Edição Especial Criação Literária

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Edição Especial Criação Literária


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Na rua: a caminho do circo Livro das postagens História da chuva Os cães de que desistimos Sebastopol Treme ainda Um chão de presas fáceis Noite dentro da noite Desalinho Viagem a um deserto interior Pequena coleção de grandes horrores Outros cantos Nossa Teresa – Vida e morte de uma santa suicida Tudo o que pisa deixa rastro Experiências extraordinárias Singular coletivo Turismo para cegos


Apresentação

Criatividade, inovação, diversidade. Reunimos aqui, em prosa e verso, atuantes na vanguarda da produção literária brasileira, talentos que patrocinamos por meio do Petrobras Cultural. Nós, da Petrobras, acreditamos que a cultura contribui para o desenvolvimento do País. Por isso mesmo participamos do fomento à literatura brasileira, reafirmando assim nossa vocação para o apoio à cultura e à arte.

Através do Programa Petrobras Cultural, selecionamos 71 obras literárias ao longo de quatro edições da seleção pública. Na última edição – que registrou o recorde de 1.452 projetos inscritos – 17 autores tiveram suas obras contempladas, entre ficção e poesia. Contamos com a valiosa ajuda e a análise criteriosa de uma comissão de autores formada por André Vallias, Cintia Moscovich, Lima Trindade, Lourival Holanda, Luís Henrique Pellanda, Luiz Ruffato, Marcelino Freire, Paulo Lins, Paulo Scott e Sérgio Alcides.

Esta edição especial “Criação Literária – Petrobras Cultural” apresenta os autores e trechos dessas 17 obras. Boa parte dos títulos ainda está no prelo. Enquanto não chegam às livrarias, gostaríamos de proporcionar momentos de lazer e reflexão e, também, de instigar a curiosidade do leitor.

Boa leitura.

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Fernando Fiorese Um chão de presas fáceis

Joca Reiners Terron Noite dentro da noite

Laura Liuzzi Desalinho

Leila Guenther Viagem a um deserto interior

Luiz Bras Pequena coleção de grandes horrores

Maria Valéria Rezende Outros cantos

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Fabio Weintraub Treme ainda

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Emilio Fraia Sebastopol

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Chantal Castelli Os cães de que desistimos

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Carlos Schroeder História da chuva

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Carlito Azevedo Livro das postagens

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Índice Assionara Souza Na rua: a caminho do circo

Micheliny Verunschk Nossa Teresa – Vida e morte de uma santa suicida pg. 62

Nei Duclós Tudo o que pisa deixa rastro

Rodrigo Garcia Lopes Experiências extraordinárias

Ruy Proença Singular coletivo

Tércia Montenegro Turismo para cegos

pg. 66

pg. 70

pg. 74

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Assionara Souza

Assionara Souza nasceu em Caicó, no Rio Grande do Norte, e vive em Curitiba (PR). Autora dos livros de contos Cecília não é um cachimbo (2005), Amanhã. Com sorvete! (2010) e Os hábitos e os monges (2011). Idealizadora do projeto Translações: Literatura em Trânsito, publica alguns de seus textos inéditos no blogue Cecília Não É Um Cachimbo. Seu livro Amanhã. Com sorvete! acaba de ser lançado no México.

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Lua em Capricórnio

Ficções Biográficas

O Sebo Confraria ficará aberto só por mais dois anos. Cristóvão não sabe,

No Sebo Confraria também vende vinil e souvenirs. Tem por lá uma chave que o Cristóvão garante ter pertencido à escrivaninha do poeta Olavo Bilac. Tem também um lenço encardido com uma mancha carmim envolto em ziploc que ele sustenta de pés juntos ter sido do espólio do finado Augusto dos Anjos. A coleção particular, tirando algumas peças originais das quais não se pode negar a autoria, camufla exemplares que participam do museu sentimental do proprietário do Sebo Confraria – a estes ele aproveita para acrescentar algumas notas ficcionais: o lenço de Augusto, por exemplo, foi o que Cristóvão usou para estancar o sangue do mindinho de Sophia, quando ela, nuinha, prendeu aos dentes e puxou com toda força uma cutícula que já fazia dias a incomodava.

mas daqui a dois anos ele vai sofrer um ataque fulminante numa manhã de quarta-feira de um abril crudelíssimo. Cristóvão tem a lua em capricórnio e, a Beth sempre diz, é por isso que ele é assim, melancólico. Toda vez que a Beth repete esse dado fatídico do mapa astral de Cristóvão, ele caminha bem devagar até uma estante de poesia portuguesa, puxa com o indicador um volume do heterônimo Ricardo Reis e começa a ler com o seu sotaque caipira absurdamente sedutor:” Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. / Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos / Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas (...)”

Na rua: a caminho do circo

Se Se Cristóvão soubesse que só lhe restavam mais dois anos de vida, teria insistido menos com a Júlia. Talvez tivesse dito para Ana acreditar mais no poder fatal de seus olhos verdes. Teria convencido Edna mil vezes do quanto a amava para ver se ela não cairia na distração de traí-lo com aquele estudantezinho de filosofia e viesse a estragar os planos que os dois tinham de abrir um café dentro do Sebo Confraria. Também teria dito a Vera para não passar em seu apê naquela quarta-feira de abril, quando ela encontraria seu corpo morto e estirado ao chão, face esquerda acomodada bem na página daquele específico trecho d´O empalhador de passarinhos”. E, principalmente, Cristóvão saberia que em vez de usar toda grana reformando o apartamento de que nem chegou a

Vinganças de Leitor Antes de abrir o Sebo Confraria, Cristóvão gastava quase todo o salário de tradutor comprando livros dos mais diversos gêneros. Até os lançamentos de autores estreantes ele fazia questão de acompanhar, prestigiar, ter lá o autógrafo na edição fadada ao obscurecimento. E nessa fúria cega de adquirir volumes e mais volumes de obras, acabava que o seu apartamento era uma espécie de lugar dos livros aos quais ele pedia licença para habitar no espaço que sobrasse. Um colchão de casal no chão, um centro comprado em antiquário, dois sofás antigos – mas de bom uso. E as demais furnituras convenientes a receber um amigo ou outro para fumar uns cigarros, bebericar umas bebidas e ler umas leituras. Acontece que quando a grana apertava, Cristóvão ia pelas estantes recolhendo aquelas edições que lhe custaram uma nota e corria aos sebos, oferecer seus tesouros por uma ninharia. Saía deles com o coração partido e uns trocados no bolso. Foi quando ele aprendeu não basta ser dono de sebo; é preciso ter coração frio.

usufruir, teria feito a viagem de seus sonhos com a mulher de sua vida. Mas, Cristóvão, para onde? E qual delas?

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Carlito Azevedo O poeta e tradutor Carlito Azevedo nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. Já em sua estreia na literatura, foi premiado com o Jabuti, por Collapsus Linguae (1991). Dois anos depois, publicou As banhistas, seguido de Sob a noite física (1996) e Versos de circunstância (2001). Em 2001, reuniu seus poemas na antologia Sublunar. Após anos sem publicar texto de sua autoria, lançou o elogiado Monodrama (2009), também contemplado no Programa Petrobras Cultural.

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Querido Príncipe,

Anoitece e a serpente diz que a lebre nem chegou perto de alcançá-la, e

às vezes sua ausência é tão grande por aqui que me agarro a ela como uma

pente não sente a pelúcia e a ferrugem das patas tateando já seu código

lebre a uma serpente. Lembro de você mostrando as fotografias do júbilo e do desespero, oferecendo a rosa a Stalingrado, um suco de abacaxi ao minotauro, a carótida ao vampiro, estudando os rios que fluem contra o oceano, voltam ao fio d’água, explicam-se pelo arrependimento, trabalhando sem alegria para um mundo caduco, observando o voo da mosca. E sempre descobrindo o amor, inventando o amor, renegando o amor, conspirando: não me venham falar que, à noite, deitado na areia da praia, olhando a superfície negra salpicada de pontos luminosos, alguém era melhor do que você no

genético, suas ondulações, o bater do seu coração. Antes isso do que confessar ao atirador de elite que você foi o homem da minha vida, príncipe. E que eu sempre tive medo de que você me esmagasse com seu amor, com seu desprezo, delta do Paraná, cataratas do Niágara, e, uma vez mais, moscas. Príncipe, anotei todos os conselhos que você deixou na caixa de papelão da pizza, de que os camaradas comeram mais da metade. Menos aquele sobre só falar de amor sob um vento de cobre e estanho. E é que, como você, só

comando da misteriosa navegação.

sei falar de amor o tempo todo: amor, amor, amor, amor, no seu dialeto de

Tão existencialista isso de você olhar para baixo quando ri, e tão provocador

erguidas que não logram nem desistem de fazer o éter tremer de sua pura

e belo, e nobremente misterioso, sweet prince. Você, sempre acreditando que de tudo fica um pouco, até no chocalhar de chaves no bolso burocrata fica um pouco do desabar das ondas sobre os calhaus da sua região preferida no mundo, onde o deserto limita com o mar. Sempre se perguntando por que acordar com palavras o chinês deitado no campo, e quais as dez coisas que não podem faltar no sono de um chinês deitado no campo: a revolução? a súbita iluminação da mosca em pleno voo? a vertigem do miserável que nem sabe que ronda a boca de um vulcão? Está vendo como, tão inutilmente, tão amargamente, a lebre, escama a escama, pensa que vai se agarrando à

desordem e precipício, sua fala tartamuda, sua música eletrônica, suas mãos vertigem vertical. Por isso também eu deitei-me à noite em chão qualquer e fiquei sentindo, sob o corpo, o ondular da bola de barro solta no ar e no alto o séquito de constelações extintas, que silêncio de coquetel molotov um segundo antes de explodir contra a luz, Morro da Conceição, Morro do Livramento, Gamboa, Juramento, Tuiuti, Mangueira ou qualquer outro vendaval. Você diz que as mulheres que nunca nos olharam levaram consigo gestos de paixão, de morte e êxtase. Na madrugada da Praça XV, a menina, zureta de pedra, orgasmo de pedra, palavras de pe-

serpente, virando serpente, proferindo oráculos?

dra, se despega, se des-

Mas não, não é um poema para lembrar de você. Aí está você, aqui estou

me oferecer um ferro de

eu. Aí estão as letras e as runas. Tantos mortos em nossas vidas. Mas seguimos adiante, encurralando sonhos com café, entre o giro da galáxia e o lixo da cozinha, e a mosca, não vamos nos esquecer da mosca. A mosca foi nosso duende. Nossa real Penélope foi fulana. Você via o inimigo maduro a cada manhã ir se formando no espelho de onde deserta a mocidade, Jean Cocteau dizia que os espelhos deveriam refletir um pouco mais antes de nos devolverem a nossa face, e meu riso, abafado, se o risse, ofertaria ao nada, e nele me sepultaria para sempre e um dia.

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apenas sonha em sua vermelha toca subtropical, ardendo em febre. A ser-

pedra da escuridão para passar novo por cinco reais. Pupilas de fogo, mosca no nariz, ela me sussurra, como oratório sobre faixa mixada do Dj

Livro das postagens

Enigma, que sua presença, milagre de segundo banho no mesmo rio de

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lama, é a única lebre. E se foi, levando gestos de agonia e limbo, pequena Electra dos muros pichados. De todo modo, como os cidadãos de Argos, que se lamentavam de haver entregue à guerra de Troia a melhor flor de sua juventude só para receber, dez anos depois, em vez de homens feitos, cinzas numa urna desolada tão fácil de manusear, sinto que a poesia me sai cada vez mais cinza, e nem por isso diminuo a hecatombe de todos os meus momentos dedicados a ela: poesia. Carlos, sobreviver aos filhos, aos amigos, ao amor, tudo explica e repele explicação, ninguém morre velho o bastante ou jovem o bastante e há de haver uma região de todas as coisas, e ali nos reuniremos para tramar as felicidades mais impossíveis, sempre as mais realizáveis. O poema é o amor realizado do desejo que permaneceu desejo e isso já deixa o coração pleno de verdade, de furor e mistério. Cara, eu queria apenas dar notícias do coração pleno, do desejo extraordinário, da saudade de você. Viu o que você fez com a imaginação dos poetas cegos de Catamarca? escrevemos postmortem. Vivemos post-mortem. Saiba que sempre penso em você, pelo menos sempre que o meu coração cresce assim dez, vinte, trinta metros e explode.

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“Mas não, não é um poema para lembrar de você. Aí está você, aqui estou eu. Aí estão as letras e as runas. Tantos mortos em nossas vidas. Mas seguimos adiante, encurralando sonhos com café, entre o giro da galáxia e o lixo da cozinha, e a mosca, não vamos nos esquecer da mosca”.

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O catarinense Carlos Henrique Schroeder estreou na literatura em 1998 com a novela O publicitário do diabo, e de lá para cá lançou quase uma dezena de livros, com destaque para os romances A rosa verde (2005), Ensaio do Vazio (2006), entre outros. Sua coletânea de contos As certezas e as palavras venceu o Prêmio Clarice Lispector de Literatura de 2010 como melhor livro de contos do ano. Além de escritor, Schroeder coordena a e-coleção “Formas Breves”, o Festival Nacional do Conto e é editor da Revista Pessoa – Revista de Literatura Lusófona.

Carlos Schroeder 19


Supus algum tempo depois, que enquanto triturávamos os sanduíches e

observar as tendências na moda infantil, nos materiais e cores das principais

conversávamos sobre o casamento, o corpo de Arthur navegara por onde

lojas dessas cidades, para atualizar sua equipe de criação e pensar num viés

outrora era uma rua movimentada, fizera um longo percurso até se enros-

possível na adaptação das tendências às expectativas da marca.

car num arbusto alto, de galhos robustos, parcialmente coberto pela água. Estava inchado, rijo e numa posição semifetal quando o encontraram. A pri-

“Vai escapar da chuva”.

meira pessoa a vê-lo foi Maria Elisabete, empregada doméstica, que teme-

“Em Londres sempre chove, quando estou lá”.

rosa de perder seu emprego, resolveu se arriscar com água pela cintura para tentar chegar na casa da patroa. Ela viu aquela coisa, mas fez que não viu,

Foi a Inglaterra de Shakespeare

não era problema seu. Mas por algum timbre de consciência, avisou um dos

e Gordon Craig que consagrou o

botes dos bombeiros, a poucas quadras.

Grupo Teatro Extemporâneo: dois

“Pode contaminar ainda mais a água”, disse ela, se arrependendo logo depois. Naquele novembro de 2008, com Blumenau debaixo da água, e dezenas de mortos contabilizados, Arthur era apenas uma estatística. Mais um corpo.

História de chuva

anos percorrendo festivais, teatros obscuros, escolas e universidades com “Olhos de vidro”, espetáculo baseado no livro “A luneta mágica”, de Joaquim Manuel de Macedo,

Chovia sem parar há muitos dias, mas não importava. Nada importava. Nem

onde Arthur e Lauro, manipulando

as roupas que não secavam nunca ou viver sempre com os pés molhados

espelhos, potes de vidros, óculos e

ou com a umidade escorrendo das paredes ou com o cinza chumbo que se

lunetas arrancavam gargalhadas e

tornara a cor do céu ou com os guarda-chuvas se digladiando na Avenida

lágrimas. Eles eram bons, mas um

Marechal. Eu estava imbecilmente apaixonado e me casaria em menos de um

deles agora estava morto, e o que me deixou mais chocado foi que não saiu

mês, no dia 13 de dezembro de 2008.

nenhuma foto dele nos jornais, nem sequer no obituário. Arthur, destaque em inúmeras publicações especializadas, objeto de estudos e culto na Fran-

“Fechei com o DJ”.

ça, na Hungria, no México, na Inglaterra. E nenhuma linha, em nenhum jor-

“Naquele preço? Com o desconto?”

nal, aqui, neste Brasil ingrato. Na Índia, quando um boneco fica muito velho

“Sim, ele vai montar tudo, som e luzes”.

e deixa de ser usado, um pequeno ritual é feito no pôr-do-sol e ele é imerso

“Ótimo, amor, ótimo”.

em um rio e carregado em procissão. Mas Arthur não era um boneco velho, e

“Consertei a mala grande, o zíper estava apenas emperrado”.

sabia nadar, foi medalhista nos jogos estudantis, os Jogos Abertos de Santa

“Sério? Mas que menino prendado!”

Catarina, nos 200 metros rasos. Morreu a quatro quarteirões de seu apartamento, no centro de Blumenau.

Deborah coordenava a equipe de criação de duas marcas famosas de roupa

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para o público infantil, e viajaria na próxima semana por doze dias, para

Mais tarde, na série de entrevistas (que quase me custaram a sanidade) que

realizar pesquisas; então tínhamos que deixar os detalhes do casamento

fiz com Lauro, em busca de um perfil apropriado do grande artista que Ar-

alinhados, pois ela retornaria apenas uma semana antes da festa. Dessa vez

thur fora, o nervoso Lauro batia na mesa, ainda exasperado, e dizia:

o roteiro seria Londres, Paris, Barcelona e Milão, e seu trabalho consistia em

“Ele nadava pra caralho, porra. Como pode?”

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“Nada importava. Nem as roupas que não secavam nunca ou viver sempre com os pés molhados ou com a umidade escorrendo das paredes ou com o cinza chumbo que se tornara a cor do céu ou com os guarda-chuvas se digladiando na Avenida Marechal”.

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Chantal Castelli

Chantal Castelli, poeta, nasceu em São Paulo (SP), em 1975. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, também é fotógrafa, professora e tradutora. Publicou Memória Prévia, seu primeiro livro individual de poemas, em 2000. Tem poemas publicados em revistas como Azougue e Cacto. Participou da coletânea Drummond Revisitado (2002) com o ensaio Espaço e Memória em Boitempo.

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Paisagem

Então finalmente emergirão como quem negocia uma saída: os banhistas

Vê-se melhor de longe,

a boneca de olhos vidrados

de fora:

na banheira

os que se beijam desesperados no cais o que ainda agita os braços, quase sincronizados o que, mais adiante, é só o contorno

esperando a volta de um mergulho.

de um rosto, afundando como convém ao que morre. À uma da tarde, os peixes já foram todos vendidos e as gaivotas

No lago Não foi fácil escolher o melhor entre os meninos.

ajuntam-se para receber os restos.

Tive de lembrar-lhes a vaca que vimos atolada

Por isso não ouvimos

os espasmos inúteis para sair do brejo.

no campo, o empenho involuntário do corpanzil, Sórdida como a visão de um menino que se afoga

da varanda

e pede socorro.

(tampouco os amantes, embaixo) nada além do ruído de asas e bicos. Já não há nada a fazer quando entramos, esquecidos da criança no banho, avaliando os resultados da experiência. Alguns acidentes não têm causa nem corpos, a não ser quando desistimos de

Os cães de que desistimos

Disse isso para que todos entendessem a clareza dessa vontade: ele é magro e forte o bastante para deixar-se sugar por esse verde turvo; saberá ir e não voltar, como uma vaca paciente e sem memória.

”nada além do ruído de asas e bicos”.

encontrar a razão de um desaparecimento.

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Emilio Fraia Emilio Fraia nasceu em São Paulo em 1982. É autor do romance O verão do Chibo (2008), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, em parceria com Vanessa Barbara e da graphic novel Campo em Branco (2013) em parceria com DW Ribatsky. Foi editor de literatura contemporânea da Cosac Naify, repórter da revista Piauí, redator-chefe da revista Trip e editor de artes visuais da Bravo!, além de colaborar em diversas outras publicações. Em 2012, foi um dos vinte autores selecionados para a edição Os melhores jovens escritores brasileiros da revista britânica Granta.

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Sebastopol

“Jonas vivia acossado pelo

Ou ambos. Naquele ano, Jonas viveu coisas que não gostaria de ter vivido –

aprimoramento sem fim de

o afastamento de Domenica; sua mãe que piorou; seu pai que ia perdendo

um manual para reunir e

tudo o que tinha.

sistematizar técnicas de pavimentação. Seu colega de

Redigia o manual, era dezembro, e derretia os miolos naquela escrivaninha

seção, a quem todos chama-

– às vezes, levantava a cabeça e ficava à espera do giro do ventilador, o ven-

vam de Russo, ajudava nos

to, que levantava papeis, se aproximando. E derretia no asfalto, encurralado

relatórios de Volume Diário Médio das Rodovias. Tinham mais ou menos a

pelo ar quente dos motores, com os cabelos grudados na testa. Eventual-

mesma idade, trinta e poucos. Ali, no arquivo do Departamento de Estradas

mente, derretia em plantões nos pedágios.

de Rodagem, um emprego que não os levaria a lugar nenhum, dizia Jonas, se um emprego levasse alguém a algum lugar, e um emprego, pensando bem,

Russo gostava do ar livre: nos fins de semana, vendia títulos no Ilha

talvez fosse isso mesmo, uma passagem, um lugar, eles se espremiam numa

Porchat Clube, em São Vicente. Tinha feito um curso de vendas, aprendido

sala modesta, com gaveteiros de ferro, duas mesas e um ventilador (que não

a abordar, levantar necessidades e estava pronto para lidar com objeções.

descansava nunca).

Contra-argumentar. Detectar reais sinais de compra, concluir a negociação o mais rápido possível. Mais ou menos nessa época, passou uns dias longe

Jonas era tímido, tenso; Russo era comprido, com um bigode vermelho so-

do trabalho. Quando voltou, trazia consigo uma mão enfaixada. Havia se

bre a pele salpicada de sardas. Gostava do mar e falava das ondas: é algo

machucado, disse, tentando pregar um quadro. De pé, lado a lado, assistiam

que não depende da gente; é algo contra o que é preciso fazer alguma coi-

à rodovia ser aberta; eram as nuvens de poeira, a miragem de calor dos

sa, ao passo que em mar calmo chega um momento em que a gente cansa

tratores que iam e vinham, revolvendo a terra.

de nadar sem que nada aconteça. Uma vez, passou um fim de semana em São Sebastião e escreveu um diário. Na volta, pediu que Jonas o lesse: O

Um dia, Russo propôs a Jonas que comprassem um carro.”

Expresso Atlântico tem as poltronas laranja, vinte de cada lado, numa simetria paralisante – começava assim, e seguiam-se frases que, com o tempo e como tudo, foram se tornando estranhas, uma forma de engano. Talvez uma forma errada de registro. Ou de leitura.

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Fabio Weintraub (São Paulo, 1957) é psicólogo e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Seu livro Novo Endereço (2002) recebeu o prêmio Casa de Las Américas em 2003. Também é autor dos livros de poemas Sistema de Erros (1996), e Baque (2007). Coordenou a coleção de poesia brasileira Janela do Caos (Nankin Editorial) e participou por mais de dez anos do grupo Cálamo, núcleo de pesquisa e criação ligado à Casa Mário de Andrade. Seus livros foram publicados em Cuba, Portugal, México e Estados Unidos.

Fabio Weintraub

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Na padaria

Toda a pele

esfrega o rosto

no velório, o chá continuava quente

a carne do rosto cujos ossos recuaram

o dono da padaria, amigo da família

e as feições escorreram

mascarou o sinistro

bem antes dos dentes

dizendo que a funcionária se queimara em casa

esfrega com força a máscara o nariz molenga

a família não processa:

disfarce para ninguém

às custas da falecida

prótese sem sopro

não quer sair da penúria

no balcão da padaria

abraçou-a o fogo

toma café e esfrega

como virgem no valhalla

o rosto como quem desperta

foram tirar a roupa

sem perspectiva de beijo

veio junto toda a pele

os presentes nem reparam nessa pasta facial que ele amassa, sova, estica sem fermento que a amplie nem forno que a endureça na padaria dos dias

Treme ainda

”os presentes nem reparam nessa pasta facial”.

depois da pancadaria

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Fernando Fiorese

Fernando Fiorese nasceu em Pirapetinga, na Zona da Mata mineira em 1963, e reside em Juiz de Fora desde 1972. Doutor em Ciência da Literatura e Semiologia pela Universidade do Rio de Janeiro e Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Sua estreia na literatura foi Leia, não é cartomante (1982). A ele seguiram-se Ossário do mito (1990), Corpo portátil: 1986-2000 (2002), Dicionário mínimo: poemas em prosa (2003), Um dia, o trem (2008), entre outros ensaios, contos e poemas. Seus livros já foram publicados na Argentina, Estados Unidos e diversos países europeus.

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Fome Não Tem Lei “... tornei-me objeto de sátira entre o povo, alguém sobre o qual se cospe no rosto.” Jó 17,6

João Carlos Rocha Jardim, que nem meu pai, é minha graça. Mas ai se os sabidos escutam meu nome... Por conta de um São Sabino que eu nem sei se houve, me chamam mesmo Sabino de Pedra Azul. Tem gente que diz Profeta, com maiúscula. Profeta não fui, não sou, nem hei de ser. Ai se eles escutam o meu nome de verdade! Outros me tratam Sabino de Pedra Azul, Ponto do Marambaia, distrito de Caraí de doido e cospem onde eu ando. Mas aprendi os números do homem, aprendi a carne das mulheres, aprendi as águas e as pontes do Jequitinhonha, aprendi o fim e o começo das coisas, tudo deco-

“Por conta que eu também fui nascido de mulher, fui menino muito antigamente, e minha mãe mortinha da silva vinha me dar aqueles peitos murchos pra chupar um leite azedo de podre”.

radinho, aqui na minha cabeça sem máquina. Aprendi também as palavras todas da Bíblia, palavras que a boca não sujam, mas cavam ocos na carne da gente. Em verdade, eu presto é pra bagunça de menino pequeno. Taca pedra, eu excomungo rindo. Eu não importo, sou zero mais zero vezes zero, sem resto nem fração. Eu tenho nome de homem, mas é nos meninos que eu me vejo e choro. Choro o que eu vejo neles – o doente de amanhã, o louco, a descarada, o humilhado, o assassino, a mulher sem sombra. Tudo com medo

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de pai e de mãe. Por conta que eu também fui nascido de mulher, fui meni-

Foi preciso muito custo, muita perna, pra encobrir meu nome, senão a res-

no muito antigamente, e minha mãe mortinha da silva vinha me dar aque-

posta me pegava. E os sabidos vinham aos montes, do menor ao maior, ar-

les peitos murchos pra chupar um leite azedo de podre. E o pai, então, nem

mados de espada e varapau pra me botar ajoelhado na obra de Deus e dizer

conto. Tinha a mão curta e o ouvido duro do Deus de Abraão, Isaac e Jacó.

meu nome de batismo e me sujeitar de bicho pasmado. Eu tive que carregar

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muita fome, muita mosca-varejeira, muito mormaço, muito lázaro, muita enchente, muita tralha nas costas. Porque eles, os sabidos de Deus, fazem de uma tal maneira que a pessoa fica feito que perdida no véu de Dona Biá. Aí a vida da gente não passa de trepar, comer e beber. Trepar, comer e beber. E só. Tem condição? Vira bicho pasmado. E pra não ser, tem que matar o primeiro pai. E também o pai de sangue e Aquele maior de todos. Tem que deixar eles na minúscula, que é pro mundo inteiro reparar que você é nascido da estrada e que a peste é ser irmão ou filho ou marido ou funcionário ou crente. O nome do escondido é Sabino e eu sei também as palavras que sujam a boca. O pai me ensinou bem na horinha da morte. Imposto, fome, esculhambação, latifúndio, tóxico e o caralho a quatro. Hoje eu tou de boca suja com estas palavras por causa que Jesus não veio e um corpo sem cabeça é coisa muito das feias que Sabino viu num desastre lá em Além Paraíba. E a cabeça ainda falou assim pra mim Fica com Deus, meu filho. Mas Deus só quer saber dos sabidos dele, dos que dão ouro e terra e tijolo pras igrejas, dos que acendem

“O nome do escondido é Sabino e eu sei também as palavras que sujam a boca. O pai me ensinou bem na horinha da morte. Imposto, fome, esculhambação, latifúndio, tóxico e o caralho a quatro”.

vela de metro e pagam pra rezar mais de mil e quinhentas missas no domingo. É pra estes que Ele faz banquete. O resto do povo fica com o dente limpinho, limpinho. Por conta disto é que Sabino vê a letra e rasga, vê a lei e rasga, vê a lâmpada e apaga. Quero ver se eles me acham

Um chão de presas fáceis

neste escuro que eu falo.

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Joca Reiners Terron Joca Terron nasceu em 1968 em Cuiabá (MT). Em 1998 fundou a editora Ciência do Acidente pela qual editou seu primeiro livro Eletroencefalodrama. Autor de Hotel Hell (2003), Curva de Rio Sujo (2003), Guia de ruas sem saída (2012), também contemplado pelo Programa Petrobras Cultural, entre outros. Seu último romance A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves (2013) está sendo adaptado para o cinema. Recebeu o Prêmio Machado de Assis de melhor romance de 2010 por Do fundo do poço se vê a lua. Seu trabalho como escritor se estende aos palcos, Joca é responsável pela dramaturgia de Cedo ou tarde tudo morre, dirigida por Haroldo Rego e Bom Retiro 958 metros, encenada pelo Teatro da Vertigem.

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Nevou no dia em que você recebeu alta do hospital, disse Curt Meyer-

da qual você se lembrou dezenas, centenas, milhares de vezes. Outro sinal

-Clason. Foi a única ocasião em que aconteceu no Paraná inteiro em todo

de que sua memória começava a voltar. No carro, girando o dial do rádio,

o século. Assim começou o Ano do Grande Branco. Como sabemos, não é

Leo se perguntou se as Cataratas do Iguaçu teriam congelado. Ficavam a

comum nevar no Brasil. Era inacreditável, e a Variant do pai quase atolou

menos de cinquenta quilômetros dali, as Cataratas do Iguaçu, podíamos ir

naquele lamaçal de gelo ao voltar pra casa. Parecia feriado na vizinhança,

até lá conferir, ela disse, as Cataratas do Iguaçu imobilizadas no espaço, as

e as crianças arremessavam bolas

águas interrompidas em plena queda, é

avermelhadas de neve umas nas

como se o rio do tempo congelasse, ela

outras, entre as ameixeiras e as grades dos cercados dos quintais. Na praça da igreja, uma Ford Rural perdeu o volante no chão liso e se chocou contra o poste que soltava faíscas elétricas. Um homem mor-

Noite dentro da noite

Fragmento do romance

disse. As cataratas do Iguaçu congela-

“noite dentro da noite”,

das. Como se o tempo parasse. Desde

de Joca Reiners Terron,

então as cataratas congelaram na cabeça

premiado pelo programa

de Leo. Então o pai resmungou, girando

Petrobras Cultural, a ser publicado no segundo semestre de 2015.

o volante tão bruscamente que fez os pneus guincharem no asfalto molhado, e

reu, já pensou. Morreu na neve de

disse que precisava trabalhar. Ouvimos a

um país tropical, que morte inco-

voz do locutor da rádio de Foz de Iguaçu

mum e gloriosa. Essa Ford Rural

que sumia, transmitindo notícias do frio

vai continuar a se espatifar ao longo desta história em diferentes ocasiões

em meio à tempestade de estática. Mas você não viu nem ouviu nada. Con-

e cenários. É uma recorrência, um sinal de que sua memória está voltando,

tinuava meio adormecido no canto, a cabeça encostada no vidro trepidante

de que você está voltando a se lembrar. O entregador de jornais largou sua

da janela, e ao seu lado o meu lugar no banco traseiro do carro já antecipava

bicicleta no acostamento e admirava as palmas de suas luvas de couro man-

o vazio. Naquela manhã e na próxima e também na outra não cantou hinos

chadas pelo gelo imundo. Depois de arremessar o jornal na varanda de uma

nem assistiu à aula de Educação Moral e Cívica antes de amanhecer o dia.

casa, o entregador largava sua bicicleta no chão e admirava as palmas sujas

Ou talvez tenha assistido e apenas não se lembre mais.

de sua luva de couro com ar de felicidade. O impacto da bicicleta caindo sendo amortecido pela neve fofa fazendo pófe. Depois disso, o entregador de jornais olhava novamente para o couro sujo de suas luvas. Outra recorrência

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Laura Liuzzi Laura Liuzzi nasceu no Rio de Janeiro em 1985. Seu livro de estreia, Calcanhar, foi publicado em 2010. Desalinho, lançado em 2014 pela Cosac Naify como parte coleção Poesia Contemporânea Brasileira, é seu segundo livro.

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Desalinho

Torção Não tenho língua de gato mas insisti que ele notasse a permanente torção das coisas da natureza, não das inanimadas que dependem de ação externa mas repara, há movimento a todo tempo e esse estalo que te assustou

Coração sobre cama Se de repente acordo é madrugada surpreende o coração descansa sobre os lençóis exausto não tenho sede nem sono e nem mais coração. Se acordei e é madrugada era pra ver você que não está nesta cama.

é o nosso modo de ver a torção da madeira, e se em algumas horas já é noite, e você e eu sabemos disso, é porque nada para em nenhum instante, a não ser quando a alma fica maior que o corpo então o tempo suspende o universo e a simultaneidade do sistema solar para que nossos pés esqueçam

Enquanto canto bem baixinho os batimentos desaceleram lentamente,

a brutalidade do chão.

quase imperceptível até a voz sumir entre os lençóis.

Esperaremos a manhã o coração e eu e os jornais o carteiro as babás colocarão as coisas no lugar: o coração no peito

”Esperaremos a manhã o coração e eu”.

você à distância os lençóis na lavanderia.

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Leila Guenther nasceu em Blumenau (SC). Graduada em Letras pela Universidade de São Paulo, já havia publicado contos em jornais e revistas literárias antes de lançar seu primeiro livro, O voo noturno das galinhas (2006). Também é autora de Este lado para

Leila Guenther 50

cima (2011). Participou das antologias Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa (2006), Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte (2008) e 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras (2012), Cusco, espejo de cosmografias (2014), entre outras.

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Timbuktu

Em terra

Escorre o sal pela ampulheta.

Me chamam de algum lugar de dentro.

O cão e eu contemplamos

Som de ondas, de mar batendo em vão contra as pedras,

a paisagem

de ferros se chocando no fundo do oceano.

para onde iremos um dia.

Fora, as plantas crescem.

Um dia sairemos desta casa eu e o cão, que,

Sob minhas unhas ainda há terra

pelo contágio,

com que semeei os mortos.

ficou doente.

Eles vingaram.

Recolhi-me com ele no fim do mundo

No quintal dão frutos doces

depois de ter espalhado o escuro.

mesmo quando não maduros.

Eu e cão

Nos vasos – pequenos –

que só emerge de dentro de sua carcaça

estendem os caules e as folhas

quando atraído pela luz.

num emaranhado confuso de liberdade

Ele e eu atravessaremos o deserto

que as mãos

rumo à fonte de fogo

– antes de serem raízes –

onde outrora

não puderam tatear.

do sal, do barro e do pó se ergueu um mundo. Para lá iremos quando a peste acabar.

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”O cão e eu contemplamos a paisagem”.

Nunca lhes falta água.

Viagem a um deserto interior 53


Luiz Bras Luiz Bras é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, roteirista de HQs, professor e coordenador de laboratórios de criação literária. Tem livros voltados para o público infanto-juvenil como A última guerra (2007) e Dias incríveis (2006), em parceria com Tereza Yamashita. Além de diversos outros títulos como Sozinho no deserto extremo (2012) e Pequena Coleção de Grandes Horrores (2014). Atualmente, colabora com a Folha de São Paulo e mantém uma coluna mensal no jornal literário Rascunho, de Curitiba (PR), intitulada Ruído Branco onde escreve principalmente sobre ficção científica e poesia.

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Preste atenção em tudo o que não

tentando se comunicar com a gente. O herói desativando a bomba no últi-

faz sentido ou não tem importân-

mo segundo. O vilão frio e calculista com um tapa-olho e um gato. A família

cia. Em tudo o que não encaixa di-

sempre atrasada no café da manhã. As bolas de feno ao sabor do vento nas

reito. São sinais, eles podem estar tentando se comunicar com você. Preste atenção nos detalhes irrelevantes. Recolha todas as peças, não deixe escapar nada. O despertador que atrasou dois minutos. O tijolo faltando no alto do muro. A

Pequena coleção de grandes horrores

nuvem com formato engraçado. A meia que sumiu. Sinais, compreende? Monte o quebra-cabeça. Eles podem estar tentando falar especificamente com você. Preste muita atenção, tome nota de tudo o que parecer tolo ou trivial. Meio século atrás eles descobriram nosso planeta, a civilização humana. Reuniram toda a energia disponível e dispararam em nossa direção uma série de mensagens amigáveis e entusiasmadas. Preocupados com nosso futuro incerto, mandaram pra nós, de presente, soluções científicas e espirituais. Coitados. O esforço foi tão grande que seu planeta foi pulverizado, seu sol também. As mensagens chegaram, mas em frangalhos. As ofertas de amizade e colaboração dispersaram-se na atmosfera. Viraram chuva semiótica. Uma placa meio torta indicando a rua errada? O silêncio súbito numa avenida de trânsito intenso? O desenho esquisito na mancha

cidadezinhas do Velho Oeste. O raio e o trovão acontecendo ao mesmo tempo. O cartão de crédito ou o arame abrindo qualquer porta. Sinais, compreende? Acenos de uma civilização distante, agora desaparecida.

“O esforço foi tão grande que seu planeta foi pulverizado, seu sol também. As mensagens chegaram, mas em frangalhos. As ofertas de amizade e colaboração dispersaram-se na atmosfera”.

de óleo? Os clichês nos filmes americanos? Preste muita atenção, tome nota. São sinais, principalmente os clichês nos filmes americanos. São eles

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Maria Valéria Rezende Maria Valéria Rezende nasceu em Santos (SP) em 1942. Aos 23 anos entrou para a Congregação de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho. Sempre se dedicou à educação popular, primeiro na periferia de São Paulo e, desde 1972, no Nordeste. Viajou o mundo formando educadores populares. Vive atualmente em João Pessoa (PB). Estreou na ficção em 2001 com o romance Vasto Mundo. Em seguida veio o romance O voo da guará vermelha (2005) publicado também na França, Espanha e Portugal e os contos de Modo de apanhar pássaros a mão (2006). Em 2009 ganhou o Prêmio Jabuti na categoria literatura infantil com No risco do caracol. Em 2013 conquistou o mesmo prêmio, na categoria juvenil, por Ouros dentro da cabeça.

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Olho de novo o perfil do homem sentado do outro lado do estreito corredor

Eu fazia trinta anos no dia em que me meti pela primeira vez no sertão. Ain-

deste ônibus no qual, hoje, cruzo mais uma vez um sertão, qualquer ser-

da não se havia espalhado por toda a terra a ilusão de poder-se fraudar o

tão. Vi-o pela janela quando irrompeu e acenou à margem da estrada, vindo

tempo e afastar indefinidamente o envelhecimento e a morte com técnicas

de nenhum caminho, nenhuma habitação humana, emergindo do deserto,

cirúrgicas e calistênicas, fórmulas químicas, discursos de autopersuasão,

emaranhado compacto de garranchos e cactos. O ônibus parou arquejando

mantras, injeções, próteses, lágrimas e incenso. Então, só era possível fazê-

e eu adivinhei que ele vinha sentar-se ao meu lado, apesar de tantas cadei-

-lo tornando-nos heróis, mártires, mitos, símbolos. Apostava-se a vida no

ras vazias. Ele veio, grande, maciço, cheirando a couro curtido, suor e tabaco.

que acreditávamos ser maior que a nossa própria vida. Encher de sentido o

O cheiro flui da minha memória, decerto, porque este ao meu lado veste-se

tempo era, então, mais urgente porque tão passageiro, urgência de marcar

como um caubói de rodeio e cheira a água de colônia barata. Sentou-se, as

o mundo com nossa existência, mesmo que arriscando-nos a torná-la ainda

costas retas, as mãos pousadas sobre os joelhos, os olhos fixos perfurando

mais breve. Ultrapassar os trinta anos era atravessar o portal da juventude

o espaldar da poltrona dianteira e assim ficou até agora. Difícil deixar de

para a idade adulta. Era, então, o exato meio da vida.

olhá-lo, ainda mais quando sua figura se transforma, a contraluz, em silhueta de perneira, gibão e chapéu de couro, estátua encourada revolvendo-me

Vejo-me outra vez jovem ainda, sentada sobre o tronco de um coqueiro de-

as lembranças. Agora que o sol se meteu por detrás das nuvens esfarra-

cepado e deitado em frente à casa que me cabia, naquele povoado cujo nome

padas, logo acima do horizonte, tingindo o mundo, o vaqueiro destaca-se,

explicava a razão de sua existência, tão longe de tudo: Olho d’Água, como

negro como xilogravura contra o fundo avermelhado, e percebo em mim uma

tantos outros mínimos oásis espalhados pela vastidão das terras secas. Eu

sensação de suspensão e expectativa: desejo e espero que ele lance, enfim,

me escorava na parede caiada em

o seu aboio. Há mais de quarenta anos carrego essa imagem e esse canto em

branco, havia pouco abandonada

algum socavão da alma que agora se ilumina.

pelo sol, dando às minhas costas

Os faróis deste carro velho são tão fracos que não mostram nada do caminho, nada me distrai das imagens que voltam da minha primeira tarde naquele outro sertão. Deixo divagar a memória enquanto todo o resto, o caubói, o ônibus, a caatinga, a estrada, mergulha na escuridão.

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Outros cantos

o único alívio possível contra o calor que me abateu desde a manhã, bem cedo, quando apeei do caminhão desmantelado que me levou àquele exílio.

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Micheliny Verunschk A pernambucana Micheliny Verunschk é historiadora e mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em 2002 integrou a antologia Na virada do século – poesia de invenção do Brasil e no ano seguinte publicou dois livros de poesia: O observador e o nada (2003) e Geografia íntima do deserto (2003), finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Tem trabalhos publicados na França, Portugal, Espanha, Canadá e EUA e também é autora de A Cartografia da Noite (2010), B de Bruxa (2013) e de Nossa Teresa – Vida e morte de uma santa suicida (2014).

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Nossa Teresa – Vida e morte de uma santa suicida

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Nunca, em outros tem-

mulheres pudessem, sem culpas ou danações, se apoderar de suas vidas e

pos, se alardeara com

mortes, Deus seria condenado ao vazio, como um velho que esclerosa e vai

tanta veemência a exis-

sendo despido, graciosamente, e aos poucos, do respeito grave com que era

tência de santos suici-

considerado quando em uso da razão.

das, pois pela tradição daqueles que costumam

Se amortece, ou mesmo se oculta, o fato de que o lendário Sansão optou

ou julgam saber das or-

pelo suicídio quando arrastou as colunas do templo precipitando para a

dens e mandos de Deus,

morte milhares de filisteus, gente como eu, como você, que se reunia em

ou como quer que ele

Dagon para louvar e festejar e fazer compras ou passear com as crianças

seja nomeado pelas vá-

como qualquer pessoa que nesse mesmo instante caminha pelas ruas ou se

rias religiões que infes-

deixe estar nos templos de Ashdod. Se esconde, sob o patronato da Odonto-

tam o mundo como uma praga do próprio Criador, o jardim celestial fecha

logia, o suicídio sagrado da egípcia Santa Apolônia, que ardeu numa pira por

terminantemente seus portões com travas, ferrolhos, cadeados, grossas

vontade própria a ter que abjurar. Deixa-se em segredo a real exigência feita

correntes a todo homem ou mulher que, em gesto de insana profanação,

à Santa Margarida Alacoque quando a ela foi dito Hoje procuro uma vítima

atenta contra o que é de menos seu, contra o que lhes é dado apenas por

para o meu Coração, que cumpra minhas vontades e se sacrifique como hós-

empréstimo, o bem mais precioso, a vida. Nenhuma misericórdia! Gritam os

tia, ordem à qual ela prontamente acatou gravando a lâmina quente de faca

pregoeiros da palavra e vontade divinas. E quando isto proclamam, saiba-

virgem o nome do Crucificado no peito para, em seguida, sangrar até morrer.

-se que nenhuma piedade concederão aos que injuriam a carne com a morte

Tenta se esconder até mesmo o que é mais óbvio, o suicídio de Jesus, em

escolhida, prerrogativa do mesmo Deus, senhor que a uns acolhe e a outros

Jerusalém, durante aquela longínqua Páscoa de que até hoje se tem notícia.

não e que, cioso de suas tarefas, quer sempre definir a hora, o local e os

Glorifica-se a morte coletiva dos guerreiros de Massada, dos quarenta már-

meios, desconsiderando, é claro, essa tolice com que tantos se enganam,

tires de Sebástia, dos 2200 kamikazes do 25 de outubro de 1944, dos bas-

essa bobagem de livre-arbítrio que só tem a serventia de enganar a hu-

sidijis do Irã, ao mesmo tempo em que os suicidas individuais, aqueles que

manidade a propósito da falta de pulso sobre seu próprio destino. Pensam

morrem de frustração, solidão, falta de fé e de objetivos, aqueles que mor-

os arautos do Senhor que num mundo em que reinasse o livre-arbítrio de

rem por desesperança ou simplesmente por desejarem dignidade no último

fato, Deus não teria mais qualquer utilidade. Num mundo em que homens e

suspiro, são relegados a alas discriminantes ainda em tantos cemitérios.

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Nei Duclós

Nei Duclós nasceu em Uruguaiana (RS) em 1948. Jornalista desde 1970 e graduado em História pela Universidade de São Paulo, é autor do romance Universo Baldio (2004) e de vários livros de poesia, entre eles Partimos de Manhã (2012), No mar, veremos (2011), No meio da rua (1979) entre outros. Publicou também livros de contos e crônicas além de ensaios sobre cinema. Seus poemas e contos já foram publicados em italiano, na revista Sagarana (Lucca, Itália) e inglês, na revista Rattapallax (Nova Iorque, EUA).

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Mortos reagem a bala - Ela tinha a palidez do terror no rosto furado por olhos pretos, aquosos, que refletiam a luz escassa do céu de fogo no frio de julho da cidade em ruínas. Chamava-se Denise, nome que arranquei depois de convencê-la a parar de berrar pelos pais desaparecidos. Ninguém encontra nada com grito, disse eu até que ela enfim se acalmou, ou pelo menos baixou a guarda, permitindo que eu a ajudasse nos embrulhos que levava ocupando os dois braços. As-

Tudo que pisa deixa rastro

sim tolhida pelo que queria salvar, estava praticamente imobilizada naquele momento em que mais precisava de movimento. Queria saber que fim dera seus pais que sumiram na saída da fábrica. Ela estava esperando na frente

térios não davam mais conta da mortandade. Chegaram a inventar um novo

da escola, como fazia todos os dias, que pai e mãe tecelões de uma indús-

cemitério. Mas o pavor maior eram os desaparecidos, os corpos sem iden-

tria poderosa viessem lhe abraçar no final do dia. Nada era normal naquele

tificação, a busca obsessiva e imprecisa de parentes, amigos. Denise fazia

bombardeio. São Paulo agonizava vítima do governo federal que assestou o

parte daquela população destruída. Não havia mais família, só a lembrança

canhoneio pesado nos bairros mais laboriosos, para usar uma palavra que o

do que tinha sido um dia. Centenas de mortos anônimos faziam pilhas es-

próprio presidente da República usava nos seus despachos. Estávamos na

perando sepultamento. Não existiam mais funerais, e nem mesmo pranto.

pujante cidade cheia de empregos e dinheiro e por isso todos estavam sen-

Havia dor, medo, fuga, pânico. A cidade estava tomada pelo caos. Incêndio

do punidos, morrendo às centenas pelas ruas e casas e até nos hospitais

por toda parte era o desfecho dos saques monumentais em que a popula-

atingidos.

ção se atirava sobre os mantimentos que não eram mais distribuídos, já que tudo fora abandonado no embate da porção revoltosa do exército e da força

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- Vi coisas terríveis naquelas semanas de horror e os olhos de Denise eram

pública contra as tropas legalistas, estaduais e federais. As chamas ilumina-

a única promessa de que existia uma outra vida, talvez a paz, ou numa es-

vam as noites sem luz elétrica. Empresas grandes e famosas, como Cotoni-

perança mais funda, amor. Era impossível contar o número de bombas, sem

ficio Crespi e a fábrica de biscoitos Duchen, na Mooca, viraram escombros.

falar na matraca da metralha, dia e noite. Era uns 130 disparos por hora. As

Os bairros de Campos Elísios, Vila Buarque, Vila Mariana, Aclimação e Liber-

pessoas eram enterradas nos quintais, nos terrenos baldios, pois os cemi-

dade morriam sob a força da carnificina.

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Rodrigo Garcia Lopes Rodrigo Garcia Lopes nasceu em Londrina (SC) em 1956. É poeta, compositor, jornalista e tradutor. Desde 2002 edita, com Marcos Losnak e Ademir Assunção, a revista Coyote. Em 2013, lançou o CD Canções do Estúdio Realidade. Também publicou Vozes & Visões (1996), reunindo entrevistas com artistas e autores norte-americanos como John Cage, William Burroughs, Allen Ginsberg e John Ashbery. Traduziu Plath, Whitman, Rimbaud, Riding, The Seafarer, entre outros. É autor dos livros de poemas Solarium (1994), Visibilia (1997). Polivox (2002), Nômada (2004), Estúdio Realidade (2013) e Experiências Extraordinárias (2014), além do romance policial O Trovador (2014).

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Império dos segundos

Experiências extraordinárias

Se eu fosse parar pra saber o sabor deste instante não iria jamais perceber do que é feito o durante,

Outro outono a carne de cada segundo, Uma nuvem fina fia o horizonte,

minuto de cada poente

paira no rosa de seus últimos

de que é feito este mundo,

instantes, praia de pensamento.

sangue, esperma, poeira,

A fragata flutua no crepúsculo

não ia jamais me lembrar

sem motivo, sem canto nem sentido.

da trama da tarde, museu

Afirma apenas: seguimos vivos.

onde moram as velhas horas, nem o duro rosto deste outro

As ilhas também não nos perguntam nada. Nem nos acusam. O vento sul

outono, matéria, mistério,

há três dias está se consumindo, sendo

nem a memória, esse mármore

Só o que é, e não o que será.

em fluxo, rugido em estéreo de uma incessante cachoeira.

”As ilhas também não nos perguntam nada. Nem nos acusam”.

Incline a cabeça em direção ao céu. Confira este espaço, a nuvem fina que já se foi, e a ideia da noite ganhando volume e expectativa.

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Ruy Proença nasceu em São Paulo (SP) em 1957. É engenheiro de minas e poeta com participação em diversas antologias e revistas de poesia. Tradutor de obras de Boris Vian, Jean-Pierre Siméon e Paol Keineg. Integrou a Anthologie de la poésie brésilienne (França, 1998) e o grupo Cálamo, núcleo de pesquisa e criação ligado à Casa Mário de Andrade. Tem publicado, entre outros, Pequenos Séculos

Ruy Proença

(1985), A lua investirá com seus chifres (1996), Como um dia come o outro (1999) e Visão do térreo (2007).

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Baú de família um caranguejo

vestindo monstros

embora

arranca um bife

que se acham

a mão que vasculha

da mão entrante

deuses

encontre a mão solitária

desprevenida suicidas seriais

de uma celista

com dentes germânicos

dão o tom

não se ouve

o passado

da linhagem

o som

carimba o visto

em que

da melodia

no passaporte

alguns pastores moldam o quadro

além disso

a mão hemorrágica

patético

nada indica

desliza sobre a pele

político

a presença

Singular Coletivo

de uma mão-

de mulheres feias cabeças feias

jovens

enfermeira

antes lindas crianças

de faces rosadas

com calos

e calças curtas

solícitos

mas isso

correm

é só o começo

atrás da morte

o túnel do tempo

no front

é escuro

”jovens de faces rosadas e calças curtas correm”.

há uniformes escusos militares impecáveis

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Tércia Montenegro Tércia Montenegro nasceu em Fortaleza (CE), onde ainda vive. Fotógrafa e professora do curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Dentre outros livros de contos e crônicas, publicou Linha férrea (2001) – que recebeu a Bolsa para Escritores Brasileiros com Obras em Fase de Conclusão, concedida pela Biblioteca Nacional, e o prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira – e O Tempo em Estado Sólido (2012), finalista do Prêmio Jabuti e do Prêmio Portugal Telecom. Turismo para Cegos (2015) é seu primeiro romance.

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”As palavras não são as mesmas, portanto; não são repetições, mas diálogos”.

Em minutos os dois se acomodaram na areia escaldante e pareceram contemplar o mar, com o aspecto tão trivial de sentar apoiando os braços nos joelhos, aqueles triângulos formados pelas pernas. Mas Pierre nota que alternadamente um abre a boca, diz algo, apenas uma palavra, e então se cala, para no instante seguinte o outro repetir o gesto, o curto bulício de lábios. É como se repetissem termos estrangeiros, aprendessem um novo idioma – e Pierre se esforça, mas não compreende porque às vezes Bent parece articular duas sílabas e Laila responde com três, ou apenas uma. As palavras não são as mesmas, portanto; não são repetições, mas diálogos – e, caso Pierre pudesse ouvi-las, entenderia menos ainda, porque a seleção delas não dependia de contexto ou semântica:

neis, abrir esconderijos para encontrar surpresas. Ela se lembra das dunas

eram palavras vivas pela sonorida-

que conheceu em Fortaleza, numa época em que vários casarões ou prédios

de, e Bent havia começado o jogo

ainda não estavam lá. Os morros albinos criavam uma paisagem de neve em

como uma distração: “Vou te dar uma palavra: lufada”, disse, e Laila sentiu o calor do sopro. “Lufada”, saboreou internamente, e um minuto depois devolveu: “Labirinto”. Bent disse: “Quimera”, e ela res-

Turismo para cegos

pondeu com “Absinto”.

pleno calor. Laila escorregava em seus declives, colhia porções quentes de areia como se fossem quitutes saídos do forno. As dunas eram vivas, móveis e, justamente por isso, únicas. Da próxima vez em que as encontrasse, não seriam as mesmas, com aquela combinação de grãos. Vistos bem de perto, eles eram verdadeiros cristais brancos ou dourados, jóias mínimas para quem quisesse fingir riqueza. Laila, menina, deitava naquelas miudezas; pegava um punhado, deixava-o escorrer entre os dedos e dizia: é ouro em pó, estou na caverna de Ali Babá.

Laila divertia-se, pega no laço da linguagem. Era realmente um presente,

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cada palavra: algo que se resgata, que se cava de um terreno incógnito,

Agora, na sua cegueira fulgente sob o sol, ela também se sentia trancada

cheio de possibilidades. Como quando escavava o chão úmido de praias da

com um tesouro. E podia cavar como antes, sopesar o dote – mas em vez de

infância, Laila pouco interessada em erguer castelos – queria antes furar tú-

grãos de areia, eram palavras que Bent lhe trazia e ela, de seu lado, desco-

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bria outras e lhe entregava, numa troca. “Insípido”, por exemplo – não importava o significado, mas o timbre, o roçar da língua e o gesto dos lábios. Após um silêncio, Laila devolvia: “Marítimo”. Quem os visse, poderia pensar numa sessão de análise com associações livres – mas a verdade é que não eram tão livres assim, e Laila sentava-se em lótus como se meditasse ao lado de Bent, seu guru, que agora dizia “Telúrico”, demorando-se no acento como se arremessasse um dardo. Ela o pegava no fôlego: “Súbito”. E ele: “Diáfano”. “Artifício”. “Chuvisco”. “Floração”. “Feitiço”. “Abismo”. “Sossego”. “Medo”. “Início”. Expediente

(...) O prazer vinha com a língua tocando os dentes ou o palato, os dentes freando sobre os lábios, o cicio, o cochicho que se confundia com a brisa salgada. Mas então as palavras ganharam significado, aos poucos já não eram melodia somente. “Carne”, disse Bent, e Laila pensou um segundo antes de dizer “Lençóis”. Naquele momento, se um observador próximo tivesse feito um registro, o sorriso de Bent seria catalogado. Um simples esboço, uma curva se insinuando para o alto, mais acentuada à direita, uma covinha na bochecha: era o sinal da vitória. “Êxtase” – ele pronunciou, bem lento, e continuaram.

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Pesquisa de Conteúdo Projeto Editorial Coordenação

Gerência de Patrocínios Flavia Da Matta Design Vanessa Santos

Autores Fotógrafos Assionara Souza Carlito Azevedo Carlos Schroeder Chantal Castelli Emilio Fraia Fabio Weintraub Fernando FIorese Joca Reiners Terron Laura Liuzzi Leila Guenther Luiz Bras Maria Valéria Rezende Micheliny Verunschk Nei Duclós Rodrigo Garcia Lopes Ruy Proença Tércia Montenegro

Acervo Pessoal Acervo Pessoal Thays Magalhaes Acervo Pessoal Renato Parada Padua Fernandes Angie Antunes Orelha Acervo Pessoal Acervo Pessoal Tereza AdrianoFranco Jader Rosa Acervo Pessoal Jacqueline Sasano Librairie Antinoâ Renato Parada

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