Chb tomo 1 revisado

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Deste álbum foram impressos 50 exemplares

Este é o de número:_______________



INTRODUÇÃO POR QUE ESTOU ESCREVENDO HOJE SOBRE TUDO ISTO? Acabei de completar 96 anos de idade. Já não dá mais para adiar uma promessa que tenho repetido a Nina, Diego e também a alguns amigos que me aconselham a não deixar que se percam algumas fotografias antigas, principalmente as da minha participação na II Grande Guerra. “Faz um álbum”, era o conselho mais frequente. Resolvi fazê-lo. Vou incluir também outras histórias sobre o que fiz na vida. E também contar fatos interessantes, como vocês verão. Mas insisto que isto aqui não é um livro, muito menos uma autobiografia. É um álbum, com legendas e explicações. (Por vezes extensas, é verdade.) Achei melhor organizar tudo em capítulos. São só 50 exemplares que distribuirei à família e aos amigos. Quanto à minha participação na Guerra, não esperem por bravatas, não cometi nenhum ato de heroísmo, fui simplesmente um médico, e só.

C.H.B.

Que me desculpem meus futuros leitores se

o texto não está bem escrito. Boa parte

é a transcrição do diário de um rapaz de 24 anos, embarcado em um navio americano de transporte de tropas a caminho de uma guerra na Europa. E outra parte narrada pelo mesmo “rapaz”, 72 anos depois, aos

96 de idade, procurando relembrar fatos e

recompor trajetos arquivados no fundo da memória.

2014

O veterano Ten médico Carlos Bessa, durante homenagem em Camaiore, ao lado do Adido Militar brasileiro na Itália. 4


1943 Sargento Bessa

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No n a v i o , c o m t e mpo de sobra, resolvi escrever um diário. Fu i

buscar

mi n h a a

a

história

c o n v o c a ç ão.

viagem

e

m e smo

desde

Escrevi alguma

o

início,

bastante coisa

após

desde

duran te o

a

toda

desembarque.

Po r é m , q u a n d o c o m eçaram as operações militares, infelizmente já

não

Pa r e i

de

tive

m ais

e s c r e v er.

“M a r i p o s a ” ,

o u t ra

tempo Só vez

nem

cabeça

recomecei com

tempo

para

quando, e

de

continuar. volta,

disposição,

no

escrevi

al g u m a c o i s a m a i s e aproveitei para recolher impressões e ta m b é m r e g i s t r a r as despedidas dos colegas de camarote.

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1944 Oficiais do 1º Btl de Saúde no navio “transporte de tropas” General Meigs, pouco antes de chegar a Nápoles. Eu com o braço esquerdo elevado e apoiado, já levava a estrela de Tenente no “casquete”. Verticalmente abaixo de minha mão aparece o rosto redondo do Antônio Lauriodó de Camargo, Comandante da 3ª Companhia (a minha). 9


P ORQUE O BR A SIL E N T RO U NA G UE R R A (E EU TA M B É M )

O serviço militar era obrigatório, no meu tempo. Somente por problemas

sérios de saúde alguém poderia deixar de fazê-lo. Havia várias maneiras de cumpri-lo; uma delas era fazer um curso que constava em lidar com armas e muitos exercícios práticos que incluíam desagradáveis marchas, sempre aos sábados e

domingos. O curso durava, se não me engano, 9 ou 10 meses. Foi o que eu fiz, em 1937.

Nos anos que se seguiram a 1930, o panorama político internacional começou

a complicar-se. Em 1939 a Alemanha, recuperada da derrota da 1ª Guerra Mundial,

que havia terminado em 1918, viu-se comandada por Adolf Hitler. Extremamente ambicioso, Hitler conseguiu, através de acrobacias diplomáticas respaldadas por ameaças, ultrapassar uma por uma as condições que foram impostas à Alemanha derrotada, como a limitação das Forças Armadas, entre outras.

Hitler havia criado uma doutrina, o Nazismo, que pregava a necessidade de

aumentar seu “espaço vital” e de dominar outros povos vizinhos ou não vizinhos,

a pretexto de purificar uma raça que, segundo ele, dominaria e lideraria o mundo inteiro por séculos. (Hoje, em 2016, quando escrevo isto, eu mesmo custo

a entender como tais ditaduras conseguiram arregimentar em torno delas povos cultos, empolgando-os tão cegamente a ponto de levarem o mundo a uma nova tragédia, a um segundo conflito mundial, maior ainda que o primeiro.)

Hitler lançou-se a uma “guerra-relâmpago” (a “blitzkrieg”), invadiu em

poucos dias a Áustria, a Polônia e logo a Hungria e a Tchecoslováquia. A Holanda

e a Bélgica foram incluídas na mesma operação de invasão da França. Despreparada,

a França tentou reagir, mas teve a metade de seu território invadido e dominado. A parte sul passou a ter um governo “fantoche”: comandado por franceses, mas controlado pelos alemães.

A Itália, dirigida desde os anos 1920 por Benito Mussolini, ditador que

havia criado o Fascismo, do qual o Nazismo copiou muito, juntou-se desde o início à Alemanha de Hitler.

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Só a partir de 1942, quando os americanos decidiram apoiar a Inglaterra com enorme poder industrial e militar, o expansionismo nazifascista começou a ser contido. Por outro lado, os alemães foram contidos também numa tentativa de invadir a Rússia. Pararam às portas de Moscou, dominados pelo inverno e por uma resistência tenaz do povo russo. Em agosto de 1943 os americanos e alguns aliados conseguiram invadir a Sicília, pisando em seguida no sul da Itália, cujo território era ocupado por tropas alemãs. Quanto ao que se passou daí por diante, será o nosso assunto nos capítulos seguintes.

Comícios monumentais eram organizados na década de 1930 pelo “Partido Nazista”. A cruz “suástica” era seu emblema.

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COMO O CON F LITO C HEG O U A NÓ S

Desde o início, o expansionismo nazista já incluía a América do Sul em seus planos.

A começar pelo Brasil. Não só documentos descobertos depois da guerra comprovam isto,

como já havia nessa época uma rede de informantes alemães infiltrados aqui, a chamada “Quinta Coluna”, que mandava para a Alemanha dados estratégicos, etc.

Em 1942, o alto comando nazista escalou submarinos para afundarem navios brasileiros

que faziam a rota para o norte. O pretexto era evitar que levassem carga à América do Norte.

Cerca de 20 navios nossos foram torpedeados e afundados, e muitos cidadãos

As nossas Forças Armadas e a nossa população inteira, indignada, pediam uma

Em 31 de agosto, o Brasil declarou Guerra ao Eixo. (Chamava-se “Eixo” a aliança

Em capítulo adiante menciono os afundamentos e os nomes dos comandantes dos

brasileiros foram mortos. Mais de mil. resposta.

Alemanha + Itália).

submarinos alemães relacionados a cada um deles. Foram todos identificados depois da guerra.

Nessa altura, vários outros países já haviam também entrado na guerra para conter

o expansionismo do nazifascismo.

Minha antes

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carteira quando da formatura e

2º do

sargento, embarque.


E E U, P OR Q U E F U I E NVO LV I D O ? Declarada a guerra, o governo brasileiro resolveu enviar uma Força Militar Expedicionária para juntar-se às outras nações que, aliadas, lutavam contra o Eixo. Em meados de 1942 fui convocado como soldado. Passei por vários regimentos de infantaria, fui promovido a Cabo, a 3º Sargento e depois a 2º Sargento, sempre na Infantaria. Dessa época, a pior fase foi a que, servindo na Vila Militar em Realengo, tinha que acordar às 5 horas da manhã em Niterói, onde morava, pegar bonde, barca e trem para chegar na “Vila” às 7 horas. Como estava no 4º ano de medicina, dormia muito pouco, pois tinha que assistir às aulas e estudar à noite. No início de 1944 foi criado um Batalhão de Saúde para compor a Força Expedicionária Brasileira. Todos os estudantes de medicina que estavam na tropa foram incluídos nele, eu também, mas não como médico, pois não era formado. Numa corrida contra o tempo, pois já se previa um embarque iminente, tentava encerrar o curso para poder ir como oficial médico. No capítulo seguinte: “UMA FORMATURA DIFERENTE DAS OUTRAS” eu transcrevo parte do meu Diário com o prosseguimento desta história.

O início do século XX assistiu à criação de três doutrinas extremistas que finalmente trouxeram problemas seríssimos para toda a humanidade. Inicialmente o Comunismo de Lenin, Marx e outros, depois o Fascismo de Benito Mussolini e o Nazismo de Adolf Hitler. Por muitas décadas seguintes houve violentas ditaduras, perseguições políticas, guerras devastadoras, falências, decadências econômicas, sociais, e em consequência mortes e fome. Os regimes liberais tiveram grandes dificuldades para restabelecerem a PAZ, a LIBERDADE e outros bens preciosos que haviam sido destruídos. 13


Mussolini foi, sem dúvida, a personagem mais importante da história da Itália no Séc. XX. Conseguiu impor-se como Primeiro Ministro diante de um Rei enfraquecido e resolveu os sérios problemas econômicos e sociais em que a Itália se encontrava no início da década de 1920. Bom administrador, construiu autoestradas e obras grandiosas. Seus princípios políticos e seus métodos para conseguir o culto à sua própria pessoa e conduzir multidões eram inéditos na época e foram imitados por governantes de muitos outros países. (Inclusive no Brasil, Getúlio Vargas, ao implantar em 1937 o Estado Novo, inspirouse em muitas de suas ideias.) Mussolini criou o fascismo, doutrina que incluía um líder forte, um “Duce” (condutor), tinha uma força militarizada particular, os “camisas negras”, promovia paradas militares grandiosas e sempre que podia, referia-se ao antigo Império Romano para justificar o “expansionismo” que era parte de sua doutrina. Suas ideias e seus métodos foram praticamente copiados por Adolf Hitler que, na década de 1930, assumiu por sua vez os destinos da Alemanha onde instalou o Nazismo. Tinha também os “camisas pardas”, utilizava-se de um poderosíssimo sistema de propaganda de si mesmo e de sua doutrina, conseguiu burlar as restrições que eram impostas à Alemanha pela Liga das Nações após a I Grande Guerra, e armou o mais poderoso exército do mundo na época. Intitulava-se o “Füher” (o primeiro, o cabeça). 14


Quanto a Mussolini, contando com o apoio da grande maioria do povo italiano, seu prestígio estimulou sua megalomania. Diziase um novo Júlio César (já havia adotado para o fascismo a saudação de braço erguido, imitando o “Ave César”). Sonhava reconstituir o Império Romano (pelo menos em parte). Declarou guerra à pobre Abissínia e pretendia expandir-se na África, conquistando o Egito e a Líbia. Ao mesmo tempo declarou guerra à Grécia e à Albânia. Hitler, por sua vez, incluía no nazismo ideias de que o povo ariano tinha “divino direito a terras que eram injustamente ocupadas por povos inferiores”. Dizia que seu povo necessitava de um maior “espaço vital”, e com isto planejava invadir seus vizinhos europeus e dirigir-se depois a outras áreas além-mar - o Brasil inclusive. Em 1940, Mussolini e aliaram-se para formar um somando suas forças para prática seus respectivos expansionistas.

Hitler “EIXO” pôr em planos

O que se passou deste ponto da história até o fim trágico a que chegaram ambos, Hitler e Mussolini, consta nos capítulos que se seguem.

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A Segunda Guerra Mundial, pior ainda que a Primeira, foi uma tragédia que envolveu toda a Europa, a América e o Japão, durante 6 anos afetou profundamente a história das nações e a vida das pessoas – particularmente dos que eram jovens como eu, na primeira metade do século passado, e tiveram que participar dela. Foi, dizem os historiadores,

A MAIOR GUERRA DE TODOS OS TEMPOS.

O povo era doutrinado pela propaganda nazista, enquanto as forças armadas exibiam seu poder para convencê-lo a ir à guerra. Foto da revista americana “Life”. Palavras de Hitler: “O que é a vida? Vida é a nação. O indivíduo de qualquer forma deve morrer. Acima da vida do indivíduo está a nação.”

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Palanques montados para discursos do “Füher” Adolf Hitler.

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Um só homem na multidão não levantou o braço para fazer a saudação nazista. A antiga saudação de braço erguido “Ave César” dos romanos foi adotada pelo fascismo de Mussolini e mais tarde copiada por Hitler para o nazismo. Fotos e texto da Revista Americana Life: “August Landmesser (24 de maio de 1910 - desaparecido e presumivelmente morto em 17 de outubro de 1944; declarado morto em 1949) foi um operário do estaleiro Blohm + Voss em Hamburgo, Alemanha, mais conhecido por aparecer em uma fotografia se recusando a fazer a saudação nazista no lançamento do navio de treinamento SSS Horst Wessel em 13 de junho de 1936.” 18


Grandes espetáculos eram organizados na década de 1930 pelo Partido Nazista. A “cruz suástica” era seu emblema. Dizem que era baseada em imagem esotérica. Realmente, a sociedade internacional “HERMETIC ORDER OF THE GOLDEN DAWN” a tinha como um dos seus emblemas e consta que Adolf Hitler acreditava ter conexões extrassensoriais com mundos desconhecidos. Ainda quanto à origem deste emblema, sabe-se que desde a antiguidade, na China e em outras terras do Oriente, a mesma cruz era símbolo de boa sorte, mas os traços dirigiam-se em sentido oposto ao usado pelo nazismo. (Foto da revista americana “Life”) Emblema DAWN”.

da

“HERMETIC

ORDER

OF

THE

GOLDEN

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Capítulo 1

D e S oldado a M édico U ma formatura diferente das outras

Em 1942 o BRASIL entrou na GUERRA. Como e por quê isto aconteceu, eu descrevo na Introdução. O fato é que eu e outros da minha faixa etária fomos convocados como soldados e incorporados ao EXÉRCITO. Passei então quase dois anos servindo em várias unidades de infantaria, depois no 1º Batalhão de Saúde, continuei e conclui o curso médico apesar das grandes dificuldades de horário. Durante esses dois anos de EXÉRCITO fui promovido a Cabo, depois a 3º Sargento e logo a 2º Sargento. O BRASIL organizava uma FORÇA EXPEDICIONÁRIA destinada ao “front” na ITÁLIA e aguardávamos sempre o momento do embarque. Faltando dois meses para concluirmos o curso médico, um curso de oito anos, não nos conformávamos, eu e os colegas de turma Samuel, Antonino e Borring, em ter que embarcar como “praças”, quando muito mais justo seria que pudéssemos fazer os exames finais e ir como médicos. Inclusive era também interesse do EXÉRCITO, pois formar um médico demanda muito mais tempo de preparação. Para felicidade nossa, o diretor da faculdade, Prof. Barros Terra - entre outros – assumiu a nossa causa e trabalhou muito junto ao Ministério da Educação, comprometendo-se a acelerar o final de alguns cursos, exames, etc., e assim pudemos obter o diploma de médico antes do embarque. Fomos como aspirantes e logo após, tenentes médicos da “Força Expedicionária Brasileira” em operação na Itália. Eu tinha então 24 anos. Passo a transcrever um trecho do diário que escrevi quando já embarcado, em 1944: 20


Antonino, Bessa, Borring e Samuel - colegas de turma da faculdade; fomos convocados juntos e nos tornamos amigos e solidários durante toda a guerra. Da esquerda para a direita: 1. Antonino Fonseca Jardim, de Montes Claros, Minas Gerais; 2. Carlos Henrique Bessa, de Niterói, Rio de Janeiro; 3. Jorge Arturo Borring, filho de americano e mãe argentina, nascido em Buenos Aires, naturalizado brasileiro; 4. Samuel Soichet, filho de judeus russos vindos para o Brasil no princípio do século, nascido em Niterói e meu colega de turma desde que tínhamos 11 anos de idade. Meu amigo até a sua morte prematura em New York, onde clinicava e residia. 21


Transcrição do meu diário de 1944:

“...até que, uma noite, recebi um telefonema do Samuel: o ministro da Educação nos dera permissão para fazermos os exames finais e deveríamos começá-los imediatamente. Um oficio do Prof. Barros Terra pedindo permissão para que fizéssemos exames das cadeiras de frequência gerara essa solução, a melhor possível para nós. Em quatro dias fizemos todos os exames. Saímo-nos regularmente em todos eles, apesar de não termos, em algumas cadeiras, assistido a uma aula. A 7 de julho fizemos os últimos exames: Fisiologia e Clínica Médica, e descemos para a secretaria: nós quatro, o Prof. Terra, o Prof. Pedro da Cunha (Pedrão, entre nós), os Professores Mazini Bueno, Alcides Lintz, o Silvio Alvim de Lima, assistente do grande Pedrão, alguns colegas nossos – o Fernando Monteiro (gaúcho), o Kastrup, Chumbinho, Eulália, Arlete e Ester, e talvez mais alguns. A secretaria estava como sempre esteve. Todos trabalhando. O Prof. Terra reuniu-nos, então, entre quatro mesas, e em torno de nós todos os presentes. Seria a nossa colação de grau. Sei que jamais esquecerei das cenas que então se passaram: o Prof. Terra dizendo em voz comovidíssima o juramento que nós quatro, fardados de sargento, cansados por quatro dias de exames sucessivos, um tanto barbados, repetimos mais emocionados ainda. Colocando depois o anel em nossas mãos: ‘Podem exercer e ensinar a medicina’... Tentando depois dizer-nos algumas palavras, o velho Terra não conseguiu senão dizer que desejava que ‘fôssemos felizes’. As lágrimas encheram-lhe os olhos. Abraçou-se a um de nós e não disse mais nada. O Pedrão, que estava perto, fez o mesmo, muito mais vermelho que de costume, com olhos muito mais cheios d´água que quando ria. O Lintz, o Silvio, o Prof. Bastos D´Ávila, todos calados, olhos marejados, nos abraçaram. As nossas colegas, talvez ainda mais comovidas que todos, faziam grupo com Gaúcho e Kastrup; o pessoal da secretaria, o Dr. Darcy inclusive, não diferiam dos outros. Éramos ‘doutores para a guerra’, o Pedrão disse. Os outros convenceram-se disto. O Pedrão disse também que tinha sido a colação de grau mais comovente a que já havia assistido. O Prof. Terra disse o mesmo e mais – que assistira a todas as colações de grau havidas na faculdade; nenhuma tão comovente como aquela feita entre papéis de uma secretaria desarrumada, de quatro rapazes despenteados, sem discursos nem representantes de autoridades. Aos poucos o grupo foi-se dissolvendo; cada qual tomou seu rumo.”

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Quatro sargentos mal fotografados na Vila Militar. Provavelmente antes de alguma prova final do curso médico. Os 187 centímetros do Borring ultrapassaram os limites da máquina. Ou da competência do fotógrafo. Fotografia provavelmente feita antes de alguma prova final do curso médico.

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ANTONICO

BAEPENDY Atacado pelo U-507 –

270 mortos

ITAGIBA Atacado pelo U-507

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Atacado pelo U-516

16 mortos

ANÍBAL BENEVOLO –

36 mortos

Atacado pelo U-507 – 150 mortos


Navios brasileiros torpedeados

Foram identificados todos os submarinos alemães e respectivos comandantes que afundaram navios brasileiros em nossa costa, provocando a entrada do Brasil na guerra. Acima, a relação oficial, obtida dos arquivos alemães no pós-guerra.

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Antes do embarque no 1º Batalhão de Saúde, Vila Militar Antonino, Borring e Samuel Eu fotografei.

Capítulo 2

D espedidas antes do embarque

Continuando a reproduzir o meu antigo diário: “Estava incluído com o nº 378 na Cia de Tratamento do 1º Batalhão de Saúde da Força Expedicionária Brasileira. Desde então eu faria parte dos que aguardavam sempre ‘um embarque próximo’, dos que não podiam saber se na semana seguinte estariam em terra ou no mar. Era soldado raso. Finalizando essa primeira fase da comprida história que conto neste caderno e que somente hoje, dentro deste navio, de qualquer forma e com quaisquer palavras, com o intuito único de acabar de contá-la para poder gravar então, a fresco, as impressões que tenho tido durante esta viagem. Direi que a 19 de setembro embarcamos, numa terça-feira. Já desde sábado ‘a cobra fumava’. Estávamos impedidos de sair do quartel. Despedira-me sábado pela manhã de mamãe sem dizer nada. Só que talvez fosse acampar, e por isto passasse alguns dias sem vir em casa. 28


Procurei, de todo modo, indiretamente, lógico, convencê-la disto; não sei se consegui. Beijei-a e saí. Sabia que não veria mamãe talvez por muito tempo, talvez... não, isto não, pensei. Antes de sair de casa olhei Orlando confiante em mim e nele. Não o acordei. Não vi Silvia nem Nícia, dormiam ainda. Era cedo – 5:40 h mais ou menos, do dia 16 de setembro. Papai havia saído muito cedo para ir ao ‘bota fora’ de um amigo que embarcaria para a América do Norte, esperou-me no Rio na saída da barca. Corriam muitos boatos sobre embarque e papai sabia deles; em todo caso, como já por duas vezes eu saíra e voltara, tudo era possível. Encontrei-me com ele no Rio rapidamente; o bonde já vinha e eu estava atrasado. Abracei-o e saí. Nunca fui por despedidas longas; é prolongar um momento horrível. Fui para o quartel. Hora do rancho, acabava de lavar as mãos e sentar quando vieram avisar-me que ‘um senhor esperava por mim lá fora’ só podia ser papai – e era. Mostrou-se bastante calmo e confiante. Disse que para nós seria bom (embarcamos), pois ganharia prática em medicina e na vida, que estavam todos com saúde, sem problemas a resolver e que, estando a guerra provavelmente por pouco tempo, também, esta seria a boa hora. Conversamos mais um pouco, chamei o Samuel e o Antonino, conversamos os quatro por algum tempo e foi-se. Abracei-o e acenei-lhe com a mão ao dobrar a esquina. Fomos os três para o almoço. Animou-me muito ter visto e conversado com papai. À tarde, às duas horas, estávamos prontos para seguir.”

Só agora, relendo esta parte deste diário, ocorreu-me que papai não tinha amigo

nenhum viajando, nem seria naquele dia que ele iria ao “bota fora” de quem quer que

fosse, a não ser o meu. Por que teria ele preferido se afastar, esperar-me no Rio?

Parece claro: evitar despedirem-se de mim ele e mamãe, juntos. Certamente um dos dois, ou ambos, perderia o equilíbrio necessário para me transmitir tranquilidade; também porque queria ter uma oportunidade para conversar sozinho comigo e passar-me as ideias

que passou (possivelmente engolindo calado a emoção). Chegou a repetir o encontro indo à porta do quartel, que era longe, na Vila Militar.

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Capítulo 3

O Embarque em um navio Transporte de Tropas

Soldados brasileiros embarcando no navio “transporte de tropas” General Meigs – 22 de setembro de 1944. Em seguida embarcamos nós, os oficiais.

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O cartão ao lado foi da viajem de volta. O de ida era igual.


Continuando o texto do diário escrito em 1944:

“A 3ª Cia formava e seguia. Formou-se o destacamento de comando, nós lá. Seguimos marchando até um trem na Vila Militar. Trem fechado. Algum tempo depois o trem partiu. As malas amontoadas diminuíam o espaço útil, janelas fechadas. Monotonia. Eu estava ao lado do Samuel. Cochilamos os dois. Ninguém tinha assunto.

Despreocupação absoluta.

Quarenta minutos depois chegamos ao cais do porto. Desembarcamos: ‘Bom navio, hein!’ todos acharam. ‘Cinzento, ou melhor, azul-claro, sei lá! É azul-claro mesmo mas quase cinzento. É grande; são dois, são grandes’!

Esperamos no cais algum tempo. Anoitecia.

Pela escada do navio os homens subiam um a um, saco nas costas, até que chegou nossa vez.

Suspendi da melhor maneira possível a mala A, a ‘japona’ e toquei pra diante.

Antes da escada em torno de uma mesa pequena, tendo em cima pilhas de cartões de várias cores com barbantes amarrados, estavam alguns oficiais brasileiros e americanos. Pediram meu cartão de embarque (recebera no quartel), deram-me outro, branco (que aqui está pendurado à minha camisa); suspendi outra vez todo o material e subi. Ao entrar no navio um marinheiro olhou o cartão branco: camarote 215, e encaminhoume para lá. O Samuel e o Antonino também iam para lá. Aqui está: 215 é ele! Pequeno relativamente, mas com o conforto necessário. Todo verde-claro, um armário para cada cama beliche. Eram 12 beliches. Escolhi o meu: o último de cima à direita. Joguei a mala A sobre o armário mais próximo. Quem seriam os outros? Havia mais nove camas. Estou embarcado num navio americano chamado General Meigs. Bessa, do 1º Batalhão de Saúde Brasileira em direção ao ‘front’

‘transporte de tropas’ Sou o 2º Tenente Médico da Força Expedicionária italiano.” 31


CapĂ­tulo 4

A V iagem : 16 D ias em rota sinuosa e escolta armada

Alojamento dos praças. Os oficiais tinham mais conforto. A bagagem ia em pequenos armårios de metal e as camas eram beliches.

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Continuo a transcrever o diário, que só foi escrito enquanto estava embarcado. Depois, em terra, durante campanha não houve mais condições de continuar, por razões óbvias.

“Dois dias depois do embarque, dia 21, quando acordamos o navio não estava mais no porto. Estávamos entre Niterói e Rio, um pouco para dentro da linha das barcas.

A manhã brumosa impedia uma boa visão.

Depois, entretanto, a bruma se desfez e o Rio apareceu, maravilhoso. Preferia olhar para Niterói. Viam-se bem os cortes nos morros, o Gragoatá, o Centro, as torres da catedral de São João e meu ponto preferido: o morro da Boa Vista com suas torres de aço para condutores elétricos. E a torre da Igreja de São Lourenço. Passei muito tempo olhando aquilo tudo. Às 12 horas o navio já se deslocava em direção à Barra. Todos colocavam-se para o último olhar. Subi para o convés de cima, fiquei de pé sobre uma caixa junto à amurada do lado de Niterói e fui vendo desaparecerem um por um a torre da São Lourenço, as da Igreja de São João em frente ao Pronto-Socorro... depois apareceu Icaraí, o cassino. Desapareceu o morro da Boa Vista com suas torres de aço... Flechas, Boa Viagem, olhei bem para tudo aquilo. Desapareceram já os edifícios, via-se o cassino e a Itapuca. Logo, do outro lado, Copacabana aparecia, magnífica! Com sua fila de arranha-céus! Olhei bem o Posto 6, o cassino Atlântico já não se distinguia bem ... mas devia estar ali junto ao forte de Copacabana, aquela superfície lisa. Já desaparecera Icaraí. Viam-se outras praias: Itacoatiara talvez, e outras mais. Belíssima a baía da Guanabara. O gigante... as praias, as fortalezas... E todas elas nos prestavam continência com salvas de canhão. Imponente! E os dois barcos americanos, repletos de brasileiros lá iam! Atrás, um cruzador, o ‘Menphys’, e adiante e aos lados três ‘Destroyers’. Mais ao fundo, o nosso ‘Bahia’1. Duas ou três horas mais tarde já não se via mais terra. Assim viajamos uma semana mais dois cruzadores americanos depois desapareciam outra vez, algumas vezes em torno do navio ‘USA Navy’, fazia o mesmo.”

com poucas novidades: a escolta foi aumentada de iguais ao Menphys e dois Destroyers que três dias o Bahia também sumiu. Aviões apareciam, rodavam e desapareciam. O ‘blimp’, o pequeno dirigível da

1 O encouraçado Bahia foi afundado em outra ocasião. 33


“Os enjoados...! Ah!, os enjoados! Notáveis... que caras faziam!... no camarote temos o rei dos enjoados: o Toledo. No segundo dia deitou-se e lá está até agora. Sai, janta ou almoça depressa e volta! O Samuel andou enjoado também. Enjoa e melhora quando vai lá pra cima. A sala de estar dos oficiais andou vazia por alguns dias. Dizem que foi nas proximidades dos Abrolhos. Agora já são muito poucos os enjoados, mas o Toledo continua. Eu que pensava em enjoar muito não senti absolutamente nada. Absolutamente também não, pois o cheiro da cozinha ainda hoje me deixa amolado; mas é só o cheiro da cozinha, felizmente. A ‘boia’, a princípio tão apreciada, tornou-se alvo de imprecações: é doce e cheirosa... perfumada... e sem sal. Encontrei por aqui muitos conhecidos e tenho conhecido também muita gente. Tive, uma noite destas, o prazer de conversar com um tenente-coronel magro, alto, cabeça branca, extremamente simpático. Eu conhecia aquele cara! Disseram-me: ‘É o Julio de Moraes’. Aquele que corria na Gávea! Ah! era aquilo mesmo! Mas como eu poderia bolar! Julio de Moraes ali, tenente-coronel! O Antonino conversava com ele e cheguei-me aos dois. A finura de trato e a cultura desse homem não me admiraram mais que a sua jovialidade! Julio de Moraes, aos 70 anos presumíveis, era um dos mais jovens a bordo! Hoje, 27 de setembro, atravessamos o Equador. Anunciaram-se festejos a bordo e às 10 horas Netuno, acompanhado de sua corte, visitou o navio. A sala dos oficiais repleta, junto à porta o General Falconière e as altas autoridades do navio aguardavam sua chegada; várias orquestras, inclusive uma na sala de estar, tocavam marchas carnavalescas quando a alta coroa dourada surgiu no convés de estibordo. Era Netuno, envolto em lençóis brancos, tridente em punho elevado ao teto. Com sorriso complacente, cumprimentava os presentes, enquanto os ‘nobres’ da corte, vestidos carnavalescamente, formavam um cordão como aquele das 3 horas da tarde de domingo gordo na Galeria. A sala vibrava com aclamações a Netuno e Netuno era... (só podia ser...) Julio de Moraes que, pela quinquagésima quarta vez, atravessava o Equador! Continuavam os batismos com água salgada e farinha de trigo por todo o convés, até que o último crioulo ficasse caiado. À noite voltou Netuno a falar de seus automóveis, das sessões da Liga das Nações, das estradas dos Alpes, dos Estúdios de Hollywood e dos truques de bastidores da diplomacia europeia que seus 17 anos na alta roda francesa fizeram-no conhecedor.

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A travessia do Equador valeu-nos ainda um prêmio – e que prêmio! – uma feijoada!”


Acima, flagrante tomado em alto-mar no General Meigs.

Ao lado: em certas fases da viagem, um “blimp” da Marinha Americana compunha a vigilância protetora aos navios do comboio.

(Foto e legenda da revista americana “Life”.) 35


“28 de setembro O ‘General Meigs’ há 9 dias não pára; devemos entrar agora pelo meio do Atlântico. É uma hora da madrugada e continuo acordado em meu camarote. Acabei de desligar agora a vitrola do Camarozano que trouxe para cá e está sobre minha cama.

A noite de hoje foi sentimental. Tivemos música.

Depois de um dia como muitos outros neste navio – céu e mar, conversa fiada, uma chuvarada que lavou os conveses à tarde foi a única novidade. O calor, cada vez pior; já está insuportável. Nos compartimentos dos praças, então, é horrível; são frequentes os chamados e tenho atendido a muitos. Não faz meia hora fui lá ver um que tombara ao solo: uma lipotimia. Os soldados têm-se alimentado muito pouco e alguns, mesmo, não têm comido nada – não gostam da comida. Isso agrava muito a situação deles. Estão quase todos bem mais magros. Hoje não fui ao cinema; nem treinei inglês com os marinheiros; nem fui procurar minha caneta que perdi há dias; nem fiquei à noite muito tempo na sala de estar; desci logo. Pedi a vitrola emprestada, trouxe alguns discos. Todos gostaram, pois a música já ouvida antes parece que nos põe no mesmo ambiente em que já a ouvimos, mas relembra alguma coisa que ficou longe... no Rio... no Brasil... ‘Sleep Lagoon’, ‘Uno’, ‘Percal’. Bem, chega por hoje; acho que já devo apagar a lâmpada junto à minha cama. Já quase todos dormem. O Samuel está ali, suado, movendo-se e resmungando a toda hora. Ouviu música até quanto pôde; depois o sono foi mais forte. Antonino também, sentimental! Puxa! E está na hora do serviço dele, serviço de compartimento em que nós três e mais três tenentes do 11 RI estamos metidos. O quarto dele é o de 1 às 3; o meu será de 3 às 5. Ele dorme e acho que não vou acordálo; eu tiro o tempo por ele; acho que não dormirei esta noite; não vale a pena deitar agora e levantar daqui a pouco. E depois, esta última noite, como foi quente aqui neste camarote! É preferível tomar meu banho, ficar por aí rondando, de calção.” 36


“Ontem acabei não escrevendo para ninguém. Tomei um banho, fiz barba, fiquei rondando, fui dormir às 3:00 h. Calor infernal este da costa da África! Passamos hoje próximo ao Cabo Verde; é o que dizem; pela manhã vi uma gaivota – sinal de terra próxima (lembrei-me daquele ponto ‘descoberta do Brasil’, da 2a série, em Porto do Velho). Agora à tarde um canário pardo que pousou numa viga do ‘deck’ causou a sensação do absolutamente inesperado; diziam que viera do continente ou que viera das Canárias; os mais sensatos a meu ver diziam que era pardal e que viera a bordo, com qualquer marinheiro... e fugira... Só sei que era passarinho e estava ali. Gaivota sim, havia, e não vieram no navio nem eram peixinhos voadores desses que vivem chateando o dia inteiro. Gaivota, no duro. Mas o que me interessa é se há terra próxima ou não!... Bolas!... A escolta é que deu hoje um bom espetáculo: manobras, buscas, bombas, tiro... mas ninguém deu bola; gostei de ver o pessoal. E a esquadra também.1 Mas o acontecimento do dia guardei para o fim de propósito: passei uma hora de puro gozo intelectual. Tomei um susto quando no fim vi que não estava no salão de conferências da A.B.I. e que o conferencista não estava de gravata – vestia um macacão com divisa de cabo e estávamos no salão de cinema do ‘General Meigs’! Egidio Squiff, o correspondente de guerra (aquele do ‘O Globo’, que apresentou Carlos Frederico Schmidt naquela conferência sobre Walt Withmann, lembra-se?), pois é; Squiff apresentou-nos Carlos Scliar, cabo do 1º R.O.A.R.: pintor de renome internacional, vinte e poucos anos, tem quadros até no Museu de Artes Plásticas de New York. Talvez louro, cabeça quase raspada, nariz afilado, cara de judeu (e é). Começou: leu qualquer coisa de Da Vinci; retirou-me do ambiente; levou-me para o salão da A.B.I. ou da Belas Artes, não sei bem. Sei que aquele cabo de macacão, em 60 minutos, falou com desembaraço e firmeza, precisa e concisamente sobre toda a história da pintura moderna, desde as raízes do impressionismo ao surrealismo, ao cubismo e todas as suas derivantes; sobre seus criadores, sobre o valor de seus criadores, sobre sua opinião acerca de tudo aquilo.

Volto a bombordo quase correndo – era a Europa, que eu via! Sim Senhor!

Era a costa da Espanha!”

1 Rubem Braga, em seu livro “Crônicas da Guerra na Itália”, diz que houve nesse dia a aproximação de um submarino inimigo. Rechaçado.

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“Aos poucos fomos nos aproximando e localizei-me em um ponto donde via ambos os lados: espetáculo quase indescritível! Dificilmente eu cria estar ali, vendo ao mesmo tempo próximo a mim a Europa e a África! Vendo terminarem, uma em frente à outra, as cadeias de montanhas, e o estreito de Gibraltar separando-as. Nossa proa dirigia-se mais para o lado da África, cuja costa vimos tão bem, que distinguimos praias, acidentes nos montes, etc. E ali estava eu, indiferente ao vento fortíssimo que me obrigava a segurar-me para manter-me de pé. Aproximávamos mais e o navio dirigiu-se então para o canal. Chegamo-nos mais à península, e então já a víamos também muito próxima. Alguém lembrou-se de jogar às águas da entrada do estreito uma moeda de 20 centavos: era a passagem de volta (velha praxe dos que entram no Mediterrâneo por ali). Joguei, como os outros, a moeda; não fosse por isso, Sr. Netuno... milhões de vezes mais, vale essa passagem... Ali, atrás daqueles montes, deviam estar os camponeses com sua roupagem típica, deviam ser espanhóis de todos os tipos descritos, e espanholas de todos os tipos imagináveis... Ali estavam, diante de mim, a velha Espanha... e à direita Marrocos, o Marrocos espanhol; onde eu estava juntou-se um grande grupo de oficiais. Admirávamos calados tudo aquilo, quando... ‘darken ship’... ‘escurecimento total do navio’...”

“7 de outubro Ontem não escrevi. Não que tenha esquecido deste caderno, a que já tomei amizade; mas porque foi tanto a observar, que ficou para hoje o registro de tudo aquilo que entrou para o meu conhecimento, provocando as emoções mais variadas; e foi a mais sublime de todas as emoções que, às 6:45 h do dia 6 de outubro de 1944, acordou-me: ouvi qualquer barulho no camarote e levantei-me ainda meio tonto. Alguém, o Jaime se não me engano, falava – melhor – berrava algo que quase me tira do sono que começara só às 3 da madrugada, e que de tão pesado resistira ao pulo cama abaixo. Vesti-me apressadamente e fui pela escada interna ao convés de bombordo – foi quando a sensação do belo sacudiume tão fortemente que acordei; posso dizer, quase sem exagero, que ontem, foi a visão de Capri que me tirou do sono.” 38


“Vi, bem próximo, ali junto a mim, aquele rochedo tão célebre, cuja beleza fazia justiça a tudo quanto já lera e ouvira acerca dele. Não o descreverei – é impossível para mim fazê-lo. Jamais sairá de minha memória, entretanto, a visão daquele penhasco altíssimo que o sol recém-nascido coloria tal um cromo, onde predominasse o rosa e o púrpura, como que fosforescente, onde as sombras fossem violáceas de um violáceo esquisito, indescritível! Dificilmente acreditava ser realidade aquilo! Alto, abrupto, acidentadíssimo, o mar encrespando-se-lhe aos pés, de uma imponência ímpar, não bastava ver para acreditar naquilo; e a visão foi impotente para levarme à realidade; olhava como se olhasse para um ‘tecnicolor’. Mais um pouco adiante e já se via o outro lado da ilha, onde se estendia a cidade, pequena e de construções antigas. Aí a vegetação não era tão rara; mas elevações de prédios grandes, em um ou outro ponto, pareceram-nos os tão falados palácios de Capri; e um deles branco, no topo quase de uma elevação, foi identificado, embora sem certeza, como aquele que Axel Munthe descrevera como sua casa no célebre ‘Livro de San Michele’. Na face do rochedo que primeiro avistamos, já iluminada pelo sol, vegetação só havia em torno de um palácio de cor vermelha-escura; vegetação também vermelha, que circundava todo o castelo construído em um acidente do penhasco. Já nos afastamos da pequena ilha de tão grande história, quando a boreste nos apareceu o não menos célebre Vesúvio, em cuja orla se estendia a não menos famosa Pompéia. Dois balões de barragem prateados, brilhando ao sul, convenciam-nos de que os que moravam lá não se envolviam mais em ‘togas’ e que não era uma ‘galera’ o nosso barco.” 39


Capítulo 5 Chegada a Nápoles - Destruição e Miséria Para surpresa nossa, nem todos desembarcamos em Nápoles. Só os que ficariam nos serviços de retaguarda (que mais tarde foram apelidados de “Saco B”). Os que iriam para a zona próxima ao “front” – que já estava bem mais ao norte permaneceriam no navio atracado no porto por dois dias, esperando a chegada das barcaças LCI que nos levariam para Livorno. Sobre isto escrevo no capítulo seguinte, transcrevendo também parte do meu antigo diário. 40


Continuo transcrevendo meu diário de 1944:

“Mais um pouco e lá estavam os subúrbios de Nápoles,

depois o porto repleto de navios de guerra e de pesca dos tipos mais variados e estranhos. Já víamos as elevações próximas ao porto de Nápoles e a antiga fortaleza que fica no topo de uma delas, quando os vestígios de guerra começaram a aparecer; eram navios virados e arrebentados que lá ficaram mesmo após a limpeza do porto, já feita pelos americanos.

Aproximamo-nos mais do porto, e víamos já a cidade envolta em uma bruma

cinzenta que o sol das 8 e meia ainda era fraco para atravessar. O navio fazia manobras complicadas e assim deixava que víssemos de vários ângulos a zona do porto. A mim impressionou vivamente o edifício do porto, ou melhor, o estado em que se encontrava.

O que ainda estava de pé deixava entrever as belas linhas do moderno edifício,

agora completamente arrebentado. Se alguma coisa dele ainda se via, eram pedaços do arcabouço externo, todo de pedra clara, do qual ainda duas torres existiam em pé, mal equilibradas sobre o resto do prédio, em cujas faces voltadas para a terra se viam: um relógio em uma e um barômetro na outra. Através das largas brechas no arcabouço, via-se um montão de ferros retorcidos e paredes derrubadas. A isto se reduziram os belos salões e restaurantes que lá existiam.

A parede voltada para o mar sustentava ainda dois cavalos, em bronze,

empinados um para o outro em cada extremidade do edifício. Este colocava-se em arco, como um túnel, sobre a ponta de terra em cuja extremidade estava o cais, e que ia ter a uma praça asfaltada, ampla, separada por grades de ferro das ruas da cidade. A praça, atravessada por trilhos que, passando sob o edifício do porto, vai até o cais, o que também as viaturas podem fazer, pois é bem ampla a passagem – tem também em sua ala direita lugar para atracação de grandes navios, e uma plataforma de cimento armado, elevada sobre colunas; foi aí que ficamos.

De onde estávamos víamos a cidade estender-se para a direita em longo arco

até ao Vesúvio, para a esquerda em reta até o ponto em que não víamos mais: uns prédios velhos, que da terra entravam sobre um quebra-mar até a uns 200 metros mar adentro, impossibilitávamos de distinguir mais além.” 41


Continuo transcrevendo meu diário de 1944: “Para frente várias elevações quase cobertas de casas, ótimos edifícios para o tempo em que devem ter sido construídos, todos eles sobre o morro como os da zona do porto, com 5 e 6 andares largos, sujos pelo tempo e semidestruídos pela guerra. Bem junto ao porto, em um ângulo da rua que dele é separada pelo gradil de ferro, fica um magnífico castelo, sólido, imponente, antiquíssimo, cujas paredes – pelo menos as visíveis de onde estávamos, resistiram a tudo sem sofrer muito dano. Os outros prédios das redondezas tinham, às vezes, somente o arcabouço externo, deixando ver as ruínas que lhes iam por dentro. Isso em toda a região do porto, em uns pontos mais que em outros; a parte que ia morro acima pareceu-nos ter sido mais poupada.” 42


“Disseram-nos depois os felizardos que conseguiram ir à terra - pois

que ficamos a bordo todo o tempo, que víamos a cidade velha, somente, que para direita e para o fundo, entre as elevações que víamos à nossa frente e o Vesúvio, estendia-se uma bela cidade em muita coisa semelhante a S. Paulo, repleta de edifícios novos, onde havia vida – o comércio já funcionava, havia casas de diversões, o povo trabalhava. Ao passo que a impressão que tivemos da parte que mais aparecia era de que Nápoles era uma cidade civilmente morta. A zona do porto, completamente militarizada, era cruzada em todos os sentidos por jipes e caminhões leves e pesados carregados ou em busca de carga.

Os poucos paisanos que por ali transitavam eram os estivadores do

porto, gente que disputava com briga e correria os pedaços de pão ou cigarros que lhes iam ter às mãos. Quanto ao estado da população, ouvimos horrores. Mais tarde, pelo que nos diziam os que conheceram a cidade toda, como o Jaime, pareceu-me que nem toda a população fora levada a tais extremos de privações.”

Parte

dos

que

desembarcaram em Nápoles e ficaram na retaguarda. Meu destino era Livorno, mais ao norte. 43


Quando estava no General Meigs ancorado no porto de Nápoles, impressionoume um antigo castelo que menciono em meu diário sem saber o nome. É o Castel dell’Ovo, um dos poucos monumentos que resistiram à destruição da região do porto. Só desceu em Nápoles o pessoal que ficaria na retaguarda. (Foram depois apelidados de “Saco B”.)

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Capítulo 6

Para L ivorno : D ois dias nas mesmas B arcaças L C I usadas nos desembarques da F rança

Comboio de 56 barcaças, em formação de três filas, transportando os dez mil brasileiros do segundo escalão

Foto e legenda colhidas da internet. O meu Escalão era o segundo e minha barcaça era uma destas, que tinha escrito o número 552.

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Continuo transcrevendo o meu diário de 1944:

“11 de outubro – quarta-feira

Escrevo a lápis por duas razões principais: por ter perdido minha

caneta no ‘G. Meigs’ e ser quase impossível escrever a pena do lugar onde estou. Escrevia sobre Nápoles quando parei, no domingo. O pouco que vi lá não merece mais que o que foi dito. Passamos o sábado e o domingo aborrecido por não podermos ir à terra, e olhávamos a cidade até que nos vinha o sono e íamos dormir ou ouvir o que sobre ela nos contavam os que haviam saído.

Segunda-feira o dia correu como os outros até o momento do embarque.

Acho que até agora ainda não disse por que não saímos do navio: é que nosso destino não era mais Nápoles e sim Livorno.

Livorno, entretanto não permitia calado para grandes navios, pois

fora bombardeada recentemente muitas vezes e aguardaríamos em Nápoles pequenas embarcações que nos levariam para lá. Segunda-feira pela manhã começaram a chegar os lanchões que nos levariam. As designações para tal ou qual ‘bote’ haviam sido feitas na véspera. Os barcos eram os usados para invasão e que por várias vezes eu vira em cinema.

Era quase impossível pensar, naquele tempo, que eu viajaria neles!

É tão incômodo o lugar onde estou sentado junto a uma das metralhadoras

da popa, no convés, que é quase impossível continuar a escrever; o roncar e a trepidação das máquinas põem qualquer um fora de si.

É noite já e escrevo agora com o barco parado. Estamos já em Livorno, as

embarcações amarradas umas às outras no porto. Estou em uma pequena divisão do barco, onde fazemos as refeições, quando podemos. É uma pequena saleta onde mal cabe uma mesa fixa, dois bancos, uma vitrola, uma prateleira com livros, aparelhos elétricos que não sei para que servem. Os outros lêem revistas americanas que encontraram por aqui; eu já as olhei e vou ver se consigo escrever agora.” 47


Continuo transcrevendo o meu diário de 1944: “Como ia dizendo, segunda-feira à tarde começou a embarcar o pessoal que ia na 1ª vaga de barcaças; o Samuel iria na última delas. Na segunda vaga iríamos eu e o Antonino, ele em uma eu em outra barca. À medida que íamos saindo do camarote, depois dos ligeiros abraços, votos de boa viagem dados com sinceridade e recebidos não como uma simples gentileza: todos achavam possível qualquer coisa... Era um tanto audacioso ir tão grande número de embarcações até às barbas do inimigo! Mas com toda sinceridade, não tinha receio absolutamente nenhum, embora não soubesse em que confiava. A primeira vaga estava já quase toda lotada e as barcaças já começavam a sair; a última delas era a que levava o Samuel; ia na proa, via-nos e acenávamos-lhe com o chapéu; ele respondeu. Chegaram os barcos da segunda e preparei-me, a minha seria a 3ª dessa leva. Apanhei o que havia de meu no camarote (depois de deitar na cama algum tempo, como despedida; boa cama aquela! No cartão a ela amarrado desejei melhoras ao seu novo ocupante, que seria um ferido, e boa sorte para ele!). Despedi-me ligeiramente dos que lá estavam e saí. Saí com o Fabio, um tenente de artilharia meu companheiro de barco. Desci e pela primeira vez pus o pé (cuidei que fosse o direito...) em terra napolitana, em terra da Itália, em terra da Europa! E confesso que não achei lá muita diferença... firme, como as outras... e era o que me interessava! Caminhei, com mala nas costas até um ponto próximo ao gradil, onde esperávamos ordem de embarque; aí vi mais de perto alguns trabalhadores, do porto – bem mais sujos que me pareceram de longe; muitos antigos soldados do exército italiano usavam ainda os uniformes um tanto sujos, mais ou menos rasgados, e mesmo fardados carregavam nos braços os caixotes que vinham, no guindaste, de dentro do navio. Assim defendiam o pão e algum dinheiro. Vi como era deprimente a situação de um exército vencido... Veio a ordem, e embarcamos; minha barcaça é a de nº 552; ao todo os passageiros seriam cerca de 150, oficiais, 8. Eu o único médico; o único a usar o braçal com a cruz vermelha. O capitão Hélio, que comandaria a tropa embarcada, uma figura simpática; moço ainda, simples e acessível. O Fábio, figura um tanto esquisita mas alegre e vivo, quase um hipertireoidêo; bom companheiro. O Nunes, rapaz moreno e de bigodes, cara já conhecida para mim – depois o soube, morava em Niterói. Mais outros rapazes, inclusive o Klass, alto e louro, bom companheiro, todos.”

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“Embarcamos e fomos ao compartimento onde escolhemos os beliches que eram como os dos ‘praças’ no Meigs; alojamo-nos os 8 oficiais e os outros beliches foram completados pelos soldados. Era o compartimento central. Havia mais um à prôa, outro na pôpa. Um dos oficiais de bordo foi com o capitão para o compartimento que era ao mesmo tempo refeitório e ‘living’ da oficialidade da barcaça (eram 5 ao todo). Eu e o Fabio lá ficamos também, pois cada um de nós entendia um pouco o inglês e podia ser que os três juntos... Mas a conversa terminou mesmo em francês, que o oficial americano falava um pouco e eu entendia melhor que o inglês. Foi assim combinado o ‘modus-vivendi’ a bordo. Serviram-nos ali um café com leite que a nossa fome tornou delicioso. Saímos depois para conhecer o pequeno barco; tudo pequeno, tudo acanhadíssimo, tudo absolutamente essencial. Tratei de escolher os lugares onde possivelmente passaria as horas que viriam, provavelmente longas, com a pouca prática que trazia do ‘G. Meigs’. Fomos dormir depois. O pequeno compartimento, pouco maior, talvez, que meu quarto em casa, alojava mais ou menos 50 homens com toda a sua complicada bagagem de sacos, camas-rolo, mochilas e outros atravancos. Os beliches, uns sobre os outros do chão ao teto, deixavam entre si somente estreita passagem que os apetrechos, pendurados, diminuíam ainda mais.”

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Continuo transcrevendo o meu diário de 1944:

“Uma pequena escada era a única que dava acesso à sala, a única sala do bote.

Estendi uma manta sobre a lona do beliche, dobrei a japona e fiz de travesseiro cobrindo-a com uma toalha seca. Apagaram-se as lâmpadas brancas e somente a luz vermelhada das lâmpadas de ‘blackout’ juntas ao solo, deixava entrever, vermelhos, os objetos. Dormi. No dia seguinte, 3ª-feira, acordei com o barulho das máquinas do bote, que deixara o porto há pouco, ao amanhecer. Subi, fiz a ‘toilette’ matinal no banheiro dos oficiais, um acanhado compartimento com duas pequenas pias com espelhos, um chuveiro e uma privada com cortina. Comi depressa o ‘breakfast’ louco para sair pro convés, queria ver Capri na saída. Saí mas não vi mais Capri – passáramos por ela enquanto dormimos. Entretanto, pouco a lastimar porque o tempo muito encoberto pouco deixava ver. Melhorava, então e vimos várias outras ilhas, todas bonitas, todas crivadas de castelos ou velhos edifícios muito a gosto da grã-finagem de todos os tempos que por aqui andavam. Vimos de perto e de longe ruínas feitas pelo tempo, daquilo que os romanos construíram há milênios, ruínas feitas pela guerra, daquilo que os italianos construíram em muitas épocas. Os romanos deviam ser mestres na escolha do local para seus palácios! Em todos nós nasceu ou cresceu, então, o desejo de um dia ver aquilo tudo de perto! E assim passaram-se as horas. Uma das ilhas, lembro-me bem, pareceu-me maravilhosa! Ichi era o seu nome. Em uma elevação que era a ponta mais avançada ao mar, havia no topo um castelo bem antigo mas conservado ainda, do qual as alamedas em curvas caprichosas vinham até a praia. Outras alamedas também belíssimas iam a outros palácios menores, na encosta da colina onde uma enseada determinando uma concavidade na elevação, dava ao local uma tonalidade de quietude e de repouso. Sempre à vista da costa avistávamos uma ou outra cidade, que não conseguíamos identificar. A pequena barcaça jogava cada vez mais e começavam a aparecer os primeiros enjoados. Um dos tenentes deixou de comparecer ao almoço que foi quente, para surpresa nossa (o jantar da véspera e o ‘breakfast’ foram em ração K, que terei muito tempo para descrever, pois segundo dizem, será nosso alimento de todos os dias, doravante).”

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“À medida que a tarde caminhava, poucos, cada vez menos, os que se mantinham de pé; e o pequeno barco subia e descia sobre as ondas ou sob as ondas, que por vezes varriam-lhe o convés lateral. Da plataforma de cima, enrolado em japona, olhava um tanto orgulhoso o enorme comboio, aquelas filas intermináveis de barcaças subindo e descendo, mas firmes pra frente sempre, rasgando as ondas, pouco diferia das cenas que empolgavam plateias do Cineac, das cenas da invasão, que de tão grandiosas pareciam quase impossíveis! Confesso que ficava um tanto orgulhoso por serem brasileiros os que ocupavam todas aquelas barcaças, as mesmas que levavam os invasores da Normandia naquela memorável madrugada, as mesmas que aportaram ao sul da França há pouco tempo atrás. Seguro às grades do convés de cima, eu resistia valentemente ao enjoo e via a proa do meu barco como a dos outros subir até fora d´água e descer até quase mergulhar-se nela. Apareceu um avião de caça, voando baixo e numa velocidade incrível em nossa direção, contornou todo o comboio, fez sobre ele manobras diversas e voltou, célere, sobre nós, quase gritei, então: sob suas asas, a nossa estrela! Aquela que tantas vezes eu vi no calabouço; era um brasileiro! Talvez o Lafaiette, quem sabe? E as três filas intermináveis de barcaças roncando e fazendo espuma, seguiam sempre! Anoitecia. Belíssimo poente, céu limpo! O sol rubro mergulhava no horizonte; as silhuetas dos barcos passavam diante dele, modelavam-se no clarão de incêndio que aparecia no poente.”

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Continuo transcrevendo o meu diário de 1944:

“Desci; poucos os que não estavam enjoados; muito poucos mesmo. Em meu

compartimento creio que era o único bom; talvez também o Flavio. O capitão, na cama acima da minha, procurava imobilizar-se. Sentia-se melhor assim. O balde, que ficava ao pé da escada, era às vezes disputado por dois ou três ao mesmo tempo; o oficial e o soldado confundiam-se na mesma função, vítimas das mesmas condições. E os beliches subiam e desciam, tombavam para todos os lados quase nos despejando; e o ronco do motor, continuando sempre. Às dez horas apagaram-se as luzes. Só as vermelhas acesas. Foi então que o ambiente tornou-se qualquer coisa de infernal!

Aquela luz, de baixo para cima avermelhando tudo e projetando para cima as

sombras dos sacos e mochilas pendurados, balançando; fazendo fantasmas infernais das caras tétricas dos enjoados, vomitando e cambaleando trôpegos, agarrandose aos beliches com todas as forças como agonizantes. Aquele cheiro de óleo e de vômito misturados, aquele ranger de ferros contínuo do motor, o barulho dos vagalhões estourando no casco e no fundo do barco, que achatava-se n´água às vezes e que eram também as paredes e o chão do nosso ambiente. A água que entrava pela escada a correr pelo assoalho de ferro, para um lado e para outro, ajudando a fazer com que não esquecêssemos de que ali tudo se movia! E os sacos balançando sempre vermelhos como tudo! E suas sombras no teto balançando também! E os enjoados chapinhando n´água rolando entre os beliches, vomitando sempre!”

Sendo o único médico a bordo, esta braçadeira ganhou importância total.

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Duas páginas do meu antigo diário.

Na invasão da Normandia, no DIA D, as barcaças fizeram várias viagens levando

É triste pensar que, nestes mesmos beliches, semanas antes, muitos rapazes

soldados para o continente e trazendo, na volta, feridos para a Inglaterra.

passaram as últimas horas de suas vidas encaminhando-se para a missão quase

impossível de desalojar nazistas bem instalados em sólidos “bunkers” no topo das altíssimas falésias daquela costa francesa.

53


Rubem Braga, que estava em outra barcaça (pertencia ao mesmo escalão que eu), diz

ter visto ao fim da tarde do primeiro dia uma tromba marinha. Em seu livro “Crônicas da Guerra na Itália”, diz, na página 38:

“Na tarde do primeiro dia, vimos um dos espetáculos mais assustadores e belos da natureza: as trombas marinhas. São colunas de água que se erguem entre as ondas e as nuvens. Saint-Exupéry descreveu isso em seu livro Terra dos Homens, no Capítulo 1 – ‘A Linha’; e Camões, no Canto V dos Luzíadas, a partir do verso 22. Não conheço outras descrições. É fantástico. A tropa já estava recolhida a seus alojamentos, lá embaixo.” 54

Eu, provavelmente ocupado com os enjoados, nos beliches, perdi este espetáculo.


A minha barcaça, a 552, aparece na foto em algum desembarque que não foi o meu. Eu desembarquei em Livorno e diretamente no cais. O fundo chato, necessário para chegar à praia, tornava as LCI extremamente instáveis. Segundo meu diário, minha barcaça era de 552 e, por casualidade, Patrícia, ao diagramar o álbum, encontrou esta foto na Internet.

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Capítulo 7 A import â ncia do “ front ” italiano em 1 9 4 4 - q u a n d o a F E B c h e g o u À I tá l i a

Naquela fase da guerra os alemães já estavam em desvantagem. Concentravam,

porém, fundadas esperanças nas armas secretas, armas novas às quais Hitler se

referia em seus raivosos discursos. Já haviam demonstrado que eram capazes de criar armas surpreendentes, de poder imprevisível. Já haviam inventado as terríveis bombas voadoras V1 e logo as enormes V2 autopropulsoras e dirigidas por

rádio, com as quais estavam destruindo Londres e outras grandes cidades ocupadas pelos aliados.

E, importante: historiadores contam que até o fim da guerra travava-se,

nos bastidores, “a maior corrida científica da história”: cientistas aliciados

pelos alemães buscavam febrilmente chegar à bomba atômica antes que os aliados o fizessem. E tinham, na verdade, boa chance de consegui-lo. Chegaram perto.

A Alemanha ainda se defendia vigorosamente e tinha na Itália um dos principais

suportes de fornecimento de víveres, armamentos e dos vários materiais de que seu exército e seu povo necessitavam para continuar resistindo1.

A Itália permanecia como um fornecedor cada vez mais importante de tudo

para o exército e o povo alemão, porque a produção da própria Alemanha, em seu

território, sofria enormemente com os bombardeios aliados cada vez mais intensos que partiam da Inglaterra.

A vitória dos aliados já era provável, mas havia ainda muitas dúvidas e

muito trabalho pela frente para chegar-se a ela. Manter ativas tantas frentes de batalha quanto possíveis era um imperativo óbvio para os aliados. Inclusive, novas invasões eram iniciadas – como a do sul da França.

1 Ver transcrição na página 58.

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Desenho do mĂ­ssil V1 em voo.

Fase do lançamento das V2.

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A Alemanha estava ferida, sim, mas não de morte.

Seus exércitos ainda conseguiam efetuar grandes manobras ofensivas como, por exemplo, a da virada do ano 1944 para 1945, quando quase conseguiu cercar as forças aliadas invasoras que em grande parte estavam em território dos Países Baixos, nas Ardenas, quando o porto de Antuérpia era a porta de entrada de todos os seus suprimentos. As batalhas na região foram longas e dramáticas, pois estava em jogo a sorte do grosso das forças aliadas que haviam invadido a Normandia. Os americanos e ingleses tiveram ali as perdas mais importantes de toda a guerra, segundo historiadores. (Nessa ocasião, início de janeiro, a FEB já estava há quatro meses lutando na Itália.) 1 Vou traduzir aqui parte de um relatório oficial americano colhido no pósguerra: “O valor do norte da Itália para o esforço de guerra alemão justificava o fato de eles manterem lá tantas divisões de primeira classe munidas de tão bom equipamento. O norte da Itália produzia grandes quantidades de produtos agrícolas e industriais, que eram diretamente enviados para a Alemanha. O país exportou para a Alemanha, anualmente, mais de 140.000 t de arroz, 160.000 t de frutas e 200.000 t de vinho. Muitos dos equipamentos das forças alemãs foram produzidos no Vale do Pó, munição e armamentos inclusive. Registros da indústria automobilística mostram que 6.400 caminhões foram produzidos nos primeiros cinco meses de 1944. Embora os bombardeios aliados tenham prejudicado em parte a produção, ela continuou em nível relativamente alto”. As seguintes informações capturadas dos alemães dão uma excelente ideia da contribuição italiana para eles: “Em maio de 1944 a produção de aço atingiu 139.000 t por mês, 40.000 das quais foram ‘Bessemer Steel’. Desde outubro de 1943 a maio de 1944, a indústria de armamento produziu um total de 321.000 t de ferro e aço que embarcaram para Alemanha. De janeiro a maio de 1944, 3.800 t de zinco foram enviadas, e também 9.000 t de alumínio, 80.000 garrafas com mercúrio, 3.500 t de enxofre e produtos têxteis, que constituíram 23% do total que a Alemanha necessitava. Até maio de 1944 a Itália supriu a Alemanha com 1.500.000 botas militares, 400.000 galochas de trabalho, 5.000.000 de pares de sapatos civis e 8.000.000 de ‘straw shoes’”.

58


Verão de 1944. Uma V2 já quase pronta nos subterrâneos da montanha de Kohnstein. Estas bombas atingiam velocidade supersônica e sua capacidade de destruição era em muito superior à das V1.

A construção de locais subterrâneos e a própria construção das bombas utilizou essencialmente mão de obra escrava recrutada no verão de 1943. Quatro mil prisioneiros franceses, russos e poloneses foram mandados para os túneis onde eram construídas. Um líder “maquis”, Jean Michel, escreveu após a guerra: “Os capos da SS nos empurravam a uma velocidade infernal, gritando e desferindo golpes contra nós, ameaçando-nos de execução. O barulho rasgava os nervos. O ritmo diário durava 15 horas”. Até a data de 27 de março de 1945 (e nessa altura, a FEB já participava da guerra na Itália há nove meses) caíram, somente em Londres, 1.054 bombas, matando 2.700 londrinos. Mais de 900 bombas foram disparadas contra Antuérpia. 59


Voltando ao início.

Quando a FEB chegou à Europa ainda havia muitos

problemas pela frente. Foi incumbida de função relevante no “front” italiano e cumpriu honrosamente as missões que lhe foram destinadas. As dificuldades que

ocorreram na fase inicial de adaptação a condições até então inéditas para os brasileiros foram superadas. A partir de sua participação no Plano Encore e depois até o fim da guerra, a atuação da FEB ofereceu aspectos extremamente honrosos. Os elogios, muitos, oriundos de comandantes militares aliados e até mesmo do Congresso Americano, coroam essa afirmativa.

Finda a guerra, o Brasil foi, inclusive, convidado a participar da ocupação

da Áustria ao lado da França, Inglaterra, América e Rússia, e a participar do

Conselho de Segurança da ONU. (O governo brasileiro de então, por razões de política interna, declinou do convite.)

Na fase final passou a ter importância primordial a ocupação física do

terreno. Assim sendo, a ideia aparentemente interessante de esperar a rendição

de Berlim – ainda longínqua e duvidosa - para que o território italiano caísse

automaticamente em mãos dos aliados, era perigosa sob todos os aspectos. A

hipótese chegou inclusive a ser examinada pelo Congresso Americano, mas logo abandonada.

60


Logo

após

o

desembarque

em

Livorno

fomos

levados

para

um

acampamento

em San Rossore, antigo campo de caça da família real

italiana,

próximo a Piza.

Revisitando San Rossore em 2014. 61


Usávamos os mesmos capacetes do exército americano. Um leve, de fibra, nas zonas em que não havia perigo. Quando no “front”, encaixava-se sobre este outro de aço, mais pesado. Só o capacete de fibra tinha a “carneira” de couro para ajustar-se à cabeça. O de aço não, porque se encaixava completamente sobre o de fibra.

O relógio que era distribuído a nós todos. Americanos e brasileiros.

62


As placas de identificação: uma com a corrente grande era colocada em volta do pescoço. A outra, menor, a critério do usuário. Obrigatórias o tempo todo. A FEB fazia parte do “15th Army” e o emblema era pregado no nosso ombro esquerdo; no direito era pregado o da cobra fumando. A bússola sempre no bolso, obrigatoriamente. 63


64


Ainda em San Rossore fotografei (mal). Antonino, Borring e Samuel.

65


Em San Rossore. Aproveitando o calor do radiador do “jeep” para aquecer o almoço. 66


Fomos apresentados ao nosso “menu”. Os três tipos de rações servidas às tropas: a “K”, que era levada para a linha de frente e a “C”, em latas, usada quando se podia aquecer.

“Só a expressão - ‘ração C’ - basta para tirar o apetite a qualquer homem honrado nesta guerra.

Tem muitas proteínas, muitas vitaminas, muitas virtudes alimentícias, morais e espirituais – é, enfim, uma dessas coisas que alegram o coração de qualquer nutrologista - mas é desanimadora.”

Rubem Braga 67


De Nápoles a Livorno nas barcaças LCI (viagem descrita no capítulo anterior, na transcrição de meu diário de bordo). De Livorno a Pisa, em seguida Vecchiano e logo Porretta Terme, Castel di Casio, etc. já nos Apeninos e beirando a Linha Gótica. (A linha transversal vermelha deste desenho é, esquematicamente, a Linha Gótica. A maioria das cidades e os montes mencionados foram tomados pelos brasileiros à custa de duros combates). O desenho preciso das linhas Gótica e Gengis Khan, pode ser visto no Capítulo 8, adiante.

68


Por ocasião de nosso desembarque, praticamente toda a zona em azul ainda estava em poder dos nazistas. Exceto a metade inferior da “bota” italiana, uma pequena parte da Normandia - já tomada pelos desembarques aliados - e uma faixa correspondente ao “front” russo, que já havia avançado sobre a zona azul.

69


Esquema reproduzido do livro “A FEB por seu Comandante”, do General Mascarenhas.

70


71


Ainda em San Rossore. Nada havia comeรงado. Estreando o capacete. Pose para foto.

72


Meu Posto de Triagem foi instalado pela primeira vez numa cidadezinha chamada Vecchiano, que havia sido libertada pelos americanos há várias semanas. Em viagem recente à Itália, consegui localizar em Vecchiano a casa em que, na guerra, eu e Nogueira de Sá ficamos acantonados antes das atividades começarem.

Consegui localizar também, na pequena praça da cidade, esta casa de janelas baixas onde moravam duas famílias italianas que nós frequentamos por alguns dias para aprendermos um pouco a língua.

73


Capítulo 8

As Linhas de Defesa Alemãs na Itália

Em 10 de julho de 1943, tropas norte-americanas e britânicas conseguiram desembarcar na Sicília. Quinze dias depois, em 25 de julho, Mussolini foi deposto por militares italianos de alta patente e instalou-se então em Roma um novo governo chefiado pelo Marechal Badoglio, que logo depois rompeu a aliança com os alemães e se rendeu aos aliados. Já prevendo a rendição, os alemães imediatamente tomaram o controle de Roma e de todo o território italiano. Menos a Sicília, que já estava ocupada pelos aliados. Os alemães tinham desde o início da guerra forte convicção de que os aliados iriam tentar invadir todo o território europeu através da Itália. A invasão da Sicília fortaleceu essa ideia. Passaram então a construir fortes linhas de defesa em todo o território italiano.

Aproveitando a zona montanhosa existente ao sul de Nápoles e principalmente as altas montanhas no centro e no norte, que constituem a Cordilheira dos Apeninos, os alemães instalaram várias linhas de defesa, das quais as principais atravessavam a Itália de um lado ao outro, do Adriático ao Mediterrâneo. Eram elas: ao sul de Nápoles, a LINHA GUSTAV, que tinha como bastião principal o célebre Monte Cassino. Mais ao norte, ao sul da Toscana, fizeram outra mais forte ainda, a LINHA GÓTICA. Tão importante era esta zona que logo adiante havia outra, de reforço, a LINHA GENGIS KHAN1. Além dessas, havia outras cadeias de montanhas também fortificadas, mas de menor importância. Fortificações construídas no topo de cada monte, casamatas distribuídas pelas costas montanhosas, centenas de milhares de minas espalhadas por todas as zonas vulneráveis, enfim, cada uma dessas linhas estava tecnicamente preparada para cumprir sua finalidade – impedir a travessia.

1 Há documentos alemães ou ingleses onde as extremidades orientais das LINHAS GÓTICA e

GENGIS KHAN são mencionadas como Linha Verde 1 e Linha Verde 2.

74


Revisitando a Linha Gótica, percorri trechos dos túneis que interligavam fortificações. Alguns eram até suficientemente confortáveis para permitir o manejo de munições.

75


Ocorreu o que os alemães previam: os aliados, em 1943, depois de invadirem a Sicília, puseram o pé na Calábria. Daí, de luta em luta, chegaram até a primeira linha, a GUSTAV, onde foram retidos. A transposição não foi nada fácil e no ponto mais importante das defesas locais alemãs, o Monte Cassino, os neozelandeses, americanos e outros aliados perderam milhares de vidas. Finalmente, depois de várias semanas, esta primeira barreira fortificada foi ultrapassada. Combates duros prosseguiram, houve uma invasão nas praias ao sul de Nápoles. A cidade foi conquistada. De Nápoles, os aliados subiram até Roma (que foi considerada cidade aberta) e em 1944 estavam quase à altura de Bolonha. Entre as forças aliadas estava, na ocasião, grande parte do Exército Francês de Libertação. Em 6 de junho, no célebre DIA D, houve o grande e heroico desembarque aliado nas praias do oeste da França, na Normandia. As baixas aliadas foram severíssimas, mas conseguiram firmar pé em alguns pontos.

Toda a estratégia dos aliados passou então a ter um sentido mais amplo: tudo deveria ser feito para que as forças que ali desembarcaram pudessem ter êxito, consolidar suas posições e avançar rumo ao norte. Novas frentes deveriam ser criadas para obrigar o inimigo a manter suas tropas dispersadas e não conseguir concentrá-las contra as que haviam desembarcado na Normandia e dirigiam-se para o território alemão. Uma nova invasão foi então organizada para desembarcar no sul da França. O Exército Francês de Libertação, que combatia no “front” italiano, foi deslocado para essa invasão. Quando os brasileiros entraram em ação, tocou à FEB substituir as divisões francesas na parte do “front” italiano que elas ocupavam.

Pela frente havia ainda muito chão. O primeiro obstáculo, agora, era enfrentar a LINHA GÓTICA, cuja zona mais difícil era, obviamente, a dos Apeninos, com inúmeras elevações importantes. Algumas com mais de 1.000 metros de altura. Os alemães que ocupavam aqueles montes há muito tempo tiveram tranquilidade para se instalarem firmemente nos cumes mais elevados, construindo fortificações importantes, ou utilizarem-se de construções já existentes, como igrejas, etc. Fizeram casamatas bem terminadas, trincheiras pelas encostas, tudo permitindo um domínio completo, de cima para baixo, das cidades, dos vales, das estradas, de toda a região. Plantaram centenas de milhares de minas nos vales e nas encostas dos montes, formando uma rede mortífera teoricamente inexpugnável. 76


Os alemães sabiam

que se essa linha fosse ultrapassada, os vales que ficavam ao norte, até a fronteira da França e da Áustria, seriam conquistados pelos aliados com relativa facilidade. E justamente era dos campos férteis do Vale do Pó e do importante parque industrial italiano que se encontrava ali, que partia para a Alemanha grande quantidade dos produtos indispensáveis ao exército e ao povo alemão em guerra. Era tão importante a defesa desta LINHA GÓTICA, que logo adiante havia outra, a LINHA GENGIS KHAN, que tinha como “joia da coroa” uma cidadezinha muito alta chamada Montese, de onde o panorama oferecia, para os artilheiros alemães, alvos perfeitos.

Em grande parte dessas elevações os brasileiros combateram sozinhos. Inclusive na parte leste da LINHA GÓTICA (Monte Castello, etc.) e em toda a LINHA GENGIS KHAN também (Montese, etc.). Em outros montes, por ser a sua topografia inatingível por forças militares regulares, os brasileiros tiveram preciosa ajuda de uma Divisão americana especializada em galgar encostas íngremes. Lutaram lado a lado com a “10th Mountain Division” em Serrasiccia, Capel Buso, Campiano, La Torraccia, Gorgolesco e Belvedere. (Serrasiccia tem 1.380 metros acima do nível do mar e os outros, pouco menos.) Daí por diante, a FEB ocupou-se sozinha de todos os outros objetivos, chegando até a fronteira norte e capturando duas divisões inimigas antes do término da guerra2.

2 Enquanto os brasileiros lutavam na metade esquerda do “front” que incluía os Apeninos e ia até o Mediterrâneo, na metade direita que ia até o Adriático lutavam os ingleses. (E também tropas que haviam escapado da Polônia e da Grécia antes da invasão alemã àqueles países e foram anexadas aos ingleses, constituindo o 8º Exército.) Um pouco antes da FEB ter sofrido sérios revezes em quatro investidas sobre o Monte Castello, os ingleses sofriam também pesadas baixas pela posse de Rimini, numa batalha que durou quatro dias.

77


Linha Gustav

Em traรงo serrilhado, a LINHA GUSTAV. Assinalado o Monte Cassino, palco de cruentas batalhas

onde

os

aliados

(americanos,

canadenses,

ingleses,

neozelandeses

e

poloneses) perderam milhares de vidas, e o total de baixas ascendeu a mais de 15 mil.

78


Linhas Gótica e Gengis Khan

Em desenho serrilhado vermelho estão: A LINHA GÓTICA, que atravessava a península de lado a lado e um pouco ao norte, e a LINHA GENGIS KHAN, menor. Várias outras linhas (“Rimini Line, Alpine Line, Adige Line, Pó Line”, etc.) menos importantes complementavam o sistema de defesa.

79


Para construção das várias linhas de defesa os alemães utilizaram mão de obra italiana. (Por haverem abandonado o pacto de aliança com os nazistas, os alemães consideravam-los traidores e tratavam-los como tal.)

80


Espessos muros de cimento bloqueavam a passagem de forças motorizadas.

Túneis interligando fortificações eram frequentes em vários pontos das linhas de defesa alemãs.

81


Os pontos negros nesta foto mostram os principais locais defensivos alemães nos topos dos montes. Os civis italianos que formavam grupos de franco-atiradores (“partigiani”) ajudavam a informar a localização e a importância de cada um deles.

82


A topografia da região dos Apeninos, parte principal das operações da FEB é, como se vê, bastante acidentada.

Alguns trechos de muros, por estarem em locais de fácil acesso, foram transformados hoje em atração turística. 83


Cรกpsulas de vรกrios calibres utilizadas por aliados ou nazistas, apanhadas na LINHA Gร TICA e transformadas em instrumento musical de brincadeira. Foto feita no Museu. 84


Fortificações localizadas

sólidas

e

protegiam

bem os

atiradores alemães e ofereciam a eles ótima visão, principalmente para sua artilharia.

Aparelhagem alemã de comunicação. Foto feita no Museu. 85


A solidez das casamatas permitiu que resistissem por dĂŠcadas e pudessem ser vistas atĂŠ hoje, como nas fotos. 86


AtĂŠ hoje, trechos remanescentes dos espessos muros ainda sĂŁo objetos de visitas turĂ­sticas.

87


Capítulo 9

A Itália ocupada e dominada pelos nazistas

Resumindo o que já descrevi em capítulo anterior: o posicionamento da

Itália na guerra foi problemático. Mussolini comandava, antes da guerra, uma fração majoritária do povo italiano, mas sua entrada entusiástica ao

lado de Hitler - o que logicamente começou a acarretar despesas fortes,

sacrifícios, mortes no “front”, etc. - pouco a pouco foi fazendo diminuir o apoio a ele e ao fascismo, sua doutrina política. As derrotas na África e outros revezes aceleraram o seu desprestígio.

Em 10 de julho

de 1943 os aliados desembarcaram na Sicília e

15 dias depois, em 25 de julho, já estando a maioria do povo e até mesmo os militares mais graduados contra ele, Mussolini foi finalmente deposto. (Conta-se que na última reunião do alto comando italiano, estando presente

o rei Vittorio Emanuele, Mussolini pediu o seu apoio e teve como resposta: “Caro Benito, mesmo que eu quisesse dar-te meu apoio - e não quero - isto de nada valeria porque no momento você é o homem mais odiado na Itália”). O Marechal Grazziani assumiu o poder, rompeu o acordo com os nazistas e

agregou-se às forças aliadas. Mussolini foi então preso e levado para uma fortaleza próximo a Roma.

Os fatos que se sucederam

foram os seguintes: os alemães

conseguiram, numa proeza acrobática de seus paraquedistas, raptar Mussolini, retirando-o da fortaleza e levando-o para o norte. (Roma e o sul já estavam libertados pelas forças aliadas.) 88


Um governo “fantoche” fascista foi implantado numa pequena cidade às margens do lago de Garda e Mussolini foi reposto como chefe de uma “República de Saló”. Dali, de Saló, fingia governar a parte norte da Itália, ainda nazifascista. Obviamente, quem mandava e desmandava em tudo eram os alemães. Hitler acreditava à época que a principal invasão do território europeu seria feita através da península italiana. Por isso havia construído as várias linhas de defesa que eu menciono em capítulo anterior, e mantinha ali muitas Divisões de tropas experientes.

Além da ocupação militar, ocorrida imediatamente após a queda de Mussolini, os alemães continuaram mantendo uma intensa campanha publicitária que buscava convencer o povo italiano da superioridade das forças alemãs na guerra, da grandeza dos ideais nazistas, etc. Por outro lado, se alguém demonstrasse oposição ou desagrado com a presença deles, as tropas SS1 incumbiam-se de mostrar seu braço forte. Muita gente foi martirizada. Como o exército regular italiano já não cumpria ordens alemãs, os nazistas divulgavam ultimatos para que os oficiais italianos obrigassem seus subalternos a abandonarem armas e se entregarem. Caso contrário, pena de morte.

Havia ordem de Hitler para que fossem fuzilados dez civis para cada alemão morto pelos franco-atiradores, os “partigiani”. Como a maioria dos homens, de uma forma ou de outra, estava envolvida na guerra, eram mulheres e crianças as vítimas frequentes desses fuzilamentos. (Na França ocorreu o mesmo. Muitos civis franceses foram fuzilados para vingar soldados alemães mortos pelos “maquis” - franco-atiradores franceses.) Fotos, cartazes, manchetes de imprensa e outros registros dessa época mostram a situação dramática e algumas vezes humilhante a que o povo italiano foi submetido pelos nazistas. Entre os muitos massacres havidos, sobre dois deles tive notícias próximas, pois ocorreram pouco tempo antes da minha chegada aos locais: o de Marzabotto, um dos mais sangrentos, e depois o do monte Ronchidos. Neste monte estive logo após a tomada pela 10a Divisão de Montanha Americana, que lutou acompanhada pela Infantaria Brasileira. Há registros escritos, inclusive em português, que fotografei e constam de páginas adiante. 1

Ver transcrição na página 95.

89


Durante

o

inundada

nazifascismo, pela

a

propaganda

Itália que

era

tentava

convencer os italianos da superioridade militar

e

política

da

Alemanha

e

das

“vantagens“ que teriam na aliança com eles. 90


91


92


Tradução:

Ultimato! a todos os Oficiais, Suboficiais e soldados italianos. Pela última vez convidamos a renderem-se às Forças Armadas Alemãs. Depois do dia 12 de outubro de 1943, todos os Comandantes e Oficiais que não houverem seguido a ordem de renderemse e entregarem as armas serão fuzilados logo que feitos prisioneiros. O soldado que se render será imediatamente transportado para outro lugar. Todos os outros serão atacados pelas forças armadas alemãs e destruídos.

O Comando Alemão.

93


Quando chegamos na Itรกlia, alguns exemplares de jornais velhos ainda demonstravam a confianรงa que os nazifascistas tinham na vitรณria. 94


1 As forças da SS ”Strobtrupp” (tropa de choque) “Schutzstaffel”, (escudo de proteção) eram constituídas principalmente por jovens criados dentro dos princípios nazistas, altamente fiéis a Hitler, que usavam uniforme negro com vários emblemas inscritos SS. Tinham a missão de cumprir ao pé da letra as ordens do comando nazista, quaisquer que fossem. Até de cometer atos de extrema crueldade, como fuzilamento de civis em represália a a ç õ e s d e sabotagens, etc. De certo modo, espionavam também a fidelidade dos militares do exército regular, a Wehrmacht.

95


Penso que esta fotografia feita por mim, em março de 1945, seja um registro importante do sofrimento do povo italiano durante a guerra. Esta família de “sfollati” devia estar regressando ao local onde vivia, em Ronchidos. Havia se afastado dali e com isto se salvado do massacre feito pelos SS, que mataram 68 mulheres e crianças e depois queimaram suas casas. Quando

fotografei

eu

ainda

não

tinha

conhecimento

daquela

tragédia.

fotografei. Não falei com eles. Não era raro encontrar-se vagando, pelas pequeninas estradas do interior, famílias inteiras que haviam sido forçadas a abandonar suas casas, destruídas ou semidestruídas, por terem sido envolvidas no fogo cruzado dos combates. Levavam sempre uma vaca, uma ou algumas cabras, cujo leite alimentava as crianças. Quando tinham muares, também os levavam. Cobriam-se com os agasalhos e cobertores que tivessem, para protegerem-se do frio. Raramente homens válidos estavam entre eles, pois em sua maioria haviam se tornado “partigiani”.

96


97


Em novembro de 1943 os “cabeças” das três principais potências envolvidas no

conflito, Franklin Roosevelt, Winston Churchill e Josef Stalin reuniram-se em Teerã numa conferência de cúpula para acertar planos da ação militar.

A espionagem alemã conseguiu informar-se, e Hitler pessoalmente aprovou um plano

para matar ou capturar os três líderes. Foi escolhido para comandar a importante e complicada operação um jovem oficial da SS, Otto Skorzeny, já famoso por ter pouco tempo

antes conseguido retirar Mussolini da prisão onde se encontrava ao norte de Roma e leválo para junto dos alemães, seus aliados.

98


99


ESPIONAGEM, CONTRAESPIONAGEM, etc. Otto Skorzeny A cicatriz na face era sempre exibida orgulhosamente por alguns oficiais alemães, como prova de valentia por suposta participação em duelo. Otto Skorzeny, como dito sob outras fotos, foi quem planejou e comandou o sequestro de Mussolini que, da sua prisãocastelo próxima a Roma, foi levado para o lago de Garda. O êxito do “rapto” de Mussolini levou Skorzeny a mais tarde planejar outras aventuras ainda mais audaciosas. Por exemplo - raptar ou matar os três grandes líderes aliados, Churchill, Roosevelt e Stalin por ocasião de uma conferência em que estariam juntos em Teerã. Este plano fracassou porque o espião soviético G. Vartanian (foto ao lado), seguindo soldados alemães em Teerã, acabou por descobrir suas intenções.

Elyesa Bazna Usava o codinome de Cicero, foi também um espião famoso a serviço dos alemães. Colaborou com Otto Skorzeny passando informações relativas à Conferência de Teerã. Espionava o embaixador inglês em Ancara, em cuja residência havia se empregado como “valet”. Em muitas outras ocasiões o seu trabalho foi útil à Wermacht. Era alemão. Figura complexa, consta ter sido a partir de certo momento espião duplo e ter influído com suas informações sobre operações aéreas feitas pela RAF e sobre despistagens acerca do local previsto para desembarque dos aliados em território continental europeu. Há histórias verídicas e lendas sobre sua vida de espião. 100


G. Vartanian

O lendário espião soviético Gevork

Vartanian foi quem ajudou a desmantelar o plano alemão para matar os líderes Aliados em

Teerã

durante

a

II

Guerra

Morreu em Moscou aos 87 anos.

Mundial.

Trabalhando em Teerã durante a II

Guerra Mundial, ele seguiu as pistas de

soldados alemães que se preparavam para atacar o local da reunião de cúpula onde estavam Stalin, Roosevelt e Churchill.

Dusko Popov O sérvio Dusko Popov, agente duplo, iludiu os alemães sobre o dia do desembarque na Normandia. Gostava de carros esportivos e de vida luxuosa. Viveu alguns anos em Lisboa, no hotel Cassino Estoril, onde também se hospedava Ian Fleming, escritor inglês que mais tarde iria criar o célebre James Bond, dos filmes OO7. Bem depois da guerra, perguntado por um jornalista se era verdade que 007 havia sido inspirado em sua vida, respondeu com ironia: “Um cara como James Bond não duraria 15 dias no meu lugar”. Popov obteve a nacionalidade britânica e foi condecorado com a medalha da Ordem do Império Britânico. 101


A tragédia de Marzabotto

Marzabotto fica próximo a Farné. Foi o local de um massacre horrendo cometido

Relatórios demonstram que entre 1943 e 1945 milhares de italianos morreram

pelos nazistas da SS em represália a alguma ação dos “partigiani”.

em massacres comandados pela Wehrmacht e a SS nazista. O relatório final de uma comissão de historiadores italianos e alemães, reunida em Roma, mostrou fatos

dramáticos. Documentados estão 5.000 casos de saques, estupros e assassinatos pelas tropas nazistas durante a II Guerra Mundial.

Calcula-se que, somente no massacre de Marzabotto, 1.830 pessoas foram

O italiano Elide Ruggeri, que sobreviveu milagrosamente ao trágico 29 de

mortas, quase todas civis, incluindo idosos, mulheres e crianças.

setembro de 1944 em Marzabotto, recorda um detalhe do que viu e passou: “Eu

estava lá e veio um da SS, que matou uma menina. Ela estava com a cabeça esmagada e gemia. Ele deu um golpe nela e eu pensei: o próximo vai ser para mim. Ele me fixou com o olhar, e aí disse: ‘niente Kaputt’. Assim, ele deu a entender que não ia me matar”.

De aliados a inimigos

O professor de história contemporânea e vice-presidente da Comissão de

Historiadores ítalo-alemães, Wolfang Schieder, escreve: “Quando a Itália anulou

a aliança com a Alemanha nazista, os antigos aliados se tornaram inimigos. De um dia para o outro, as tropas alemãs no país se tornaram forças de ocupação e deixaram um rastro de destruição durante sua retirada em direção ao norte. O número de unidades era reduzido, mas a crueldade por elas praticada não teve limites”.

102


Comando nazista local, na ĂŠpoca (Foto colhida na internet).

103


O fuzilamento de civis era frequente. Quase sempre por suspeita de colaboração com os aliados. Os “partigiani”, quando aprisionados, eram mortos imediatamente com um tiro na nuca.

Um oficial alemão arregimenta soldados italianos. (Fotos colhidas da internet.) 104


Mais uma visĂŁo de como eram deixadas as aldeias ou cidades que tinham a infelicidade de ser palco de combates duros. Isto ocorria sempre que os alemĂŁes achavam que deviam defendĂŞ-las a todo custo, por serem estrategicamente importantes.

105


Capítulo 10

Mussolini o “Duce”, uma das figuras que marcaram o século XX

Há farta literatura sobre a vida de

Benito Mussolini que, como Hitler, foi das figuras mais marcantes do Séc. XX.

Inúmeros biógrafos, historiadores, sociólogos, economistas, cada um olhando

do seu ponto de vista, dedicaram-se a descrever e opinar sobre o político Mussolini que se tornou ditador, fundou

uma doutrina – o Fascismo - e competia com Hitler em megalomania e culto à sua própria personalidade.

Não é meu propósito aqui descrever, muito menos julgar, fatos relativos

ao seu governo. Nem eu saberia fazêlo. Porém, como em várias épocas da

minha vida andei por perto de eventos e coisas que se relacionam a ele, vou abrir aqui, juntando fotos, relatos dessas ocasiões.

Quando chegamos à Itália ,

no início de outubro de 1944, Mussolini já não estava mais em Roma nem era mais o grande “Duce” (condutor) do povo italiano. Desde o dia 25 de julho de 1943 ele já havia sido deposto pelos generais do próprio exército italiano, que no mesmo ato romperam a aliança com os nazistas alemães e assumiram o governo da parte da Itália já liberada pelos aliados (de Roma para o sul). Mussolini, então, foi levado preso para um castelo próximo a Roma do qual, à época em que chegamos à Itália, já havia sido raptado por um “comando” de paraquedistas alemães e levado para a região norte, que ainda estava sob domínio alemão. Mais adiante (página 108) escrevo sobre esse “rapto”, fato espetacular, de grande ressonância não só política como publicitária para Adolf Hitler. (Proponho uma leitura das legendas das várias fotos concernentes ao assunto.)

106


Uma ousada técnica de culto à personalidade foi intensamente posta em prática. Alguns anos mais tarde, copiada e aperfeiçoada por Adolf Hitler.

107


Mussolini nos dias de glória

É interessante notar as datas destas fotos, todas elas antecederam de muito o Nazismo (o Fascismo foi fundado em 1922). Mussolini, na verdade, precedeu e inspirou Hitler em muitas ideias, técnicas de autopromoção, etc. As linhas teóricas do Fascismo de Mussolini foram, com variações, imitadas pelo Nazismo de Hitler. Havia o “Duce” – e houve depois o “Füerer”. Havia a juventude fascista, os camisas negras. Anos depois, a juventude nazista e os camisas pardas. Os painéis gigantescos e as multidões da Piazza Venezia precederam aos que alguns anos mais tarde encheriam as praças de Berlim, de Munique, etc.

108


109


Cenas do “rapto” e da libertação de Mussolini pelos paraquedistas alemães, chefiados por Skorzeny.

110


Quando deposto em 25 de julho de 1943, Mussolini foi levado para uma “prisão-castelo” próxima a Roma, numa região montanhosa. Os nazistas organizaram então um “comando de paraquedistas” chefiado por um jovem oficial da SS, Otto Skorzeny, que numa proeza

acrobática

raptá-lo, levando-o

conseguiu

libertando-o para

o

norte

e da

Itália, para o lago de Garda, onde passou a residir na Villa Feltrinelli, à margem oeste do lago,

e

comandar

a

Socialista de Saló.

República

A operação foi determinada por Hitler, que o aguardava à chegada.

111


A parte do exército regular italiano

que

estava

no

norte da Itália continuou sob

a

República

de

Saló.

Piazza Duomo, em Milão, quando ainda era frequentada por tanques nazistas. 112


Chamavam-se “governos fantoches” os que viviam sob a tutela das forças alemãs,

como o de Mussolini na República de Saló. Ele, pessoalmente, e alguns poucos

íntimos, residiam na luxuosíssima Villa Feltrinelli, também à margem do mesmo lago, em Gargnano. A vila fora cedida a ele pelo proprietário, um dos mais ricos industriais italianos, cuja fortuna foi feita na época de ouro do fascismo. Recentemente foi restaurada e transformada em um pequeno hotel de luxo, cujos aposentos, reconstituídos como eram, podem receber hóspedes.

Detalhe atual da Villa Feltrinelli restaurada.

113


Saló, edifício Galeria em frente ao Lago Garda. “A guerra continua contra a Grã-Bretanha e continuará até a vitória”

“Camisas negras” ainda fiéis ao “Duce”. 114

Bandeira da República de Saló.


República de Saló, o “Duce” passa em revista sua guarda pessoal.

115


Fotos da visita do Marechal Rommel a Mussolini na Villa Fetrinelli.

116


VISITA DO MARECHAL ROMMEL À VILLA FELTRINELLI O Marechal Rommel, o mais famoso estrategista alemão durante a guerra, era encarregado por Hitler de comandar as missões mais importantes. Era um militar ortodoxo, como muitos outros da Wehrmacht. Não era um nazista fanático, como alguns outros também não o foram. Por ocasião da invasão aliada na Normandia, o célebre Dia D, o comando de todas as tropas alemãs que defendiam a costa estava entregue a ele. Na noite de 5 de julho aconteceu um temporal fortíssimo, fazendo supor que qualquer operação de invasão seria impossível. Rommel aproveitou para dar uma escapada rápida em casa porque era aniversário de sua mulher. Surpreendentemente, a invasão ocorreu mesmo com o temporal e ele não estava presente no teatro de operações. Hitler quis jogar sobre ele a culpa pelo êxito do desembarque aliado. Além disto, Hitler o considerou um dos mentores do atentado contra ele ocorrido em 20 de julho de 1944. Rommel foi então “aconselhado” a suicidarse, apesar de ser o militar de maior prestígio e de maior competência que os alemães dispunham.

117


Fotos da Villa Feltrinelli, residência de Mussolini entre setembro de 1943 a abril de 1945, enquanto presidia “la Repubblica Sociale Italiana”.

118


Mussolini na Villa Feltrinelli – 1944. No ocaso do fascismo e do seu idealizador, o grande “Duce”, eu andava por ali, bem perto de tudo. Lembro que eu estava em Milão, na Galleria Vittorio Emanuele, quando em uma banca de jornal chegavam fotos recentes do casal morto e seus corpos pendurados de cabeça para baixo num posto de gasolina próximo. Grupos de italianos disputavam lugar para vêlas.

As últimas horas da vida de Mussolini

já foram narradas de diversas maneiras, nem sempre coincidentes. Interesses políticos empurram os autores para fora da verdade.

Mas podemos resumir os fatos da seguinte forma:

Mussolini, Clara Petacci (foto) e

mais um grupo de cerca de 50 fascistas de alto escalão haviam se misturado a militares

alemães em viaturas transporte de tropas, e num comboio numeroso dirigiam-se pela

margem do lago de Como para a fronteira da Suíça, numa tentativa de pedirem abrigo, quando foram surpreendidos e obrigados a parar por um grupo de “partigiani”.

119


Nessa altura dos acontecimentos, estando as forças alemãs praticamente em fuga, não interessava aos “partigiani” dar combate a elas. Teriam, provavelmente, baixas de seu próprio lado, já então desnecessárias. Havia, um pouco mais adiante, uma ponte e, para ganhar tempo e consultar superiores, disseram ao oficial “tedesco”, capitão Fallemayer, que a ponte estava minada. Estando a coluna estacionada, descobriram que entre os ocupantes havia italianos e reconheceram entre eles um fascista. Negociaram, então, com o alemão, que se despejasse todos os fascistas, seriam liberados para prosseguir, e isto foi feito. Entre os italianos, surpreenderam-se com a presença do próprio Benito Mussolini. Houve então uma intensa e confusa troca de mensagens entre “partigiani” e os respectivos comandantes, alguns em Milão. O grande grupo de fascistas foi então conduzido para Dongo, que era o maior “paese” das proximidades. As ordens que provinham dos vários chefes eram muitas e nem sempre harmônicas. O fato é que dez chefões do fascismo foram fuzilados quase que de imediato e outros 30 um pouco mais tarde. Quanto a Mussolini e Clara Petacci, acharam que deviam julgá-los num tribunal improvisado em um salão de Dongo. Cumprida esta formalidade, o casal passou algumas horas da noite num quartel também em Dongo, e depois, temendo intervenção de alguém no sentido de libertá-los, os “partigiani” resolveram escondê-los na casa de amigos de um deles, em uma aldeiazinha próxima, chamada Mezzegra, a “Casa De Maria”. Desde a manhã do dia 27 de abril, quando foram descobertos em meio à tropa “tedesca”, passando pelo julgamento em Dongo e sendo levados a essa Casa De Maria, o casal aparentava, segundo quem os viu, expressões de aborrecimento, de abandono, mas não de medo. Na manhã do dia 28, após haverem passado parte da noite em um quarto na Casa De Maria, sempre guardados por “partigiani”, três deles – “Vallerio”, “Guido” e “Gatti” – fizeram que entrassem em um carro com intenção inicial de levá-los para Milão. Porém, no caminho, resolveram fazê-los descer, encostarem-se ao lado do portão de uma casa, e ali mesmo foram fuzilados. (Consta que Vallerio já tinha ordens expressas dos superiores para isto.) 120


Sempre houve controvérsias sobre quem, dentre os três “partigiani” presentes ao fuzilamento, puxou o gatilho da metralhadora. O livro “La Veritá”, cujo autor, amigo de Michele Moretti codinominado “Gatti Pietro”, um dos três “partigiani” que participaram da cena, narra a história cujo resumo é o seguinte: Estando o casal junto ao muro, um dos três “partigiani”, Vallerio, abraça sua metralhadora e grita: “in nome Del popolo italiano!” e puxa o gatilho. Mas a metralhadora não dispara. Vallerio pede rapidamente o revólver de Guido. Desta vez é o revólver que não dispara.

junto

O casal continuava inerte, ao

Vallerio estava

muro,

chama

logo

metralhadora.

aterrorizado.

Moretti,

atrás, Ele

e

a

pede

que

sua

entrega

rapidamente. Tudo se passou em um

espaço de segundos. Nesse momento Clara Petacci, que estava ao lado

esquerdo de Mussolini, abraçou-se

a ele e gritou: “Non deve morire!”. Vallerio responde: “Vuoi morire

prima tu?”. E imediatamente uma rajada

de

metralhadora

jogou

o casal por terra. Petacci, já

morta, e Mussolini, não. Vallerio pede

a

pistola

de

Moretti

e

dispara um tiro de misericórdia.

Após

fuzilarem

Mussolini

e Clara Petacci em Mezzegra os “partigiani”

levaram

os

corpos

para um subúrbio de Milão, onde foram pendurados de cabeça para baixo. 121


Nas últimas décadas, por várias vezes passei temporadas na região. No Lago de Como, em Cernobio, na Villa D´Este, por exemplo. Dali, por mais de uma vez visitei o vilarejo Mezzegra levando outras pessoas para ver o portão de ferro, exatamente onde os “partigiani” mataram Mussolini e Petacci. Eu tenho quase certeza de que à primeira vez que passei por lá ainda não havia a cruz, o portão era vazado e havia no chão uma indicação que marcava o ponto do fuzilamento um pouco mais próximo ao portão, isto é, justamente em frente à coluna. Estive várias vezes em Sirmione, no extremo sul do Lago de Garda. É uma cidadezinha interessante e agradável. Próximo a ela, à margem oeste do Lago, fica Saló que foi, por algum tempo, a capital da República Socialista Italiana (facista), dirigida por Mussolini e protegida pelo exército alemão.

122


Em setembro de 2014 eu, Carlos e Ana Lucia passamos alguns dias hospedados ali. Além de buscarmos o sítio pelo seu conforto e pela magnífica beleza dos montes que o circundam, a mim a

sempre ideia

vinha

de

que

70

anos

antes

eu

andava

pelas

v i z i n h a n ç a s uniformizado,

com

25

anos

de

idade.

E

que

Mussolini,

uma das personagens mais da

importantes

história,

morado mesmo

havia

sob

aquele

teto,

vivido

entre aquelas mesmas paredes,

dormido

ali.

melhor,

(Ou

tendo

ali

seus

últimos pesadelos.)

...Além de buscarmos o sítio pelo seu conforto e pela magnífica beleza dos montes que o circundam...” -

setembro

de

2014.

123


Ana Lucia, minha nora, setembro de 2014.

124


Aspectos da Villa Feltrinelli restaurada.

125


Foto do primeiro encontro entre Mussolini e Hitler, em maio de 1938.

126


Foto do último encontro entre Mussolini e Hitler, julho de 1944.

Durante o tempo que se passou entre estas duas fotos, milhões de jovens

perderam a vida em combates, milhões de pessoas foram assassinadas, milhares

de cidades foram destruídas, tudo obra das tenebrosas ideias de expansionismo e domínio universal destes dois homens.

127


128


“A

Repubblica

Italiana por

a

Saló”,

Mussolini

pelos

Socciale

e

“protegida”

alemães,

grande

número

presidida

ocupava de

um

prédios

imponentes, que eram hotéis à beira do lago. Em tempos de paz, a região belíssima estava entre as preferidas da elite e

da

realeza

italiana

para

residência ou “vilegiatura”. Mussolini guerra, Villa

também,

antes

da

costumava

visitar

a

Feltrinelli,

que

era

ali perto. Em Saló, que era bem próxima a Gardone, ficavam os órgãos da administração civil e militar. Vale uma leitura do quadro ao lado. Muitos daqueles continuam

em

hotéis

atividade

até

hoje, alguns ostentando cinco estrelas.

129


Houve quatro tentativas frustradas, a primeira em outubro e a Ăşltima jĂĄ no inverno.

130


Capítulo 11

Reveses da FEB após chegada

Como não é minha intenção descrever passo a passo o desenrolar das ações

militares da FEB, inclusive porque nem saberia fazê-lo, direi suscintamente

o seguinte: após a breve estadia em San Rossore, por cerca de três semanas, onde as tropas receberam novos uniformes, novo material bélico e treinamento

para utilizá-lo, houve, então, o deslocamento para a zona montanhosa onde deveriam se desenrolar as ações militares. Era outubro, ainda um restinho de

outono dava ao clima certa amenidade. Mas já se sabia que o inverno seria um dos mais frios dos últimos 50 anos.

O plano estratégico vigente tinha como objetivo principal a tomada de

Bologna. Para isto era necessário desalojar os alemães do topo das montanhas

vizinhas, de onde dominavam a região, incluindo as estradas, indispensáveis a que se atingisse o objetivo. Os planos incluíam a participação de todas as

forças presentes na Itália: americanas, brasileiras, britânicas, etc., numa manobra de assalto sobre a LINHA GÓTICA.

Finalmente aconteceu o pior: todas as tentativas, não só de brasileiros

como dos outros, frustraram-se. Houve reveses sérios, com muitas baixas em

todas as linhas. Inclusive as nossas. Sobre o Monte Castello, quatro assaltos e quatro recuos.

A neve e o frio intenso obrigaram a que em dezembro e janeiro a guerra

se limitasse a canhoneios mais ou menos intensos de lado a lado e incursões de patrulhas, muitas vezes em campos minados cobertos pela neve. Os soldados tinham que usar, em certas ocasiões, uniformes brancos.

131


O Quartel-General brasileiro instalara-se em uma cidadezinha ao pé

das primeiras montanhas, chamada Porretta Terme. O local dispunha de vários hotéis, o que teoricamente facilitaria os alojamentos, pois estavam todos vazios. Porém, sendo visível do alto de montanhas vizinhas, tornou-se alvo fácil da artilharia alemã que, sabendo que ali estava o QG brasileiro, bombardeava Porretta Terme praticamente dia e noite.

Eu, ao sair de San Rossore, depois de uma estada em Vecchiano, que era

tranquila, fui enviado para Porretta.

Felizmente para mim, dias depois o Batalhão de Saúde teve que se

dividir e parte dele, eu inclusive, foi deslocado para uns poucos quilômetros a oeste, para outro vilarejo chamado Castel di Casio. Ali havia poucos

bombardeios. Mesmo assim, uma grande bala de canhão destelhou parte do quarto

e da casa onde eu estava. Foi o único susto que passei. O Borring, que ficou em Porretta, passou por muitos sobressaltos mas não foi ferido.

em

fevereiro,

modificadas

as

circunstâncias

(ver

PLANO

ENCORE,

Capítulo 15), começou a FEB a mostrar sua verdadeira capacidade de combate. Monte Castello foi finalmente conquistado e vários outros objetivos foram transpostos, alguns com mais, outros com menos dificuldades e baixas.

Na história da FEB, o Monte Castello ficou gravado com tinta de sangue.

As perdas foram grandes. Éramos recém-chegados. Desde o soldado até o general

comandante passaram por uma fase de consternação e tomada de consciência de que a campanha seria pela frente cruenta e dolorosa.

Outros combates vieram depois. Houve perdas, muitas também. Mas aí a

tropa veterana já encarava os fatos de outra forma.

132


O Monte Castello sob a neve.

Os alemães cortavam ou queimavam a vegetação das encostas para melhorar a visibilidade para sua artilharia. Inseriam também milhares de minas à flor da terra. Inúmeras baixas foram causadas por essas minas. 133


Capítulo 12

O antigo Albergo Porretta, fotografado por mim em 1944, hoje reformado e denominado Hotel Helvetia. Esta foto causou surpresa quando mostrada ao proprietário da Trattoria Toscana, em junho de 2014. Após discutir comigo dizendo que jamais havia existido um tal Albergo Porretta, rendeu-se a este comprovante (ler texto na página 136).

134


ALBERGO PORRETTA EM 1944 E HOTEL HELVETIA EM 2014

Em junho de 2014 fiz uma viagem à região onde se desenrolaram os combates da FEB. Resolvi

iniciá-la por Porretta Terme. Além de ser geograficamente o local ideal para dali visitar a parte da zona dos Apeninos que nos tocou, Porretta é muito aprazível e, apesar de pequena, dispõe de bons hotéis. Ocorreram fatos interessantes.

Hospedei-me no Hotel Helvetia. Fachada antiga, ampla e bonita, na praça principal. O

hotel está com ótimo aspecto externo e, além de aposentos confortáveis, tem um excelente departamento de termas.

135


No primeiro dia, na hora do almoço perguntamos por um bom restaurante nas

Durante a guerra, em 1944, na minha permanência lá, fiz várias fotografias de

proximidades. Indicaram-nos: Trattoria Toscana, a 100 metros. Fomos almoçar lá.

prédios semidestruídos. Em uma delas podia-se ler no topo da fachada: “Albergo Porretta”.

Com a intenção de revê-lo, perguntei ao dono do restaurante, um italiano

grande e falastrão que circulava entre as mesas, se ele podia indicar-nos onde era aquele albergo. Ele disse que não havia por lá nenhum Albergo Porretta. Como insisti

dizendo que estava certo de que havia, ele sorriu e falou exaltado que “tinha 75

anos, nascido e vivido ali e podia afirmar que com o nome de Porretta não havia nenhum albergo na cidade nem na região”. Eu contestei “eu estive aqui em 1944 e eu

mesmo fiz e tenho fotografia de um Albergo Porretta. Posso trazer para o senhor ver quando voltar para jantar”. Ele respondeu zombeteiro: “Lei, stesso? Ma que... !”.

Eu não disse nada, pedi a Patrícia que me mandasse de São Paulo por fax para

o hotel a fotografia que eu tinha, já ampliada, e no jantar levei-a e mostrei a ele. De início ficou surpreso, chamou o filho – que trabalhava com ele – apareceram logo duas outras pessoas e todos confirmaram: “realmente aqui está...!”.

O filho saiu com a fotografia para mostrar ao caixa e aos outros do escritório

deles. A fotografia fazia um sucesso enorme. Quando eu disse que iria trazer uma cópia para eles, o filho reapareceu já com uma cópia na mão, e bradava: “não precisa, já fiz!”.

Foi fácil identificar: o antigo Albergo Porretta não era senão o próprio Hotel

Helvetia onde estávamos hospedados. Uma pequena igreja ao lado e um monumento visível na foto não deixavam dúvidas. O italiano falastrão me concedeu a vitória: “Si! Albergo Porretta! Lei me desmoraliza!”.

Depois desta, em várias outras ocasiões minhas fotos antigas ou meus relatos

O Mário Pereira, que foi meu guia, de vez em quando me pedia que as mostrasse.

surpreendiam um ou outro habitante local.

136


PORRETTA TERME, UM QG AVANÇADO (DEMAIS?) Transcrito do livro “100 vezes responde a FEB”. Pág. 79: “O Quartel-General avançado da FEB ficou de início instalado num balneário, Porretta Terme, que embora ficasse ao alcance da artilharia inimiga, era desenfiado

(termo militar que significa “fora da linha de tiro”) de seus tiros pela configuração do terreno, o que não impedia, entretanto, seus efeitos sobre a cidade de Porretta Terme. Diariamente, às vezes com baixas, era o QG bombardeado pela artilharia alemã de 170 mm, além de outros calibres. Somente deste material caíram em Porretta 250 granadas explosivas. Por ocasião da visita ao PC do General Mascarenhas acompanhado pelo Comandante do Teatro de Operações no Mediterrâneo, Gen Sir H.R. Alexander, Porretta Terme foi intensamente bombardeada, sobretudo durante ao almoço que em sua honra foi servido. (Os alemães possuíam um serviço de informações perfeito.) Ao se retirar, com a calma e o humor britânicos, o Gen Alexander pediu ao Gen Mascarenhas que transmitisse ao comandante alemão os agradecimentos pelas salvas que em sua homenagem havia mandado.”

Cruzei com este tanque que ia pela “Porrettana”, a sinuosa estrada que passa por lá. 137


Encerrada a estadia no Hotel Helvetia, o garçom que nos servira no bom restaurante dali (de avental preto) perguntou se podia tirar uma foto ao meu lado. Claro que concordei. Ao ver isto, o chefe de cozinha perguntou se podia juntar-se ao grupo tambÊm, e o Mario Pereira que estava perto correu para completar e prometer uma cópia para cada um, como pediam. 138


Montecattini, outra cidade termal na Toscana, tambĂŠm sofreu bombardeios sĂŠrios. Esta foto tirei quando estive ali, em 1944.

139


Foi uma emocionante surpresa: quando abri a janela do banheiro do meu quarto no Hotel Helvetia, pareceu-me ver ao fundo o Monte Castello. A confirmação foi dada, depois, pelo Mario Pereira. Ali estavam as encostas nas quais dezenas de brasileiros perderam a vida tentando vencêlas.

Este panorama foi fotografado de Montese, uma cidadezinha alta, ponto importante da linha GENGIS KHAN. A artilharia alemã instalada ali podia ver Porretta Terme, cuja pequena faixa de casas aparece na parte superior esquerda. Montese foi tomada pelos brasileiros em 14 de abril de 1945. (O QG brasileiro passou quase todo o inverno instalado em Porretta, porém em uma parte da cidade que está oculta, fora da linha de tiro.) 140


Este prédio, em Porretta Terme, era o depósito de material da estrada de ferro. Foi semidestruído, como vários outros. Hoje é um museu.

141


CapĂ­tulo 13

142


143


O INVERNO. MUITA NEVE, CANHONEIOS, PATRULHAS E BAIXAS

“Com a chegada do inverno, que se mostrou inclemente naquele ano, quando

a temperatura chegou a atingir 18 graus centígrados abaixo de zero e onde a neve formou uma camada de mais de 1 metro e meio de espessura, ficou a 1ª DIE dispensada das ações ofensivas, devendo limitar-se apenas à manutenção do setor. (Fonte: Extraído do Livro “100 vezes responde a FEB”.)

Realmente o inverno foi longo e duríssimo. Ações militares importantes

eram praticamente impossíveis, a guerra limitou-se a duelos de artilharia e incursões de patrulhas de reconhecimento, de lado a lado.

O QG brasileiro estava em Porretta Terme, cidadezinha termal bem próxima

Os alemães sabiam que o QG brasileiro estava instalado ali e Porretta

Ao sair de Vecchiano, logo nos primeiros deslocamentos, fui para Porretta.

aos montes que constituíam a Linha Gótica, como descrevi em outros capítulos.

foi duramente castigada. Outras zonas vizinhas também.

Lá fiquei por uma semana. O Batalhão de Saúde teve então que se dividir e a minha Companhia foi instalar-se em uma aldeia vizinha a Porretta, chamada Castel di Casio, que era menos visada. Tinha que voltar muitas vezes a Porretta e mais tarde, em outras ocasiões, fui trabalhar lá. Mas felizmente não sofri nada.

Em Castel di Casio, onde caíam poucas bombas, uma delas destelhou parte

Reuni aqui (mostro em páginas adiante) fotos tiradas por mim e outras

da casa onde eu estava.

colhidas na internet que dão uma ideia do que foi a guerra nesta fase, no inverno.

144

(Tudo concernente a Castel di Casio consta em outros capítulos.)


No inverno, uma patrulha se prepara para sair. À frente, o detector de minas.

145


Guerra no inverno.

146


Serviço de Saúde da FEB trabalhando no inverno. (No nosso capacete a cruz vermelha era estampada na frente e atrás. Os americanos usavam-na nas laterais também.)

Este jipe com barra de ferro protetora é exatamente igual ao que eu usava. 147


Um tanque desgarrado da sua unidade passa à frente do meu Posto. A paisagem toscana, no tempo da guerra, não era verdejante e marcada por elegantes ciprestes, como é hoje. (E os veículos que passavam também eram diferentes. Eram como este, um tanto barulhentos, bem mais robustos e extremamente desconfortáveis...)

Há uma estreita e sinuosa estrada que liga Porretta a Pistoia. São tão deslumbrantes as paisagens que aparecem ao percorrê-la, que o motorista precisa abandonar a ideia de apreciá-las para não correr perigo. Fotografei, da Via Porrettana, essa típica mansão toscana durante a viagem de 2014 (foto inferior na página ao lado). 148


149


Este Posto nĂŁo era o meu, pois na maioria das vezes me instalava em garagens prĂłximas Ă estrada. Mas, quando em barraca, era semelhante a este.

150


Nos primeiros dias de inverno a neve foi recebida com ingĂŞnua alegria e curiosidade. Mal sabĂ­amos que aqueles delicados flocos que caĂ­am suavemente iriam nos envolver, duas semanas depois, num verdadeiro inferno branco.

151


A guerra no inverno. Duelo de artilharias.

152


Fotografei (mal) este jipe armado que passava veloz à frente do meu Posto. O meu jipe não tinha armas, tinha somente um mastro vertical na frente para proteger contra arames que o inimigo colocava atravessados na estrada, à altura do pescoço de quem estivesse no veículo.

O jipe do General Mascarenhas com a proteção que menciono no texto acima.

153


Pessoal de SaĂşde levando material mĂŠdico para cima de um dos montes, no Plano Encore.

154


A guerra no inverno. Patrulhas. (Uma patrulha nossa com 17 homens foi cercada pelos alemães em Abetaia, resistiu até o último homem. Os corpos permaneceram sob o gelo e a neve até serem resgatados, dois meses depois.)

A guerra no inverno. Artilharia.

155


Brasileiros da Infantaria no inverno.

156


Os homens de algumas unidades eram obrigados a aprender a esquiar e usar roupas brancas em algumas ocasiĂľes. NĂŁo era o meu caso. Apanhei os esquis de alguĂŠm pra ver como funcionavam.

157


HĂĄ

ocasiĂľes

em

que alguns muares valem

mais

que

um motor de 100 cavalos...

158


Quatro do meu grupo. Início de inverno. Lastimo não me lembrar dos nomes, mas as caras me são bem familiares até hoje.

159


Capítulo 14 C A S T E L D E C A S I O, E T C .

Foto da parede atingida – e já parcialmente reconstruída – da casa em que eu e Nogueira de Sá dormíamos em Castel di Casio (descrição no texto ao lado).

160


Ao sair da Villa Rossore,

no fim de outubro, a primeira instalação

do meu Posto foi na garagem de uma casa assobradada, na praça central de uma cidadezinha chamada Vecchiano, que já havia sido libertada pelos americanos há mais

de um mês. Lá ficamos cerca de 15 dias e eu aproveitei para escrever um trabalho

sobre o funcionamento do Serviço Médico da FEB, tarefa obrigatória para promoção a 2º Tenente, o que imediatamente ocorreu.

Daí, já o inverno começando a se manifestar, tive que ir para Porretta; e de

Porretta, como já disse em outro capítulo, a minha Cia, a 3ª Cia do 1o Batalhão de Saúde, espalhou seus membros, indo alguns – eu inclusive – trabalhar num ”paese”

muito próximo, Castel di Casio. Isto implicava em constantes idas a Porretta, pois a Cia de Tratamento do Batalhão, que recebia parte dos nossos feridos, estava instalada num hospital lá. Mas só o fato de dormir fora de Porretta já era um alívio, pois Porretta, onde estava o QG, era constantemente alvejada pela artilharia inimiga.

Algumas famílias italianas,

em aldeias pouco castigadas, não

haviam abandonado suas casas, preferiam continuar nelas a aventurarem-se por outros

locais. Nem sempre, também, tinham lugar mais seguro para ir, principalmente na fase do inverno. Muitos italianos, assim, ofereciam de boa vontade acomodações para

os brasileiros. De certo modo havia uma simbiose: para nós a proteção contra o frio e para eles, o desfrutar de certas vantagens: sempre levávamos trigo, ovos, sal,

etc., o que lhes permitia fazer a macarronada deles, e para nós participar delas, o que era bem melhor que a comida do rancho feita em caldeirões enormes por soldados improvisados em cozinheiros. E às vezes tinham vinho também.

Eu e o Nogueira de Sá nos instalamos no andar de cima de uma casa de três

andares. A casa era de um casal, Sr. e Sra. Nanni, ele ex-funcionário público e ela

“maestra” de escola. Ambos simpaticíssimos, “buona gente”. Moravam com eles também uma filha e uma sobrinha, de mais ou menos 15 a 17 anos de idade, muito simpáticas e educadas.

Excluindo as idas e vindas a Porretta, onde afinal só fiquei em permanência

por duas semanas, a nossa vida (minha e do Nogueira de Sá) em Castel di Casio foi relativamente tranquila. Passavam poucos feridos pelo nosso Posto, e de balas de

canhão só tivemos uma que atingiu a nossa casa em cheio, à noite, destelhando uma parte dela, mas ninguém sofreu nada. Só o susto.

161


Entrada da casa da família Nanni. Há uma pequena imagem sobre a porta de entrada e uma placa de cerâmica com o nº 21 ao lado direito da porta. Estes dois detalhes ficaram bem gravados até hoje na minha memória. Provavelmente porque durante o inverno, alguns segundos que eu passava ali, esperando que abrissem, pareciam séculos. Quanto às flores, eram inimagináveis àquela época. A janela engradada e baixa era a da sala. As dos quartos eram as altas.

162


Em 2012, estando em Firenze,

ocorreu-me dar uma passada em Castel

di Casio. A casa é facilmente localizável. Quando me aproximei li, no portão, um

letreiro “in venta”. Um velhinho, no estreito jardim à entrada da casa, olhou-me e eu perguntei se a casa estava à venda. Na verdade, o que eu queria era puxar conversa

para que ele me convidasse a entrar. Foi o que aconteceu: ele me fez chegar próximo

à porta e gritou para uma janela aberta, justamente a do quarto que ocupei na guerra. “Ornella!” Lembrei-me imediatamente que era o nome da sobrinha dos Nanni que vivia com eles em 1944. Apareceu na janela uma velhinha de cabelos brancos, de óculos, que logo desceu e veio nos encontrar no jardim, onde estávamos, próximos à porta.

Depois de formais “buongiorno”, perguntou: “O senhor é estrangeiro?”

Respondi sim. “De onde?” “Sou brasileiro, do Rio de Janeiro.” Para grande surpresa

minha ela parou, olhou bem para mim e perguntou: “Por acaso conhece Carlos Bessa?” Eu fiquei tão surpreso com a pergunta que preferi não me identificar no ato. Escolhi

uma solução intermediária e disse: “Sim, Carlos Bessa é meu irmão.” Ornella fez um gesto de grande surpresa e exclamou: “Irmão de Carlos Bessa!” E perguntou logo: “Ele está bem?” Disse-lhe sim, sim! Ela adiantou: “E Nogueira, o de São Paulo, como vai?”

Expliquei que não o via há muito tempo. Ela tentou me dizer que meu “irmão” havia estado ali no inverno, que a família e ela também se lembravam muito daqueles tempos.

Que o casal Nanni havia morrido, mas que ela se lembrava que, apesar da guerra, nós tínhamos uma boa convivência na hora do jantar e perto da lareira. “Eravamo in guerra,

ma eravamo felicci!”... que era um prazer muito grande saber que Carlos Bessa estava bem, e acrescentou: “Vou pedir para levar um bilhetinho para ele”. Entrou e logo voltou com o bilhete, que dobrou e pôs em minhas mãos. Atualmente o tenho guardado.

Voltei para Firenze e no dia seguinte fiquei muito arrependido de não ter me

identificado honestamente. Como tinha que ir a Sienna, resolvi passar outra vez em Castel di Casio - era perto – e acabar com aquela mentira. Desta vez encontrei Ornella

toda bem vestida porque, explicou-me, estavam indo embora para Modena, ela e o marido,

onde moravam. Quando eu disse que voltara ali porque achava que não era honesto não

dizer que eu mesmo era o Carlos Bessa, respondeu com exclamações sucessivas: “Bem que eu notava! Você não me enganou tanto quanto pensava!” Havia duas vizinhas ao lado dela, e ela, rindo muito, contava: “Estiveram aqui durante a guerra, ele e outro

brasileiro de São Paulo! Gentilíssimos os dois! Você não iria embora sem se identificar corretamente!”. E para as outras: “Sim Carlos Bessa sempre foi honesto!”

Fui embora para Florença. 163


Na carta havia o endereço em Modena, telefone fixo e celular, ela

insistiu: “Por favor escreva-me de vez em quando ou telefone!” No Natal telefonei, recebeu com festa o telefonema. Pedi que enviasse algum retrato da família, ela mandou pelo correio o dela, com o marido e a filha.

Na minha última viagem em junho de 2014, telefonei: estava muito

triste porque o marido havia morrido há poucos meses. Mas insistiu para que eu e os meus sobrinhos, que estavam viajando comigo, fôssemos visitá-la em sua casa em Modena, o que fizemos. Era um bom apartamento. Recebeu-nos com

uma quantidade enorme de minissanduíches, doces, etc. e um bom vinho. Bem à italiana. A filha, Loretta, estava com ela, ajudou-a a nos receber. As duas

bastante elegantes e o apartamento decorado com muito bom gosto. Pediu que telefonasse de vez em quando, o que tenho intenção de fazer.

De

modo

geral

os

brasileiros,

durante

a

guerra,

tiveram

junto

à

população italiana um comportamento amistoso, bem diferente dos agressivos nazistas, que chegavam a ser odiados, e mesmo dos ingleses e americanos, que passavam por lá sem se imiscuírem nem dar-lhes muita atenção.

Castel di Casio, hoje, é uma cidadezinha florida, agradável, fisicamente

não mudou muito, mas os jardins e a vegetação abundante oferecem um ambiente completamente diferente do da época da guerra.

164


1945 Em 1945, junto ao portĂŁo dos Nanni, algumas amigas deles endomingadas, na primeira primavera de paz depois da guerra.

165


2014

Em 2014 fomos eu, Ana Maria, JosĂŠ Guilherme e Mario Pereira

visitar

Ornella

em

Modena.

Recebeu-nos

com

minissanduĂ­ches e um bom vinho, como descrevo no texto. A jovem de rosto redondo de 17 anos tornou-se uma senhora alta e magra, mudou bastante mas continua inteligente e falante, com a mesma voz sonora de antigamente. 166


1945 Em 1945, terminada a guerra, no mesmo domingo que passei por Castel di Casio, fotografei em frente à casa dos Nanni a Ornella (falando, como sempre), a prima Luiza, o Sr. Nanni e a “nona”, que estava junto ao portão.

167


Terminada a guerra, a caminho do

sul,

di

Casio.

algumas

passei Era

fotos.

por

Castel

domingo. Uma

Fiz

procissĂŁo

onde aparecia gente que havia voltado de refĂşgios em outras zonas. Aparece ao fundo a casa dos Nanni.

168


Uma torre altíssima, da qual só resta uma parede em pé, marca o centro de Castel di Casio. Eu e Ana Maria estamos à sombra. A parede amarela à direita é a casa dos Nanni. Antigamente era branca. Na foto de baixo, o centro do “paese”.

169


Como

saldo

fase

da

positivo

guerra,

desta

tive

as

“aulas” ouvidas da “signora” Nanni. O fato de conjugar bem os verbos em italiano, coisa nada fácil e que até hoje me tem sido muito útil, devo à bondosa e paciente “maestra” que aparece aqui na foto.

O Sr. e a Sra. Nanni.

170


Em junho de 1988, estando na Toscana, pela primeira vez voltei a Castel di Casio e fui rever a casa dos Nanni. Nesta ocasiĂŁo a famĂ­lia estava passando o verĂŁo fora. 171


Capítulo 15 A V I O L E N TA R E T O M A D A D A S O P E R A Ç Õ E S E M F E V E R E I RO. O P L A N O E N CO R E

172


Quando escrevi o Capítulo 8,

expliquei como os nazistas

haviam planejado a defesa do território italiano contra eventuais invasões.

Como disse lá atrás, entre muitas fortalezas improvisadas havia duas importantes linhas, consideradas quase intransponíveis. Uma ao sul, a

LINHA GUSTAV, que ocupava uma cadeia de montes, entre os quais o célebre Monte Cassino, no qual havia um antigo e importante convento.

A conquista

do Monte Cassino custou milhares de vidas aos aliados – americanos,

ingleses, neozelandeses e outros. A outra, mais ao norte, à altura de

Bolonha, que também atravessava a península de lado a lado, era a LINHA GÓTICA, que tinha até mesmo ao norte dela outra linha de reforço em seu ponto mais central, a LINHA GENGIS KHAN.

Como disse antes,

foram frustradas todas as tentativas de

aproveitar o fim do outono para vencer a LINHA GÓTICA e retirar dos alemães a posse do fértil e industrializado norte da Itália, que estava

sendo tão útil a eles fornecendo alimentos, tecidos, sapatos e até mesmo veículos.

Todos

os

tiveram decepções.

aliados

-

britânicos,

americanos

e

brasileiros

-

Quanto à FEB, quatro tentativas de tomar o Monte Castello foram

No fim de fevereiro,

infrutíferas, com baixas importantes.

entretanto, tudo recomeçou com extrema

violência. O alto comando, representado pelo General Crittenberger, e

com ele os Generais Mascarenhas e Hays – este comandante de uma divisão

americana especializada em guerra de montanha, que acabava de chegar à

Itália – estabeleceu uma nova estratégia: o PLANO ENCORE 1 , que previa a

ocupação de uma cadeia de montes a oeste do “front” brasileiro, antes do assalto final ao Monte Castello.

Este novo plano, o PLANO ENCORE, ofereceu aos brasileiros a oportunidade

de uma sequência de vitórias, algumas consideradas de grande importância pelo comando superior das operações na Itália. Ao contrário das operações do fim do outono, as do PLANO ENCORE tiveram sucesso, com êxito total. 1

A denominação ENCORE deixa transparecer alguma sede de desforra. A palavra significa “again” ou, no nosso caso, “outra vez”.

173


Em capítulos adiante faço referências à heroica ação de americanos e

brasileiros nessa fase da Campanha da Itália.

A “10a Divisão de Montanha”, assim

como o “Quarteirão Oeste”, mereceram elogios de todos os que tomaram conhecimento das lutas que venceram.

Até mesmo quanto ao nosso Batalhão,

vale mencionar aqui

o que registrou o Alto Comando das Operações na Itália: “Distinguiu-se, nessa

jornada, o Primeiro Batalhão de Saúde comandado pelo Tenente-coronel Bonifácio Borba, o qual se mostrou magnífico e infatigável nos trabalhos de remoção e

tratamento de nossos feridos. Aliás, no decurso das operações, o nosso Serviço de Saúde constantemente prestou contribuição inestimável, porquanto todos os seus componentes, desde o anônimo padioleiro da zona de combate até o cirurgião do

hospital, concorreram ao máximo para suavizar os sofrimentos físicos e morais de nossos feridos”.

Durante esta fase, que durou até fim de março, meu Posto andou por várias

posições, desde Porretta, Castel di Casio, Crocciale e Farné (que mereceu, aqui, um capítulo à parte), até Mazzancana e Abetaia.

Para fechar este capítulo,

cujo assunto se estende e desdobra-

se por outros capítulos adiante, menciono um detalhe interessante: em Porretta Terme estava desde o início da campanha o QG brasileiro comandado pelo general Mascarenhas. De várias elevações não muito distantes, a cidadezinha de Porretta estava em linha de tiro da artilharia alemã (mas o QG estava em um recanto

protegido) e por isso era constantemente bombardeada, a tal ponto de haver o

general Crittenberger aconselhado ao general Mascarenhas a recuar o seu QG para mais longe do “front”. A resposta do general Mascarenhas foi a seguinte: “Meu

caro general, o senhor comanda muitas unidades; se o senhor faz recuar algum de seus QG ninguém vai notar. Mas se eu, que só comando a FEB, der um passo atrás

afastando-me do ‘front’, isto vai calar mal. Quanto ao meu QG, Quando se deslocar, há de ser para frente”.

Na operação ENCORE o QG brasileiro deslocou-se para frente, para Lizzano in

Belvedere.

174


Em determinada fase da guerra, Winston Churchill acompanhado do general de divisão Oliver Leese (à direita) e do general Harold Alexander, Comandante Supremo Aliado no Mediterrâneo (à esquerda), fizeram uma visita as tropas brasileiras na Itália.

175


176


O mapa à esquerda mostra parte da ofensiva desencadeada no Plano Encore, da qual fizeram parte a 10 a de Montanha (indicada com o n o de seus regimentos) e a FEB (BEF, em inglês). De 21 de fevereiro em diante, as duas forças separaram-se, os brasileiros tomaram sozinhos Monte Castello e prosseguiram para o nordeste, enquanto os americanos, para o noroeste.

177


Preparados para um assalto a inimigos abrigados na casa ao fundo.

178


Embora feita por mim em 1945, não consigo

definir

com precisão qual o

“paese”

que

aparece ao fundo desta

foto.

certamente próximo

a

Mas está

Farné

e aos montes do Plano Encore. 179


Capítulo 16

AINDA O PLANO ENCORE: FA R N É , SERRASICCIA, CAPEL B U S O, C A M P I A N O, B E LV E D E R E , G O R G O L E S C O, DELLA TORRACCIA, ROCCA C O R N E TA , V I D I C I AT I C O, MAZZANCANA, A B E TA I A , MONTE CASTELLO

180


ANTECEDENTES

O mapa da Itália parece uma bota,

como todo mundo sabe.

Traçando-se uma linha transversal à altura da cidade de Bologna, o “front” da FEB ocupava a metade esquerda até o Mediterrâneo. A incumbência era empurrar os alemães até a fronteira norte da Itália. Até a França.

Como descrevo em capítulos anteriores,

os alemães haviam

construído várias linhas de defesa que atravessavam o território italiano de lado

a lado, plantando fortificações na parte superior das montanhas e circundando-as com milhares de minas. Uma destas linhas, a LINHA GÓTICA, talvez a principal entre todas, tinha o seu “coração” na zona dos picos mais altos dos Apeninos.

Quando os brasileiros entraram em ação neste setor, a estratégia vigente

tinha como objetivo principal a tomada de Bolonha. Para isto era nescessário que

se rompessem defesas alemãs em vários pontos da LINHA GÓTICA, inclusive as do Monte Castello, no setor da FEB.

Como o inverno já estava próximo,

apesar de não estarem os

brasileiros em condições ótimas de treinamento, assumiram a tarefa e houve então quatro dramáticas tentativas frustradas.

Em vista dos revezes havidos não somente com a FEB, mas com todas as tropas

que lutavam mais a leste do “front” (8o Exército inglês), o Alto Comando resolveu mudar completamente a estratégia. Deixou Bologna para mais tarde e resolveu pôr em prática um novo plano, que denominou Plano Encore.

Farné,

que fica a 700 metros de altura e já estava em nosso poder, foi base para americanos e brasileiros partirem para o dificílimo ataque e a conquista do maciço composto por três montes. Serrasiccia, o maior, tem 1.380 metros e os outros, um pouco menos.

181


O NOVO PLANO O Gen Crittenberger reuniu em seu QG, em Lucca, por duas vezes, no dia 8 e depois no dia 16 de fevereiro, vários generais Comandantes de Divisão, entre os quais o Gen Mascarenhas como Comandante da 1ª DIE e o Gen Hays, Comandante da 10ª Divisão de Montanha Americana.

Nessas reuniões foi elaborado e detalhado um novo plano, que denominaram Plano Encore, segundo o qual deveriam ser tomadas dos alemães, inicialmente, várias fortificações elevadas, das quais eles dominavam montes mais baixos, vales, estradas, povoados, etc. Desta forma, com esta operação seria transposta a mais importante linha de defesa alemã, a LINHA GÓTICA. Tratava-se de conquistar montes altíssimos , escarpados, ainda cobertos com alguma neve que, já derretendo, cobria as encostas de lama. E os “tedescos”, alojados lá em cima há muito tempo, não estavam dispostos a sair facilmente. As forças principais a executar o Plano Encore seriam a FEB e a 10ª Divisão de Montanha, recém-chegada à Itália após um ano de treinamento nas montanhas do Alasca. (Ainda neste capítulo, abro espaço para dizer algo sobre essa divisão especializada). Em tais condições de terreno seria dificílimo, praticamente impossível a uma tropa regular, não especializada, entrar em combate com alguma possibilidade de vitória. A ação iniciou-se , segundo o planejado, durante a noite de 19 de fevereiro, quando os montanheses americanos tomaram de assalto e de surpresa o maciço Serrasiccia – Capel Buso – Pizzo di Campiano numa operação audaciosa e cheia de lances de bravura. Os alemães foram surpreendidos e inicialmente subjugados, mas logo revidaram com sucessivos contra-ataques de forças provindas do Oeste (de Fanano) e do Norte. Houve muitas baixas de lado a lado.

Como planejado,

unidades da FEB participaram tanto da ação ofensiva

como, depois, na defesa do terreno, permitindo que os montanheses partissem, como pontas de lança, para novas escaladas em locais que só eles podiam chegar.

182


Esquema da Operação Encore Neste esquema feito pelos americanos sobre os combates na parte da LINHA GÓTICA que foi objeto da OPERAÇÃO ENCORE, vemos da esquerda para direita Mansinello, Serrasiccia, Capel Buso e Pizzo di Campiano, que constituem um só maciço. Forças da 10 a de Montanha e da FEB trabalhando em conjunto partiam de Farné (o pequeno quadrilátero de onde partem as quatro setas à esquerda). Os combates começaram na noite de 19 de fevereiro de 1944. Após a conquista desse maciço o mesmo conjunto de forças americanas e brasileiras continuou por Belvedere, Gorgolesco e até della Torraccia em combates sucessivos. Daí por diante separaram-se, os americanos seguiram para noroeste e os brasileiros para nordeste. Trabalhando sozinhos os brasileiros tomaram Mazzancana, Abetaia (não aparece aqui), e finalmente o simbólico Monte Castello que aparece bem à direita no esquema. Prosseguiram depois por La Serra, Castel Nuovo e todos os outros objetivos da Bacia do Panaro. Encerrado o Plano Encore, a FEB continuou ocupando-se sozinha dos objetivos da Linha Gengis Khan (não consta desse esquema), com a difícil tomada de Montese e de tudo o que se seguiu até a rendição das duas divisões inimigas em Fornovo.

183


Um importante maciço, cuja altura principal se eleva a 1.380 metros do nível do mar, situava-se a oeste da zona de combates nos Apeninos. Os três montes denominados Serrasiccia, Capel Buso (que aparece na foto) e Pizzo di Campiano são unidos na parte superior, da qual descem três cristas principais. Capel Buso desce até o limite do vilarejo de Farné. Mais ao sul encontram-se os povoados de Rocca Corneta e Vidiciatico.

184


As forças brasileiras

que

combateram

no

Plano

Encore desde 19 de fevereiro até o fim de março de 1945

foram destacadas de várias unidades da FEB e compunham um

grande

contingente

denominado QUARTEIRÃO OESTE (ou

DESTACAMENTO

OESTE),

que era comandado pelo Gen Zenóbio da Costa. Entre as unidades

que

havia um Destacamento Olivier, formado por elementos do 6 , 11 o

o

o

compunham

e do 1 o RI.

Foram eles os que mais se ocuparam dos combates nos três montes Serrasiccia, Capel Buso e Pizzo di Campiano (no livro do Ten Cel Manuel T. Castelo Branco

podem ser encontrados, nas páginas 393 a 397, detalhes minuciosos destas operações).

Em março

as unidades brasileiras e americanas que haviam iniciado essas

dificílimas operações, exaustas, tiveram que ser gradualmente substituídas. Foi então organizado um QUARTEIRÃO DE COBERTURA (ou GRUPAMENTO OESTE) para entrar em ação no seu lugar.

Eu fui incluído

neste QUARTEIRÃO, como se vê no Boletim (página

188), acompanhado de um grande número de padioleiros e enfermeiros, quase todos também requisitados do Batalhão de Saúde.

No livro “A FEB pelo seu comandante” ,

do Gen Mascarenhas,

na página 158 consta: “As ações realizadas pelas tropas da 1 DIE no mês de março a

de 1945 acusaram um total de 351 baixas, assim especificadas: 26 mortos; 205

feridos; 118 acidentados; dois extraviados, prisioneiros dos alemães”. (Este

total de baixas no mês de março incluiu todas as frentes da FEB. Não só a minha.)

Apesar do grande número de baixas assinalado acima, não me lembro de ter

tido em Farné um trabalho excepcional. Acredito que os dias iniciais, em que eu ainda não estava lá, tenham sido muito piores.

185


Lembro que convivi muito com oficiais combatentes,

principalmente de artilharia. Lembro também de alguns fatos isolados desta época

naquele local, por exemplo, da boa camaradagem que havia entre nós da FEB e o

pessoal da “10th Mtn. Div.”. Eram, de modo geral, rapazes musculosos, sempre bem-

humorados, sempre mascando chicletes, que quando cruzavam comigo, num aceno de

mão juntavam: “Hi, Doc!”. Entre os praças havia sempre uma troca de “Hi, Joe!” Contra um “Ôba!” dos brasileiros.

(No “front”, para os americanos todo mundo era “Joe”. Às vezes, consolando

Uma vez conquistados os montes supracitados à custa de muitas baixas

um ferido, sussurravam um comovido “... take it easy, Joe.”)

de americanos e brasileiros (e mais ainda de alemães), as forças separaram-se

para rumos e missões distintas. A 10ª de Montanha seguiu para o norte, enquanto a FEB foi em direção nordeste, enfrentando inicialmente os obstáculos que há muito desejava encontrar para uma desforra: principalmente o Monte Castello. E

em seu entorno Abetaia e Mazzancana. Como relatarei mais adiante, o Castello foi, desta vez, galhardamente conquistado no dia 23 de fevereiro, em poucas horas

de combate. (As artilharias alemãs, que do alto do Belvedere e do La Torraccia

castigavam a FEB nas primeiras tentativas de tomar os castelos, agora já estavam aniquiladas.)

Prosseguindo para o nordeste,

a FEB tinha ainda pela frente

outra linha de defesa inimiga, a LINHA GENGIS KHAN. Seguiu-se então uma série de

conquistas, algumas com duríssimos combates e muitas perdas, como a de Montese, e outras não tão difíceis. Vale enumerá-las pela ordem: La Serra, logo em seguida

Pietra Colora, Castel D´Aiano, Montalto, Zocca. E mais a leste Rocca Pitigliano, Marano, Riola, Lissano e Castelnuovo.

Rompidas as duas linhas de defesa

que os alemães haviam

plantado no topo das montanhas, a LINHA GÓTICA e a LINHA GENGIS KHAN, foi mais fácil empurrá-los através das planícies ao norte. A FEB conseguiu cercar e aprisionar duas Divisões inimigas com todo seu enorme equipamento bélico

(assunto de outro capítulo). E daí por diante, a conquista – até mesmo de cidades importantes como Tortona, Alessandria e Torino – foi realizada praticamente sem resistência organizada. 186


Foto

recente

do

Monte

Cappel

Buso

tomada

Ă

sua

meia

altura.

FarnĂŠ fica exatamente em sua base.

187


188


Por sorte consegui encontrar, já bem amarelados pelos 70 anos que se passaram, dois documentos que elucidam detalhes da missão que me tocou no Plano Encore, com a minha ida para Farné. São um bom exemplo do que se passava também em outras ocasiões, em outras missões, outros locais. No Boletim Oficial – cuja cópia está na página à esquerda – aparece, em cima, a minha indicação: 2o Ten. Btl-S. Carlos Henrique Bessa. Logo abaixo vêm enumerados os que estariam sob meu comando: um sargento enfermeiro, um cabo e dois soldados, todos de cirurgia, e mais 11 padioleiros e dois motoristas de ambulância. O boletim enumera também os homens que acompanhariam cada oficial de infantaria, que iriam ocuparse de cada um dos objetivos mencionados no desenho, à página direita. Exemplo: Padioleiro Julio do Valle, equipagem do Cap. Tercio, Monte Campiano. Para composição do Serviço de Saúde desse QUARTEIRÃO DE COBERTURA que foi designado para o ”front” de Farné (montes Serrasiccia, Capel Buso e Campiano), fomos destacados do Batalhão de Saúde eu, como médico, e um grande número de padioleiros e enfermeiros, como se vê no Boletim. Quanto ao desenho, feito “in loco” (provavelmente pelo Sargento Murilo Muller), mostra bem como eram compostos os grupos que se dirigiriam a cada um dos objetivos. Além dos três montes, um iria também para a localidade de Roca Corneta. O meu PS ficou em Farné, na base do Capel Buso, em barraca próxima a um grupo de Artilharia e não muito longe dos homens da 10ª de Montanha.

189


ASPECTOS INTERESSANTES DA 10a DE MONTANHA Era uma divisão de elite, que havia treinado nas montanhas do Alasca durante um ano e havia desembarcado na Itália em 27 de dezembro de 1944. Após um mês e meio de adaptação, entrava em combate pela primeira vez na memorável noite de 19 de fevereiro de 1945, quando conseguiu tomar de assalto o maciço Serrasiccia – Capel Buso – Pizzo di Campiano, numa manobra descrita por todos os compêndios militares como de extrema competência, audácia e bravura.

Um dos detalhes de grande relevância desta operação foi a construção de um “Aerial Tramway”, pela primeira vez durante um combate. Era uma obra de extrema necessidade, indispensável para a descida de feridos e mortos e para a subida de munição, mantimentos e material médico. Sua construção iniciou-se na noite de 19 de fevereiro e demorou cerca de 10 horas. O modelo, entre outros vários, havia sido testado e aprovado durante os exercícios na América e assemelhava-se a um funicular dos que se usam em estações de esqui. Sua base inferior ficava na encosta de Farné, que é separada do Capel Buso, naquele ponto, por um estreitíssimo vale onde corre um riacho. E sua parte superior se inseria a 2/3 da altura do mesmo monte. Só no primeiro dia de utilização desceram 70 feridos, alguns mortos, e subiram 5 toneladas de material (fotos anexas). Recentemente, na minha segunda ida a Farné, em setembro de 2014, encontrei pregada a uma grande pedra uma placa de bronze com os dizeres: “In the year 2001 this stone marks the base of the first Aerial Tramway erected for use in combat by the men of Company D 126th Mountain Engineer Bn. Tenth Mountain Division U.S. 5th Army February 19, 1945 dedicated to the nine engineers who gave their lives for their country and to the italian people, who took us into their hearts and homes as one of their own”. No trecho superior do maciço, onde o “tramway” não chegava, o transporte de feridos deveria ser feito pelos próprios padioleiros, e o de material com a ajuda de muares.

Além da bela ação inicial nesta zona, onde o trabalho conjunto com as forças brasileiras teve uma coordenação perfeita, a 10ª de Montanha prosseguiu, como já mencionei anteriormente, na conquista de novos montes como o Belvedere, Gorgolesco, Della Torraccia e outros, sempre com a colaboração da FEB. Após o Della Torraccia separaram-se, e a FEB encaminhou-se sozinha para outros objetivos, inclusive em direção ao Monte Castello, que finalmente foi tomado no dia 21 de fevereiro após a ocupação de Mazzancana e Abetaia, como já me referi em página anterior. Esta conquista, ponto de honra para a FEB, em vista das tentativas anteriores sem êxito, pode ser também considerada um dos grandes feitos ocorridos nesta fase da guerra. 190


Os homens da “10 th Mountain Division” tiveram um ano de treinamento nas montanhas do Alasca antes de entrarem em combate na Itália. (fotos dos arquivos da Divisão).

191


192


No local de onde partia o teleférico construído pelos americanos da 10ª Divisão de Montanha, que levava mantimentos e munição para os soldados lá em cima e trazia feridos ou mortos, há hoje uma placa cujos dizeres podem ser lidos: “No ano 2001 Esta pedra indica a base do primeiro Aerial Tramway Construído para uso em combate pelos homens da 126ª Companhia D, Engenheiros da 10ª Divisão de Montanha, do 5º Batalhão das Forças Armadas 19 de fevereiro de 1945 Dedicada aos nove engenheiros que deram suas vidas para seu país E ao povo Italiano, Que nos acolheu em seus corações e lares como se fôssemos parte deles mesmos” 193


O GRUPAMENTO OESTE As forças brasileiras encarregadas de participar do Plano Encore foram destacadas das várias unidades que compunham a FEB e formaram um grande contingente denominado GRUPAMENTO OESTE, que foi comandado pelo Gen Zenóbio da Costa1. Como já descrevi antes, as operações se processaram numa faixa de terreno muito difícil, dentro da qual estava o maciço Serrasiccia - Capel Buso – Pizzo di Campiano e ainda o arco montanhoso composto pelos montes Belvedere, Gorgolesco e della Torraccia. As ações foram sempre coordenadas e paralelas à ação da 10ª Divisão de Montanha Americana. Passo a transcrever pequeno trecho do livro do Gen Mascarenhas: “Nossas tropas, nessa oportunidade, ocuparam píncaros eternamente nevados e que apresentam cotas superiores a 1.300 m. Coube então, ao SUBGRUPAMENTO MAJOR OLIVER, a defesa de Capel Buso – Pizzo di Campiano, região de notável importância para a segurança da Divisão Brasileira, inclusive suas comunicações. Capel Buso, por exemplo, situado no flanco esquerdo da nossa Divisão, encerrava numerosos observatórios que devassavam áreas imensas do setor brasileiro. Pizzo di Campiano, de um lado, e Monte Belvedere, do outro, dominavam o vale de Rocca Corneta, a única via existente em toda frente brasileira que se prestava a ações de elementos motomecanizados, constituindo, assim, uma séria ameaça às nossas comunicações e à segurança do próprio QG Avançado da 1ª DIE”. A colaboração - certamente indispensável dada a altura excepcional daqueles montes - encerrou-se após a tomada de Belvedere e della Torracia. Daí por diante os brasileiros permaneceram sós, guardando o que foi conquistado, rechaçando contraofensivas e lutando até a conquista final do célebre Monte Castello. Após o PLANO ENCORE vieram as operações da grande OFENSIVA DA PRIMAVERA, iniciada em 7 de abril, que levou até o fim o combate na Itália e incluiu fatos memoráveis como, entre outros, a tomada de Montese e o cerco às divisões alemãs e italianas na região de Fornovo e Collecchio. (Muitos fatos e combates que são aqui mencionados constam de outros capítulos, escritos sob outros títulos.) Nesta operação OFENSIVA DA PRIMAVERA, meu Posto de Triagem deslocou-se muitas vezes para acompanhar o andamento do “front”. De Farné fui outra vez para Crocciale que, situada numa encruzilhada, acredito tivesse sido escolhida por poder receber feridos enviados de Postos de Saúde provindos de diversos batalhões. De Crocciale fui para Bombiana enquanto se desenrolavam os duros combates que, do dia 14 ao dia 18 de abril, levaram os brasileiros à vitória em Montese. De Bombiana fui para Castel d’Aiano (havia combates em Zocca e Montalto), daí para Formigiano, depois para Arceto, logo depois para Quattro Castella onde recebemos um número muito grande de feridos alemães que nos foi entregue pela 184ª. Div. Alemã ao se render. Daí prossegui; alguns dias em Montecchio, outros em Santo Ilario D´Enza, alguns dias em Alessandria e finalmente Tortona, onde eu estava em 7 de maio, quando a guerra acabou. 194

1As forças que compunham o Grupamento Oeste são relacionadas na página 155 do livro “A FEB pelo seu comandante”, do Gen Mascarenhas.


Numa oportunidade em que o meu Posto ficou perto do pessoal da 10ª de Montanha, assisti a uma cena que até hoje tenho viva na memória. Dois soldados jogavam uma lata pequena, de conserva, na encosta lisa de um morro próximo e, atirando cargas sucessivas com fuzil automático, impediam que a lata viesse até cá embaixo. A cena durou alguns minutos, até que a lata decomposta em frangalhos, deixou de ser lata. Certamente era um exercício de pontaria; parece que aquilo era hábito deles. Nos curtos intervalos em que a lata tentava rolar para baixo, riam do próprio sucesso e olhavam para mim, que era a plateia de um só. (Esta foto – arquivos da 10ª de Montanha - não diz respeito exatamente ao texto. Trata-se de outro tipo de exercício dos montanheses, mas que eu não assisti. A encosta, sim, era igual a esta.) O compenetrado quadrúpede sabe que em certas ocasiões só ele resolve. (Mas o comandante desse grupo é o bípede. Não exageremos...)

Dos rapazes presentes nessa foto, provavelmente nem todos voltaram para casa. Morreram muitos. Eram “ponta de lança” em situações de incrível dificuldade. Faziam um trabalho heroico e admirável. (Fotos: arquivos da 10ª de Montanha.) 195


O “Aerial Tramway” ligava Farné ao alto do Monte Capel Buso. Sua construção custou a vida de nove engenheiros, como cito no texto anterior. Esta é a foto da descida do primeiro combatente morto, feita no dia 20 de fevereiro.

196


A pequena gôndola subia de Farné levando suprimentos e munição e descia trazendo mortos e feridos, entregando-os ao Serviço de Saúde. (Fotos: arquivos da 10ª de Montanha)

197


Combatentes dormindo em monte nevado. (Quando uma tropa permanece por longo tempo no mesmo lugar, como ocorreu com os alemães, fazia casamatas, “fox holes” ou proteções melhores. Vide capítulo 17, Ronchidos di Sopra.)

Um Posto de Triagem da 10ª Divisão de Montanha.

198


DEPOIMENTO DE UM PADIOLEIRO DO BATALHÃO DE SAÚDE

No ano 2000, a Biblioteca do Exército editou a “História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial”. É uma rica coleção de histórias ouvidas – e gravadas – de expedicionários que foram localizados através das várias Associações de Veteranos que existem em todo o Brasil. (Eu só me associei à ANFEB em 2014. Entrevistaram-me recentemente.) Por sorte encontrei o relato de um padioleiro do Batalhão de Saúde, Julio do Valle, cujo nome consta da lista dos que me acompanharam no “Quarteirão de Cobertura”, nas missões em Farné e nos montes adjacentes. Como digo neste capítulo, os padioleiros, principalmente naquela missão de trazer feridos baixando-os pelas encostas lamacentas e escorregadias daqueles montes, às vezes sob fogo inimigo, cumpriam uma tarefa hercúlea. Num trecho de sua entrevista, Julio descreve como costumavam trabalhar os padioleiros:

“...E voltamos novamente para o ‘front’, e estivemos mais uma vez em Monte Castello e Soprassasso, os brasileiros venceram todos. Eu sei porque fui acompanhando com a padiola, sempre vai ferido, vem ferido, era assim. Às vezes, falavam assim: ‘Olha, você segue o fio do telefone e vai chegar até ele’. E a gente o levava para a retaguarda onde um jipe estava esperando, que o conduzia até a estrada. Aí a ambulância pegava e caso não estivesse, continuava de jipe. Esse era o nosso sistema de socorrer. Eu sabia aplicar plasma, porque recebemos uma bolsa com dois vidros, um era plasma e o outro, água destilada. Então, como havia uma agulha, misturava, chacoalhava e virava plasma, e a gente aplicava nos feridos que estivessem muito graves. Apliquei uma vez ou duas, mas era o médico que aplicava. Era um socorro de muita emergência, se a pessoa estivesse bastante mal para aguentar até ser atendida pelo médico, num lugar chamado Posto de Triagem, de onde era encaminhado para o Hospital.” O nome de Julio do Valle, como eu disse, está na lista (ver documento na página 188) dos numerosos padioleiros do Batalhão de Saúde que foram incluídos, como eu, no Quarteirão de Cobertura e, portanto, em Farné. Estranho que ele não tenha dado particular relevo aos difíceis trabalhos que fizeram nos montes que estavam à nossa frente, e se fixado em ações mais usuais.

O Posto de Triagem ao qual ele se refere no parágrafo anterior era o meu Posto, mas quando ele se refere à tomada do Castello na noite de 21 de fevereiro, acredito que fosse o Posto de Triagem de outro médico, e não o meu, pois o meu neste dia estava na região de Abetaia, próximo a Mazzancana, quando esta sofreu bombardeio aéreo e foi tomada e ocupada pelos brasileiros. 199


AMEDEO

Em setembro de 2014 fui, acompanhado pela minha sobrinha Ana Maria e seu

marido José Guilherme, outra vez a Farné. Farné fica ao pé do maciço Serrasiccia, Capel Buso e Pizzo di Campiano. O monte mais próximo a Farné é o Capel Buso. Tudo isto eu descrevi anteriormente, quando falei da topografia desta região.

Minha intenção era tentar encontrar o local onde esteve instalado o meu

Posto durante a guerra. Farné estava, às 2 horas da tarde, completamente vazia. Não encontramos vivalma nem no simpático e charmoso restaurante “Trattoria C´era

una volta”, que fica no início da descida que leva à base do Capel Buso. Fomos

descendo sempre sem encontrar ninguém até que, bem próximo à encosta, avistamos uma casa isolada. A ela chegava naquele momento um homem alto, magro e idoso. Quando se aproximou, apresentei-me dizendo, em italiano, que eu era brasileiro, que tinha estado ali como médico durante a guerra e queria encontrar alguém para

obter informações. Perguntei: “O senhor mora aqui há muito tempo?” De um momento para outro o homem levantou o peito e, com o olhar brilhando, numa expressão de surpresa e alegria, exclamou: “Tutta la mia vita”! E eu: “Como é seu nome,

quantos anos tem?” E ele respondeu: “Amedeo! Novanta due anni!” E manteve a expressão alegre e os vivos olhos azuis brilhando como quem se preparava para um

bom diálogo, que ele podia enriquecer com coisas que tinha na memória, guardadas há muito tempo.

Pela atitude orgulhosa e alegre, parecia que Amedeo esperava há 70 anos

por uma ocasião dessas, de dizer o que sabia sobre a guerra a algum estrangeiro,

de preferência a um brasileiro ou americano que chegasse até ali. Explicou que

na época exata em que os combates se desenrolaram naqueles três montes, ele não estava ali, nem ninguém, é claro, só os combatentes. Mas sabia que o Posto de

Saúde dos americanos era numa casa de pedra que ele mostrou abaixo, na encosta, hoje quase totalmente coberta por vegetação. Perguntei se o monte mais próximo, aquele bem junto a nós, era o Serrasiccia, ele falou: “Não, este é o Capel Buso,

o Serrasiccia fica lá atrás, não se vê daqui”, e apontou para a esquerda, para o

sudoeste. Explicou sobre o funicular que os americanos haviam feito “para trazer lá de cima os mortos e feridos”. 200


Amedeo contou ainda que havia passado, durante a guerra, dois ou três anos trabalhando em Nápoles, ajudando na carga e descarga dos navios militares americanos que chegavam. Trabalhava no porto. (Fiquei pensando se, por acaso, entre os italianos que eu vi no porto de Nápoles quando cheguei, vestindo fardas surradas e carregando caixotes, não seria, um deles, o Amedeo...) Ficamos por ali, eu e José Guilherme conversando mais um pouco com Amedeo, fizemos algumas fotos e nos despedimos dele apertando sua mão grossa e calejada, de quem provavelmente tira da floresta em torno a lenha para se proteger do frio que ali, no inverno, é duríssimo, como já senti na pele há muitos anos. Quanto à localização do meu Posto, cheguei à conclusão de que a minha barraca estava, tal como a dos oficiais de artilharia, num grande terreno baldio que até hoje existe próximo à praça. Naquele tempo não havia edificações altas por ali, tudo era descampado e da minha barraca, lembro bem, avistava a encosta do Capel Buso inteira, até o topo.

A pequena casa do Amedeo fica exatamente ao pé do Cappel Buso. Como digo no relato que fiz sobre a visita a ele, esclareceu-me sobre vários detalhes da topografia da região e informou-me, entre outras coisas, onde havia ficado um dos postos de saúde avançados durante a guerra. Falou também sobre o funicular que os americanos haviam construído e sobre a placa comemorativa que há no local hoje. 201


O simpático restaurante “C´era una volta”, cuja porta se vê ao fundo, fica bem na descida do caminho que leva à base do Capel Buso. (foto recente)

Desta bucólica fontezinha, em Farné, avista-se a crista do Capel Buso. Eu e Ana Maria na última visita.

202


De acordo com o Amedeo, nesta casa de pedra, hoje semicoberta pela vegetação, os americanos haviam instalado qualquer coisa do Serviço de Saúde deles.

O monte Pizzo di Campiano, o terceiro da cordilheira, visto de um restaurante (bom, aliás) em Rocca Corneta.

203


Capítulo 17

RONCHIDOS DI SOPRA A capela de Nossa Senhora dos Emigrantes (inicio do séc. XX) fica na parte mais alta de uma elevação próxima a Montese. Com as duas águias de metal escuro no topo de colunas de pedra, é objeto de peregrinações, como consta no texto ao lado. Terminado o combate havido ali, estava semidestruída. Um fato interessante é contado por companheiros que passaram por lá: Apesar de os bombardeios haverem destruído quase tudo no interior, uma imagem dentro de um pequeno santuário preso em umas das poucas paredes que ficara em pé continuou intacta. Alguns soldados do 6º RI que haviam participado dos combates acharam que a imagem era milagrosa e quiseram trazêla para o Brasil. Sabedor do fato, o general Mascarenhas ordenou que a devolvessem e que fosse posta no mesmo lugar onde estava. Bem ao contrário do que se passava com outras tropas, os brasileiros sempre tiveram um respeito muito grande pelo patrimônio local. Os italianos sempre reconheceram e foram gratos por isso.

204


Próximo a Montese, formando parte do grupo de elevados picos que no

princípio de 1945 foram objeto de duros combates, em que se empenharam juntas a FEB e a 10ª Divisão de Montanha, fica o monte Ronchidos. A parte superior

é chamada Ronchidos di Sopra e ali existe um santuário (Nossa Senhora dos Emigrantes) de arquitetura robusta, maior que as capelas que em geral se

encontram naquela zona da Itália. Tem à frente da porta principal duas altas colunas de pedra, encimadas por duas águias de metal escuro. No corpo principal há uma torre vazada e dentro dela, um belo sino de bronze.

Este santuário é objeto de peregrinações. Não tão famosas como as que se

dirigem a Santiago de Compostela, mas atrai também andarilhos cujo bastão e

mochila fazem lembrar os que buscam a famosa catedral espanhola. Há uma estátua de bronze na parte posterior da capela, representando um deles.

Os alemães já estavam ali desde 1943 e haviam se preparado bastante bem

para suportar o frio, a neve e o gelo que nos invernos ali são intensos. Como a elevação oferece visão perfeita para alvos de nível mais baixo - estradas, etc., construíram ali fortificações importantes que eram bons exemplos de competente engenharia militar. As casamatas comunicavam-se entre si por túneis. Algumas

delas tinham coberturas para proteger a entrada da neve e, até certo ponto, do frio.

Na sequência das operações vitoriosas que já haviam desenvolvido na

região, a 10ª Divisão de Montanha e o nosso 6º RI conseguiram ali mais uma bela vitória.

Logo depois da conquista, como costumava acontecer, o “front” avançou

para novos objetivos, e uma parte do 6º RI foi deixada ali para ocupação e defesa de possíveis contra-ataques.

A fama das casamatas, dos “bunkers” - mais aprimorados do que os que

havíamos visto até então - despertou muito nossa curiosidade. Eu, o Luso e o Nogueira de Sá, e também alguns “praças” do nosso grupo, estando lá,

pudemos examiná-las de perto, olhar os tais túneis, as caprichadas fachadas, e registramos tudo tirando algumas fotos.

205


Uma das casamatas de Ronchidos, protegida contra a neve. Eu à direita, o Luso à esquerda e Nogueira de Sá quase fora da foto.

206


RONCHIDOS DI SOPRA

Alguns do meu grupo diante de mais uma caprichada casamata “tedesca” em Rochidos. Eu fotografei.

207


Uma das vĂĄrias casamatas de Ronchidos, interligadas por tĂşneis.

208


O Nogueira de Sá e o Luso cercados por alguns homens do nosso pelotão e do 6 o RI, em Ronchidos. O Nogueira é o primeiro à esquerda e o Luso está sentado junto à árvore. Estou ausente, eu fotografei.

209


Ronchidos havia sido tomado por um conjunto de tropas formado pela 10 a de Montanha e pelo 6 0 RI. Os montanheses foram-se dali para novas escaladas e abandonaram ao lado da capela este tanque, possivelmente por algum problema mecânico. Uma parte dos praças do 6 o RI ficou guardando o monte para defendêlo de contra-ataques. Quando eu, o Luso e o Nogueira de Sá fomos para lá, a situação era tranquila, o que nos permitiu até mesmo fazer fotos, etc. Eu (sentado) e alguns padioleiros resolvemos fazer “pose” ao lado do tanque.

210


Em 2014, voltando ao lugar, resolvi fazer esta outra foto no mesmo ponto e na mesma posição em que eu ali estava há 70 anos. Atenção à capela, semidestruída na foto à esquerda e completamente restaurada na foto recente.

211


Uma das várias casamatas de Ronchidos. A terra queimada, a casamata abandonada, os buracos de bomba. Rastros dos combates. Paisagem habitual (em Ronchidos, como em todas as áreas do “front”).

212


Foto feita recentemente desse belo gramado numa das encostas de Ronchidos que, à época, guardava, como em todas as outras encostas, um grande número de minas e a aridez que se vê na foto à esquerda.

213


No texto de uma placa, escrito em várias línguas, lê-se em um dos parágrafos: “A localidade é conhecida também pela matança ocorrida em 29 de setembro de 1944, em que os alemães assassinaram, por represália, 68 pessoas, crianças e mulheres na maioria e depois incendiaram as moradias da área”. Acima, a exumação dos corpos da matança de Ronchidos pelos militares americanos. 214


Esta família de “sfollati” devia estar regressando ao local onde vivia, em Ronchidos. Havia se afastado dali e com isto se salvado do massacre feito pelos SS, que mataram 68 mulheres e crianças e depois queimaram suas casas. Quando os fotografei eu ainda não tinha conhecimento daquela tragédia. Só fotografei. Não falei com eles. Não era raro encontrarse vagando, pelas pequeninas estradas do interior, famílias inteiras que haviam sido forçadas a abandonar suas casas, destruídas ou semidestruídas por terem sido envolvidas no fogo cruzado dos combates. Levavam seus animais, principalmente vacas e cabras, cujo leite alimentava as crianças. Cobriam-se com os agasalhos e cobertores que tivessem para protegerem-se do frio. Raramente homens válidos estavam entre eles, pois em sua maioria haviam se tornado “partigiani”. Foto e texto constam no Capítulo 9,

A ITÁLIA OCUPADA E DOMINADA PELOS NAZISTAS

(páginas 96 e 97)

215


Capítulo 18 IOLA

A localidade de Iola fica próxima a Montese, bem no centro dos muitos combates havidos entre as LINHAS GÓTICA e GENGIS KHAN. Em Iola morreram nove brasileiros. Existe neste local um museu, muito bem organizado. O Sr. Gandolfi, que perdeu vários membros de sua família durante a guerra e que vem há muito tempo adicionando cuidadosamente peça por peça a este museu, possui hoje uma das mais perfeitas coleções de material utilizado durante a guerra. Inclusive do material médico que utilizávamos no Batalhão de Saúde. Por ocasião da minha primeira visita ao museu de Iola, à porta de entrada estamos: o Sr. Gandolfi, o menino Ricardo que usava orgulhosamente uma camisa da FEB, eu e o pai do menino. 216


Há, no museu de Iola, inúmeras peças dos exércitos americano e alemão. Aqui, algumas amostras.

217


Na primeira visita que fiz ao museu em 2013, um menino (Ricardo) de 13 anos vestia uma camisa com o emblema da FEB. Na visita que fiz no ano seguinte, levei para ele outra camisa e dei a ele um emblema, que tirei de minha própria jaqueta. Depois de algum embaraço, me

em

tentou

português,

agradecero

que

aliás

era desnecessário: sua cara de satisfação já dizia tudo.

218


Numa sala hĂĄ figuras representando o atendimento a um ferido (talvez numa guerra limpinha fosse assim).

219


220


Em setembro de 2014, visitando pela segunda vez o museu, levei do Brasil uma placa de metal com a fotografia de um dos mortos em Iola, o soldado Donato Ribeiro, que era de Niterói. No mesmo estojo havia uma medalha “sangue do Brasil” à qual o soldado fazia jus. Na foto, o Sr. Gandolfi agradecendo a placa e a medalha do soldado brasileiro morto em Iola. Ao lado, um diretor do museu e o Sr. Mario Pereira.

221


Um jornal de Modena enviou um jornalista para

entrevistar-nos, registrando a

visita.

A

entrevista

foi

publicada,

com foto e tudo, no dia seguinte.

Grupo formado à porta do Museu de Iola durante minha segunda visita. À esquerda com um cantil na mão, o Sr. Mario Pereira, historiador italiano e diretor do Monumento Votivo aos Combatentes Brasileiros mortos, de Pistoia.

222


Material mĂŠdico usado nas linhas de frente. (No meu Posto de Triagem, inclusive). Ampolas descartĂĄveis de morfina.

Estojo de instrumentos cirĂşrgicos. 223


Caduti di Bombiana nella guerra 1940 - 45 Al fronte e Per cause e conseguenZe della guerra Em Bombiana na praรงa principal, uma placa com os nomes dos habitantes mortos na guerra. Entre eles cinco parentes do Sr. Gandolfi.

224


Os italianos recompõem viaturas antigas, da guerra, com extremo capricho e competência. O jipe do Sr. Gandolfi é tão completo como o de qualquer general americano.

225


Capítulo 19 MONTESE

Após a gloriosa conquista do Monte Castello que tantas vidas havia custado às nossas tropas, havia que ser enfrentada a Linha Gengis Khan cujo baluarte principal era Montese. A 14 de abril, alguns dias após a tomada de Iola iniciou-se o assalto àquele baluarte muito bem defendido pelo (meio) inimigo, que se protegia no importante castelo de cuja alta torre dominava uma extensa região. A batalha por Montese durou quatro dias e custou à FEB um grande número de baixas. Vale citar aqui o elogio feito pelo Alto Comando das forças aliadas dos exércitos que lutavam na Itália: “Na jornada de ontem, só os brasileiros mereceram as minhas irrestritas congratulações; com o brilho do seu feito e seu espirito ofensivo, a Divisão Brasileira está em condições de ensinar às outras como se conquista uma cidade”. Montese é hoje uma cidadezinha muito agradável. Inclusive pelos seus restaurantes de cozinha simples mas deliciosa. Principalmente na época dos “tartufos” que são colhidos na região e servidos quando ainda estão exalando perfume. Em todo o trajeto da FEB há manifestações que testemunham a gratidão do povo italiano pelo esforço e sacrifício que os brasileiros fizeram na guerra. Em Montese, além de haver um belo monumento em granito, puseram o nome Brasile numa das praças principais e até mesmo, em certas datas, as crianças das escolas cantam as duas primeiras estrofes do hino da FEB.

226

As ruas que são vistas aqui são as mesmas que, em fotos antigas, aparecem lotadas de soldados, tanques e tudo o mais, logo após a dura conquista conseguida pelos brasileiros em sangrenta batalha que durou quatro dias.


A tranquila rua que aparece ao centro da foto acima é a mesma da página à esquerda, com prédios semidestruídos e ocupada por tanques brasileiros em 1945, logo após a conquista.

Acima, um dos tanques que participaram dos combates. 227


Um chafariz existente na praça principal de Montese ainda guarda perfurações de bala.

O mesmo chafariz da foto de cima, em 1945.

228


O mesmo chafariz da praça em foto recente. Eu e o Mario Pereira.

Um dos edifícios da praça após a conquista. Na parte superior da foto aparece a torre do grande castelo que domina toda a região. Os alemães, de dentro do castelo, fizeram durar quatro dias uma dura batalha para os brasileiros. A conquista teve que ser feita quase casa a casa.

229


Mario Pereira e Ana Maria visitando o pátio interno do castelo militar de Montese, de onde os alemães resistiram, atirando, por quatro dias, até mesmo após a cidade já estar tomada pelos brasileiros.

230


Do

castelo

artilharis

tem-se

à

todas

as

vista

e

ao

localidades

alcance

da

próximas.

Inclusive Porretta Terme, que por isso sofria bombardeios permanentes. O QG da FEB esteve instalado em Porretta durante os primeiros meses da campanha, mas em parte da cidade que não estava em “linha de tiro”, isto é, não poderia ser atingida diretamente.

Foto antiga da entrada do castelo de Montese datado do século XII (foto do séc. XIX).

231


Capítulo 20 A OBSTINADA RESISTÊNCIA ALEMÃ. BRASILEIROS APRISIONAM DOIS GENERAIS E 14 M I L S O L D A D O S E M U M A S Ó O P E R A Ç Ã O D E CERCO

O Major Kuhn (com o bastão), acompanhado de mais dois oficiais alemães, entrega a mensagem ao Cel Nelson de Mello. 232


No final do mês de abril já se antevia que a rendição da Alemanha era questão

de algumas semanas, no máximo. Mesmo assim, qualquer tentativa de arrefecimento da

parte dos aliados, da FEB inclusive, permitia que da parte deles houvesse fogo tão intenso quanto conseguissem. Nossas tropas continuavam, até mesmo, a sofrer baixas, e as deles também.

Informações obtidas pelo nosso comando indicavam que havia uma forte tropa

inimiga concentrada na região de Fornovo. O Cel Nelson de Mello, então, dispôs duas

baterias de artilharia, uma Companhia de Engenharia e uma de Tanques, além de um Esquadrão de Reconhecimento, que conseguiram de forma muito competente cercar a tropa inimiga que, constatou-se depois, era muito maior do que as avaliações iniciais.

Houve forte reação deles. Por duas vezes tentaram romper a barreira procurando

alcançar o vale do Rio Taro, mas o cerco da FEB foi suficientemente bem organizado para contê-los. Infelizmente ainda conseguiram causar, entre os nossos, cinco mortes e 50 feridos.

Sendo militarmente claro que a situação deles não tinha saída, o Comandante

Brasileiro chamou o vigário italiano Dom Alessandro Cavalli pedindo a ele que levasse aos inimigos a seguinte mensagem de intimação: “Ao comando da tropa sediada na região de Fornovo-Respiccio: Para poupar sacrifícios inúteis de vida, intimo-os a rendervos incondicionalmente ao comando das tropas regulares do Exército Brasileiro, que

estão prontas para vos atacar. Estão completamente cercados e impossibilitados de qualquer retirada. Quem vos intima é o comando da vanguarda da Divisão Brasileira,

que vos cerca. Aguardo dentro do prazo de 2 horas a resposta do presente ‘ultimatum’ – Nelson de Mello, Coronel”.

Duas horas depois o vigário retornou com a seguinte resposta: “Sr. Coronel

Nelson de Mello, depois de receber instrução do comando superior, seguirá nossa resposta. Major Kuhn”.

Passadas mais algumas horas, não recebendo resposta, a FEB iniciou o ataque e

a troca de fogo continuou. Por volta das 21 hs a tropa alemã organizou-se para uma nova investida a fim de romper o cerco. Foi rechaçada por completo.

Pouco tempo depois o Major Kuhn, que era chefe do Estado-Maior da 148a Divisão

Alemã, acompanhado por dois outros oficiais alemães, cruzou as linhas brasileiras com bandeiras brancas, certamente - e pediu para falar com nosso comandante.

233


Passo a relatar trecho do historiador brasileiro Rigoberto Souza Júnior, que

“O Major Kuhn, segundo a descrição de oficiais que estavam presentes no local,

resume bem os históricos acontecimentos que se sucederam:

era um homem magro de estatura mediana, com olhos azuis e face encovada pelo longo

tempo de batalha, que pertencia ao exército regular alemão, e mostrou-se satisfeito

ao saber que os brasileiros também pertenciam ao exército regular brasileiro. Ele

comunicou que havia sido autorizado pelo General Otto Fretter-Pico a negociar a

rendição da Divisão Alemã e remanescentes da Divisão Bersaglieri Itália e da 90ª

Panzer Granadier, e informou possuir 800 feridos e aproximadamente 16 mil homens (e

entre estes havia inúmeros membros do famoso ‘Afrika Korp’), 4 mil animais e 2,5 mil viaturas, as quais mil motorizadas e sem combustível. Admirado com o tamanho da tropa

que ora se entregava, o Coronel Nelson de Mello foi ao Quartel-General em Montecchio

informar ao General Mascarenhas de Morais este fato e solicitou-o que retornasse a Collecchio com mais dois oficiais, e que a rendição deveria ser incondicional, o que foi aceito. Então, os parlamentares alemães retornaram por volta das 6 da manhã, sem

antes informar que foi solicitado idêntico tratamento para os Generais Fretter-Pico e Mário Carloni (tropas as quais desertaram quase totalmente, permanecendo apenas aqueles cujo sentimento de dever militar era a toda prova, ou aqueles que temiam uma sanguinária vingança por parte dos seus patrícios).”

“Os Generais Fretter-Pico e Mário Carloni foram escoltados até Florença pelos

generais Falconière e Zenóbio, respectivamente, e as manobras da rendição foram

conduzidas pelo Coronel Floriano de Lima Brayner, Chefe do Estado-Maior da FEB na noite do dia 28 para 29 de abril de 1945, por determinação do General Mascarenhas de Morais. O Coronel Lima Brayner comandou toda a área da rendição recebendo os 14.479

prisioneiros alemães, enquanto o General Olympio Falconière, que comandava os órgãos da retaguarda com PC na cidade de Montecatini, foi designado para acompanhar o General Fretter-Pico à cidade de Florença e o General Zenóbio foi designado para escoltar o General Mário Carloni, que foi o primeiro a se render, sendo seguido pelo

general alemão, esclarecendo que a rendição foi assinada na cidade de Gaiano, e não na cidade de Fornovo.”

234

Francisco Miranda, historiador


Rubem Braga era correspondente de guerra e assistiu de perto a rendição. Narra algumas pequenas histórias das que se passaram paralelamente aos atos oficiais. Por exemplo:

“Quando uma coluna de prisioneiros, fatigada, passava, ao meu lado uma italiana desmontou da bicicleta, à margem da estrada, e gritou para os alemães: - Vejam! Estou com uma bicicleta, não querem tomá-la agora? Vocês já roubaram tanta coisa lá em casa, porque não roubam agora esta bicicleta? Gostam tanto de bicicleta!! Há, prefere andar a pé mesmo, não é? Miseráveis!

Ri, alguns soldados nossos riram, até dois ou três alemães riram.

O general veio com seu Estado-Maior – um comboio de automóveis de todas as marcas e tipos desses últimos 20 anos, produto da rapina em toda Europa. Atrás de um poderoso ‘jeep’ anfíbio alemão, um antigo táxi parisiense”.

Mais adiante:

“Um cabo brasileiro fazia funcionar uma baratinha apreendida naquele instante e já escrevera no para-brisa um nome certamente saudoso: ‘Marieta’. Escurecia. Um pelotão tedesco passava devagar a caminho da prisão. De repente um deles começou a cantar e os outros acompanharam. Não sei o que dizia a canção, mas na penumbra e na poeira da pobre estrada italiana aquilo era uma canção de derrota.”

Uma fila interminável de prisioneiros é conduzida para a retaguarda brasileira. 235


Prisioneiros alemães sendo encaminhados para o campo de concentração brasileiro em Scodogna.

236


Ao centro da foto, o Major Kuhn, logo atrás dele o rosto (inconfundível) de Rubem Braga, então “correspondente de guerra”. À direita, o perfil do General Olympio Falconière da Cunha e à esquerda, de boné de lã, o general alemão Otto Fretter-Pico.

237


Os primeiros feridos, os mais graves, chegavam em ambulâncias deles (muitas vezes ambulâncias civis recrutadas). Como não eram suficientes, as ambulâncias brasileiras completaram o trabalho de evacuação trazendo um número enorme de feridos inimigos para os nossos postos.

238


Oficiais alemães, prisioneiros, chegando em viaturas sob a vigilância dos M.P. (“Military Police”) brasileiros (fotos Ministério da Guerra).

239


Equipamentos alemĂŁo e italiano aprisionados pela FEB.

240


Prisioneiros alemães sendo encaminhados para o campo de concentração.

À esquerda, o General Falconière da Cunha.

Otto

Fretter-Pico

e

à

direita,

o

General

241


CapĂ­tulo 21 Q U A N D O, E M Q U AT T R O C A S T E L L A , M E U P O S T O AT E N D E U A D E Z E N A S D E F E R I D O S I N I M I G O S

Foto recente da praça central diferente e não havia muretas.

242

de

Quattro

Castella.

Em

1945

o

piso

era


Ultrapassada a LINHA GÓTICA em seu núcleo mais duro, que incluía uma

sequência de montes fortificados - desde Serrasiccia, Cappel Buso, Pizzo di

Campiano, Belvedere, Gorgolesco, della Torraccia até o célebre Monte Castello, que custou a vida de muitos brasileiros, ultrapassada também a LINHA GENGIS KHAN,

onde foram tomados Montese, Castel Nuovo, Zocca e vários outros objetivos, as forças brasileiras puderam então lutar em zona mais plana e conseguiram armar

um cerco a partir de Collecchio, em direção a Fornovo, envolvendo importante parte dos exércitos inimigos em combate. Eram duas Divisões inteiras incluindo dois generais alemães e um italiano, um grande número de prisioneiros – cerca de 15.000 - e uma enorme quantidade de material bélico.

Mesmo cercados, os nazistas recusavam-se a renderem-se. Por mais de uma vez

tentaram romper o cerco. Inclusive sofrendo e causando baixas. Houve então uma

fase de trégua, em que um vigário italiano levou a eles um “ultimatum” assinado pelo Coronel Nelson de Mello, que comandava a nossa tropa. Embora a rendição

fosse incondicional, o comando brasileiro aceitou o pedido deles para que fossem recebidos, em nosso Serviço de Saúde, os cerca de 800 feridos que eles tinham.

Todo o Batalhão de Saúde foi empenhado nessa operação. Muitas ambulâncias foram utilizadas para trazê-los, inclusive, das nossas, algumas tiveram que busca-los atrás de suas linhas.

Estávamos eu e o Nogueira de Sá com nossos Postos de Triagem dentro de um

grande barracão na praça principal de uma localidade chamada Quattro Castella,

quando um grande número de ambulâncias brasileiras começou a deixar soldados feridos, não só alemães, mas italianos (fascistas) e até romenos, que lutavam à força ao lado deles. Trabalhamos muito, provavelmente por mais de 24 horas seguidas. Lembro-me que dormimos muito pouco e que estávamos cansadíssimos. Os

soldados alemães feridos pedindo clemência, para serem agradáveis, davam-nos

seus capacetes, medalhas e outras coisas que já não lhes interessavam mais. (Tenho até hoje um capacete de aço alemão que, além do meu, serviu durante alguns

anos para Carlos e Fernando usarem em brincadeiras com outros garotos da idade deles.) Medalhas alemãs também trouxe várias, foram todas perdidas nas mesmas brincadeiras. (No Capítulo 22 volto ao assunto Quattro Castella).

243


A resistência alemã, após a rendição daquele enorme contingente, tornou-se fraca. Daí para diante as conquistas de Parma, Piacenza, Cremona, Lody, Alessandria, Tortona, Turin, etc. foram quase ocupações sem fogo. Não nos esqueçamos, porém, de que nas retiradas os nazistas deixavam sempre campos minados, explosivos ou outros artefatos nas estradas e que ainda havia pequenos grupos de franco-atiradores, o que impedia que esta última fase da guerra fosse um “passeio na pista”. Esses bolsões de resistência eram formados por elementos fanáticos da SS nazista que queriam lutar até o fim. E grupos de fascistas italianos que haviam cometido atrocidades. Queriam salvar a pele, escapar dos “partigiani” que os caçavam, sedentos de vingança.

O enfermeiro que atende a um alemão parece não ser um dos nossos. Porém a foto é simbólica. Podia ter sido feita no meu Posto, em Quattro Castella. (Os capacetes de fibra não tinham cruz vermelha. Só os de aço, que eram postos sobre este.) 244


Entre o material que os feridos alemães que atendemos

em

Castella conosco caixa

Quattro deixaram

estava de

esta

munição,

dentro

da

qual

coloquei

as

várias

medalhas, cinturões de metal e outros objetos deles (quase tudo foi dispersado ou perdido nos muitos anos em que todo foi

este

material

abandonado

entregue

às

ou

crianças

para brincarem). 245


Capítulo 22 TRA JETÓRIA DO MEU POSTO DE SAÚDE DESDE A C H E G A D A N A I TÁ L I A AT É O F I M D A G U E R R A . RELAÇÕES COM O “FRONT”

Antes de tudo, devo dizer que durante a guerra, na Itália, não sofri absolutamente

nada. As preces de minha mãe – certamente as houve – devem ter trazido uma blindagem

quase total sobre mim. Vi de bem perto muito sofrimento, fiz o que pude para minorálo, vi rapazes heroicos que enfrentaram perigos grandes – felizmente nenhum morreu ao

meu lado ou sob meus olhos –, soube de casos, muitos, de gente que se arriscou para salvar outros, enfim, vi a guerra em torno de mim mas não fui fisicamente atingido por ela.

Recentemente tenho participado de solenidades e recebido homenagens por ser

veterano. Aceito, é claro, mas um pouco constrangido. Em duas ocasiões, por ser o único veterano presente, pediram-me que dissesse alguma coisa aos que assistiam. Falei que

a Liberdade que desfrutamos hoje teve um preço alto. E tem credores. Muitos credores. Eles são os que repousam sob milhares de cruzes brancas nos cemitérios militares, na

Europa. Ou, quanto aos nossos, sob os retângulos de mármore no subsolo do “Monumento aos Pracinhas”, no Rio de Janeiro.

As gerações de hoje não se dão conta, mas a Liberdade correu grande risco

naqueles anos terríveis de 1939 a 1945.

COMECEMOS

Eu era o 2o Tenente Médico Carlos Henrique Bessa, responsável por uma Meia Seção

Contava com um sargento enfermeiro, 14 padioleiros, um “jipão” (viatura semelhante

de Triagem do PS da 3a Companhia do 1o Batalhão de Saúde da FEB.

a um “jeep”, porém de tamanho maior) e uma ambulância (a outra Meia Seção pertencia ao Tenente Nogueira de Sá, médico de São Paulo).

A lista de meus deslocamentos, com meu Posto acompanhando o “front”, é longa.

Foram cerca de vinte. Eles constam, quase todos, nos “Boletins de Ocorrências” do Batalhão de Saúde. Felizmente guardei quase todas as páginas, hoje amareladas pelo tempo, e isto é o que me permite reconstituir a trajetória. 246


DE NÁPOLES – LIVORNO - PISA

Chegando a NÁPOLES, fiquei dois dias sem sair do “General Meigs”. Logo entrei

naquela “emocionante” viagem de 36 horas sobre mar revolto em uma das barcaças LCI,

usadas no desembarque da Normandia, viagem que descrevi em meu diário com palavras dramáticas. Descemos em LIVORNO, de lá fomos para PISA e passamos, todos, cerca de

duas semanas acampados em barracas que ocupavam um grande espaço plano, antigo campo de caça da família real italiana, chamado SAN ROSSORE.

247


DE SAN ROSSORE – VECCHIANO DE SAN ROSSORE deslocaram-me para VECCHIANO, um vilarejo simpático que já havia sido libertado há cerca de um mês pelos americanos. Eu e o Nogueira de Sá ficamos, ambos, instalados na garagem de uma casa assobradada, bastante confortável, que devia ser de alguma família de posses. Dava frente para a praça principal da cidadezinha. O comércio em Vecchiano já estava recomeçando. Algumas lojas estavam abertas, inclusive uma de objetos de arte. Vi na vitrine uma pequena escultura de bronze representando duas gazelas correndo, que me pareceu tão leve e elegante que comprei. Tenho-a até hoje no meu escritório (minha mãe guardou-a por muitos anos). Ao contrário da zona montanhosa, cujo solo havia sido arrasado e queimado pelo fogo dos combates, algumas zonas mais planas da Toscana ainda apresentavam, quando nós chegamos, o belo panorama que encantou a nós todos. Insclusive ao sargento Daniel que aparece na foto.

Ainda sobre Vecchiano, vou mencionar que, pela primeira vez, com intenção de começar a entender o italiano, eu e o Nogueira nos relacionamos com uma família local residente numa casa modesta, também da praça, onde um casal e mais dois ou três adultos tinham muito prazer em nos receber e conversar conosco nas horas vagas, porque levávamos a eles algumas coisas que não tinham: cigarros, talvez açúcar e trigo. Embora esse relacionamento trivial não tivesse durado mais de 10 dias, agradeceramnos por carta durante algum tempo. O que quero dizer é que, ao contrário de outras tropas que passaram pela Itália sem se imiscuírem com os civis, como as americanas e inglesas, ou traumatizando-os, como os alemães, os brasileiros deixaram um rastro de bom relacionamento ou até mesmo de boas amizades (escrevo sobre isto no Capítulo 20 e 248

em fotos no Capítulo 7).


DE VECCHIANO – PORRETTA TERME – CASTEL DI CASIO De VECCHIANO deslocaram-me para PORRETTA TERME. Aí as coisas mudaram muito. Porretta Terme ficava bem ao pé dos montes ocupados pela famosa LINHA GÓTICA, a mais forte linha de defesa alemã. O Quartel-General da FEB havia se instalado em Porretta. Os alemães sabiam disso, é claro, e hostilizavam a pequena cidade com bombardeios sucessivos. Dia e noite. Ali passei uma semana e, para sorte minha, o Batalhão de Saúde subdividiu-se e meu Posto foi transferido para um “paese” próximo a Porretta, chamado CASTEL DI CASIO. Aí, já o frio começava e eu e o Nogueira de Sá fomos ocupar um quarto no andar superior de uma casa próxima à pequena praça central. Era a moradia de um casal de meia-idade, ele ex-funcionário público e ela “maestra” de escola, o senhor e a Sra. Nanni. A nossa permanência ali, minha e do Nogueira, foi prolongada porque o inverno quase interrompeu a guerra. Descrevo a guerra no inverno - que se reduziu a duelos de artilharia e patrulhas, e também conto como foram as nossas relações com as pessoas da casa onde ficamos, nos Capítulos 13 e 14, respectivamente. Quanto ao meu trabalho em Castel di Casio, foi pouco. Tanto pela calmaria do “front”, como pela dificuldade de colocar o nariz fora da porta, pois a temperatura chegava, por vezes, a 17 graus negativos.

Porretta

Terme

-

edifício

semidestruído,

como

quase

todos

os

outros. 249


DE MAZANCANA – ABETAIA

Ainda no inverno, mas numa fase mais amena, fim de fevereiro, eu estava bem

próximo a duas localidades, MAZZANCANA e ABETAIA, por sua vez quase encostadas

ao Monte Castello, que deviam ser conquistadas antes da dura batalha final que, esperava-se, iria se desenrolar no célebre monte (como realmente ocorreu). Pude

assistir, então, a curta distância, ao intenso bombardeio que os aviões do 1o Grupo

de Caças da FAB faziam sobre Mazzancana. Desciam vertiginosamente, um por um, soltavam bombas, metralhavam e voltavam a subir. Foram cenas impressionantes, que tenho bem registradas na memória como se fossem recentes.

Às vezes havia deslocamentos rápidos e transitórios para dar apoio a outro PS

A ocupação de Abetaia teve um significado especial. O local havia sido palco,

que estava sobrecarregado ou na expectativa de sê-lo. Este foi um deles.

em pleno inverno, em dezembro, de uma ocorrência penosa para nós: uma patrulha nossa composta por 17 homens insinuou-se por um caminho próximo ao casario, quando foi cercada de emboscada pelos alemães e dizimada a tiros de metralhadora. A neve, que

era muita, e o frio, intensíssimo, guardaram os 17 corpos durante quase dois meses

até que, em 20 de fevereiro, eles puderam ser resgatados. Recentemente visitei o local (fotos anexas), que hoje se chama “Sentiero della Libertà”, na viagem que fiz em junho de 2014.

Em 8 de março transferiram outra vez meu PS para a “animada” PORRETTA. Talvez

porque uma ofensiva no Vale do Panaro havia começado. Ali fiquei até o dia 11, quando fui transferido para SILLA, que ficava mais adiante.

Mas continuemos a minha trajetória:

Fevereiro foi agitado. A OPERAÇÃO ENCORE entrou em cena violentamente nos

montes do oeste, que foram um a um conquistados. E logo depois houve a tomada de Abetaia e Mazzancana, já em condições estratégicas melhores.

Foi também enfrentado outra vez o Monte Castello, e finalmente os brasileiros

lavaram a alma: conseguiram expulsar os alemães e o fatídico monte foi dominado gloriosamente pela FEB. 250


No trecho deste caminho que se alonga mata adentro morreram 17 patrulheiros brasileiros. A patrulha sofreu uma emboscada e foi dizimada pelos alemães. Morreram todos em dezembro de 1944, em pleno inverno, às vésperas de um dos primeiros assaltos ao Monte Castello. Os corpos só puderam ser recolhidos em fevereiro. Ficaram sob o gelo e a neve durante quase 3 meses. Segundo consta, há sinais de que resistiram até a última bala. Hoje são homenageados especialmente como “Os 17 heróis de Abetaia”. O local passou a ser chamado “Sentiero della Libertà”. 251


Esta senhora mostra sua casa como era, em Abetaia, à época da Guerra. A 400 metros do Monte Castello, Mazzancana e Abetaia foram intensamente bombardeadas no dia 20 de fevereiro. Eu assisti à ação dos aviões da FAB durante longo tempo, descendo um atrás do outro, jogando as bombas e subindo outra vez. Eu estava bem próximo à nossa artilharia que fazia fogo também, intensamente. Era a preparação para os nossos infantes iniciarem o assalto e a conquista que se completou no dia 21.

Ao lado da casa dessa senhora, à entrada do caminho que hoje se chama Sentiero della Libertà ainda há um portão perfurado de balas. Na foto, eu, o Mario Pereira e um cinegrafista que fazia um documentário para uma TV de Milão.

252


Os brasileiros inventaram um modo de evitar o “pé de trincheira”: tiravam as botas e calçavam as folgadas galochas forradas com muito feno e pedaços de papel para manter os pés aquecidos. A incidência do problema foi consideravelmente menor que em outras tropas, o que chamou a atenção dos americanos e levou-os (sic) a estudar a adoção da ideia. 253


de PORRETTA – SILLA

Em 8 de março transferiram meu PS outra vez para a “animada” PORRETTA. Uma ofensiva no Vale do Panaro havia começado e ali fiquei até o dia 11, quando fui transferido para SILLA. Em Silla, meu PS foi instalado na garagem de uma casa particular à beira da estrada, logo depois de uma curva acentuada, numa das entradas da cidade. O local foi escolhido pela facilidade de acesso de ambulâncias, tanto para chegar quanto para partir. A casa durante a guerra estava vazia. Havia uma porta dentro da garagem que dava acesso ao interior dela. Lembro-me de que me instalei em algum quarto enquanto estive ali. Silla tinha ficado famosa porque ali havia uma ponte de grande importância estratégica, muito visada pela artilharia alemã, e que por isso estava sempre envolta em uma fumaça artificial. Um grupo de soldados ingleses ocupava-se de produzir a fumaça. Entre eles havia um soldado muito parecido com um ator de cinema famoso na época, Stanley Laurel, que era o “magro” da dupla “Gordo e Magro”. A soldadesca gostava de procurá-lo para confirmar se era ele mesmo o “magro” e ele, malandramente, confirmava. Recentemente, voltando a Silla, encontrei e reconheci facilmente a garagem onde esteve meu posto instalado em 1944. Muitos detalhes me vieram à memória perfeitamente: da garagem, bem como de outras coisas no entorno. A placa “Silla” na parede da estação da estrada de ferro, por exemplo, ainda me parecia bem familiar.

Duas fotos de Bombiana. Fiquei lá do dia 10 ao dia 20 de abril, período no qual se deu a duríssima batalha por Montese, que durou de 14 a 18 do mesmo mês. Perto de mim estava também Iola, que foi conquistada no mesmo período e que, além de muitos feridos, trouxe um triste saldo de nove brasileiros mortos.

254

Sempre com intenção de reencontrar o local onde esteve instalado meu posto, procurei conversar com alguns senhores idosos. Eram adolescentes no tempo da guerra e suas famílias, como tantas outras, haviam deixado a cidade se afastando do “front”.


A cada vez que alguém do comando tinha que instalar meu Posto em um novo local, acompanhando o “front”, buscava algum ponto, de preferência abrigado, que fosse à margem de uma estrada para facilitar a chegada de feridos e seu envio para a retaguarda. Na última viagem que fiz à região da FEB recentemente, em 2014, pude registrar um exemplo típico: o local em que meu Posto foi instalado na cidadezinha de Silla. Apesar de passados quase 70 anos, reconheci com facilidade a garagem onde meu Posto funcionou, numa casa amarela à beira da estrada e que, durante a guerra, estava desocupada. No interior da garagem havia uma porta interna que dava acesso ao interior da casa. Num dos quartos então vazios - instalei minha cama de campanha. Os sargentos e soldados fizeram o mesmo em outros aposentos, e assim trabalhávamos. Agora, como a casa estava, felizmente, com a garagem aberta, pudemos eu e Ana Maria entrar ali sem sermos vistos. Lá estava, à esquerda, a tal porta que dava para o interior da casa. Tudo igual. Instalar meu Posto em garagens era sempre a hipótese preferida. De memória, lembro-me de algumas: Vecchiano, Crocciale e Quattro Castella. Nesta última, a garagem era enorme, provavelmente de algum estabelecimento comercial, localizada em uma praça. 255


de SILLA – CROCCIALLE

De SILLA fui para CROCCIALE, que era um pequeno grupo de casas. Nossa instalação foi feita ali, certamente por convergirem três estradas que provinham de zonas diferentes do “front”. Não só o meu PS como muita gente do Batalhão de Saúde estava lá também. Logo que cheguei em Crocciale, em 14 de março, a FEB fez uma tentativa para tomar Montese. Não teve êxito. Não me lembro se em Crocciale ou em Bombiana os feridos provindos de Montese e de Iola foram socorridos.

Recentemente, tentando mais uma vez reconhecer os locais por onde meu PS esteve instalado, em 1945, vi em Crocciale uma garagem à beira da estrada, cuja fachada me pareceu familiar. Curiosamente me vieram à memória dois fatos ligados àquele local. Lembrei-me de que uma vez estávamos eu e algum italiano à porta daquela garagem, quando chegou o capelão do Batalhão de Saúde, padre Brito, que falava bem a língua e na conversa empregou a palavra “dunque”; fiquei curioso e fui procurar esclarecimentos, traduziram-me: em português, “portanto” ou “...de onde se deduz que”. Lembrei-me também que havia uma lareira, antigamente, na garagem. Agora, existe ali uma oficina mecânica e dois homens que trabalhavam ali vieram à porta quando me viram interessado, olhando lá para dentro. Expliquei-lhes do que se tratava: que supunha conhecer aquele local, talvez por ter trabalhado ali num Posto de Saúde durante a guerra. Que tinha ideia de que havia uma lareira lá dentro. Um deles admirou-se e foi logo entrando e tirando alguns entulhos encostados à lareira que lá estava, um pouco escondida, em desuso. Houve exclamações gerais deles, minhas e de quem estava comigo, a Ana Maria e o José Guilherme. (A memória tem seus mistérios... apesar de me lembrar de pequenos detalhes de menor importância, não consegui lembrar-me, por exemplo, de onde havia dormido pelos 15 dias em que estive em Crocciale. Talvez ali mesmo.)

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A relação de meus deslocamentos ainda prossegue, e é longa. Mas, para melhor entendimento de alguns detalhes do que vai adiante, vou interrompê-la para explicar um pouco da TOPOGRAFIA DAQUELA REGIÃO e as LINHAS GERAIS DA ESTRATÉGIA ALIADA. Devo lembrar inicialmente que os brasileiros se ocupavam da metade esquerda, a ocidental, do “front”. E que essa metade incluía os picos mais altos dos Apeninos. Devo lembrar também que os alemães haviam se aproveitado da topografia montanhosa para atravessarem todo o “cano da bota” com duas linhas de fortificações que iam de uma costa a outra: a LINHA GÓTICA e acima dela a LINHA GENGIS KHAN. Resumidamente, os principais pontos de defesa dessas linhas situavam-se sobre as seguintes elevações, de oeste para leste: os montes Maranello, Serrasiccia, Cappel Buso, Pizzo di Campiano, Belvedere, Gorgolesco, della Torraccia e Castello. Numa linha um pouco mais acima estão Ronchidos e vários outros montes, também muito altos. Cidades ou aldeias como Lizzano in Belvedere, Vidiciatico, Farné, Rocca Corneta, Querciola, Gaggio Montano, Montese e muitas outras compunham também a região montanhosa. Como também já expliquei em capítulos anteriores, depois das malfadadas tentativas de iniciar uma ofensiva importante antes do inverno, em novembro e dezembro, o Alto Comando de todos os exércitos na Itália, inclusive o brasileiro, elaborou um novo plano, o PLANO ENCORE, o qual determinava que os alemães deveriam ser inicialmente desalojados dos montes mais altos a oeste, que mencionei acima, para só então enfrentar o desafiador Monte Castello, que já havia causado tantas baixas à FEB, e outros objetivos a leste – zona de Rimini - que havia causado baixas aos ingleses. Na verdade, para chegar aos altíssimos cumes desses novos objetivos era indispensável uma tropa especializada, o que até então não havia na Itália (todas as Divisões de Montanha de que os aliados dispunham estavam, na época, empenhadas no “front” da Normandia e arredores). Só com a chegada da “10th Mountain Division”, o Plano Encore pôde ser posto em prática. O novo e bem elaborado plano custou duros combates, perdas, mas foi coroado de vitórias sucessivas. Voltemos à minha trajetória:

de CROCCIALE – FARNÉ

Minha permanência em CROCCIALE foi interrompida no dia 19 de março, quando recebi uma ordem para deslocar-me, como único médico, para FARNÉ, acompanhado de um grande número de homens do Batalhão de Saúde, em sua maioria padioleiros. Iríamos fazer parte de um QUARTEIRÃO DE COBERTURA que substituiria elementos do DESTACAMENTO OLIVIER, que era parte do QUARTEIRÃO OESTE (este Quarteirão W, às vezes mencionado como Destacamento “West”, aglomerava um grande número de unidades da FEB e era comandado pelo General Zenóbio da Costa, encarregado de todas as operações constantes do Plano Encore, ao lado da “10th Mtn. Div.”). 257


Os altíssimos cumes do Serrasiccia, 1.380 metros, e seus vizinhos Capel Buso, Pizzo di Campiano e outros, ainda tinham alguma neve que, já derretendo, cobria as encostas de lama. Isto - e o frio intenso levaram à exaustão boa parte das tropas brasileiras e americanas que ali estavam lutando ou defendendo posições há quatro semanas. Tiveram que ser retiradas para um merecido repouso na retaguarda. Foi composto então, para substituí-los, um Quarteirão de Cobertura para o qual fomos chamados eu e todo o pessoal que mencionei, além de novas unidades de combate. Chegamos em Farné no dia 20. Sobre esta fase das operações da FEB e sobre meu trabalho em Farné, guardei felizmente uma ótima documentação, o que me permitiu escrever os Capítulos 14 e 15, que são bastante interessantes por conterem descrições sobre a coparticipação brasileiroamericana e sobre a “10th Mtn. Div.”. Nos últimos dias de março, todos os objetivos constantes do Plano Encore haviam sido conquistados. Até mesmo os contra-ataques de praxe, de artilharia e patrulhas, já estavam quase eliminados. O Quarteirão de Cobertura foi desfeito e eu voltei para Crocciale.

A OFENSIVA DA PRIMAVERA viria em seguida. MONTESE aguardava. de CROCCIALLE – BOMBIANA – MONTESE

A 10 de abril deixei CROCCIALE (terminado o trabalho em Farné havia voltado para Crocciale) e fui instalar-me em BOMBIANA. Sinceramente, não sei, em Bombiana, a quem meu posto atendeu. Fiquei lá do dia 10 ao dia 20 de abril, período no qual ocorreu a duríssima batalha por MONTESE, que durou quatro dias, de 14 a 18. Eu estava a 15 km de Montese, e muito mais perto de mim e também palco de duríssimos combates no mesmo período, houve a tomada de Iola que, além de muitos feridos, trouxe um triste saldo de nove brasileiros mortos. Em viagem recente fiz doação para um bem organizado museu existente em Iola, dirigido pelo Sr. Gandolfi, de uma medalha “Sangue do Brasil”, concernente ao soldado Donato Ribeiro, que era de Niterói e morreu combatendo ali.

de CASTEL D´AIANO

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No dia 20 fui para CASTEL D´AIANO, no dia 21 houve a tomada de Zocca e Montalto. Castel D´Aiano fica na convergência entre as estradas que vêm de Zocca, a cerca de 15 km, e outra que vem de Montalto, a cerca de 10 km. A localização parecia lógica. Já nesta altura da guerra, provavelmente as estradas eram menos visadas pela artilharia inimiga e as ambulâncias podiam fazer distâncias maiores, como estas, para trazer os feridos até nosso Posto. Os alemães já não dispunham mais de posições nos picos elevados, de onde sua artilharia dominava tudo.


DE CASTEL D´AIANO – FORMIGIANO – ARCETO – QUATTRO CASTELLA

De CASTEL D´AIANO deslocaram-me, em 23 de abril, para FORMIGIANO, onde fiquei 2 dias e logo fui para ARCETO. Já nesta fase da guerra, a velocidade dos fatos se havia acelerado. Em 26 de abril eu e o Nogueira de Sá nos instalamos em uma garagem na praça principal de uma pequena cidade chamada Quattro Castella. Ocorreram então fatos interessantes. Passamos cerca de 30 horas seguidas recebendo um número enorme de feridos inimigos que nossas ambulâncias iam buscar atrás das linhas deles, durante um breve cessar-fogo solicitado pelos alemães, que já não dispunham de material médico (é curiosa a ética da guerra...).

Para nós, do Serviço de Saúde, o “tedesco” era uma figura virtual. Nunca tínhamos visto um em carne e osso. Num primeiro momento,

logo que vi deitados nas macas, dentro do meu Posto, aqueles soldados, vestidos em uniforme cinzento, lívidos, além da surpesa ocorreu-me um tumulto de ideias. Ali estavam os odiados “tedescos”, os homens que metralhavam os nossos, que haviam tirado a vida de tanta gente, ali estavam diante de mim alguns deles deitados, gemendo, pálidos, sujos, desabotoados, arrasados e eu tinha que cuidar deles. Pela primeira vez os via pessoalmente.

O ambiente no Posto era diferente do habitual. Havia um misto de curiosidade, de interesse em vê-los de perto, uma mal disfarçada alegria dos enfermeiros, que alternavam providências médicas com comentários sobre o que ouviam, sem entenderem, de um ou de outro “tedesco” que balbuciava alguma coisa. Quase todos entregavam as medalhas, os capacetes. Alguns tiravam do bolso fotos da família para despertarem piedade (provavelmente com medo de serem maltratados ou fuzilados, como eles faziam com os “partigiani”). Não tinham ideia de quem erámos nós. Mas esta fase durou pouco. Chegavam tantos, que a necessidade de evacuá-los obrigou-nos a arregaçar as mangas e trabalhar sem maiores elucubrações (em um capítulo anterior, tudo o que diz respeito a Quattro Castella é narrado com mais detalhes). Pouco depois, cercados pela nossa infantaria entre Collecchio e Fornovo, os alemães abandonaram as armas, renderam-se e foram aprisionados. Duas divisões inteiras, inclusive dois generais e um grande número de oficiais superiores, além de muitos milhares de subalternos, veículos e farto material bélico foram aprisionados. Estes fatos notáveis, relativos a esta rendição, estão descritos também nos Capítulos 20 e 21 e nos postais (Capítulo 23) que escrevi para casa na ocasião. 259


de QUATTRO CASTELLA - MONTECCHIO – SANTO ILARIO D´ENZA – ALESSANDRIA – TORTONA Fiquei em QUATTRO CASTELLA até o dia 30. Não sei se, ao deslocar-me para MONTECCHIO (lembram-se do “Romeu e Julieta”?), fui antes passar algumas horas em Milano, pois estava próximo (depois de uma boa temporada sem ver uma cidade grande, uma escapada em Milano, por que não?). No dia 2 de maio, de Montecchio fui para SANT’ILARIO D’ENZA e no dia 3 para ALESSANDRIA. Nesta fase já não havia mais combates. Havia alguns bolsões de franco-atiradores, mas o comportamento de nós todos era de relaxamento, alegria e tranquilidade porque já antevíamos que a guerra, em todas as frentes, duraria pouco. No dia 6 de maio fui para Tortona. Estava acantonado na Rua Corso Genova no 13, em Tortona, quando no dia seguinte, 7 de maio, ouvi gritos na rua: “La guerra finita...”. Fui depressa para a rua, onde começavam a se formar grupos de civis gritando, enlouquecidos, comemorando o fim da guerra. Confesso que, pessoalmente, alegria maior já havia sentido em Alessandria, pois lá estavam quase todos os amigos do Batalhão de Saúde, já havíamos dado a guerra como acabada, e as comemorações entre nós haviam sido as que se pode imaginar. De toda forma, participei outra vez, agora com os italianos, da euforia geral. Lembro que vi umas cerejas lindas em um tabuleiro de frutas e uma mesa vazia num bar, na calçada de uma galeria de arcadas. Sentei-me ali, sozinho, com um grande saco de papel marrom cheio de cerejas, pedi um vinho branco e assim passei boa parte da tarde, assistindo ao alegre desfile de gente de todas as idades e quase todos já “bastante altos”, como se estivessem num carnaval de rua. Baixou sobre mim uma prolongada e profunda sensação de felicidade, não sei se efeito do vinho, ou da presença de algum Anjo da Paz que tinha vindo, invisível, sentar à minha mesa.

UMA OBSERVAÇÃO É NECESSÁRIA:

O que narrei acima sobre a minha trajetória é somente o que, da campanha do Brasil na Itália, eu pessoalmente vi de perto. O “front” brasileiro era muito mais amplo, estendia-se até a costa do Mediterrâneo. As vitórias brasileiras em Camaiore, Fornace, Monteprano e muitas outras cidades como Massa, Carrara ou pequenas aldeias próximas à costa constam também da história da FEB. Se bem que, na verdade, o núcleo mais duro, certamente, foi o que nos tocou, a zona central dos Apeninos, com seus altíssimos montes, formando o coração da defesa alemã (ver o mapa a seguir).

260

Destacar algum entre os muitos combates duros que a FEB enfrentou é uma injustiça. Mas se tivesse que fazê-lo, dentre os vários exemplos de heroísmo, mencionaria as tomadas do Monte Castello e da cidade de Montese.


Transcrevo trecho do livro do General Mascarenhas: “Montese constituiu um objetivo de significativa importância na manobra ofensiva do Quarto Corpo de Exército (das forças aliadas). Não foi apenas o combate mais sangrento enfrentado pela FEB em toda a Itália. Foi também a conquista de uma região essencial que veio a provocar um desequilíbrio no dispositivo adversário, facilitando o desembocar da tropa do 5o Exército na Planície do Pó.” Foram entusiásticas as palavras do General Willis D. Crittenberger, comandante de todos os exércitos aliados que combatiam na Itália, aos integrantes de seu Estado Maior, na manhã do dia 15: “Na jornada de ontem, só os brasileiros mereceram as minhas irrestritas congratulações; com o brilho do seu feito e seu espírito ofensivo, a Divisão Brasileira está em condições de ensinar às outras como se conquista uma cidade.” Os bolsões de resistência que sobraram após a rendição, a que me refiro neste capítulo, eram constituídos por alemães das SS, nazistas fanáticos, cuja função incluía a vigilância sobre a tropa deles mesmos para evitar traições ou deserções, e até o massacre de civis quando necessário. E também os remanescentes do fascismo que tinham que lutar até o fim porque defendiam a própria pele. Os “partigiani” tinham sobre eles e sobre os SS justificada sede de vingança, pois inúmeros foram mortos a bala logo que capturados, sob o argumento de que não pertenciam a um exército regular.

O TRAJETO (TEÓRICO) DE UM FERIDO EM COMBATE Acredito ser útil, para melhor entendimento, explicar aqui o que se passava com um ferido em combate. Cada batalhão (de Infantaria, por exemplo), tinha um Posto de Saúde que dispunha de dois médicos e, principalmente, um bom número de padioleiros. A esses padioleiros tocava o trabalho heroico de recolher o ferido no campo de batalha, quase sempre sob fogo inimigo (mesmo não sendo um alvo preferencial, pegavam as “sobras”. E sofriam ainda com o perigo infernal das minas, etc.). Ali mesmo, no campo, nesse PS, eles estancavam hemorragias, davam morfina (havia pequeninas ampolas descartáveis que já vinham com agulha), colocavam o ferido sobre uma maca, amarravam uma ou duas macas em um jipe e mandavam para nosso PS de Triagem do Batalhão de Saúde (num destes trabalhava eu). A distância entre nós e eles no “front” variava muito, podia ser de menos de 1 km e até bem mais, segundo as condições logísticas. A nós cabia melhorar as condições do ferido, dar prioridade e urgência aos mais graves, fazer o necessário para que ele pudesse voltar ao “front” ou suportar uma viagem mais longa até a Cia de Tratamento do Batalhão de Saúde. Ali permanecia até ter condições de ir para um hospital de retaguarda.

261


Este quadrilátero

geograficamente pequeno inclui as montanhas mais altas dos Apeninos. Serrasiccia, por exemplo, tem 1.380 metros. Nesta pequena zona travaram-se as batalhas mais difíceis da guerra na Itália (excetuando as da dramática conquista de Monte Cassino, ao sul de Nápoles, e a Batalha de Rimini, ocorrida próximo ao Adriático, no setor dos ingleses). Neste quadrilátero estavam os primeiros e mais duros obstáculos que a FEB tinha à frente. O “front” brasileiro era muito mais largo, verdade, porém, repito, este setor constituiu sem dúvida o núcleo mais duro.

Os alemães

tinham enorme interesse em preservar ao máximo a posse dos ricos vales da zona norte do território italiano, de agricultura fértil e sede de indústrias importantíssimas. Dali enviavam, para a Alemanha, em grande quantidade, víveres, armamentos, veículos, roupas e calçados para o exército e o povo alemão em guerra. O território alemão era muito mais bombardeado pelos aliados e o material que provinha do norte da Itália era cada vez mais importante para eles.

Era de esperar

que essa zona, constituindo um ponto-chave na guerra, fosse defendida com unhas e dentes, como foi. As linhas de defesa organizadas para protegê-la eram solidíssimas. Os alemães tiveram tempo e calma para construí-las, pois ocupavam a região há muito tempo. Hitler sempre pensou e dizia que a Itália era o “ventre mole da Europa”, tinha como possível que um dia os aliados tentassem uma grande invasão por ali. As LINHAS GÓTICA e GENGIS KHAN foram construídas sob essa hipótese.

Toda essa região

fazia parte do “front” da FEB. Durante quatro dias e quatro noites, a FEB teve a colaboração da “10th Mtn. Div.”, que entrou como ponta de lança para possibilitar a conquista de um grupo de montes altíssimos, a oeste, que só tropas especializadas podiam galgar. Mas a colaboração deles limitou-se aos píncaros mais altos, e por pouco tempo. Depois da tomada do Monte della Torraccia, a FEB continuou sua campanha, conquistou sozinha o Monte Castello e tomou o rumo nordeste, enquanto os americanos foram para o norte.

É

importante que se diga que no peqeno período em que trabalharam juntas, a colaboração americana foi inestimável. Eram tropas formadas por alpinistas e esquiadores, que haviam sido treinadas nas montanhas do Alasca. O papel dos brasileiros neste pequeno período era também difícil e importante, não só nos combates para conquista, como na posterior ocupação, defendendo contra-ataques e consolidando posições.

As pequenas cidades

e os montes – assinalados por mim em amarelo, no mapa à direita – distam uns dos outros, às vezes, não mais que 5 ou 10 km em linha de tiro. Mas os caminhos sinuosos que os interligam multiplicam as distâncias.

Esses caminhos

eu os percorri inúmeras vezes enquanto as atividades militares se desenvolviam ali. Meu Posto andava sempre relativamente próximo ao “front”. Alguns dos pontos por onde andou meu Posto de Triagem são os que marquei em amarelo (nem todos).

Até hoje

, quando volto a percorrer aquelas estreitas estradas, muita coisa me vem à memória. Às vezes, com alguma emoção. 262


263


Alguma coisa explodiu violentamente na frente da minha ambulância que, desgovernada, caiu numa ribanceira fora da estrada. Como fiquei desacordado por um pequeno lapso de tempo, não sei o que aconteceu exatamente. Só sei que acordei em outra ambulância – agora como ferido – sendo levado para o Hospital de Base, em Livorno, onde me operaram o queixo, que havia perdido “partes moles”. Isto fez com que usasse barba por algum tempo e mais tarde, no Brasil, fosse submetido a outra cirurgia. Ao lado, meu motorista que também se feriu. 264


Um PS de triagem americano. Parecido com o meu quando em barraca (foto colhida na internet).

Sobre o “saco A�, meu material e emblemas de uso pessoal. 265


Nossos capacetes eram dois: um leve, de fibra (ver as duas fotos abaixo), que tinha por dentro uma carneira, em couro, ajustável ao usuário, que servia como um sistema de amortecimento. Era de uso em zona não muito próxima do “front”. Protegia também do calor do sol. O outro era feito de aço (fotos acima) e tinha na borda um fino acabamento em alumínio. Em zonas de maior risco, este era colocado sobre o de fibra. No Serviço de Saúde, levava cruzes vermelhas. Sendo vazio por dentro, era sempre improvisado como pequena bacia para lavar o rosto, etc.

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Fotos do capacete e de outras peças que me foram dadas por alemães feridos quando os atendia em Quattro Castella. Como prisioneiros, nada disso lhes interessava mais. O capacete alemão era feito de uma liga de aço-cromo-níquel. Era pesadíssimo. Tinha por dentro uma “carneira” que podia ajustar-se à cabeça do usuário. Diferente do americano, era uma peça única.

Medalhas alemãs. Caixa de munição alemã.

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Da esquerda para a direita:

Medalha de Campanha

- É a mais importante delas. Concedida pelo Presidente da República ao integrante da Força Expedicionária Brasileira que tenha participado de operações de guerra na Itália.

Medalha de Guerra

- Concedida pelo Ministro da Guerra por ter cooperado

no esforço em guerra.

Medalha do Jubileu da Vitória Interaliada da Segunda Guerra Mundial - Conferida a ex-combatentes por ocasião dos 70 anos da vitória. Medalha Marechal Mascarenhas de Moraes

- Foi criada em agosto de 1969 (em seguida ao falecimento do Marechal que comandou a FEB) com a finalidade de homenagear aqueles que tenham prestado significativos serviços à FEB ou à Associação dos Ex-combatentes).

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271


Capítulo 23 P O S TA I S Q U E E S C R E V I PA R A C A S A A O F I M D A GUERRA

Como disse em capítulos anteriores, os montes que compõem a cordilheira

dos Apeninos estavam ocupados há três anos pelos alemães. Eles tinham feito, nos cumes, pequenas fortalezas, das quais dominavam as estradas, os vales, permitindo

vigiar as encostas e varrê-las, atirando de cima para baixo em quem tentasse subilas.

A conquista desses montes foi conseguida à custa de duros combates, que

duraram meses e nos causaram muitas perdas, como disse em capítulos anteriores. Mas um por um, foram sendo dominados.

Nessa última fase, depois do inverno, em que o trabalho aumentou muito e

os deslocamentos eram frequentes, sucessivos, passei um período grande sem poder

escrever para casa. Não havia condições: nem tempo, nem cabeça para isto. Passada a avalanche, procurei descrever em alguns cartões postais o que havia se passado durante os últimos dias da guerra. Perdi vários, guardei estes dois.

Dos muitos postais que escrevi para casa durante

e

ao

fim

da

guerra,

consegui

encontrar dois que falam do que se passou nos últimos dias em que a resistência dos inimigos já se havia desorganizado.

272


273


274


Nós tínhamos um jornalzinho chamado O Cruzeiro do Sul e os americanos tinham o “The Stars and Stripes”.

Para as tropas de vanguarda, conseguir lê-los era um luxo. Só em dias de “calmaria”.

275


Como

era

de

se

imaginar,

todos

os

jornais

do

mundo

usaram

os

tipos

maiores

que

dispunham para rodar esta manchete em suas impressoras. Foi, hoje sabemos, a melhor notĂ­cia do sĂŠculo. O Fim da maior guerra de todos os tempos. 276


Capítulo 24 O FIM DA GUERRA

Certamente, em nenhuma época da história da humanidade houve uma tão grande

explosão de alegria envolvendo tantos milhões de pessoas ao mesmo tempo, como no fim da guerra.

Quanto à Itália, estava saindo de um pesadelo que durava já seis anos e a população

Tenho, daqueles dias do fim da guerra, uma grata memória. Eu estava lá, em cima

estava sendo libertada de seis anos de angústia, sofrimento e miséria.

do meu jipe, entrando pelas cidades e aldeias do Vale do Pó, uma atrás da outra, onde

não havia mais combates, sendo recebido com gritos e lágrimas de alegria por gente que

trazia flores e vinho para bebermos juntos. As pessoas se jogavam loucamente alegres

sobre nós, que naquele momento éramos os agentes da libertação, os Semideuses da Paz

que afinal chegavam. Tocavam-nos como se fôssemos sobrenaturais, queriam ter certeza de que existíamos.

Não sei em que “paese” retiraram-me do jipe e levaram-me suspenso, e aos gritos

de “liberatore”, “Viva Brasile”, “Viva i liberatori”!, obrigaram-me a fazer um breve discurso, certamente cheio de novos Vivas à Itália, ao Brasil, aos aliados, e a quem

quer que viesse à mente ou que estivesse em volta. Consegui com dificuldade voltar

ao jipe para seguir caminho. Outros brasileiros foram chegando também, a euforia se espalhava e provavelmente outros discursos se seguiram.

Até hoje guardo certo remorso, porque na verdade os que mais mereciam a gratidão daquela gente não estavam lá. Não estavam nas ruas. Haviam ficado sob cruzes brancas de madeira nos cemitérios militares. Ou, mutilados, em hospitais da retaguarda.

277


Conferência de Yalta, de 03 a 11 de fevereiro de 1945.

A última foto: curvado e abatido, Hitler, à beira da morte, inspeciona danos na chancelaria. É muito interessante a expressão do militar que o acompanhava. 278


Consegui

fotografar,

quando

passava

Ă

frente

do

meu

Posto,

esta

coisa

estranha: um pequeno tanque transportando soldados. Bagunça de fim da guerra.

Montese libertada.

279


Este aí (não me lembro quem era) preparando-se para alistar-se na “L’invencibile Armata de Brancaleone”.

280


Alguém leu, no radiador desta viatura abandonada, PARAÍBA DO NORTE, e pelo visto não gostou.

281


282


PA S S O A PA L AV R A A R U B E M B R A G A , Q U E F O I CORRESPONDENTE DE GUERRA Quando li, agora, no livro “Aventuras” do Rubem Braga - que era correspondente de guerra - a descrição dos últimos dias da guerra na campanha da Itália, pensei que estivesse lendo o meu próprio diário. Por casualidade, os mesmos caminhos, os mesmos locais que ele descreve - Quattro Castella, Sant‘Ilario D´Enza, Montecchio, Parma, etc., etc. - foram os que eu também trilhava naqueles mesmos dias. Vale a pena ler alguns trechos dele:

...“conversamos com alguns civis italianos. Eles nos dizem que há muita infantaria alemã em Bibiano, e canhões em Ruvianino. Consulto as notas de meu caderno, pois não tínhamos conseguido uma carta daquela região. Vejo que Bibiano é um pouco além de Quattro Castella. É para Quattro Castella que deve ter seguido o nosso Reconhecimento. Resolvemos tocar para lá, passando por Montecavolo. Não nos é fácil achar o caminho e a certa altura ficamos indecisos em uma encruzilhada. Vejo, afinal, na porta de uma casa que tem um jardinzinho, uma mulher velha. Chegamos até lá, e pergunto-lhe para que lado é Montecavolo. Ela dá a indicação, nos olhando com desconfiança. Mas de repente estranha o nosso uniforme e pergunta se não somos alemães. Explicamos: somos brasileiros. - Brasiliani! Alleati! A mulher sai de trás da cerca de seu jardinzinho, aproxima-se do jipe, agarra com as duas mãos a cabeça de Machado e lhe dá um beijo na face. Minha mão pende para fora do jipe: ela a cobre de beijos e de lágrimas. Quando chegamos a Montecavolo, a aldeia parece vazia. Encontramos com dificuldade um velho, a quem pedimos informações, pois não estamos seguros se os alemães já abandonaram ou não Quattro Castella, que fica poucos quilômetros além. Quando nota que somos aliados, o velho se põe a gritar, e minutos depois estamos cercados de gente – principalmente mulheres e velhas e moças. São faces rosadas que avançam para nós trêmulas de emoção, rindo entre lágrimas, vozes estranguladas de prazer. Uma jovem de tranças alouradas se aproxima de mim, abrindo caminho no pequeno grupo, e, com um ar de louca, pergunta se eu sou mesmo aliado, vero, vero? Seus olhos estão cheios de luz e empoçados d´água. Ela ergue os dois braços, põe devagar as mãos nos meus ombros, e suas mãos tremem. Quer falar e soluça. Dois homens me puxam pelos braços, uma mulher me beija, todos se disputam a honra de nos levar para sua casa. Afinal, um casal de velhos ganha a partida e nos leva para uma sala, e toda a casa se enche de gente. 283


A todo momento chegam retardatários, que ficam nas pontas dos pés para nos ver, para ver esses estranhos seres, tão longamente, tão ansiosamente esperados: os soldados aliados. - Há tanto tempo que vos esperávamos! Há tanto tempo! Liberatori! Brasiliani! Trazem queijo, abrem garrafas de vinho espumante, obrigam-nos a beber. Dezenas, centenas de olhos nos fixam, como se estivessem vendo três deuses – e não dois feios correspondentes de guerra e um pracinha chofer. Somos os primeiros aliados a chegar ali. Os alemães partiram horas antes. - Liberatori! Explicamos que não somos libertadores de ninguém, e de modo algum. Somos repórteres, homens desarmados, e tudo o que fazemos é tomar nota. Não somos soldados... Mas é inútil. Para aquela gente, somos heróis perfeitos e acabados. E as mulheres começam a dar vivas ao Brasil, a esse país desconhecido cujo nome vem escrito em nossas mangas. Consigo parar de beber e pedir informações. Um velho me diz que não podemos seguir para Quattro Castella: há, no caminho, uma pequena ponte minada. Os próprios partigiani minaram essa ponte, pois ainda deve haver alemães para o sul. Não há ali no momento nenhum guerrilheiro que possa nos guiar por um desvio sem perigo. Hesitamos. Resolvemos voltar até a encruzilhada alguns quilômetros atrás, buscando outros caminhos para oeste: há muitos caminhos na planura. Partimos no meio de vivas. Uns 15 minutos depois, na estrada, vemos surgir um carro armado, seguido de jipes. Fazemos sinais, o carro da gente para. É um pelotão do Esquadrão de Reconhecimento brasileiro, comandado pelo tenente Jorge Paes Leme. Vai exatamente na direção de onde viemos: Montecavolo, rumo a Quattro Castella. Explico ao tenente a história da ponte minada. Damos volta e nos incorporamos ao pelotão: são dois carros M8, armados de metralhadora e canhão, e dois jipes com metralhadoras. Seguimos no meio, em disparada, na tarde bela. Passamos outra vez por Montecavolo, e a população, vendo os carros armados, delira de entusiasmo. Quando nos aproximamos de Quattro Castella, um grupo de civis nos orienta. A pequena ponte minada já foi pelos ares, eles nos ensinarão um desvio. Na aldeia, a população assalta os carros, traz flores e vinhos. Entre os soldados nossos, vejo uma cara conhecida: É Sidnei Dias, noivo de uma jovem bonita, Lucélia, filha do fazendeiro Oscar Gomes, um excelente homem, um protestante, em cuja casa estive doente em 1935.

284


Depois de passar a ponte paramos um momento à margem da estrada e acorrem camponeses para nos saudar. A emoção da liberdade os transfigura. Nada pode dizer tanto como essas faces rosadas entre cabelos louros, esses lábios trêmulos, esses olhos brilhantes e molhados, essas vozes roucas que repetem, repetem: - Liberatori! E beijam as mãos dos pracinhas. Perto de mim, uma camponesa tem ao colo uma criança linda, de olhos verdes, que sorri e me estende a mãozinha gorducha e branca. Beijo essa mãozinha – e em volta de mim as mulheres choram de emoção, como se eu tivesse feito alguma coisa de extraordinário. – São como nós! Nunca um alemão faria isso, nunca! Aqueles bárbaros! Bestas! Bravi ragazzi, gli brasiliani, bravi, bravi! Nossos pracinhas comovidos dão de presente o que têm consigo: chocolates, cigarros, balas. Relutam em aceitar, não querem receber nada, enchem nossos carros de garrafas de vinho.”

Rubem Braga como correspondente de guerra.

285


Quando Berlim capitulou numa rendição total e incondicional, no dia 7 de maio,

nossa vitória sobre as forças do “eixo” sediadas na Itália já havia ocorrido. Já

havíamos transposto o Vale do Pó, recebido as homenagens efusivas que relatei um pouco atrás e que continuaram por Tortona, Alessandria e Turin. Assim sendo, antes mesmo que

nas ruas a GRANDE VITÓRIA final pudesse ser comemorada, eu tinha ido a Alessandria onde

estava o Nogueira de Sá e boa parte do Batalhão de Saúde, e lá comemoramos vivamente, com tudo o que se pode imaginar de alegria e de júbilo, o fim da guerra.

Voltando para Tortona, onde estava acantonado em uma casa vazia, o no 13 da rua

Corso Genova, dormindo num quarto próximo à janela que dava para a rua, ouvi gritos: “La guerra e finita!!”.

(Na página 260 conto detalhes do que se passou nesse dia, em Tortona.)

Em Montese há um belo monumento em homenagem aos brasileiros, construído pelo Lyons Club local. Na mesma Montese, aliás, em comemoração ao 70 o Aniversário da libertação da cidade, em algumas escolas os alunos cantaram o hino da FEB (imaginem o trabalho para ensaiar). Segundo Mario Pereira não foi a única vez que isso ocorreu. Em comemorações anteriores houve a mesma homenagem. 286


Capítulo 25 A FEB DEIXA NA ITÁLIA UM RASTRO DE SIMPATIA E AMIZADE

Os exércitos aliados que combatiam na Itália eram inicialmente constituídos por

tropas provindas de muitas origens. Americanos, ingleses e canadenses formavam o núcleo inicial e mais importante, mas também franceses (que haviam deixado seu país quando a França foi invadida), neozelandeses e até indianos e marroquinos.

(Devo esclarecer que quando a Divisão Brasileira passou a ocupar-se da metade

esquerda de todo o “front” italiano, toda essa miscelânea de tropas já havia sido removida ou anexada ao 8º Exército Inglês).

Foi diferente o rastro que cada um, de cada origem, deixou ao ir-se embora. Alguns

causaram traumas. Os nazistas, por exemplo, deixaram na Itália profundas feridas, das quais o atual povo alemão ainda tem remorsos. Outros também que por lá passaram, as tropas africanas, por exemplo, deixaram marcas de maus-tratos e desrespeito à população civil.

Quanto aos americanos e ingleses, do que eu ouvi durante a guerra e mesmo até

hoje, de pessoas que viveram na época, foram gentis e respeitosos. A gratidão a eles sempre foi grande.

A Divisão brasileira, a FEB, sob esse aspecto, foi diferente de todas. Não

há notícia de que outra tropa tenha convivido tão bem e deixado junto à população

civil italiana um rastro tão forte de simpatia como o que os brasileiros deixaram.

As provas disto estão em escritos, em relatos e principalmente nos cerca de 40 monumentos espalhados por todo o trajeto que a FEB fez, lutando durante a guerra. Monumentos feitos espontaneamente por italianos. A maioria por descendentes dos que haviam vivido e sofrido durante a guerra e tiveram dos

brasileiros algum gesto de simpatia, de solidariedade, alguma manifestação de apoio.

NA REVISTA “VERDE OLIVA”

Na revista Verde Oliva, do Centro de Comunicação do Exército (no 224, de dezembro

de 2014), foram publicados os depoimentos de 15 italianos que no tempo da guerra eram crianças ou adolescentes e viviam em aldeias ou cidades que os brasileiros ocuparam.

Nas páginas adiante transcrevemos alguns deles.

287


A leitura desses depoimentos demonstra, em cores vivas, um aspecto particular e

muito honroso do comportamento que as tropas brasileiras tiveram junto à população civil. Há mesmo alguns relatos emocionantes. São bem extensos. Vou pinçar alguns trechos.

GIUSEPPINA MALFATTI ERA PEQUENA. Diz: “Tenho recordações muito vivas, muito fortes,

vivemos todo aquele período dentro do que se chamava a Linha Gótica. Em uma aldeia

próxima tinha havido um massacre que incluiu crianças e idosos. Tivemos parentes – minha

avó paterna... - mortos pelos alemães. Guardo a lembrança de nossas fugas nos bosques, perseguidos pelas SS com ‘canilupo’ (cães pastores). Por anos eu não pude suportar os cães”.

Seu encontro com os brasileiros deu-se em um dia chuvoso em setembro de 1944, quando

eles chegaram à casa de sua avó e pediram hospedagem. “Naquele momento começou a nossa ressurreição. Nós, crianças, éramos cinco, três irmãos e dois primos. Aproximamo-nos com muita curiosidade daqueles soldados e eles nos deram pães com geleia! Eu acredito que

aquilo teria sido para nós o melhor presente do mundo. Há anos não comíamos coisas doces!

Era uma geleia de cereja escura que nunca vou esquecer!” As sensações das crianças eram completamente distintas das dos adultos. “Eles agradeciam a libertação, a liberdade e, finalmente, o fim do medo. E nós, ao fato de que podíamos comer. E comer doces novamente!”

A propaganda nazifascista havia divulgado o grande perigo que seria a chegada de

soldados brasileiros, sobretudo negros. “Porém lembro e devo dizer, eles eram muito bons, como todos. Até mais benevolentes.”

OS IRMÃOS VITTORIO E BIANCA BERNARDI perderam o pai assassinado pelos alemães em 1944.

Conseguiram, eles, a mãe e outros moradores, sair do local onde viviam e buscar refúgio em

Porretta Terme, onde os brasileiros já estavam. No grupo havia cerca de dez crianças. Na primeira manhã foram à praça e, para sua admiração, relata Vittorio: “Os brasileiros deram de comer às crianças antes de se servirem eles mesmos!!... Os brasileiros, em suma, sempre

nos consideraram e nos deram de comer, sempre nos trataram muito bem, muito bem. Digo isto não porque vocês são brasileiros, mas porque era assim mesmo. Davam-nos sempre pão de forma, aquele macio...”. Bianca diz que “levará sempre na lembrança o afeto, o acalanto... Aqueles militares me pegavam nos braços e me diziam, vem cantar comigo! Eu não esquecerei

nunca... mesmo porque a falta do meu pai pesava... e encontrar alguém que me pegasse nos

braços era uma grande coisa!...”. “Eu tenho 73 anos e me lembro. Eram senhores!” O marido

de Bianca, Gian Carlo, acrescentou falando aos entrevistadores: “Rapazes, acreditem em mim. Precisariam passar por isto para saber... Quando nos jogavam uma forma de pão branco, que nós comíamos com geleia, imaginem...”. 288


FRANCO FINI ESTUDAVA MEDICINA na Universidade de Bologna. Comparando o soldado

brasileiro ao de outros exércitos: “Há uma diferença enorme; os soldados brasileiros eram

como irmãos. Uma boa companhia. Repito, como irmãos! Os outros exércitos eram completamente distantes, mesmo porque não nos entendiam por causa do idioma”.

CLAUDIO CARELLI TINHA QUATRO ANOS. Recorda que morava em Riola com os avós e os

pais: “Dois brasileiros vinham sempre à nossa casa, traziam caixinhas de chocolate e

outras coisas. Depois comiam com a gente e dividíamos, e éramos exatamente uma grande família naquele momento. Brincavam sempre comigo, não posso esquecer”. “Quando adquiri um

sítio em Vergato, descobri que dois pracinhas haviam morrido naquele local. Em homenagem,

construí um pequeno memorial aos dois soldados brasileiros que morreram aqui lutando pela

liberdade, pela minha liberdade. Se hoje sou um homem livre, sinto-me grato a estas duas pessoas e devo reconhecer. E fazer também que meus filhos e meus netos saibam da minha história, da história da Itália e do Brasil”. Na placa afixada ao memorial está escrito: “Para a honra e lembrança de Francisco Gomes de Souza e José Alves de Abreu, dois valentes pracinhas que aqui tombaram em batalha no alvorecer de 1945, lutando pela liberdade”.

MUITOS OUTROS DEPOIMENTOS FORAM TOMADOS além destes e se fosse possível ouvir mais

RECENTEMENTE um escritor brasileiro, MARCO LUCCHESI, que hoje é membro da ABL,

gente, seria uma infinidade.

escreveu em O Globo uma pequena história sobre este mesmo assunto. Sua família vivia, durante a guerra, na cidadezinha de Massaroza, próxima a Pisa. Foi o primeiro “paese”

a ser tomado pelos brasileiros. Sua mãe tinha, na época, cerca de quatro anos. “Quando os alemães estavam ali, diziam que tomássemos todos muito cuidado, porque nas tropas brasileiras havia muitos criminosos e até mesmo antropófagos negros.” Com a chegada

dos nossos soldados, os adultos, apavorados, fizeram uma barreira humana, protegendo as

crianças. Os primeiros soldados precisaram se desdobrar em gestos e palavras amigas, e jogar muito chocolate até, pouco a pouco, conseguirem aproximar-se dos italianos.

Pouco tempo depois, o panorama se havia invertido. Principalmente as crianças,

segundo Lucchesi, “atraídas pelos doces e pelos gestos amigos dos soldados, foram as primeiras a abrir caminho para uma convivência muito amistosa”.

Até mesmo um general brasileiro, Olympio Falconière, tendo sido convidado a instalar-se na casa de seus avós, mandou vir do Brasil partituras musicais para presentear aos pianistas da família. Terminada a guerra, mudaram-se todos para o Rio de Janeiro, e ele, Marco, é hoje membro da seleta Academia Brasileira de Letras. 289


Para acentuar a diferença que houve entre o convívio amistoso com os brasileiros

e a cáustica presença dos alemães ali, Lucchesi repete um fato que sua mãe contava: ela tinha, como já disse, quatro anos de idade e um soldado alemão costumava segurar suas tranças louras e afastar um chocolate para que ela não conseguisse alcançá-lo. Ela nunca se esqueceu disto.

Para fechar este capítulo,

vou lembrar o que se passou comigo e com meu

companheiro Nogueira de Sá quando chegamos em Castel di Casio. O inverno já se iniciava. Alojamo-nos em uma casa onde vivia uma família para quem nós levávamos trigo e ovos e comíamos, todos juntos, a “pasta” que eles faziam. E nos aquecíamos pela mesma lareira, em prolongadas e amistosas conversas que nos ajudavam a aprender o italiano.

Uma das meninas, que no tempo era adolescente e agora tem 80 e poucos anos, a quem,

em viagem recente encontrei morando na mesma casa, depois de lembrar com alegria fatos da

época, termina dizendo: “Eravamo in guerra, ma eravamo felicci” (estávamos em guerra mas

éramos felizes). E isto, apesar de ter caído, quase sobre nós, numa noite, uma bomba que destelhou um pedaço da casa.

No Capítulo 14, sobre Castel di Casio, relato este assunto com mais detalhes.

“À perene memória dos soldados da Força Expedicionária Brasileira que em 14 de abril de 1945 libertaram Montese. Lions Club Montese – Appenino Est”

290


O Historiador Mario Pereira O

HISTORIADOR

PEREIRA,

desde

MARIO

criança

ouvindo do pai as histórias da

guerra,

habituado

a

percorrer com frequência as trilhas da FEB, tornou-

se um precioso conhecedor

de tudo o que diz respeito à

participação

dos

brasileiros no conflito. Durante que

fiz

três

viagens

recentemente

à

região, tive o prazer de ter a companhia de Mario

Pereira para revisitarmos juntos

os

locais

combates. Em

2015,

19

de

como

junho

parte

dos

de

das

comemorações dos 70 ANOS

DA VITÓRIA, Mario Pereira

pronunciou no Rio de Janeiro, com a presença de altas autoridades militares, uma

bela conferência na qual descreveu e mostrou fotos de cada um dos cerca de 40 monumentos (esculturas, placas de bronze, etc.) erigidos pelos próprios italianos

em agradecimento aos brasileiros, aos jovens que perderam a vida ou foram mutilados combatendo pela libertação de cidades, aldeias e montes daquela região.

Sendo Mario Pereira atualmente um historiador, está preparando um livro com

preciosa documentação em que deixará registrados, para o futuro, os conhecimentos que tem de tudo que se passou com a FEB na Itália.

291


O ANTIGO CEMITÉRIO MILITAR BRASILEIRO EM PISTOIA E O ATUAL MONUMENTO VOTIVO

Os brasileiros que tombavam em combate eram levados para o Cemitério

O cemitério, com suas quase 500 cruzes de madeira branca dispostas

Militar em Pistoia.

em filas e fazendo um quadrilátero, tinha à cabeceira um grande crucifixo de madeira escura.

Os restos mortais dos nossos “pracinhas” já não estão mais lá, foram

trazidos para o MONUMENTO AOS MORTOS DA II GUERRA MUNDIAL no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.

Atualmente há em Pistoia um monumento votivo. Há uma grande superfície de

mármore, onde antes havia as cruzes brancas de madeira sobre os restos mortais dos combatentes que tombaram. O nome de cada um deles está gravado na larga extensão do piso. Um altar, também em mármore branco, fica ao fundo. E sobre ele se eleva um arco sustentado por altíssimas colunas.

Teve como administrador, ao fim da guerra e durante muitos anos, um zeloso ex-combatente, Miguel Pereira,

que se casou com uma jovem italiana e teve um filho, Mario, que depois o sucedeu

nas mesmas honrosas funções e hoje é membro da Embaixada Brasileira na Itália, na qualidade de diretor do belo MONUMENTO MILITAR VOTIVO que ali existe, ao lado do qual há um museu com peças antigas da FEB.

Mario Pereira é também o historiador sobre quem escrevo na página

anterior.

292


293


O BRASIL CONVIDADO A PARTICIPAR DA OCUPAÇÃO DA ÁUSTRIA NO PÓS-GUERRA

Na Conferência de Yalta, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, foram assinados vários

Um deles dizia que a Áustria voltaria a ser separada da Alemanha (Hitler a havia

acordos entre os aliados.

anexado política e militarmente desde o início da guerra) e dividida em áreas de ocupação entre países aliados.

Segundo o historiador americano Frank McCann, da Universidade de New Hampshire,

o Brasil foi convidado, ao lado dos Estados Unidos, da Inglaterra, França e Rússia, a

participar da ocupação de um dos setores. Consta que a sugestão teria partido do General

Mark Clark, que comandou o 5º Exército - do qual a FEB fazia parte - e que guardou muito boa impressão da ação brasileira, tendo se tornado, ao fim da guerra, um grande amigo nosso. Mark Clark teve papel importante na repartição do território austríaco depois da guerra, o que acrescenta credibilidade a ser dele a autoria da ideia.

O historiador “brazilianist” Frank McCann aprofundou-se no assunto, inclusive viajou

ao Brasil para estudá-lo melhor e declarou que não conseguiu esclarecer as razões pelas quais o governo brasileiro não aceitou a proposta. Acrescenta que, a seu ver, isto teria facilitado muito a presença do Brasil entre as potências que têm direito a veto na ONU, antiga aspiração brasileira.

Como se sabe, a Áustria foi finalmente dividida em quatro “Zonas de Ocupação”: A

FRANÇA

e

o

ficou

com

dois

O

REINO

estados austríacos: o Tirol Vorarlberg.

UNIDO, com dois estados: a Caríntia e Estíria. Os EUA ficaram

com

dois

estados:

Salzburgo e Alta Áustria e a URSS ficou com três estados: Burgenland, a Baixa Áustria e a capital, Viena.

A ocupação durou dez anos e os aliados devolveram à Áustria sua autonomia em 25 de

outubro de 1955. 294


A S P E C T O S D O PA N O R A M A H I S T Ó R I C O D O T U M U LT U A D O S É C U L O X X HITLER ERA O ÚNICO VILÃO? “Sim, vilão ele era, mas não o único. Quando falamos em maldade, quando desejamos personificar o que é vil, não há melhor imagem ou caricatura que represente o que existe de pior na humanidade como o rosto

de Adolf Hitler. Ele, como não poderia deixar de ser, é a materialização de tudo que há de pior no homem. Claros motivos para isso não faltam. Mas a história, como

ciência, possui verdades ainda incompletas ou distorcidas, por isso, centralizar

todas as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra para uma única liderança, um único povo, um único regime, é polarizar os crimes de todos os envolvidos.”

Francisco Miranda, historiador

HITLER TEM CONCORRÊNCIA À ALTURA

Nos países europeus, a crise econômica desencadeada em 1929, chamada de Grande

Depressão, eclodiu com a quebra da Bolsa de Valores de New York, em 24 de outubro. No entanto, a União Soviética, que adotou o comunismo desde a Revolução Bolchevista, teve

condições de manter um crescimento razoável, com uma política de estatização de gêneros básicos da produção russa.

“As ações de Stalin no campo econômico, social e político, por sinal, eram de uma

repressão digna do czarismo derrubado pela Revolução. Para consolidar-se no poder, o líder georgiano não media esforços para eliminar qualquer opositor do regime. Dentre as

suas vítimas estão Trotsky, o sucessor direto de Lênin, que teve que fugir para não ser executado na Rússia, mas infelizmente não foi para tão longe. Foi assassinado no México.”

295


“Para se entender os feitos do senhor Stalin, podemos analisar os seguintes dados: •

o censo de 1937 revelou que a população havia caído em oito milhões de

pessoas, por causa da coletivização forçada no campo da repressão política e das execuções; •

entre 1937 e 1938 foram presos cerca de um milhão e meio de “inimigos do

povo”. Oficialmente foram realizadas 681.692 execuções – uma média de quase mil por dia; •

por ordem de Stalin foram executados três marechais, 14 comandantes de

exército, oito almirantes, 60 comandantes de corpos de exército, 136 comandantes de divisão, 221 comandantes de brigada, 11 vice-comissários de defesa, 75 membros do Soviete Militar e mais 528 outros altos oficiais e funcionários do setor militar.

Andrei Nikolaevitch Tupolev, projetista do avião que leva seu nome e do primeiro túnel aerodinâmico russo, e Sergei Korolev, que em 1933 construiu o primeiro foguete

experimental soviético movido a combustível líquido, foram presos e enviados para a Sibéria. Também foram presos quase todos os astrônomos do Observatório de Pulkovo, os estatísticos que tabularam o recenseamento de 1937, centenas de linguistas e

biólogos que refutaram a Linguística e a biologia “oficial”, e cerca de dois mil membros da União dos Escritores.”

“Os crimes de Stalin foram denunciados por Nikita Khrutchev durante o XX

Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1953, quando Khrutchev assumiu

o cargo de secretário-geral do partido. Tempos depois, já como primeiro-ministro do país, ao participar de uma conferência com membros do Partido Comunista, pediu

que lhe fizessem as perguntas por escrito. Uma das indagações, feita por um dos

integrantes da plateia, pedia que ele explicasse por que não denunciara o terror

de Stalin quando o ditador ainda estava vivo. Vermelho de raiva, o então chefe do governo soviético gritou: ‘Quem fez esta pergunta?’. Ninguém respondeu. Já calmo, ele prossegue: ‘Pela mesma razão que você não se apresenta agora; simplesmente por medo!’.”

“Calcula-se que, de 1917 a 1953, ano da morte de Stalin, os expurgos, a fome,

as deportações em massa, o trabalho forçado no Gulag e os fuzilamentos mataram algo em torno de 20 milhões de pessoas na antiga URSS.” – segundo Ipojuca Pontes. 296


“Stalin assinou um pacto de não agressão com Hitler (Pacto MolotovRibbentrop, assinado no Kremlin em agosto de 1939) e dividiu o território da Polônia antes mesmo de qualquer declaração de guerra. Pura covardia! Por falar em covardia, um dos acontecimentos que mais chocam os historiadores é o Massacre de Katyn, na Polônia ocupada pelo Exército Vermelho e pelos nazistas. Um dos episódios mais torpes da 2ª Guerra Mundial, que eliminou praticamente toda a elite militar polonesa, foi perpetrado pelos comunistas soviéticos a partir de ordens expressas do Kremlin e assinadas pelo próprio Stalin. Depois do massacre, num relatório destinado ao chefe da NKVD, o sanguinário Bloktin assinalou que, junto a dois outros asseclas, equipou uma cabana com paredes à prova de som, em Ostachkov, e estabeleceu a cota de 250 fuzilamentos por noite. Sobre o assassinato em massa, o agente relata: ‘Usei um avental de couro e gorro de açougueiro, matando, em 28 noites, 7 mil oficiais, portando uma pistola Walther alemã para evitar identificações futuras. Os corpos foram enterrados em vários lugares, mas 4.500 do campo de Kozelsk foram sepultados na floresta de Katyn’.” “Bem, finalmente, poderia discorrer neste artigo um livro inteiro sobre as atividades genocidas do senhor Stalin, contudo já o fizeram (historiador Simon Montefiore, em “Stalin – a Corte do Czar Vermelho”). Os acontecimentos históricos arrematam-nos para uma reflexão sobre todos os criminosos de guerra, de 1939 a 1945, não apenas os derrotados, mas também os vencedores.” Francisco Miranda, historiador, compilando outros autores.

297


Capítulo 25

JÁ QUE ESTÁVAMOS NA EUROPA...

Terminada a guerra, não havia navios para nos trazer de volta. O Brasil não dispunha, àquela época, senão de uma frota de pequenos navios costeiros. Havia milhões de soldados americanos, canadenses, etc., na mesma situação que nós, e estavam lutando na Europa há muito mais tempo. Era natural que todos os navios transporte de tropas de que dispunham, todos americanos, servissem primeiro a eles. (E havia também a guerra na Ásia, etc.) Como consequência, ficamos mais de dois meses acampados em barracas num local chamado Francolise, próximo a Nápoles, em pleno verão, sob um calor infernal. Era muito natural e justo que o Alto Comando nos permitisse utilizar as viaturas para conhecermos cidades como Roma, Florença, e até mesmo Paris. Não só como recompensa por haverem alterado o curso de nossas vidas, levado-nos a situações de risco, atrasadonos em nossas profissões, etc., como para aproveitar e oferecer a nós, jovens, uma oportunidade de expansão cultural. (O Brasil bem que precisava, e ainda precisa, disto.) Excursões à Europa, àquele tempo, eram coisa para gente muito rica. Viagens aéreas para turistas praticamente não existiam. E de navio era raro e caro. (Hoje parece absurdo, mas era assim.) Aquelas excursões tinham, para nós, uma importância muito grande.

Eu

e

mais

dois

oficiais

combatentes na mesa do bar do Hotel Excelsior. Esta é a mesinha a que me refiro no texto ao lado. À qual eu voltei muitas vezes depois. 298


No belíssimo salão do Albergo Excelsior, na Via Veneto, em Roma, jantamos, da esqueda para a direita: o Nogueira de Sá, eu, o coronel Malicescky e outro oficial cujo nome não me lembro. Dada a importância do local, devia ter sido a comemoração de algum fato muito especial ocorrido durante a guerra. O Albergo Excelsior, importante até hoje, era-o mais ainda àquela época. Vizinho da Embaixada Americana, que era na prática o centro militar e político da Itália, hospedavam-se ali figurões de todas as origens. Várias vezes voltei ao Excelsior. Em 1952, a caminho do estágio em Barcelona, passei por Roma e estive hospedado ali, quando meu primo-irmão, Fernando Ottati, que era na época vice-presidente da LILLY, estava na Itália para negociar a compra de um importante laboratório farmacêutico de um tal senhor Gorgonio. Fernando ocupava sozinho uma enorme suíte e me convidou para ficar lá também, e eu fiquei por alguns dias. Nessa ocasião nos habituamos a tomar sempre um aperitivo, no fim da tarde, no bar do hotel que era frequentado, lembro-me, pelo rei Farouk, do Egito (recém-deposto), e pelo famoso pintor De Quirico, e por outras personalidades famosas na época, também. A cada vez que vou a Roma - e têm sido muitas - volto sempre que possível à mesma pequena mesa do bar (tudo continua igual) e lembro-me dos “campari” que eu tomava enquanto Fernando tomava o seu uisquezinho de fim de tarde. Meus primos Fernando e Jonas tiveram comigo e meu irmão Orlando uma convivência como de irmãos também. P.S.: O Laboratório do Sr. Gorgonio foi comprado pela LILLY.

299


Eu e o Nogueira de Sá ultrapassamos a fronteira da Itália, logo depois da guerra, e fomos até a lendária Monte Carlo. O Cassino estava fechado, é claro.

Em Monte Carlo: Nogueira, um militar americano, um guarda monegasco e finalmente eu. Na verdade, a ofensiva brasileira havia chegado quase à fronteira norte da Itália. Já estando ali, fomos até Mônaco, pois já conhecíamos a fama de Monte Carlo, do cassino, etc. Interessante: o mais garboso, bem uniformizado e cheio de medalhas era o porteiro do cassino. 300


Eu e mais três ou quatro companheiros do Batalhão de Saúde fomos a esta audiência. Aguardamos um pouco em um grande salão vazio e Sua Santidade entrou por uma porta altíssima à esquerda. Dirigiu-se a cada um de nós em português e a mim perguntou: ”Também é médico? Tão jovem!”.

Eu, Rezende e Nogueira de Sá. Reparem nos uniformes limpinhos, de depois da guerra.

Nesta foto, provavelmente em Monte Carlo, estou ao lado do Coronel Álvaro, da alta hierarquia do Batalhão. Todos queriam respirar o ar fresco de um país sem guerra.

301


Cada motorista que trabalhou neste “jipão” quis deixar a sua marca: Barra do Piraí, Paraná... O oficial médico é o Nogueira de Sá.

Depois da guerra. Região dos Lagos. Da direita para a esquerda: Eu, Nogueira, o coronel Malicescky e outro coronel, cujo nome não me lembro.

302


Um “parrucchiere” recém-reaberto recebe dois apressados clientes (da mulher, só se vê a perna).

A almejada fronteira suíça. Sonho de alguns para fazer turismo, como nós. Sonho de muitos fascistas para escapar da ira dos “partigiani”, que os caçavam sedentos de vingança. 303


Eu

e

o

Nogueira

transpondo

a

fronteira

suíça. Alguns esta

dias

antes,

mesma

Mussolini,

estrada

com

a

vindo

por

intenção

de

transpor esta mesma linha, foi pego pelos “partigiani” e “deu-se muito mal”... Imaginem

a

fortuna

“fascistões”

estariam

que

os

dispostos

grandes a

pagar

para poder transpor esta fronteira, para sair da Itália e poder escapar das mãos dos

irados

“partigiani”,

que

os

caçavam

com a faca nos dentes...

Durante

alguma

missão

na

retaguarda,

no

inverno, tive que voltar a Piza e aproveitei para subir a famosa torre. Quando mandei esta foto para casa, insisti que reparassem nas

“botas

primeira inverno. 304

claras

vez

que

de

couro

vestia

o

cru”.

Era

uniforme

a de


Durante alguma missão na retaguarda, no inverno, tive que voltar a Piza e aproveitei para subir a famosa torre. Quando mandei esta foto para casa,

insisti

reparassem

nas

que “botas

claras de couro cru”. Era a primeira vez que vestia

o

uniforme

de

inverno.

O bom companheiro José Luso Affonso, apesar de não

ser

tão

jovem

(acho

que

se

alistou

como

voluntário), participou conosco galhardamente de momentos difíceis em todas as etapas da campanha. 305


Mistério Eu e o Nogueira de Sá, únicos seres vivos numa das praças mais famosas do mundo, completamente vazia, fechadas todas as janelas de todos os palácios, de todos os hotéis, prédios, restaurantes. Silencio absoluto em plena luz do dia. É uma foto INACREDITÁVEL. Trata-se da praça Stanislas, em Nancy, bem depois do fim da guerra. Entre os palácios e hotéis da praça vê-se, ao fundo, o clássico “Hotel de La Reine”, cujo elegante bar, na calçada, é parada interessante para quem vai de Paris à Alsácia. Na foto, fechado. Alguém me sugeriu uma explicação falsa, mas interessante – talvez não tivéssemos visto algum letreiro dizendo: “ATTENTION! LA PESTE!! DANGER, THE CONTAMINATION!!”

306


Um tenente recĂŠm-saĂ­do da guerra, lavado e passado primeira vez em Paris, desfila nos jardins do Louvre.

a

limpo,

pela

307


Sempre que entro ou saio na Notre Dame, tenho medo de que o corcunda, o Quasímodo, jogue alguma coisa lá de cima. Por isto cheguei bem para cá. 308


Paris... Paris... Finalmente consegui uma licença para ir até Paris! Com a falta de navios para volta, ficamos todos esperando acampados em Francolise. A luta por uma permissão era grande. Havia fila. Estando lá, fotos e mais fotos. Mandei para casa esta, acima, do túmulo do soldado desconhecido, e escrevi no verso: “Qualquer militar, de qualquer parte do mundo, passando sob o Arco do Triunfo, saúda respeitosamente este túmulo. ’Ici repose un soldat français mort pour la patrie’. As crianças param, ficam sérias, e algumas rezam uma prece.” Por inúmeras vezes, vida afora, passei por ali de carro ou a pé. Mas nunca mais foi a mesma coisa. Naquele dia eu ainda estava fardado e tinha frescas, na memória, as cenas e os fatos que justificavam uma certa emoção.

309


Francolise, próximo a Nápoles. A guerra havia acabado há dois meses, fazia um calor infernal no acampamento e não havia transporte de volta. (Como já disse antes, os navios transporte de tropas eram todos americanos e era natural que atendessem primeiro aos combatentes deles, que estavam na

Alemanha, há mais tempo que nós na Itália.) O jeito era “fazer tocha” 1 quando possível. E esperar.

1 Chamávamos “tochas” as “escapadas” (autorizadas) que fazíamos para fora do acampamento.

310


Só estou presente nesta

foto.

As

outras duas foram tiradas por mim.

Nesta

foto,

mais

alto

o de

todos, penúltimo à

direita,

óculos

de

escuros,

é o Edgar Caldas Barbosa,

que

hoje tem 95 anos e

mora

na

Joaquim

Rua

Nabuco.

Recentemente (10/01/2016), falei

com

por Está

ele

telefone. plenamente

lúcido humorado

e

bemcomo

sempre. 311


Em

um

trecho

transcrevo

do

no

meu

diário

Capítulo

4

-

-

que

falo

da

minha emoção quando, depois de muitos dias que

entre me

o

céu

levava

e

à

o

mar

Itália,

no

navio

numa

bela

manhã fui acordado pelo Samuel, que me chamou correndo ao convés, e deparei com um gigantesco promontório rosado, a pouca distância, brilhando ao sol: era Capri. A lendária Capri do livro de

Axel

Munthe,

que

tanto

me

havia

impressionado quando o li, anos atrás. Na

foto

de

1945,

quando

estávamos

acampados próximo a Nápoles esperando o navio de volta, dei uma escapada até lá. Ainda

não

havia

cicatrizado

bem

o

ferimento que havia sofrido no queixo, o que me impedia de barbear-me. (Tive que usar barba por algum tempo. E fazer cirurgia reparadora anos mais tarde). Na foto, eu e o Valentin - outro médico do Batalhão que foi comigo, defronte aos célebres Faraglioni.

Turistas não havia. Alguns poucos barqueiros sobreviviam atendendo a um ou outro militar que ia até lá. Setenta anos se passaram, outros 70 virão, os barquinhos da “Grotta Azurra” continuam e continuarão iguais. E os barqueiros têm e terão sempre o mesmo modo de adentrar a grota, cantarão sempre o mesmo “Ó Sole mio”... 312


Viagem ao lago Magiore, logo depois do fim da guerra, maio de 1945 (ainda de barba). Tal como Capri, a região dos lagos foi outra paixão à primeira vista. Tive a sorte de poder andar por lá muitas vezes durante a vida.

313


No passeio a Capri, eu e Nogueira de Sรก fizemos fotos no mesmo lugar. Faraglioni ao fundo.

314


Os rochedos de Capri, que foram a primeira coisa sólida que vi depois de três semanas entre céu e mar no navio de transporte, deixaram-me apaixonado. Pela forma, pela cor e pela água - esmeralda líquida - que o cerca. Um mergulho, logo que possível, era obrigatório. Consegui e repeti muitas vezes, muitas décadas depois.

315


O primeiro passeio de barco em Capri: CHE BELLA COSA UNA GIORNATA O SOLE! CHE BELLA COSA UNA GIORNATA AL MARE! Ó SOLE! Ó SOLE MIO! STO’INFRONTE A TE! STO’INFROOOOOOOONTE A TE!!! A foto tem 70 anos e a canção, mais de 100. E será cantada enquanto houver barqueiros e enquanto houver tenores.

316


Outra foto na fronteira itálo-suíça. Como já espliquei antes, Mussolini se encaminhava para esse posto de fronteira quando foi preso(ver capítulo 9). No verão de 1945, depois do fim da guerra, pela primeira vez visitei a Casa de San Michele, conduzido por esta menina caprese.

Não sei que ruínas são estas. Pelo uniforme da foto, é do verão de 1945.

O Borring (foto) embarcou de volta antes e de avião, diretamente para a América. Mais tarde voltou para o Brasil e logo em seguida morreu de um câncer de fígado. Tinha bem menos de 30 anos.

317


Capítulo 27

ENCONTROS NA ANVFEB

Depois de haver passado quase 70 anos sem me inscrever como ex-combatente na ANVFEB, Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira, visitei a sede e o museu instalados no pequeno edifício do no 35 da Rua das Marrecas, no Rio de Janeiro. Terminava uma reunião no momento em que cheguei, aproximei-me de alguns diretores e apresentei-me. Receberam-me, naturalmente, muito bem e logo se destacou entre eles o Prof. Israel Blajberg, autor de um livro sobre a participação de judeus na II Guerra. Perguntou-me se sendo médico no Batalhão de Saúde, havia conhecido um outro médico de quem buscava, e não havia conseguido, informações para completar seu livro, e assim sua biografia estava incompleta. Se eu “por acaso conhecia Samuel Soichet”. Obviamente respondi com exclamações, que não só conhecia como tinha fotografias, informações e histórias pois Samuel era um dos meus maiores amigos desde os onze anos de idade.Sugeri que me visitasse para colher o material que precisasse. A partir desse dia por várias razões tenho comparecido a ANVFEB. Muitas vezes para receber homenagens. Já somos poucos os que estamos vivos e com saúde suficiente para ir até lá. O Presidente do Conselho diretor era um dentista, Israel Rozenthal, gentilíssimo, cujo aniversário é, como o meu, a 31 de janeiro. De 1921, portanto um ano mais moço que eu. Sua capacidade de trabalho e vivacidade mental são extraordinárias e é um dos pilares da Associação.

Ambos, Blajberg como Rozenthal, comunicam-se comigo com frequência, pois o primeiro é o encarregado da assessoria de relações e divulgação, que funciona com total eficiencia, e o segundo, como Presidente do Conselho, é o coordenador de atividades que às vezes solicitam a minha presença. Em 2014 o professor Israel Blasberg escreveu um novo, belo e detalhado livro “A estrela de Davi no Cruzeiro do Sul” no qual já dedica várias páginas à vida do meu amigo Samuel e faz a gentileza de publicar fotos que me incluem e textos colhidos do que escrevo neste álbum. Esse livro, já traduzido em inglês e iídiche, está tendo ampla divulgação em Tel Aviv e New York. O lançamento no Rio foi feito numa solenidade no Forte de Copacabana com a presença de uma pequena multidão que lotava dois enormes salões.

318


HOMENAGENS A UM VETERANO homenagem no FORTE Duque de caxias (forte do leme) Homenagem a um veterano. Forte Duque de Caxias (Forte do Leme) 07 de maio de 2014. Encaminhando-nos para o local da solenidade, eu e o Coronel Álvaro Roberto Ferreira Lima, comandante do forte. Mais atrás a Major Valéria, Relações Públicas e a Ten Tainá, sua Ajudante de Ordens.

O Coronel Comandante põe a tropa em forma.

319


O Coronel Comandante discursa para a tropa expondo o que foi a 2ÂŞ. Grande Guerra, o papel do Brasil, a FEB e me apresentando como veterano e representante dos ex-combatentes.

O Coronel pergunta se eu desejo dirigir algumas palavras aos soldados. Agradeci a homenagem e a transferi aos que morreram em combate.

Desfile da tropa em continĂŞncia, durante a homenagem.

320


HOMENAGEm na Itália

Na data em que fez 70 anos a libertação da cidade de Camaiore foi dado o nome de “Piazza Brasile” a uma praça localizada em um bairro novo na cidade. Camaiore tem hoje cerca de 30 mil habitantes. Na época da guerra era menor. Foi uma das primeiras cidades tomadas pela FEB. Fica próxima ao Mediterrâneo, no extremo oeste do nosso “front”. Na mesma solenidade em que a praça foi “batizada” inaugurou-se também um monumento bastante interessante em homenagem aos brasileiros mortos nas batalhas ocorridas ali. Sobre uma base de mármore colocaram uma pedra retirada propositadamente de um dos rochedos sobre o qual houve combates. E sobre a pedra um crucifixo, cópia do que o capelão do regimento usava quando necessária uma extrema-unção.

A mais alta autoridade militar brasileira na Itália, o adido Militar na Embaixada em Roma paticipou da solenidade. Estando eu presente na Itália naquela ocasião, fui solicitado, através do diretor do Monumento Votivo Mario Pereira, a representar os ex-combatente da FEB.

321


A

iniciativa

homenagens

ao

das Brasil

partiu de organizações civis, Um

não

dos

oficiais.

organizadores

discursou

na

ocasião,

solicitou presença

minha a

seu

lado,

apresentando-me

aos

presentes.

na

Itália

várias

organizações que, com a intenção de reconstituir tudo

o

que

guerra,

concerne

à

reconstituem

com perfeição uniformes militares restauram veículos

da

época,

armamentos com

e

precisão

e competência. Estiveram presentes nesta ocasião. Aparece um

nesta

vestido

como

foto um

“partigiano” e outro como um

militar

brasileiro

(outras fotos adiante).

322


Além

do

Adido

brasileiro ajudante

e

Militar de

de

seu

Ordens,

compareceram

altas

autoridades italianas, o Bispo local e o Prefeito de Camaiore. Uma organizada e afinada banda de música estava também presente. O

Sr.

(ver

Pereira

capítulo

sabendo na

Mario que

Itália,

minha

eu

25), estava

solicitou

presença

representar

para os

veteranos da FEB. Já são poucos também os “partigiani” ainda vivos. Este velhinho veio representá-los. Era uma figura interessante, alegre e cheia de histórias. Em determinado momento, aparentando cansaço foi abordado por uma das organizadoras que perguntou-lhe: -O Sr. necessita de alguma coisa? -Sim! - respondeu ele. -O que? -“Vino e soldi” (vinho e dinheiro) (risada geral)

323


O

Adido

Militar

brasileiro,

a

quem

tocava

hastear a bandeira, transferiu a mim a elevada honraria.

324


Após

os

nacionais

hinos brasileiro

e italiano, discursos, benedição etc.,

pelo

bispo,

encerrou-se

solenidade

na

a

praça.

Eu não sabia que havia outra no cemitério. Ao

dirigir-se

lá,

a

de

pé,

com

música,

para banda muitos

populares

etc.,

formou-se uma comitiva liderada pelo prefeito, que

fez

incluir-me

questão na

de

linha

de frente. Caminhamos cerca de um quilômetro

sob

o

sol

quente.

325


no

cemitério

belo

monumento

homenagem que

a

um em

todos

tombaram

pela

libertação da Itália. Mais foi de

uma dada

ali

vez a

(por

mim

honraria

depositar

importante flôres

a

coroa seu

uma de peso

me ofereceram ajuda de dois “bersaglieri”). Havia

presença

da

televisão, fotógrafos de jornais, etc.

326


Impressionou-me

vivamente

a

grande

parada de veículos militares antigos, com

motores

originais

perfeitamente

funcionando,

recondicionados

como

se fossem novos. Tanto os usados pela FEB, como pelos militares americanos e inclusive os dos alemães. Um grande número de colecionadores e de rapazes italianos

membros

de

organizações

que se dedicam à história da guerra compareceram

vestidos

em

uniformes

completos, como se fossem militares brasileiros, americanos ou alemães. Tudo

absolutamente

capacetes

às

botas.

idêntico, (Enquanto

dos eu

estava sendo objeto das homenagens, meus sobrinhos José Guilherme e Ana Maria, que viajavam comigo, fizeram muitas fotos, parte das quais estão reproduzidas aqui).

327


“Jeep” da marinha americana.

328


329


330


“Soldados alemães” minuciosamente uniformizados e equipados.

Nós, brasileiros, usávamos num braço o emblema amarelo da FEB e no outro o vermelho do Fifth Army, como na foto. 331


332


Capítulo 27

A VIAGEM DE VOLTA, A CHEGADA, O DESFILE A viagem de volta foi muito diferente da de ida, como não podia deixar de ser. O navio chamava-se Mariposa. Era praticamente igual ao General Meigs, da ida. A viagem foi muito mais curta, pois não havia necessidade de trajetos sinuosos para evitar submarinos, como aconteceu na ida. Acho que viemos em uma semana, se não me engano. A alegria era total e generalizada antes de chegarmos. Total talvez não. Despedíamo-nos dos companheiros de um convívio tão solidário, em circunstâncias às vezes tão adversas... foi triste. Só nos consolava a promessa mútua de que nos reuniríamos outra vez em breve, num restaurante qualquer, para nos revermos. Havia amigos de São Paulo, de Minas e de outros lugares. A recepção ao nosso navio foi muito emocionante. Aviões da FAB já nos sobrevoavam bem antes de nos aproximarmos da entrada da Barra. Os canhões do forte de Copacabana e dos outros fortes, também com sucessivas salvas, davam solenidade à cena. Muitos barcos de vários tamanhos, alguns brancos, outros vermelhos do Corpo de Bombeiros, jorravam altíssimos jatos d´água em forma de leque. Apitos graves e agudos acrescentavam emoção ao momento. Uma recepção, digamos, cinematográfica. O desembarque foi o que se pode imaginar. Habituados a vermos no cinema a chegada, na América, de tropas vitoriosas, desta vez éramos nós os personagens daqueles desfiles de soldados em marcha meio desorganizada recebendo chuvas de papel picado e gritos de gente que se acumulava à beira da passagem ou nas janelas dos edifícios. Uma enorme ansiedade de chegar em casa. Não preciso descrever a alegria geral de rever a todo mundo e vice-versa, de voltar a dormir no mesmo quarto e na mesma cama de antes da partida. 333


Capítulo 28 O QUE EU TROUXE NA BAGAGEM Devíamos desfilar logo após o desembarque, portanto, só com a roupa do corpo. A bagagem, nos Sacos “A e B”, foi para um depósito no Ministério da Guerra (era assim que se chamava o atual Ministério do Exército). Um ou dois dias depois, cada um iria buscar lá o que lhe pertencia. Os meus capacetes, um de aço com a cruz vermelha e outro de fibra com a estrela azul de tenente, os uniformes e as roupas de campanha, alguns objetos menores recolhidos durante aqueles meses e que por alguma razão me interessaram, tudo apanhei e trouxe para casa. Muitos papéis, documentos, rascunhos, trouxe também. Tudo o que era papel, com raras exceções, foi jogado fora porque para mim, na época, não valiam nem o espaço que ocupariam no arquivo. Quanto aos objetos, algumas coisas continuam comigo até hoje: os dois capacetes, o cantil, um cachimbo e só. Um capacete alemão também. Mas quanto às medalhas que os feridos alemães me deram quando os atendia em Quattro Castella, foram todas perdidas. Carlos e Fernando, quando tinham seus cinco ou seis anos de idade, gostavam de brincar com os amigos usando capacetes verdadeiros, medalhas legítimas e, com isto, somado ao meu desinteresse por aquelas peças, foi tudo perdido. Sobraram só os capacetes. Tenho ideia de juntar esse pouco material que sobrou e entregar a quem tiver mais interesse ou possibilidade de guardá-los. Ou a um museu da FEB. Quanto aos papéis, guardei, felizmente, alguns: os boletins oficiais que ordenavam meus deslocamentos, minhas missões e até transcrevem os elogios. Foi isto que me permitiu reconstituir hoje toda a trajetória que fiz e que transcrevo aqui em capítulos anteriores. Entre eles estão os documentos originais da minha missão em Farné, inclusive o desenho da distribuição das unidades de combate às quais eu e o meu grupo devíamos dar assistência. São documentos interessantes porque dão a ideia do que se passava nos muitos outros locais em que meu posto esteve (estão no Capítulo 16). Achei também alguns telegramas que havia recebido lá, vindos do Brasil, e que releio um pouco comovido. Notas de dinheiro que usava lá e até um “passe livre” para circular por outras unidades de combate. 334


Cartas e telegramas (censurados, naturalmente) razoavelmente, embora fossem bem lentos.

funcionavam

335


Os telegramas eram muito usados, eram relativamente rĂĄpidos e as famĂ­lias gostavam muito, pois traziam notĂ­cias recentes. 336


337


Quando escrevo no Capítulo 25 sobre o rastro de simpatia que a FEB deixou na Itália, faço referência a este cartão de Natal enviado por uma família de Vecchiano, que logo após a chegada, antes do início real das atividades, eu e o Nogueira de Sá visitamos algumas vezes para treinar conversação em italiano.

338


Cartão que controlava o material que cada um podia solicitar ao Serviço de Intendência, que era fornecido quando disponível (quase sempre não era).

Qualquer ida à retaguarda ou a outra unidade, só com autorização do comandante. Mesmo depois de terminada a guerra. 339


Na Itália, em cada fase da guerra, cada tropa que participava dela trazia mais uma moeda. Todas continuavam vigentes e circulavam ao mesmo tempo. Curiosamente não havia confusão. 340


341


Capítulo 29

FALSAS INTERPRETAÇÕES

Voltando ao Brasil,

cada um que chegava em casa falava primeiro das

excursões turísticas, que eram o que tinham mais fresco na memória. E as únicas fotografias que tinha na bagagem eram também de Paris, Roma, Florença, etc. Aliás, como

o correio funcionava bem, de lá mesmo, no período em que esperávamos a volta, cada um enviava para a família e para os amigos belas fotos, aparecendo sorridente, alegre, à

frente de ruínas romanas ou tendo o Coliseu ao fundo. Todo mundo queria era esquecer a guerra. Ao chegar em casa, também, ninguém queria falar de tragédia.

Era natural, assim, que muita gente, ao ver ex-combatentes chegando eufóricos,

que aos beijos e abraços mostravam a todo mundo fotografias tiradas no Coliseu ou na Torre Eiffel, guardasse a impressão de que afinal de contas a guerra para nós não tivesse sido tão dura. Ouvia-se isso de vez em quando.

Mais ainda:

é sabido que para cada homem combatendo no “front” há pelo

menos três ou quatro trabalhando para ele na retaguarda. A fabricação, o transporte de

suprimentos, de munição, de tudo que o “front” precisa envolve muita gente. No caso da FEB, um bom número de homens ficou em Florença ou em Roma, levando uma boa vida, nada comparável à dos que estavam no “front”. Eram os que nós chamávamos “Saco B”. (Cada um de nós dividia o próprio material, roupas, etc., em dois sacos e só levava para o

“front” o essencial, em um “Saco A”, deixando o restante em depósitos na retaguarda, num “Saco B”. Daí o apelido).

Não acreditamos, porém,

que qualquer um, analisando sem má-fé, sabendo

o que se passou nos duros combates de Montese, Monte Castello, Serrasiccia, Capel Buso ou em tantos outros locais que precisavam a qualquer custo ser retirados da posse dos nazistas, tirasse conclusões pouco respeitosas sobre a FEB. Afinal, 487 brasileiros

perderam a vida e milhares de outros voltaram mutilados, lutando numa guerra que foi a mais ampla e mais cruenta de todos os tempos.

342


EFEITOS POLÍTICOS NO BRASIL

Vários historiadores que se dedicam ao estudo da participação do Brasil na II

Guerra Mundial manifestam estranheza por não ser dada, aqui, mais relevância a este importante fato histórico. Um deles, João Baroni, chegou mesmo a dar ao seu excelente livro o título de “1942 – O Brasil e sua guerra quase desconhecida”.

Segundo opinião geral, a presença das Forças Armadas Brasileiras na MAIOR GUERRA

DE TODOS OS TEMPOS, cumprindo com êxito operações militares importantes em uma larga

faixa do “front” italiano, tem sido até mesmo mais reverenciada em outros países que no Brasil.

Na Itália, por exemplo, a ação dos militares brasileiros é até hoje louvada,

Outro fato que vale mencionar é o convite que foi feito ao Brasil para participar

inclusive nas escolas.

ao lado dos Estados Unidos, da Inglaterra, Rússia e França da ocupação do território da Áustria no pós-guerra. Uma honraria muito especial que teria permitido ao Brasil uma importante posição no Conselho de Segurança da ONU, antiga aspiração nossa.

O historiador americano Frank McCann, tratando do assunto, diz que não conseguiu

compreender as razões que levaram o governo brasileiro da época a recusar o convite. Chegou mesmo a viajar ao Brasil para analisar documentos da época, numa tentativa de compreender o que se passou.

Em 1945, quando a FEB chegou de volta, Getúlio Vargas já governava o Brasil há 15

anos, como ditador. Sua ditadura havia sido contemporânea à de Mussolini e à de Hitler. Antes e durante os primeiros anos da guerra, ele nutria simpatias veladas por esses

regimes. Do Fascismo havia até mesmo copiado alguns métodos e ideias. Com o evoluir dos acontecimentos militares, foi pouco a pouco se convencendo de que a posição do Brasil

seria a que finalmente tomou, ao lado das potências aliadas, as quais, porém, lutavam pela democracia.

O governo dispunha naquele tempo de um Departamento de Imprensa e Propaganda

cujos redatores se viram um pouco embaraçados com esta incompatibilidade política.

343


Capítulo 30

VOLTANDO A ANTIGOS CAMINHOS

A Itália, por si só, vale a viagem. Sempre. Se somando-se a isto o viajante leva na memória um punhado de lembranças que marcaram intensamente uma fase da juventude, a viagem valerá o dobro. Tive a boa sorte de poder por várias vezes voltar à Itália. E em algumas delas percorrer velhos caminhos da FEB. Foi bom ter tido os meios e a saúde necessários para isto.

A famosa esfinge, cuja saída do Egito é um mistério que Munthe explica, ou melhor mal explica, em longuíssimos parágrafos de seu livro, permanece ali contemplando a magnífica vista do Golfo e da “Marina Grande”, indiferente à passagem dos anos, das guerras e dos visitantes.

344


No

diário

escrevi 1944

que em

dentro

do

General

Meigs, que

anotei

havia

um

castelo em uma ilha cujo nome eu

não

sabia

exatamente, pouco

antes

de

chegar

a

Nápoles.

Recentemente, hospedei-me num quarto de hotel bem a

em

frente

ele.

Por

muitas

vezes,

também,

passei

de

barco

ali, de

por

vendo-o perto,

ostentando

a

sua imponência.

345


M o n t e c a t i n i ficava,

em

1944,

afastada “front” como

do e

servia

local

repouso tropas

de para

exaustas

ou recuperação de ferimentos leves. Os

edifícios

termas, de sua

100

têm anos,

das mais mas

grandiosidade

e beleza ainda são impressionantes. Nas

fotos,

Maria.

346

Ana


347


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