanas Arquitextos, Vitruvius 2008


práticas da corpografia

> Definição por Paola Jacques em: JACQUES, Paola Corpografias Urbanas Arquitextos, Vitruvius 2008

Finalmente, a corporeidade é a “experiência corporal no cotidiano”, o termo corporeidade designa a maneira como o cérebro reconhece e utiliza o corpo para se relacionar com o mundo, ou seja, é a própria relação dos dois corpos físicos, o corpo do homem e o corpo da cidade. Tais práticas transformam o homem contemporâneo - agitado e escravo de tudo o que lhe dá rapidez - em um errante, um flaneur, ou um praticante ordinário, como preferir chamá-lo. Essa desaceleração do homem o faz reparar a cidade, a ter relação e a fazer intervenções de uma nova maneira, ou de alguma maneira. Ser errante é, de fato, viver o instante, é prestar atenção por onde passa e perceber e captar o que o rodeia naquele exato momento. Os errantes têm ainda outro e principal poder, que é o de criticar os urbanistas. Praticando a cidade eles criam corpografias, que denunciam as falhas dos projetos urbanísticos e dão vozes a lugares pouco importantes e espetacularizados da cidade, eles tiram o monopólio da construção das cidades das mãos dos urbanistas e a reinventam. A corpografia é a junção da palavra corpo com cartografia, é um tipo de cartografia da cidade criada com e pelo corpo, é dizer, é criar um novo mapa da cidade baseado nas memórias das vivências, experiências e intervenções que o homem teve com o espaço. Cada corpo pode guardar diferentes corpografias, que são formadas principalmente pelo tempo e pela intensidade. Morar muito tempo em uma determinada rua, sofrer um assalto em outra esquina, ser pedida em casamento na pracinha da igreja são situações que exemplificam como o 23


experimento

corpo pode guardar memórias de vivências que tiveram em determinados espaços, mais do que cenários, eles foram determinantes para o acontecimento de tais ações. O ato de morar em uma determinada rua foi uma decisão pessoal, que pode ou não ter sido influenciada por uma memória de uma outra cartografia, talvez a cartografia que se tinha da rua em que morava quando criança, o fato de morar te faz ter conhecimento sobre tal região, sobre cada comércio que existe, sobre a vizinhança, sobre os problemas do bairro e suas qualidades. O assalto, pode estar relacionado ao fato da rua ser erma, escura, não ter pedestres ou usuários naquela hora do dia. O pedido de casamento foi escolhido exatamente naquele local, naquele momento, naquelas 6 horas da tarde enquanto tocavam os sinos da Igreja. As ruas, as esquinas, as praças quando são vivenciadas, ganham adjetivos, não são apenas ruas, se tornam a rua da minha casa, a esquina em que fui assaltada, a praça em que fui pedida em casamento; na memória das pessoas, ganham cor, barulho, emoção e sentimento. O que Paola defende é que perdemos o envolvimento do corpo com a cidade. Os urbanistas projetam as cidades em uma macro escala, olhando-as de cima, através de um mapa, esquecendo-se da mínima parte: o homem, e acabam construindo cenários sem corpos. O uso, a apropriação, a intervenção e a crítica são fundamentais para enriquecer e reinventar o trabalho dos urbanistas. O errante identifica os erros e qualidades/ potencialidades da cidade. Quando há a falta da prática do errante as cidades se tornam cenários: “A redução da ação urbana, ou seja, o empobrecimento da experi-

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< JACQUES, Paola Corpografias Urbanas Arquitextos, Vitruvius 2008


práticas da corpografia

ência urbana pelo espetáculo leva a uma perda da corporeidade, os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados. Os novos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais privatizados ou não apropriados nos levam a repensar as relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão.”

Os urbanistas indicam usos possíveis para o espaço projetado, mas são aqueles que o experimentam no cotidiano que os atualizam. Segundo Certeau: > CERTEAU, Michel A Invenção do Cotidiano. 1-Artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes 1998

“A partir de o momento que nos apropriamos de algo, com nossa criatividade damos outra forma para tal produto ou ideia ou qualquer coisa que seja difundida, desde algo que é palpável, algo que é visível ou audível, ou nem uma coisa nem outra. Porém isso não quer dizer que a reinvenção da apropriação seja a mesma para todos, isso não se dá quando o campo onde tais informações caem são diferentes”.

Portanto, a partir da lentidão, da corporeidade e do ato de ser perder, o homem pratica a errância e cria corpografias e opiniões sobre a cidade, combatendo o urbanismo espetacular, hoje hegemônico, que vem sendo feito.

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> Figura 06 Imagens retiras do vídeo: Quando o Passo Vira Dança Rio de Janeiro, 2002



estudo de (caso) errância

estudo de (caso)

errâncias __________________________________

Como estudo de caso temos a análise de dois movimentos artísticos que praticaram errâncias ao longo do século XX. O primeiro foi as deambulações dos dadaístas e dos surrealistas e o segundo, a deriva dos situacionistas.

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No dia 14 de abril de 1921, em Paris, às três da tarde e sob um dilúvio torrencial, os membros do movimento Dadá encontram-se em frente à Igreja de Saint-Julien-le-Pauvre. Com essa ação pretendem inaugurar uma série de excursões urbanas aos lugares banais da cidade”.

< CARERI, Francesco Walkscapes-O Caminhar como prática estética. Barcelona: Gustavo Gili 2002


estudo de (caso) errância

<

Figura 07 Programa de Garnde Saison Dada Figura CARERI, Francesco Walkscapes-O Caminhar como prática estética. Barcelona: Gustavo Gili 2002

31


experimento

A partir daí a década de 1920 presenciou uma série de excursões, deambulações e derivas organizadas pelos grupos dos dadaístas e dos surrealistas. Como forma de manifesto e vivência da arte. Os dadás se opõem às cidades futuristas, que promovem e exaltam a velocidade, para “promover” o habitar a cidade banal. Tristan Tzara, em 1916, declara que são “decididamente contra o futuro”: “A cidade dadaísta é uma cidade do banal que abandonou todas as utopias hipertecnológicas do futurismo. Para os dadaístas, a frequentação e a visita aos lugares insossos são uma forma concreta de realizar a dessacralização total da arte, a fim de alcançar a união entre arte e vida, entre sublime e cotidiano.”

< CARERI, Francesco Walkscapes- O caminhar como prática estética Barcelona: Gustavo Gili 2002, p.74

Os dadás aproveitam o ato de vagabundear pela cidade moderna, do flanêur como ato de arte, que atinge o tempo e o espaço e vai contra a arte tradicional, que usa como suporte a materialidade. Essas operações uniam o artista à cidade, quebravam o paradigma de que a arte devesse ser representada através de um objeto, mesmo porque era essa separação física de objeto X cidade que não permitia a união almejada pelos dadaístas: “O dadá não intervinha no lugar deixando ali um objeto nem o separando dos outros: levava o artista - melhor dito, o grupo de artistas - diretamente ao lugar a ser descoberto, sem realizar operação material alguma, sem deixar rastos físicos, a não ser a documentação ligada à operação - os panfletos, as fotos, os artigos, as narrações - e sem qualquer tipo de elaboração subsequente.”

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As deambulações dos surrealistas nascem dos per-

< CARERI, Francesco Walkscapes- O caminhar como prática estética Barcelona: Gustavo Gili 2002, p.75


estudo de (caso) errância

> CARERI, Francesco Walkscapes- O caminhar como prática estética Barcelona: Gustavo Gili 2002, p.78

cursos erráticos que os dadaístas praticavam, mais especificamente de uma viagem realizada em 1924, para a periferia de Paris, a atividade consistia em conversas e caminhadas por vários dias consecutivos como uma “exploração pelos limites entre a vida de consciente e a vida de sonho”. Ao contrário dos dadaístas, que ocupavam lugares banais da cidade, os surrealistas ocupavam espaços vagos, geralmente a periferia da cidade. O surrealismo tem gosto pelo onírico, por experimentar e descobrir a parte inconsciente da mente humana; nas deambulações, eles queriam, a partir da caminhada, chegar a um estado de hipnose, no momento em que a máxima apreensão do lugar se une à memória, aos medos, a experiências antigas do homem e criar a experiência com essa união da inconsciência com o espaço.

> CARERI, Francesco Walkscapes- O caminhar como prática estética Barcelona: Gustavo Gili 2002, p.80

“Esse território empático penetra nos extratos mais profundos da mente, evoca imagens de outros mundos em que realidade e pesadelo vivem juntos, transporta o ser a um estado de inconsciência. A deambulação é um chegar caminhando a um estado de hipnose, a uma desorientadora perda de controle, é um médium através do qual se entra em contato com a parte inconsciente do território.”

A Internacional Situacionistas-IS nasceu em 1957, com a intenção de ligar a arte à vida, principalmente com a vida urbana. Eles faziam uma crítica à cidade da época e ao planejamento urbano e pregavam a experiência da mesma, através de novas práticas, como as derivas, para que a partir disso se criasse uma nova cidade, uma cidade feita do coletivo, em que todos os cidadãos fossem agentes formadores e criadores da cidade. 33


experimento

As derivas são as práticas, uma técnica de “andar sem rumo”, onde o homem aprecia a arquitetura, apreende o espaço urbano e se apropria do mesmo, pela simples ação do caminhar. A psicogeografia é o exercício prático das derivas, consiste em uma cartografia criada a partir de uma geografia afetiva, ou seja, das emoções de diferentes lugares. A Naked City é um exemplo de cartografia baseada nas práticas de deriva. Diferentemente da arquitetura modernista, os situacionistas não pretendiam mudar a sociedade com sua deriva e sim mudar a arquitetura através da sociedade, promover uma revolução cultural, na qual introduziria a participação do homem. A intenção dos situacionistas é evitar a alienação, fazer com que os moradores sejam seres pensantes, que não aceitem a passividade. De fato, não existe modelo de espaço urbano, eles não consideram que uma ideia possa ser reproduzida, se essa não for a vontade de seus moradores, e uma ideia de cidade deve nascer de todos aqueles que a formam. O que na verdade propõem é um modelo democrático de criar a cidade, isso, sim, impediria qualquer tipo de espetacularização da cidade, através da máxima participação pública frente a ela.

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estudo de (caso) errância

< Figura 08 The Naked City Guy Debord 1957

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estudo de (caso) errância

< Figura 09 Arte de rua O artista se refere ao Ready -Made de Marcel Duchamp- O Urinol, através de uma intervenção na cidade.

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espaços da prática

espaços da prática __________________________________

O espaço da prática não é qualquer lugar, ele deve permitir que a deriva, a corporeidade e a lentidão sejam praticadas, para isso o espaço além de ser público deve ser civil. No seguinte capítulo, elucidaremos o que vem a ser o espaço civil.

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Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei infolios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas po-

voações. Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não paga ao Tamagno para ouvir berros atenorados de leão avaro, nem à velha Patti para admitir um fio de voz velho, fraco e legendário. Bate, em compensação, palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam com fome para alegrá-la e para comer. A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela.” João Do Rio,1905


espaços da prática

João do Rio, cronista do início do século XIX, escrevia nos jornais suas errâncias pela cidade do Rio de Janeiro, que passava por transformações, para ele a rua era mais que um cenário, ela era conivente e participativa de tudo o que nela acontecia, essa figuração da rua é a visão do errante pela cidade, é ver a rua como um espaço de prática, um espaço civil. Bauman em Modernidade Líquida define o que é o espaço civil: > BAUMAN, Zygmunt. Modernidade LÍquida. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2000, p. 173.

“O que significa, então, dizer que o meio urbano é ‘civil’ e, assim propício à prática individual da civilidade: Significa, antes e acima de tudo, a disponibilidade de espaços que as pessoas possam compartilhar com personas públicas – sem serem instigas, pressionadas ou induzidas a tirar as máscaras e ‘deixar-se ir’, ‘expressarse’, confessar seus sentimentos íntimos e exibir seus pensamentos, sonhos e angústias. Cidades que se apresentam como um bem comum. Vestir uma máscara pública é um ato de encorajamento e participação, e não um ato de descompromisso e de retirada do verdadeiro eu”.

João Dias enxerga a rua como esse espaço civil, esse bem comum ao homem e que nivela todas as suas obras. Com a construção dos arranha-céus o homem deixa de habitar a cota zero e toma gosto pelo olhar de cima, assim como os urbanistas, assim a vivência e prática da rua vai se empobrecendo. O espaço da prática, aqui estudado, não é apenas a rua, mas todo o espaço público que tenha caráter de espaço civil, que encoraje o homem à ação e não à interação, vez que nem todo espaço público promove a ocupação, tem hospitalidade, podendo ser apenas um espaço de passagem 41


experimento

ou lugares que transformam o público em meros consumidores. São Paulo, a partir dos anos 80, viu o espaço civil que era a rua se perder, para se tornar um lugar que representa ameaça e insegurança. Como Raquel Rolnik descreve: “São Paulo viveu dos anos de 80 para 90 um movimento terrível de enclausuramento. Foi quando surgiu a cultura dos shopping centers e dos condomínios fechados, all inclusive. O espaço da cidade passou a ser apenas o elemento de ligação entre enclaves fortificados, houve então o colapso disso, quando já começava a ter congestionamento na garagem dos condomínios, parte da classe média da cidade abandona a ideia do carro e passa a exigir o transporte público de melhor qualidade. Hoje, você vê lotada qualquer praça de São Paulo. É uma verdadeira reapropriação da cidade”

O baixo Augusta representa essa rua romantizada de João Dias e sofreu os impactos que Raquel Rolnik contou com a construção do Conjunto Nacional e do Shopping Iguatemi, porém nunca perdeu seu caráter de espaço civil, ela é capaz de igualar e abraçar uma diversidade enorme de usuários e promover a troca e socialização dos mesmos.

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< Entrevista da revista TRIP, fev. 2016 com Raquel Rolnik.


espaços da prática

< Figura 10 Largo da Batata Apesar de ser um espaço público, ele não é civil. Se tornou apenas um local de passagem, que serve de caminho ao metrô e ao terminal de ônibus que existe em suas proximidades. A execução do projeto fez com que a praça não permitisse a apropriação ou a desaceleração dos frequentadores locais.

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< Figura 11 Centro Cultural São Paulo Além de espaço público é também um espaço civil, que permite a convivência e a troca.

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anexo C: o projeto __________________________________

Aproveitando a situação atual da região do Baixo Augusta e principalmente da cidade de São Paulo é que proponho em seguida a experiência, através do projeto.

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> estante IKEA- jogo infantil jenga - the walking City Foram as imagens mântricas que guiaram a concepção conceitual e imagética do projeto.

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O projeto, obviamente, se localiza no Baixo Augusta, no miolo de uma quadra, com saídas para as ruas Augusta, Matias Aires e Peixoto Gomide. Ele nasce com a vontade de reafirmar a essência do Baixo Augusta, criar um espaço onde o movimento, o fragmento e a experiência possam continuar acontecendo. Em nenhum momento a intenção foi suprir qualquer necessidade que a região possa ter, mas procurar olhar com beleza e carinho para ela e a partir do caos permanente que nela existe, criar um edifício que proporcione um “equilíbrio dinâmico”. O projeto, em si, consiste em criar uma infraestrutura, ou seja, uma malha rígida, de 5m X 5m, feita por uma estrutura metálica, onde há uma circulação também rígida, e a qual tem o potencial de expansão, as tubulações e ventilações se dão em torres contraventadas, que promovem a estabilidade do conjunto e servem também de espaço público e de convivência em cada andar. A intenção é que o programa seja livre, onde dentro dos vazios gerados pela malha novas coisas possam acontecer, ou seja, uma segunda estrutura, mais leve, se monte e se apoie sobre a principal. Os programas se dão de maneira diversa, todos os comércios tirados para criar o terreno do projeto foram incorporados para dentro do edifício. O edifício foi nomeado de edifício Colaborativo, baseado nas lojas colaborativas que existem na rua, a intenção é justamente seguir o modelo da loja, que oferece parte de uma grande estante para cada vendedor e naquele nicho 49


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cada lojista expõe seu produto, da maneira que deseja. O resultado é uma grande estante, que une diferentes, produtos, gostos e estilos, cada uma limitada em seu espaço, mas compartilhando tranquilamente o espaço comum.

> Inserção do projeto no terreno

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#processo construtivo

Rua Augusta

Rua Peixoto Gomide Rua Matias Aires

< Terreno arrasado

< Montagem dos primeiros pilares

< Montagem das vigas

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> Estrutura principal pronta e contraventada

> Estrutura principal + circulação

> Edifício terminado com proposta de ocupação

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#pavimentos

#rua peixoto gomide

#rua matias aires

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#


#rua augusta

#redário

#torre infra

#comércio local

#comedians

I M P L A N TA Ç Ã O

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#terraço do léo

#espaço de lazer

#get modas

# b

C OTA + 4 . 75

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#oficinas


banheiros

C OTA + 9 . 50

C OTA + 1 4 . 25

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#janelas indiscretas

<

pavimento tĂŠrreo_entrada rua Paixoto Gomide

60


<

pavimento tĂŠrreo_entrada rua Augusta

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#janelas indiscretas

#redĂĄrio

#comĂŠrcio local

<

primeiro pavimento

62


#get modas

#oficinas <

segundo pavimento

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#corte transversal

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65


#janelas indiscretas

<

torre habitacional

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<

entrada rua Paixoto Gomide + espaรงo de ensaios + redรกrio + รกrea de descanso

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<

acesso primeiro pavimento + fazenda urbana + passarela

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<

torre de infraestrutura + comedians + banheiros

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> perspectiva explodida do mรณdulo

> perspectiva do mรณdulo completo

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> perspectiva do piso

> elevação do pilar

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chapa expandida 1/4

conduites placas tetrapack 0.625X1.25 viga metálica alveolar, perfil C

cruzeta de união

pino de união entre os pilares (1m)

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Considerações Finais

_____________________________________ A intenção foi ir além da pesquisa de uma determinada área ou de um determinado programa, para pesquisar o HOMEM, as impressões que ele deixa na cidade e suas manifestações. A fim de ser capaz de construir um objeto que esteja em função das reais necessidades humanas, para que o mesmo seja aceito e apropriado pelos usuários. Ao pesquisar o Baixo Augusta não quis apenas me focar nas mudanças que ocorreram ao longo de sua história, mas perceber quem a ocupa, porque esse lugar é tão famoso e interessando, estar na rua Augusta é se deparar com uma enorme diversidade, tanto de público, de estilos como de opiniões. O trabalho procura valorizar não só a rua, como também toda a São Paulo, acredito que apenas com um olhar cuidadoso e carinhoso para a cidade é que sejamos capazes de construir uma nova paisagem urbana, caótica, porém organizada e que principalmente seja feita para o homem, retratando e ouvindo seus desejos e vontades, para que, de fato, a arquitetura sirva às necessidades dele. Que o flanar não seja apenas o vagabundear sem destino, mas que seja também apreender a cidade e ver nela uma série de novas oportunidades, como, para mim, foi esse trabalho. Obrigada, Giuliana. 75


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REFERÊNCIAS

BIBLIOGRAFIA BAUMAN, Zygmunt. Modernidade LÍquida. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar,2000. BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2005

A vida transformada em lixo: O refugo Humano. Resenhas Online, São Paulo, 071.04. Vitruvius nov. 2007. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/06.071/3097. Acesso em : 02 de março de 2016 A fluidez do mundo líquido de Zygmunt Bauman. Entrevistas, São Paulo, Fronteiras do Pensamento jan. 2016. Disponível em: < http://www.fronteiras.com/entrevistas/a-fluidezdo-mundo-liquido-de-zygmunt-bauman>. Acesso em 05 de maio de 2016 CARERI, Francesco.Walkscapes: O caminhar como Prática Estética. Barcelona: Gustavo Gili, 2013. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, 1-Artes de Fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. JACQUES, Paola. Arquitextos: Corpografia Urbana.Vitruvius,2008.

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FILMES: WEIR, Peter.Dead Poets Society.Thouchstone Pictures 1989. JACQUES, Paola e SEIBLITZ, Pedro. Quando o passo vira danรงa. Rio de Janeiro.2002. IMAGENS: Figura 01 Cena do filme Sociedade dos Poetas Mortos Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=grUh612kSKs> Fugura 02 Entrada da Galeria Le Village Rua Augusta 2015 Fonte: Autoria Prรณpria Figura 03 Interior Galeria Le Village Rua Augusta 2015 Fonte: Autoria Prรณpria Figura 04 Pipoqueiro Rua Augusta 2015 Fonte: Autoria Prรณpria Figura 05 Sr. Habib Rua Augusta 2015 78


Fonte: Autoria Própria Figura 06 Imagens retiras do vídeo: JACQUES, Paola e SEIBLITZ, Pedro. Quando o passo vira dança. Rio de Janeiro. 2002. Figura 07 Programa de Garnde Saison Dada Imagem retirada do livro: CARERI, Francesco Walkscapes-O Caminhar como prática estética. Barcelona: Gustavo Gili 2002 Figura 08 The Naked City Guy Debord 1957 Fonte: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.035/696> Figura 09 Arte de rua Figura 10 Largo da Batata Fonte: <https://catracalivre.com.br/sp/tag/largo-da-batata/> Figura 11 Centro Cultural São Paulo Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Centro_Cultural_S%C3%A3o_Paulo> 79




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