PA R T E 2
VOLTANDO DA GUERRA A DIFÍCIL FASE DE READAPTAÇÃO
Capítulo 1
COMO ENTREI NA OFTALMOLOGIA
Quando voltei da guerra, passei algum tempo sem saber exatamente o que fazer. Era médico e só.
Havia saído de um longo período de muitas preocupações, muito trabalho, e de repente me via livre, desocupado e tendo que dar um rumo à vida1. Aconselhado por um colega e grande amigo, Wilson Cruz, fui cumprir um estágio em um Serviço de Oftalmologia, o da Policlínica da Faculdade de Niterói, Serviço do professor Paulo Pimentel. Lá passei dois anos e, quando me dei conta, não havia mais caminho de volta. Aluguei um horário no consultório de um colega mais velho, Antônio Resende de Castro Monteiro, médico da Aeronáutica (que depois foi meu amigo por toda a vida), e comecei.
1 Na verdade também senti, em pequeníssima dose, o que deve ser uma dificuldade muito grande para os que – como alguns combatentes – saem de uma guerra com a cabeça cheia de pesadelos. Rapazes a quem se convenceu que eram heróis, que a Pátria dependia deles, que foram obrigados a arriscar a vida em lances de bravura, que mataram para não morrer e que, de um momento para outro, terminada a guerra, devem voltar a ser pacíficos garçons, pacatos burocratas, etc. É uma queda no vazio que a muitos desequilibra, com razão. 353
Capítulo 2
A OFTALMOLOGIA, OS CONSULTORIOS
Naquele tempo não havia “planos de saúde”. Os Institutos de Previdência eram vários, cada um destinado a um setor de trabalhadores. Por exemplo: Instituto dos Comerciários, dos Marítimos, etc. Inclusive o Instituto de Previdência e Assistência aos Servidores do Estado (IPASE), para o qual fiz concurso e fui aprovado. A assistência dada por esses institutos era de padrão bastante elevado. O dos Servidores do Estado, por exemplo, onde eu trabalhava, teve seu hospital indicado como padrão A na classificação norte-americana. O fato de trabalhar lá já era um bom título, já era uma boa recomendação. E éramos bem pagos. Assim, em alguns anos já pude enfrentar com coragem a compra de duas salas no segundo andar da Av. Rio Branco, 173, esquina de Nilo Peçanha, em frente à então famosa Galeria Cruzeiro. Era o melhor local da cidade. O Monteiro foi comigo. Mais alguns anos, e em 1952 licenciei-me do hospital para um estágio de aperfeiçoamento na Europa. Fui pela mão de Nelson Moura Brasil, a quem havia sido apresentado pelo meu chefe no hospital, meu grande amigo Adroaldo de Alencar Costa. Nelson Moura Brasil 1 era muito ligado ao mais famoso cirurgião de catarata da época, o Conde Hermenegildo Arruga, de Barcelona, e ao famoso Prof. Franceschetti, de Genève. Consegui estagiar com ambos. Alguns anos mais tarde, anunciaram a demolição da tradicional Galeria Cruzeiro para dar lugar ao primeiro edifício de mais de 30 andares do Rio de Janeiro. Era um fato importante. Nessa altura, além dos estágios que havia feito na Europa, já frequentava a elite dos oftalmologistas do Rio, já havia participado por três anos da diretoria da Sociedade Brasileira de Oftalmologia e sido eleito seu presidente, feito uma gestão – modéstia à parte – bastante eficiente, viajava bastante e já era figura conhecida dos oftalmologistas de renome de todos os estados brasileiros. Era tentador mudar-me para o novo edifício e organizar uma clínica maior. Tinha outros médicos trabalhando comigo, além do Monteiro e do Geraldo Nunes, meu colega no Hospital dos Servidores. Na Diretoria da SBO – Sociedade Brasileira de Oftalmologia, tornei-me companheiro de trabalho de Pedro Moacyr de Aguiar, oftalmologista já renomado, excelente pessoa, que se tornou meu grande amigo e sócio até sua morte. Pedro Moacyr tinha dois assistentes e, somando com meu grupo, a Clínica chegou a ter, em certa época, cerca de dez assistentes. 1
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Nelson Moura Brasil tornou-se um grande amigo. Tinha 20 anos mais que eu e foi um bom conselheiro. Foi meu padrinho de casamento em Barcelona, assim como Arruga também foi. Eu e Amparo éramos convidados com frequência para jantares em sua casa. Morava, ele e a mulher, D. Helena, num enorme apartamento de quase 1.000 m2 no Flamengo, onde tinha uma preciosa coleção de copos antigos. Foi, também, padrinho de batismo de Carlos, meu primeiro filho. Deixou saudades.
Tínhamos comprado seis salas no novo Edifício Av. Central. Eu, três, Pedro, duas e Monteiro, uma. Havíamos posto em prática uma fórmula econômico-financeira engenhosa, que permitia a cada um trazer seus aparelhos e comprar novos, distribuindo o custeio correspondente de maneira equilibrada. A clínica progrediu muito; Pedro Moacyr era exímio cirurgião, foi pioneiro ao trazer para o Brasil a técnica da cirurgia de catarata por facoemulsificação, e logo em seguida foi o primeiro a trazer cirurgiões americanos, com quem havia trabalhado na Califórnia, para ensinarem aqui a técnica do implante das “lentes intraoculares” (LIO). Formou, em nossa clínica, os melhores cirurgiões de catarata do Rio de Janeiro (que até hoje quando escrevo continuam como tal). Os implantes, inicialmente muito combatidos pelos cirurgiões de catarata, principalmente de outros estados, que viam neles a necessidade de aprender uma nova técnica totalmente diferente – porém mil vezes melhor que as antigas –, conseguiram vencer a onda de oposição. Pedro Moacyr teve seu nome finalmente reconhecido como o grande pioneiro no assunto, no Brasil. A
tradicional Galeria Cruzeiro marcava o centro do centro do Rio de Janeiro até 1957. Era o ponto final de todas as linhas de bonde que provinham dos bairros. Abrigava um hotel que havia sido importante até a primeira metade do século. Em 1957 foi demolida para dar lugar ao edifício Avenida Central, o primeiro que chegava a 35 andares no Rio de Janeiro e também o primeiro a ser construído com estrutura de aço. Houve grande noticiário de imprensa precedendo e acompanhando sua construção.
A Clínica Central de Olhos foi uma das primeiras organizações a instalar-se lá, antes mesmo da inauguração oficial do edifício. Depois veio também a SUDOP, que cresceu ali dentro ocupando salas, depois sobrelojas várias, cada vez maiores. A OPTOTAL, de Carlos, mais tarde, cresceu também lá dentro e chegou a ocupar a maior de todas as sobrelojas, que era a metade da base larga do edifício e incluía até os jardins em volta.
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Durante o primeiro Congresso Internacional de que fiz parte, em 1950, ao lado de um colega alemão.
Eu (de bata comprida) e outros estagiários no Instituto Barraquer, em 1951. À direita, o professor Ignácio Barraquer, então principal personagem da família, pai do Joaquim e do José Ignácio. 356
SBO – SOCIEDADE BRASILEIRA DE OFTALMOLOGIA
Capítulo 3
Em 1955 fui eleito como primeiro Secretário da Sociedade Brasileira de Oftalmologia. O primeiro Secretário é o encarregado de receber convidados estrangeiros e responsável pelas ligações deles com a Sociedade durante congressos ou em outras ocasiões. Fui indicado por falar espanhol, italiano e francês, além do inglês, que era mais generalizado. Na gestão seguinte já me elegeram para o cargo de Secretário Geral, que é uma espécie de assistente direto do presidente da Sociedade. Quem a presidia era Pedro Moacyr de Aguiar, um colega já renomado, excelente cirurgião e ótima pessoa. O trabalho conjunto fez com que nos tornássemos bons amigos. (E assim o tive mais tarde como sócio, e caminhamos juntos e solidários até a sua morte. Eu estava longe, em Budapeste, quando recebi a infausta notícia de sua partida. Não pude estar presente para despedir-me dele.)
Em 1959, os colegas me deram a honra de eleger-me Presidente para a gestão 1959/1960.
Creio ter exercido o mandato com eficiência.
Como ex-presidente, continuo tendo pela SBO muito carinho e grande afeição. E não são raras as ocasiões em que recebo homenagens em solenidades ou em publicações deles. No Congresso Pa n -A m e r i c a n o e m que fui Secretário Geral, em minha c a s a à Ru a Po m p e u Lo u r e i r o , um grupo de oftalmologistas, entre os quais na extrema direita p r o f. E m i l i o Ra v e r d i n o , d e Milão, e Antonio Re z e n d e d e C a s t r o Monteiro (que foi meu grande amigo e sócio durante cerca de 50 anos).
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Re c e b e n d o , r e c e n t e m e n t e , d i p l o m a d e m e m b r o h o n o r á r i o d a S B O.
E u e m e u p r o f e s s o r, Conde Hermenegildo Arruga.
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Ainda no mesmo Congresso, da esquerda para a direita: A n t ô n i o Re s e n d e d e C a s t r o Monteiro, eu, o professor Re m k e , d a U n i v e r s i d a d e d e M u n i q u e , a S r a . Re m k e , Pe d r o M o a c y r d e A g u i a r e um colega da Bahia cujo nome não me lembro.
A CLÍNICA CENTRAL DE OLHOS, COMO NASCEU E CRESCEU
Capítulo 4
Rememorando: depois do pequeno consultório alugado em sociedade com o Monteiro, na Av. Franklin Roosevelt, resolvi corajosamente comprar duas salas na Av. Rio Branco nº 173. Foi o primeiro negócio imobiliário que fiz, naturalmente com muito medo. Eu tinha 27 anos. Nessas salas trabalhei cerca de 12 anos, começados antes e continuados depois do meu estágio na Europa, casamento, diretoria e depois presidência da SBO, assunto de capítulos anteriores. E assim foi, quando, em 1960, resolvi comprar três salas no Edifício Av. Central, que estava sendo incorporado com grande noticiário por ser o primeiro edifício de mais de 35 andares no Rio. Convenci o Pedro Moacir de Aguiar e o Antônio de Castro Monteiro, colegas e grandes amigos, a também comprarem salas ao meu lado, e assim formamos a Clínica Central de Olhos (escolhemos Central para coincidir com o nome do edifício). Era bastante espaçosa e até certo ponto grande demais para o número de clientes que tínhamos. Os aparelhos que já tínhamos, levamos para lá e compramos alguns outros, tudo obedecendo a um arranjo financeiro bem imaginado que felizmente deu certo. Mas havia um problema: o investimento em espaço, pelo menos no início, era grande e dispendioso demais. Precisávamos imaginar uma maneira de aumentar o número de clientes. Desde logo eliminamos qualquer ideia do uso de propaganda ou qualquer apelo que não fosse estritamente dentro da ética. Já éramos, tanto eu como o Pedro, bem conhecidos de todos os mais importantes oftalmologistas do Rio, de São Paulo e mesmo do Brasil, pois havíamos saído recentemente da honrosa posição de presidentes da SBO. Pensamos então em um meio de buscar clientes que não fossem de ninguém. Sabendo que de cada dez pessoas que necessitam de algum auxílio à visão – óculos ou lentes de contato – sete não sabem que precisam, imaginamos que ali deveria estar um grande número de clientes potenciais. O problema era encontrá-los. Pensei então em criar um serviço de “identificação de problemas de visão em coletividades”. A ideia era oferecer a grandes organizações empresariais, principalmente as que mais necessitam de boa visão no trabalho, uma triagem em seus funcionários e operários, com a intenção de melhorar a produtividade, melhorando a visão. Sabia que na América, durante a guerra, utilizavam um aparelho criado pela Universidade de Pordue com a intenção de rapidamente fazer um “screening” em grandes grupos, para incorporar soldados às forças armadas. Esse aparelho checava a visão de longe e de perto, fazia um campo visual elementar, testava a visão de cores, em resumo, era capaz de identificar as sete pessoas, entre as dez, que tinham problemas de visão e não sabiam. 359
Quem estava fabricando os aparelhos, chamados “ORTHO-RATHER”, era a Bausch & Lomb, cuja sede era em Rochester, NY, quase fronteira do Canadá. Viajei pra lá para enfronhar-me no assunto, quando havia um frio de muitos graus abaixo de zero. Atenderam-me muito bem, pois eles também estavam interessados na divulgação e venda daqueles aparelhos. Ao voltar, fizemos a Bausch & Lomb do Brasil importar dois deles. Nunca haviam vendido nenhum para a América do Sul. O manejo podia ser feito por qualquer pessoa que fosse tecnificada para fazê-lo. Em pouco tempo já tínhamos tudo bem preparado – aparelhos – espaços – técnicos, etc., e pudemos oferecer os “screening test” a algumas grandes empresas. A H. Stern, que tinha sua sede principal nos andares superiores do edifício da Av. Rio Branco 173, em cujo segundo andar tive meu antigo consultório, e cujos diretores já eram meus clientes, foi a primeira a fazer conosco um contrato. O serviço funcionava assim: após esclarecimentos que dávamos à diretoria da empresa (particularmente ao serviço médico, quando havia), nosso técnico ia ao local de trabalho com o “Ortho Rather” e, tomando um mínimo de tempo de cada funcionário, testava a todos e preenchia uma ficha com os testes de cada um. Ao fim da triagem, essas fichas eram por nós examinadas. Elas nos indicavam aqueles que necessitavam de um exame em consultório. Daí por diante eram bem examinadas e a diretoria da empresa era comunicada do resultado. De modo geral, a empresa entrava em acordo com alguma organização de óptica para obter preços convenientes, etc. Após a H. Stern vieram a Gillete do Brasil, com mais de 700 funcionários, a Manchete, do cliente e amigo Adolpho Bloch, as Organizações Globo, com o jornal, a televisão e a grande Editora da Rua Itapiru, no Rio Comprido. A grande tipografia AGGS, que imprimia os catálogos de telefone do Brasil e de Portugal, não só contratou nosso serviço, como ofereceu os meios para que pudéssemos apurar, conjuntamente com seu serviço médico, os resultados finais do trabalho, antes e depois. As diretorias gostavam do resultado, pois tudo era feito “in loco”, sem atrapalhar o trabalho de ninguém. Os resultados agradavam também aos funcionários, porque alguns tinham suas miopias ou astigmatismos ignorados e sentiam os benefícios após a correção. Realmente a produtividade era beneficiada1.
(1) Avisávamos por escrito e verbalmente a cada um que passava pelo “Orto Rhater” que aquilo era um teste e não um atestado de ausência de doenças oculares, como o glaucoma e outros. 360
A Clínica passou a ser conhecida por grandes grupos de funcionários, diretores, etc. de várias grandes empresas, estava bem localizada, bem aparelhada, tinha instalações bonitas, e assim muitos parentes dos funcionários, diretores, etc. apareciam também para consulta. Demos um salto muito grande com isto. A direção da Globo ficou tão satisfeita, que me convidou para escrever no jornal uma pequena coluna semanal sobre cuidados a tomar com a visão. (O que fiz durante quatro anos, com todas as preocupações éticas). Ao falar da Clínica, não posso me esquecer de algumas pessoas que, durante décadas, fizeram parte da alma e do corpo daquela casa: A Dra. Krystyna Hillekes começou a trabalhar conosco na década de 1970 e foi uma fiel colega que, durante cerca de 40 anos, trabalhou entre nós com a mesma eficiência por todo esse longo período. Dona Célia (Célia Menezes Martins) começou conosco como minha secretária, talvez em 1961 ou 1962. Pouco a pouco dominava tudo sobre organização das consultas, dos fichários, de tudo. Conhecia todos os clientes novos e antigos, avisava-me de detalhes importantes sobre cada um (para que eu não cometesse gafes). Muito bem educada, entretinha conversas com clientes importantes que por vezes tinham que aguardar algum tempo na biblioteca (chamávamos biblioteca uma sala de espera menor e separada, na qual atendíamos clientes VIPs). Tornou-se amiga, por exemplo, de D. Lucy Geisel (que com um problema crônico ia com frequência à clínica e também por vezes acompanhando a filha Amália Lucy, que usava lentes de contato). D. Célia trabalhou comigo durante 40 anos. Aposentou-se (a revelia) dizendo que já estava muito idosa para continuar. Tinha então quase 90 anos. Hoje, com quase 100, é lúcida e conversa comigo por telefone, lembrando fatos antigos para matar a saudade. Depois de aposentada, pretextava dar uma olhada na arrumação do fichário para poder voltar à clínica e passar algum tempo conosco. Outra foi D. Ivete Scarano, que depois de casada adotou o sobrenome do marido, Péricles Fontes. Não tiveram filhos. Adotou uma criança que cresceu, tornou-se advogado, deu vários netos à D. Ivete, que enviuvou e, com bem mais de 80 anos, veio a falecer, ainda ocupando o posto de recepcionista. Começou a trabalhar comigo quando tinha 17 anos, no primeiro consultório que comprei, na Av. Rio Branco, 173, em frente à Galeria Cruzeiro. Era uma figura peculiar, muito expansiva, que ocupou a recepção da Clínica Central de Olhos durante várias décadas. Não sei exatamente com que idade morreu, mas acho que, incluindo tudo, trabalhou comigo por mais de 65 anos. Conheceu meus filhos recém-nascidos. Quando pequeninos, levados pela mão de 361
Amparo, ria e brincava muito com eles. Quando adultos, já cinquentões, iam à clínica, tratavaos da mesma forma com brincadeiras e gargalhada, como se ainda fossem crianças. Eu, o Pedro Moacyr e o Monteiro em poucos anos chegamos a nos situar, com boa sorte e muitíssimo esforço, no melhor nível da Oftalmologia nacional. Tivemos como clientes três presidentes da República e suas respectivas famílias, apesar de estarmos no Rio de Janeiro, e não em Brasília. Houve vezes em que o nosso edifício ficou cercado pela guarda presidencial que obrigatoriamente acompanha as autoridades, nesses casos. As invasões de repórteres, inevitáveis, seguiam-se a essas visitas.
Fa c h a d a d a C l í n i c a C e n t r a l d e O l h o s .
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BRASÍLIA NA INTIMIDADE
Capítulo 5
Juscelino
Como já disse no Capítulo anterior, tive como clientes três presidentes da República e suas respectivas famílias. O Juscelino Kubitschek começou a vir à clínica quando já não ocupava a Presidência da República. Antes dele já havia nos visitado, mais de uma vez, uma de suas filhas, Márcia, a quem Pedro Moacyr examinava e eu fazia a refratometria. Quanto a ele, Juscelino, veio a mim pela primeira vez enviado pelo Cyro do Canto e Mello, pois havia quebrado os óculos e tinha urgência de fazer uma nova refração. Quando o secretário que o acompanhava se dirigiu para pagar a consulta, falei à atendente: “Não, absolutamente; o Dr. Juscelino é médico”. Surpreendeu-se, abriu um largo e simpático sorriso, despediu-se agradecendo com um aperto de mão e saiu. Algum tempo depois, o clínico que o atendia, amigo do Pedro Moacyr, passou a enviá-lo para que o Pedro Moacyr fizesse os laudos de fundo de olho e eu, a refratometria. Nos vinte e poucos minutos necessários à dilatação das pupilas, ele ficava esperando sentado junto à pequena mesa redonda no centro da “biblioteca” (uma pequena sala de espera onde havia livros, que reservávamos para clientes especiais, e que chamávamos de biblioteca). Mais de uma vez eu tive o prazer de interromper o meu trabalho, sentar-me ali também, e provocá-lo com alguma pergunta relativa à vida dele como Presidente. (Com toda prudência, é claro.) Era como provocar um pianista a tocar a sua obra predileta. Juscelino se enchia de entusiasmo e parecia que falava para uma grande audiência ou para um repórter de algum jornal importante. Era o grande Juscelino, que revivia. Quanto aos sapatos, como todo mundo sabia, ele realmente costumava retirá-los, de maneira discreta, sob a mesa.
Geisel Américo Mourão era o chefe da equipe médica da Presidência da República. Um cliente meu e também cliente dele, o ministro Falcão, sugeriu que Mourão me procurasse porque a filha do Presidente queria usar lentes de contato (na época, a maior clínica de lentes de contato, no Rio, era provavelmente a minha). Logo em seguida o Mourão trouxe à Clínica a D. Lucy, senhora Geisel, acompanhando sua filha Amália Lucy. A adaptação das lentes de contato exigiu mais duas ou três visitas. 363
Aproveito para dizer que me surpreendi com a simplicidade e amabilidade de ambas, mãe e filha. Dona Lucy, aliás, muitíssimo bem educada, gostava de conversar com D. Célia, já então minha antiga secretária que, como ela, havia também sido educada em colégio religioso. Ao fim de alguns anos, tornaram-se boas amigas. Um belo dia, o Mourão me providencia uma ida a Brasília para uma checagem oftalmológica do Presidente (havia aparelhagem lá). A imponente figura daquele cidadão muito alto, empertigado, de cabelos brancos, me impressionou. Ele parece que percebeu, e disse – ou fez – alguma coisa para que eu ficasse imediatamente à vontade. Fundo de olho, pressão ocular, campo visual, teste na refração; feita a rotina do exame, convidaram-me para o almoço. Numa mesa retangular, eu fui posto no lugar mais próximo a ele, à esquerda, se não me engano, e o Mourão ficou ao meu lado. Lembro-me que ele havia pedido, antes de sentar-se, um pequeno cálice de um aperitivo San Raphael (nacional), que ofereceu a nós também. No almoço, só trivialidades; sua filha, que era uma pessoa bem-humorada, sempre procurava algum assunto alegre para o momento, e todos participavam. Depois do almoço, o Presidente, que tinha o hábito de caminhar 10 ou 15 minutos antes de voltar para o trabalho, convidou-me a ir com ele dar uma volta nos jardins arborizados do Palácio Jaburu (o casal, de hábitos luteranos, não quis ocupar o Palácio da Alvorada, morava ali). É claro que ele é quem me fez perguntas, fez comentários sobre coisas de botânica, comentou muito sobre uma árvore de flores amarelas, muito bonita, que fazia parte dos jardins ali, e voltamos. Tudo de uma maneira muito simples, como se fosse um fazendeiro recebendo um amigo para um almoço banal com sua própria família. Depois das despedidas, D. Lucy fez questão de esperar comigo a condução que me levaria ao aeroporto para voltar ao Rio, etc. Várias outras vezes voltei a Brasília para atender ao próprio Presidente, à sua filha ou a uma irmã que ele tinha, bem mais idosa e que o havia criado, segundo eles, após a perda da mãe. Chamava-se D. Amália. Tal como a D. Lucy, tinha um glaucoma crônico e eu controlava a pressão ocular. No período de seis anos houve fatos importantes: a filha percebeu sintomas visuais estranhos e, em resumo, o Pedro Moacyr, que era um excelente neuro-oftalmologista, diagnosticou um tumor na hipófise. O Paulo Niemeyer entrou em cena, etc., etc. Em resumo, minhas relações com a família Geisel, como médico, foram sempre excelentes e se prolongaram bem além do período em que viviam em Brasília. Quando vieram para o Rio e moravam na Rua Barão da Torre, visitava-os lá ou eles vinham à Clínica. O Américo Mourão, já então um grande amigo, infelizmente teve vida breve. Teve um câncer antes dos 70 anos. Na última vez que esteve na clínica, respondeu aos meus votos de saúde com um 364
sorrisinho: “Nada disso, Bessa, eu sei que desta eu não saio”. Há pouco tempo li, em O Globo, um artigo de Élio Gáspari sobre “o médico que sabia das coisas”. Falava do Mourão, de sua vida como médico da Presidência, de sua competência em antever certas coisas importantes. Por exemplo, preveniu (e parece que não foi ouvido) que Costa e Silva teria vida breve. Foi o que aconteceu: morreu durante o mandato. O articulista listava várias outras coisas parecidas.
Américo Mourão era o homem certo no lugar certo.
João Baptista Figueiredo
O Américo Mourão foi substituído na chefia do Serviço Médico da Presidência pelo cardiologista Newton Mattos, que já era seu suplente. Não me lembro se um dos dois, ou ambos, quando já se sabia que o João Figueiredo iria ser o novo Presidente da República, levou-o ao consultório para uma revisão oftalmológica completa, com a intenção principal de resolver uma irritação permanente que o obrigava a usar óculos escuros (problema que exigiria depois uma atenção permanente. Um entrópio.). O fato é que conseguimos que ele usasse óculos normais, incolores. As idas a Brasília já eram para mim quase uma rotina, e lidar com a Presidência e os presidentes, idem. Como é sabido nos bastidores da história, João Baptista Figueiredo foi indicado para suceder ao Geisel porque, além de suas características pessoais, era filho do General Euclides de Figueiredo. Em 1932, Getúlio Vargas, guindado à Presidência por uma revolução nascida no Rio Grande do Sul, começou a querer imitar as ditaduras europeias, particularmente o fascismo, que havia então tirado a Itália de uma situação problemática e confusa, tornando-a uma nação organizada e próspera. O ideal de Getúlio era entrar por um caminho parecido. Foi quando, em São Paulo, organizou-se uma fortíssima reação para que a Constituição da República, democrática, fosse respeitada. Getúlio tentou abafá-la à força, mas os paulistas pegaram em armas. A reação armada foi organizada e chefiada pelo general que, de São Paulo, comandava a Região Militar, o general Euclides de Figueiredo, republicano, constitucionalista e radicalmente democrata.
Geisel achava que o fim do ciclo de militares no governo deveria ser “firme, gradual e irreversível”. 365
Também sabia que havia setores militares extremados que se opunham a qualquer tipo de abertura. Mas sabia também que, nas mãos de Figueiredo, o caminho para a democracia nas mãos de civis estava garantido. A história veio a mostrar que ele estava certo. Na fase em que a imprensa já estava liberada, que os partidos políticos já se organizavam, as pedradas dos que haviam sofrido durante o regime militar começaram, naturalmente, a atingir o alvo preferido: o último presidente militar. Um exemplo típico: no discurso em que louvava a democracia liberal e prometia a “anistia ampla, geral e irrestrita”, Figueiredo encerrou dizendo, de improviso, bem no estilo dele: “... e quem se opuser à abertura, eu prendo e arrebento!...”. As manchetes dos jornais de oposição, na mesma hora, aproveitaram somente as últimas palavras: “O General Figueiredo promete governar prendendo e arrebentando”. O Figueiredo era em quase tudo o oposto de Geisel, baixinho, imprudente no que dizia, muito franco e aberto. Contrastava em tudo com aquele Geisel alto, empertigado, sóbrio, filho de alemão pastor luterano. Durante a Presidência de João Baptista Figueiredo, por inúmeras vezes fui a Brasília. O entrópio que tinha era rebelde e exigia sucessivas providências paliativas, até que finalmente tive que indicar uma cirurgia. Eu e o Newton Mattos fomos procurar o Ivo Pitanguy. Pitanguy estava em pleno ato cirúrgico em um hospital na Alemanha, mas quando soube que havia uma chamada do Brasil, vinda da Presidência, fez questão de atender na hora, mesmo operando. Quando voltou ao Brasil, marcamos a cirurgia. O local estrategicamente escolhido foi o Hospital Marcílio Dias, da Marinha. Pitanguy operou e eu o ajudei na cirurgia. Absurdamente, havia cerca de 15 pessoas na sala, um porque era diretor do Hospital, outro porque era o general não sei de quê, etc., etc., mas Pitanguy, politicamente, não reclamou de nada. Tudo bem. Dos dois últimos generais presidentes, tendo convivido com eles, posso dizer que foram de uma honestidade pessoal e um zelo pelas coisas públicas que estavam a léguas de distância do que se vê nos dias em que escrevo este álbum. Quanto ao Juscelino, dele, pessoalmente, acho que posso dizer a mesma coisa. Figueiredo comprou um apartamento com prestações de seu próprio soldo no Edifício Brennand, na praia de São Conrado. Eu também havia comprado na planta uma cobertura no mesmo edifício, (que logo vendi à cantora Gal Costa, e continuei residindo ao lado do Hotel Intercontinental). Durante certo tempo fomos condôminos no Brennand. 366
Pelas manhãs, quando andava na calçada da praia, costumava encontrar com Figueiredo que já
havia, é claro, deixado a Presidência. Parávamos sempre para uma bem-humorada troca de amabilidades, sempre com alguma risada, como era de seu hábito. Algumas vezes coincidiu ouvir de algum jogador de vôlei, gritando da praia: “Fala Presidente!!”, ao que ele respondia com um aceno de mão e um sorriso. No fim de sua vida, Figueiredo teve que vender um sítio em Nogueira e outros poucos bens. Após a morte dele, acho que não é indiscreto dizer, Dona Dulce teve que vender inclusive os móveis para continuar morando lá até o seu falecimento. Nenhum de seus filhos jamais teve emprego público, nem se aproveitou da posição de seu pai. Posso atestar que era gente honrada.
SOBRE LENTES DE CONTATO
Capítulo 6
Como disse em capítulos anteriores, no início de 1949 eu já me iniciara na oftalmologia e trabalhava dividindo um consultório com Antônio Resende de Castro Monteiro, na Av. Franklin Roosevelt. Na mesma avenida estava também a Clínica de Reumatismo do meu grande amigo Waldemar Bianchi, recém-chegado de um longo estágio na América, na Clínica Mayo. Waldemar era sobrinho de Alberto Bianchi, o dono do famoso Cassino Atlântico, homem riquíssimo, que ajudou Waldemar a instalar-se quando voltou. No mesmo quarteirão havia também uma das lojas das Óticas Fluminense, importante cadeia de óptica de Cyro do Canto e Mello. Waldemar apresentou-me ao Cyro num encontro casual, na calçada. Sabendo que eu era oftalmologista, convidou-me para uma conversa sobre a possibilidade de me enviar clientes com problemas relativos aos óculos; já tinha convênio semelhante com outros médicos, pagava uma consulta reduzida. A óptica tinha uma excelente clientela e comecei a receber, com frequência, clientes enviados pelo Cyro. Isto me ajudou muito a iniciar minha clínica. Certa ocasião, em junho, ele me avisou que iria abrir uma loja na Av. Rio Branco e comentou que, se eu tivesse o consultório lá perto, seria bom para ele e para mim, pois podia continuar a me mandar clientes como vinha fazendo. Por coincidência, logo depois me ofereceram a compra de duas salas em um edifício recém-construído na esquina da Av. Rio Branco nº 173, com a Rua São José. O preço era alto, mas o financiamento era longo e resolvi corajosamente comprar duas salas no 2º andar, em frente ao elevador, muito simpáticas. Era o primeiro imóvel que eu comprava, no dia 4 de julho de 1949. 367
Vieram as obras de adaptação, etc. e um pouco depois já possuía meu consultório próprio com uma boa sala de 6 x 3 metros e outra ao lado, que foi dividida em duas partes: uma sala de espera e outra onde o Monteiro instalou seu consultório de otorrino. Para encurtar, direi somente que pouco a pouco tudo começou a funcionar de acordo com os planos, sob todos os aspectos. Naquele tempo, como não havia “planos de saúde”, a clientela crescia com mais facilidade do que hoje.
Mas vamos às lentes de contato, e como me envolvi com elas.
Naquela época o assunto era ignorado pela maioria e menosprezado por outros, inclusive oftalmologistas. Mas o Cyro já havia feito tentativas de conseguir técnicos que pudessem ajudá-lo a abrir um “departamento para lentes de contato”. Não sei como, mas começou a enviar-me pacientes e tive que inteirar-me ao máximo sobre o assunto e adaptar-me a ele. O número desses clientes foi aumentando. Um belo dia me aparece o Cyro com um alemão louro e baixinho que, em pleno verão, vestia um paletó de lã grossa, suava muito e não falava uma palavra senão em alemão. Vinha com ele uma mulher de meia-idade, alta, catarinense, que falava alemão e português e servia de intérprete, chamava-se Ella, mas por razões óbvias tinha o apelido e Eli. O Cyro me disse que o alemão era um ex-técnico da ZEISS, recém-chegado da Alemanha, ainda atolada nos problemas de pós-guerra, e que lá fabricava lentes de contato sob medida utilizando alguns tornos e outros instrumentos que trouxera com ele, e que procurava um espaço para poder instalar um pequeno laboratório para atender aos clientes dele, Cyro. Ao mesmo tempo, em meu consultório, um espaço havia ficado livre porque o Monteiro, que era oficial médico da Aeronáutica, fora promovido a diretor do hospital, havia passado a trabalhar lá “full time” e já não podia vir ao consultório por falta total de tempo. (Mais tarde, voltaríamos a trabalhar juntos na Clínica Central de Olhos, como será dito em outro capítulo.) Aceitei alugá-la e lá se instalou o alemão, sempre com seu paletó grosso e a intérprete, D. Eli. Meses depois, tinha ao meu lado o já então bom amigo Otto Werner Hofmanback que, vestido de avental branco, desembrulhando-se em português e tendo ensinado algumas coisas à D. Eli, deixava o Cyro feliz porque torneava sob medida e com bastante competência lentes bem adaptadas e personalizadas. (Naquele tempo ainda não havia legislação sobre o assunto, mas já púnhamos em prática todos os cuidados que mais tarde passaram a ser obrigatórios: cuidadoso exame prévio do paciente e severo acompanhamento ulterior.) 368
Werner trocava ideias diariamente comigo e passava-me informações técnicas que me permitiram dominar os aspectos físicos das lentes quase que pioneiramente entre os médicos. Para encurtar a história, em poucos anos minha clínica de lentes de contato era de longe a mais numerosa do Rio. Passam-se os anos e o meu amigo Werner, muito inteligente e esforçado, já se tornara o maior industrial de lentes de contato do Brasil, instalara em São Paulo a SOLÓPTICA, que chegou a ser a maior fábrica de lentes de contato da América do Sul. Por toda a vida, depois, abraçávamo-nos em encontros casuais ou tomávamos um bom vinho branco, de que ele gostava muito. Lembro que uma vez, durante um congresso na Alemanha, convidou-nos, a mim e Amparo, para almoçarmos com ele e sua mulher num bonito castelo nas redondezas, cujo vinho era considerado um branco famoso. Voltando ao Cyro, o seu departamento de lentes de contato nas Óticas Fluminense passou a representar uma marca alemã que exportava lentes prontas de tecnologia mais avançada. Mandou duas catarinenses com boa escolaridade à Alemanha para se tornarem “técnicas em treinar pacientes a colocarem e retirarem lentes de contato”, o que era um trabalho necessário no tempo das lentes rígidas.
LENTES GELATINOSAS
Em 1966, durante o Congresso Internacional em Munique, conheci um pequeno grupo de técnicos no “stand” da Tchecoslováquia, que estava iniciando a produzir as primeiras lentes de contato feitas de HEMA (chamadas gelatinosas). Isto acabou me incitando a uma viagem a Praga, logo que o congresso terminou. Em outro local escrevo sobre isso. Naquele congresso em Munique ninguém estava dando importância ao pequeno “stand” dos técnicos da Tchecoslováquia. Eu já havia ouvido falar das lentes gelatinosas, mas de maneira pouco animadora. As lentes de metilmetacrilato já haviam chegado a um bom estágio de aperfeiçoamento, e talvez por isto houvesse pouco interesse em estimular o desenvolvimento de uma tecnologia diferente. Já havia, inclusive, indústrias importantes dedicadas à fabricação das rígidas, o que constituía um acréscimo ao pouco interesse de incentivar tecnologias substitutas. Mas eu, que nada tinha a ver com isto e estava curiosíssimo para ver o que estavam fazendo sobre este assunto, que me parecia promissor, fiz uma prolongada visita ao “stand” deles. A SPOFA era sediada em Praga. Marcamos um encontro para dias depois. Não me lembro se fui diretamente de Munique ou de Paris, num avião russo Tupolev, de péssimo aspecto, da Cia. Estatal Tcheca – Czech Airlines. Fui recebido no próprio aeroporto pelo engenheiro-chefe da firma, o eng. Mseliva. A recepção no aeroporto, aliás, era obrigatória na Tchecoslováquia ainda comunista. 369
O governo obrigava que o visitante fosse acompanhado em todos os seus movimentos, e o hotel era também o que o governo determinava. (Embora 99 entre 100 tchecos já sentissem, quanto à situação política, um ódio mal sufocado.) O eng. Mseliva me deixou no hotel e combinou apanhar-me no dia seguinte pela manhã. A história das lentes gelatinosas começou com a pesquisa que estava fazendo um engenheiro químico, Dr. Wichterle. Ele buscava um material para substituir o silicone nos implantes mamários e chegou ao HEMA. Não deu certo para o fim que pretendia, mas determinadas características físico-químicas tornavam-no excelente para ser transformado numa lente de contato: a permeabilidade ao oxigênio, a estabilidade das características ópticas, índices de refração idênticos aos da córnea, mesmo pH da lágrima, etc. Importantes oftalmologistas tchecos começaram a dedicar-se ao assunto. Foi imaginado então um curiosíssimo sistema de produção: um carrossel tinha na periferia uma coroa de pequenos cilindros de metal, que podiam ser postos a girar em velocidades determinadas por um comando; na parte superior de cada cilindro havia uma concavidade esférica. O carrossel inteiro girava, cada cilindro recebia em sua concavidade uma gota de material líquido HEMA e os cilindros todos eram postos a girar. Uma combinação entre a velocidade do giro e a curva permitia chegar às diferentes dioptrias pretendidas. (Se não entenderam, deixem pra lá, não é importante.) A produção era muito imperfeita. O aproveitamento das lentes que saíam de acordo com o desejado era muito pequeno, a grande maioria era recusada, mas o material podia ser novamente liquefeito, e então não se perdia, voltava a ser usado. A fábrica já não era muito pequena, fazia parte de um grande grupo de indústrias leves que, por sua vez, eram também parte de um ministério especial, tudo compondo uma enorme cadeia burocrática pertencente ao Estado. Passei uma semana em Praga. Estava interessado em obter alguma vantagem em ter sido o primeiro brasileiro a se aproximar do assunto. Uma representação para o Brasil, ou qualquer coisa assim. Foi impossível porque poucos dias antes, a Bausch & Lomb americana havia comprado a patente para as Américas do Norte e do Sul por um milhão de dólares. Mesmo assim, deram-me uma coleção de 60 pares de lentes que serviam para os graus mais usados de miopia e hipermetropia. Deram-me ainda um bom número de estojos especiais para lentes gelatinosas e um esterilizador também fabricado lá. 370
Eu pude experimentá-las em mim mesmo, o que me custou uma lesão na córnea, pela dificuldade em retirá-las. Utilizei-as principalmente para conferências sobre o assunto, dentre as quais me lembro bem de uma em Ribeirão Preto, solicitada pelo Almiro Azeredo, que era o catedrático de lá. Grande sucesso, pois tudo era novo. Em Praga, além de visitar a fábrica mais de uma vez, sempre conduzido pelo eng. Mseliva, frequentei a clínica oftalmológica de um hospital onde as lentes estavam sendo experimentadas, e tive como professoras as Dras. Draganova, uma senhora idosa, e sua assistente, a Dra. Brunova. Além de me falarem sobre as características físico-químicas do novo material, etc., disseram que, dado o custo baratíssimo, a intenção era produzirem lentes descartáveis, de uso diário. (Afinal, depois de muitos anos, foi o que veio a acontecer, pela mão de outros fabricantes muito mais importantes, que assumiram e desenvolveram o assunto.) Uma noite tomei um susto grande. Havia um bar muito perto do hotel e eu me arrisquei a sair à noite e ir lá. Não cheguei a entrar porque, pela algazarra enorme, pareceu-me que havia uma grande e generalizada bebedeira. Voltava para o hotel pela calçada, rua completamente vazia, quando ouvi atrás de mim uns passos firmes que se aproximavam e cujo som era acentuado pelo frio que fazia. Arrisquei um olhar para trás e vi um homem de sobretudo, gola levantada e chapéu, típico bandido saído de tela de cinema. Senti um calafrio de medo porque já sabia que havia muito assalto a estrangeiros. Quando a figura chegou junto a mim, falou muito perto do meu ouvido “change dollar”. Eu respondi em todas as línguas que não tinha dólar nenhum, apertei o passo para entrar no hotel e me dei por feliz de não ter tido um enfarto. Voltando às lentes de contato, quando dava um curso para uma turma de estagiários no Hospital Gaffrée e Guinle, escrevi um trabalho, certamente o primeiro que se escreveu no Brasil sobre as lentes gelatinosas. Infelizmente só foram impressos, mimeografados, uns poucos exemplares. Eu só guardei uns dois ou três e agora não encontro mais nenhum. Guardei alguns estojos, o aparelhinho para esterilizar e todo o material que eu trouxe de Praga com a intenção de doar à SBO, mas infelizmente em mudanças, etc., tudo desapareceu. Algum tempo depois de eu ter estado lá houve a célebre “primavera de Praga” (maio de 1968), uma rebelião popular que foi rapidamente esmagada por tanques russos, que ocuparam a bela praça central da cidade e outros locais estratégicos. 371
Capítulo 7
AS LENTES PROGRESSIVAS – A ESSEL COMO ME ENVOLVI COM ELAS
Por volta de 1955, eu, que pelo número de clientes que vinham à clínica buscando solução para problemas com os óculos, já era forçado a dedicar-me de forma particular aos assuntos concernentes à refração e à óptica oftálmica, tive notícia, casualmente, através de um cliente de origem francesa, de que um físico francês houvera conseguido realizar uma lente que oferecia visão para todas as distâncias e não tinha traços divisórios. Era uma lente progressiva. A empresa que iniciava a fabricá-la havia registrado o nome de Varilux. Interessei-me imediatamente pelo assunto e, como tinha viagem marcada para o Congresso Francês de Oftalmologia poucos dias depois, comuniquei-me por telefone com diretores da empresa – chamava-se ESSEL – e fui ao encontro deles. Fui muito bem recebido, pois era o primeiro oftalmologista que os visitava. Tive a oportunidade de conversar não só com técnicos, mas também com o diretor de exportação, Mr. Pierre Le Falher, que me explicou sobre as dificuldades iniciais para a difusão do uso dessas lentes, porque desde o preparo em oficina até o modo de receitá-las, montá-las nos óculos, etc., tudo implicava em técnicas totalmente diferentes das que até então os médicos e os ópticos estavam habituados. Concordou em fornecer-me três pares – para mim, para meu primo Jonas Santos e para meu colega e amigo Waldemar Bianchi. Mas encheu-me de instruções técnicas e sobretudo de severíssimas recomendações para evitar que houvesse algum mau resultado. Felizmente nós três, os primeiros usuários brasileiros, nos demos muito bem. À custa de insistência minha e da promessa de que as recomendações técnicas que me davam seriam rigorosamente obedecidas, consegui receitar – e que me mandassem por correio – lentes para alguns clientes com quem tinha maior intimidade. Felizmente consegui preparar técnicos de oficina e de balcão da óptica do meu amigo Cyro do Canto e Mello e fui colhendo resultados sempre bons. Para resumir, num congresso cerca de dois anos depois, eu já apresentava trabalho em que 400 clientes usuários de lentes progressivas foram observados e os resultados eram estatisticamente bons ou ótimos. Este trabalho interessou muitíssimo à ESSEL, que pediu para traduzi-lo em outras línguas. 372
Os diretores da ESSEL, e em particular o Le Falher, já confiando em mim como bom zelador dos conselhos técnicos que me passavam, sugeriu-me que organizasse no Brasil uma empresa capaz de importar oficialmente as lentes e, sobretudo, de instruir cuidadosamente técnicos que pudessem trabalhar com ela. Preveniu-me de que não seria um trabalho fácil, pois naturalmente aqueles já habituados a tomar medidas, etc., pelos modos tradicionais, costumavam resistir a mudar seus hábitos. Dando um salto de 15 ou 20 anos adiante, em plena década de 1980 já tínhamos, em Manaus, uma fábrica de 2.500 m2, com cerca de 200 operários tecnificados, e as lentes Varilux, conduzidas por um trabalho exaustivo de preparação de milhares de técnicos pelo Brasil afora, inclusive no Uruguai e no Chile, já alcançavam o domínio completo do mercado da presbiopia. A SUDOP já havia ultrapassado de longe as antigas donas do mercado, American Optical e Bausch & Lomb. Durante este longo período eu, sem deixar a clínica (que para mim era preciosa fonte de informações colhidas dos próprios clientes), continuava a voar constantemente a Paris para manter o necessário contato técnico e comercial, e a percorrer todo o Brasil para passar instruções técnicas não somente a médicos, mas também a ópticos e balconistas de óptica. A dupla atividade era admirada pelos franceses, que amavelmente me deram o título de “l’homme a deux chapeaux”, por dirigir ao mesmo tempo a empresa e a clínica. Trabalhava, é claro, 24 horas por dia. Pi e r r e Le Fa l h e r, q u e c o n h e c i d e cabelos pretos e 20 anos mais j o v e m . Fo i u m g r a n d e a m i g o . Desde o conselho para que eu organizasse uma empresa e d u r a n t e t o d a a v i d a d a S U D O P, sempre foi benevolente professor que me passava conselhos preciosos.
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A E S S I LO R p r o m o v i a r e u n i õ e s p e r i ó d i c a s d e s e u s representantes (convenções) para aprimoramento t é c n i c o , e t c . A q u i e s t a m o s : M . G i l l e t , d i r e t o r, e u e a r e p r e s e n t a n t e E S S I LO R n a G r é c i a .
Eu e Bernard Maitenaz, o homem que revolucionou a óptica oftálmica, criador das lentes progressivas desde a sua complicada fórmula até as máquinas para sua fabricação. O êxito universal de sua criação fez jus às importantes condecorações que a França lhe concedeu.
M r. R a y m o n d C o t t e t , então presidente da ESSEL, eu, Jonas (atrás de Glorinha) e Amparo. Visita de inspeção que precedeu a nomeação da SUDOP como representante oficial no Brasil.
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Capítulo 8
A SUDOP
A partir de minha experiência pessoal bastante satisfatória com as primeiras lentes Varilux 1 – apesar de serem muitíssimo mais críticas do que as progressivas de hoje –, animei-me a prescrever Varilux para alguns clientes meus que viajavam a Paris. Voltavam sempre satisfeitos e vaidosos por serem objeto da curiosidade de parentes e amigos que usavam bifocais. De acordo com o Le Falher, resolvemos utilizar o representante deles em Portugal, um senhor idoso, Sr. Mirão, e através dele montar o seguinte arranjo: eu enviava as receitas para Lisboa, que por sua vez as enviava a Paris; ao receber de volta as lentes prontas, o Sr. Mirão as colocava em caixas pequenas, como caixas de sapatos, e as enviava para mim através do “Colis Posteaux”. Este departamento dos correios naquele tempo funcionava bastante bem, e além disto um de seus funcionários, que era meu cliente no IPASE, era bastante zeloso e me avisava quando chegava alguma daquelas caixas vindas de Paris. Assim, consegui escrever uma primeira observação sobre “400 usuários de lentes progressivas” e apresentar um trabalho num Congresso sul-americano que se passava no Rio (do qual, aliás, eu fui secretário geral). O impacto foi grande. Até mesmo em Paris: o trabalho foi imediatamente traduzido em francês e em outras línguas e distribuído a muitas organizações médicas ou de ópticos na Europa. O número de receitas aumentava e a certa altura já era óbvio que as coisas não podiam continuar assim. Foi quando, estando eu em Paris, o Le Falher me sugeriu que organizasse uma empresa para importar diretamente e legalmente as lentes. Apesar de não ter a menor ideia do que seria organizar nem conduzir uma empresa, por pequena que fosse, comecei ali mesmo a imaginar os primeiros passos: nome da empresa, logotipo, preparação de técnicos, divulgação, etc. Comentava tudo no dia seguinte com o Le Falher, já então um bom amigo e “professor”. Imaginei o nome “SUD-OPTIQUE” (achava que uma conotação francesa ajudaria). Voltando para o Rio, procurei uma organização especializada em criar e organizar empresas, a Montreal Montor, do engenheiro Derik Parker, amigo e cliente do Pedro Moacyr. 375
O Derik me encaminhou ao Ary Jones que, na Montreal, era quem melhor podia atender ao que eu precisava. Comecei a ter então as primeiras noções do que eram “atividades-meio”, “atividades-fim”, etc. Providências iniciais, burocracia vencida (e que burocracia!) e estava fundada a SUDOP. Aluguei uma mesa na sala do pequeno escritório de um irmão do Almir Pastor, um vendedor de aparelhos da Bausch & Lomb que era amigo meu. Era um edifício baixo, azul, sem elevador, que fica na esquina da Av. Antônio Carlos com a Rua Santa Luzia. Precisava de uma secretária que escrevesse em francês. Uma cliente francesa sugeriu-me a própria mãe dela, madame Gainèe, uma velhinha que, apesar dos 80 anos, subia rapidamente os três andares de escada para chegar ao escritório. E assim começaram a ser feitos os primeiros pedidos da SUDOP à ESSEL. O interesse dos colegas começou a crescer, muitos me procuravam para obter informações, saber se podiam prescrever, etc. É claro que eu atendia a tudo isto com muito prazer. Além dos pedidos para clientes meus, começaram a chegar também os de alguns colegas mais íntimos, a quem já havia passado instruções técnicas. Coordenei-me com o Cyro do Canto e Mello 1, proprietário das Óticas Fluminense, e ele me sugeriu que eu preparasse o melhor montador que ele tinha em suas oficinas, na Rua Riachuelo, um rapaz chamado Paulo Omar, e preparasse também dois balconistas em cada uma de suas lojas para tomarem as medidas de DNP e altura. Eu tinha trazido da França alguns poucos pupilômetros de tubo e os entreguei a eles. Apareceu então o primeiro grande obstáculo: a importação de lentes terminadas era extremamente demorada. Tivemos que preparar um sistema elementar para começar a importar blocos semiacabados e terminar a superfície esférica nas oficinas do Cyro (sob instruções e supervisão minhas, e eu por minha vez instruindo-me em Paris). A administração crescia e eu convidei o meu primo e grande amigo Jonas Santos, engenheiro, para ser meu sócio. Em outro local já disse o quanto foi importante para mim ter convidado o Jonas para a direção da empresa.Para mim, cabia todo o trabalho de preparação técnica dos médicos, 1
A ajuda do Cyro foi grande. Ele também ganhava com isto, não só porque vendia os óculos prontos, como pelo prestígio que era acrescentado às suas ópticas, as únicas que vendiam Varilux. 376
Em outro local já disse o quanto foi importante para mim ter convidado o Jonas para a direção da empresa. Para mim, cabia todo o trabalho de preparação técnica dos médicos, ópticos, etc., todas as palestras pelo Brasil afora, todas as idas a Paris para assenhorar-me da evolução técnica das lentes (a Varilux 1 no curso dos anos aperfeiçoou-se para Varilux 2, e a evolução continuou sempre). Também para lutar pelo bom fornecimento de nossas encomendas, pois no mundo inteiro as lentes já eram famosas, eram ansiosamente requisitadas e a produção às vezes não era suficiente, havia filas e disputa. Ao Jonas tocava o importantíssimo papel de organizar estoques, finanças, administração, gestão de pessoal, etc., etc. Por alguns anos, ocupamos salas em um edifício e depois outro da Rua México. Depois levamos a SUDOP para o Edifício Avenida Central, dois andares acima da Clínica, o que me facilitava estar mais junto de uma e de outra. A necessidade de espaço continuava aumentando e passamos a ocupar, sempre no Avenida Central, sobrelojas cada vez maiores. Importávamos sempre os blocos semiterminados: a face progressiva, a externa, só podia ser feita na França; e a interna era feita aqui, de acordo com a receita. Para a terminação das lentes, instalamos no subsolo uma boa oficina, que ocupava o espaço de cerca de 100 m2 e utilizava máquinas importadas da ESSEL. O Brasil foi durante muito tempo o maior importador de lentes Varilux, ultrapassando mesmo os países europeus e a América do Norte. Havíamos começado mais cedo que os outros. Os franceses reconheciam isso, e muito. Fui sempre tratado em Paris, por parte deles, com honrarias especiais, e tido como exemplo, perante outros, de um representante de grande eficiência. Convidavam-me para falar em reuniões de representantes internacionais ou em convenções que faziam em navios fretados que excursionavam pelo Mediterrâneo, enquanto as conferências se sucediam. Norte da África, Grécia e sul da França foram visitados mais de uma vez. A publicidade que era feita no Brasil foi muitas vezes tomada como modelo e copiada. A exaustiva preparação de ópticos, balconistas e médicos era frequentemente mencionada como bom exemplo pelos diretores franceses, todos já bons amigos meus. Em 1976, suponho, durante uma séria turbulência financeira no Brasil, a Receita Federal subitamente proibiu a importação de uma enorme lista de itens que foram considerados 377
supérfluos. Entre eles, lentes para óculos. Aquilo era para nós um golpe fatal. Havíamos tomado compromissos financeiros que precisávamos pagar, tínhamos dívidas em dólar com a França, e não podíamos interromper abruptamente nosso negócio. (Aliás, há alguns anos a inflação no Brasil crescia vertiginosamente, chegando a 100% ao ano, 200% e até mais, o que tornava um verdadeiro quebra-cabeças a administração de uma empresa). Havia só uma maneira de sobrevivermos. A Zona Franca de Manaus podia continuar a importar matérias-primas, desde que fosse para adicionar certa porcentagem de trabalho e de valor. Inclusive quanto a “lentes de óculos”. Tomamos um fôlego e fomos urgentemente buscar informações sobre a hipótese de nos instalarmos em Manaus. Já havíamos tido outros obstáculos na evolução da empresa, alguns muito importantes, mas este era um golpe quase intransponível. Viajei imediatamente para Manaus, visitei a SUFRAMA, recolhi todas as informações possíveis e voltei para o Rio a fim de examinar com Jonas um complexíssimo emaranhado de exigências que se antepunham a nossa frente. Os obstáculos burocráticos eram talvez piores ainda que os necessários à construção de uma fábrica em tempo limitadíssimo. Muitas empresas queriam se instalar lá ao mesmo tempo e havia lugar para poucas. As viagens a Manaus se sucediam para cumprir exigências, apresentar planos financeiros, planos de engenharia, etc., etc. Conseguida heroicamente a licença, o terreno, seguiu-se a contratação de engenheiros, de técnicos locais, a importação de um conjunto de máquinas que lotaram um avião de carga, o complicado planejamento logístico (envio das receitas, preparação das lentes em Manaus, “internação” das lentes para o Rio de Janeiro, etc., etc.). Em resumo, hoje me admiro como pudemos eu e o Jonas vencer aqueles obstáculos e emergirmos dele com uma bela fábrica de mais de 2.000 metros quadrados, totalmente equipada, com pessoal técnico selecionado “in loco” e funcionando como previsto. Acrescentemse às dificuldades as longas temporadas de chuvas torrenciais que ocorrem em Manaus, o clima quentíssimo, etc.
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É claro que tivemos problemas com pessoal, com a alfândega e a burocracia em geral, mas felizmente tivemos forças para lutar muitos anos, viajar para lá duas vezes por mês e conseguir manter tudo funcionando bastante bem.
A SUDOP cresceu, tornou-se a maior empresa do ramo de óptica no Brasil, deixou para trás – e à distância – a Bausch & Lomb, Zeiss e a American Optical que eram, então, as donas do mercado. Sempre que ia para Manaus, quando o avião sobrevoava à pouca altura a Zona Franca, sentia certo orgulho vendo lá embaixo aquela grande e bela fábrica, cercada de jardins, com o nome SUDOP escrito no teto em letras enormes. Em volta dela, multinacionais como a Honda, a Philco, etc. O refeitório dos operários – eram mais de uma centena, ocupava um galpão anexo, aberto, nos jardins. Era bem agradável. Vou saltar uma boa parte da história. Para encerrar, direi que em 1985 a ESSEL (que já se havia fundido com a SILOR se tornando ESSILOR) já era a maior indústria óptica do mundo, à custa do enorme sucesso das lentes progressivas, patente sua. Por sua vez, a SUDOP já se houvera expandido até mesmo para fora do território brasileiro, tinha filiais no Uruguai, no Chile e preparava-se para instalar-se na Colômbia. Foi quando a ESSILOR fez uma série de propostas de compra que foram uma a uma recusadas. Mas finalmente, através de negociações longas e complicadas, acabamos vendendo toda a organização (menos uma fábrica de armações de óculos) por um preço que, segundo diziam os franceses, foi o mais elevado que eles haviam até então pago por outros negócios semelhantes em outros países. De Manaus, a ESSILOR-SUDOP passou a suprir não só as necessidades do mercado brasileiro e sul-americano, como a exportar – e muito – para as Américas Central e do Norte. Por exigência contratual, permaneci por três anos como codiretor-presidente, ao lado do francês que eles escolheram para ser o “Président Directeur Générale” (PDG) aqui, Olivier Mathieu, que é até hoje um bom amigo, e continuamos nos encontrando de vez em quando. Orgulho-me um pouco de ter participado dos altos escalões do mundo da óptica e ao mesmo tempo dos da oftalmologia, terrenos nem sempre amistosos entre si, e ter-me saído bem em ambos, sido respeitado e bem quisto por praticamente todo mundo.
Até bem pouco tempo eu gostava de comparecer a feiras de óptica, além dos congressos 379
de oftalmologia. Não raro era visto ou tratado pelos presentes, conhecidos ou desconhecidos, como um “personagem histórico”. Às vezes, ouvia comentários sussurrados quando passava: “aquele é o Dr. Bessa, que fundou a SUDOP. O homem das progressivas”. Alguns faziam questão de cumprimentar-me ou vir falar comigo. Creio que, ao fim de tudo, pude deixar um bom legado para meus sucessores. Moral e material. Mas isto custou 80% ou 90% do meu tempo, e custou também não ter sido o pai de família ideal. (Talvez tenha sido um bom pai no atacado, à custa de ter sido um pai sofrível no varejo.)
Uma ala do refeitório da fábrica avançava sobre o jardim.
A bandeira da SUDOP na fábrica em Manaus.
Quando a estadia incluía um fim de semana, um repousante passeio pelos rios era obrigatório. 380
A fábrica em Manaus, com 2.500 m2 na parte interna, além de grande, era bonita pelos jardins que a cercavam.
Durante a operação de venda à E s s i l o r, a o f i n a l d a v i s i t a de avaliação, mesmo sendo compradores, resumiram honestamente suas impressões numa só palavra: “Superb!” 381
UMA VIDA NO PLURAL – “UN HOMME A DEUX CHAPEAUX”
Capítulo 9
Não tenho dúvidas sobre uma coisa: a minha experiência como oftalmologista, sabendo o que o paciente precisa e o que é melhor para ele, quais são as suas aspirações quanto a produtos que venham a lhe servir, etc., tenho certeza de que essa soma infinita de informações acumuladas durante décadas na clínica e que eu já trazia na bagagem foi proveitosíssima para utilizá-la no “marketing” e na publicidade das lentes progressivas. Nas conversas em Paris com os diretores da ESSEL, sempre me ouviam atentos. Era parte importante dos assuntos à hora do almoço de todos os dias em algum restaurante das redondezas. Paris, que para todo mundo é um destino desejado, para mim passou a ser na época um local de duro trabalho. Sempre que possível evitava viajar para lá, mas dificilmente mais de um mês se passava sem uma viagem. O que me trazia bastante alívio era a convivência inteligente do Le Falher, do Cottet, do Maitenaz e de outros, o que tornava a conversa sempre agradável. E também os convites a espetáculos que de vez quando reservavam para mim. A minha posição como médico e como empresário, ativo nos dois terrenos, fazia com que de brincadeira dissessem que eu era “un homme a deux chapeaux”.
O “Concorde” O “Concorde” foi a mais bela, mais charmosa e mais veloz aeronave de passageiros até hoje construída. Sua velocidade era três vezes maior que a de uma bala de revólver. Voava além do dobro da velocidade do som. Pousava como um pássaro gigante. Elegantíssimo. Voava a um teto operacional de mais de 18 km de altura, o dobro dos aviões comerciais de hoje. Poderia fazer o percurso de São Paulo ao Rio de Janeiro em menos de 15 minutos (mas não ia a São Paulo). Podia levar somente 100 passageiros. Voei duas vezes no Concorde. A passagem era 20% mais cara que a da primeira classe. Além do grande destaque que a imprensa deu por ocasião dos primeiros voos RioParis-Rio, um noticiário espalhado por colunas sociais e congêneres mencionava sempre que fulano ou beltrano havia chegado no voo tal pelo Concorde. E juntava mais alguma coisa relativa ao passageiro. Provavelmente a Air France providenciava isso. 382
Na ocasião em que nós precisávamos ressaltar a “tecnologia francesa de ponta” para associá-la à Varilux, nada melhor que aproveitar o Concorde como porta-bandeira. Em nossa correspondência aos ópticos, por exemplo, por algum pretexto ligávamos disfarçadamente – Varilux – tecnologia francesa – Concorde. No lançamento – se não me engano, da Varilux 2 – convidamos o Bernard Maitenaz para vir ao Brasil fazer uma série de conferências. Mandamos uma passagem pelo Concorde e, naturalmente, fizemos preceder e acompanhar a presença dele com um noticiário condizente. Quanto à minha experiência sobre as viagens do Concorde, foram bem interessantes. Como o tempo era curto, as poltronas podiam ser simples como as de segunda classe dos aviões comuns. Um pequeno painel mostrava a velocidade do avião aos passageiros, e todos ficavam aguardando o momento em que era ultrapassada a barreira do som. Só quando estava sobrevoando o mar é que ele podia rompê-la, pois as cidades proibiam que isto acontecesse sobre elas porque o estrondo era enorme. Dentro da cabine, porém, o silêncio era absoluto. O serviço de bordo funcionava praticamente o tempo todo e era o máximo em qualidade. Os voos Paris-Rio-Paris duravam sete horas, incluindo um intervalo de uma hora em Dacar para reabastecimento. A permanência nos aeroportos era reduzida à metade do normal. Tudo era diferente, especial e mais rápido. O voo de volta, Paris-Rio, era bem mais interessante do que o voo de ida, porque ganhávamos o tempo do fuso horário. Uma vez, depois de ter passado uma manhã de atividades normais em Paris, saí de lá à uma hora da tarde e cheguei no Rio às três (horas locais, é claro). Ainda deu tempo de ir à SUDOP e à Clínica. Numa dessas paradas em Dacar, comprei uma escultura em madeira, uma cabeça, feita por algum artista local, que me pareceu uma bela obra artesanal. Guardo-a até hoje. Antieconômico, antiecológico, o Concorde teve vida breve. “C’est dommage...”!
É hora de falar do Alberto Não posso, de maneira nenhuma, esquecer-me do Alberto. Conheci-o quando tinha 20 e poucos anos, como encarregado de embalar produtos na ESSEL. Sendo português, o Le Falher resolveu promovê-lo a auxiliar seu, encarregado da correspondência conosco e dos diálogos por telefone (raros à época) com nossas secretárias. 383
Alberto era inteligente, havia feito um curso superior de turismo em Portugal e durante uma excursão de portugueses à França, na qual ele era o guia-intérprete, abandonou a excursão para fugir do regime político da época em Portugal e a ESSEL aceitou-o como empregado. Alberto era encarregado de me ciceronear, comprar entradas para algum espetáculo, levar-me a jantares, etc. (às vezes levava uma namorada, nem sempre a mesma. Era uma figura. Entre suecas e francesas acabou casando-se com uma alemã chamada Karina). Quando Carlos, meu filho, adolescente, quis passar seis meses em Paris para fazer um curso na Sorbonne, apresentei-o ao Alberto pedindo que ele, conhecedor do ambiente, desse certo apoio nos primeiros dias do meu filho lá. Tornaram-se bons amigos. Passaramse os anos, muitos; uma vez em Kioto, o senhor Hirano, diretor da Hoya e amigo meu, perguntou-me se eu conhecia Alberto porque ele pretendia contratá-lo. O Alberto mudou-se para Tokio, recém-casado com a Karina. Lá tiveram dois filhos e o Alberto subiu muito de posto. Alguns poucos anos de havermos vendido a SUDOP, a remanescente fábrica de armações, a LARC, sofrendo a predação dos coreanos, etc., pensamos em trocar de produto voltando para uma atividade ligada ao setor de lentes. O Hirano já havia morrido. Ocorreume ligar para o Alberto, o que fiz quando estava em Genève, e sondar sobre umas lentes orgânicas especiais que, segundo soube, a HOYA estava lançando no mercado. Ouvi uma risada no outro lado da linha: “Óh, Dr. Bessa! vai começar tudo outra vez?”. Depois houve uma viagem a Tokio – Carlos e eu – falamos com o Sr. Sato, Carlos transformou a LARC na OPTOTAL, representando a HOYA. Carlos e Alberto, velhos conhecidos, tiveram ainda longos anos de contato. Novos almoços, novos jantares em Paris, Alberto já morando em Amsterdam, personagem importante na HOYA, etc. Várias vezes em viagens minhas, mais recentes, a Portugal, lá estava o Alberto, já de cabelos brancos, aposentado, mas sempre o mesmo galhofeiro discreto me levando a passeio em sua Opel conversível pelas praias próximas a Lisboa ou comendo sardinhas em Setúbal. Abriu casas de óptica para os filhos. Carlos se comunicava com ele com frequência.
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Há pouco tempo comunicou-me que o Alberto tinha passado por um câncer, mas havia melhorado. Infelizmente a notícia seguinte era de que o Alberto havia falecido aos 70 e poucos anos. Fiquei triste com a perda de um bom amigo de mais de meio século, o José Antônio Alberto.Mas voltemos à minha pluralidade. É um carma. Nunca tive sossego e tranquilidade para fazer uma coisa de cada vez. Uma versatilidade perniciosa sempre me perseguiu. Tenho atualmente 97 anos; é possível que no futuro, com o avançar da idade, consiga trabalhar com mais paciência.