CIRURGIA I FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA
AULAS TEÓRICAS
AMIGOS DO STEVIE
4º ANO
2012-2013
HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DA CIRURGIA A história da cirurgia é relativamente recente. No início do século XIX nos hospitais realizava-se 1 ou 2 cirurgias por semana, actualmente no Hospital Egas Moniz efectuam-se 60 cirurgias por dia. Naquela altura as cirurgias realizadas eram simples (à luz dos conhecimentos actuais), tratando-se complicações da tuberculose óssea, abcessos e hérnias estranguladas. Apesar da simplicidade destes procedimentos cirúrgicos a mortalidade pós-operatória era muito elevada, 40 a 60%, o que desincentivava os doentes a quererem ser operados. O século XX, sobretudo na sua primeira metade, é considerado o século da cirurgia e dos cirurgiões. Na Guerra da Sucessão nos EUA, em 1891, 92% dos amputados morria em Sépsis. Rudolph Matas foi um importante cirurgião norte-americano que em 1881 afirmou que “a cabeça, o tórax e o abdómen são santuários que não devem ser abertos a menos que por acidente”. A cirurgia não se desenvolvia, não por inabilidade ou incompetência dos cirurgiões da época, mas sim devido ao atraso nas áreas do conhecimento que tratavam o combate à infecção, dor e hemorragia. Infecção Hunter concluiu que “a inflamação não é ocasionalmente causa de doença, é também modo de cura”. A infecção traz quase sempre um processo inflamatório, no entanto, existem processos inflamatórios que nada têm a ver com infecção. A cicatrização é um processo biológico e implica um processo inflamatório moderado. Os doentes desnutridos, como por exemplo, os doentes com neoplasia do esófago, antes de qualquer cirurgia, devem ser submetidos a prova cutânea para avaliar a resposta inflamatória. Warren constatou que “ a cicatrização por primeira intenção raramente é conseguida”. Na cicatrização por primeira intensão a ferida operatória é fechada rapidamente e não há supuração da ferida, sendo a resposta inflamatória mínima. No terceiro quartel do século XIX uma enfermeira chefe afirma que “nada é tão saudável numa ferida como uma descarga de pús”, isto é, no caso de existir infecção, é bom que esta drene para o exterior, pois caso fique contida no interior pode levar a bacteriémia e septissémia. Em 1865, Pasteur concluiu que a putrefacção, a fermentação e a formação de pús eram devidas a microrganismos vivos, explicando assim, pela primeira vez, a etiologia das infecções. Joseph Lister preconizou a utilização de desinfectantes nas feridas operatórias, sendo que o primeiro desinfectante utilizado foi o ácido carbólico. Simpson concluiu que “as operações cirúrgicas devem realizar-se nas mesas das cozinhas ou em pequenos hospitais, por aí serem menos frequentes as infecções”. Este princípio, o princípio das infecções nosocomiais, ainda hoje é válido. Halsted é o pai do conceito de internato médico que ainda hoje impera em praticamente todo o mundo e foi ele que em 1890 introduziu e divulgou a utilização de luvas de borracha. Até aí os cirurgiões operavam sem qualquer protecção manual. Bergman defendeu a esterilização do material cirúrgico pelo vapor e preconizou o ritual asséptico que ainda hoje é utilizado (lavar as mãos e calçar luvas). Deste modo, só no século XIX se realizaram as primeiras cirurgias verdadeiramente dignas desse nome. Billroth realizou a primeira gastrectomia em 1891. Langenbuch procedeu com êxito à primeira colecistectomia. Em 1889 McBurney descreveu o sinal e a incisão de McBurney. Este cirurgião operou o Príncipe Eduardo, filho da Rainha Vitória, dando assim um precioso contributo para que a cirurgia se tornasse uma arte nobre e respeitável.
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Röntgen não é cirurgião, mas foi ele que em 1895 trouxe para o campo da medicina as radiações X e as suas aplicações que ainda hoje são utilizadas. Ehrlich descobriu o primeiro fármaco com intenção bactericida, o Salvarsan (Arsfenamina). Depois Dogmark descobre as sulfonamidas, que estão na origem das sulfamidas, e Fleming em 1941 descobre a penicilina. Apesar de todos estes progressos, a infecção não é um problema que pertence em exclusivo ao passado, pois no final do século XX um terço dos doentes operados em grandes hospitais apresentava infecções. Dor Outra questão que atrasava o progresso da cirurgia era o combate à dor. Operar implica seccionar tecidos o que leva à dor. Até ao século XIX a tentativa de reduzir a dor era feita através da ingestão de bebidas alcoólicas, ópio e sangria (que levava à perda dos sentidos). Lang utilizou pela primeira vez o éter, Warren preconizou a máscara de éter e, mais tarde, Simpson introduziu a utilização da máscara com clorofórmio (algodão em rama mergulhado em clorofórmio). O grande salto da cirurgia no século XX está relacionado com a descoberta da entubação endo-traqueal, a administração endovenosa de fármacos e com o bloqueio de troncos nervosos. Estas descobertas permitiram que durante a Segunda Guerra Mundial se criasse a especialidade de Anestesia, que até aí era feita pelo cirurgião mais inexperiente e incapaz da equipa. Transfusão O avanço da área transfusional também é muito importante no avanço da cirurgia. Em 1667 Jean-Baptiste Dennis e o cirurgião Emerez realizaram a primeira transfusão a partir de uma ovelha. É questionável que o sangue tenha efectivamente entrado na veia, pois os conhecimentos científicos naquela época eram reduzidos. Em 1668 foram registadas mortes atribuídas a esta terapêutica, tendo esta sido proibida. Apenas em 1900 Landsteiner identificou os grupos sanguíneos do sistema AB0, mais tarde foram identificados os grupos Rh e ocorreram várias descobertas que permitem preservar o sangue por um período até 6 semanas (o que permite auto-transfusões em cirurgias; a auto-transfusão não se pode efectuar em doentes com neoplasia, infectados ou anémicos). Laparoscopia A laparoscopia, no final do século XX, representa também um grande avanço na área da cirurgia. A primeira laparoscopia terá sido feita por um cirurgião alemão, Mühe, que em 1985 realizou na Alemanha a primeira colecistectomia laparoscópica, com resultados modestos. Também Mouret realizou em 1987 em França uma colecistectomia via laparoscópica (VL), com resultados igualmente modestos. A comunidade cirúrgica só aceitou este procedimento em 1988, quando dois professores de Cirurgia de renome, Dubois e Perissat, começaram a efectuar em França colecistectomias VL de forma sistemática. A primeira colecistectomia VL em Lisboa foi efectuada pelo professor Alves Pereira em 1991. O professor Raul Mesquita efectuou a primeira colecistectomia VL no Hospital Egas Moniz em 1992. A laparoscopia possibilita que as incisões sejam mais pequenas, tendo assim como vantagens menos dor, período de imobilização mais curta, menos hérnias incisionais (hérnias que surgem de feridas operatórias), melhor resultado cosmético e menor hospitalização. Actualmente a cirurgia é mais atractiva pois é menos mutilante e agressiva. No presente/futuro, as cirurgias serão, cada vez mais, feitas com indicações muito precisas. Devido ao desenvolvimento dos meios imagiológicos e analíticos, actualmente, não é aceitável avançar com cirurgia como primeiro meio de diagnóstico. A evolução da antibioterapia, da quimio/radioterapia e da endocrinologia, levaram a que, hoje em dia, se efectuem menos cirurgias para tratar infecções, doenças oncológicas e doenças metabólicas/endócrinas. A transplantação é uma área em destaque na cirurgia. 2
INSTRUMENTAL CIRÚRGICO, FERIDAS E SUTURAS FERIDAS Existe um score para classificar feridas de acordo com o grau de contaminação. As feridas não são todas iguais e não têm a mesma probabilidade de infectar. As feridas provocadas por trauma com menos de 4 horas de evolução pertencem à classe III. Nesta classe pode aparecer infecção, mas não se observa pús. Na classe IV (feridas conspurcadas) já há pús associado à infecção. Esta classificação é importante porque num determinado Serviço Hospitalar uma percentagem de infecção de 10% pode ser um mau resultado se esse Serviço operar sobretudo cirurgias limpas, mas pode ser um bom resultado se o Serviço operar, por exemplo, muitos cólons e muita cirurgia traumática. A cicatrização é um processo biológico em que há sempre, necessariamente, um fenómeno inflamatório, seguido de um processo proliferativo e, no fim, maturação. Na cicatrização, o colagénio I é a fibra mais importante em termos de força tênsil e só aparece de forma significativa ao fim de 5 a 6 dias, sendo que até aí há um predomínio de fibronectina, colagénio III e procolagénio. A cicatrização depende de factores como a nutrição, a anemia, a idade, doenças concomitantes, terapêuticas em curso (quimio e radioterapia atrasam a cicatrização), hiper ou hipotermia e o controlo metabólico (os processos cicatriciais no doente diabético são mais demorados e difíceis de obter e por isso é sensato deixar os pontos de sutura durante mais dias). Na cicatrização existem factores loco-regionais importantes como: a perfusão tecidual pois a cicatrização não se faz se houver hemorragia profusa, mas também não se faz se toda a ferida estiver cauterizada, porque ai a regeneração tecidual é muito tardia, a cicatrização não se faz em tecidos desvitalizados, a manipulação dos tecidos deve ser cautelosa para evitar hematomas e seromas. No entanto, se eles ocorrerem devem ser drenados para o exterior, deve-se reduzir ou encerrar os espaços mortos, a duração, o tipo e o local da cirurgia são também factores importantes na cicatrização.
CICATRIZAÇÃO A “boa” cicatrização, de 1ª intenção ou primária, é o processo de resolução das feridas operatórias ou acidentais e deve envolver os seguintes passos: Correcta limpeza mecânica e microbiológica da área – por exemplo, limpar a areia que está na ferida do joelho de uma criança. Remover os tecidos desvitalizados – porque estes tecidos podem ser um reservatório de bactérias que depois passam para o interior da ferida. No joelho pode-se fazer mas, por exemplo, na face é necessário ter cuidado para não provocar lesões irreversíveis. 3
Hemostase adequada – uma ferida não cicatriza se estiver a sangrar copiosamente, no entanto, também não há cicatrização se não houver fluxo sanguíneo suficiente, pelo que não se deve cauterizar todos os vasos da área. Uma ferida pode ficar a babar, mas não pode ficar a sangrar. O papel do cirurgião é conseguir efectuar a correcta aproximação dos bordos (lábios) da ferida habitualmente conseguida por meios mecânicos: suturas – esta aproximação vai facilitar o processo biológico de cicatrização. Adequado processo biológico de cicatrização – não basta os materiais de sutura, a verdadeira cicatrização é feita pela biologia. A “boa” cicatrização, de 1ª intenção ou primária é caracterizada por: Reacção inflamatória adequada – que não pode ser excessiva nem inexistente. Discreta incorporação de novos tecidos na área – o hiato na ferida deve ser preenchido, mas devese tentar utilizar uma quantidade reduzida de material estranho para evitar a cicatrização quelóide. O resultado final pretendido é uma boa cicatriz – fina, não saliente e não retráctil. Na cicatrização de 2ª intenção ou secundária, verifica-se habitualmente: Reacção inflamatória exuberante Maior incorporação de novos tecidos na área Cicatriz com pior qualidade – espessa, saliente e retráctil Processo mais lento
INSTRUMENTAL CIRÚRGICO Põe-se, assim, a necessidade de encontrar material de sutura que ajude a biologia. Ao longo da história, no Oriente (India) utilizavam-se garras de formiga, depois material não reabsorvível (seda e linho) e depois evoluiu-se para um material reabsorvível (cat-gut) feito de intestino de ruminantes. As suturas são passadas pelos tecidos por agulhas que, historicamente, eram feitas de osso, madeira e depois de metal. (Nunca dizer “coser uma ferida”, dizer “suturar uma ferida”) Inicialmente, as agulhas de metal não tinham fio incorporado, pelo que eram montadas no bloco operatório pela enfermeira instrumentista. Estas agulhas tinham vários tamanhos e vários tipos de curvatura (rectas, semi-curvas e curvas). Era importante que a agulha tivesse o mesmo calibre do fio utilizado para evitar hemorragias. Actualmente, as agulhas comercializadas já têm fio incorporado. Ao corte estas agulhas podem ser cilíndricas, triangulares (lanceoladas) ou em forma de diamante. As agulhas lanceoladas são utilizadas na pele e no couro cabeludo. Podem ainda ser comercializadas duas agulhas com o mesmo fio, como as que são utilizadas em cirurgia vascular. Existem ainda agulhas especiais como as agulhas em anzol que permitem suturar em regiões de difícil acesso (como por exemplo, para as herniorrafias). Relativamente ao material de sutura, inicialmente utilizava-se material não reabsorvível como a seda e o linho, tendo mais tarde aparecido os materiais sintéticos como os derivados do nylon e os fios de aço (utilizados para suturar o esterno na cirurgia cardio-torácica). O primeiro material reabsorvível a ser utilizado foi o cat-gut, feito de intestino de vaca ou carneiro, que era reabsorvido ao fim de 7 dias (ao fim dos 7 dias este material podia ainda existir, mas como já tinha perdido a sua capacidade de fixação, considera-se esta a sua duração). Por haver vantagem em que a 4
reabsorção se fizesse de forma mais tardia em algumas situações, a indústria descobriu que se mergulhasse a mesma tripa de carneiro ou de vaca em crómio a reabsorção estendia-se até aos 15 dias, passando assim a existir o cat-gut crómico. Depois, surgiram materiais sintéticos como o Vicryl que tinham um tempo de absorção de 3 semanas e, ultimamente, desenvolveram-se também materiais, que libertam de forma progressiva um anti-séptico (Triclosan). O material de sutura pode ser de monofilamento ou de polifilamento. O material monofilamentado é aquele em que há uma fibra única, sendo, aparentemente, mais resistente à contaminação bacteriana (porque as bactérias não se alojam entre os vários microfilamentos). A indústria reagiu a esta teoria criando um material polifilamentar envolvido por uma bainha para que o fio funcionasse como um monofilamento. Qualquer material não reabsorvível que seja introduzido num organismo vivo é susceptível de ser contaminado por bactérias quer exógenas quer endógenas. Como estes materiais não são vascularizados a defesa do organismo torna-se muito mais difícil, isto é, mesmo que sejam administrados antibióticos muito eficazes, sem a proximidade capilar estes não podem ter efeito nas bactérias. Além disso, como não há vascularização do tecido estranho, as células fagocitárias não alcançam o local de infecção. Deste modo, quando uma prótese está infectada o único procedimento possível é a sua excisão. Por isto, actualmente, procura-se que as próteses sejam constituídas quer por material não reabsorvível, quer por material reabsorvível, para que, caso haja infecção, possa haver resposta inflamatória. O mesmo se passa em relação ao material de sutura. O ideal é que o material de sutura esteja presente enquanto é necessária força tênsil (para a orientação do colagénio) e que desapareça logo após a cicatrização. Nas áreas acessíveis, como a pele, não há qualquer problema com o material não reabsorvível, pois é possível retirar os pontos quando desejado. Em planos mais profundos, o material deve ser, idealmente, completamente reabsorvível. O calibre do material de sutura varia entre 10/0 (mais fino) e 3 (mais largo). A espessura de um fio de cabelo é de 7/0. Por norma, os calibres mais finos utilizam-se com microscópio cirúrgico. Em suma Monofilamento vs Polifilamento - Risco de infecção é maior com o polifilamento - Polifilamento “revestido” é equivalente a monofilamento Não-Reabsorvível vs Reabsorvível - Risco de infecção é maior na presença de “corpos estranhos” (material não-reabsorvível) - É necessário que o material detenha força tênsil adequada, durante o tempo suficiente, para orientação do colagénio - Não-reabsorvíveis – na pele, removendo-se quando já não são necessários - Reabsorvíveis – nos planos profundos, de modo que ao fim de algum tempo já não haja material estranho nos tecidos.
SUTURAS Existem vários tipos de suturas: Simples – é dada só uma vez. Cada ponto responde por si em termos de resistência e cada ponto pode corrigir o anterior, isto é, se um ponto ficar mal feito apenas esse ponto fica comprometido e não toda a sutura. 5
- Simples correcta – apanha toda a profundidade da ferida, não deixando espaços mortos entre os lábios da ferida e as superfícies da ferida ficam niveladas. - Simples incorrecta – quando o ponto não apanha toda a profundidade da ferida, ou quando está muito laxo. - Ponto Donati – ponto simples em que se sutura o plano mais profundo e também o superficial e que permite um melhor nivelamento dos lábios da ferida. - Pontos em U – são utilizados nos vértices das feridas em V para evitar a isquémia do vértice. As feridas em V podem acontecer quando, por exemplo, a pele fica presa num prego. Por planos – quando a ferida é mais profunda dá-se um ponto mais profundo e outro mais superficial. Se a sutura for num órgão, a cada plano que se faz o calibre do órgão pode reduzir. A sutura em dois planos é mais estanque pois se uma das passagens ficar mais laxa a seguinte pode corrigir. Há menor risco de deiscência mas um maior risco de estenose cicatricial com redução indesejável do calibre, sobretudo se forem utilizadas duas suturas contínuas. Intradérmica – a linha entra, vai de bordo a bordo e depois sai. É uma técnica utilizada por cirurgiões plásticos para não deixar pontos separados. Continua – é mais rápida e mais estanque, a resistência total depende da passagem mais frouxa e há um maior risco de isquémia dos bordos (deiscência) quando a sutura fica demasiado apertada. Isto é, quando se faz uma sutura contínua e um determinado ponto fica demasiado laxo, a fragilidade não é só nesse ponto, reflectindo-se em toda a extensão da sutura. Na sutura simples, se um ponto ficar fragilizado, os outros 9 cm de sutura ainda podem ficar bem. A pressão que se faz na sutura deve ser ideal (nem muito laxa nem muito tensa). Contínua e travada No campo da cirurgia, no século XX ocorreram duas grandes revoluções: as suturas mecânicas e a laparoscopia, pelo que a discussão dos vários tipos de sutura ao nível do tubo digestivo perdeu a oportunidade. As suturas mecânicas são feitas por aparelhos (staplers) que conseguem aplicar, em simultâneo e rapidamente, múltiplos agrafos, fazendo uma sutura automática. A história dos agrafos é antiga: inicialmente, colocavam-se agrafes simples com a pinça, manualmente e um-a-um. Depois surgiram as máquinas russas que são semelhantes às máquinas actuais mas eram carregadas manualmente no bloco operatório. Surgiram depois as máquinas americanas que, sendo semelhantes às russas, eram reutilizáveis e metálicas. Depois evoluiu-se para máquinas americanas descartáveis, feitas de material plástico e que já vinham pré-carregadas de fábrica. Estas máquinas têm as vantagens de permitir trabalhar com muita rapidez e segurança, e de o risco de infecção associada ser mínimo pois o material que constitui o agrafo é inerte e reabsorvível. As desvantagens são o facto de cada ponto não poder ser corrigido pelo ponto seguinte pois a sutura é feita através de um único disparo, o material é mais dispendioso e exige uma curva de aprendizagem maior do que a sutura manual. Máquina para suturas simples (stapler) Cada disparo que se faz deita um agrafo. Os bordos da ferida devem ser alinhados com pinça.
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EEA (end to end anastomosis) – anastomoses endo-luminais Utilizada para a anastomose entre o tubo gástrico e o jejuno em cirurgias de ressecção gástrica e, ainda, para fazer a anastomose do recto ao cólon sigmóideu. GIA (gastrointestinal anastomosis) – anastomoses gastro-intestinais É particularmente interessante na cirurgia de ressecção de neoplasias baixas do recto, pois esta é uma área de difícil acesso para suturar. Faz a sutura da anastomose do corpo do recto com o cólon sigmóideu e a sutura da anastomose gastro-jejunal. Esta máquina permite que se faça uma sutura que antes demorava 1 hora em apenas 1 minuto. TA – suturas terminais Faz a sutura de encerramento da abertura do cólon onde se inseriu uma das cabeças da EEA. Pode ser utilizada para o encerramento de ansas jejunais após anastomose. LDS – laqueações e secções Esta máquina faz o corte e deixa um agrafo de cada lado, permitindo a laqueação dupla de um vaso e a secção entre as laqueações com grande rapidez. Isto é, coloca os agrafos com a secção simultânea entre agrafos.
Laqueações vasculares/Hemostase Meios mecânicos: fios de sutura, agrafos (simples ou com apoio de máquinas) e LDS. Existem também umas colas biológicas (como o Dermabond, que é uma marca comercial), que substituem os pontos de sutura na pele (muito útil nas crianças) e que também podem ser utilizadas para reforçar os pontos dados nas estruturas digestivas e vasculares (útil quando após os pontos fica a babar sangue, promovendo a hemostase). Meios físicos: o primeiro meio a ser utilizado foi a cauterização por calor (ferro em brasa) depois começou-se a utilizar a corrente eléctrica conseguindo-se fazer electrocoagulação com energia uni ou bipolar (a desvantagem da energia unipolar é que quando é emitida em direcção ao vaso que se quer laquear pode apanhar estruturas que lhe são circundantes; se for energia bipolar a corrente só passa entre o eléctrodos da caneta permitindo uma electrocoagulação dirigida), a vibração ultrassónica transforma a vibração em calor, a vaporização intracelular transforma a vibração em calor, as radiações laser (como o Árgon).
LAPAROSCOPIA De um modo geral, a laparoscopia faz-se segundo os mesmos princípios da laparotomia (via aberta). A principal diferença é que o cirurgião orienta-se visualmente através de um monitor. Com algumas adaptações, a técnica da laparoscopia é a mesma da laparotomia, utilizando-se fios de sutura idênticos mas que são mais curtos e adaptados ao campo visual mais limitado. Na laparoscopia é mais difícil suturar e, por isso, criou-se uma máquina designada endo-stitch que realiza a sutura laparoscópica com fios. Existem também máquinas que são a evolução das máquinas de sutura mecânica e que, para serem utilizadas em laparoscopia, são de dimensões mais reduzidas. A endo-GIA realiza sutura laparoscópica com agrafes. 7
Complicações Apesar dos avanços tecnológicos, continua a haver complicações pós-operatórias, como seromas, hematomas, deiscência e infecção. É importante realçar que é mais temível uma ferida infectada em profundidade e, em que por vezes, à superfície não há sinal de infecção, do que uma ferida com uma infecção à superfície. Muitas vezes, as infecções de feridas cirúrgicas não começam por fora, mas sim por dentro, ao nível das cavidades.
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TRAUMA TRAUMA ou TRAUMATISMO – Lesão induzida por agentes externos, que podem ser variados (físicos, químicos, etc.). Pode estar associado a:
Agressão Arma branca O trauma depende da força do agressor, do tamanho da lâmina e das características do doente (por exemplo, em doentes com uma grande camada adiposa, se a lâmina for pequena a lesão pode nem passar do tecido celular subcutâneo). O médico deve procurar saber o máximo de informação acerca da arma e do modo de agressão. Arma de fogo O trauma depende do tipo e quantidade de projécteis, do seu calibre, da sua energia cinética, da distância entre o agressor e o agredido e se o projéctil entrou directamente ou se faz ricochete antes. Contusão É o tipo de trauma mais frequente, causado por um objecto que nem é cortante nem penetrante (murros, tacos de baseball).
Acidente Quedas A gravidade do trauma depende da energia cinética (é diferente tropeçar na rua e cair ou cair de um andaime do 4º andar). Acidentes de Trabalho Que, entre outros, incluem quedas. Acidentes de Viação São o grosso e o grave do ponto de vista de prognóstico da traumatologia. A energia cinética envolvida é, normalmente, muito superior à dos outros tipos de trauma (porque a velocidade é muito elevada). Queimaduras Por calor – podem ser causadas por sólidos ou líquidos que estejam a uma temperatura superior à do corpo humano (37º), sendo que a gravidade depende da diferença de temperatura entre o organismo e a fonte térmica e do tempo de exposição. Um acidente caseiro muito frequente é a queimadura por líquidos quentes em crianças, sendo que o grau de queimadura vai depender da temperatura a que se encontra o líquido e do tempo que se demora a retirar a roupa à criança (tempo de exposição). 1º grau – atinge apenas a epiderme. Clinicamente caracteriza-se por zonas de eritema muito dolorosas. 2º grau – atinge a epiderme e a derme. Clinicamente caracteriza-se por eritema e flictenas. 3º grau – atinge as 3 camadas da pele (epiderme, derme e hipoderme). A derme apresenta, na sua região mais profunda, uma ondulação, sendo que entre as pregas se encontram terminações nervosas.
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Deste modo, quando há uma destruição profunda que ultrapassa a derme, o doente não apresenta dor. Por Frio ou Geladuras – pouco frequentes em Portugal (mais no Norte do país) Grau 1, 2 e 3 – semelhantes aos graus das queimaduras por calor. Grau 4 – quando há necrose muscular ou óssea induzida pelo frio (exemplo: o alpinista João Garcia) As queimaduras por calor não têm 4º grau porque as temperaturas atingidas não são suficientes para provocar destruição de tecido celular subcutâneo, muscular ou óssea. Nos incêndios o que acontece é mesmo combustão do corpo humano que leva a carbonização (a combustão é causada não só pelo calor mas também pela chama que consome as proteínas e lípidos). Por químicos – a gravidade é tanto maior quanto maior a diferença de pH para o corpo humano (7,4) e quanto maior o tempo de exposição. As zonas preferenciais para estas lesões são a pele e o tubo digestivo. Não se classificam por graus como as queimaduras por calor/frio, porque a profundidade não tem a mesma relevância clínica que nesse tipo de queimaduras. Ácidas – a maior parte é causada por compostos comercializados no estado líquido, muitas vezes incolores e inodoros, que são armazenados sem sinalização pelas pessoas. Alcalinas – os compostos que as causam são normalmente comercializados em pó, entram em contacto com a pele aderindo-lhe e à medida que provocam queimadura levam à libertação de plasma, que ajuda a dissolver o pó, agravando a situação (queimaduras mais profundas). Nestes casos, a primeira coisa a fazer é remover o pó da pele, o que, muitas vezes, requer analgesia do doente. Eléctricas – a corrente entra pela parte do corpo que contacta com a carga e é conduzida pelo corpo para a terra. No local de entrada a lesão normalmente é mínima, punctiforme, mas o corpo conduziu a descarga eléctrica, podendo haver lesão de osso e músculo e alterações da condução cardíaca por interferência da corrente eléctrica sobre o pacemaker cardíaco. Deste modo, é importante saber qual a voltagem da corrente eléctrica a que o doente foi exposto (caseira, industrial), para saber se é suficiente para causar necrose muscular (que se manifesta, passado algumas horas, por aumento das creatininas fosfocinases e/ou insuficiência renal) e estes doentes devem ser também monitorizados por ECG pelo risco de arritmia grave (geralmente primeiras 24h). A doença Traumática é uma “pandemia devastadora” (a nível mundial), associada a elevada mortalidade (principal causa de morte antes dos 40 anos) e morbilidade, sendo os acidentes de viação uma causa major nos países desenvolvidos.
Acidentes de viação Atingem sobretudo adultos jovens (20-24 anos), do sexo masculino, tendo um segundo pico nos idosos (>65 anos). Nos últimos anos, devido a campanhas de divulgação e sensibilização e a medidas de repressão, a mortalidade e morbilidade têm vindo a baixar. Morto ou Vítima Mortal – Vítima de acidente cujo óbito ocorra no local do evento ou no seu percurso até à unidade de saúde. Para obter o número de mortos a 30 dias (o número total de mortos daquele acidente), aplica-se um coeficiente de 1,14, o que significa que, dos feridos graves assistidos, 14% morre até aos 30 dias. Os 30 dias são considerados por convenção internacional. No entanto, com a sofisticação das unidades de cuidados intensivos que existe actualmente, cada vez mais os doentes morrem depois dos 30 dias. 10
Apesar de se circular mais depressa nas auto-estradas, são sobretudo os acidentes em estradas nacionais que causam vítimas mortais. As mortes em acidentes em arruamentos (dentro das povoações) estão associadas sobretudo a atropelamentos. Em suma, o risco de acidente depende não só da velocidade, mas também (e principalmente) da via, do veículo e das características do condutor. Em termos europeus, Portugal está na cauda da Europa, sendo que apenas os países que mais recentemente aderiram à EU e a Grécia têm taxas de mortalidade por acidentes de viação mais elevadas. Como acontecem as mortes na sequência de acidentes de viação (traumas com elevada energia)? Mortes imediatas – mortes no local do acidente, em que a energia cinética foi tão elevada que destruiu de imediato um órgão vital. Por exemplo: traumatismos crânio-encefálicos graves com afecção do tronco cerebral, traumatismos torácicos e cardíacos graves, ruptura da aorta por desaceleração súbita, hemorragias graves. Mortes precoces – “Golden Hour” – doentes que são transportados para os hospitais, que chegam vivos e que devem receber de imediato assistência. Mortes tardias (por convenção até aos 30 dias). Numa situação de acidente, o procedimento a seguir é:
Alerta
Mobilização dos Meios (INEM) (em função das características da situação, dadas pela descrição inicial)
Avaliação "Estabilização" Evacuação
CODU Hospital
Evacua-se o ferido para o hospital mais próximo e que tenha os recursos humanos e técnicos e a disponibilidade necessários (por exemplo, TAC, neurocirurgia, etc). Este processo é orientado pelo CODU (Centro de Orientação de Doentes Urgentes). O doente deve ser transportado de forma rápida e SEGURA (quer para o doente quer para quem o transporta e para a restante população). Quando chega um destes doentes há um alerta geral no hospital: preparar a sala de emergência verificar se o bloco operatório está disponível verificar se há vagas na UCI Antes de receber o doente, é necessário ter o máximo de informação possível sobre o acidente, como por exemplo, se houver mortos no local, sabemos à partida que os doentes que nos chegam estiveram expostos a uma grande energia cinética e por isso, mesmo que aparentemente estejam bem, devemos tratá-los como se tivessem uma lesão grave até prova em contrário. Saber como ficou o carro também pode ajudar a ter uma noção da gravidade do acidente.
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Atropelamento O tipo de trauma deixa prever o tipo de lesões: 1. Fractura da tíbia/perónio e joelho 2. + Traumatismo tóraco-abdominal e fractura do fémur 3. + Traumatismo crânio-encefálico e fractura do ombro
SALA DE EMERGÊNCIA As medidas de protecção dos profissionais de saúde são essenciais (bata, luvas, máscara, touca, óculos de protecção). A equipa na sala de emergência deve constituída pelo número mínimo de elementos necessários para providenciar os cuidados máximos aos doentes. O número de elementos na sala depende da gravidade do trauma. Esta equipa tem de ser organizada, comandada por um team leader, e cada pessoa deve saber exactamente o que tem de fazer. Todo o traumatizado tem lesões graves até que se prove o contrário. No traumatizado grave não há tempo para fazer uma anamnese cuidada. Avaliamos e tratamos primeiro o que mata primeiro.
METODOLOGIA ABCD - primeiro o que mata primeiro Airway – Via aérea – qualquer individuo que tenha uma obstrução da via aérea e não consiga respirar durante 2 ou 3 minutos “cai redondo para o lado e deixa de ser contemporâneo”. Como saber se a via aérea está obstruída? Se o doente falar não há obstrução. A obstrução pode ser causada por corpos estranhos, como dentaduras ou objectos que entram na boca durante o acidente, coágulos subsequentes a lesões locais, queda da língua em doentes em coma, etc. A desobstrução é feita pela protusão do maxilar (língua), extracção dos corpos estranhos, aspiração ou, se não for possível, devese entubar (tubo com um cuff na traqueia) ou fazer traqueostomia. É essencial proteger a coluna cervical com um colar cervical semi-rígido em todos os doentes politraumatizados (C3/C4 – centro respiratório).
Breathing – Ventilação – o doente pode não ser capaz de fazer as trocas gasosas por obstrução da via aérea ou porque o tórax não é capaz de executar os movimentos respiratórios, o que conduz a hipoxémia, hipercápnia, acidose e morte. Quais são os mecanismos que podem comprometer de imediato a vida do doente? Pneumotórax induzido por perda de substância na parede torácica (exemplo: ferida por bala, objecto cortante) – quando o doente inspira, o ar entra para a cavidade pleural, que tem pressão negativa, pela via mais fácil, ou seja, pela solução de continuidade na parede. Estes doentes vêm em dificuldade respiratória, muitas vezes já cianosados e, para lhes salvar a vida, já que esta situação mata em escassos minutos, o procedimento é colocar uma gaze gorda que tape o defeito da parede torácica e prende-la em três dos lados, de forma a transformar este pneumotórax hipertensivo num pneumotórax menos grave que dê tempo de chamar o cirurgião para fazer uma drenagem torácica.
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Aumento de pressão na cavidade pleural
Desvio do mediastino para o lado oposto
Compressão da Veia Cava Superior
Diminuição do Retorno Venoso ao coração
Choque Hipovolémico
Morte
O diagnóstico desta situação é clínico, não é radiológico. Quando vemos um doente em dificuldade respiratória, cianosado, auscultamos ambos os hemitóraces e ouvimos murmúrio vesicular do lado saudável e do outro não, e quando percutimos ouvimos timpanismo do lado lesado. A resolução desta situação é feita de imediato, com a colocação de um Abbocath (cânula/agulha metálica com revestimento de plástico, que se insere no 2º espaço intercostal), ouvindo-se imediatamente um silvo que corresponde ao ar a sair, dado que a pressão na cavidade pleural é muito superior à pressão atmosférica. Desta forma, o pneumotórax deixa de ser hipertensivo e passa a ser um pneumotórax “normal”, dando tempo para chamar o cirurgião. O cirurgião drenará o pneumotórax com uma punção do 5º espaço intercostal e utilizando um sistema subaquático. Fractura de costela com destruição do pedículo vascular da costela, junto ao seu bordo inferior, que se encontra juntamente com o nervo intercostal. A artéria intercostal a sangrar para a cavidade pleural vai fazê-lo em função da pressão arterial sistólica, pelo que é uma hemorragia abundante que pode encher um hemitórax, onde cabe uma volémia, ou seja, o doente pode não ter hemorragia externa visível mas estar a entrar em choque e a perder toda a volémia para um hemotórax. À auscultação há ausência de murmúrio vesicular e à percussão macicez.
Circulation – Hemorragia/Choque – a hemorragia pode ser externa (por exemplo, artéria femoral a sangrar) ou interna. Os passos a seguir nestes casos são: 1. Parar a hemorragia por compressão (e não clampar vasos inadvertidamente, porque normalmente os grandes vasos pertencem a pedículos artério-veno-nervosos, pelo que com a pinça arriscamo-nos a lesar o nervo ou a aumentar ainda mais a lesão da artéria). 2. Reposição da volémia por acesso endovenoso – os solutos utilizados devem ser aquecidos até à temperatura corporal, principalmente quando se trata de uma reposição rápida de volémia, dado que normalmente se encontram a temperaturas de 20ºC, ou seja, 17ºC abaixo da temperatura corporal. 3. Avaliar a eficácia da reposição da volémia através da avaliação de parâmetros simples – aumento da pressão arterial, diminuição da taquicardia, aumento do débito urinário
Disability – Avaliação Neurológica – através da avaliação das pupilas e da Escala de Coma de Glasgow, que avalia a resposta dos olhos, a resposta motora e a resposta verbal. Somando a pontuação nos 3 testes: Glasgow ≤ 8 – lesão grave Glasgow 9-12 – lesão moderada 13
Glasgow 13-15 – lesão minor
6 – Executar ordens – o doente executa ordens simples que lhe são pedidas (não confundir com reflexos (ex. palmar)) 5 – Resposta localizada à dor – pressionar sobre o leito ungueal com uma esferográfica, fazer pressão supra-orbitária ou esternal – os movimentos voluntários de defesa contra o estímulo doloroso constituem uma resposta de “localização” 4 – Movimento de retirada à dor – o doente afasta o membro do estímulo doloroso
Melhor resposta motora
3 – Resposta em flexão à dor – a pressão sobre o leito ungueal provoca flexão anómala dos membros – postura de descorticação (outros sinais: flexão interna do braço sobre o tórax, flexão do polegar encerrado no punho fechado, extensão das pernas). Traduz lesão acima do nível do núcleo rubro no mesencéfalo (que é mediador dos músculos anti-gravidade no membro superior) 2 – Resposta em extensão à dor – o estímulo provoca extensão do membro (adução, rotação interna do ombro, pronação do antebraço) – postura de descerebração. Indica lesão no mesencéfalo abaixo do nível dos núcleos rubros. 1 – Ausência de resposta à dor
5 – Orientado – o doente sabe quem é, onde está e porque razão, o ano, estação do ano e mês. 4 – Discurso confuso – o doente responde a perguntas de uma forma normal, mas existe alguma desorientação e confusão
Melhor resposta verbal
3 – Discurso inapropriado – discurso aleatório ou articulado por exclamação, mas sem variação da conversação. 2 – Discurso incompreensível – murmúrios mas sem palavras 1 – Sem resposta
4 – Abertura espontânea
Abertura dos olhos
3 – Abertura dos olhos em resposta à fala – qualquer discurso ou grito, não necessariamente em resposta a um pedido para abrir os olhos 2 – Abertura em resposta à dor 1 – Sem abertura
Escala de Coma de Glasgow (Manual Oxford de Medicina Clínica, p. 802)
Exposure everything – o doente deve ser destapado e avaliado no todo, incluindo dorso (virar o doente com a manobra do grande rolamento, executada por várias pessoas e que visa rolar o doente sem desalinhar a coluna vertebral). Nesta avaliação primária utiliza-se para monitorização e/ou meio de diagnóstico o tubo gástrico (não se usa tubo naso-gástrico, porque se os doentes têm traumatismo craniano grave com fractura do etmóide e se coloca a sonda naso-gástrica pelo nariz corre-se o risco da sonda entrar para a cavidade craniana), algália (permite avaliar hematúra, débito urinário), ECG, pressão arterial, oximetria de pulso (gases no sangue), radiogramas (coluna cervical, tórax, bacia) e análises clinicas sucintas. Terminada a avaliação e tratamento iniciais, a primeira questão que se põe é para onde levar o doente. Este pode ser transferido da sala de emergência para outro local no mesmo hospital (transferência 14
interna) ou ser transferido para outro hospital que tenha os meios necessários ao tratamento do doente (transferência externa). Em seguida, faz-se a avaliação secundária em que se vão identificar e tratar as restantes lesões que não comprometiam a vida do doente. Faz-se um plano definitivo para o tratamento do doente, envolvendo uma equipa multidisciplinar, que visa determinar quais os procedimentos necessários, por que ordem, como articular com os restantes problemas a tratar, etc. De imediato deve ser pensado o plano de reabilitação do doente.
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CHOQUE O Choque é uma síndrome causada por insuficiência circulatória com perfusão/oxigenação inadequada de tecidos e órgãos.
ASPECTOS HISTÓRICOS Grande parte dos estudos clínicos que conduziram ao conceito de choque, como hoje o entendemos, foram feitos em tempo de guerra, ou seja, era o choque associado ao grande trauma. Em 1815, Guthrie usou a palavra choque no seu livro sobre tratamento das feridas nos membros em Cirurgia de Guerra. Nesta fase, o termo choque era associado à perda de sangue, pelo que a problemática era “o que fazer para o doente deixar de sangrar”. Os primeiros métodos usados foram a aplicação de azeite a ferver ou de um ferro em brasa que, ao promover a coagulação das proteínas no local de aplicação, faziam hemostase de coagulação. Muitos séculos depois, este mesmo conceito foi aplicado ao bisturi eléctrico, que induz uma corrente local que causa uma alteração da temperatura, levando à coagulação das proteínas e à hemostase. Em seguida descobriu-se o conceito de laqueação, em que, colocando uma pinça na extremidade do vaso e atando uma linha (à época, de algodão ou seda) à volta, se conseguia parar a hemorragia. Posto isto, o mais difícil foi perceber porque razão os feridos de guerra, depois de controlada a hemorragia, acabavam por morrer nos dias seguintes. Os franceses chamaram, então, ao choque “La Petit Mort” – uma breve pausa no caminho para a morte. Guerra Civil Americana A amputação dos membros era usada para prevenir a morte por “toxémia” ou sépsis. Durante muitos anos não houve mais avanços nesta área. I Guerra Mundial Thomas percebeu que as fracturas dos ossos longos dos membros inferiores (não necessariamente grandes feridas, podiam ser apenas fracturas subsequentes a quedas), particularmente do fémur, tinham uma alta taxa de mortalidade por hemorragia interna. Através da imobilização do membro com uma tala (Tala de Thomas), em que este era traccionado pela pele de modo a apor os topos ósseos, era possível diminuir drasticamente a hemorragia, bem como a dor associada, dado que o melhor método para parar a dor em caso de fractura é a redução e imobilização. Hoje em dia, sabe-se que, numa fractura transversal do fémur, num jovem adulto, pode ser perdido para a massa muscular circundante 1,5 a 2L de sangue, o que pode corresponder, em alguns adultos, a quase metade da volémia. II Guerra Mundial A transfusão adquire um papel importante no tratamento dos traumatizados graves, já que as perdas de sangue eram tão extensas que era necessário não só repor a volémia, mas também repor os outros elementos constituintes do sangue, particularmente eritrócitos. Nesta fase, descobriram-se os grupos sanguíneos, pelo que as transfusões passaram a ser bem sucedidas, sem mortes por incompatibilidade. Guerra da Coreia Verificou-se que a correcção precoce da hipovolémia (começar a fazer soros ainda no campo de batalha e no transporte para o hospital), reduzia drasticamente o número de mortos por choque. No entanto, 16
apesar dos doentes chegarem em melhores condições hemodinâmicas ao hospital, verificava-se que 2 dias depois apresentavam anúria e acabavam por morrer em insuficiencia renal aguda ou insuficiencia pós-traumática, como era conhecida na época. Desenvolveu-se, então, a hemodiálise, que permitia a recuperação da função renal normal após 2 a 3 semanas de tratamento. Guerra do Vietnam Percebeu-se que a rápida evacuação de feridos para hospitais de campanha (MASH) bem equipados e com médicos bem preparados, reduzia a morte por choque e insuficiência renal. No entanto, ao 2º ou 3º dia os doentes começavam a desenvolver dificuldades respiratórias e morriam por “Pulmão de Choque” – ARDS (acute respiratory distress syndrome ou adult respiratory distress syndrome). Em suma, o choque é uma situação sistémica, que lesa os mais diversos órgãos e tecidos, pelo que a sua rápida reversão é essencial para o retomar do bom funcionamento do organismo. Guerra do Iraque Nesta guerra, os grandes avanços foram a nível da organização das equipas médicas e do estabelecimento de prioridades no tratamento dos doentes (tratar primeiro o que mata primeiro) – DAMAGE CONTROL: 1. identificar e parar hemorragia 2. controlar infecção 3. cirurgia Anteriormente, o que se fazia era diagnosticar o doente e tratá-lo de uma só vez, passando este muito tempo no bloco a ser operado por médicos de diversas especialidades. Verificava-se, então que o doente saia de choque, mas dias depois tinha IRA, ARDS, etc. até entrar em falência multi-orgânica e morrer mesmo na UCI. Durante esta guerra, deslocaram-se hospitais altamente sofisticados para perto da linha de batalha e, quando o doente dava entrada, tratava-se o que comprometia a vida, sobretudo hemorragia e contaminação abdominal por conteúdo intestinal. No último caso, se houvesse múltiplas perfurações intestinais, o cirurgião do hospital de campanha não as corrigia, ressecava o intestino sem o anastomosar (mais rápido), encerrava a cavidade abdominal com plástico e transferia o doente para outro hospital, onde era operado. 24 a 48h depois, os doentes eram depois definitivamente transferidos para os hospitais militares nos EUA, onde se estabelecia um plano de tratamento definitivo e onde eram operados tantas vezes quanto necessário, passando sempre o mínimo de tempo possível no bloco.
ETIOLOGIA O choque pode levar a disfunção orgânica que pode agravar para falência multi-orgânica e morte. Choque Hematogénico ou Hipovolémico É o mais relevante no contexto da cirurgia. Ocorre por perdas súbitas de volémia: Hemorrágicas – perda de sangue total (plasma + elementos figurados) – hemorragia externa ou interna Plasmáticas – queimaduras (quando a superfície queimada é ≥ 20% o doente pode entrar em choque), peritonites De fluido extra-vascular – oclusão intestinal (todos os dias, para além daquilo que ingerimos, são secretados vários litros de fluidos para o tubo GI, sendo depois absorvidos ao nível intestinal. Se houver obstrução, estes fluidos continuam a ser secretados mas não há absorção, pelo que há uma perda de vários litros de fluidos por dia)
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Choque Cardiogénico Ocorre por falência da “bomba” cardíaca, que não permite uma normal perfusão dos tecidos: Primária – atinge o miocárdio. Por exemplo: EAM, insuficiência cardíaca avançada. Secundária – há integridade do miocárdio, mas a diástole não é eficaz e o sangue fica retido a montante do coração, com diminuição do débito cardíaco. Por exemplo: Tamponamento cardíaco (o pericárdio é uma estrutura rígida e se subitamente entrar para este espaço um volume equivalente a 50cc o coração não consegue fazer diástole), pneumotórax hipertensivo (compressão e desvio do mediastino para o lado oposto leva a compressão e colapso das veias cavas com diminuição súbita do retorno venoso) Choque Vasogénico Ocorre por alteração das resistências periféricas, com instalação de uma vasodilatação periférica muito marcada para o mesmo volume de sangue: Choque séptico – vasodilatação arteriolar muito marcada induzida por bactérias ou fragmentos da parede bacteriana Choque neurogénico – quando há uma secção alta da medula perde-se o efeito simpático, resultando numa vasodilatação periférica arterial e venosa Choque anafilático – reacção tipo I em que por um problema imuno-alérgico há uma vasodilatação periférica que se instala em minutos, pelo que não há tempo para os mecanismos compensatórios actuarem (exemplo: injecções de penicilina em doentes alérgicos).
MECANISMOS COMPENSATÓRIOS Independentemente da etiologia, quando se instala uma situação de choque entram em acção os seguintes mecanismos compensatórios: Cardiovascular Vasoconstrição arteriolar – primeiro mecanismo a actuar. O doente em choque está pálido, muitas vezes de forma desproporcional à quantidade de sangue que perdeu, devido à perda de sangue em si e a este mecanismo, que actua poupando os órgãos nobres, pelo que a vasoconstrição se inicia pela pele e tracto GI. Vasoconstrição venosa – quando o indivíduo vivencia uma situação que de alguma forma o perturba pode ter uma reacção vagal, com vasodilatação venosa periférica, diminuição súbita do retorno venoso e diminuição da irrigação cerebral com lipotímia. Nestes casos a primeira coisa a fazer é levantar os membros inferiores para aumentar o retorno venoso (em vez de usar água ou palmadinhas para o tentar acordar), fazendo-se assim uma autotransfusão de cerca de 500mL de sangue que estavam retidos no espaço venoso. Taquicardia (cronotropismo) Contractilidade (inotropismo) Hormonal Vasopressores endógenos – noradrenalina, adrenalina e glucocorticoides (hormonas de stress). Estas hormonas estão envolvidas na resposta vasoconstritora arteriolar cutânea. Esta acção é visível na UCI, onde se usa adrenalina e noradrenalina exógenas em perfusão contínua e quando é preciso mudar os acessos venosos, se não se tiver cuidado, o bólus inicial pode aumentar e o doente tem
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aumento da pressão arterial por vasoconstrição periférica, a pele fica húmida e branca e pode haver piloerecção. Conservação H2O e Na – angiotensina/aldosterona, ADH Equilíbrio Volémia/Fluido Extra-Vascular É um mecanismo lento (horas) e, por isso, pouco eficaz nas situações de choque.
FISIOPATOLOGIA Durante o choque são desencadeados diversos mecanismos sistémicos: Activação precoce do complemento induzida pelo trauma Activação da cascata de coagulação – geralmente estes doentes têm feridas externas ou internas Translocação bacteriana intestinal (TBI) – o tracto GI vai estar em vasoconstrição, por não ser uma estrutura nobre. Quando há isquémia, há perda da sua barreira mucosa e as bactérias do lúmen digestivo podem passar para o território venoso porta. Fosfolipase não-pancreática (PLA-2) – actua nos alvéolos (sobre o surfactante) e vai ser responsável por ARDS Radicais livres de oxigénio (FRO)
Alguns doentes não são passíveis de ser reanimados na sequência destes eventos, mas outros conseguem recuperar e sair de choque rapidamente. Este fenómeno não está bem esclarecido, alguns doentes parecem estar protegidos e ficam bem depois de saírem de choque, mas outros parecem ser mais vulneráveis e, apesar de terem saído rapidamente de choque evoluem rapidamente para disfunção multi-orgânica, acabando por morrer.
REPERCUSSÕES SISTÉMICAS DO CHOQUE Órgãos Rim – necrose tubular aguda, IRA Pulmão – ARDS – na radiografia vê-se pulmão branco, algodonado, bilateral 19
Coração – áreas de necrose subendocárdica Cérebro – edema, necrose Fígado – necrose focal Tracto GI – perda da barreira mucosa e ulcerações superficiais Suprarrenal – edema, hemorragia
Equilíbrio ácido-base Acidose Metabólica – Ocorre por elevação do ácido láctico (determinado por análise do sangue periférico). Numa fase inicial há compensação por hiperventilação. Coagulação Alterações plaquetárias CID Atenção à temperatura corporal! – os enzimas da cascata de coagulação actuam a uma temperatura óptima de 37ºC, pelo que se o doente chega com temperaturas de 36 ou 35ºC, a cascata não funciona, não há coagulação nos locais onde é necessário, as plaquetas são consumidas na mesma e pode haver CID.
CLÍNICA Dependendo da etiologia, a fase inicial do quadro clínico é diferente (exemplo: hemorragia, EAM), mas a partir do momento em que se estabelece o choque, o quadro clínico passa a ser muito semelhante independentemente da causa, dado que os mecanismos compensatórios são essencialmente os mesmos, mas sempre dependendo das particularidades do doente (por exemplo, indivíduo idoso com comorbilidades vs jovem saudável). Choque Hipovolémico É o que tem maior relevância em cirurgia. Na classificação do doente politraumatizado (ABCD) é um problema do tipo C (circulação). Os achados clínicos são resultado: Alterações plaquetárias CID Da gravidade da diminuição da volémia Dos mecanismos compensatórios - Hipotensão - Taquicardia - Taquipneia – compensação da acidose metabólica - Pele fria e suada – vasoconstrição arteriolar periférica por acção das hormonas de stress - Palidez – desproporcional em relação ao volume perdido - Oligúria/Anúria - Obnubilação mental – défice da perfusão cerebral A primeira coisa a fazer é identificar a etiologia da perda de volume: Queimadura extensa (> 20% da superfície corporal) Hemorragia externa – visível ou hemorragia digestiva alta (hematemeses, melenas) Hemorragia interna – há sítios típicos para onde se perde volume: 20
- tórax – hemotórax - abdómen – hemoperitoneu, ruptura de víscera maciça (fígado, baço) - bacia – durante muitos anos, as lesões traumáticas da bacia foram tratadas não como um problema hemorrágico, mas como um problema ortopédico, no sentido de condicionar a mobilidade. No entanto, o problema destes doentes é que estão em choque, devido a múltiplas fracturas da bacia, que é constituída por ossos esponjosos rodeados de grandes vasos, pelo que há grandes hemorragias para a cavidade pélvica, as quais são difíceis de parar. Assim, a colaboração da ortopedia é essencial não só para a mobilidade, mas também para parar a hemorragia. - ossos longos – sobretudo fémur Em seguida, o objectivo é parar a hemorragia e, simultaneamente, iniciar a reposição da volémia. A reposição da volémia sem parar a hemorragia é inútil. Classificação do Choque Hemorrágico consoante o volume perdido: Classe I – 750 mL Classe II – 750-1500 mL Classe III – 1500-2000 mL Classe IV – >2000 mL (> de metade da volémia) Se não conseguirmos objectivamente determinar a volémia perdida, podemos fazer uma estimativa com base nos mecanismos compensatórios. Se o doente está muito hipotenso, muito taquicárdico e muito taquipneico, sabemos que, à partida, já perdeu mais de metade da volémia, estando em grau IV. Nos graus I e II, a PA sistólica ainda é normal, embora já haja aumento da FC e da FR. Doentes com fractura de fémur estão normalmente em classe II/III.
TERAPÊUTICA Parar a hemorragia Optimizar os mecanismos compensatórios cardiovasculares Reposição da volémia por acessos venosos, usando soros cristalóides (isotónicos vs hipertónicos) e/ou colóides. A monitorização é feita pela avaliação da pressão arterial, frequência cardíaca e débito urinário.
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TRAUMA DA FACE A face constitui uma região exposta e bastante susceptível a trauma. O doente que chega até nós com um trauma da face deve ser avaliado de forma completa; deve-se saber observar, ouvir, obter um diagnóstico e orientar, podendo mesmo ser necessário consultar especialistas.
FRACTURAS Principais causas de fracturas são: Acidentes de viação Acidentes de trabalho/industriais Acidentes desportivos Violência inter-pessoal Frequentemente, um doente com uma fractura da face é um politraumatizado, pelo que é fundamental abordar o doente como um todo, não nos focando apenas na face, mas avaliando também todo o corpo do doente. Assim, no politraumatizado, é importante dar atenção a todas as áreas. Esta análise faz-se em poucos segundos, começando por: Assegurar a permeabilidade aérea/função respiratória Controlar hemorragia Procurar lesões associadas, na região crânio-encefálica, coluna cervical, tórax, abdómen, membros. Ao encontrar-se fracturas ou outras complicações extra-faciais com perigo de mortalidade, a face adquire menor prioridade. Não se identificando lesões urgentes, então o médico pode focar-se exclusivamente na face. História Clinica A história clínica pode dar informações acerca do tipo de vector que provocou a lesão e a quantidade e qualidade de energia envolvida, fazendo adivinhar a gravidade da lesão. Começando na inspecção, esta pode ser realizada por vários métodos, sendo o aconselhado realizado de cima para baixo e da linha média para as laterais. O objectivo é evitar falhas ou omissões. Procurar contusões, lacerações, edema, hematomas, assimetrias e deformidades. Ter em atenção pálpebras e canal lacrimal, nariz, pavilhão auricular, nervo facial (antes da anestesia!), parótida e canais excretores. Importante, também, é observar o canal auditivo (principalmente em crianças que sofreram trauma no mento), testar acuidade visual (pesquisar diplopia) e avaliar o reflexo ocular, testando as pupilas do doente. Deve-se também acompanhar a evolução do estado de consciência do doente (escala de Glasgow). Exemplo 1: fractura Blow-out, ou seja, fractura da parede inferior da cavidade orbitária, que cursa com: Descida do conteúdo orbitário Recuo do globo ocular e queda da pálpebra – enoftalmia e pseudo-ptose palpebral, respectivamente diplopia. Exemplo 2: na mandíbula, a fractura pode ser: Simples (1 ponto de aplicação – sinfisária ou parasinfisária) 22
Completa (2 ou mais pontos de fractura – parasinfisária bilateral); Pode ainda ser: Favorável Desfavorável – ocorre quando os grupos musculares são antagónicos e exercem forças opostas que impedem a recolocação da massa óssea com nivelamento dos topos A fractura da mandibula pode diagnosticar-se apenas por inspecção e pelo relato do doente, que diz que encerra a mandíbula, mas não consegue cerrar os dentes da frente (parasinfisária bilateral), ou diz que não consegue abrir a mandíbula (fractura da arcada zigomática) ou que não consegue encerrar a mandíbula (fracturas desfavoráveis). A palpação é fundamental para identificar pontos dolorosos e de possível fractura. Deve ser iniciada no osso frontal, palpar o prolongamento nasal, anel orbitário, ossos próprios do nariz, arcada zigomática e malar (bimanual e bilateral). Exemplo 3: dor ao nível do bordo inferior da abertura da órbita indica lesão do nervo infra-orbitário, devido a fractura do rebordo orbitário. Exemplo 4: o malar normalmente sofre fractura em 3 pontos, encontrando-se 3 pontos dolorosos. Exemplo 5: fractura sinfisária da mandíbula detecta-se por desconjuntura das hemi-mandíbulas à palpação. Classificação das fracturas faciais – Fracturas de Le Fort Tipo I é a mais baixa, consistindo na fractura da maxila. Tipo II envolve a maior parte da maxila e ainda ossos próprios do nariz; por vezes provocada cirurgicamente para nivelar a maxila. Tipo III é a mais alta, levando aproximadamente a disjunção crânio-facial.
Regra: diagnosticar antes de tratar, podendo ser necessário recorrer a exames auxiliares de diagnóstico, como Raio-X simples/panorâmico, TAC ou RMN.
FERIDAS As feridas deixam frequentemente marca/cicatriz visível e inestética, principalmente se têm uma orientação desfavorável, ou seja, quando não acompanham as RSTLs – facial relaxed skin tension lines (linhas de menor tensão e de orientação da pele). Se as feridas acompanharem as linhas de orientação da pele, são feridas favoráveis e a cicatriz ficará melhor. Podem ainda ser simples, se afectarem apenas um plano , ou complexas, se afectarem vários planos em profundidade. 23
É importante informar o doente do prognóstico, por forma a ressalvar a acção terapêutica do médico, tendo sempre em conta que cicatriz não é substituto de pele e nunca ficará como antes. Depois de inspeccionada e diagnosticada a ferida, é importante limpar, anestesiar, explorar, desbridar e suturar. Excepção: nas mordeduras deve-se apenas e só limpar e nunca, em ocasião alguma, suturar. Depois de 5 a 7 dias deve ser reavaliada. Nas feridas é ainda fundamental ter em conta possíveis lesões nervosas, nomeadamente do nervo facial. Sem esquecer a lesão da glândula parótida e do canal de Stenon. Estas lesões quando não diagnosticadas pelo médico, são responsáveis por complicações indesejáveis e cujo tratamento envolve desfazer o trabalho feito da primeira vez.
QUEIMADURAS Nos casos de queimaduras verifica-se também a formação de uma cicatriz, geralmente com mau prognóstico, pelo que é necessário muitas vezes colocar enxertos e retalhos de pele, principalmente em casos em que é necessário recuperar a sensibilidade dérmica normal. Em relação aos enxertos, estes podem ser: Autoenxertos: tecidos do próprio. Aloenxertos: de um indivíduo geneticamente diferente, mas da mesma espécie. Xenoenxertos: de uma espécie diferente. Sem esquecer que podem ser de vários tecidos, entre estes, cutâneo, ósseo (proveniente do perónio vascularizado, muito utilizado em fracturas da mandíbula), cartilagíneo, muscular, tendinoso, dermoadiposo, composto. Os retalhos podem ser: Quanto ao padrão vascular Randomizados (vasos distribuídos aleatoriamente) Axiais (vasos distribuídos segundo um eixo) Quanto à proximidade ao defeito Locais (mais utilizados em cabeça e pescoço) Regionais À distância Livres microvasculares (utiliza-se recto abdominal e radial, mas também longo dorsal, juntamente com pedículos vasculares) Quanto ao método de transferência Avanço Transposição Rotação Jumping, livres Quanto ao tipo de tecidos Cutâneos, fasciocutâneos, musculocutâneos, osteocutâneos, osteomiocutâneos, entre outros. É possível modificar retalhos através de expansores de pele, muito utilizados na reconstrução mamária. Outras técnicas utilizadas na plástica facial Cicatrização dirigida 24
Plastia de deslizamento e sutura directa Distracção osteogénica é um processo através do qual se promove a osteogénese por separação mecânica do osso, ao longo do tempo. Isto é, a distracção o steogénica é uma forma de engenharia de tecidos in vivo, com separação gradual de margens ósseas seccionadas cirurgicamente, gerando-se novo osso. É útil, por exemplo, em casos de micrognatismo (síndrome de Pierre Robin: anomalia congénita caracterizada pela tríade composta por micrognatismo, glossoptose e fenda palatina) ou de ausência de arcada dentária para colocação de pivots. Aplicação do distractor: - Via de abordagem externa intra-oral (adulto) - Aplicação provisória do distractor - Osteotomia (verificar mobilidade) - Fixação do distractor Retirar distractor: Tardia (consolidação completa) Precoce (manipulação e fixação) Anaplastologia: quando não há tratamento possível ou quando o doente não comporta a agressividade do tratamento disponível, recorre-se a uma prótese artificial. Implantes: os mais conhecidos são os dentários e mamários. CAT (composite tissue allotransplantation): transplante de peças de cadáver (um tecido, órgão ou estrutura), muito utilizado em casos de amputação bimanual, uma vez que a transplantação de apenas uma mão não é vantajosa, pois a imunossupressão necessária retira qualidade de vida.
NEOPLASIAS As neoplasias mais frequentes da pele da face são carcinomas baso-celular e espinho-celular. Também podemos encontrar melanomas, carcinomas sebáceos, carcinoma de células de Merkel, etc. Exemplo 1: As considerações acerca de angiomas são controversas. Os pediatras acreditam que a maioria regride e não deve ser sujeito a cirurgia, enquanto os cirurgiões conhecem uma percentagem de regressão mínima e consideram de imediato a cirurgia. Exemplo 2: Nevos pigmentados gigantes (> 40 cm 2) da face não são prioritários. O risco de progressão maligna não é estimável no recém-nascido. No entanto, é preciso ter em atenção possível patologia cerebral associada a melanoma – melanose neurocutânea – , pois esta tem alto risco de mortalidade. Por vezes, poder-se-á remover apenas as regiões mais preocupantes, mas o tratamento não é aconselhado antes das 6 semanas de vida. Deve-se tranquilizar os pais, realizar RMN do sistema nervoso central, esperar, fotografar, considerar redução das dimensões, fazer vigilância cuidadosa e distinguir o tratamento estético de suposta prevenção de carcinoma. Classificação de nevos melanocíticos congénitos pelas dimensões: Pequeno < 1,5 cm2 Médio 1,5-10 cm2 25
Grande 11-20 cm2 Gigante > 20CM2 - G1 21-30CM2 - G2 31-40 CM2 - G3 > 40CM2 Exemplo 3: Carcinoma do lábio, que tem como factores de predisponentes o consumo de álcool e tabaco, exposição solar e má higiene oral. O cancro do lábio inferior é 10 vezes mais frequente que o do lábio superior. É importante ter em conta que muitas destas neoplasias, quando localizadas no plano de fusão embrionária, nomeadamente nos sulcos naso-genianos, naso-labiais, canal auditivo interno, canto interno da área periorbitária, dorso do nariz, tendem a proliferar em profundidade de forma inaparente, pelo que é necessário remover o tumor em toda essa extensão. Independentemente da agressividade histológica do carcinoma é necessário ter em conta as localizações de alto risco da face. Nestas, deve-se actuar de imediato e com margens generosas por forma a impedir a recidiva.
Agressividade clínica de neoplasias da face de acordo com a localização Após a remoção da massa tumoral com margens suficientes confirmadas pelo anatomo-patologista durante a cirurgia, recorre-se a técnicas como colocação de enxertos ou retalhos, dependendo da localização. Também se pode recorrer a lipofiling: enchimento de pele através de injecção de tecido adiposo obtido por lipoaspiração do próprio, misturado com factores de crescimento retirados do plasma do próprio. Os objectivos são garantir a cura e não deixar sequelas. Isto porque as estruturas faciais têm uma importância social que deve ser respeitada. A saber para exame Factores de risco para carcinoma do lábio: consumo de álcool e tabaco, exposição solar e má higiene oral.
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PATOLOGIA CIRURGICA DA MÃO
Antes de mais um poema dedicado à mão: Foste a de todos nós primeira A única fiel e verdadeira Mil odes cantadas a ti devemos Mas nunca nos apaziguaremos Na busca do reconhecimento Deste nosso casamento De tanto cumprires o teu dever Ficas isquémica e violeta Sem ti não íamos poder Usar uma caneta
Doente trabalhador na indústria do frio que após exposição a gás líquido a -40o padece de uma geladura de 3º grau (do ponto de vista anatomo-patológico e cirúrgico extremamente semelhante a queimadura). Observa-se mão com gangrena, necrose da extremidade do 1º dedo e últimos três com comprometimento grave da circulação, pús e flictenas. O principal objectivo desta imagem é sensibilizar para os passos a ter com o penso da mão: 1. Lavagem: deve ser meticulosa e tem procedimentos específicos, no caso de dor efectua-se primeiro lavagem sumária, depois anestesia, e por fim lavagem completa. Em crianças pode ser mais eficaz uma lavagem simplista seguida da colocação da mão da criança por 3-5 minutos numa taça com água e anti-séptico (mais fácil do ponto de vista da colaboração do doente); se necessário, anestesia e lavagem complementar. 2. Desbridamento de tecidos inviáveis e monitorização de tecidos em risco: o médico deve perguntarse, no caso de dúvida, se o tecido deve ou não ser retirado (ponta do dedo roxa sinal de isquémia), no caso de não se retirar, a extremidade deve ficar exposta para observação da sua evolução (possibilidade de monitorizar a circulação com uso de oxímetro avaliando a viabilidade do tecido). Evitar que as extremidades fiquem escondidas de maneira geral, é fundamental para monitorizar a evolução quer sensitiva quer vascular. A mão em termos de circulação de extremidades não pode ficar para amanhã! Ferida complexa envolvendo pele, músculo, tendão e nervo, com secção completa do 2º dedo e semi-secção do 3º dedo. Todas as estruturas têm de ser identificadas e reparadas, no caso de não haver pedículo vascular capaz de assegurar a circulação à porção amputada deve-se procurar uma anastomose para assegurar a viabilidade da extremidade.
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Num caso destes não se pode perder mais do que 6 horas. Ao enviar um doente para um centro capaz de efectuar um procedimento do género deve-se assegurar que há condições nesse centro para o receber (por exemplo, ter a equipa de cirurgia pronta para receber de imediato o doente). Na face anterior do punho temos um retalho e por baixo desse retalho observa-se os tecidos subjacentes, no entanto, a melhor forma de avaliar a secção de estruturas é pedindo ao doente para executar movimentos e verificar se este é ou não capaz de os executar. Por exemplo a terceira falange é flectida pelo flexor profundo dos dedos, logo a execução deste movimento depende da integridade deste músculo. A anastomose da artéria radial com cubital possui duas arcadas anastomóticas: superficial e profunda; no caso de clampagem de ambas as artérias a interóssea pode assegurar alguma perfusão. Após a clampagem de ambas as artérias ao libertarmos a circulação na cubital a circulação reestabelecese até ao primeiro dedo, ou seja esta é capaz de assegurar a circulação. Em situação de mão traumática temos que diagnosticar o estado circulatório dos dedos mesmo sem ecodoppler, utilizando o Teste de Allen. Se uma das artérias possibilitar uma boa circulação e a outra estiver muito macerada (de modo a que não se consiga efectuar anastomose topo a topo) podemos considerar a não reparação da artéria; no entanto no caso de ambas estarem comprometidas pelo menos uma tem de ser reparada. Observa-se uma mão esfacelada. Deve-se fazer uma limpeza cuidada para evitar infecção (mais importante que antibiótico para prevenção de infecção) e colocação dos tecidos na sua posição normal (sutura). Na imagem da esquerda observa-se um dreno e suturas. Observa-se a perda de tecidos do dorso do 2º dedo, com perda do aparelho extensor e a superfície articular interfalângica proximal em contacto com o exterior. A articulação tem de ser coberta com estruturas vitalizadas para evitar infecção óssea. Levanta-se um retalho à distância, técnica que, segundo o professor, já não é muito utilizada. O retalho tem um pedículo temporário, ou seja, até desenvolver estruturas que o tornam autónomo tem de permanecer por 12 dias ligado. Observa-se um raio x do 2º dedo, onde se identifica um penso em redor do dedo e uma descontinuidade no lugar da articulação interfalangica proximal. Com mais de 12 horas de evolução esta situação torna-se irreversível (a extremidade está necrosada). Com esta relação óssea as artérias colaterais digitais (passam duas por dedo uma de cada lado do osso) estão rompidas. Ferida complexa na palma da mão de uma criança. Deve-se pedir à criança para fechar os dedos (mais fácil que explorar em busca dos tendões). Os flexores 28
estão ambos cortados, logo também o nervo mediano está cortado (por isso deve-se pesquisar a sensibilidade).
Zonas de Verdan Classificação das lesões dos tendões flexores por regiões anatómicas Exemplo: a secção na zona II tem mau prognóstico independentemente da habilidade do cirurgião, (pode haver bloqueio ao deslizamento tendinoso, nessa zona existe fraca circulação, com um traumatismo a cicatrização faz-se com muita fibrose, os tendões têm de ficar imobilizados para recuperarem no entanto se ficarem mais de 21 dias imobilizados podem fibrosar e o deslizamento não se faz) A zona II também é conhecida por no man’s land, porque quando se corta nessa zona “as coisas correm mal”. Tenorrafia – sutura de tendão seccionado (aproximação do topo dos tendões deixando os nós de sutura para dentro pois nós para fora impedem o deslizamento do tendão). Queimadura em criança que originou uma retracção cutânea. No dorso da mão existe alguma folga para cicatrização, mas na palma da mão toda a pele é necessária, logo a pele perdida tem de ser substituída por enxerto, a cicatriz pode originar uma clinodactilia (desvio do dedo em qualquer direcção). A compressão do nervo mediano (túnel cárpico) é uma patologia muito comum em senhoras a partir dos 45 e muito rara no homem.O diagnóstico é essencialmente clinico (formigueiros nos dedos com agravamento nocturno), mas também se pode fazer através de um electromiograma. Na terapêutica cirúrgica faz-se a descompressão do nervo mediano através da secção do ligamento transverso do carpo. Esta doente teve um sarcoma do polegar, e após remoção deste transferiu-se o indicador para o lugar do polegar com o propósito de conservar a oponência.
Observa-se um tumor avançado da eminência tenar. Retirou-se apenas o polegar e não se efectuou reconstrução dada a idade avançada da doente (se fosse mais nova teria de ser efectuada reconstrução).
O quisto sinovial é a patologia tumoral benigna mais simples e mais frequente.
Na imagem da esquerda observa-se um carcinoma. O quadrilátero desenhado vai ser excisado e o triângulo vai ser o retalho que vai avançar para cobrir a área excisada. 29
Lesões na sequência de acidente de mota com presença de cicatriz dolorosa ao toque. É necessário um enxerto de pele para resolver estar hipersensibilidade. A melhor pele para a mão é a pele da outra mão. Como é óbvio, a pele da outra mão não é, de todo, a primeira escolha, sendo que, se opta pela pele do pé. Deste modo, escolhe-se a pele do escavado plantar porque é zona de não apoio, logo não vai haver perda funcional, e faz-se o enxerto na mão. As zonas nobres de sensibilidade da mão são: - polpa do polegar - bordo cubital do 5 dedo - bordo radial do 2º, 3º e 4º dedo - eminências tenar e hipotenar Estas áreas são aquelas em que se deve preservar a sensibilidade para assegurar a funcionalidade da mão A doença de Dupuytren é uma contractura fixa da mão em flexão caracterizada pelo espessamento da fáscia palmar. Esta patologia pode variar desde pequenos nódulos até faixas muito espessas, as quais podem traccionar dos dedos em direcção à palma da mão. Em geral não é necessário tratamento cirúrgico, excepto nos casos em casos mais graves em que a actividade motora está afectada. Após a excisão de um melanoma da polpa do primeiro dedo, efectuou-se um retalho temporário para preservar a polpa do polegar. Antigamente amputava-se o dedo.
A doença do enxerto contra hospedeiro caracteriza-se, nesta imagem, por fibrose palmar. Não é consequência de transplante de mão, mas sim de transplante de medula óssea.
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TIRÓIDE ANATOMIA Víscera sólida, muito vascularizada. Glândula de secreção interna. Órgão ímpar, mediano e simétrico, localizado na região cervical anterior (união dos 2/3 superiores com o 1/3 inferior) adiante da laringe. Dois lobos laterais de forma piramidal com base inferior, desde a parte média da cartilagem tiroideia até ao 6º anel traqueal, envolvidos por uma fina fáscia de tecido conjuntivo derivado da fáscia pré-traqueal (desdobramento da aponevrose cervical profunda) e que serve de cápsula, conferindo o aspecto lobular da glândula Os lobos são ligados por um istmo ao nível do 2º, 3º e 4º anel traqueal (pode estar ausente), de cerca de 1,25 cm de comprimento e fortemente aderente à traqueia (ligamento de Grüber/ligamento de Berry); apresenta no bordo superior uma projecção de tecido tiroideu: pirâmide de Lalouette ou lobo piramidal (presente em 50 a 80%) Relações Relaciona-se anteriormente com os músculos pré-tiroideus: esternotiroideu, esterno-hioideu, omohioideu, e este conjunto é recoberto pelo esterno-cleido-mastoideu Relaciona-se posteriormente com traqueia, cartilagens tiroideia e cricoideia, músculo crico-tiroideu e m. constritor inferior da faringe, esófago, glândulas paratiroideias e nervo laríngeo superior e n. laríngeo inferior (n. recorrente) Relaciona-se lateralmente com o feixe vásculo-nervoso do pescoço (v. jugular interna, a. carótida primitiva, nervo vago) e nomeadamente com a bainha da artéria carótida Inervação Inervada pelo nervo laríngeo superior, nomeadamente pelo seu ramo externo motor (conhecido como o nervo lesado pela soprano Amalita Galli Curci) e pelo nervo laríngeo inferior ou recorrente. O nervo laríngeo inferior não recorrente tem uma incidência de 0.3-0.8%, sendo mais raro à esquerda (0.004%) e associado com situs inversus. Simpática – Gânglio simpático cervical acompanhando os vasos Parassimpática – n. vago acompanhando os n. laríngeos Vascularização 4 artérias tiroideias principais: - 2 superiores – 1º ramo colateral da carótida externa - 2 inferiores – tronco tiro-bicervico-escapular, ramo da subclávia uma 5ª artéria (a. Ima ou de Newbaüer) inconstante (3%): - ramo do tronco inominado ou arco aórtico 3 pares de veias tiroideias principais (plexo venoso sub-capsular na face anterior): - superiores – drenam para v. jugular interna ou tronco tiro-linguo-faringo-facial - médias – drenam para v. jugular interna - inferiores – drenam para v. inominada Drenagem linfática - 2 conjuntos v. linfáticos: ascendentes e descendentes (medial/lateral): 31
ascendentes medianos – gânglios pré-laringeos ascendentes laterais – cadeia da v. jugular interna descendentes medianos – G. pré-traqueais descendentes laterais – cadeia do nervo recurrente
Palpação do istmo da tiróide: Localizar a cartilagem tiroideia Cartilagem cricoideia o istmo localizase no 1º/2º anel da traqueia. Nem sempre se consegue palpar a glândula, palpa-se melhor em mulheres magras. Em indivíduos obesos é extremamente difícil. É importante ter presente as relações da traqueia com a tiróide aquando da realização de uma traqueostomia de urgência. Isto porque a tiróide é muito vascularizada e, caso seja lesada durante o procedimento, leva habitualmente a uma hemorragia importante.
CIRURGIA DA TIRÓIDE De todas as estruturas atrás referenciadas, aquelas com que o cirurgião tem que ter maior preocupação são: Nervo laríngeo recorrente (existe praticamente sempre à esquerda, uma vez que a crossa da aorta é constante, mas pode não existir à direita; quando ausente do lado esquerdo (0,004%) decorre de situs inversus; depois de fazer a ansa na crossa da aorta ou na artéria subclávia sobe entre a traqueia e o esófago). Glândulas paratiroideias (glândulas pequenas, amarelo/acastanhadas, do tamanho de uma ervilha, localizadas habitualmente na face póstero-lateral dos lóbulos da tiróide, entre a face posterior da tiróide e o mediastino, ao nível da membrana tireopericárdica, capsular ou até mesmo no interior da glândula, normalmente em número de 4 – 2 superiores e 2 inferiores). A cirurgia da tiróide divide-se em 2 grandes grupos: Lobectomia com istmectomia Tiroidectomia total, sendo sobretudo nesta que se podem lesar as paratiroideias. A localização destas glândulas é variável e podem inclusive ser intra-tiroideias, o que implica a sua remoção quando indicada uma tiroidectomia. Isto pode condicionar um hipoparatiroidismo grave, complicação da cirurgia à glândula tiroideia. Para a cirurgia da tiróide, tal como para qualquer órgão é necessário fazer-se antes da remoção do órgão a laqueação dos vasos que a irrigam. Na tiróide são 4 artérias, duas superiores (ramos da carótida externa) e outras 2 inferiores (ramos da subclávia), podendo existir uma 5ª que é inconstante (artéria de Newbaüer, ramo do arco aórtico). É preciso procurar esta última para, caso exista, não a seccionarmos causando uma hemorragia que, por ser arterial, é mais difícil de controlar. Deve-se ter em conta as complicações comuns a qualquer cirurgia: Infecção e hemorragia (e dor). Em relação às estruturas nervosas: Nervo laríngeo superior: implicado na fonação (timbre); não tem repercussões em pessoas que não utilizam a voz profissionalmente. Nervo laríngeo inferior ou recorrente: responsável pela capacidade de projectar a voz. Se ocorrer lesão unilateral do nervo recorrente: doente com voz rouca/bitonal/metálica. Na invasão das cordas vocais por neoplasia, há uma adaptação progressiva da outra corda, de modo a que se nota uma diferença mínima na voz.
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Se a lesão do nervo recorrente for bilateral: afonia, risco de dispneia/apneia/asfixia, dependendo da localização da corda vocal, sendo que nos casos mais graves, a paralisia ocorre numa localização paramediana; o sinal que nos pode indicar essa lesão: estridor (inspiratório) e dispneia. A paralisia bilateral das cordas vocais é rara, mas coloca em risco a vida do doente. Apercebemo-nos desta paralisia sobretudo quando se “extuba”/ retira a entubação ao doente que não fala, tem dispneia e estridor. Neste caso é mandatório realizar uma traqueostomia de emergência. Pré-operatoriamente, no Hospital Egas Moniz, é feita uma laringoscopia para haver um ponto de comparação no pós-operatório. A lesão iatrogénica do nervo pode ser por secção do mesmo, lesão térmica pelo electrocautério, secção, estiramento, etc, tendo de se encaminhar estes doentes para Consulta da Voz/Terapeutas da fala, quando a lesão é unilateral.
HIPERPARATIROIDISMO Detecta-se pela hipercalcémia, com calcémia ≥10 mg/dL (achado analítico) ou pela sintomatologia (fadiga, mal-estar, depressão, cólica renal, dor óssea, cólicas abdominais, calcificações ectópicas e calcificação da córnea). São causas de hipercalcémia: Hiperparatiroidismo, doença neoplásica, insuficiência renal (doentes idosos). Se a causa é o adenoma funcionante/primário da paratiróide trata-se de um hiperparatiroidismo primário (em mais de 80% dos casos). Se for compensatório, por uma insuficiência renal ou hipovitaminose D, designa-se de secundário. Pode ainda ser terciário se a glândula se torna hiperplásica e autónoma após um estímulo contínuo para compensar a hipocalcémia, por exemplo, numa insuficiência renal crónica. Os adenomas múltiplos da paratiróide (10% dos casos fora dos síndromes referidos à frente), embora raros, também estão presentes, sendo tipicamente associados a síndromes de neoplasia endócrina múltipla (NEM): NEM 1 – neoplasia do pâncreas, adenoma hipofisário e hiperplasia das paratiroideias; NEM 2 A –carcinoma medular da tiróide, feocromocitoma e hiperplasia das paratiroideias; NEM 2 B – carcinoma medular da tiróide, feocromocitoma e neuromas.
HIPOPARATIROIDISMO É frequente após uma cirurgia da tiróide, pois as glândulas paratiroideias podem ser lesadas ou excisadas, conduzindo ao hipoparatiroidismo. Pode ter múltiplas causas, sendo que, neste serviço, é habitualmente iatrogénico, por remoção acidental da glândula. No pós-operatório podemos pesquisar um hipoparatiroidismo: Analiticamente, com uma hipocalcémia Sinais e sintomas – neuromusculares e neuropsiquiátricos: - Parestesias - Cólicas - Tetania - Ansiedade - Convulsões - Estridor laríngeo - Psicose 33
Os “formigueiros” (parestesias) nos lábios e nas mãos, cãibras repetitivas, permanentes e constantes são muito típicos. Sinal de Chvostek A percussão malar (estimulo do nervo facial) leva a contracção involuntária do lábio superior. Surge habitualmente para valores ≤7mg/dL. Sinal de Trousseau Pode ser espontâneo (mão de parteira) ou podemos desencadeá-lo ao ocluir a irrigação sanguínea da artéria radial (colapsar a artéria) com o esfigmomanómetro, o que leva à flexão brusca da mão (espasmo com contracção violenta da mão após um período de anóxia). Ocorre para hipocalcémias muito graves, sendo raro.
ANOMALIAS DO DESENVOLVIMENTO Quisto do canal tiroglosso No seu desenvolvimento embrionário a tiróide migra distalmente através do canal tiroglosso, tendo origem na base da língua, nomeadamente no divertículo faríngeo – forâmen cecum. Deste modo, se houver tecido ectópico na língua, é possivel existir um bócio lingual. Após o desenvolvimento embrionário, o canal tiroglosso desaparece, fibrosando. No entanto, em algumas situações permanece um resquício desse canal no adulto, entre o osso hióide e a chanfradura tiroideia, formando-se aí um quisto. Um quisto, por definição é uma cavidade revestida por epitélio, podendo ter conteúdo líquido (os pseudo-quistos não têm epitélio). Suspeitamos de um quisto do canal tiroglosso perante uma massa cervical redonda, paramediana, acima do istmo da glândula tiróide. Com o doente de perfil, abrimos a mandíbula e pede-se ao doente para colocar a língua para fora, com este movimento da língua vemos o quisto a subir, podemos inclusive palpar este movimento do quisto. O doente só deve colocar a língua para fora depois da mandíbula estar bem aberta, para que o movimento mandibular e o movimento do quisto não se confundam. Os quistos podem infectar e originar um abcesso cervical. Neste abcesso observamse sinais inflamatórios (calor, rubor, tumor e dor) e à palpação identifica-se flutuação, o que significa que há conteúdo líquido (carrega-se de um do lado da massa com um dedo e com o outro dedo sente-se uma elevação, movimento do fluido). É importante verificar se não há pulsação, pois os quistos não têm pulsação e, havendo pulsação, pode tratar-se de um aneurisma micótico (comum em toxicodependentes). Os quistos podem ser simples/puros, se tiverem apenas conteúdo líquido, nomeadamente seroso, ou mistos quando são compostos por uma porção sólida, podendo ainda haver hemorragia intra-quística, cujo principal sintoma é dor. O tratamento é cirúrgico e consiste na excisão até ao foramen cecum com ressecção da parte média do osso hióide (operação de Sistrunk). Bócio Lingual É uma patologia rara e congénita que está associada à ausência de tiróide cervical em 70% dos casos e pode levar a dispneia, disfagia, disfonia e asfixia.
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Bócios Ectópicos 90% desta patologia localiza-se na base da língua, estando os restantes 10% na vesícula biliar, duodeno, trompas de Falópio e vagina. Hemiagenesia É a ausência de um dos lobos, sendo mais frequente em mulheres (racio 3:1) e no lobo esquerdo (ausência em 68%-80%).
FISIOLOGIA A tiróide, por estimulo da TSH, segrega T4 e T3. Há T3 e T4 total e livre, sendo a forma livre a forma activa e cuja concentração não varia com alteração na quantidade de proteínas transportadoras que ocorre em patologias, como por exemplo na insuficiência hepática. Quando se avalia a função tiroideia, pede-se apenas o doseamento de TSH e T4 livre, porque a T4 total está ligada a albumina e a outras proteínas. Em determinadas patologias (síndrome nefrótica e insuficiência hepática) uma diminuição dessas proteínas transportadoras condiciona uma diminuição da T3 e T4 total. Prefere-se a T4 livre à T3 livre, uma vez que a primeira é aquela para a qual os tecidos têm maior afinidade, e portanto, é biologicamente activa, sendo convertida no interior das células em T3. Também porque toda a T4 circulante deriva exclusivamente de secreção tiroideia, permitindo aferir mais correctamente a função da glândula. Se tivermos hipotiroidismo, o que temos diminuído são as formas livres de T3 e T4. Se constatarmos um hipotiroidismo temos que avaliar a TSH para classificar o hipotiroidismo em: Primário (TSH ↑) - tiroidite de Hashimoto, tratamento com I 131 , tiroidectomia total ou sub-total, deficiência iodada, induzida por drogas, defeitos da síntese, anormalidades congénitas. Central, por lesão na hipófise ( TSH ↓) - Doença hipofisária – Secundário - Doença Hipotalâmica - Terciário No hipertiroidismo temos as formas livres elevadas. Um exemplo clássico de hipertiroidismo é a doença de Graves, que tem uma tríade clássica: exoftalmia, aumento difuso da tiróide (bócio) e mixedema pretibial. Outra causa de hipertiroidismo é o bócio multinodular tóxico. Na patologia da tiróide pode haver alterações da função (hipo ou hipertiroidismo), associadas a alterações da sua estrutura.
HISTÓRIA CLINICA Exame objectivo Palpação A tiróide pode ser palpável ou não, dependendo das características do pescoço e do tecido adiposo, pois é muito difícil palpar a tiróide em obesos. Na palpação da tiróide deve-se descrever: Localização – normalmente no 1/3 inferior do pescoço. Dimensões – podem estar aumentadas por inflamação, neoplasia ou bócio. Limites – situações em que os limites são mal definidos podem indicar neoplasia infiltrativa. Se o bordo inferior da tiróide for palpável o bócio não é mergulhante, mas se este bordo não for palpável pode-se tratar de uma tiróide/bócio mergulhante (tiróide que se estende para a cavidade torácica). Neste caso o sinal de Pemberton é positivo: pede-se ao doente para levantar os braços (eleva-se o tórax) e o doente tem dispneia por compressão. 35
Superfície – se é nodular ou lisa. Mobilidade Doloroso ou não – os nódulos dolorosos estão associados a inflamação ou tiroidites, enquanto que nódulos indolores, na sua maior parte, são uma neoplasia. Consistência – nas neoplasias os nódulos são pétreos, imóveis e duros. Nos bócios colóides os nódulos são elásticos e moles. Os nódulos quisticos são mais moles. Pulsação – indica que se trata de um aneurisma. Palpação de adenopatias (supraclaviculares e cervicais) – utilizando também os mesmos critérios: mobilidade, dimensões, palpação dolorosa, etc. Desvio da traqueia – identifica-se por palpação manual da traqueia. Um local quase sempre acessível para a palpação da traqueia é imediatamente acima da fúrcula esternal, importante em caso de bócios muito grandes. O desvio da traqueia ocorre se existir uma grande assimetria de dimensões entre os lobos tiroideus. Por outro lado, se tivermos um bócio muito grande, há uma alteração da estrutura da traqueia ao corte, por compressão da mesma. O normal é que seja circular ao corte, mas quando comprimida, passa para um corte oval, facilmente ocluida quando pressionamos a mesma através do pescoço. Pode ser de tal maneira oval que a designamos de deformação em fenda. Em determinados doentes este bócio condiciona dispneia em decúbito e disfagia. Os doentes com traqueia em fenda têm também um teste de Kocher positivo: a compressão da tiróide provoca dispneia e estridor por compressão do nervo laríngeo recorrente. Sinal de Berry – um pulso carotídeo não palpável num dos lados sugere a presença de doença neoplásica; ocorre em tumores medulares ou carcinomas indiferenciados. A palpação de qualquer massa, seja qual for a localização, deve avaliar todos estes parâmetros. É válido para a tiróide ou para qualquer outro órgão. Percussão Raramente se faz. Quanto muito faz-se percussão pulmonar para pesquisa de bócio mergulhante e, onde deveríamos encontrar um timpanismo, temos macicez. Auscultação A tiróide é extremamente vascularizada. Há uma única situação onde se pode auscultar um sopro na tiróide: doença de Graves (hipertiroidismo). Nesta doença a auscultação não tem muito interesse porque existem os outros sinais e sintomas mais precoces e de fácil acesso que permitem chegar ao diagnóstico de uma forma mais precoce. No entanto, na cirurgia da tiróide, por doença de Graves, a vascularização está ainda mais aumentada, sendo possível ouvir um sopro ou palpar um frémito, sendo necessário administrar aos doentes, uns dias antes da cirurgia, soluto de Lugol com o intuito de diminuir a vascularização, evitando/atenuando assim hemorragias. (Qualquer que seja a cirurgia, tem sempre duas complicações básicas: hemorragia e infecção.) Os frémitos (são vibrações) não se auscultam, palpam-se.
HIPERTIROIDISMO ou TIREOTOXICOSE Síndrome caracterizada por hipermetabolismo resultante de um excesso em circulação de hormonas tiroideias. Existem 3 formas major: Doença de Graves ou bócio tóxico difuso Bócio multinodular tóxico 36
Adenoma tóxico É 6 vezes mais frequente na mulher, raro antes dos 10 e acima dos 65 e pode estar associado a história familiar, no caso de doença de Graves.
Bócio tóxico difuso ou doença de Graves É a forma de hipertiroidismo mais marcada/grave, uma vez que é difuso, ou seja, toda a glândula está envolvida/estimulada a produzir T3 e T4. É a causa mais frequente de hipertiroidismo, sendo mais frequente no adulto jovem do sexo feminino (7:1) e sendo raro antes dos 10 anos e acima dos 65 anos. É autoimune (LATS, TSI, TGHA,MCHA), havendo história familiar. A vascularização da tiróide está aumentada – frémito (com a compressão pode desaparecer, porque os vasos são subcapsulares) Em casos mais graves (5%) pode haver mixedema pré-tibial (espessamento em forma de máculas, logo acima do tornozelo, com 0,5 a 6cm de diâmetro). O aumento de glicosaminoglicanos leva ao aumento de líquido no 3º espaço. Por isso na doença de Graves é fundamental observar as pernas. Tríade clássica: tireotoxicose, bócio e exoftalmia. A exoftalmia é a protusão do globo ocular – proptose. Observa-se a conjuntiva e esclerótica a circundar toda a íris, mas não surge numa fase inicial da doença. Existem sinais mais precoces, primeiro bócio e sinais e sintomas de tirotoxicose e só depois os primeiros sinais oculares: Espasmo da pálpebra superior – com sinal de Stellwag positivo (diminuição da frequência do pestanejar), que é o sinal ocular mais precoce e frequente. Retracção da pálpebra superior – na pessoa saudável, com o olho aberto, a pálpebra superior cobre a meia distância entre a pupila e a íris e acompanha o movimento ocular mantendo-se sempre nesta posição. Estes doentes têm sinal de Dalrymple (retracção da pálpebra superior) e sinal de Von Graefe (pedimos ao doente que olhe para baixo e conseguimos ver a esclerótica por cima da íris). Só depois destes sinais oculares surge a exoftalmia com proptose, sempre bilateral. Oftalmoplegia externa – é um sinal de gravidade. Quando a proptose já é tão grande que os olhos não conseguem convergir ocorre diplopia (sinal de Moebius positivo). No sinal de Joffroy o doente segue o nosso dedo à medida que o movimentamos para cima e para baixo, para além do que seria normal, sem fazer a extensão do pescoço. Congestão e edema (sinais de gravidade) Cegueira Depois de se tratar o hipertiroidismo a exoftalmia não regride. Por vezes, paradoxalmente até acentua, porque provavelmente, a exoftalmia não está relacionada apenas com o hipertiroidismo, mas também com os auto-anticorpos (LATS, TSI, TGHA, MCHA). Tratamento Iodo radioactivo – contra-indicado em jovens sexo feminino, pois não preserva a fertilidade. Iodo 131. Faz-se também como adjuvante da cirurgia para eliminar células que possam estar em circulação ou não tenham sido removidas pela cirurgia. Tiroidectomia – neste caso, deixa-se 10 a 15gr de tiróide de forma a não originar um hipotiroidismo. O comportamento desta pequena porção pode por um lado continuar a crescer e voltar a originar um hipertiroidismo ou, por outro lado, pode fibrosar e ocasionar um hipotiroidismo. Habitualmente os cirurgiões preferem retirar um pouco mais de tecido tiroideu para que o doente não fique “na mesma”, originando assim o hipotiroidismo secundário.
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Radioterapia – também contra-indicado em jovens sexo feminino. Actualmente em desuso pelo risco de desenvolver linfomas e carcinomas papilares.
Bócio multinodular tóxico Numa tiróide com vários nódulos, um deles torna-se autónomo e começa a produzir de forma incontrolada T3 e T4, isto leva a um feedback negativo (↓ TSH) em todos os outros nódulos, pelo que esta condição não é tão grave como a doença de Graves. A exoftalmia raramente está presente, havendo sintomas e sinais de obstrução da traqueia e/ou esófago.
Adenoma tóxico Trata-se de um nódulo único. Nunca há exoftalmia.
Sintomas e sinais de hipertiroidismo Aumento da sensibilidade ao calor, sudação abundante Perda de peso, mas aumento do apetite Alterações do comportamento: - Hiperexcitabilidade, instabilidade emocional, insónia - Estados psicóticos Diminuição da força muscular e fadiga Tremor Alterações do fluxo menstrual Líbido aumentada mas fertilidade reduzida Diarreia e aumento das dejecções diárias Palpitações Exame Objectivo Pele quente e húmida; unhas frágeis e quebradiças Cabelo mais fino, perda de cabelo Rubor facial; sudação Tremor das mãos (dedos em extensão e abdução) Reflexo do tendão de Aquiles hiperactivo Taquicardia, fibrilhação auricular, insuficiência cardíaca congestiva Aumento das mamas; ginecomastia
HIPOTIROIDISMO Ocorre por falência da glândula em manter um nível adequado de hormonas tiroideias. Pode ser: Espontâneo (Mixedema): aplasia, substituição por bócio não funcionante (tiroidite). Secundário: pós cirurgia, pós Iodo radioactivo. Quando se observa um lactante com distensão abdominal, hérnia umbilical e prolapso rectal pensar em hipotiroidismo. O hipotiroidismo na infância dá origem ao cretinismo.O aspecto de cretino associa-se a atraso intelectual marcado e irreversível e a atraso no crescimento. Durante a gravidez, a mulher deve fazer a avaliação da função tiroideia para prevenir esta situação e nos recém-nascidos é rastreada pelo teste do pézinho, de forma a corrigir o mais cedo possível este tipo de patologias. 38
Hipotiroidismo juvenil tem manifestações muito mais subtis, como falta de atenção (normalmente não valorizada), idade aparente inferior à real e fraco desenvolvimento intelectual. Um estudo realizado na população juvenil portuguesa demonstrou iodúrias muito abaixo do recomendado pela OMS e chegou a atribuir-se a este facto as baixas notas/falta de atenção dos jovens portugueses. Em determinadas zonas existia mesmo bócio endémico/hipotiroidismo e as câmaras municipais faziam a suplementação do iodo. Neste momento, por motivos financeiros, não há nenhuma câmara a fazer suplementação de iodo. O hipotiroidismo no adulto é muito raro (1 a 2% dos casos) e tal como todas as outras patologias da tiróide afecta sobretudo mulheres (80%). Normalmente, é manifestação de tiroidite linfocítica.
Sintomas e sinais de hipotiroidismo
Intolerância ao frio, diminuição da sudação Função intelectual e discurso lento, cefaleias Apatia, alterações da personalidade Aumento de peso Rouquidão Fraqueza muscular, mialgias e parestesias Obstipação, alterações menstruais Diminuição da líbido, oligospermia ou azoospermia
Exame Objectivo Pele seca, fria e com perda da elasticidade Cabelo seco e quebradiço Face inexpressiva, rosto arredondado Edema das pálpebras Língua aumentada de volume Voz rouca Silhueta cardíaca aumentada Derrame pericárdico/pleural
TIROIDITES Corresponde a uma doença inflamatória da tiróide.
Tiroidite aguda supurativa É rara, pode ser resultante de uma infecção respiratória aguda/bacteriémia e é semelhante a uma amigdalite purulenta. Cursa com febre alta, leucocitose, dor, abcessos, por vezes, disfagia, disfonia e calafrios. Não há alteração da função tiroideia.
Tiroidite Subaguda ou de Quervain Sendo de etiologia desconhecida, compara-se a uma gripe. Poderá ser granulomatosa ou viral. Há aumento difuso, dor à palpação e febre baixa. Não tem leucocitose, tem linfocitose, sem grandes sinais inflamatórios e é autolimitada. Como há inflamação inicial podemos ter também um hipertiroidismo inicial.
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Tiroidite de Riedel Dá-se a substituição da tiróide por tecido fibroso denso. Sendo muito rara e crónica, é mais frequente na mulher de 50 anos. Trata-se de uma entidade semelhante à fibrose retroperitoneal que inutiliza a tiróide. É uma situação benigna que transforma os nódulos da tiróide em nódulos pétreos/duros, fazendo diagnóstico diferencial com neoplasias. Pode estender-se aos tecidos circundantes com encarceramento de estruturas. Pode comprimir a traqueia sufocando o doente. Nestas situações faz-se (muito raramente) uma cirurgia que passa pela istmectomia (cortar o istmo) para deixar que ambos os lobos se separem.
Tiroidite de Hashimoto ou linfocítica crónica É muito mais comum, é auto-imune e quase exclusiva do sexo feminino. Nas fases iniciais da doença o doente tem hipertiroidismo e progressivamente avança para um hipotiroidismo (numa fase já mais avançada). É uma doença cíclica, que se caracteriza por agudizações e remissões, com sucessivas inflamações e cicatrizações o tecido tiroideu que vai sendo substituído por tecido fibroso e originando hipotiroidismo. Há um aumento difuso/nodular da glândula, com dor e sintomas compressivos (dispneia e disfagia). Pode estar associada a lúpus, artrite reumatóide, miastenia gravis e anemias (hemolíticas e perniciosa), havendo ainda uma possível relação com o carcinoma papilar.
BÓCIO Por definição é o aumento de volume/dimensões da glândula tiroideia de etiologia benigna, (excluindo-se etiologia neoplásica e inflamatória). Classifica-se em bócio difuso, tóxico (como na doença de Graves) e não tóxico, e nodular/multinodular tóxico e não tóxico. A maioria dos bócios são multinodulares. Os sintomas de bócio endémico relacionam-se com o tamanho do mesmo. Em bócios muito prolongados pode haver um hipotiroidismo, mas normalmente é o tamanho que incomoda.
Bócio Endémico A grande maioria dos bócios é endémica, sendo mais frequente no sexo feminino. Ocorre por deficiente ingestão de iodo na dieta. O estímulo continuado e intermitente leva a hiperplasia difusa e, posteriormente, há acumulação excessiva de colóide. Sinais e sintomas Relacionam-se com o tamanho e a localização Compressão tráqueo-esofágica – dispneia, disfagia Compressão dos nervos recorrentes – disfonia Aspecto estético
Bócio Familiar Ocorre devido aos efeitos enzimáticos transmitidos de forma autossómica recessiva.
Bócio esporádico Ocorre devido ao consumo de altos teores de certos alimentos ou fármacos que diminuem a produção de hormonas tiroideias. O consumo excessivo de iodo também produz bócio.
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NÓDULOS TIROIDEUS São tumores individualizáveis no seio de uma tiróide com a restante estrutura normal. Habitualmente são benignos, estão presentes em cerca de 40% da população (aumentando a incidência com a idade) e são 4 vezes mais frequentes na mulher. 4% da população tem um nódulo clinicamente palpável, sendo que destes, 5 a 20% são carcinomas.
Nódulo Colóide Habitualmente existem múltiplos nódulos de tamanho homogéneo e pequeno (2-5mm) e depois há um muito maior (15mm) que se destaca – nódulo dominante – e que tem de ser investigado, pois pode ser maligno.
Adenoma folicular Pode ser macrofolicular, microfolicular, embrionários (trabeculares) ou das células de Hurthle. 80% deles são benignos, de crescimento lento e assintomáticos. Pode haver hemorragia que cursa com dor e aumento súbito de dimensões.
Quisto Existem vários tipos de quistos, puros ou mistos. São extremamente vulgares, assemelhando-se aos quistos renais, hepáticos. Na maioria dos casos são benignos e não causam sintomatologia. No entanto, há quistos que podem ser suspeitos (por exemplo, os que têm espessamento das paredes ou porções sólidas, quistos septados, calcificações, liquido não seroso, conteúdo purulento ou hemático). Os quistos podem dar dor se houver hemorragia intra-quística – força a cápsula quística e dá dor - ou se infectar. Quistos mistos têm que ser avaliados porque é um grupo de células que se estão a desenvolver e há um tipo de carcinoma papilar que surge com uma apresentação quística.
Nódulo maligno Existem dois grandes grupos de tumores da tiróide, com prognósticos completamente diferentes, são os tumores diferenciados e os tumores indiferenciados. Tumores diferenciados Folicular Papilar – mais frequente e a sua incidência tem vindo a aumentar. Está associado a radiações (exemplo de Chernobyl), por isso, em radiologia são utilizadas batas de chumbo e protectores de tiróide, a fim de prevenir este tipo de tumores. A sua taxa de sobrevivência aos 5 anos pode chegar aos 98%. São variantes deste carcinoma: - Variante folicular do papilar - Tumor de células de Hurthle que se comporta como o tumor de células foliculares Existe ainda o tumor parafolicular/medular das células C que, embora sejam diferenciados, têm mau prognóstico, sendo um grupo à parte dos papilares e foliculares. As células C produzem calcitonina que é utilizada como marcador tumoral. Não é um tumor da tiróide, mas sim das células parafoliculares, ou seja, de células C. Os carcinomas papilares têm linfotropismo (metastatizam predominantemente pela via linfática). Na avaliação anatomo-patologica identificam-se calcificações na glândula tiróide.
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Tumores indiferenciados A taxa de sobrevivência a 1 ano de um tumor indiferenciado é de 15%, devido à inexistência de terapêutica. Podem ser: Carcinoma indiferenciado Outros – prognóstico péssimo, não há métodos terapêuticos eficazes São os mais preocupantes. Há diferenciação (bem diferenciados, mal diferenciados), podendo tratar-se de carcinomas papilares (mais frequentes), carcinomas foliculares, carcinoma medular, carcinoma indiferenciado ou anaplástico e o linfoma. Avaliação de nódulos malignos O método de eleição para avaliar morfologia da tiróide é a ecografia (permite ver a quantidade de nódulos, se têm conteúdo sólido ou liquido, etc). A TAC tem radiação e é mais demorada, para além de ter custo mais elevado. Para avaliar a funcionalidade : TSH E T4 livre. Após a ecografia e os exames laboratoriais o que fazemos perante um nódulo? Citologia Aspirativa! Não se faz a biópsia na tiróide porque a tiróide é muito vascularizada e o procedimento de uma biópsia é mais agressivo. Há maior risco de hemorragia. Biopsia vs Citologia: a citologia aspirativa retira células mas não dá a histologia/arquitectura do tecido. Na biópsia temos a histologia. Por exemplo, o carcinoma folicular não pode ser caracterizado por uma citologia aspirativa. É muito difícil para o anatomopatologista classificá-lo como maligno/benigno e dizer se é adenoma/carcinoma; não é possível ver se invade vasos, cápsula, etc. Factores de risco para nódulo maligno Determinados tipos histológicos são mais suspeitos de serem malignos. Suspeitar de nódulos malignos se: Sexo: mais frequente no homem Idade abaixo dos 25 anos ou acima dos 60 – extremos das idades Exposição a radiação (cabeça ou pescoço): período latência de 20 a 30 anos - 25% desenvolvem bócio - 25% destes são malignos História familiar de carcinoma medular Crescimento progressivo, sem dor, nódulo duro (pétreo) Aderência a tecidos vizinhos Sintomas compressivos, disfonia Adenopatias cervicais: pensar em carcinoma papilar Metástases à distância Carcinoma papilar Constitui 80% dos tumores da tiróide, sendo mais frequente em mulheres na 3ª e 4ª década de vida e diminuindo progressivamente com a idade. 90% dos tumores da tiróide induzidos por radiação são papilares. Dos tumores bem diferenciados, o que tem maior predilecção para metastizar para as cadeias ganglionares é o carcinoma papilar, pois tem linfotropismo. Deste modo, uma adenopatia no pescoço persistente e isolada obriga a exame objectivo da tiróide.
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Neste tipo de tumores, para além da tiroidectomia poderá haver a necessidade de, caso sejam identificadas metástases ganglionares, fazer uma linfadenectomia. Normalmente, estas metástases localizam-se do lado do tumor. A disseminação por via hemática é rara. É multicêntrico. Psammoma bodies são calcificações nos tumores papilares, quando se passa com a lâmina do bisturi sobre o tecido neoplásico da tiróide ressecada, assemelha-se a areia. Carcinoma folicular Representam 10 a 20% dos tumores da tiróide, são mais frequentes na 4ª e 5ª década de vida e o rácio f/m é 3:1. A metastização é mais precoce e, ao contrário do carcinoma papilar, faz-se por via hematogénea, atingindo assim as estruturas ósseas, pulmonares e hepáticas (menos frequente). Com já referido, a variante folicular é mais agressiva que a forma papilar. Raramente é multicêntrico. Tem uma variante com células que coram – oxifílicas – que se chama tumor de células de Hurthle. Formas de Pior Prognóstico Carcinoma parafolicular/medular Representam 5% a 10% dos tumores da tiróide. Trata-se de um carcinoma das células C (parafoliculares) que fazem parte do sistema A.P.U.D. A incidência é igual em ambos os sexos, sendo que 75% destes tumores são esporádicos e unifocais, enquanto que 25% são familiares e multifocais de transmissão autossómica dominante. A determinação da calcitonina é fundamental, pois estas células pertencem a um grupo muito próprio (tumores do apêndice, tumor carcinóide, síndrome carcinóide) e apesar de poderem produzir ACTH, somatostatina, PG, CEA e 5-ht, produzem principalmente calcitonina. Há duas formas: esporádica e genética. A forma genética está englobada nos NEM’s: NEM 1 – adenoma da hipófise, neoplasia pancreática/Zollinger-Elison (produtor de gastrina e caracterizado pela presença de úlceras em todo o duodeno) e hiperparatiroidismo NEM 2 – tem sempre carcinoma medular + feocromocitoma - Tipo A – hiperparatiroidismo - Tipo B – tumores neurológicos – neurinomas (mais agressivos) Carcinoma indeferenciado São mais frequentes após os 60 anos, correspondendo a menos de 10% dos tumores. São de crescimento muito rápido e difuso e à palpação é duro e fixo. As metátases são frequentes à data do diagnóstico, sendo a sobrevida a 1 ano de 25%. A sobrevida é baixa devido à falta de terapêutica eficaz e estes doentes morrem devido a invasão local (necessitam de traqueostomia) e a erosão da carótida (que origina uma hemorragia catastrófica). Faz diagnóstico diferencial com linfoma. Linfoma São tumores da tiróide raros (1%) que aparecem, principalmente, em mulheres acima dos 60 anos. A maioria são linfomas não Hodgkin de consistência pétrea e crescimento rápido. O tratamento é semelhante a outros linfomas – quimioterapia. Por norma, não se faz radioterapia nem cirurgia. Comparando com os outros tipos agressivos, têm um bom prognóstico. Carcinoma metastático Também é possível encontrar metástases de outros tumores na tiróide, apesar de mais raro. Por exemplo, tumor da mama, carcinoma brônquico e hipernefroma. 43
EXAMES COMPLEMENTARES Laboratoriais Doseamentos hormonais de TSH e T4 livre. Anticorpos anti-tiroglobulina, anti-microssoma, LATS para despiste de doença auto-imune como doença de Graves e tiroidite de Hashimoto Calcitonina – é importante carcinoma medular e hiperplasia de células C Tiroglobulina – os carcinomas folicular e papilar (bem diferenciados) não produzem propriamente hormonas tiroideias mas produzem tiroglobulinas (proteínas armazenadoras de hormonas tiroideias). Num follow-up, após tiroidectomia total, podemos utilizar a imagiologia e doseamento de tiroglobulina para pesquisar metastização. A única excepção é quando doente produz anticorpos antitiroglobulina.
Imagiológicos Ecografia – é muito importante, permitindo avaliar a estrutura da glândula e a presença de nódulos sólidos ou quísticos, mas não distingue lesões benignas/malignas. TAC – importante para o estudo das metástases ou invasões locais torácicas, permitindo o estadiamento. Cintigrafia óssea – para identificar metástases ósseas Cintigrafia da tiróide– recorre a Tc99. Caiu em desuso pela utilização da ecografia, biópsia e TAC. Nódulos quentes – Capta bastante iodo. Benignos. Nódulos frios – nodulo hipocaptante, sugestivo de neoplasia, precisamente pelo facto dos tumores não produzirem hormonas tiroideias, logo não capta iodo. Um carcinoma não dá hipertiroidismo. Suspeitos de malignidade. Há ainda uma situação em que pode ser necessária a cintigrafia (para distinguir um nódulo quente): Bócio multinodular num doente da Guiné (por exemplo) – como é um doente que não tem fácil acesso a um sistema de saúde (medicação), a tiróide não pode ser toda retirada pelo risco de se induzir um hipotiroidismo. Então através da cintigrafia vemos qual é o nodulo dominante e apenas retiramos esse nódulo.
Citológicos Biopsia por Agulha fina (citologia) – não permite distinguir um adenoma ou um carcinoma folicular. Tem que ser feita “Biopsia” que é no fundo uma lobectomia. Permite avaliar neoplasias, tiroidite de Hashimoto e linfoma.
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A saber para exame Se tivermos hipotiroidismo o que temos diminuído são as formas livres T3 e T4. No hipertiroidismo temos as formas livres elevadas. Definição de bócio Existem dois grandes grupos de tumores da tiróide, com prognósticos completamente diferentes, são os tumores diferenciados e os tumores indiferenciados. Sinais e sintomas de hipo e hipertiroidismo. Os auto-anticorpos envolvidos na doença de Graves são: LATS, TSI, TGHA, MCHA. Dos tumores bem diferenciados, o que tem maior predilecção para metastizar para as cadeias ganglionares é o carcinoma papilar, pois tem linfotropismo.
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ESÓFAGO “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” José Saramago
TIPOS DE PATOLOGIA Funcional – há doença mas pode não haver um substrato histo-patológico (alterações marcadas histopatológicas) Acalásia Espasmo difuso Orgânica – são objectiváveis lesões morfológicas Neoplasias Divertículos
SINTOMAS Independentemente da origem funcional ou orgânica da doença, os sintomas esofágicos são os mesmos: Disfagia Permanente e progressiva para alimentos sólidos, pastosos e líquidos – muito sugestiva de uma lesão orgânica, muito provavelmente uma neoplasia do esófago. Há 2 tipos de alimentos que encravam/impactam mais no esófago: carne e pão. Flutuante e esporádica para alimentos sólidos ou líquidos – muito sugestivo de doença funcional. Doentes com doença espástica do esófago se estiverem a comer e beberem um copo de água gelada entretanto podem ter uma reacção espástica, que conduz a uma disfagia. Deste modo, por vezes há uma disfagia para alimentos a temperaturas extremas ou picantes. Outras causas são a ansiedade e a agitação. Alta vs baixa – normalmente os doentes conseguem discriminar bem (“a comida não passa aqui”). Regurgitação – regresso passivo de alimentos anteriormente deglutidos à boca. Dá uma sensação de azedo, ou de sabor dos alimentos que ingerimos, sendo uma sensação desagradável mas não dolorosa. Acontece, por exemplo, se comermos muito e nos baixarmos, sobretudo para líquidos. Vómitos – regresso activo de alimentos à boca, anteriormente deglutidos. Muitas vezes acompanhados de náuseas (sensação desagradável de mal-estar). Acontece por contracção muscular do estômago, esófago e, eventualmente, intestino e parede abdominal. Podem ter como consequência cansaço, malestar e dores abdominais. Sialorreia – incapacidade de deglutir a saliva. Entre todas as glândulas salivares (major, como as parótidas, submaxilares e sublinguais, ou minor, que são contiguas pela mucosa oral), produzimos, por dia, 600 a 1000cc de saliva. Habitualmente não damos por isso porque engolimos sem qualquer esforço, de forma inconsciente. No entanto, se tivermos uma lesão orgânica, particularmente neoplásica, no esófago, é difícil deglutir a saliva, o que se torna incomodativo para os doentes (“água na boca que não consegue engolir”). Estes são aqueles doentes que estão na sala de espera, constantemente a cuspir, com uma disfagia alta. 46
Dor – tipicamente retroesternal (muitas vezes confundida pelos doentes, particularmente quando não há sintomas acompanhantes, com patologia cardíaca). Intensidade variável – do desconforto à dor intensa Altura da dor – alta ou baixa. A localização da dor normalmente corresponde ao local da lesão.
MEIOS COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO Rx baritado Apesar de antigo continua a ser muito importante. O doente ingere contraste baritado e faz-se o acompanhamento radiográfico da deglutição, que permite ver se a peristalse se está a fazer correctamente ou se está alterada e irregular. Muito útil para o cirurgião porque dá uma noção concreta do nível a que se encontra a lesão. Endoscopia digestiva alta Permite ver, biopsar e, eventualmente, tratar algumas lesões do esófago, através da extracção de corpos estranhos, da introdução de próteses ou da esclerose de varizes esofágicas sangrantes. Eco-Endoscopia Exame com um endoscópio onde se introduz, num dos canais de trabalho, uma sonda ecográfica, o que nos permite ter uma visão a 360o em torno do lúmen do esófago. Podemos ver a parede (regular ou não) e para além desta (se há gânglios aumentados, se há aderências do esófago a outros órgãos). pH-metria (24h) O esófago é revestido por epitélio pavimentoso estratificado não queratinizado, estando preparado para as agressões mecânicas. No entanto, defende-se mal das agressões químicas (sucos gástricos, bílis). Se o refluxo gastro-esofágico for esporádico, o esófago protege-se com um aumento da peristalse, conseguindo fazer uma “lavagem”. Quando a exposição ao refluxo é constante, vai desencadear-se uma reacção inflamatória denominada esofagite. É importante fazer pH-metria das 24h para perceber em que momentos o pH está baixo no esófago. Manometria Estuda a contractilidade esofágica. O esófago é dotado de uma peristalse muito activa e forte, sendo que a manometria permite detectar situações em que a peristalse não é tão eficaz quanto deveria ser. TAC e RMN Estudo morfológico. PET Capta imagens de zonas que têm metabolismo de carbono muito activo, associado a proliferação celular – neoplasias.
PATOLOGIAS Acalásia É uma patologia funcional, em que morfologicamente o esófago está bem mas, tipicamente, na sua extremidade inferior há uma zona que não consegue distender, estando espástica.
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É uma doença idiopática, dado que, analisando este afilamento que se forma na extremidade inferior do esófago, não é possível encontrar alterações morfológicas consistentes. A doença de Chagas, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, vai provocar uma situação em tudo semelhante à acalásia, mas onde se consegue detectar os protozoários a destruir o plexo mioentérico de Auerbach. Havendo períodos de maior estenose espástica do esófago, o esófago a montante tende a distender-se, formando um depósito dos alimentos que não conseguem progredir para o estômago. Sintomas Disfagia paroxística – pode ser muito marcada e desaparecer de um dia para outro. Pode ser causada por situações de ansiedade para o doente, alimentos muito quentes ou muito frios ou pode não se conhecer a causa. Regurgitação – dos alimentos que se acumulam no esófago Dor – sobretudo na altura em que se dá o espasmo, pode ser descrita como um espasmo, um aperto ou uma queimadura com projecção pré-cordial. ECDs Radiografia – vê-se um esófago dilatado com um afilamento da sua extremidade inferior, cujo revestimento mucoso é muito linear, nada rugoso, ao contrário do que acontece com a neoplasia do esófago, que pode dar imagens parecidas, mas com irregularidade da mucosa. Manometria – detecta-se uma ausência de peristalse durante o espasmo. Complicações Aspiração de vómito com pneumonia de aspiração – particularmente em doentes mais idosos ou com co-morbilidades, que têm os reflexos do vómito e da tosse abolidos, o que permite a passagem de alimentos da faringe para a laringe. Risco de adenocarcinoma nas zonas da acalásia, não se conhecendo a causa. Terapêutica Bloqueadores dos canais de cálcio – para evitar os espasmos Injecção por via endoscópica de toxina botulínica – neutraliza as placas musculares motoras, com bloqueio do músculo liso, evitando o espasmo. Com pouco êxito. Dilatação pneumática – coloca-se um tubo pelo esófago e insufla-se um balão na zona da acalásia, forçando essa região a dilatar. Os efeitos são muito passageiros (dias), não sendo considerada uma terapêutica eficaz. Operação de Heller – quando a sintomatologia é muito marcada e há riscos associados (adenocarcinoma, pneumonia de aspiração). Consiste em fazer uma incisão longitudinal da parede muscular até à mucosa com cerca de 6cm (4cm no esófago e 2cm no estômago), sem abrir a mucosa, por via laparoscópica ou por laparotomia, impedindo assim a contracção do músculo esofágico. Para que o doente não fique com refluxo gastro-esofágico muito significativo, associa-se uma fundoplicatura para tratar a hérnia do hiato.
Espasmo difuso É uma patologia funcional do esófago, com aspectos sintomáticos muito semelhantes aos da acalásia, também intermitentes, provocando disfagia aquando do espasmo, que é acompanhado de dor torácica. 48
ECDs Radiografia – durante a crise espástica observa-se uma imagem típica de “esófago em saca-rolhas”, sendo possível observar as contracções terciárias do esófago, que são contracções sem capacidade propulsora do conteúdo esofágico. O espasmo pode ser provocado propositadamente antes do exame, por exemplo, através da ingestão de uma bebida fria se o doente se queixa de episódio espástico nessas situações. Manometria – permite perceber que são vários os níveis em que a motilidade não se faz de maneira normal pH-metria de 24h – normal, dado que esta situação não se associa normalmente a um refluxo significativo.
Divertículos Há 2 tipos principais de divertículos que podem acontecer em qualquer órgão: Verdadeiros divertículos – abaulamento da parede em que encontramos todos os seus componentes estruturais (exemplo: esófago – mucosa, submucosa, muscular e serosa) Falsos divertículos ou pseudodivertículos – abaulamentos constituídos unicamente pela porção mucosa do órgão. Devem-se a um enfraquecimento da parede do órgão (ao nível da muscular), associado a um aumento da pressão intraluminal que, encontrando um ponto fraco, vai projectar a mucosa para fora. Consoante o nível a que se encontram, temos 3 tipos de divertículos, que apresentam fisiopatologia diferente: Superior ou Proximal – Divertículo de Zenker – encontra-se na transição entre a faringe e o esófago, normalmente, entre os músculos constritores médio e inferior da faringe. É um divertículo de pulsão, o que significa que há um problema funcional do esófago que faz com que a pressão intraluminal esteja aumentada, o que, conjugado com uma fraqueza existente nesta zona de transição entre as fibras musculares da faringe e do esófago, leva à formação de um divertículo. Forma-se de dentro para fora. A sintomatologia associada é: - Disfagia – porque os alimentos que deviam seguir para o esófago vão alojar-se no divertículo, o que dificulta a passagem dos alimentos. - Regurgitação de alimentos não digeridos – sobretudo quando a pessoa está deitada - Aspiração - Gorgolejo cervical – sobretudo quando há ingestão de líquidos - Halitose – devido à decomposição dos alimentos nos divertículos A terapêutica é cirúrgica e consiste em seccionar o músculo (miotomia), expondo o divertículo. Em seguida, opta-se por suturar o divertículo à fáscia pré-vertebral, o que o impede de encher, ou então excisa-se o divertículo. Médio – projecta-se ao nível da bifurcação da traqueia, que se localiza imediatamente adiante deste, traccionando-o para diante, o que leva à formação de um divertículo de tracção. Forma-se de fora para dentro. 49
Na bifurcação da traqueia, junto aos brônquios principais, tipicamente, encontram-se gânglios que podem aumentar de volume, sobretudo em caso de tuberculose pulmonar. Estes gânglios têm uma grande capacidade de aderir às estruturas vizinhas devido a fibrose, aderindo então ao esófago. Como a traqueia está sempre em movimento (movimentos respiratórios), vai traccionando a parede anterior do esófago, criando um divertículo. Inferior ou Distal – Epinéfrico – assim denominado por se localizar junto ao diafragma. O mecanismo fisiopatológico é semelhante ao do 1/3 superior, sendo também de pulsão. Ocorre um desfasamento da peristalse e um aumento de pressão intraluminal, o que faz com que a mucosa esofágica se projecte para o exterior.
DRGE – doença de refluxo gastro-esofágico O epitélio de revestimento do esófago é estratificado pavimentoso não queratinizado, resistindo bem às agressões mecânicas, mas pouco às agressões químicas. A transição da mucosa esofágica para gástrica faz-se abruptamente, sendo a mucosa do estômago revestida por epitélio cilíndrico simples, com boas defesas contra as agressões químicas e más contra as agressões mecânicas. O esfíncter esofágico inferior não é um esfíncter anatómico, mas sim um esfíncter funcional. Se tivermos um esófago curto, cuja extremidade tende a projectar-se ao nível do tórax, o conteúdo gástrico vai banhar com muita frequência a extremidade inferior do esófago, o que vai condicionar um processo inflamatório desta região – esofagite. 50
Sintomas A DRGE é, então, uma doença que resulta do refluxo frequente e continuado de conteúdo gástrico para o esófago, que se manifesta por: Dor tipo queimadura (heartburn) Regurgitação Hérnia de deslizamento – projecção de uma estrutura abdominal (estômago) para o tórax. Esofagite – inflamação, inicialmente da mucosa, que depois se vai estender a toda a parede do esófago, bem visível na endoscopia. Classifica-se em 4 graus: I. Hiperémia da mucosa sem ulceração II. Úlceras lineares sangrando ao toque III. Úlceras coalescentes IV. Estenose – por cicatrização fibrótica das úlceras Metaplasia de Barrett – de epitélio estratificado pavimentoso para cilíndrico simples ECDs Endoscopia Manometria – permite a detecção de uma motilidade anómala pH-metria de 24h – permite ver que todo o esófago, mas sobretudo a porção baixa, está constantemente sujeita a um pH baixo. Rx baritado – vê-se uma estenose mas com os contornos mucosos bem delineados (processo benigno). Tratamento Correcção da hérnia de deslizamento – por via torácica mas principalmente abdominal. Um dos procedimentos mais utilizados é a fundoplicatura de Nissen, que pode ser feita por via aberta ou laparoscópica, em que se liberta a grande tuberosidade do estômago e se faz passar por detrás do esófago e do estômago, de modo a vir fechar à frente. Basicamente, o fundo do estômago está dobrado/plicado sobre a junção esófago-gástrica, formando uma válvula que impede o refluxo. Faz-se ainda aproximação dos pilares do diafragma, de modo a estreitar o hiato esofágico.
Hérnia paraesofágica Se existir um ponto fraco no diafragma, que não seja do hiato, por aumento da pressão intra-abdominal, o estômago, particularmente a grande tuberosidade, tende a passar para a cavidade torácica, dado que a pressão intra-abdominal é sempre maior que a pressão intra-torácica. Sintomas Em termos de sintomas, estas hérnias, mesmo que tenham grandes dimensões, podem ser assintomáticas (sem refluxo, sem esofagite), ou então podem dar sintomas mecânicos: Desconforto Disfagia – porque repuxam o estômago e dificultam a passagem de alimentos do esófago para o estômago por compressão do esófago 51
Estes sintomas podem estimular o coração, pelo que muitos destes casos são diagnosticados pelo cardiologista, quando faz um ecocardiograma ou mesmo um ECG, dado que podem dar alterações da condução eléctrica cardíaca. Complicações Estrangulamento – diz-se que uma hérnia está estrangulada quando o seu conteúdo se encontra em isquémia. Hemorragia – por erosão dos vasos da parede gástrica. ECDs Estudo esofágico por Rx baritado em posição de Trendelenburg – doente deitado na marquesa, com a cabeça mais baixa que o tronco. Vê-se encher a porção herniada do estômago. Se a hérnia crescer muito, pode englobar a porção de diafragma que separa o hiato esofágico do orifício onde se originou a hérnia, não se tendo uma hérnia do hiato (tipo I) nem uma hérnia paraesofágica (tipo II), mas sim uma hérnia mista.
Neoplasias São relativamente raras e de mau prognóstico. As neoplasias pavimento-celulares são as mais comuns, estando a aumentar a incidência de adenocarcinoma. São mais frequentes nos homens, entre a 5ª e a 7ª décadas de vida. Factores predisponentes Tabaco Álcool Ingestão de alimentos/bebidas muito quentes Má higiene oral Acalásia DRGE Sintomas Disfagia progressiva para sólidos/líquidos Grande perda de peso – por exemplo, 10Kg em 1 mês Dor a engolir Rouquidão – por invasão do nervo recorrente, que passa paralelamente ao esófago Queixas respiratórias - Regurgitação/ aspiração - Fístula tráqueo-esofágica – muito difícil de tratar. Acontece quando temos uma neoplasia na face anterior do terço médio do esófago. Como adiante tem a face posterior da traqueia, onde o anel cartilagineo termina em ferradura e por trás tem uma membrana fibro-muscular, se houver uma aproximação do tumor a essa lâmina, pode formar-se uma fístula. Em termos sintomáticos, é uma situação grave, dado que, se o doente ingerir alguma coisa que passe através da fístula, vai de imediato desencadear o reflexo da tosse, engasgar-se, etc. ECDs Endoscopia digestiva alta com biópsia
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Rx baritado – o contorno da mucosa ao nível da estenose já é irregular e não linear como se via na patologia benigna. TAC torácica/abdominal Eco-endoscopia – muito usada no esófago, porção proximal do estômago e neoplasias do recto. Permite perceber se o tumor tem crescimento endoluminal ou para fora da mucosa. Broncoscopia – quando pode haver invasão da traqueia ou brônquios. Terapêutica Ressecção esofágica – é uma cirurgia complexa. Pode ser feita com 3 incisões, por via abdominal, torácica e cervical, ou então usam-se apenas as incisões cervical e abdominal, fazendo-se o descolamento do esófago ao nível torácico “às cegas”, apenas com os dedos. Interposição do estômago, cólon ou intestino delgado Rádio e quimioterapia neoadjuvantes
Corpos estranhos Removidos com uma peça específica do endoscópio que permite colocar o corpo estranho no seu interior e retirá-lo em bloco, evitando a rasgadura do esófago.
Varizes esofágicas A sua principal causa é a cirrose, com hipertensão portal, que leva à dilatação das veias gástricas e esofágicas, entre outras. Podem ser submucosas ou
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MAMA EMBRIOLOGIA Embriologicamente, a glândula mamária tem origem na ectoderme. Entre a 6ª e a 7ª semana de vida aparece um espessamento epiblástico que é a chamada crista mamária, a qual vai desde a região axilar até à região inguinal. As cadelas e as gatas têm glândulas mamárias desde a região axilar até à região inguinal. No humano, por volta da 8ª/9ª semana, este espessamento desaparece e o esboço da futura mama permanece apenas na região torácica. Por volta do 5º mês começa a formar-se a aréola e os galactóforos primários. Os galactóforos primários são os ductos principais (ductos de 1ª ordem) que se encontram em posição retro-aréolar e retromamilar, sendo que, por volta do 7º mês estes ductos se vão canalizar até às unidades lobulares. Se entendermos a mama como uma fábrica produtora de leite, temos as unidades de produção, que são os lóbulos, e temos uma unidade de transporte, que são os ductos e, portanto, esta união dos ductos aos lóbulos faz-se por volta do 7º mês. Por volta do 8º mês há o aumento do tecido conjuntivo, o aumento do volume da glândula, forma-se o mamilo e os canais galactóforos abrem-se no mamilo homolateral. Aquando do parto, o indivíduo tem 15 a 20 unidades lóbulo-ductais em cada mama. Estas unidades são capazes de funcionar logo nesta altura, o que significa que o recém-nascido pode produzir leite.
ANATOMIA Os ácinos são as unidades produtoras, os lóbulos são os conjuntos dos ácinos, os lobos são o conjunto dos lóbulos. Os dúctulos vão de 7ª a 1ª ordem, sendo que os dúctulos de 1ª ordem (galactóforos primários) são dúctulos retro-aréolares que terminam no seio lactífero. Depois do seio lactífero, cada uma das árvores ductais termina por um poro no mamilo, daí existirem 15 a 20 poros no mamilo. Para além do tecido lobular e ductal, existe também tecido conjuntivo e tecido adiposo. As unidades funcionais são as unidades ducto-lobulares terminais e entre estas unidades existe tecido conjuntivo e adiposo (estroma de sustentação). Nestas unidades existe um epitélio cúbico de monocamada, com excepção dos galactóforos primários que têm um epitélio de dupla camada. Para fora do epitélio cúbico de monocamada existe a camada mioepitelial, isto é, existe uma camada muscular adjacente à camada epitelial. Esta camada muscular empurra o leite através dos ductos. Por fora destas camadas existe a membrana basal que tem um papel muito importante quando se fala de cancro. Trata-se de um carcinoma intraducto ou in situ, quando este se localiza apenas dentro do ducto, não tendo atravessado a membrana basal e, por isso, não alcança o tecido conjuntivo e os vasos linfáticos ou venosos, não havendo assim metastização. Um carcinoma invasivo é aquele que não se restringe ao interior do ducto, tendo já rompido a membrana basal e se estendido ao tecido circundante, podendo metastizar. Deste modo, a membrana basal é a fronteira entre o carcinoma in situ e o carcinoma invasivo. Em termos práticos, a primeira camada da mama é constituída por pele, a qual tem características especiais na placa aréolo-mamilar. A segunda camada é constituída por tecido adiposo que é interrompido na zona da placa aréolo-mamilar. A terceira camada é composta pelo conjunto dos lobos e dos ductos, atrás dos quais existe outra camada de tecido adiposo. Depois segue-se a aponevrose anterior
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do músculo grande peitoral, o próprio músculo e a sua aponevrose posterior. A seguir, encontra-se o músculo pequeno peitoral e, por fim, a parede torácica. Existem ainda os ligamentos de Cooper, que são estratos fibrosos rígidos que vão desde a aponevrose anterior do grande peitoral até à pele. A sua função é manter a forma da mama erecta, ou seja, um peito sem ptose tem os seus ligamentos de Cooper sob tensão. Quando a mulher engorda muito ou engravida, estes ligamentos, que não são elásticos mas sim rígidos, rompem, levando à ptose mamária. A mama estende-se anatomicamente desde o 2º até ao 6º arco costal, o seu limite interno é habitualmente o bordo esternal, o seu limite externo é a linha axilar mediana, não tendo o aspecto de “ovo estrelado” devido à cauda de Spence (tecido mamário que penetra na axila). Em termos cirúrgicos, o bordo superior da mama é a clavícula e o seu bordo inferior é o bordo inferior da 6ª costela. Atrás da mama, nos 2/3 superiores está o músculo grande peitoral e no 1/3 inferior está o músculo serrato anterior. Por uma questão de nomenclatura, a mama pode ser dividida em 4 quadrantes: QSE (quadrante supero-externo) QSI (quadrante supero-interno) QII (quadrante infero-interno) QIE (quadrante infero-externo) Placa aréolo-mamilar Esta divisão é puramente geométrica, porque o volume mamário de cada um dos quadrantes é diferente, não há a mesma quantidade de tecido mamário em cada um dos quadrantes e não há inervação ou rede arterial, venosa ou linfática individual para cada um dos quadrantes, isto é, não há territórios próprios de drenagem para cada quadrante. Para além da mama propriamente dita, é necessário ter em atenção a região axilar, já que esta é uma região extremamente importante em termos oncológicos, pois 75% da linfa de toda a mama é drenada para a axila. A região supra-clavicular também é importante em termos de metastização do cancro, sendo acessível à palpação. A região mamária interna só é acessível através de TC ou RMN (não é acessível à palpação), mas não pode deixar de ser tida em conta, pois também ela é uma região de drenagem linfática da mama. As artérias que irrigam a mama são, fundamentalmente, a mamária interna e a mamária externa e, ainda, ramos das artérias intercostais. A drenagem venosa da mama é feita pelas veias mamária interna, mamária externa e veias intercostais. A inervação é feita pelos ramos dos 2º, 3º, 4º e 5º intercostais que vêm do nervo intercostal, além destes, é feita também pelo nervo intercostobraquial de Hyrtl (ou nervo anastomótico do 2º intercostal) que sai do 2º intercostal, atravessa a axila e é responsável também pela inervação da face interna do braço e, ainda, por ramos dos nervos supraclaviculares. A drenagem linfática da mama é muito importante, considerando-se basicamente, dois plexos: o subareolar (superficial) e o profundo. O plexo subareolar drena para os gânglios torácicos laterais (grupo I da região axilar), para o grupo central (grupo II), para o grupo subclávio e para o grupo da mamária interna. O plexo profundo, habitualmente, drena apenas para o grupo da mamária interna e para o subclávio através dos gânglios de Rotter. O espaço de Rotter fica entre o grande e o pequeno peitoral e contém gânglios linfáticos. Além destes plexos, existem ainda vias de drenagem para o fígado e para o diafragma, designadas de vias de Gerota, e a via intermamária, onde há anastomoses entre as duas cadeias mamárias internas. Segundo Berg, a axila pode ser dividida em 3 níveis: 55
Nível I – entre o bordo anterior do músculo grande dorsal e o bordo externo do músculo pequeno peitoral. É o nível que tem o maior número de gânglios linfáticos, sendo também o mais externo e o de mais fácil acesso. Nível II – fica atrás do músculo pequeno peitoral e engloba os gânglios que ficam entre os músculos grande e pequeno peitoral (espaço de Rotter). Nível III – é interno e superior, correspondendo ao vértice da axila. Quando é necessário fazer esvaziamento axilar (actualmente, só se efectua esvaziamento axilar se houver gânglios sentinela positivos), habitualmente age-se apenas nos níveis I e II. Teoricamente não há vantagem em excisar o nível III porque raramente existe metastização a este nível e, além disso, aumenta o risco de linfedema (pois secciona-se e laqueia-se mais linfáticos). Só se mexe no nível III se houver patologia macroscopicamente visível a este nível. Quando se faz o esvaziamento do nível I e II costuma-se obter um mínimo de 10 gânglios (podem ir de 8 a 30 gânglios excisados). Os linfáticos supraclaviculares, que também são importantes, são acessíveis à palpação pedindo ao doente para encolher os ombros e insinuando os nossos dedos no escavado supraclavicular. Como já referido, os gânglios linfáticos da mamária interna não são acessíveis à palpação.
DESENVOLVIMENTO E FISIOLOGIA Fase Perinatal e Infância Na fase perinatal, as 15 a 20 unidades peri-ductais estão funcionais, deste modo, por acção da progesterona e dos estrogénios transplacentários um recém-nascido pode ter um ingurgitamento mamário e pode, inclusivamente, produzir leite. Esta é das poucas patologias mamárias habituais na fase perinatal. Na infância a criança cresce em termos de altura e a mama cresce com ela, mas não há crescimento ântero-posterior. Na infância existem 4 a 6 lóbulos tipo I por cada unidade peri-ductal. Puberdade Na puberdade, por acção da LH e da FSH produzidas na hipófise, começa a haver a produção de estrogénios e progesterona a nível dos ovários e a proliferação de tecido granular, tecido adiposo e tecido conjuntivo na mama. Na primeira fase do ciclo menstrual ocorre a subida de estrogénios, com um pico aquando da ovulação, depois os estrogénios baixam e na segunda fase do ciclo a progesterona começa a subir. Na puberdade os estrogénios são responsáveis pela proliferação dos ductos, enquanto que a progesterona estimula o crescimento dos lóbulos (que passam a ser 6 a 11 por cada unidade peri-ductal – lóbulos tipo II). Em termos práticos, o crescimento da mama pode ser dividido segundo os estadios de Tanner: I. Elevação do mamilo II. Tecido glandular subareolar. Projecção anterior da mama e mamilo III. Corpo glandular > aréola. Pigmentação IV. Aumento da aréola que se destaca anteriormente com o mamilo V. Aréola e mamilo no mesmo plano da mama Fase adulta 56
Na mulher adulta ocorrem as alterações cíclicas mensais. Na segunda fase do ciclo (7 a 10 dias antes da menstruação) é normal haver a chamada tensão pré-menstrual (TPM) ou mastalgia cíclica. Esta tensão pré-menstrual está relacionada com o facto de os estrogénios estarem a baixar e o aumento de progesterona não é o suficiente, o que leva à tensão mamária. Gravidez Na gestação há um aumento do volume glandular e não estromal, devido aos estrogénios e progesterona placentários e, também, devido a factores de crescimento com a insulina e a GH. Se a mulher engordar, a mama também ganha tecido adiposo. A aréola e o mamilo, que até aí eram rosados, durante a gravidez começam a ficar acastanhados (aumento da pigmentação aréolo-mamilar). Nesta fase, aparecem as glândulas de Montgomery, que são glândulas areolares que todos os indivíduos têm mas que passam despercebidas. As glândulas de Montgomery são glândulas produtoras de material sebáceo para lubrificar uma eventual amamentação. Os lóbulos, que na mulher adulta são de 11 por unidade, na gestante passam a ser 80 por unidade periductal (lóbulos tipo III). Durante o 3º trimestre, com o aumento da prolactina, surgem os lóbulos tipo IV, que são 120 por unidade peri-ductal. Apesar da hiperprolactinémia, no 3º trimestre não há lactação porque a dopamina inibe a prolactina. No parto, com a dequitadura placentária, há uma descida dos níveis de estrogénios e dopamina levando ao desbloqueio dos receptores de prolactina. Se a dequitadura placentária não for completa, a mulher não produz leite, isto é, não há a “subida de leite” (quando não acontece a “subida de leite” é necessário investigar se ficou placenta retida no útero e retirá-la). A produção de leite começa aquando do parto, mas a mama tem que encher, de modo que só há emissão de leite a partir do 2º/4º dia. A emissão de leite é mantida pelas terminações nervosas no mamilo e na aréola através de arcos reflexos e pela própria oxitocina. Se durante 48 horas parar o estímulo no mamilo, isto é, a mulher deixar de colocar a bomba para tirar leite ou o bebé deixar de mamar, a lactogénese desce abruptamente e, habitualmente, já não recupera. Na mama, as células dos lóbulos só atingem a sua maturidade quando produzem leite, sendo esta maturação gradual. Pensa-se que são necessários, pelo menos, 3 meses de lactação para que haja a maturação completa destas células. Além de trazer benefícios à criança, a lactação é muito boa para a mãe pois quanto mais vezes e mais tempo se amamentar, menor será o risco de cancro de mama. Por cada filho, a amamentação deverá ser feita num período mínimo de 3 meses, sendo que a partir de 1 ano não há qualquer vantagem em termos de diminuição do risco de cancro de mama. Em termos de fome, pode haver vantagem e, deste modo, a FAO – Food and Agriculture of the United Nations – preconiza 2 anos de amamentação. Com a cessação da amamentação, diminui a oxitocina e, consequentemente, a lactogénese. Os lóbulos tipo IV passam a tipo III, mantendo a diferenciação ou maturação total. Involução mamária A involução mamária começa entre os 30 e os 35 anos. A partir desta idade há um aumento paulatino da FSH pois começa a haver necessidade de um maior estímulo para a produção ovárica. Aquando da menopausa os estrogénios e a progesterona estão reduzidos a 1/10 dos seus níveis, sendo este um momento importante na involução mamária. A mama é hormono-dependente (na mulher fértil acontecem alterações cíclicas mensais) e na ausência destas hormonas vai haver uma involução e um envelhecimento mais rápido com a diminuição do número de lóbulos por unidade e o aumento de tecido adiposo. 57
Há uns anos atrás, todas as mulheres, com excepção das que tinham contra-indicações (tromboembolismo dos membros inferiores, EAM, AVC ou alergia à própria terapêutica), faziam terapêutica hormonal de substituição durante o climatério. Actualmente, nenhuma mulher faz terapêutica hormonal de substituição, excepto as mulheres com indicação clara. Desde 2006 que a Associação Americana de Obstetrícia e Ginecologia defende que a terapêutica hormonal de substituição aumenta o risco de cancro e que é mais eficaz tratar os sintomas do climatério isoladamente. As mulheres têm mais cancro de mama que os homens porque têm maiores níveis de estrogénios. Um homem com hiperestrogenismo tem maior risco de cancro de mama, do que um homem com estrogénios normais. Uma menarca precoce com uma menopausa tardia e associação de terapêutica hormonal, significa muitos anos de flutuações de estrogénios, o que vai condicionar um maior risco de cancro da mama.
PATOLOGIA RELACIONADA A síndrome de Poland é a ausência de uma mama (amasia) e, neste caso, também do músculo grande peitoral. Sendo uma patologia rara, pode surgir tanto em homens como em mulheres. Mamas supra-numerárias surgem quando a crista mamária não desaparece totalmente. Nestas imagens observam-se mamas supra-numerárias axilares. Os mamilos supra-numerários são uma alteração mais frequente. A diferença entre um mamilo e um nevo é que o mamilo tem contracção muscular quando estimulado. Nestas imagens é possivel observar mamas tuberosas. Neste tipo de mama há uma herniação do tecido mamário para dentro da placa aréolo-mamilar. Esta é uma situação congénita e relativamente rara, que começa a manifestar-se na puberdade. Por razões estéticas, é possivel fazer correcção cirurgica. Nas imagens observa-se hipoplasia mamária. A hipertrofia virginal trata-se de hipertrofia mamária em jovens adolescentes. Habitualmente, faz-se a redução mamária no mínimo aos 16 anos de idade e idealmente aos 18 anos, pois até aí a mama está em crescimento. Antes do parto o mamilo está invertido e aquando do parto everte. Se esta eversão não se fizer correctamente o mamilo permanece invertido. Na imagem observa-se um mamilo parcialmente invertido designado por mamilo em chave de fendas, sendo esta uma situação congénita. É de notar que mamilo invertido não é sinónimo de mamilo retraído. A retracção mamilar implica situações patológicas mais graves.
HISTÓRIA CLINICA Doença actual A dor é um sintoma que assusta muitas mulheres, no entanto, apenas 15% dos cancros dão dor. Em termos de mama a dor designa-se de mastalgia. 58
Um nódulo também é um motivo de consulta frequente. Outros motivos de consulta são o corrimento mamilar, as alterações da pele, do mamilo ou da aréola e, ainda, traumatismos recentes. Cancro de mama e traumatismos mamários não têm qualquer ligação causal. Com excepção do traumatismo, é importante perceber a evolução cronológica de todos os outros sintomas acima referidos. Por exemplo, se houver relação entre o aumento do volume de um nódulo e o ciclo menstrual, provavelmente, trata-se de um quisto mamário, mas se for um fibroadenoma ou uma neoplasia não há aumento do seu volume na fase pré-menstrual. Antecedentes pessoais Os antecedentes pessoais importantes: Idade da menarca Características do ciclo menstrual História obstétrica com índice obstétrico T.PT.AE.FV (partos de termo/partos de pré-termo/abortos espontâneos/filhos vivos) Idade da 1ª gravidez completa, gravidezes de alto-risco. A idade da 1ª gravidez completa acima dos 30 anos aumenta o risco de cancro de mama em 15 a 18%. Parto eutócico ou distócico. Sexo e idade dos filhos. As filhas de mulheres jovens com cancro de mama, devem começar a ser seguidas mais cedo do que as outras mulheres. Duração do aleitamento e mastites durante este período. Idade da menopausa, para, em conjunto com a idade da menarca, calcular se a mulher teve muitos anos de ciclos menstruais e, consequentemente, se esteve exposta a hiperestrogenismo durante muitos anos. Traumatismo mamário. História prévia de patologia mamária, ginecológica ou neoplasia. Hábitos alimentares, alcoólicos e farmacológicos. Existem fármacos que interferem com a mama: alguns antidepressivos causam galactorreia (produção de leite fora da amamentação) e outras drogas provocam ginecomastia no homem. Se for necessário fazer biópsia ou cirurgia é importante saber se o doente toma medicação antiagregante ou anticoagulante. Se houver suspeita que a doente tem cancro de mama é necessário parar de tomar a pílula anticoncepcional ou a terapêutica hormonal de substituição. O tabaco, o café, o chá preto, a coca-cola e o chocolate têm alguma influência na mama, nomeadamente, no aumento do volume dos quistos mamários. A relação do tabaco e do álcool com o risco de cancro de mama ainda está mal explicada. Antecedentes familiares Se na família houver casos de cancro da mama, do ovário, da próstata, do cólon, do pâncreas ou melanomas, averiguar se são em familiares em 1º grau (mãe, irmãs, filhas, pai, irmãos ou filhos). Se o aparecimento de alguma destas neoplasias for abaixo dos 35 anos, isto é suspeito de hereditariedade. Todos os cancros de mama são genéticos, sendo que 90 a 95% deles são esporádicos e 5 a 10% são hereditários. Também interessa saber se há familiares em 2º grau (tias, avós, tios ou avôs) com as neoplasias acima referidas. Actualmente, também se dá importância aos familiares de 3º grau (primas, bisavós, primos e bisavôs). Exame objectivo Inspecção – Com a doente sentada ou em pé e depois deitada, podendo também pedir-se para que se posicione em decúbito lateral. O médico deve olhar para as mamas enquanto a senhora coloca os braços
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pendentes, depois elevados a 45o, depois pede-se para colocar as mãos na cintura e fazer força de modo a contrair o grande peitoral e depois que debruce o tronco a 30/45o. Quando um tumor envolve o ligamento de Cooper, a pele vai ser repuxada para dentro. Esta depressão cutânea é ainda mais visível aquando da contracção do músculo grande peitoral. Em termos de inspecção é importante verificar se há: Assimetrias Alterações do contorno (retracção ou bosseladura) Sinais inflamatórios Edema da pele (pele em casca de laranja) Alterações do mamilo (inversão, retracção, corrimento, descamação ou doença de Paget) Nesta imagem observa-se uma assimetria que não é adquirida. A doente refere que uma mama sempre foi maior do que outra, o que afasta a hipótese de ser um fibroadenoma gigante ou um quisto gigante o responsável por esta diferença de volumes. Estamos perante mamas normais com assimetria congénita. Esta imagem é relativa a uma criança de 11 anos, transferida de S. Tomé e Principe para um centro oncológico em Portugal. Na mama direita observa-se um fibroadenoma gigante, sendo a mama esquerda normal para a idade da doente. Após cirurgia para remoção do fibroadenoma a menina ficou totalmente bem. Na imagem observa-se uma retracção dos quadrantes internos, sob a qual se encontra uma neoplasia. Nesta imagem é posssivel observar mamilos e aréolas diferentes. O mamilo esquerdo não é invertido, mas sim retraído. Quando a senhora levanta os braços, as pequenas depressões que são visíveis são sugestivas de neoplasia. O mamilo invertido está puxado para dentro, enquanto que o mamilo retraído está cá fora mas está em menor relevo. Nas imagens observam-se bosseladuras. Na imagem da esquerda observa-se uma bosseladura provocada por um dreno que, erradamente, não foi retirado quando a doente, 12 anos antes, teve uma mastite por amamentação. Na imagem da direita observa-se uma bosseladura por quisto mamário. Estas imagens são relativas a mastites. Na imagem superior observa-se uma mama com sinais inflamatórios evidentes devido a uma mastite puerperal (por amamentação) e verifica-se placas aréolo-mamilares mais escuras, características da gravidez e do aleitamento. Na imagem inferior, além dos sinais inflamatórios, observa-se um mamilo fendado e outro invertido, sendo esta situação característica de mulheres fumadoras (90% das doentes são fumadoras). Esta doença é recidivante e designa-se de mastite peri60
ductal. A nicotina e os diversos componentes do tabaco prejudicam a microcirculação, ficando a microcirculação da camada mioepitelial dos ductos mamários afectada, diminuindo a motilidade dos ductos, o que leva à acumulação de líquido intra-ductal e esta estase pode conduzir a inflamação e, em última instância, a infecção. Por vezes, estas mastites peri-ductais podem fistulizar à pele. Na imagem da esquerda observa-se um mamilo invertido congénito e na imagem da direita observa-se o mesmo mamilo após correcção cirurgica. A eversão cirurgica do mamilo só é possível se se seccionar os ductos, o que significa que, após esta cirurgia, a mulher não pode voltar a amamentar. Mesmo que se seccione os ductos de uma mama apenas, sendo a amamentação bilateral, esta fica impossibilitada definitivamente. Antes da cirurgia, um mamilo invertido não coloca qualquer entrave à amamentação pois a criança não pega na ponta do mamilo para mamar, isto é, a criança abocanha o mamilo e a aréola criando uma câmara de sucção. Esta sucção permite que mesmo em mamilos invertidos haja a extracção de leite. A doença de Paget é uma destruição completa da placa aréolo-mamilar. Trata-se de um carcinoma ductal in situ do mamilo, que pode ter um carcinoma invasivo associado. Habitualmente, não metastiza, tem bom prognóstico e corresponde a cerca de 1% de todos os carcinomas. Esta lesão eczematóide descamativa aparece com maior frequência na faixa etária dos 40 a 50 anos e, curiosamente, embora não se saiba porquê, aparece mais em doentes com patologia psiquiátrica. Por vezes, o diagnóstico diferencial é feito com eczema e para confirmação do diagnóstico é sempre necessário fazer uma biópsia. Palpação – deve ser feita nas mesmas posições em que se inspeccionou, devendo-se usar a mão esquerda para a mama direita e a mão direita para a mama esquerda. Percorre-se os diversos quadrantes da mama com a polpa do 2º, 3º e 4º dedos como um pianista. Quando se encontra um nódulo à palpação, deve-se isolar o mesmo entre dois dedos a fim de caracterizá-lo melhor (dimensões, consistência, mobilidade e regularidade dos contornos). A mama deve ser palpada de uma forma centrípeta e, após massagem da mama, deve fazer-se a aspersão do mamilo. É necessário palpar também a região axilar e a região supraclavicular. Para palpar a axila, com o braço da doente a 90o, o médico insinua os seus dedos no escavado axilar de modo a comprimir a axila de encontro à parede torácica. Com já referido, para palpar a região supraclavicular pede-se à doente para encolher os ombros. Um dos principais sintomas é a mastalgia, que pode corresponder a uma dor mamária propriamente dita ou pode ser uma dor irradiada. A mastalgia pode ser confundida, por exemplo, com a dor de angina de peito, a dor de refluxo gastro-esofágico, com dor que irradia da coluna cervical ou com uma dor muscular no grande peitoral. A mastalgia pode envolver uma área ou estar restringida a um ponto. A mastalgia é uma dor tipo moinha, que pode piorar com a palpação ou com o uso de soutien (se o soutien não estiver bem adaptado, a extremidade externa do aro pode magoar a mama). A mastalgia pode ser cíclica ou não cíclica. Na mastalgia cíclica há dor 7 a 10 dias antes da menstruação e esta dor cessa com a menstruação. Por norma, esta dor localiza-se nos quadrantes súpero-externos e pode irradiar para a face interna do braço por estimulação do nervo intercostobraquial de Hyrtl. Esta dor não é patológica, podendo-se prescrever analgésicos apenas para alívio sintomático. 61
Na mastalgia não cíclica, a distribuição cronológica da dor é totalmente anárquica, não havendo qualquer relação com o ciclo menstrual. Na maioria das vezes, esta dor é de origem não mamária. Como já visto, apenas 15% das neoplasias da mama cursam com dor, sendo que quando há mastalgia esta é não cíclica. Enquanto que na mastalgia cíclica não há necessidade de utilizar meios complementares de diagnóstico, perante uma mastalgia não cíclica (que na maioria das vezes até é de origem não mamária) deve-se fazer uma mamografia. Os nódulos mais comuns são os quistos, que são tumores de conteúdo líquido. Os microquistos têm menos de 1 cm e os macroquistos têm mais e 1cm. Acima dos 30 anos a presença de microquistos é normal, fazendo parte do envelhecimento da mama. Os fibroadenomas são tumores de conteúdo sólido, sendo necessário fazer diagnóstico diferencial com cancro da mama (que também é de conteúdo sólido). Não há nódulos moles na mama, pois se houvesse nódulos moles não seriam palpáveis por serem da mesma consistência do restante tecido mamário. Um nódulo tem sempre uma consistência dura. Um nódulo benigno tem a consistência da borracha (como uma bola saltitona), com contornos regulares, bem delimitado e é móvel, não estando aderente nem aos planos superficiais nem aos planos profundos. Um nódulo maligno também é duro, mas pétreo, é irregular, mal delimitado e aderente aos planos circundantes. Se a ecografia mostrar um fibroadenoma de 2cm, com palpação coerente, no entanto, se a ecografia mostrar um tumor maligno de 2cm, o médico palpa um nódulo com 4 ou 5cm, porque além do tumor está a palpar a zona envolvente como parecendo pertencer ao próprio tumor. Para que o diagnóstico seja fiável, em mulheres com mais de 25 anos de idade, a observação/palpação, a imagiologia (ecografia e mamografia) e a biópsia devem ser as 3 concordantes entre si, o que dá uma margem de erro inferior a 1%. Na imagem observa-se um corrimento uniporo. O método mais correcto para avaliar a cor do corrimento é fazer a aspersão do mamilo e depois colocar uma compressa branca sobre o mamilo e olhar para a compressa. Por vezes, há corrimentos escuros que parecem sangue, mas na realidade são verdes. As características do corrimento sugestivas de malignidade são a sua cor (incolor) e o facto de ser uniporo e unilateral. Um papiloma intra-ductal é um tumor benigno que pode causar corrimento hemático, uniporo e unilateral. Isto é, habitualmente, um corrimento incolor é sugestivo de malignidade e um corrimento hemático ou castanho está relacionado com patologia benigna, o que não significa que por detrás de um corrimento hemático não possa estar uma neoplasia. Todas as doentes com corrimentos uniporos, unilaterais, incolores, hemáticos ou castanho têm que ser estudadas. Na imagem observa-se um corrimento em pasta de dentes, que acontece quando se faz a aspersão de um mamilo invertido. Isto acontece porque as glândulas sebáceas que deviam estar no exterior estão no interior da mama e quando se faz a aspersão mamilar sai material sebáceo. A galactorreia é a produção de leite fora da amamentação, sendo a expressão mamária de uma alteração não mamária. A galactorreia primária ou fisiológica é aquela que permanece após a amamentação ou que surge associada à menarca ou à menopausa ou, ainda, em situações de stress. A galactorreia secundária mais comum é aquela que é provocada por fármacos (-metildopa para grávidas com HTA, metoclopramida e domperidone são anti-eméticos utilizados com frequência, ansiolíticos e antidepressivos), não sendo necessário suspender a medicação. Suspeita-se de uma galactorreia secundária patológica por prolactinoma quando a tríade de Forbes-Albright (cefaleias frequentes, 62
oligomenorreia e galactorreia) está presente, sendo esta tríade patognomónica de tumor hipofisário. Actualmente, estuda-se os tumores da hipófise através de RMN da sela turca. Ainda dentro das galactorreias secundárias podem existir secreções ectópicas de prolactina com origem em determinados carcinomas broncogénicos do pulmão. A insuficiência renal crónica, por diminuir a clearance da prolactina leva a hiperprolactinémia. O hipotiroidismo também condiciona o aumento dos níveis de prolactina. As inflamações/infecções da mama mais comuns são as mastites de lactação, mas também podem ocorrer as, já referidas, mastites peri-ductais e, também, mastites cutâneas. A maioria das mastites são provocadas por Staphilococcus aureus, mas também podem ser provocadas por E. coli no caso da lactação, Staphilococcus epidermidis e Streptococcus no caso da mastite peri-ductal e por fungos na mastite cutânea. Por norma, a mastite de amamentação ocorre nas primeiras 6 semanas e tem por base fissuras mamilares e abrasão da pele, com a consequente entrada de microrganismos através dos ductos para um bom meio de cultura que é o leite. A mastite ductal tem por base a ectasia ductal por parésia da camada mioepitelial dos ductos, o que leva a uma dilatação, que por sua vez leva a estase, que conduz a inflamação e, consequentemente, a infecção. 30% das doentes desenvolve fístulas directas dos ductos para a pele. A ginecomastia é o motivo que leva a maioria dos homens a uma consulta de mama. Apesar de ser mais temível, a neoplasia da mama no homem é muito rara. A ginecomastia pode acontecer na puberdade, sendo uma fase passageira e, por isso, não há medidas terapêuticas a tomar. Isto acontece porque o aumento dos níveis de androgénios ainda é insuficiente para acompanhar o aumento dos estrogénios nesta fase. Na senescência, no idoso acontece exactamente o mesmo mas ao contrário, isto é, quando os níveis de androgénios baixam passa a haver uma predominância estrogénica. Os fármacos anti-androgénicos e estrogénios para o cancro da próstata ou os digitálicos para a insuficiência cardíaca podem condicionar ginecomastia. A ginecomastia pode também ser um sintoma de doenças extra-mamárias como a cirrose (a insuficiência hepática leva a uma diminuição da clearance de estrogénios, o homem com cirrose tem maior risco de cancro de mama), a mal-nutrição, o hipogonadismo, os tumores testiculares, o hipertiroidismo e a doença renal. Em termos de cancro da mama, o ratio é de 1 homem para 135 mulheres. No homem, o cancro da mama tem pior prognóstico porque a mama do homem é menos volumosa e, por isso, é mais fácil o tumor aderir ao músculo e invadir a pele. Além disso, os homens estão menos atentos a alterações mamárias e não procuram ajuda médica. A ginecomastia é o aumento do volume da mama masculina, enquanto que, a adipomastia é o aumento da gordura da mama masculina. O doente da imagem tem uma ginecomastia e não uma adipomastia pois quando levanta os braços e a gordura aplana as mamas continuam evidentes. É possível observar uma cicatriz de esternotomia, o que permite inferir que o senhor foi submetido a uma cirurgia cardíaca e, provavelmente, toma digitálicos.
CANCRO DA MAMA Epidemiologia O cancro da mama é o tumor maligno mais frequente (18 a 22%) na mulher caucasiana, embora nos EUA acima do cancro de mama esteja o cancro do pulmão. No ano 2000 registaram-se 1 milhão de novos 63
casos em todo o mundo, tendo este número subido para 1 milhão e 300 mil novos casos em 2010, sendo que esta subida pode não traduzir um aumento real do número de cancros da mama, mas sim um aumento do número de casos diagnosticados. Este aumento é feito com base no desenvolvimento tecnológico. Segundo o ROR (Registo Oncológico Regional), em Portugal são diagnosticados entre 4 a 5 mil novos casos por ano. Quanto mais velha for a mulher, maior é o risco relativo, aparentemente até aos 85 anos, já que após esta idade o risco relativo diminui significativamente. Estão descritas na literatura neoplasias da mama em ambos os sexos a partir dos 3 anos de idade. Existem diferenças raciais e geográficas em termos de risco relativo, isto é, a mulher caucasiana tem maior risco de cancro da mama do que a mulher negra. No entanto, quando as afrodescendentes têm neoplasia da mama, esta é mais agressiva do que na mulher caucasiana. A mulher asiática tem um risco de cancro da mama extremamente inferior ao da mulher europeia ou americana, no entanto, descendentes asiáticas que vivam e assimilem a cultura americana passam a ter o mesmo risco relativo de uma americana nativa. Diagnóstico O gold standard é a mamografia, sendo a ecografia um exame acessório e a RMN é utilizada apenas para esclarecer dúvidas que a mamografia deixou ou então é utilizada para estadiar correctamente a neoplasia. A mamografia detecta 90 a 94% dos nódulos mamários e, deste modo, há quem defenda que quando se efectua uma cirurgia conservadora deve-se realizar uma RMN a fim de detectar os restantes nódulos (6 a 10%) para que na cirurgia se faça a excisão de todos os nódulos. Este procedimento encontra-se actualmente em discussão. A biópsia pode ser feita por palpação ou guiada por mamografia ou, ainda, guiada por RMN. O mais comum é efectuar-se biópsias true cut que permitem ter acesso não só à histologia como aos receptores de membrana como os receptores de estrogénio e de progesterona, o HER2 e o Ki67 (proteína que expressa a taxa de replicação celular). A citologia aspirativa dá o diagnóstico a nível celular mas não permite saber se o carcinoma é in situ ou invasivo. A partir do momento em que há o diagnóstico de carcinoma invasivo com um tamanho superior a 2 cm é necessário fazer estadiamento. O carcinoma in situ não metastiza, logo não há necessidade de estadiar. O estadiamento faz-se através de Análises sanguíneas: hemograma, provas de função hepática (TGO, TGP, Gama-GT e fosfatase alcalina), CEA e cálcio Ecografia hepática Rx tórax Cintigrafia óssea Como exames pré-operatórios pede-se ECG, glicémia, creatinémia e provas de coagulação (TP e PTT). Se o doente precisar de quimioterapia deve-se realizar um ecocardiograma para determinar a fracção de ejecção, já que a maioria dos fármacos citostáticos são cardiotóxicos (se a fracção de ejecção ventricular for baixa o doente não pode tomar estes fármacos). Classificação TNM T refere-se ao tamanho do tumor, N metástases ganglionares e M metástases à distância. Tumor primitivo (T) TX: O tumor primitivo não pode ser aferido T0: Sem evidência de tumor primitivo Tis: Carcinoma intraductal, Carcinoma lobular in situ, ou doença de Paget do mamilo, sem invasão associada do tecido mamário normal T1: Tumor ≤2.0 cm T1mic: Microinvasão ≤0.1 cm
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T1a: Tumor >0.1 cm mas ≤0.5 cm T1b: Tumor >0.5 cm mas ≤1.0 cm T1c: Tumor >1.0 cm mas ≤2.0 cm T2: Tumor >2.0 cm mas ≤5.0 cm T3: Tumor >5.0 cm T4: Tumor de qualquer dimensão com extensão directa a (a) parede torácica ou (b) pele, somente como abaixo descrito: T4a: Extensão à parede torácica, não incluindo os músculos peitorais T4b: Edema (incluindo pele em casca de laranja) ou ulceração da pele da mama, ou nódulos satélites confinados à mesma mama T4c: T4a e T4b T4d: Carcinoma inflamatório Gânglios regionais (N) NX: Gânglios regionais não podem ser aferidos (p. ex. – excisados previamente) N0: Sem metástases ganglionares regionais N1: Metástases em gânglios axilares ipsilaterais, não aderentes (móveis) N2: N2a: Metástases em gânglios axilares homolaterais fixos ou em bloco N2b: Metástases em Gânglios da mamária interna, sem envolvimento da cadeia axilar. N3: N3a: Metástase(s) em gânglio(s) infraclavicular(es) ipsilaterais N3b: Metástase(s) em gânglio(s) da mamária interna e axilar(es) ipsilaterais N3c: Metástase(s) em gânglio(s) supraclavicular(es) ipsilaterais Metástases à distância (M) MX: Não foi possível avaliar a metastização à distância M0: Sem metástases à distância M1: Com Metástases à distância
Esta classificação é quantitativa, ou seja, permite medir a quantidade de tumor. Actualmente, sabe-se que para tumores com o mesmo estadiamento há diferentes taxas de sobrevivência, o que permite inferir que para tumores com a mesma quantidade pode haver qualidades diferentes. A qualidade do tumor é medida pela classificação biomolecular. Classificação biomolecular Luminal A RE+, RP+, HER2 -, baixo ou médio grau Luminal B RE+, RP+, HER2 +/-, Ki67 >, gânglios positivos Basal/triplo negativo RE-, RP-, HER2-, alto grau HER2 positivo Alto grau e gânglios positivos Um estadio triplo negativo é muito mais agressivo que um estádio luminal A. O tumor em luminal A tem receptores de estrogénio e progesterona positivos, tem receptores HER2 negativos e um grau baixo. Quando os tumores têm receptores de estrogénio e de progesterona positivos é possível prescrever tamoxifeno e inibidores da aromatase (se a mulher for pós-menopausica), tendo assim estas doentes mais uma arma terapêutica. Assim, pode-se afirmar que a classificação biomolecular substituirá a classificação TNM pois a medição da quantidade de tumor não nos dá a sobrevida dos doentes. Tratamento Cirurgia Nos tumores que são operáveis há como opção: Mastectomia: antigamente, perante um nódulo maligno todas as doentes eram submetidas a mastectomia 65
Tumorectomia: pode ser simples ou com cirurgia oncoplástica. Se os gânglios axilares forem negativos no estadiamento, isto é, se não se palparem gânglios na axila e se na ecografia da axila não houver gânglios suspeitos deve-se fazer o gânglio sentinela. No gânglio sentinela injecta-se tecnésio coloidal peri-areolar na véspera da cirurgia, depois no início da cirurgia injecta-se azul patente peri-areolar e depois com uma gamma camara procura-se o hotspot com maior radiação. Abre-se a pele e o gânglio que estiver azul (com uma contagem radioactiva importante) é o gânglio sentinela, o qual é excisado. Faz-se então um exame extemporâneo do gânglio sentinela e, se o gânglio sentinela for positivo procede-se ao esvaziamento axilar. Se o gânglio sentinela for negativo no exame extemporâneo não há necessidade de esvaziar a axila. Se os gânglios forem positivos no estadiamento pré-operatório, isto é, se a palpação for sugestiva de adenopatias metastáticas, a ecografia for sugestiva de adenopatias metastáticas ou se houver uma biopsia positiva dessas adenopatias, não é necessário fazer o exame extemporâneo do gânglio sentinela, passando-se directamente para o esvaziamento axilar. Os receptores de estrogénios e progesterona encontram-se no núcleo e a anatomia patológica dá a resposta ao clinico de acordo com a percentagem de núcleos que estão corados por imunohistoquimica. Quanto maior o numero destes receptores melhor o prognóstico. O HER2 é um receptor da membranacelular e quanto maior a sua quantidade presente, maior a probabilidade de existir erros de duplicação. Quanto maior o numero destes receptores pior o prognóstico. O trastuzumab é um anticorpo monoclonal dirigido ao HER2, portanto, os tumores com estes receptores apesar de terem pior prognóstico, têm um fármaco que lhes é dirigido. O Ki67 é um indicador da duplicação celular. Quanto maior o Ki67, maior a taxa de duplicação celular. Actualmente, utiliza-se o p53 apenas nas neoplasias do rim. O p53 é um “polícia” do ciclo celular que entre as fases G0 e G1 verifica se a transcrição de DNA está correcta. Se a transcrição não estiver correcta o p53 tenta corrigir esse defeito e, caso não consiga, ele envia a célula para apoptose. Radioterapia Sempre que o doente é submetido a tumorectomia, esta deve ser complementada com radioterapia para a mama, com uma única excepção para os tumores in situ de baixo grau e com margens amplas (mais de 1 cm) numa doente idosa. Deve-se fazer radioterapia para a axila quando há mais de 4 gânglios positivos na axila ou quando há rotura da cápsula de um gânglio metastático. Quando durante a mastectomia se verifica que o tumor está muito junto ao músculo, isto é, que a margem é muito curta e, mesmo que se retire uma porção de músculo, deve-se fazer radioterapia. Quimioterapia Só os doentes com tumores invasivos fazem quimioterapia, pois o objectivo desta terapêutica é diminuir as taxas de recorrência tumoral à distância. Faz-se quimioterapia quando há gânglios positivos, sempre que o tumor é de grau II ou III e quando há factores de mau prognóstico (receptores de estrogénio e de progesterona negativos e HER2 positivo). Quando o HER2, só por si, é positivo (+++), faz-se concomitantemente com a quimioterapia o anticorpo monoclonal transtuzumab. Hormonoterapia Quando é necessário fazer radio, quimio e hormonoterapia após a cirurgia, faz-se primeiro a quimioterapia e só após o seu término se inicia em simultâneo a radio e a hormonoterapia. Quando os receptores de estrogénio e de progesterona superiores são a 1% são indicação para hormonoterapia: 66
Tamoxifeno durante 5 anos. O tamoxifeno é um inibidor selectivo dos inibidores de estrogénios (SERM). Há duas fontes de estrogénios: os ovários funcionantes (90%) e a conversão periférica (10%) nos músculos, no tecido adiposo e no fígado. É a única opção para mulheres pré-menopáusicas e para homens. Inibidores da aromatase durante 5 anos (em upfront quando é a primeira escolha e é feito durante os 5 anos; em switch quando ao fim de 2 a 3 anos de tamoxifeno se passa para os inibidores da aromatase e se mantém a medicação até aos 5 anos; em extended quando após 5 anos de tamoxifeno o doente faz 2 anos de inibidores da aromatase). Os inibidores da aromatase são feitos quando há factores de mau prognóstico associados, apenas em mulheres pós-menopáusicas. Isso porque, é inglório inibir a conversão periférica de estrogénios, que na mulher fértil representa apenas 10% de todos os estrogénios produzidos. Deste modo, só faz sentido inibir a conversão periférica de estrogénios quando já não há produção de estrogénios a nível ovárico, ou seja, em mulheres pósmenopáusicas. As mulheres pós-menopáusicas podem optar entre tamoxifeno e inibidores da aromatase. Nos homens não se faz inibidores da aromatase. Os análogos LH/RH, como a Goserelina, induzem a menopausa em mulheres pré-menopáusicas, o que permite fazer inibidores da aromatase em mulheres mais jovens e com factores de mau prognóstico durante 2 anos. Se ao fim de 2 anos se quiser continuar a induzir a menopausa é necessário passar para a castração cirúrgica. Nos homens não se faz análogos LH/RH. A castração cirúrgica é feita em mulheres jovens com factores de mau prognóstico e que já fizeram toda a escada terapêutica (cirurgia, quimioterapia, radioterapia e hormonoterapia com Goserelina durante 2 anos). É conseguida através de ooforossalpingectomia bilateral. Em suma, quando se cessa a fonte de estrogénios pode-se administrar inibidores da aromatase que são muito mais eficazes que o tamoxifeno.
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ABDÓMEN AGUDO NÃO TRAUMÁTICO DEFINIÇÃO Mais do que um quadro específico, é uma síndrome de quadros clínicos que se aglomeram no conceito de abdómen agudo. Associação de sinais e sintomas, incluindo dor abdominal, que obriga à referenciação do doente para uma observação urgente pela Cirurgia. A sua importância está relacionada com o risco de vida para o doente associado a este quadro. The term acute abdomen refers to signs and symptoms of abdominal pain and tenderness (empastamento), a clinical presentation that often requires emergency surgical therapy. Quadro clínico caracterizado por dor abdominal aguda de aparecimento súbito, com uma evolução de menos de 7 dias (geralmente menos de 48 horas) de duração, que não foi previamente estudado ou tratado. Dor abdominal que persiste por 6 ou mais horas, que é geralmente provocada por patologia com indicação cirúrgica.
EPIDEMIOLOGIA É uma patologia muito frequente nos serviços de Urgência, sendo a causa mais comum de admissão cirúrgica na urgência, com cerca de 5-10% dos casos. É a principal causa de admissão hospitalar nos EUA. O diagnóstico inicial, na admissão, está incorrecto em 50-65% dos casos, pelo que o risco do doente ter complicações é significativo, o que é um aspecto a ter em conta, entre outros motivos, devido à questão da litigância, que tem vindo a aumentar nos últimos anos. No estudo OMGE, com mais de 10000 casos, não se verificaram alterações na frequência de cada etiologia entre 1988 e 2005: NSAP (patologia abdominal não identificada) (34%) – é a mais frequente nos países que participam neste estudo, não se sabendo qual é a causa de admissão do doente. Apendicite aguda (28%) Colecistite aguda (10%) Oclusão intestino delgado (4%) Perfuração úlcera péptica (3%) Pancreatite (3%) Doença diverticular (2%) Outras (13%)
ETIOLOGIA No abdómen agudo, a etiologia varia de acordo com a idade e o sexo do doente, pelo que é necessário personalizar os possíveis diagnósticos em função das características do doente. Quando olhamos para indivíduos de diferentes grupos etários pensamos em situações diferentes – a invaginação intestinal é mais frequente no recém-nascido e a apendicite aguda é mais frequente nos jovens, enquanto a colecistite aguda, a oclusão intestinal, a isquémia intestinal e a diverticulite são mais frequentes nos idosos. 68
As patologias a ter em conta podem ser também diferentes consoante o doente seja do sexo feminino ou masculino. A maioria destes diagnósticos está relacionada com infecção, oclusão, isquémia ou perfuração.
CLASSIFICAÇÃO Consoante a localização anatómica – temos de pensar, para cada região, na patologia que é mais frequente, e não tanto em situações raras. Quadrante superior direito Úlcera péptica Trato biliar – cólica biliar, colecistite aguda, coledocolitíase, colelitíase, colangite Fígado – hepatites, neoplasias, abcessos, congestão, doença hepática crónica Pulmão – pneumonia da base, abcesso subfrênico, embolia pulmonar, pneumotórax – ter em atenção que, por vezes, a nível abdominal projecta-se patologia que não tem um foco inicial no abdómen. Parede abdominal – herpes Zoster, contracturas musculares Rim – pielonefrite, abcesso perinéfrico, litíase renal Cólon – colite, diverticulite Região Epigástrica Úlcera péptica Pâncreas – pancreatite, neoplasia Trato biliar – cólica biliar, colecistite, coledocolitíase, colelitíase, colangite Esófago – esofagite por DRGE ou infecções Coração – enfarte agudo do miocárdio da parede basal septal, pericardite, angina pectoris Aneurisma de aorta abdominal – ruptura, dissecção Isquémia mesentérica Quadrante superior esquerdo – não há nenhuma patologia que seja particularmente característica deste quadrante, pelo que uma dor aqui “tanto pode ser tudo como não ser nada”. Úlcera péptica Baço – ruptura, enfarte Pulmão – pneumonia, abcesso subfrénico, embolia pulmonar, pneumotórax Pâncreas – pancreatite, neoplasia Rim – pielonefrite, abcesso perinéfrico, litíase renal Quadrante inferior direito Apendicite Doença inflamatória intestinal Causas ginecológicas e obstétricas – tumor do ovário, torção do ovário, gravidez ectópica, doença inflamatória pélvica (DIP), abcessos da trompa ou ovário Rim – pielonefrite, abcesso perinéfrico, litíase renal 69
Doenças intestinais – diverticulite, íleocolite, gastroenterite, hérnia Periumbilical Apendicite (quadro inicial) Oclusão do intestino delgado Gastroenterites Isquémia mesentérica Aneurisma de aorta abdominal – ruptura, dissecção Trombose mesentérica Quadrante inferior esquerdo Doença inflamatória intestinal Causas ginecológicas e obstétricas – tumor do ovário, torção do ovário, gravidez ectópica, doença inflamatória pélvica (DIP), abcessos da trompa ou ovário Rim – pielonefrite, abcesso peri-renal, litíase renal Intestino – diverticulite (sigmóide), íleocolite, tumor colo-rectal, hérnias Nos quadrantes inferiores, quer direito quer esquerdo, uma situação em que temos sempre que pensar, e que é muito frequente mas que normalmente nos esquecemos de pesquisar, é a hérnia encarcerada. Nestes casos, o doente não se queixa da hérnia em si mas antes de uma oclusão intestinal, quando há uma ansa envolvida. É fundamental não esquecer de pesquisar a zona inguinal para ver se não há nenhuma hérnia. Supra-púbica Doença inflamatória intestinal Causas ginecológicas e obstétricas – tumor do ovário, torção do ovário, gravidez ectópica, doença inflamatória pélvica (DIP), abcessos da trompa ou ovário, dismenorreia Cólon – colite, diverticulite Trato urinário - ITU (Infecção tracto urinário), litíase renal, prostatite Difusa – em doentes com dor abdominal difusa, inespecífica, com uma evolução já arrastada, a maior parte das situações são patologia médica e não cirúrgica. No entanto não podemos, logo à partida, descartar a possibilidade de ser uma situação cirúrgica, nomeadamente oclusão intestinal ou peritonite. Gastroenterite Oclusão intestinal Peritonite Isquémia mesentérica Doença inflamatória intestinal Cetoacidose diabética Porfiria Uremia Hipercalcémia Crise falciforme Vasculites Intoxicação por metais pesados 70
Síndrome de abstinência por opióides Febre do mediterrâneo Angioedema hereditário
Consoante a natureza do processo As situações mais frequentes de encontrar são: Inflamatórias – apendicite, colecistite Perfurativas – perfuração de úlcera péptica do cólon Obstrutivas – bridas, carcinoma, volvo Vasculares – isquémia intestinal Hemorrágicas – ruptura de aneurismas ou de gravidez ectópica
AVALIAÇÃO CLINICA É fundamental falar com o doente e obter uma boa história clínica e um exame objectivo bem realizado, focado nas queixas do doente. Os exames complementares visam apenas confirmar o diagnóstico e fazer exclusão de diagnósticos diferenciais, até porque, muitas vezes, basta alguma coisa que o doente diz ou olhar para ele para se fazer o diagnóstico – “o doente tem cara de…” É necessário deixar os doentes falar, até porque há estudos que mostram que, o doente é interrompido pelo médico ao fim de 17 segundos, após os quais o doente não vai dizer mais nada a não ser o que o médico quer ouvir – “falar com o doente é deixar que o doente fale”.
Anamnese História da doença actual – os principais sintomas são: DOR – é o sintoma fundamental do abdómen agudo não-traumático, pelo que deve ser muito bem caracterizada: Modo de aparecimento (súbito, insidioso, contínuo ou intermitente) Características (moinha, cólica, penetrante, excruciante) Localização inicial Duração Irradiação Factores de alívio ou agravamento – por exemplo, na pancreatite aguda é muito comum ver-se o doente numa posição de “prece a Maomé”, dado que a irritação peritoneal leva o doente a adoptar uma posição de flexão, que diminui essa irritação. Cronologia da dor Sinais e sintomas associados (náuseas, vómitos, febre, alterações trânsito intestinal, palidez, taquicardia, icterícia, colúria, acolia, hematúria, disúria) 71
Exemplo: a apendicite aguda começa por uma dor periumbilical insidiosa, não se percebe muito bem o que é que o doente tem, pensa-se numa gastroenterite, mas passado 2 horas o doente tem um quadro de abdómen agudo típico, com queixas diferentes. Quando não sabemos o que é que o doente tem, o melhor é internar ou mandar ir a casa e depois voltar, de modo a poder reavaliar, dado que em poucas horas podemos passar de uma situação completamente inespecífica para um quadro típico de determinada patologia. A dor é muito difícil de caracterizar, sendo que se observarmos 2 doentes com o mesmo diagnóstico, a mesma patologia e com o mesmo tempo de evolução, provavelmente estes vão manifestar-se de maneiras diferentes. A mulher é capaz de se apresentar com um quadro de dor exactamente igual ao do homem mas manifestando-se de forma menos exuberante, já que o homem tem “maior tendência a dramatizar e a chamar pela mãe!”. No diagnóstico de apendicite aguda, uma coisa que se costumava fazer antes de palpar a barriga era pedir ao doente que desse um salto. Alguns nem se conseguem mexer, ao passo que outros saltam e dizem que “dói um bocadinho”. Tem tudo a ver com a tolerância à dor. Deste modo, a intensidade ou a gravidade da dor está relacionada com a magnitude da doença subjacente e é importante distinguir a intensidade da dor da reacção do doente a esta. Existem diferenças individuais significativas na tolerância e na reacção à dor. O doente com abdómen agudo é um doente que se distingue entre os outros nas urgências pela postura. Em relação ao início da dor, este pode ser: - Início súbito – acorda o doente durante o sono, sendo situações de emergência (são aqueles doentes que aparecem na urgência a meio da noite porque não podem esperar até de manhã). Exemplos: perfuração de úlcera péptica ou víscera oca, ruptura de aneurisma da aorta abdominal ou gravidez ectópica. - Início insidioso (lento) – é uma situação progressiva, que pode ou não ser acompanhada de cólica, podendo estar associado a inflamação do peritoneu visceral ou processo infeccioso contido (abcesso). Exemplos: apendicite aguda, diverticulite, doença inflamatória pélvica. - Tipo Cólica – há um espasmo, no caso da cólica biliar ou da cólica renal, da vesícula biliar ou do uretero, comprometendo o fluxo nestes órgãos, o que dá uma dor intensa, muitas vezes descrita como “a pior dor que já se teve”. Estes doentes encontram-se, normalmente, muito irrequietos. Caracteriza-se por períodos de exacerbação e acalmia.
Inicio Súbito
Inicio Insidioso
Cólica
Consoante a localização da dor, devemos pensar no quadro mais provável: - Quadrante superior direito, hipocôndrio direito – colecistite aguda com cólica biliar - Quadrante inferior direito – apendicite 72
- Epigastro – pancreatite - Quadrante inferior esquerdo – diverticulite do colón sigmóide – na sociedade ocidental, em indivíduos com idade superior a 50 anos, 70 a 80% dos indivíduos terão divertículos, sendo muito provável que uma dor nesta região indique uma diverticulite, que consiste num fleimão/ abcesso peridiverticular que pode romper. Tipos de dor – dependem das vias sensitivas envolvidas na transmissão, sendo que, consoante a sua origem vão ter características diferentes, para além de que pode variar em função do estado de evolução do processo inflamatório subjacente. - Visceral – surge numa 1ª fase, por estimulação das vias sensitivas aferentes. É uma dor surda (dor mal definida, que não se percebe muito bem), profunda, difusa e mal localizada. - Parietal – surge numa 2ª fase, por estimulação das vias sensitivas somáticas. É uma dor localizada com exactidão pelo doente, que tem origem em estímulos da pele, músculos e peritoneu parietal. - Reflexa – é uma dor bem localizada, à distância – exemplo: dor da colecistite aguda ou da cólica biliar, que irradia para o ombro por irritação do nervo frénico; dor da pancreatite aguda, que Dor reflexa irradia em cinturão; dor da cólica renal, que irradia para a região inguinal, grandes lábios ou escroto. Em termos da evolução embriológica, conseguimos perceber de alguma maneira a irradiação da dor. Assim, é muito provável que um órgão que tenha origem no intestino anterior, que aparece acima da 2ª porção do duodeno, tenha uma dor localizada no epigastro, enquanto que um órgão com origem no segmento posterior do intestino primitivo irá irradiar do ângulo esplénico para baixo.
NÁUSEAS E VÓMITOS São muito frequentes, sendo que o momento do aparecimento pode dar-nos indicações sobre o tipo de patologia. Deste modo, náuseas e vómitos precoces podem indicar a existência de espasmos viscerais (por exemplo, cólicas biliares, cólicas renais, oclusões intestinais altas), que por si só vão originar este reflexo, enquanto que se forem mais tardios são sugestivos de oclusões intestinais baixas, já que, se a obstrução for distal, o intestino ainda vai demorar algum tempo a encher e distender. O tipo de conteúdo também deve ser tido em conta, podendo ser alimentar, biliar, sanguíneo, fecalóide (cheiro característico), etc.
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Esta regra não corresponde a 100% dos casos, mas ajuda a ter uma noção daquilo que é mais provável. ANOREXIA Anorexia ou diminuição do apetite, acompanhada de dor abdominal é habitual na apendicite aguda, apesar de não acontecer em todos os casos. Em caso de anorexia progressiva e constante, associada a perda de peso acentuada, devemos suspeitar de um quadro neoplásico. OBSTIPAÇÃO, OCLUSÃO E DIARREIA É necessário fazer a distinção entre obstipação e oclusão. Obstipação – pode ter a ver com um quadro de íleus paralítico reflexo (estímulo simpático dos nervos esplâncnicos que reduzem a peristalse intestinal), associado, por exemplo, a uma pancreatite aguda. Corresponde a uma situação de parésia associada a um processo inflamatório que condiciona uma estase num determinado segmento do intestino delgado. Na radiografia é muito frequente ver-se uma ansa sentinela. Oclusão – é uma situação mais grave que pode ser definida pela paragem de emissão de gases e fezes nas últimas 24 a 48 horas, associada ou não a náuseas e vómitos. Diarreia – característica da gastroenterite, pode também acompanhar uma oclusão incompleta do intestino delgado ou do cólon. Devemos sempre caracterizá-la quanto à presença de sangue, muco ou pus, já que esses dados nos podem apontar para determinado tipo de patologia, nomeadamente a existência de uma síndrome inflamatória intestinal, de uma neoplasia, etc. Numa situação de oclusão quase total do intestino, sobretudo se for distal, pode continuar a haver a emissão de gases e até de fezes, que se confundem com diarreia mas não são, dado que continua a haver a passagem de algum conteúdo na zona de estenose. Quando se vai ver a radiografia, vê-se uma zona de oclusão acompanhada de uma distensão do intestino a montante. Icterícia, colúria ou acolia fazem-nos pensar numa situação de colestase. Hematemeses, melenas, hematoquézias, rectorragias – as hemorragias digestivas altas são situações que vão desde uma úlcera péptica que perfurou e deu um quadro de hematemeses, a uma situação mais evolutiva, em que a úlcera está a “babar” sangue e o doente não vomita, sendo o sangue digerido e dando origem a dejecções de melenas (fezes escuras, tipo alcatrão). No que respeita às hemorragias baixas, podem originar hematoquézias, que consistem em sangue semi-digerido que pode ter origem no íleon distal ou no cólon direito, ou rectorragias, que são emissões de sangue vivo normalmente associadas a alterações do cólon sigmóide para baixo. Hematúria, ardor a urinar, urgência miccional Quadros gerais, que incluem febre, arrepios de frio ou sudorese, estão normalmente associados a processos inflamatórios e podem estar ausentes no idoso e no imunocomprometido, em que muitas vezes se descobre que há infecção quando já se instalou um quadro de bacteriémia ou choque séptico.
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Na mulher, é essencial obter a história ginecológica, incluindo a relação dos sintomas com a fase do ciclo menstrual, a data da última menstruação, o uso prévio e actual de ACO, perdas hemáticas ou corrimentos vaginais anormais, história obstétrica e factores de risco para gravidez ectópica (por exemplo, doença inflamatória pélvica, uso de DIU, história de gravidez ectópica ou cirurgia tubária prévia). Antecedentes pessoais Deve obter-se uma história pregressa completa, incluindo episódios idênticos anteriores, cólicas ou cálculos biliares ou renais conhecidos, úlcera péptica antiga, doença inflamatória pélvica, intervenções anteriores (pelo risco de existência de bridas e aderências), e ainda doenças anteriores, nomeadamente cardíacas, pulmonares e renais, que podem ser a causa dos sintomas abdominais agudos (por exemplo, EAM, pneumonia) e podem afectar a morbi-mortalidade numa intervenção cirúrgica Deve identificar-se alterações do peso corporal, viagens recentes (nomeadamente países tropicais), profissão, exposição a toxinas ou agentes infecciosos e medicação anterior e actual. Os imunocomprometidos são um grupo particular que devemos ter em conta quando avaliamos um quadro de abdómen agudo. Devemos saber se o doente foi sujeito a quimioterapia (pode dar, como evento adverso, um quadro de diarreia profusa compatível com a descamação da mucosa intestinal, que exige re-hidratação), transplante de orgãos, imunosupressão por doenças autoimunes ou SIDA, tendo em atenção sintomas subtis e associados ao hospedeiro imunocomprometido (enterocolite neutropénica, GVHD (acute graft versus host disease), infecções a CMV, sarcoma Karposi, oclusão linfoma/leucemia). História social e familiar – tabaco, álcool, uso de drogas ilícitas, hábitos sexuais, doenças hereditárias, etc.
Exame objectivo Na avaliação do aspecto geral do doente, é importante ter em atenção a posição do doente na cama, que nos permite perceber logo à partida alguns sinais que podem apontar para determinado tipo de patologia. Ansioso e muito quieto no leito – apendicite aguda, peritonite – o doente mexe-se e tem logo dor abdominal, por isso evita movimentar-se. Inquieto, impaciente e agitado – cólica renal, intestinal ou biliar – o melhor é deixar abrandar a dor antes de palpar, caso contrário vai ser muito difícil. Flectido e dobrado para a frente (em “Prece a maomé”) – pancreatite aguda. Ictérico – Obstrução da via biliar principal – temos de perceber a evolução da instalação da icterícia (se foi súbita ou insidiosa). Deve prestar-se atenção aos sinais sistémicos de choque. Doentes que aparecem com sintomas de diaforese, palidez, hipotermia, taquipneia, taquicardia com o ortostatismo ou hipotensão estão provavelmente em situação de choque ou pré-choque, pelo que devemos, independentemente da etiologia, canalizar uma veia e fazer soro de imediato, e tentar, então perceber qual a causa. Há a possibilidade de haver dor abdominal de origem torácica (por exemplo, pneumonia, enfarte agudo do miocárdio, pericardite, arritmia, doenças do esófago), pelo que a auscultação cardíaca e pulmonar são essenciais. O exame ginecológico deve ser realizado na mulher e o exame rectal e das regiões inguinais em todos os doentes. Inspecção – cicatrizes (podem apontar para cirurgias prévias, que podem sugerir um quadro de oclusão ou sub-oclusão por formação de bridas), lesões, massas, distensão abdominal (oclusão intestinal), 75
movimentos de reptação (oclusão intestino delgado), pulsações visíveis, impulsos herniários visíveis à tosse. Auscultação – ruídos hidroaéreos – se estiverem aumentados em frequência e intensidade é sugestivo de oclusões mecânicas. Se estão ausentes, é sugestivo de íleus paralítico. Palpação – avaliar se o abdómen está livre e depressível ou contraído, se é simétrico, se é indolor ou doloroso, se há empastamento, contractura ou defesa, se há uma zona mais dolorosa, se a dor é à descompressão, se há organomegalias ou massas. Um abdómen com contractura ou defesa pode indicar uma perfuração de úlcera péptica, com o característico “Ventre em tábua”. A palpação do abdómen deve ser feita gentilmente, primeiro de forma superficial e depois profunda. Muitas vezes, logo à palpação superficial, é possível perceber se o doente tem empastamento, se há ali alguma coisa que não seja normal, se há defesa abdominal. O principal objectivo da palpação é ver se está mole e depressível ou se está ali alguma coisa a mais. Percussão – o timpanismo é sugestivo de oclusão intestinal, enquanto a macicez dos flancos associada a onda líquida positiva indica uma situação de ascite (que até pode ter origem na descompensação de uma insuficiência cardíaca).
SINAIS Sinal de Blumberg (FID) – apendicite aguda – palpação da fossa ilíaca direita, com dor mais intensa à descompressão, devido ao fenómeno de irritação peritoneal.
Sinal do Rovsing (FIE) – apendicite aguda – palpação profunda da fossa ilíaca esquerda, em que o doente refere dor na fossa ilíaca direita, devido a compressão do cólon, que vai provocar uma distensão a nível proximal, onde há inflamação, condicionando dor.
Sinal do Obturador – apendicite com apêndice em posição pélvica – a abdução e rotação do membro inferior vai condicionar irritação ao nível do psoas, dando dor reflexa.
Sinal do Psoas - apêndice retrocecal, ou abcesso peri-renal – feito com hiperextensão do membro inferior.
Sinal de Murphy vesicular – colecistite aguda – palpação do hipocôndrio direito, pede-se ao doente para inspirar e, com o abaixamento do diafragma e aproximação deste à vesicula biliar inflamada, o doente interrompe a inspiração por dor.
Sinal de Murphy renal - cólica renal – percussão ao nível dos músculos paravertebrais à altura do rim A apendicite aguda, ao contrário do que se possa pensar, é um quadro de diagnóstico complexo, pelo que existem vários sinais que nos podem ajudar a identificar ou negar esta situação. Os sinais de Murphy vesicular e renal são semelhantes ao sinal de Blumberg.
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EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO Laboratoriais Hemograma completo com plaquetas – permite ver se há anemia, sugestiva de perdas de sangue, se há leucocitose, com ou sem neutrofilia, que nos pode apontar um quadro inflamatório. Ionograma, ureia, glicémia e creatinina. Urina II – permite excluir ITU, avaliar a função hepática ao nível de compostos excretados por via renal. Proteína C-reactiva Amilase e Lipase – útil quando há dor dos quadrantes superiores. Há quem defenda que a lipase é melhor que a amilase, dado que os doentes em hemodiálise têm, normalmente, valores de amilase superiores a 200 (anormais em indivíduos que não façam diálise), pelo que a lipase é mais sensível em fase aguda (é também mais específica em casos de pancreatite). Provas da função hepática Estudo da coagulação
Imagiológicos Radiografia de tórax Pneumonia da base Gás livre abaixo do diafragma (pneumoperitoneu) pode dever-se a perfuração víscera oca (por exemplo, perfuração úlcera péptica) ou, se o doente foi operado há menos de 24h, particularmente se foi por laparoscopia, pode ser uma situação sem significado patológico, em que o doente pode ter uma dor localizada, com irradiação ao ombro, porque o cirurgião não conseguiu tirar todo o ar que insuflou para o abdómen. Radiografia simples do abdómen Calcificações arteriais (aneurisma da aorta) Cálculos biliares Níveis líquidos Aerobilia Ansa Sentinela – (por exemplo, pancreatite aguda)
Pneumoperitoneu
Níveis líquidos
Ecografia e TC abdominal – são exames fundamentais para confirmar ou excluir diagnósticos. Laparoscopia diagnóstica – faz-se em situações de patologia abdominal que não está especificada. Põe-se uma pequena câmara dentro do abdómen e vê-se se há ou não líquido, se há sinais inflamatórios ou pus, o que nos permite, de um modo muito menos agressivo que a laparotomia, fazer diagnóstico. Tem elevada acuidade diagnóstica e permite um tratamento eficaz da maioria das situações de abdómen agudo, reduzindo a taxa de laparotomias desnecessárias e podendo ser a solução para a resolução do dilema da NSAP (Patologia abdominal não identificada).
PONTOS A RETER O abdómen agudo é uma entidade clínica caracterizada por dor, mas que tem outros sintomas associados, que obriga a diagnóstico (diferencial) rápido e a uma orientação precoce para a Cirurgia; 77
A avaliação depende duma história clínica completa e exame objectivo rigoroso; Na observação clínica abdominal deve estar presente os diferentes mecanismos da dor, a anatomia e a fisiopatologia das principais causas de Abdómen Agudo, de modo a percebermos melhor o que sugerem os sinais e sintomas do doente; Devem ser excluídas algumas patologias extra-abdominais tendo em conta a idade e o sexo.
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ABDÓMEN AGUDO TRAUMÁTICO SINTOMAS Perante um doente que sofreu um traumatismo abdominal: 1. Manter a vida e para isso é necessário avaliar a gravidade e a extensão das lesões sofridas. 2. Identificar a patologia subjacente ao traumatismo e trata-la. Aí o traumatismo pode ser: - Minor, em que o doente pode ir para casa e fazer tratamento em ambulatório. - Major, em que o doente necessita de cuidados hospitalares entre os quais se encontra a intervenção cirúrgica.
LESÕES DA PAREDE OU DO CONTEÚDO ABDOMINAL Em princípio as lesões da parede são menos graves e mais evidentes que as lesões do conteúdo abdominal. O doente pode ter outras lesões que são prioritárias e que merecem a nossa atenção antes do abdómen, devendo-se por isso utilizar o método ABCD (Airways, Breath, Circulation, neurological Disfuntion). Dependendo do mecanismo da lesão, o traumatismo abdominal pode ser: Fechado – não há lesão da parede abdominal Aberto – há lesão da parede abdominal - Não penetrante – ferida não penetra na cavidade abdominal - Penetrante – ferida penetra na cavidade abdominal Por norma, independentemente da patologia, os órgãos reagem da mesma forma, assim, quando um órgão maciço é lesado, em princípio, ocorre um hemoperitoneu (com excepção para os órgãos retroperitoneais em que haverá um hematoma do retro-peritoneu), se lesão for de órgão oco, em princípio, haverá pneumoperitoneu. Anatomia externa do abdómen Deve-se observar, percutir e palpar todos os quadrantes abdominais, sem esquecer que existem órgãos intra-abdominais (como o fígado) que estão protegidos pela grelha costal do tórax. Abdómen anterior – Define-se como a área entre a linha mamilar superiormente, ligamentos inguinais e sínfise púbica inferiormente, e linhas axilares anteriores lateralmente. Flanco – Área entre as linhas axilares anterior e posterior do sexto espaço intercostal à crista ilíaca. Região posterior – Área localizada posteriormente entre as linhas axilares posteriores, do vértice das omoplatas às cristas ilíacas. Anatomia interna do abdómen Cavidade peritoneal – Podemos dividir a cavidade peritoneal em duas partes: - Abdómen superior – Parcialmente coberto pela superfície óssea inferior do tórax, inclui o diafragma, fígado, baço, estômago e cólon transverso. - Abdómen inferior – contém o intestino delgado e o cólon sigmóide. Cavidade pélvica – Por norma, os órgãos desta cavidade estão protegidos por estruturas ósseas, contudo, se essas estruturas ósseas estiverem atingidas pode haver lesões dos órgãos pélvicos. As lesões dos ossos da bacia têm, potencialmente, grandes hemorragias associadas. A porção inferior do espaço retroperitoneal é envolvida pelos ossos pélvicos e contem o recto, a bexiga, os vasos ilíacos, e, na mulher, os genitais internos. 79
Espaço retroperitoneal – neste espaço encontram-se órgãos e estruturas vitais. Os órgãos retroperitoneais, por não estarem contidos no peritoneu, podem dar sintomatologia muito pouco especifica numa primeira abordagem. Esta área contém a aorta abdominal, a veia cava inferior, uma porção do duodeno, o pâncreas, rins e ureteres, e o cólon ascendente e descendente.
MECANISMO DE LESÃO Traumatismo fechado O doente pode não ter, aparentemente, nenhuma lesão ou sufusão hemorrágica da pele e ter uma lesão intra-abdominal grave. Os órgãos intra-abdominais estão suspensos em estruturas vasculares que lhe são posteriores e, por isso, no caso de um acidente em que um individuo embate a grande velocidade contra uma superfície lisa (sem amortecimento), pode haver rotura destas estruturas vasculares ou do peritoneu (lesão por desaceleração). O traumatismo fechado pode ainda ocorrer por compressão ou esmagamento. Os órgãos mais frequentemente envolvidos são o baço (40 a 55%) e o fígado (35 a 45%). Traumatismo penetrante Classicamente existem as feridas por: Arma branca – envolvem uma energia cinética menor e, normalmente, têm um efeito cortante. As feridas por arma branca envolvem mais frequentemente o fígado (40%), intestino delgado (30%), diafragma (20%) e o cólon (15%). Arma de fogo – transferem mais energia cinética às vísceras abdominais, têm um efeito de cavitação temporária, e podem fragmentar-se causando outras lesões. As feridas por arma de fogo causam mais lesões intra-abdominais, envolvendo o intestino delgado (50%), cólon (40%), fígado (30%), e estruturas vasculares intra-abdominais (25%).
ABORDAGEM DO DOENTE TRAUMATIZADO História No doente politraumatizado grave, a colheita de história clinica deve ser simultânea à avaliação e tratamento do doente. De qualquer forma, quanto mais informação conseguirmos colher, mais correcta poderá ser a nossa abordagem. Assim deve-se inquirir sobre: Alergias – se conhecermos as alergias do doente evitamos que se administrem fármacos aos quais o doente é alérgico. Medicação prévia – importante no caso dos doentes que fazem medicação anticoagulante ou antiagregante. Passado – perguntar se é saudável, se tem patologias associadas ou se já foi operado. Last meal (última refeição) – idealmente que o doente tem o mínimo possível de conteúdo gástrico. Eventos que dizem respeito ao trauma – hora do acidente, causa e mecanismo do acidente (velocidade, tipo de impacto, tipo de arma, distância do tiro, etc), o que aconteceu entre o traumatismo e a chegada ao hospital (status e resposta ao suporte pré-hospitalar, terapêutica e ventilação) e, se o doente estiver consciente, quais as suas queixas. De seguida passa-se para a observação do doente. Deve-se olhar para o doente na sua globalidade, sendo, por vezes, necessário reanimá-lo e se houver sinais de anemia aguda temos que ser mais rápidos na abordagem semiológica. O facto de o doente se encontrar agitado não significa que esteja “bem”, pois esta agitação pode ser uma manifestação de instabilidade hemodinâmica. 80
Exame físico Além das lesões evidentes, deve-se procurar ferimentos em todo o corpo. Habitualmente, as lesões por agressão violenta, envolvem um processo médico-legal, por isso devemos inspeccionar o doente, procurando as lesões visíveis e depois, sistematicamente, registá-las. A auscultação abdominal permite avaliar a presença ou ausência de ruídos hidroaéreos. A ausência de ruídos hidroaéreos é uma manifestação de perfuração de víscera oca. À percussão, com excepção da área hepática, não se espera encontrar macicez, se isso acontecer nos flancos quando o doente está deitado, provavelmente, trata-se de um hemoperitoneu. Um timpanismo aumentado pode indicar dilatação gástrica aguda e o sinal de Jobert positivo (hipertimpanismo na região hepática) pode indicar pneumoperitoneu. Na palpação superficial pesquisa-se as lesões da parede abdominal. A dor à palpação profunda nos diferentes quadrantes abdominais indica lesão intra-abdominal. Ainda dentro do exame físico, por exemplo, em caso de ferida por arma branca, em que haja duvidas se o objecto penetrou na cavidade abdominal, estando o doente estável, sem grandes queixas e sem reacção peritoneal, deve-se administrar anestesia local e fazer a exploração da ferida com pinça. De uma forma grosseira, é possível explorar a cavidade pélvica através da compressão das espinhas ilíacas ântero-superiores. Se houver dor nesta manobra poderá estar presente uma fractura sagrada ou da bacia. É ainda importante avaliar os genitais externos, o períneo e a região glútea (por perigo de lesão do recto), efectuando um exame ginecológico e um toque rectal. Associações comuns Fractura (dos últimos) arcos costais esquerdos – lesão do baço. O melhor meio complementar de diagnóstico para detectar lesão esplénica é a ecografia abdominal. Contusão toraco-abdominal com alterações ventilatórias – diafragma. Por exemplo: num doente que ficou esmagado entre duas superfícies e está hemodinamicamente bem, mas as saturações de oxigénio estão baixas deve-se pensar em lesão do diafragma. Contusão lombar com fractura de vértebra – retroperitoneu. Deve-se pensar em lesão de grandes vasos. Contusão lombar com hematúria – lesão renal. Ferida torácica abaixo do 5º espaço intercostal – trauma toraco-abdominal. Abordagem Na abordagem do doente politraumatizado pode ser necessário entubar o doente, algaliar, colocar soros a correr e fazer análises de sangue e urina. A algaliação além de facilitar a avaliação de uma possível hematúria, dá-nos também o débito urinário (permite regular o volume de soros). Se houver suspeita de fractura da uretra, não se deve algaliar o doente, caso haja globo vesical pode-se efectuar uma punção supra-púbica. Diagnóstico Nas décadas de 60 e 70 do século passado perante uma suspeita de traumatismo abdominal era obrigatório efectuar uma laparotomia, porque não existiam meios complementares de diagnóstico de imagem que permitissem avaliar o trauma abdominal de uma forma objectiva. Actualmente, há doentes que, inevitavelmente, têm que ser operados, mas também há muitos doentes que, com a utilização de meios de imagem, podem ser abordados de uma forma conservadora. Actualmente existe uma grande variedade de exames de imagem que permitem optimizar o diagnóstico nos traumatismos abdominais. Estes exames podem utilizar-se de forma isolada, ou serem complementares entre si e a sua escolha vai depender do estado clinico do doente e da suspeição diagnostica. 81
A estabilidade ou instabilidade hemodinâmica do doente é vital na decisão do exame a efectuar, isto é, se o doente estiver instável do ponto de vista hemodinâmico é necessário efectuar uma laparotomia exploradora. Se o doente estiver hemodinamicamente estável, efectua-se primeiro uma ecografia e depois uma TC. Existem ainda outros aspectos que podem influenciar nesta decisão: o mecanismo da lesão, a localização da mesma, a disponibilidade da técnica, a experiência do cirurgião. Meios e procedimentos de diagnóstico mais frequentemente utilizados (os mais importantes são a ecografia e a TC): Radiologia simples Ecografia abdominal Tomografia computadorizada Punção e lavagem peritoneal diagnóstica Arteriografia Laparoscopia No politraumatizado, efectua-se: Radiografia da coluna cervical Radiografia tórax Radiografia da bacia Só depois de se ter a certeza da estabilidade da coluna vertebral e da bacia, se pode avançar para as incidências ósseas e para a radiografia simples do abdómen (que normalmente não fornece muita informação). Na imagem observa-se a camara de ar do estômago, dois corpos estranhos (um projéctil e um eléctrodo de monitorização) e apagamento do ângulo costo-frénico esquerdo (significando que existe liquido intratorácico, num contexto de trauma trata-se, provavelmente, de sangue). Sinais que podem sugerir lesão intra-abdominal ou retroperitoneal no estudo radiológico: Pneumoperitoneu Deslocamento mediano da câmara de ar gástrica Apagamento da linha reno-psoas Extravasamento de contraste (se for administrado) Nos traumatismos abertos, podem ser úteis outras incidências para localizar o trajecto, particularmente nos traumatismos por arma de fogo. A ecografia abdominal é um método de diagnóstico muito bom pois pode ser feito à cabeceira do doente. A sua principal desvantagem é o facto de ser operador-dependente. A ecografia é útil para detectar hemoperitoneu, derrame pericárdico e derrame pleural. No trauma utiliza-se a FAST (focused abdominal sonography for trauma), que deve ser efectuada pelo médico prestador de cuidados no Serviço de Urgência e não pelo imagiologista. A ecografia abdominal dirigida nos traumatismos abdominais é um exame rápido, que não deve durar mais de 5 minutos, e simples para determinar a presença ou ausência de hemoperitoneu (a quantidade mínima para o diagnóstico é de 70cc). Pode-se avaliar o espaço de Morrisson (espaço hepatorrenal), o parênquima hepático, o parênquima renal, o pericárdio, o espaço peri-esplénico, as goteiras parieto-cólicas e a região
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supra-púbica. Esta ecografia deve ser feita, de preferência, antes da algaliação. O importante não é a determinação da origem da hemorragia, mas sim a identificação da mesma. A tomografia computadorizada é o exame de eleição para determinar a etiologia da lesão. É um método não invasivo que deve ser feito em doentes hemodinamicamente estáveis. Embora a sua interpretação seja subjectiva, é pouco dependente do operador. É muito útil na avaliação do espaço retro-peritoneal. A sua utilidade é mais discutível no traumatismo aberto, porque a TC não é um exame de eleição para órgãos ocos. Valoriza o estado das vísceras maciças, e permite estabelecer uma classificação da gravidade das lesões. Fornece sinais indirectos de lesão de víscera oca (borbulhas de gás ectópico ou pneumoperitoneu franco, estreitamento da parede de ansa intestinal, hiperdensidade da gordura mesentérica), embora tenha uma baixa precisão diagnóstica para o diagnóstico destas lesões. Permite também detectar a presença de líquido intra-abdominal e estabelecer a sua origem (sangue, urina ou conteúdo intestinal), em função da sua densidade radiológica. Além disso pode quantificá-lo. A introdução da TAC helicoidal acelera a técnica, limitando-a a escassos minutos. As indicações mais claras são: Politraumatizado estável com hematúria (macro ou microscópica) ou com traumatismo pélvico. Avaliação diferida e controlo da lesão de órgão maciço no politraumatizado estável. Nos anos 80 da década passada, não existia TCs e ecografias abdominais, pelo que se utilizava a técnica de punção e lavagem peritoneal. Podia ser efectuada em doentes hemodinamicamente estáveis, com líquido intraperitoneal e sem lesão de órgão maciço, para determinar se o líquido tinha origem numa perfuração de víscera oca ou se se tratava de sangue. Se o líquido drenado tivesse um aspecto entérico, ou se o sangue tivesse uma contagem de 100 mil eritrócitos ou 500 leucócitos por mm 3, era necessário operar o doente. A arteriografia, que tem indicações muito específicas, tem um valor diagnóstico e terapêutico (nomeadamente, pode-se fazer a embolização de um pequeno vaso hemorrágico). A arteriografia é um método invasivo e moroso, que requer técnicos especializados e não está disponível em todos os centros. Só pode ser efectuada em doentes estáveis, sem indicação para laparotomia urgente e sem alergia ou contra-indicação para contraste iodado. A laparoscopia é menos utilizada porque dá menos informação sobre a lesão e se, se revelar necessário efectuar terapêutica cirúrgica por laparotomia, a laparoscopia é uma perda de tempo. A laparoscopia não valoriza o retroperitoneu (vê-se apenas a face anterior dos órgãos intra-abdominais) e não está isenta de complicações, mas pode ajudar a detectar lesões ocultas e a estabelecer uma terapêutica conservadora. Lesão hepática e biliar Nem todo o doente com lesão do fígado tem que ser operado. O traumatismo hepático pode ir desde mortal a minor, sendo classificado em 6 graus (I-VI). O tratamento pode ir desde a intervenção cirúrgica urgente até ao simples repouso. Um exemplo de uma cirurgia de controlo de danos (damage control) é envolver o fígado em compressas para controlar uma hemorragia intra-abdominal. Depois faz-se uma laparostomia, isto é, o doente fica com o abdómen aberto. Passadas 24 a 48 horas o doente volta a ser operado (mesma técnica que é utilizada nas peritonites). A CPRE (colangiopancreatografia retrógrada endoscópica) permite avaliar as vias biliares. Perante uma fístula biliar o tratamento passa por uma esfincterotomia trans-endoscópica por CPRE (ETE). 83
Lesão esplénica As lesões esplénicas também são classificadas em 6 graus de gravidade (I a VI). Deve-se tentar preservar o baço com medidas conservadoras (monitorização do doente em repouso) ou, se necessário, com cirurgia conservadora (hemóstase da área ou ressecção da área hemorrágica), ou ainda, se o hilo estiver lesado, é necessário efectuar esplenectomia. Lesão do intestino delgado A lesão do intestino delgado tem indicação formal para cirurgia (sutura simples ou ressecção com anastomose). Se o doente apresentar múltiplas lesões além do intestino delgado (por exemplo, fígado e baço), e para não se perder tanto tempo com este órgão, utiliza-se as GIA como solução provisória (damage control). Após o tratamento dos outros órgãos e quando o doente estiver estável, volta-se a intervencionar o doente para restabelecer o transito intestinal. Lesão do cólon e recto Se houver lesão do cólon a cirurgia é absolutamente essencial. A particularidade do colon em relação ao jejuno-ílion é o facto de no cólon haver uma maior quantidade de bactérias e, por isso, uma perfuração do cólon pode ser muito mais grave do ponto de vista asséptico. Quando não é possível encerrar os orifícios de perfuração do colon com anastomoses deve-se fazer uma colonostomia à pele, que deve ser reconstruida a postriori. Lesão do diafragma O diagnóstico de lesões do diafragma, por vezes, é tardio e requer terapêutica cirúrgica. Pode ser causado por traumatismo fechado ou penetrante. No traumatismo penetrante associa-se frequentemente a lesões dos órgãos adjacentes. O diagnóstico no traumatismo fechado pode ser tardio. Lesão do pâncreas e duodeno Traumatismos de difícil diagnóstico e grande gravidade. As lesões isoladas do pâncreas podem ser tratadas de forma conservadora. As lesões duodenais requerem terapêutica cirúrgica. Lesão do aparelho urinário Nas lesões renais que não incluam a árvore excretora ou uma estrutura vascular major pode-se ter uma atitude conservadora ou, em caso de intervenção cirúrgica, pode-se conservar parte do rim.
EM SUMA O traumatismo abdominal pode não ser a condição mais relevante no politraumatizado. Deve-se restabelecer as funções vitais, optimizar a oxigenação e a perfusão dos tecidos. É necessário obter uma boa percepção do mecanismo da lesão. O exame físico inicial deve ser meticuloso, e sua repetição deve ser feita em intervalos regulares. O controlo clinico é essencial, devendo-se avaliar as diferenças no estado do doente ao longo do tempo. A selecção das manobras de diagnóstico deve estar de acordo com as necessidades, com um mínimo desperdício de tempo. Manter um alto nível de suspeição relacionado com lesões ocultas vasculares ou do espaço retroperitoneal. Percepção precoce da indicação cirúrgica e laparotomia atempada.
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HÉRNIAS DA PAREDE ABDOMINAL Epidemiologicamente, estima-se que 5% da população desenvolverá uma hérnia da parede abdominal, sendo que a sua prevalência aumenta com a idade. 75% - Hérnias inguinais - 50% - Hérnias inguinais indirectas - 25% - Hérnias inguinais directas 10-15% - Hérnias incisionais 10% - Hérnias epigástricas (da linha branca) e umbilicais 5% - Hérnias femorais Outras (lombares, obturadoras) Uma hérnia é uma saída de conteúdo de uma cavidade, através de um orifício natural ou adquirido ou de uma área de fraqueza, para um saco herniário. A hérnia é constituída por: Saco herniário – formado por peritoneu parietal que envolve o conteúdo herniado Colo do saco herniário – é a porção mais estreita do saco herniário, sendo um defeito na camada aponevrótica mais interna do abdómen – é a zona de fraqueza.
CLASSIFICAÇÃO Quanto à localização Hérnia externa – quando há protusão através de todas as camadas da parede abdominal (musculares e tecido celular subcutâneo). Hérnia interna – quando há protusão através de um defeito dentro da cavidade peritoneal. É difícil de palpar por não ultrapassar a parede abdominal. Exemplo: bridas – são aderências, muitas vezes subsequentes a cirurgias, sobretudo quando há processos inflamatórios, entre as quais se podem formar orifícios para onde podem herniar estruturas intra-abdominais, ficando aí encarceradas. Hérnia interparietal – o saco herniário está dentro da camada músculo-aponevrótica da parede abdominal, ou seja, o saco herniário passa por algumas camadas musculares mas não por todas, ficando contido entre os músculos e não alcançando o tecido celular subcutâneo. Por exemplo, hérnia de Spiegel. Quanto à redutibilidade Hérnia redutível – é possível recolocá-la na cavidade abdominal - Coercível – permanece na cavidade abdominal após a redução - Incoercível – assim que se deixa de aplicar pressão, volta a sair da cavidade abdominal. Normalmente são hérnias volumosas, com colos largos. Hérnia irredutível – pode ser irredutível por estar estrangulada ou encarcerada ou ainda por ser uma situação antiga em que, devido a processos inflamatórios repetidos, se formam aderências entre o conteúdo da hérnia e o saco herniário, impedindo a sua redução. - Encarcerada – não há comprometimento vascular. - Estrangulada – já há comprometimento vascular (isquémia). É a complicação mais grave, constituindo uma emergência cirúrgica, sendo que muitas vezes é necessário fazer uma ressecção de ansa ou do epíploon, devido ao comprometimento vascular das estruturas herniadas. 85
ETIOLOGIA As hérnias da parede abdominal podem dever-se a: Aumento crónico da pressão intra-abdominal – devido a obesidade, esforço abdominal (exercícios, levantamento de pesos), tosse (doentes com DPOC aparecem mais frequentemente com hérnias), obstipação, prostatismo, ascite, gravidez, diálise peritoneal ambulatória crónica ou tumores abdominais. Fragilidade da parede abdominal – idade avançada, doenças debilitantes crónicas, traumatismos, anomalias do desenvolvimento embrionário da parede e cavidade abdominal, atrofia muscular, doenças do colagénio, tabagismo ou défice de α1-anti-tripsina (os défices de colagénio levam a debilidade das aponevroses, reflectindo-se na continência da parede abdominal).
Pontos de fragilidade da parede abdominal Os pontos de fragilidade da parede abdominal são: Linha branca – hérnia epigástrica Linha semilunar ou de Spiegel – hérnias de Spiegel Região umbilical – hérnias umbilicais Canal inguinal – é um canal com cerca de 4cm de comprimento, que se estende entre o anel inguinal profundo (mais lateral), um orifício na fascia transversalis a meia distância entre a espinha ilíaca ântero-superior e o tubérculo púbico, 2cm acima do ligamento inguinal, e o anel inguinal superficial (mais mediano), um orifício na aponevrose do músculo oblíquo externo, imediatamente superior e lateral ao tubérculo púbico. Os seus limites são: Parede anterior – aponevrose do oblíquo externo e fibras musculares do oblíquo interno no 1/3 lateral Parede posterior – fáscia transversalis e aponevrose do transverso Parede superior – oblíquo interno e transverso do abdómen Parede inferior – ligamento inguinal e ligamento lacunar na porção mais medial Contém o cordão espermático no homem, o ligamento redondo na mulher e o nervo ílio-inguinal em ambos os sexos. Triângulo de Hesselbach – para dentro e para cima do trajecto do canal inguinal Limite súpero-lateral – vasos epigástricos inferiores Limite medial – bordo lateral do recto abdominal Limite inferior – ligamento inguinal Pavimento – fáscia transversalis Canal/Anel femoral Limite superior – ligamento inguinal Limite inferior – músculo pectíneo Limite lateral – veia femoral Limite medial – ligamento lacunar 86
Triângulo lombar superior (Grynfelt) Limite superior – 12ª costela Limite medial – quadrado lombar Limite ínfero-lateral – oblíquo interno Pavimento – aponevrose do transverso do abdómen Triângulo lombar inferior (Petit) Limite medial – grande dorsal Limite lateral – oblíquo externo Inferior – crista ilíaca Pavimento – oblíquo interno
DIAGNÓSTICO Habitualmente é feito apenas com base na anamnese e exame físico.
Anamnese Em termos sintomáticos, as hérnias da parede abdominal cursam com: Tumefacção de evolução insidiosa ou desencadeada por um esforço muscular vigoroso, que aumenta de volume com o aumento da pressão abdominal (por exemplo, quando o doente tosse) e sofre redução espontânea com o decúbito ou por pressão manual. Desconforto local mais grave ao final do dia, que alivia com o decúbito. Pode complicar-se com oclusão intestinal, quando há uma ansa que fica presa no saco herniário, que se manifesta por distensão abdominal, dor abdominal, alterações do trânsito intestinal e vómitos (hérnia complicada). Os antecedentes pessoais relevantes são a existência de outras patologias e condições que aumentem cronicamente a pressão intra-abdominal ou enfraqueçam a parede abdominal e a história de hérnias e sua reparação (por exemplo, incisões de laparotomia).
Exame Físico O doente deve ser observado em posição ortostática e decúbito dorsal. À inspecção, deve-se observar a localização e forma da tumefacção, se há impulso da tumefacção com a tosse (impulso tossígeo) e se há presença de cicatrizes ou sinais inflamatórios (hérnia complicada de momento ou num passado recente). À auscultação e percussão, deve fazer-se a avaliação do conteúdo do saco herniário e de sinais de possível oclusão intestinal. O saco herniário pode ter apenas epíploon ou ter também ansas intestinais, que se manifestam por ruídos hidroaéreos. À palpação deve ser avaliado o tamanho, consistência, limites, mobilidade em relação aos planos profundos e à pele e sensibilidade dolorosa do saco herniário. Deve fazer-se palpação do orifício herniário, ver o impulso com a tosse e a redutibilidade e coercibilidade da hérnia. Nas hérnias inguinais é importante ver a orientação da tumefacção, para distinguir entre hérnia directa e indirecta. A hérnia indirecta muitas vezes apresenta-se como uma tumefacção mais arredondada, enquanto que a indirecta tem um aspecto mais ovalado. 87
Exames complementares de diagnóstico – são pouco utilizados. Ecografia – é relativamente simples e ajuda no diagnóstico diferencial entre as hérnias Radiografia abdominal simples – dá informações sobretudo se a hérnia estiver complicada. Exemplo: níveis aéreos que imagiologicamente se dizem “em pilha de moedas”, sugestivo de obstrução/oclusão intestinal. TAC – só em caso de hérnias muito complicadas ou hérnias internas
TRATAMENTO Conservador – consiste no controlo da pressão intra-abdominal e no uso de cintas elásticas (método de contenção). Não é curativo, sendo que, quando muito, serve para evitar a progressão da hérnia. Está indicado quando o doente recusa ou quando há contra-indicações para a cirurgia. Há risco de complicações, mesmo a hérnia estando contida. Cirúrgico – as hérnias não complicadas devem ser tratadas em cirurgia electiva, enquanto que as hérnias encarceradas constituem uma urgência cirúrgica. Pode tentar fazer-se a redução da hérnia nas primeiras 6h de encarceramento e fazer a cirurgia posteriormente, mas quanto mais tempo a hérnia estiver exteriorizada, maior o risco de estar estrangulada e de haver perfuração durante a tentativa de redução. Para além disso, há o risco de reduzirmos a hérnia em bloco, ou seja, o anel herniário é também reduzido, pelo que a hérnia continua encarcerada, mas já não faz protusão na parede abdominal, deixando de ser palpável. Hérnias estranguladas têm de ser sempre operadas. Se as tentarmos reduzir, como já há zonas de isquémia e necrose, vamos levar a um quadro de peritonite por ruptura da víscera, que pode levar a sépsis. A base do tratamento cirúrgico é sempre semelhante – reduzir a hérnia e tratar o defeito da parede. As hérnias podem ser inguinais, femorais, epigástricas, incisionais, umbilicais ou outras, mais raras.
HÉRNIAS INGUINAIS São muito mais frequentes no sexo masculino e podem ser directas ou indirectas. Indirectas
Directas
Maior prevalência
Menos comuns
Mais frequente na criança e adulto jovem
Mais comum no idoso
Frequentemente sintomática e associada a complicações
Menos sintomática e raramente associada a complicações
Hérnia mais frequente do sexo masculino
Hérnia mais frequente do sexo feminino
Indirectas Podem ter origem na retenção ou obliteração incompleta do processo vaginal e/ou num aumento da pressão abdominal.
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O saco herniário entra no anel inguinal profundo, lateralmente à artéria epigástrica inferior profunda, e pode estender-se ao longo do canal inguinal e até sair pelo anel inguinal superficial. Uma hérnia que passe inteiramente para dentro do escroto é designada de hérnia completa. Epidemiologicamente, são mais frequentes no sexo masculino, dado que o canal é mais largo devido à passagem do testículo, que deixa um orifício na aponevrose, e ao facto de o cordão espermático estar livre no canal, ao passo que o ligamento redondo adere às suas paredes, ajudando a selar o canal. A descida do testículo pode resultar em várias situações: encerramento completo do canal inguinal, formação de uma zona de bolsa junto ao testículo (hidrocelo), patência do canal, quisto do cordão espermático ou hérnia com um saco herniário que vai até ao escroto. O cordão espermático é formado pelos vasos que vão para o testículo, o canal deferente e o cremaster, que o recobre. É mais frequente à direita, tendo 2 picos de incidência: um aquando do nascimento e dos primeiros meses/anos de vida e outro após os 40 anos. Podem complicar mais frequentemente, dado que o canal inguinal é mais estreito, em encarceramento, estrangulamento ou obstrução intestinal.
Directas Têm origem numa fraqueza desenvolvida pela fáscia transversalis, na área do triângulo de Hesselbach, em consequência da idade (enfraquecimento da parede) e da existência de pressões abdominais aumentadas e, possivelmente, defeitos da síntese ou metabolismo do colagénio. O saco herniário projecta-se directamente na parede abdominal, medialmente à artéria epigástrica inferior profunda. Muito raramente, por exemplo, quando há uma alteração do colagénio, cresce a ponto de forçar a sua parede pelo anel inguinal superficial e descer para o escroto. Raramente complica, dado que o colo herniário é mais largo. Diagnóstico diferencial hérnia directa vs indirecta Uma hérnia que desce para dentro do escroto é, mais provavelmente, indirecta. Quando o dedo do examinador é introduzido no anel inguinal superficial, progredindo posteriormente pelo saco herniário, uma hérnia directa faz protrusão na parede medial do dedo, enquanto uma hérnia indirecta é sentida na ponta do dedo. * Á inspecção, com o doente em ortostatismo, a hérnia directa aparece mais comummente como uma tumefacção mal delimitada, 89
medialmente ao canal inguinal, a qual desaparece quando o doente se deita. A hérnia indirecta surge como uma tumefacção bem delimitada, que pode ser difícil de reduzir. * Há alguns truques para perceber, à palpação, se a hérnia é directa ou indirecta. Quando pomos o dedo no trajecto do saco herniário, através do escroto, e tentamos palpar o impulso tossígeo, se o palparmos no bordo do dedo trata-se, provavelmente, de uma hérnia directa, se palparmos na polpa do dedo, provavelmente, é uma hérnia indirecta. Podemos ainda fazer a prova dos 3 dedos, em que, se o impulso máximo é sentido no dedo médio, estamos na presença de uma hérnia indirecta; se for no indicador, a hérnia é directa; se for no anelar, a hérnia é femoral. As hérnias inguinais fazem diagnóstico diferencial com hérnia femoral, hematoma, adenite inguinal, testículo ectópico, lipoma, hidrocelo. O doente deve ser examinado tanto deitado como de pé, e ainda ao tossir, pois pode ser difícil demonstrar-se hérnias pequenas.
HÉRNIAS FEMORAIS Têm origem num anel femoral alargado e são mais comuns no sexo feminino, apesar de serem mais raras que a hérnia inguinal em ambos os sexos. Geralmente são assintomáticas, até à ocorrência de uma complicação, como encarceramento ou estrangulamento. Como são muito pequenas, muitas vezes passam despercebidas até ao primeiro episódio de complicação e, muitas vezes, quando encarceram, não é possível reduzi-las na urgência, o que obriga a cirurgia de urgência. Consistem numa pequena saliência na parte súpero-medial da coxa, logo abaixo do ligamento inguinal. Com o crescimento do saco herniário pode evidenciar-se, igualmente, ao nível do ligamento inguinal ou acima dele, sendo necessário fazer diagnóstico diferencial com hérnia indirecta. Com a manobra dos 3 dedos, o impulso máximo é sentido no dedo anelar. Classificação das Hérnias Inguinais (Gilbert, modificada por Rutkow e Robbins) Indirectas I. Pequenas II. Médias III. Grandes Directas IV. Todo o pavimento V. Diverticulares Combinadas, em calções ou em pantalon VI. Indirectas e directas Femorais – VII
HÉRNIAS EPIGÁSTRICAS Consistem numa protusão de gordura peritoneal ou peritoneu na linha alba, através dos orifícios criados pelos vasos perfurantes, entre a apófise xifóide e o umbigo. São mais frequentes nos homens, entre os 20 e 50 anos, sendo que cerca de 20% das hérnias epigástricas são múltiplas. Os sintomas variam entre dor epigástrica ligeira e dor profunda com irradiação para o dorso, acompanhada de distensão abdominal, náuseas e vómitos. 90
Estas hérnias subdividem-se em: Hérnia de Richter: ocorre quando apenas o bordo antimesentérico do intestino sofre herniação através do defeito fascial, podendo estrangular, perfurar ou necrosar sem dar sinais de oclusão intestinal. Hérnia por deslizamento: Ocorre quando a parede de uma víscera (cego, cólon sigmóide, ovário, bexiga – o delgado não!) forma parte do saco herniário (uma parte do saco é constituída por uma porção da parede de um órgão). Normalmente são hérnias com colo largo. É frequente acontecer quando há uma hérnia inguinal do lado direito e há descida do cego para o saco herniário. O reconhecimento desta variação tem grande importância na cirurgia, caso contrário, podemos acidentalmente perfurar o intestino ou a bexiga. É necessário ter em atenção as características destas estruturas aquando da cirurgia, sendo que a parede dos órgãos é mais espessa, enquanto que o saco herniário normalmente é uma membrana translúcida, a não ser em caso de estrangulamento, em que a membrana é muito mais espessa.
HÉRNIAS INCISIONAIS Ocorrem através de uma cicatriz cirúrgica presente na parede abdominal, podendo estar associadas a técnica cirúrgica deficiente, condições locais desfavoráveis (quando há formação de hematomas ou seromas), infecção pós-operatória (sobretudo imunodeprimidos), idade avançada, desnutrição, ascite, obesidade, gravidez ou tosse intensa e crónica (DPOC). Todos estes factores podem levar a uma má cicatrização, que favorece o aparecimento de uma hérnia incisional. Cerca de 10% das cirurgias abdominais ocasionam hérnias incisionais, sendo estas menos frequentes após incisões transversais. Os sintomas são tumefacção de tamanho variável na linha da incisão e desconforto local e as complicações podem ser encarceramento e estrangulamento e ainda, quando são muito volumosas, podem dar disfunção respiratória quando são corrigidas, dado que, ao reduzir todo aquele conteúdo herniário para o interior da cavidade abdominal pode haver compromisso da dinâmica ventilatória por aumento considerável e repentino da pressão intra-abdominal. O tratamento é, geralmente, cirúrgico.
HÉRNIAS UMBILICAIS Congénitas Devem-se a obliteração incompleta do anel umbilical durante o colapso dos vasos umbilicais, logo após o nascimento, sendo uma patologia muito comum. As complicações (encarceramento e estrangulamento) são raras e é frequente a resolução espontânea até aos 3/4 anos. Aquelas que não regridem até aos 7 anos, necessitam de intervenção cirúrgica.
Adquiridas São situações em que o tecido cicatricial que fecha o anel umbilical cede gradualmente, com a hérnia a aumentar progressivamente de tamanho, sendo muito rara a obliteração espontânea. O estrangulamento é comum e o tratamento é cirúrgico. Os factores predisponentes incluem múltiplas gestações, ascite, obesidade ou 91
grandes tumores intra-abdominais.
HÉRNIAS DE LITTRÉ É uma hérnia que contém um divertículo de Meckel no saco herniário. Ocorre mais frequentemente nas hérnias inguinais (50%) e femorais (20%), consistindo o tratamento na reparação cirúrgica da hérnia e, se possível, excisão do divertículo. A título de curiosidade, podemos também ter o apêndice no saco herniário de uma hérnia inguinal: hérnia de Amyand.
HÉRNIAS LOMBARES Ocorre nas áreas frágeis da parede abdominal posterior (triângulo lombar superior e triângulo lombar inferior) e podem ser congénitas, adquiridas ou iatrogénicas (cicatriz de lombotomia). São mais frequentes no triângulo lombar superior e cerca de 10% encarceram e estrangulam.
HÉRNIAS OBTURADORAS Ocorre devido a um enfraquecimento da membrana obturadora e consequente alargamento do canal obturador. É mais frequente em mulheres e manifesta-se com tumefacção na região súpero-medial da coxa associada a dor que irradia para a parte medial do joelho. É frequente ocorrer encarceramento e estrangulamento, associados a uma elevada taxa de mortalidade (13-40%), sobretudo porque o diagnóstico é difícil dado que, como são tão raras, normalmente ninguém se lembra delas. Diagnóstico por TAC.
HÉRNIAS SPIEGEL Ocorre na fáscia de Spiegel, na zona de fraqueza da linha semilunar, frequentemente abaixo da linha arqueada. Por vezes, é de diagnóstico difícil por não haver massa palpável (muitas vezes são hérnias interparietais). Está associada a uma alta incidência de estrangulamento, dado que o diagnóstico é difícil de fazer, sobretudo se forem hérnias pequenas.
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ESTÔMAGO E DUODENO PRINCIPAIS SINTOMAS Dor É necessário caracterizar a dor. Localização/Irradiação Quando ocorre dor por patologia gastroduodenal, esta localiza-se no epigastro, podendo estender-se à região umbilical ou aos hipocôndrios. Características Contínua – constante e de menor intensidade. Cólica – há uma alternância entre momentos de dor intensa e momentos de dor branda. Intensidade Hiperestesia cutânea – dor muito ligeira, identificada pelo doente como “impressão”. Exemplo: quando apanhamos um “escaldão” e tocamos com os dedos ou com a roupa na pele temos uma sensação de queimadura. Moinha – sensação de desconforto de maior intensidade. “Facada” – dor intensa e localizada característica de uma perfuração, sem que na realidade o doente tenha levado uma facada. Factores de agravamento/alívio Exemplo: Na úlcera gástrica, a dor intensifica sempre que o doente come ou quando há toma de AINEs, corticóides, álcool e café. Na úlcera duodenal, a dor agrava com a toma de AINEs, corticóides, álcool e café e melhora com a ingestão de alimentos, nomeadamente os que têm efeito anti-ácido (alcalino), como o leite, ou quando tomam qualquer medicamento com o efeito de anti-ácido. Calendário Sem que se conheça uma explicação para tal, há um maior número de perfurações de úlcera péptica na primavera e no outono, o que corresponde a uma intensificação da patologia e da dor gastroduodenal nestes períodos. Horário Por exemplo, a úlcera duodenal tem horário, isto é, a dor intensifica a meio da noite/madrugada.
Náuseas e vómitos A náusea é uma sensação de mal-estar difícil de caracterizar, com sensação de vómito eminente. O vómito é o regresso activo dos alimentos previamente ingeridos à boca. Ao contrário da regurgitação, no vómito existe uma contracção muscular antiperistáltica, com contracção intrínseca dos órgãos do tubo digestivo, do diafragma e dos músculos da parede abdominal. Na regurgitação o regresso de alimentos à boca é passivo, enquanto que, no vómito este regresso é activo. É por esta razão que as pessoas que vomitam muito, como por exemplo as grávidas no 1º trimestre, têm a sensação de cansaço, de dor e de desconforto abdominal. O médico deve observar o vómito a fim de poder descrever as suas características 93
Aquoso – tem um aspecto incolor. Alimentar – quando contém alimentos. De estase – se o vómito tiver alimentos, e esses alimentos tiverem sido ingeridos há mais de 24 horas. Bilioso – quando o vómito é amargo, desagradável e amarelo, significa que contém bílis. Hematemese – é um vómito com sangue. Deve-se especificar se este vómito é de sangue vivo ou de sangue parcialmente digerido. O sangue vivo indica que há uma hemorragia recente ou activa no esófago, estômago ou 1ª porção do duodeno. O sangue parcialmente digerido é aquele tem uma origem mais distal ou que, sendo do esófago ou do estômago, esteve algumas horas contido no estômago.
Alterações do apetite Anorexia global – o doente não tem apetite, tendo até uma certa repulsão pelos alimentos. Anorexia selectiva – o doente tem uma aversão particular a um determinado alimento. Exemplo: é frequente nas neoplasias gástricas os doentes não conseguirem comer carne. Plenitude/Enfartamento precoces – é comum nas neoplasias gástricas, em que o doente come 2 colheres de sopa e fica enjoado.
Alterações do trânsito intestinal Síndrome de Dumping O estômago funciona como um saco que retém os alimentos ingeridos durante algum tempo e misturaos, tornando-os isosmóticos (por acção do ácido clorídrico e da pepsina). É suposto que os alimentos permaneçam no estômago durante alguns minutos e que depois passem faseadamente para o duodeno através do piloro. Deste modo, é fisiológico que passem pequenas quantidades de alimentos isosmóticos para o duodeno. Se o estômago for rígido, este não se adapta tão bem aos alimentos e não os envia para o duodeno de forma faseada, pelo que vão chegar ao duodeno grandes quantidades de alimentos hiperosmolares que provocam uma chamada de líquidos ao lúmen intestinal, levando assim a uma diarreia. Isto acontece quando não há estômago ou quando a compliance do estômago está diminuída, levando a fezes diarreicas muito aquosas. É uma síndrome relativamente típica da linite plástica, em que o estômago perdeu a sua compliance. Melenas Melenas são a emissão de sangue digerido pelo ânus. A emissão de sangue já digerido, tipicamente escuro, muitas vezes descrito como “borra de café” ou “alcatrão”, é relativa a uma hemorragia da porção alta do tubo digestivo. A presença de sangue no tubo digestivo causa hipercinésia intestinal. Deste modo, é frequente que o doente que perde sangue o elimine com rapidez. Exemplo: Se um doente com varizes esofágicas que está a perder sangue for tratado com eficácia, deixando de sangrar, é muito provável que este doente deixe de ter melenas rapidamente.
ÚLCERA PÉPTICA A úlcera péptica é benigna, sendo diferente de neoplasia ulcerada que é maligna. A úlcera péptica deve ser encarada como um desequilíbrio entre factores agressivos e factores protectores da mucosa gástrica ou duodenal.
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São exemplo de factores agressivos: Ácido clorídrico Pepsina (proteolítico potente) Factores extrínsecos, como AINEs (aspirina) Helicobacter pylori (resiste ao meio ácido porque é envolvida por uma atmosfera azotada). Uma das funções do ácido clorídrico e da pepsina é liquidar as bactérias que vêm no bolo alimentar. Os factores protectores do tubo digestivo são: Bicarbonato Fluxo sanguíneo aumentado O muco produzido pelas células gástricas (que protege a mucosa da auto-agressão pelo ácido clorídrico) e as junções celulares (gap-junctions) da mucosa gástrica que impedem a agressão intercelular do ácido clorídrico e da pepsina. As células da mucosa têm na sua porção apical uma cutícula de protecção das agressões químicas. A rápida reparação de lesões da mucosa (reconstituição rápida da barreira mucosa, proliferação celular rápida e concentração elevada de factores de crescimento). Na úlcera gástrica, o mecanismo fisiopatológico tem por base, sobretudo, a falha dos factores defensivos, enquanto que a úlcera duodenal acontece, sobretudo, devido ao aumento de factores agressivos, podendo os factores defensivos estar normais ou ligeiramente diminuídos. É errado medicar o doente sem o diagnóstico definitivo de úlcera péptica, pois se o doente tiver uma neoplasia, também apresentará melhoria sintomática e estamos, assim, a mascarar a verdadeira doença (atrasar o tratamento de um neoplasia gástrica pode fazer uma grande diferença de prognóstico). É obrigatório excluir a presença de neoplasia gástrica, devendo-se pedir uma endoscopia digestiva alta (EDA) que permite fazer múltiplas biópsias dirigidas (7 a 13 amostras). A primeira escolha deverá ser sempre uma EDA, mas se não for possível realizá-la, deve-se recorrer a uma radiografia com contraste baritado. A pHmetria e o doseamento de sucos gástrico e duodenal são pouco utilizados actualmente devido à banalização da EDA. A presença da Helicobacter pylori pode ser testada de várias formas, como por exemplo, através de biópsia da mucosa gástrica. Esta bactéria parece favorecer a manutenção crónica de úlcera péptica, sendo aconselhável a irradicação deste agente. A úlcera péptica faz diagnóstico diferencial com: Neoplasia gástrica Colecistite calculosa Doença do refluxo gastroesofágico Síndrome do cólon irritável Enfarte agudo do miocárdio (enfarte da face posterior da parede posterior do coração) Pancreatite aguda (a própria úlcera, após a erosão de toda a parede do estômago ou duodeno, pode lesar o pâncreas causando pancreatite aguda. É importante diferenciar se se trata de uma úlcera péptica que penetrou no pâncreas ou se é uma pancreatite aguda de outra causa). A terapêutica médica só deve ser feita após exclusão de neoplasia gástrica: Inibidor da bomba de protões – inibe a produção de anidrase carbónica, inibindo totalmente a produção de ácido clorídrico. Como não há úlcera sem ácido, este fármaco permite tratar a grande maioria das úlceras pépticas. Bloqueador dos receptores H2 das células parietais 95
Erradicação da Helicobacter pylori – através da associação de 2 ou 3 antibióticos. A terapêutica cirúrgica da úlcera gástrica é rara actualmente, sendo usada apenas em complicações da úlcera péptica: Hemigastrectomia distal – retira-se a metade distal do estômago onde é produzido o ácido clorídrico. Vagotomia troncular e drenagem – é o nervo vago que, quando estimulado, permite a produção de ácido clorídrico e pepsina. No entanto, a secção do nervo vago ao nível da sua emergência no duodeno provoca incapacidade de abertura do piloro e, assim, esta cirurgia tem que ser associada a uma operação de drenagem como a piloroplastia ou a anastomose entre estômago e jejuno (gastrojejunostomia). A terapêutica cirúrgica da úlcera duodenal também só é efectuada em casos muito específicos, sendo rara: Vagotomia das células parietais – secção das terminações secretoras do nervo vago Vagotomia troncular com drenagem Vagotomia e antrectomia – é o tratamento mais eficaz, mas também o que traz mais complicações. São complicações da úlcera péptica: Perfuração – cursa com dor muito intensa tipo “facada” na região epigástrica que rapidamente se generaliza para todo o abdómen. O doente pode referir dificuldade respiratória, porque o movimento do diafragma causa dor (devido ao aumento de pressão intra-abdominal), sendo frequente a presença de adejo nasal. Habitualmente, o doente desidrata e o seu estado geral deteriora-se com rapidez (fica prostrado e queixoso). Uma agressão ao peritoneu, quer por perfuração, quer por uma facada, leva à rápida formação de ascite. O princípio geral desta resposta do peritoneu à agressão é: the solution of polution is dilution. O doente tende a permanecer quieto pois os movimentos causam dor. A pele encontra-se fria, suada e pálida. O doente encontra-se taquicárdico, polipneico, oligúrico e a sua tensão arterial ou não é mensurável ou está baixa. Na auscultação do abdómen os ruídos hidroaéreos estão ausentes, a percussão abdominal é muito dolorosa, mostrando perda de macicez hepática (porque o ar que sai do duodeno e aloja-se entre a parede abdominal e o fígado) e na palpação abdominal o ventre está contraído involuntariamente (ventre em tábua). Os toques rectal e vaginal são úteis, pois se houver líquido livre na cavidade peritoneal, o toque será doloroso e é possível perceber um fundo de saco de Douglas abaulado. Como exames complementares de diagnóstico, deve pedir-se uma radiografia torácica ou abdominal em que sejam visíveis as cúpulas diafragmáticas, devendo-se procurar ar à direita e não à esquerda, pois a câmara de ar do estômago situa-se à esquerda. Tipicamente, estes doentes apresentam leucocitose extrema (15 mil a 18 mil leucócitos), neutrofilia e o hematócrito está aumentado (devido à desidratação e à ascite). Se o doente vomitar, deixa de ingerir líquidos e alimentos e pode também haver uma passagem rápida de iões para a cavidade abdominal, o que leva a um desequilíbrio hidroelectrolítico. Perante este diagnóstico, a melhor terapêutica é a cirurgia para reparar a perfuração. Reanimação expedita: deve fazer-se entubação naso-gástrica para evitar uma maior contaminação do peritoneu, deve-se, também, algaliar o doente para monitorizar o equilíbrio hemodinâmico. Hemorragia – pode ser sob a forma de hematemese ou melenas e leva a palidez da pele e mucosas. Se a perda de sangue for crónica, o organismo adapta-se de modo a que o doente consegue fazer a sua vida normal com valores de hemoglobina de 6 g/dL. Por exemplo: se um atleta de alta competição que perdeu 1 grama de hemoglobina de forma rápida (por traumatismo ou dádiva benévola de sangue) 96
tentar levantar-se pode ter uma lipotimia. Assim, a existência de lipotimia vai depender se a anemia é aguda ou crónica. Estes doentes podem ainda ter taquicardia, hipotensão e, em casos agudos, choque hipovolémico. Faz parte da terapêutica desta complicação a reanimação expedita (soro endovenoso, entubação naso-gástrica e transfusão sanguínea), a EDA (para identificar a estrutura que está a sangrar, além de ser um meio de diagnóstico, esta técnica tem também valor terapêutico, pois permite, por exemplo, fazer esclerose de varizes hemorrágicas) e a cirurgia de emergência (quando as duas medidas anteriores não são bem sucedidas; por vezes não há condições hemodinâmicas para submeter o doente a grandes cirurgias, pelo que esta cirurgia consiste apenas em laquear vasos sangrantes). Estenose pilórica – acontece por fibrose da úlcera péptica. Origina estase gástrica, associada a vómitos de estase, o estômago pode atingir grandes volumes, a desidratação ocorre porque a água não passa, não comendo o doente perde peso e mesmo que se alimente o doente não aproveita os alimentos pois vomita devido à distensão gástrica. Ocorre uma dor tipo cólica como reacção do estômago a este obstáculo, sendo que esta dor tende a melhorar após o vómito. Em doentes muito emagrecidos é possível observar a presença de ondas peristálticas. Na auscultação identificam-se ruídos de luta na fase inicial de contracção e depois ouve-se silêncio, que representa a atonia gástrica. Se comprimirmos um estômago cheio de líquido e inerte sentimos sob a nossa mão e ouvimos as ondas de líquido, a isto chama-se marulho gástrico (som de ondas a bater na areia). As medidas terapêuticas são entubar o doente e corrigir o desequilíbrio hidroelectrolítico. Estes doentes têm benefício em não ser operados de imediato, esperando-se que recuperem e estabilizem, para que possam ser operados quando já consigam alimentar-se por via oral.
Úlcera péptica gástrica O estômago produz um ácido forte (ácido clorídrico), uma base forte (bicarbonato) e um proteolítico (pepsinogénio que em meio ácido se transforma em pepsina). O ácido clorídrico é produzido pelas células parietais do fundo gástrico, o bicarbonato por células especializadas da mucosa gástrica e o pepsinogénio pelas células principais. Ocorre na zona de passagem dos alimentos, sendo as suas localizações preferenciais o antro, a pequena curvatura e o cárdia. Quando se identifica uma úlcera noutra região do estômago deve-se colocar a hipótese de neoplasia (pode haver uma úlcera benigna fora das localizações preferenciais, mas não é comum). As úlceras gástricas podem ser únicas ou múltiplas e superficiais ou profundas. Sintomas Dor – além do epigastro pode irradiar para outros quadrantes. A dor pode ainda ser em cinturão ou transfixiva, por estimulação do plexo solar, ou pode ser sentida na região posterior do tronco, por estimulação do nervo frénico. Intensifica-se com a ingestão de alimentos, álcool, café, corticóides e AINEs. Emagrecimento – aquando das refeições o aumento do ácido clorídrico e da pepsina estimula as terminações nervosas expostas. Deste modo, como o doente tem dor quando come, ele passa a evitar comer. O que dificulta o diagnóstico diferencial clínico com as neoplasias, em que também há emagrecimento marcado.
Úlcera péptica duodenal A localização típica desta úlcera é na primeira porção do duodeno (95 a 97% das úlceras). Quando se identifica úlceras fora desta localização também se deve suspeitar de doença maligna, sendo que as
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neoplasias do duodeno são pouco frequentes, mas pode estar presente uma neoplasia do pâncreas com a produção de gastrina. As úlceras do duodeno podem ser únicas ou múltiplas e superficiais ou profundas. A perfuração acontece quando a úlcera atravessa todas as camadas da parede do órgão. Como a parede do duodeno é mais delgada que a parede do estômago, a perfuração da úlcera duodenal é mais provável. Como já referido, esta úlcera tem calendário (primavera e outono) e horário (madrugada e antes das refeições). O doente com úlcera duodenal tem uma hipersecreção (não fisiológica) constante de gastrina e ácido clorídrico que são neutralizados com os alimentos ingeridos, isto é, há uma neutralização dos factores de agressão em excesso. É por esta razão que os doentes com este tipo de úlcera comem mais vezes e podem até engordar. Os doentes acordam a meio da noite (madrugada) com intensificação da dor devido ao jejum a que estão submetidos durante o sono. O stress agrava a produção de factores de agressão, agravando a úlcera duodenal. Pode haver uma penetração da úlcera ao pâncreas, provocando uma dor em cinturão (típica de pancreatite) com irradiação para os flancos (por estimulação do plexo solar) e ainda irradiação dorsal posterior, por estimulação do frénico.
NEOPLASIA GÁSTRICA As neoplasias do estômago mais frequentes são as neoplasias malignas. Dentro das neoplasias malignas, as mais frequentes são o adenocarcinoma, o linfoma e os GIST (gastrointestinal stromal tumor, que durante muitos anos foram considerados fibromas e sarcomas gástricos). Existem lesões pré-malignas como: Gastrite atrófica – em que a mucosa gástrica se encontra pouco desenvolvida e muito pálida Gastrite do coto gástrico – acontece na porção de estômago que permanece após gastrectomia Anemia aplástica Úlcera gástrica – não há consenso científico em relação a esta relação de causalidade: alguns autores defendem que uma úlcera gástrica crónica após diversos processos evolutivos pode tornar-se numa neoplasia, enquanto que outros autores preconizam que neoplasia e úlcera gástrica são entidades diferentes sem relação entre si Helicobacter pylori – nas regiões geográficas em que há maior incidência desta bactéria, a incidência de neoplasia gástrica também é maior (exemplo: Chile e Portugal) Classificação de Lauren Intestinal – quando os tumores são bem diferenciados e as lesões vegetantes No early gastric câncer, as lesões, independentemente do seu tipo, estão confinadas à mucosa e submucosa. Quando diagnosticada nesta fase, a probabilidade de cura da neoplasia gástrica é superior a 90%. Difuso – espalha-se provocando menos lesões do tipo vegetante mas infiltrando-se em toda a parede, sendo o tumor indiferenciado. A linite plástica é típica de tumor difuso. Nesta patologia, as células tumorais invadem toda a parede do estômago, transformando-o num saco que não se distende. Sintomatologia É frequente que a neoplasia gástrica não dê sintomas, ou então os sintomas são de tal forma vagos que não indicam neoplasia. Todas as anemias devem ser despistadas. Como é evidente, um doente com uma hemoglobina baixa tem astenia e anorexia (que pode ser selectiva). Estes doentes têm anemia hipocrómica e podem ter queixas dispépticas muito inespecíficas (daí a confundir-se com úlcera péptica). Se a neoplasia crescer em direcção ao cárdia, pode haver disfagia e se crescer junto do piloro, pode 98
originar estenose pilórica com náuseas, vómitos e retenção gástrica. A plenitude precoce é sugestiva de linite plástica ou de lesão do corpo gástrico. A síndrome de Dumping sugere a existência de linite plástica. Sinais Palidez Emagrecimento Massa epigástrica – quando está presente, é provável que a neoplasia seja irressecável Distensão abdominal – quando há ascite. Uma neoplasia gástrica ou do cólon quando atinge a serosa, vai provocar nesta uma reacção que leva a ascite, havendo presença de células neoplásicas no líquido ascítico. Metastização ganglionar precoce – um caso típico é o gânglio de Virchow-Troisier que se encontra no espaço supra-clavicular (mais frequentemente à esquerda). Massas peri-umbilicais – estão relacionadas com a drenagem linfática e venosa do tumor. É um sinal de doença avançada. Tumor de Krukenberg – se o tumor atingir a serosa e houver a migração de células tumorais para a cavidade peritoneal, estas células podem-se alojar no fundo de saco de Douglas ou podem alojar-se nos ovários. Este tumor trata-se de um tumor ovárico secundário. Prateleira de Blumer – é a presença de células neoplásicas no fundo de saco de Douglas. Nos toques rectal e vaginal é perceptível um relevo no fundo de saco de Douglas Diagnóstico Como já referido, o diagnóstico de neoplasia gástrica, faz-se através de EDA com múltiplas biópsias dirigidas. Pode-se fazer radiografia com contraste. A eco-endoscopia permite avaliar a extensão do tumor na parede na região do cárdia. Após o diagnóstico de neoplasia gástrica é necessário fazer o seu estadiamento e perceber se a neoplasia está contida apenas no estômago, ou se está espalhada pelo organismo. Deste modo, deve efectuar-se sempre uma TC pulmonar e uma TC abdominal para estadiamento. A laparoscopia diagnóstica é utilizada para avaliar se é possível fazer ressecção gástrica. Habitualmente, a ressecção gástrica é feita por laparotomia, mas alguns centros já fazem através de laparoscopia. Terapêutica Nas neoplasias do cárdia e do corpo a cirurgia indicada é a gastrectomia total com anastomose do esófago com a primeira porção do jejuno. Na neoplasia do antro pode efectuar-se uma gastrectomia subtotal (distal), em que se retira o antro e fazse uma anastomose entre o coto gástrico e o jejuno. Se não for possível ressecar o tumor, deve-se fazer uma intervenção paliativa, sendo a mais adequada a gastro-jejunoscopia. No caso de neoplasia gástrica que propicie uma estenose pilórica em que os alimentos não passam para o duodeno pode-se colocar próteses endoscópicas para expandir o piloro, havendo ainda a possibilidade de realização de quimioterapia. Prognóstico O prognóstico da neoplasia gástrica é mau, sendo a sobrevida global aos 5 anos nos EUA de 12%. Deve-se individualizar cada caso e o prognóstico está muito dependente do estadiamento (TNM) da lesão. Na imagem identifica-se um gânglio muito aumentado (seguramente metastático) junto à grande curvatura do estômago (peça de gastrectomia distal). 99
INTESTINO DELGADO E CÓLON INTESTINO DELGADO ANATOMIA Quando se abre a cavidade abdominal, o primeiro órgão que se nos apresenta é o epíploon, que funciona como “polícia” na cavidade abdominal, sendo que quando há algum problema este se desloca para o local e ocupa espaços, faz plastrons, etc. Abaixo do epíploon, temos o intestino delgado, ao centro, e o cólon, à periferia. O intestino delgado é um órgão com cerca de 500cm comprimento, que se estende do ângulo de Treitz à válvula ileocecal ou válvula de Bauhin. É constituído pelo jejuno, que corresponde aproximadamente aos 2 /5 proximais, e pelo íleon, que corresponde aos 3/5 distais, apesar de, na prática, ser difícil perceber onde começa um e acaba o outro. A raiz do mesentério faz a aderência das ansas intestinais à parede abdominal posterior. Se virarmos um doente, com a cavidade abdominal aberta, de barriga para baixo os intestinos não caem. É também pelo mesentério que chegam os vasos ao intestino. A irrigação arterial é do tipo terminal, fazendo-se pela artéria mesentérica superior, o que condiciona uma maior susceptibilidade à ocorrência de enfartes intestinais, já que a isquémia intestinal ocorre sobretudo nesta artéria. Apresenta uma extensa rede linfática, importante na absorção das gorduras, com as placas de Peyer na submucosa, sendo que a drenagem linfática é feita através do canal torácico. Uma das complicações do cateterismo central à esquerda é a punção do canal torácico, que se manifesta pelo aparecimento de um líquido branco quando se tenta puncionar a veia subclávia. Apresenta ainda peristalse intestinal.
FUNÇÕES Absorção O intestino apresenta uma área de superfície de 200 a 500m2, com zonas selectivas para a absorção de diversas substâncias. Água – chegam ao jejuno cerca de 10 litros de água por dia, passando para o cólon cerca de 1 litro. Esta água vem da ingestão e das secreções do tubo digestivo (boca, estômago, pâncreas, suco biliar, muco e água produzidos naturalmente por todas as mucosas). Glúcidos – os monossacarídeos são absorvidos no jejuno proximal. Daí que um doente sem estômago, em que se restabeleceu o trânsito intestinal com uma anastomose em Y de Roux ligando-se o esófago ao jejuno proximal, quando come açúcar, tenha uma rápida absorção do mesmo, o que leva a hiperglicémia, com aumento rápido da secreção de insulina e hipoglicémia – Síndrome de Dumping. Nos doentes submetidos a gastrectomia é recomendado não beber água ou líquidos às refeições, para que não haja uma diluição e uma absorção facilitada de açúcar, e não comer açúcares de cadeia livre (açúcar “normal”). Sabendo isto, começou a implementar-se este tipo de cirurgias nos doentes obesos do tipo “sweet eater” para fazer um bypass. Se os doentes comerem muitos açúcares sabem que vão sentir-se mal e, por isso, alteram os seus hábitos alimentares, perdendo peso. Prótidos - peptídeos e aminoácidos Lípidos – os ácidos gordos (hidrófobos) habitualmente são absorvidos no jejuno, com o auxílio dos sais biliares, bem como os agregados micelares (hidrófilos). Electrólitos 100
Vitaminas – as vitaminas A, D, E e K são hidrófobas, necessitando de sais biliares para a sua absorção. A vitamina B12 é absorvida no íleon terminal, após combinação com o factor intrínseco, produzido no estômago. Sais biliares – são reabsorvidos no íleon terminal, através do ciclo entero-hepático. Partículas de nutrientes elementares A absorção das diferentes substâncias ocorre em diferentes porções do intestino delgado, pelo que, consoante a porção que se retira numa cirurgia, teremos défice de diferentes substâncias. Por exemplo, um doente que sofreu uma gastrectomia pode surgir 1 ano depois com anemia megaloblástica, devido a um défice de vitamina B12 (por défice de factor intrínseco). Tratamento: como não existe factor intrínseco que possa ser administrado, administra-se vitamina B12 intramuscular mensalmente (muito mais prático que fazer vitamina B12 endovenosa). Outro exemplo é o doente com doença de Crohn – a doença de Crohn é uma doença inflamatória intestinal que afecta qualquer porção do tubo digestivo, desde a boca até ao ânus, atingindo mais frequentemente a porção terminal do recto/ânus (fistulas, fissuras anais) e o íleon terminal. Um doente com uma estenose do íleon terminal, com períodos de oclusão, que foi submetido a uma ileocectomia, pode surgir com uma anemia megaloblástica, por défice de vitamina B 12, mas de etiologia diferente da anterior, já que, neste caso, apesar de haver factor intrínseco, retirou-se a porção de intestino onde a vitamina é absorvida.
SEMIOLOGIA Vómitos A principal causa de vómitos é a obstrução. Podem ser classificados em precoces ou tardios, sendo que os precoces ocorrem imediatamente após a refeição e os tardios ocorrem umas horas após a refeição. Exemplo: doente que vomita hoje as ervilhas do almoço de ontem – provavelmente o diagnóstico é uma estenose pilórica, que pode dar uma alcalose metabólica hipoclorémica, por perda de ácido clorídrico pelos vómitos, e hipocaliémica, já que, havendo a perda de um ião negativo, o rim vai compensar este desequilíbrio electrolítico (excesso de iões positivos) com um aumento da secreção de potássio no nefrónio, por troca com o H+. Nestes doentes, fazendo a palpação abdominal, ouvimos um ruído a que se chama de “marulho gástrico”, devido à distensão do estômago, que pode chegar à fossa ilíaca direita ou esquerda, e que tem conteúdo líquido e sólido. A não esquecer: esta é uma situação relativamente rara e o marulho gástrico está associado a alcalose metabólica. Se a obstrução for no esófago terminal (cárdia), não temos vómitos, mas sim regurgitação. Se a obstrução for ao nível do íleon, mesmo que terminal, o doente pode também ter vómitos. Se houver obstrução ao nível do cólon esquerdo, podemos ter vómitos fecalóides, mas para isso tem que existir uma incontinência da válvula ileo-cecal. Se esta for continente, teremos uma obstrução em Ansa Fechada.
Distensão abdominal Pode ser central ou periférica, atribuindo-se ao intestino delgado ou ao cólon, respectivamente. Podem ser observados movimentos de reptação da parede abdominal, que correspondem a movimentos peristálticos observáveis aquando da inspecção da parede abdominal, muito visíveis em doentes com “ventre de batráquio”, caracterizada por um abdómen distendido com tecido celular subcutâneo e aponevrose muito finos. Quando há quadros de distensão abdominal deve fazer-se percussão, para a avaliar o timpanismo (ar) e a macicez (sólido ou líquido), e auscultação, para investigar a presença de ruídos hidroaéreos. Estes podem ter um timbre metálico, semelhante ao som de “malhar ferro”, estando associados a uma obstrução 101
mecânica, ou estarem ausentes, correspondendo a um silêncio ou atonia intestinal, associado a íleos paralítico. O íleos paralítico que ocorre normalmente no pós-operatório não é preocupante, podendo prolongar-se, no mínimo, durante as primeiras 24h. Hoje em dia, com a laparoscopia, limita-se habitualmente a 6/8h. Enquanto o doente não recupera o trânsito intestinal habitual, tem que ter uma sonda nasogástrica para, por um lado, diminuir a quantidade de ar e líquido que podem progredir e contribuir para a distensão intestinal inerente a um processo de oclusão, e por outro evitar o vómito. No caso de se tratar de um doente que está em pós-operatório, mas em quem já está tudo bem, se se começar a ouvir ruídos aumentados e depois íleos paralítico, já é uma situação mais preocupante, podendo corresponder a uma oclusão causada por bridas ou aderências (as ansas colam-se umas às outras). É necessário saber se houve paragem da emissão de gases e fezes, para fazer o despiste de oclusão intestinal. A paragem de emissão de gases é mais grave, já que corresponde a uma situação de maior obstrução. Dor abdominal Característica da dor – cólica, contínua, aguda, surda, aperto (típico do EAM) ou pulsátil (aneurisma da aorta abdominal). Tipo de dor – visceral, referida ou parietal. Início da dor - tempo exacto e actividade no início e intensidade da dor no início. Localização - localização no início, alteração na localização e irradiação da dor. Dor da apendicite: começa no epigastro, vai para região periumbilical e por último desloca-se para a fossa ilíaca direita. Pode irradiar para o membro inferior quando atinge o psoas e dá uma limitação à mobilidade do membro inferior (arrastam o membro inferior). O doente está normalmente muito quieto. O diagnóstico de apendicite é particularmente difícil de fazer nos extremos das idades – idosos (toleram muito bem a dor) e crianças. O doente que chega com dor abdominal: - Está extremamente agitado, a andar de um lado para o outro - cólica renal - Posição genopeitoral - pancreatite, perfuração de úlcera Irritação peritoneal - Parietal – condiciona: Defesa muscular Contratura muscular – manifesta-se por “Ventre em Tábua”. Nestas circunstâncias não é possível palpar o abdómen, mas passado 4 a 6 horas já se consegue, já que houve cansaço muscular, pelo que o músculo vai relaxar. - Visceral: Perfuração de Ulcera Saída de HCl Peritonite química, que condiciona uma irritação da serosa do intestino, o que vai levar a que o organismo “chame” água para esta região, de modo a diluir Parésia intestinal (dentro de 4 a 6h) Paragem de funcionamento do intestino Proliferação bacteriana (bactérias aumentam de 105) e translocação através da parede Infecção da cavidade abdominal (bom meio de cultura) Peritonite bacteriana. As bactérias não passam pelo orifício da perfuração, até porque a única bactéria que coloniza o estômago é a H. pylori, que não dá este tipo de quadro. Nestes doentes o epíploon pode fazer um plastron envolvendo o local da infecção e temos assim uma peritonite localizada ou caso contrário será generalizada (mais grave). Nestes doentes há que encerrar a perfuração cirurgicamente.
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Relativamente aos diversos tipos de dor, é de notar que a dor violenta epigástrica faz diagnóstico diferencial com EAM, perfuração de úlcera, colecistite, pancreatite, DRGE, etc. A cólica renal é a dor que os doentes apontam como mais violenta, sendo que muitas vezes o diagnóstico se faz olhando apenas para a postura do doente. A diverticulite normalmente dá sintomas à esquerda, mas não podemos esquecer que também há divertículos no cólon direito. Hemorragia As hemorragias do tubo digestivo são tanto mais frequentes quanto mais abaixo se localizarem, sendo mais frequentes a jusante que a montante. As rectorragias não são sinónimo de hemorróidas, sendo necessário ter particular atenção à possibilidade de neoplasia do recto, pelo que o toque rectal é um exame de extrema importância (“Vocês têm uma arma que vai até aos 7cm! Usem-na!”). A angiodisplasia também é uma causa comum de hemorragia, afectando sobretudo o cego e o intestino delgado. Os exames complementares de diagnóstico disponíveis são: Colonoscopia – vai apenas até à válvula ileo-cecal Angiografia – está limitada pelo débito da hemorragia e pode ser diagnóstica e terapêutica, AngioTAC – também é limitada pelo débito Videocápsula – é engolida e permite a observação de todo o intestino. Os tipos de hemorragia digestiva que se podem manifestar através do recto são: Melenas – sangue digerido com origem gastro-duodenal Hematoquézias – sangue semi-digerido, com origem no delgado ou cólon proximal) Rectorragias – sangue vivo Divertículo de Meckel – afecta cerca de 2% da população e deve-se ao encerramento incompleto do canal onfalo-mesentérico. Localiza-se a cerca de 50 - 90 cm da válvula íleo-cecal e é revestido por mucosa do tipo gástrico. Tal como a todos os divertículos, pode-lhe acontecer 3 coisas: hemorragia, infecção e perfuração. Para além disto, pode ainda obstruir ou invaginar. Diarreia Consiste num número de dejecções aumentado e/ou fezes de consistência diminuída. Associada a: Doenças crónicas ou infecciosas 103
Doenças inflamatórias intestinais, como o Crohn e a colite ulcerosa. O Crohn pode manifestar-se da boca ao ânus, enquanto que a colite é exclusiva do cólon e recto e tem maior risco de malignizar. Para tratar uma colite ulcerosa fulminante, normalmente, tem de se retirar o cólon e o recto através de uma coloproctectomia total ou radical (com gânglios). Emagrecimento, Desnutrição e mal absorção Desnutrição – quando há diminuição da albumina (não são as proteínas totais). Emagrecimento – vê-se através do IMC. O doente pode estar emagrecido e não estar desnutrido. A albumina é extremamente importante para o cirurgião, porque constitui os “tijolos” que são essenciais à cicatrização. Um doente imunodeprimido ou a fazer corticóides que tenha valores de albumina baixos não é capaz de desencadear um processo inflamatório suficiente para fazer uma cicatrização eficaz, o que pode levar a deiscência da cicatriz. Manifestações extra intestinais São as repercussões extra-intestinais de algo que acontece no intestino, incluindo mal-estar, febre, anemia, artrite periférica ou uveíte (por exemplo, na doença de Crohn).
APÊNDICE ÍLEO-CECAL Consiste na continuação do cego, apresentando múltiplas variações da sua localização. Tem cerca de 10 cm de comprimento e é irrigado pela artéria apendicular. Apresenta no seu interior folículos linfóides, que na juventude são habitualmente os responsáveis pela obstrução do lúmen. Em idades mais avançadas os responsáveis por esta obstrução são os fecalitos.
APENDICITE AGUDA A apendicite aguda é causada por uma obstrução, que leva ao aumento da pressão intraluminal, já que a produção de muco no interior do apêndice ocorre normalmente, cursando com edema e obstrução vascular, primeiro da veia, porque é uma estrutura mais colapsável, enquanto a artéria continua a enviar sangue para a região. Quando a pressão é muito grande e a artéria deixa de conseguir enviar sangue ao apêndice, vai ocorrer isquémia. Durante este processo ocorre invasão bacteriana. Esta é a descrição típica de uma apendicite catarral, fleimonosa, gangrenada, que pode perfurar e originar uma peritonite, que pode ser localizada ou generalizada. A apendicite manifesta-se por dor abdominal difusa (visceral), com início no epigastro ou na região periumbilical, que se transfere para a fossa ilíaca direita (dor parietal). Uma forma de tentar perceber se estamos perante uma apendicite ou não é pedir ao doente para se colocar em bicos dos pés e deixar-se “cair” (assentar todo o pé no chão bruscamente) – se ele põe a mão na fossa ilíaca direita devemos suspeitar de apendicite. A anorexia é também típica das apendicites. Doentes que digam que estão com muita fome, é de duvidar que tenham uma apendicite (excepto nas crianças, em quem é mais difícil de perceber). Habitualmente, os doentes queixam-se primeiro de dor e só depois têm vómitos. (DOI VOI) O diagnóstico diferencial é difícil e faz-se com gastroenterite (primeiro vómitos e depois dor abdominal) e, nas mulheres, faz-se com gravidez ectópica, por exemplo. Ao exame objectivo, identifica-se: Hiperestesia da fossa ilíaca direita no ponto de McBurney (ponto situado na união do 1/3 externo com os 2/3 internos de uma linha entre o umbigo e a espinha ilíaca ântero-superior), onde normalmente se faz a incisão cirúrgica na apendicectomia. Reacção peritoneal – faz-se palpação abdominal profunda, que é mais dolorosa à descompressão. 104
Sinal Rovsing - dor na fossa ilíaca direita quando se faz pressão na fossa ilíaca esquerda. Rigidez involuntária reflexa da parede abdominal – impede a palpação abdominal. Um truque para facilitar o exame objectivo é pedir ao doente para flectir as pernas, juntar os calcanhares e afastar os joelhos, tornando a parede abdominal mais flácida. Perna direita flectida – devido à dor reflexa ao psoas. Palpação de uma massa indefinida na fossa ilíaca direita – Plastron – quando há um abcesso, extravasamento ou infecção, os epíploons deslocam-se para a região inflamada de forma a conter o processo inflamatório e impedir uma generalização da peritonite. Assim, mesmo que haja perfuração do apêndice, o epíploon, com as ansas intestinais à volta, consegue conter a infecção, formando um abcesso localizado. Toque rectal – faz muitas vezes o diagnóstico. Sinais de peritonite difusa
CÓLON ANATOMIA O cólon tem cerca de 1,5 metros, estende-se desde a válvula íleo-cecal até recto e é constituído, de proximal a distal, pelo cego, colón ascendente, cólon transverso, cólon descendente e cólon sigmoideu. Apresenta as “taeniae”, que são 3 fitas longitudinais, e as “austras”, que são pregas transversais. Normalmente, à esquerda, no cólon sigmoideu, existem os apêndices epiplóicos, que são pequenos aglomerados de tecido adiposo. Durante a cirurgia podem ser confundidos com o verdadeiro apêndice em situações em que existe um cólon sigmoideu redundante, isto é, a curvatura do cólon sigmoideu atinge a fossa ilíaca direita, sobrepondo-se ao cego e colon ascendente. Não existem apêndices epiplóicos no cólon direito, pelo que, quando aparecem à direita é devido a cólon sigmoideu redundante. Vascularização Artéria mesentérica superior – irriga o cólon proximal até metade do transverso – quando há uma obstrução do lúmen arterial, há isquémia até à porção do cólon transverso mais próxima do ângulo esplénico. A sua função é essencialmente absortiva, irrigando os segmentos do cólon onde se vai dar a absorção da água utilizada no processo digestivo. Artéria mesentérica inferior – irriga o cólon descendente e a sigmoideia – a sua função está associada ao armazenamento das fezes. Deste modo, a parte do cólon com pior irrigação é o ângulo esplénico, que fica na zona de transição da mesentérica superior para a inferior (arcada de Riolan), pelo que há uma preocupação maior com as anastomoses desta porção, já que a cicatrização vai ser mais difícil, ou seja, maior risco de deiscência da anastomose. Veias mesentéricas superior e inferior - integram a formação da veia porta.
FUNÇÕES Absorção de água Armazenamento fezes Válvula ileocecal - regula a admissão de quimo e controla refluxo Lei Laplace (tensão= pressão x raio) - se houver uma oclusão na sigmoideia com válvula íleo-cecal incontinente vai haver vómitos fecalóides, enquanto que, se a válvula é continente, temos uma oclusão em ansa fechada. Nesta situação, a ruptura vai ocorrer, segundo a lei de Laplace, onde a tensão é maior. Sendo a pressão semelhante em todo o cólon, a tensão é maior onde o raio é maior, 105
ou seja, é no cego. Quando há ruptura temos uma peritonite fecalóide, com sépsis e uma taxa de mortalidade próxima de 100%.
SEMIOLOGIA Dor abdominal Alteração hábitos intestinais – como por exemplo, obstipação alternada com diarreia é muito sugestivo de neoplasia, sobretudo se há história familiar e/ou perda de peso relevante. Isto ocorre porque, na presença de uma obstrução vai haver obstipação, que leva a acumulação das secreções intestinais e, consequentemente diarreia. É necessário fazer despiste com colonoscopia. Vómitos - a sua principal causa é a oclusão intestinal, causada principalmente por bridas e aderências. Emagrecimento Oclusão / sub-oclusão Massa palpável – por exemplo, tipo plastron Anemia / tonturas / fadiga Melenas / Hematoquézias / Rectorragias Inspecção geral Fácies Modo de andar Decúbito preferido Tipo de respiração Lesões muco-cutâneas Hidratação Coloração de conjuntivas Temperatura FC e Pressão Arterial Inspecção abdominal Forma do abdómen Distensões localizadas Distensão infra umbilical – Bexiga/retenção urinária – algaliação Distensão assimétrica Ondas peristálticas – reptação Cicatriz cirúrgica Equimose periumbilical Circulação colateral – doença hepática crónica Presença de hérnias - atenção que região inguinal também faz parte do abdómen e, muitas vezes, uma hérnia inguinal encarcerada é a origem de dor e distensão abdominal. Auscultação Presença de ruídos hidro-aéreos Timbre Intensidade
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Palpação Contractura muscular Defesa muscular Descompressão dolorosa com Blumberg, por exemplo. Hiperestesia Organomegálias – hepatomegália por distensão da cápsula hepática “Massas” palpáveis – Tumores do cólon direito não são normalmente obstrutivos por este ter um lúmen grande, sendo vegetantes (crescem) e podendo ser palpáveis, ao contrário dos do cólon esquerdo, que são muitas vezes estenosantes (imagiologicamente corresponde ao “ratado do caroço de maçã”). Percussão Macicez - Fixa – tumores, plastron - Móvel – presença de líquidos – quando o doente muda de posição muda a localização da macicez. Timpanismo - Generalizado – obstrução - Localizado - perfuração, volvo (por exemplo, volvo da sigmoideia só com timpanismo à esquerda) A ordem correcta pela qual se deve fazer o exame físico, neste caso é: auscultar antes de tocar no abdómen do doente. A saber para exame O recto não drena todo o sangue para a veia porta! Existem as veias hemorroidárias que fazem um bypass ao fígado. Por isso é que os tumores mais inferiores do recto metastizam para o pulmão e não para o fígado. O que é um pneumotórax? Ar no espaço pleural. Como se drena? Punção no 5º espaço da linha médio clavicular. Drena-se com um sistema subaquático. Abocath a passar num sistema subaquático e o sistema tem que estar mais baixo que o doente para a água não entrar para dentro do tórax. A pressão intratorácica é negativa, assim quando expiramos o ar vai para o sistema, borbulha e já não volta a entrar. Por haver uma pressão intratorácica negativa a maior parte dos abcessos abdominais são subfrénicos (são “aspirados” para debaixo do diafragma). Ocorrem mais à direita por causa do fígado. Qual é o antibiótico que trata o abcesso? Não se trata com antibiótico, tem que ser sempre drenado! Como é que se pode drenar se intra-abdominal: 1) laparotomia 2) laparoscopia 3) percutâneo guiado por imagem Via de metastização dos tumores bem diferenciados da tiróide: papilar (via linfática) e folicular (hematogenea). Marcadores tumorais: CEA, CA 19.9, CA 15.3, CA 125, a fetoproteina! CA 19.9 – Patologia GI – pâncreas, tubo digestivo – juntamente com o CEA que é mais inespecífico CA 15.3 – Mama CA 125 – Ovário (“Estrada 125 é no algarve, é lá em baixo” ) A Principal causa de oclusão intestinal são bridas e aderências! Pergunta em que apareça “sempre” e “nunca” está errada! Não há isso em Medicina! Uma das complicações do cateterismo venoso central (subclávia) à ESQUERDA é a punção do canal torácico. Líquido transparente na seringa.
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RECTO E ÂNUS ANATOMIA O recto é um órgão que serve de reservatório para as fezes e que faz a transição entre a sigmóide e o canal anal, que é um órgão de continência e esfíncter. Quando as fezes preenchem o recto, o indivíduo sente o recto em repleção e estimula o mecanismo da evacuação.
Tipicamente, o recto divide-se em 3 partes: recto superior, recto médio e recto inferior. Desde a margem do ânus até ao limite superior do recto (zona de transição recto-sigmoideia) vão cerca de 15 a 17cm. A zona de reflexão peritoneal fica na região do recto médio, entre 8 e 10cm acima da margem do ânus. O canal anal tem cerca de 4cm de altura, prolongando-se até à linha pectínea, e é composto por 2 esfíncteres, o esfíncter interno e o esfíncter externo, e ainda por músculos elevadores do ânus, pelos quais os esfíncteres se continuam. Na zona do canal anal existem 2 plexos hemorroidários, o superior ou interno e o inferior ou externo, que vão dar origem às hemorróidas (internas e externas). Existem ainda várias glândulas nesta zona, que servem para lubrificar o canal anal para a passagem das fezes, e que vão drenar para o canal anal ao nível das colunas de Morgagni (presentes em número de 5 a 9). A infecção dessas glândulas, muitas vezes vai dar origem aos abcessos perianais, que podem fistulizar para a pele, complicando-se em fístulas perianais. No que respeita à pélvis, é mais estreita no homem que na mulher, o que limita a abordagem cirúrgica nesta região, sendo mais difícil o acesso à cavidade pélvica no homem. Relativamente ao pavimento pélvico, a proximidade entre os genitais externos e a região perianal e o canal anal é maior na mulher que no homem, condicionando algum tipo de patologias, nomeadamente, rectocelo. Vascularização O recto e o ânus são irrigados por: Artéria rectal superior – ramo da mesentérica inferior Artéria rectal média – ramo da ilíaca interna Artéria rectal inferior – artéria pudenda interna 108
A drenagem venosa é feita por: Veia rectal superior – drena para o sistema porta, pelo que tumores desta região normalmente metastizam primeiro para o fígado. Veias rectais média e inferior – drenam para a circulação sistémica, pelo que tumores desta região normalmente metastizam primeiro para o pulmão (ao contrário do restante intestino, que metastiza primeiro para o fígado, a não ser quando existe um mecanismo de “escape” que faz com que as células metastáticas passem pelo fígado sem se alojarem, seguindo para o pulmão). Inervação A inervação sensorial e motora do recto e ânus é feita por nervos espinhais e autónomos que interagem numa unidade funcional. Esfíncter Interno – o SNA Simpático aumenta o tónus, enquanto o Parassimpático diminui o tónus. Esfíncter Externo – controlado pelo Sistema Nervoso Autónomo e Somático (motor). Linfáticos A drenagem linfática do recto e canal anal é feita a nível: Proximal – pelos gânglios sagrados e lombares Médio – pelos gânglios da ilíaca interna Distal – pelos gânglios inguinais superficiais, pelo que quando há um tumor do recto inferior ou do canal anal pode haver adenopatias inguinais.
FISIOLOGIA O canal anal e o pavimento pélvico funcionam como “orgãos” da continência e o recto terminal é essencialmente um depósito que confere uma sensibilidade de repleção. O esfíncter interno é formado por músculo liso, constituindo um espessamento da camada muscular interna, inervado pelo Sistema Nervoso Autónomo, enquanto o esfíncter externo é formado por músculo estriado, contraído por reflexo espinal.
EXAME PROTOLÓGICO É um exame especial dentro do exame objectivo, que qualquer médico deve ser capaz de realizar. O toque rectal pode ser realizado em várias posições, nomeadamente decúbito lateral esquerdo, posição genupeitoral e litotomia. A posição mais parecida com a posição anatómica para fazer este exame é a litotomia, pelo que é a posição em relação à qual nos devemos referenciar quando descrevemos uma lesão desta região (hemorróidas ou fístulas, por exemplo), localizando-a pelo relógio (por exemplo, às 12h). Se não usarmos esta posição como referência, devemos sempre dizer em relação a que posição estamos a localizar a lesão. A posição de litotomia é diferente da posição ginecológica, dado que na segunda as pernas estão mais afastadas e os pés estão pousados no estribo das perneiras, enquanto que em litotomia as perneiras ficam na zona do joelho. É esta a posição que se utiliza no bloco para operar lesões desta região, à excepção das lesões da região sacro-coccígea, como é o caso do 109
sinus pilonidalis. Qualquer uma destas posições é válida para o exame proctológico e a escolha depende muito do doente em questão. Por exemplo, para um doente acamado, a melhor posição será em decúbito lateral. O exame é feito em 3 tempos: 1. Inspecção Deve-se inspeccionar toda a região perianal, incluindo as nádegas, a região sacro-coccígea e a região genital, para fazer o despiste, por exemplo, de uma patologia ginecológica que passe despercebida ou que dê queixas desta região, como uma bartholinite. 2. Palpação da região perianal e toque rectal A primeira coisa a avaliar é a continência dos esfíncteres (hipo, hiper ou normotónico). Depois de passar a região do esfíncter, vamos sentir adiante a próstata (no homem) ou o útero (na mulher), sendo que na posição genupeitoral se pode sentir uma massa dura, palpando-se sempre o colo, mas nem sempre o corpo. Para os lados, palpam-se as estruturas ósseas da bacia, nomeadamente os ísquions, e a gordura peri-rectal. Atrás, palpa-se a estrutura óssea do cóccix. Deste modo, é importante, ao toque rectal, pesquisar a existência de determinadas características e/ou lesões. Canal anal: Depressões da linha pectínea, que podem corresponder a criptites Papilas hipertróficas da linha pectínea Lesões tumorais, que normalmente se manifestam por lesões infiltrativas extensas, difíceis de delimitar e aderentes aos planos profundos. Fissuras, também chamadas de fenda de ânus, constituindo feridas que se manifestam muitas vezes por dor ao evacuar e presença de esfíncter hipertónico Tonicidade do esfíncter anal em repouso e após contracção do esfíncter externo (pede-se ao doente que contraia). Recto: Conteúdo da ampola rectal (livre, preenchida por fezes, presença de massas) Superfície mucosa (regular/irregular, presença de massas, protuberâncias, pólipos) Lesões do recto distal – estenoses, pólipos, carcinoma, úlceras, abcessos intra-murais do recto (podem manifestar-se apenas como pequenos abaulamentos da parede do recto, habitualmente dolorosos e com sinais inflamatórios, sentindo-se essa zona mais quente) Uma manobra que se pode fazer para as lesões mais distais, que não se conseguem palpar, é pedir ao doente para executar uma manobra de Valsalva durante o toque rectal (por exemplo, tossir), causando uma descida do pavimento pélvico e do recto, o que faz com que a lesão (por exemplo, tumor) venha ao encontro do nosso dedo, tornando-se palpável. Estruturas extra-rectais: Cóccix e espaço pré-sagrado Parede pélvica lateral Recesso recto-vesical (no homem) Órgãos pélvicos anteriores (próstata, vesículas seminais, colo do útero) 110
Pavimento pélvico: Angulação anal e perianal (cerca de 90º em repouso) Resistência do puborectal em repouso e em contracção voluntária Presença de rectocelo, que se deve à fraqueza do septo recto-vaginal e leva a uma protusão do recto para a vagina, com acumulação de fezes nessa zona, que obriga à colocação do dedo para permitir o esvaziamento completo dessa zona aquando da defecação. No final deve fazer-se ainda a inspecção da luva, para ver se vem com fezes, sangue ou muco. 3. Anuscopia Faz-se com um anuscópio. O anuscópio da imagem é de metal, mas actualmente usase um transparente, que permite observar não só pelo orifício na extremidade mas também através das paredes, sendo possível adaptar-lhe uma fonte de luz que melhora a visibilidade.
EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO Para o estudo do recto e ânus, podemos utilizar diversos exames complementares, que se dividem em:
Funcionais/Dinâmicos – pouco habituais Defecografia – faz-se um clister com contraste e em seguida o doente evacua, obtendo-se uma imagem do acto da evacuação. Permite perceber se o doente tem um rectocelo, uma fístula com saída de contraste por um trajecto fistuloso, ou uma massa tumoral. Manometria – mede as pressões, sendo importante para ver a continência dos esfíncteres. Electromiografia – se o esfíncter está incompetente, pode ser por lesão da parte muscular ou da parte nervosa, pelo que este exame serve para avaliar a parte nervosa.
Imagiológicos – todos têm indicações, sensibilidade e especificidade diferente TAC – tem menor especificidade e menor sensibilidade que a ressonância, mas é um exame habitualmente mais disponível. Em termos de estadiamento tumoral é pior que a RMN, dado que, por exemplo, gânglios mais pequenos podem não ser detectados por passarem entre os cortes da TAC. RMN – muito boa para estudar os órgãos pélvicos e para estadiamento de tumores, permitindo avaliar as várias camadas do tumor e ainda a extensão ganglionar. Em termos de limitações, é um exame caro, não está disponível em todos os hospitais e mesmo nos que têm pode não estar disponível em tempo útil. O sinal correspondente à fibrose muitas vezes confunde-se com o sinal de estruturas patológicas, não permitindo distinguir. Ecografia Endorectal – é um bom exame para fazer estadiamento dos tumores da parede rectal, mas não tem profundidade suficiente para permitir a avaliação de gânglios. É útil na avaliação da parede anorrectal e dos esfíncteres, permitindo, por exemplo, detectar fístulas e o seu trajecto ou fazer a avaliação da zona cicatricial de abcessos que foram operados e averiguar da presença de abcessos 111
residuais, sendo melhor que a RMN neste aspecto, dado que a RMN não distingue as zonas de fibrose das de lesão.
SEMIOLOGIA Retorragia Emissão de sangue vivo pelo ânus, não misturado com as fezes, habitualmente no acto da defecação. Difere da hematoquézia, que consiste na emissão de sangue semi-digerido nas fezes, sobretudo quando o trânsito intestinal está muito acelerado, e das melenas, em que há sangue digerido, com origem no tubo digestivo superior. As causas mais frequentes de rectorragias são: Hemorróidas – são a causa mais frequente de rectorragia em doentes jovens. No entanto, em doentes com rectorragias que tenham hemorróidas não devemos assumir que estas sejam a fonte sem antes fazer um exame detalhado do cólon, sendo a colonoscopia o exame de eleição. Se forem hemorróidas o doente fica tratado com uma pomada esclerosante, mas se for um tumor a sangrar só vamos estar a camuflar os sintomas e o tumor vai progredir em estadio. Pólipos Cancro anorrectal Doença diverticular do cólon – os divertículos habitualmente desenvolvem-se na zona de emergência dos vasos, sangrando com frequência. Doenças inflamatórias inespecíficas do intestino Lesões vasculares – as angiodisplasias são lesões que sangram muito e que podem condicionar rectorragias, mais frequentemente em doentes idosos.
Dor anorrectal - Dor anal essencial Proctalgia fugaz É uma dor rectal profunda, tipo cãibra, que surge preferencialmente na primeira metade da noite, de intensidade variável e que pode demorar desde alguns segundos até meia hora, desaparecendo espontaneamente. Afecta sobretudo o sexo feminino, entre os 40 e os 50 anos. Nevralgia anal É uma dor anal mal definida, variável na intensidade e localizada na região perianal, podendo irradiar para a coxa. Não tem um horário determinado, sendo mais frequente nas mulheres, entre os 50 e os 60 anos, especialmente quando há alterações psiquiátricas. Coccigodinia Representa a maioria dos casos das algias proctológicas essenciais, consistindo numa dor referida ao ânus, recto ou períneo, que é agravada pelo toque rectal ou pela mobilização do cóccix, e ainda, por movimentos, como a posição de sentado e, por vezes, pela defecação. É mais frequente nas mulheres com mais de 50 anos, estando muitas vezes associado a traumatismos por queda ou no parto. O tratamento é muito difícil.
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Dor Anorrectal
Contínua, Na Evacuação
Sem relação
aumentando na
com evacuação
evacuação
Fissura anal
Criptite e papilite Cancro anal muito precoce
Trombose hemorroidária
Contínua
Descontínua
Abcesso perianal Prolapsos das hemorróidas
A ideia mais importante deste esquema é a de que é necessário fazer a exclusão de um cancro anal numa fase precoce no doente com dor à evacuação, de modo a impedir a progressão.
Cancro anal avançado
Proctalgia fugaz Nevralgia anal Coccigodinia
Prurido É a sensação e necessidade mais ou menos imperiosa e intensa de “coceira”, que pode aparecer como uma manifestação isolada, mas habitualmente está associada a outras queixas, como a rectorragia, o corrimento anal ou a dor. A queixa de prurido obriga sempre a ouvir cuidadosamente o doente e a fazer um exame completo, dado que pode simplesmente estar associado a hemorróidas, dado que quando há um prolapso muito grande há saída de muco, que pode irritar a região perianal, manifestando-se por coceira, ou pode ser a única manifestação de um tumor do canal anal numa fase inicial.
Corrimento O corrimento anal corresponde à saída de secreções, podendo estar relacionado com uma fístula ou fissura infectada. Pode ser independente do ânus e do recto, como acontece no sinus pilonidalis, em que o corrimento ocorre na região sacro-coccígea, e na hidradenite supurativa, uma infecção das glândulas sudoríparas em que o corrimento ocorre na região perianal. Algumas vezes, o doente refere simplesmente uma impressão de humidade anal incolor, que é ocasionada por uma sudorese abundante, e está em relação com um pequeno prolapso hemorroidário intermitente ou é provocada por uma dermatite perianal com corrimento. A mucorreia corresponde à saída de muco pelo ânus.
Tumor Presença de uma massa ou tumefacção.
Tenesmo Sensação de esvaziamento incompleto.
Falsas vontades Ter vontade de evacuar, tentar e não conseguir. Pode estar associado a um tumor baixo do recto, que causa uma sensação de replecção da ampola rectal. 113
Fezes em fita São fezes finas, normalmente associadas a uma estenose, benigna ou maligna, do recto. Nesta zona, as fezes já vêm moldadas e têm de passar numa zona estreita, pelo que depois disso já não se voltam a compactar.
PATOLOGIA Hemorróidas Os plexos hemorroidários são almofadas vasculares que pertencem aos constituintes normais do canal anal, aparecendo na vida embrionária. Têm um papel fisiológico importante, contribuindo para a elasticidade do canal anal e sobretudo para a continência fina. Estas almofadas têm suporte de tecido conjuntivo laxo, de modo a permitir essa função, e sempre que há algum mecanismo que aumente a pressão intra-abdominal ocorre uma diminuição do retorno venoso. Deste modo, as hemorróidas aumentam de volume, prolapsam, e tendem a trombosar com maior frequência, já que o sangue fica aprisionado, ocorrendo estase e formação de coágulos. As hemorróidas correspondem a uma hiperplasia e dilatação dos sinusóides das almofadas hemorroidárias, estando associadas a uma predisposição genética, sedentarismo e posição sentada, obesidade, gravidez e obstipação, com defecação prolongada. A localização mais frequente é às 3h, 7h e 11h, embora possam ter localizações acessórias. A imagem mostra 3 plexos hemorroidarios exteriorizados, localizados às 4, 7 e 12h.
Quando há prolapso, normalmente todas as hemorróidas prolapsam, mas umas podem prolapsar mais que outras. 114
Classificação As hemorróidas classificam-se em 4 graus: I. Sangram, mas não prolapsam. II. Sangram, prolapsam e reduzem de forma espontânea. III. Sangram, prolapsam e exigem redução manual. IV. Sangram, encarceram e não podem ser reduzidas (mesmo que reduzam voltam imediatamente para fora).
Diagnóstico Baseia-se em métodos que permitem a exclusão de outras patologias. Toque rectal Anuscopia Clister opaco – cada vez menos utilizado, consiste em fazer um clister com contraste, fazendo depois uma avaliação radiológica. Pode ser feito com contraste duplo, colocando primeiro o clister com contraste e fazendo radiografias e, depois do contraste sair, fazer o mesmo mas com ar. O risco de fazer um clister opaco é, se tivermos um tumor estenosante, como a hiperosmolaridade do contraste é grande, pode contribuir para uma oclusão intestinal. Se houver suspeita de ruptura do cólon, este exame está contra-indicado, já que o bário é extremamente irritante para o peritoneu, originando uma peritonite bárica, que se não for diagnosticada de imediato tem uma taxa de mortalidade muito próxima de 100%. Colonoscopia – é o exame de eleição quando há hemorragia. As hemorróidas tornam-se sintomáticas especialmente quando há trombose hemorroidária, sendo mais frequente ao nível das hemorróidas externas. A hemorróida apresenta-se nessa altura como uma massa perianal dolorosa, tensa, edemaciada e de cor púrpura, sendo o principal sintoma a dor perianal intensa, que muitas vezes leva o doente a recorrer ao SU, esta dor aumenta até às 48h, altura em que há indicação para a drenagem da hemorróida trombosada, sendo que a partir daí o coágulo já começa a estar muito aderente às paredes da hemorróida, sendo difícil extraí-lo. As hemorróidas fazem diagnóstico diferencial com prolapso rectal, em que há prolapso total ou parcial do recto.
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Tratamento Clínico Higienodietética – visa melhorar os hábitos intestinais do doente, diminuindo a obstipação. Consiste em aumentar o consumo de água e fibras e promover o exercício físico. Não-cirúrgico Escleroterapia – com esclerosante tópico, que pode ser em pomada ou injectável. Laqueação por faixa elástica – colocam-se elásticos no pedículo hemorroidário, promovendo a trombose e necrose da hemorróida, que acaba por cair. As possíveis complicações desta intervenção são infecção e formação de um abcesso na zona de necrose. Criocirurgia – esclerose pelo frio, com azoto líquido. Fotocoagulação – com laser. Cirúrgico Hemorroidectomia excisional (hemorroidectomia de Milligan-Morgan) – consiste na excisão dos plexos hemorroidários. Faz-se laqueação do pedículo com uma pinça e excisa-se. A zona de corte fica aberta e vai cicatrizar por segunda intenção. Nesta cirurgia temos de ter em atenção que, se forem hemorróidas muito grandes, não podemos tirar todas as almofadas hemorroidárias de uma vez, sendo necessário deixar sempre pontes de mucosa, porque se não o fizermos quando ocorre a cicatrização da região o canal anal fica muito estenosado, perdendo função. Em hemorróidas muito grandes é preferível operar em vários tempos. Hemorroidopexia (hemorroidopexia de Longo) – usa-se o stapler, que vai disparar uma linha de agrafes em toda a mucosa acima do canal anal, laqueando os vasos que vão irrigar as hemorróidas. O tempo que demora este procedimento é semelhante ao que demora a hemorroidectomia, mas é muito menos doloroso para o doente. Em contrapartida, esta cirurgia tem uma maior taxa de recidiva.
Fenda de ânus ou fissura anal É uma solução de continuidade do epitélio do canal anal, com localização típica às 6h e às 0h. Sinais e sintomas Dor durante e após defecação, podendo prolongar-se durante minutos a algumas horas após a evacuação. Espasmo do esfíncter anal – estes doentes têm um tónus do esfíncter anal tão aumentado que muitas vezes é impossível a realização do toque rectal e da anuscopia. Rectorragia de pequeno volume, ao contrário das hemorróidas. Obstipação Fisiopatologia Este é um mecanismo cíclico que não ajuda à cicatrização.
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Fissura aguda – tem uma duração até 4 semanas, sendo o fundo constituído por tecido de granulação. Fissura crónica – com mais de 4 a 6 semanas de evolução. Nesta fase a fissura deixa de ter um aspecto hemorrágico para ter um fundo branco nacarado e isquémico. Habitualmente, já não é possível ajudar o doente com terapêutica médica nesta fase. Tríade de cronicidade Pequeno pólipo, habitualmente apenas inflamatório, no extremo superior da fissura. (seta branca) Pequena hemorróida sentinela no extremo inferior. (seta preta) Fibras do esfíncter interno no leito da fissura. Tratamento Tratamento clínico Evitar obstipação (dieta rica em fibras, hidratação e laxantes) Fármacos analgésicos e anestésicos tópicos Relaxantes musculares Toxina botulínica – injecta-se directamente no esfíncter, relaxando-o durante algumas semanas, o tempo suficiente para a fissura cicatrizar. Durante este período a continência pode estar afectada. Nitratos Bloqueadores dos canais de cálcio – por exemplo o Rectogesic, que é uma pomada de aplicação tópica. Tratamento cirúrgico – aplica-se a fissuras crónicas e fissuras agudas muito dolorosas Esfincterotomia interna lateral – corta-se parte das fibras do esfíncter interno, diminuindo a hipertonicidade.
Abcesso anorrectal Em 90% dos casos, estes abcessos formam-se pelo Mecanismo Cripto-Glandular: O canal anal apresenta 6 a 14 glândulas no plano entre os esfíncteres interno e externo e cujas projecções atravessam o esfíncter interno, drenando para as criptas na linha pectínea. Estas glândulas tornam-se 117
infectadas quando uma cripta está ocluida por impacção de material vegetal ou fecalitos, edema, trauma ou por processos inflamatórios adjacentes, condicionando a formação de um abcesso. Outras causas de abcesso anorrectal são doença de Crohn, colite ulcerosa, tuberculose, actinomicose, neoplasias, trauma e cirurgias prévias. O abcesso que se forma pode ter uma localização inter-esfincteriana, extraesfincteriana, supra-esfincteriana ou ainda superficial. Ao drenar para fora, o abcesso fica com um orifício de comunicação para dentro e outro para fora, dando origem às fístulas. O trajecto das fístulas depende da localização, sendo que as anteriores têm um trajecto em arco, enquanto as posteriores são directas. Sinais e Sintomas Dor anal pulsátil intensa e contínua, agravada com a locomoção, tosse, esforço para a defecação e posição de sentado. Febre e retenção urinária (ocasionalmente) – os doentes podem surgir com retenção urinária devida exclusivamente ao abcesso. Quando não tratado, pode evoluir para sépsis ou para uma gangrena de Fournier, dado que a presença de tecido adiposo perirrectal permite uma disseminação muito rápida destas infecções. Exame Físico Na presença de um abcesso, encontra-se ao exame físico uma massa palpável, dolorosa, detectável por inspecção da área perianal ou por exame rectal. Durante o toque rectal pode haver protusão da massa a partir da ampola rectal. Relativamente às fístulas, estas apresentam um trajecto de conexão subcutâneo firme e frequentemente palpável, sendo que só se pode considerar uma fístula quando se consegue identificar dois orifícios de drenagem, um interno, que nem sempre é fácil de detectar, e um externo. As fístulas podem ser supraesfincterianas, inter-esfincterianas ou extra-esfincterianas. Exames Complementares de Diagnóstico Normalmente não são necessários, sendo que, em caso de dúvida, recorre-se a ecografia endorrectal ou a RMN (em caso de apresentações atípicas e complexas). Como no SU nenhum destes meios está disponível, recorre-se normalmente à TAC abdómino-pélvica. As dúvidas ocorrem normalmente em abcessos com localização alta, por exemplo, da região isquiática, em que há poucas manifestações perianais superficiais. Tratamento Abcesso – faz-se drenagem urgente. Fístula – faz-se tratamento definitivo electivo, em que, com recurso à anuscopia, se cateteriza o trajecto da fistula com um estilete e opta-se por uma de 2 técnicas: - fistulectomia – corta-se e extrai-se o trajecto da fistula. - fistulotomia - abre-se o trajecto da fístula e deixa-se lá um sedâneo, que é um fio de seda ou nylon que todas as semanas na consulta é puxado, com o objectivo de fazer um pequeno corte no esfíncter, de modo a que algumas fibras vão sendo cortadas enquanto as outras vão cicatrizando. Se cortássemos tudo de uma vez e as fibras não fossem suturadas, o esfincter iria ficar aberto e o doente não era tratado. Este procedimento só se faz para as fístulas inter-esfincterianas, dado que 118
nas supra e extra-esfincterianas ter-se-ia de seccionar os 2 esfíncteres, o que não seria uma opção viável.
Sinus pilonidalis É um abcesso recorrente crónico na região sacro-coccigea, associado a traumatismo das glândulas pilosas. A incidência é maior em homens brancos, jovens (15-40 anos), sobretudo com profissões que condicionem traumatismo crónico das glândulas pilosas da região sacro-coccígea, nomeadamente cavaleiros, motoristas, motociclistas, etc. Os sintomas são dor, hipersensibilidade, tumefacção, presença de pêlo espesso e drenagem purulenta, com a presença de vários orifícios de drenagem (já que se trata de uma situação crónica, com várias reinfecções) que ocorrem sobretudo sobre a linha mediana, mas que também podem ser paramedianos. Diagnóstico diferencial Faz-se com abcesso, fístula cripto-glandular do ânus com orifícios mais altos e mais posteriores, hidradenite supurativa (infecção das glândulas sudoríparas), furúnculo e actinomicose. Tratamento O tratamento é cirúrgico, sendo que em situação de urgência se deve fazer apenas drenagem sob anestesia local, deixando a excisão para uma cirurgia electiva, em que já tenha sido controlado o processo inflamatório, já que, se os tecidos estão inflamados, vão sangrar mais durante a cirurgia e o risco de reinfecção é maior. Relativamente à excisão cirúrgica, faz-se excisão em bloco do sinus pilonidalis, através de uma de 3 opções: deixar em aberto a loca de excisão, que vai cicatrizando por 2ª intenção. fazer encerramento primário. fazer plastias - em locas muito grandes pode fazer-se um retalho cutâneo.
Tumores da margem anal Incluem o carcinoma epidermóide, o carcinoma de células basais, a doença de Bowen e a doença de Paget. Ocorrem distalmente à linha pectínea, são pavimento-celulares, geralmente queratinizantes e bem diferenciados.
Tumores do canal anal São tumores não queratinizantes e mais agressivos que incluem: Carcinoma espino-celular do canal anal Representa 1-2% dos cancros do intestino grosso (relativamente raros), sendo que as mulheres são atingidas com maior frequência e os homossexuais masculinos correm maior risco. Está associado a irritação crónica causada por leucoplasia, traumatismo do coito anal ou condiloma acuminado (causado pelo HPV). Os sintomas e sinais são a presença de massas perianais com bordos evertidos e ulceração central (aspecto de “couve-flor”), hemorragia, dor, corrimento, prurido e tenesmo, e o diagnóstico faz-se por biópsia. É menos agressivo que o adenocarcinoma, pelo que o tratamento e cura faz-se muitas vezes apenas com quimiorradioterapia, podendo eventualmente associar-se excisão local ampla ou ressecção abdómino-
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perineal do recto, em que se faz uma colostomia terminal e se retira o recto e o ânus, encerrando o orifício anal, sendo uma situação irreversível, sem possibilidade de reconstrução do trânsito intestinal. Adenocarcinoma É ainda mais raro que o carcinoma espino-celular, os sintomas e sinais são a presença de uma massa palpável, rectorragia, corrimento e abcesso ou fístula e o diagnóstico faz-se por biópsia. É um tumor mais agressivo que habitualmente obriga a cirurgia (ressecção abdómino-perineal), podendo associar-se radioterapia. Melanoma Os sintomas e sinais são hemorragia, dor e a presença de uma massa e o diagnóstico é feito por biópsia. O tratamento faz-se com excisão local, ressecção abdómino-perineal ou ressecção radical (inclui gânglios). Nesta região, os tumores drenam para os gânglios inguinais.
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VIAS BILIARES – LITÍASE BILIAR E ICTERÍCIAS ANATOMIA Do fígado sai o ducto hepático direito e esquerdo, que se unem e formam o canal hepático comum. Da vesícula biliar destaca-se um canal, denominado ducto cístico. Da união do ducto hepático comum com o ducto cístico, resulta o canal colédoco/via biliar principal, que termina na papila, ao nível da 2ª porção do duodeno, onde também termina o canal de Wirsung pancreático. A bílis percorre todo este sistema de ductos, terminando no duodeno após o relaxamento do esfíncter de Oddi.
FISIOLOGIA A bílis é produzida nos hepatócitos e concentrada na vesicula biliar, sendo este um sistema que funciona em perfeita homeostasia, com pressões reguladas. No período de jejum, ocorre acumulação de bílis com dilatação da vesícula. Aquando da refeição, por acção da colecistoquinina, há contracção da vesícula, libertação da bílis para emulsionar os lípidos ingeridos, esvaziamento da vesícula, relaxamento do esfíncter de Oddi e a pressão no sistema biliar diminui. Havendo compressão, quer interna quer externa, deste sistema, ocorre aumento de pressão no mesmo. Ciclo entero-hepático - na 2ª porção do duodeno, a bílis, por acção bacteriana, é convertida em urobilinogénio. Uma porção deste urobilinogénio é eliminada nas fezes (estercobilina), o que lhes dá a coloração característica de acastanhada. A grande maioria retorna à circulação, para aproveitamento do colesterol, sendo eventualmente eliminada na urina. Assim, na urina encontra-se algum urobilinogénio/urobilina. No entanto, não é normal encontrar bilirrubina na urina.
LITÍASE BILIAR A palavra litíase vem do grego “lithos”, que significa “pedra”. É uma condição e não uma doença. Significa apenas a existência de cálculos, que se podem encontrar e formar em qualquer uma das porções anatómicas referidas atrás. Pode ser assintomática, mas a partir do momento que se torna sintomática, evolui para doença – colelitíase. Factores de risco Factores metabólicos associados a hipercolesterolémia, como a alimentação, obesidade, diabetes, gravidez, etc., são os principais factores de risco. Os cálculos formados são cálculos de colesterol, sendo estes os únicos cálculos radiotransparentes que podem ser encontrados numa ecografia da região; Factores metabólicos associados a hiperbilirrubinémia, como anemias hemolíticas, onde ocorre a formação de cálculos de bilirrubina radio-opacos; Factores de estase, por exemplo, quando ocorre obstrução à passagem de bílis no esfíncter de Oddi ou no ducto cístico (neste caso há saída de água para os vasos, com supersaturação da bílis e com formação de cálculos mistos e lamas biliares; Factores inflamatórios, nomeadamente colecistite aguda com translocação de bactérias e cálcio através da parede do órgão e formação de cálculos mistos. Os cálculos mistos são radio-opacos.
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COLELITIASE Complicações da litíase biliar Normalmente, um cálculo de grandes dimensões no lúmen da vesicula não dá sintomatologia. Por outro lado, cálculos mais pequenos e numerosos são mais perigosos, podendo migrar para as vias biliares e ser responsáveis por patologia. Colecistite aguda Obstrução do canal cístico e consequente inflamação da vesicula biliar. Cólica biliar O cálculo muda de posição, irritando as paredes do órgão. Coledocolitiase O cálculo encontra-se presente no canal colédoco. O doente já teve dor durante a passagem do cálculo e agora encontra-se com icterícia obstrutiva. Sem inflamação. Colangite Obstrução do canal colédoco e resultante inflamação das vias biliares. Caracterizada pela Tríade de Charcot Febre e calafrios Dor no quadrante superior direito/hipocôndrio direito Icterícia Por vezes, ocorre a Penta de Reynolds, onde o doente apresenta ainda hipotensão e alteração do estado mental. Pancreatite Por obstrução da drenagem do canal de Wirsung, ao nível da ampola. A acumulação de enzimas pancreáticas a montante promove a activação dos pró-enzimas produzidos pelos ácinos pancreáticos exócrinos, o que culmina na auto-digestão do pâncreas. Hidrópsia da vesícula A existência de vários cálculos na vesícula leva a uma certa dificuldade no escoamento da bílis, acumulando-se também água e muco, o que resulta num aumento de dimensões da vesícula biliar. Empiema Infecção da bílis, com acumulação de gás produzido pelas bactérias e bílis purulenta, com cólicas biliares recorrentes ou colecistite aguda que evoluiu desfavoravelmente. Síndrome de Mirizzi É uma complicação rara da colelitíase, levando a um estreitamento do ducto hepático comum, causado por um mecanismo de compressão ou inflamação de cálculos impactados no infundíbulo da vesícula biliar ou ducto cístico, causando aderências nas vias biliares, fístulas, icterícia obstrutiva, inflamação e necrose, se não tratada.
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Formação de fístula entre vesicula biliar e duodeno (fístula colecistoduodenal), que permite a passagem de cálculos para o intestino. O cálculo percorre todo o intestino e impacta na válvula íleo-cecal, o que é responsável por uma oclusão intestinal alta, denominado por íleus biliar. As causas mais frequentes de visita à urgência são: cólica biliar e colecistite aguda. A diferença entre ambas baseia-se no tipo de dor: colecistite aguda tem uma dor mais intensa que demora mais tempo a resolver e que dificilmente cede perante medicação, enquanto a cólica biliar é menos intensa e resolve-se mais rapidamente. Ainda, a colecistite aguda tem uma grande probabilidade de recorrer no 1º mês (cerca de 30%), enquanto a cólica biliar recorre num intervalo de 1 ano.
Tratamento cirúrgico Apesar disto, nem todas as colecistites têm indicação cirúrgica. Situações candidatas a cirurgia são: Antes de mais, tem de ser colelitíase – litíase biliar com sintomas Diabéticos – dificuldade no controlo quer da infecção quer da glicémia Imunodeprimidos Transplantados – a cirurgia faz-se antes do transplante em doentes em risco de colelitíase, a fim de evitar complicações após o transplante, sobretudo no 1º mês (podem levar a rejeição do órgão). Doentes que vão viajar para países onde os cuidados de saúde são precários. Por vezes, é possível operar até às 48-72h. Depois deste tempo, a cirurgia torna-se mais complicada, pelo que não é opção. Esta dificuldade deve-se ao desenvolvimento de um processo inflamatório durante as 48-72h, precisamente. A partir deste período, ocorre aumento da vascularização (o que aumenta o risco de hemorragia), envolvimento pelo epíploon da região inflamada como tentativa de confinar o processo inflamatório àquele espaço (com formação de uma espécie de plastron) e formação de aderências, que dificultam a aproximação à vesicula e sua excisão sem afectação de tecidos vizinhos. Nestes casos, opta-se por terapêutica conservadora: pausa alimentar/dieta zero, medicação oral, fluidoterapia endovenosa, analgesia, antibioterapia de largo espectro com boa penetrância para vias biliares (piperacilina + tazobactam). CASO CLINICO Doente de 55 anos que recorre ao S. U. por dor intensa no hipocôndrio direito. Sente-se nauseada e febril. Qual o interrogatório que faria?
Anamnese História da doença actual Caracterizar a dor: quando começou, duração, intensidade, para onde irradiou, factores de alívio e agravamento. Sintomas acompanhantes: febre, náuseas, vómitos, pirose, sintomas urinários (cor da urina, perdas hemáticas), gastrointestinais (cor e consistência das fezes, trânsito intestinal, perdas hemáticas). Diagnóstico diferencial: sintomas extra-abdominais, nomeadamente do sistema respiratório (pesquisar possível pneumonia de base direita) e cardiovascular (pesquisar enfarte da parede posterior do miocárdio), sendo necessário perguntar se a doente tem palpitações, edemas, dispneia, tosse, expectoração. 123
Antecedentes pessoais: medicação habitual para aferir outras patologias da doente.
Exame objectivo Inspecção geral: avaliar a cor da pele, nomeadamente pesquisar icterícia e anemia; notar se a doente tem uma posição preferível; medir a febre. Auscultação: cardíaca e pulmonar, esta última para procurar uma pneumonia de base direita. Excluída patologia respiratória, avaliar abdómen, começando por inspecção e auscultação. Segue-se a palpação abdominal: fundamental é o Murphy vesicular, patognomónico de colecistite aguda – palpa-se com o bordo externo da mão o hipocôndrio direito do doente e pede-se para inspirar; com o movimento descendente do diafragma, ocorre a descida da vesícula e aproximação da mesma à mão, com dor devido a inflamação, pelo que o doente interrompe a inspiração. É pesquisado numa linha que cruza o bordo externo do recto direito com o bordo hepático (em doentes magros onde se possa palpar o bordo inferior do fígado) ou numa linha perpendicular à que passa entre a crista ilíaca superior esquerda, o umbigo e o rebordo costal direito. A percussão abdominal é o último passo.
Diagnóstico diferencial (tendo em conta que o Murphy vesicular pode ser duvidoso)
Colecistite aguda Cólica biliar Pancreatite aguda Hepatite Enfarte inferior da parede posterior do miocárdio Pneumonia de base direita Úlcera péptica Pielonefrite
Exames auxiliares de diagnóstico Hemograma: leucocitose, neutrofilia + PCR (parâmetros de infecção e inflamação). Urina II + ureia + creatinina+ ionograma. Função hepática: AST e ALT (como a doente não está ictérica, não faz sentido pedir avaliação de obstrução pela fosfatase alcalina e gama-GT) Lipase Troponina: especifica para EAM ECG Raio-X tórax Ecografia hepatobiliopancreática Na ecografia é possível visualizar: - Presença de cálculos, através da identificação de cones de sombra; - Espessamento da parede da vesícula biliar, muitas vezes com estratificação, processo resultante da inflamação; - Densidade inflamatória peri-vesicular, ou até mesmo presença de abcessos. 124
- É possível ainda pesquisar Murphy vesicular ecográfico, através do deslizamento da sonda na região da realização da ecografia e é positivo se o doente sentir dor. - Visualizar a cabeça do pâncreas, avaliar se está edemaciada, heterogénea, factores de suspeição de pancreatite. - Avaliar dilatação das vias biliares.
ICTERÍCIAS Após os 120 dias de vida dos eritrócitos, ocorre a libertação de hemoglobina, com consequente dissociação do grupo heme e globina. A globina constitui um grupo proteico que é reutilizado e o grupo heme divide-se em ferro, que é transportado pela transferrina ao fígado, e em biliverdina. A biliverdina é reduzida a bilirrubina pela biliverdina reductase. A bilirrubina circula no sangue ligada à albumina, encontrando-se na sua forma não conjugada/indirecta. Pelo sistema porta, chega ao fígado, onde sofre um processo de conjugação, por forma a poder ser posteriormente libertada no intestino. À medida que percorre o ducto hepático comum, grande parte é armazenada na vesícula biliar, sendo a bilirrubina um dos constituintes da bílis. A nível intestinal, a bilirrubina conjugada/directa, por acção bacteriana, é convertida em urobilinogénio. Uma porção deste urobilinogénio é eliminada nas fezes (estercobilina), o que lhes dá a coloração característica de acastanhada. A grande maioria retorna à circulação, para aproveitamento do colesterol, sendo a eventualmente eliminada na urina – ciclo entero-hepático. Assim, na urina encontra-se algum urobilinogénio/urobilina. No entanto, não é normal encontrar bilirrubina na urina. Há icterícia se houver: Existência de uma quantidade de bilirrubina não conjugada/indirecta que ultrapassa a capacidade hepática de conjugação - Em anemias hemolíticas - Hiperbilirrubinémia à custa de bilirrubina não conjugada com hiperbilirrubinúria. Anomalia na captação de bilirrubina não conjugada/indirecta - Esta bilirrubina não conjugada não pode ser excretada, passando directamente para os vasos e sendo exclusivamente eliminada por via renal. - Hiperbilirrubinémia à custa de bilirrubina não conjugada com hiperbilirrubinúria. Patologia hepática que impede a conjugação da bilirrubina, em graus variados: - Síndrome de Gilbert, Síndrome Crigler Najjar - Hepatite - Cirrose - Sépsis Patologia pós-hepática que impede a eliminação de bilirrubina conjugada/directa - Síndrome de Dubin-Johnson - Obstrução incompleta – por exemplo, coledocolitíase: - Alguma bilirrubina conjugada passa para o intestino, logo dá alguma cor às fezes. Passa a maior parte para circulação, com hiperbilirrubinémia à custa da conjugada, hiperbilirrubinúria e urobilinogénio/urobilina na urina. - Obstrução completa – neoplasia da via biliar/ampuloma: - A bilirrubina conjugada não é eliminada. Há acolia extrema, com fezes completamente brancas. Na urina não há urobilinogénio, mas há hiperbilirrubinúria. Verifica-se hiperbilirrubinémia à custa da bilirrubina conjugada. - A pele do doente tem uma coloração esverdeada. 125
A icterícia por obstrução litiásica surge apenas quando o cálculo obstrui o ducto hepático ou o canal colédoco. CASO CLÍNICO Doente de 67 anos que recorre ao médico por notar que tem vindo a ficar “amarelo”.
Anamnese O objectivo é distinguir entre icterícia intra ou extra-hepática Dor abdominal (localização, quando começou, intensidade, irradiação, factores de alivio) Quando surgiu e duração da icterícia Medicamentos Exposição a tóxicos Hepatite Cirurgia prévia Sintomas de colangite Prurido Dor vs Febre na história clínica de icterícia É importante conhecer o que apareceu primeiro, pois permite distinguir a origem benigna ou maligna da icterícia. Assim, icterícia acompanhada de febre é a favor de patologia benigna. Quando a dor surge primeiro que a icterícia é indício de patologia benigna. As neoplasias habitualmente não doem e o primeiro sintoma que surge é a icterícia. Normalmente, só dão dor quando a massa tumoral comprime estruturas adjacentes, ou seja, já se encontram num estadio muito avançado, associadas a pior prognóstico. As principais neoplasias responsáveis por icterícia são o carcinoma da cabeça do pâncreas e o ampuloma. A icterícia colestática litiásica tem dor antes e a icterícia é flutuante, enquanto a neoplásica tem dor depois, num estadio mais avançado, e a icterícia é progressiva. Excepção: Ampuloma – neoplasia que cursa com icterícia flutuante, associada a hemorragia gastro-intestinal, nomeadamente melenas, devido a regressão/necrose cíclica do tumor. Saber se o doente foi submetido a cirurgia, pois, por vezes, surge icterícia pós-operatória/iatrogénica: Transfusional (aumento da sobrecarga hepática) Alterações da função hepato-celular, muito associadas aos anestésicos (halotano) Quadro de sépsis pós-operatório
Exame objectivo Inspecção: pele e escleróticas de cor amarelada; em indivíduos de raça negra, procurar coloração amarela no freio da língua, pesquisar anemia, o aspecto emagrecido do doente é característico de neoplasia, sendo importante saber se houve perda de peso e estado nutricional. Palpação: pesquisar a presença de massas e saber se doem ou não. Uma massa que não é a vesicula biliar e que não dói é suspeita de neoplasia. Uma vesícula biliar dolorosa é suspeito de inflamação (colecistite).
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Segundo a Lei de Courvoisier, acima de uma obstrução há uma dilatação, pelo que nos casos de icterícia obstrutiva, a vesícula vai encontrar-se grande, palpável e não dolorosa, e não é um caso de neoplasia. Assim, o característico de obstrução a jusante da confluência cístico-colédoco é icterícia progressiva + vesicula palpável. Realizar toque rectal para pesquisar hemorragia gastro-intestinal, principalmente quando o doente não sabe dizer se teve perdas hemorrágicas.
Exames auxiliares diagnóstico Hemograma: pesquisar anemia hemolítica. Gama-GT e fosfatase alcalina e bilirrubinas. Urina II: procurar bilirrubina e urobilinogénio.
AST, ALT Fosf. Alcalina Bilirrubina
Intra-hepática (hepato-celular) +++ + ++
Extra-hepática (obstrutiva) + +++ +++
Ecografia: permite ver se o doente tem hepatomegália ou se tem obstrução das vias biliares. CPRE (colecistopancreatografia retrógrada endoscópica): exame mais indicado para pesquisar obstrução, pois consiste numa endoscopia digestiva alta que percorre o esófago, estômago, duodeno, atravessa a papila e com contraste permite ver as vias biliares. É diagnóstica e terapêutica, pois permite retirar os cálculos encontrados e faz esfincterotomia, o que evita que mais cálculos que saiam da vesícula continuem a obstruir os ductos biliares. Posteriormente, o doente terá de realizar uma colecistectomia, a cura definitiva.
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PÂNCREAS E BAÇO PÂNCREAS ANATOMIA O pâncreas é um órgão retroperitoneal, localizando-se atrás do estômago (porção do corpo, antro e piloro) e adiante da aorta e coluna vertebral, encontra-se atravessado ao longo da cavidade abdominal, relacionando-se com o duodeno, de tal forma que quando se remove a cabeça do pâncreas é necessário retirar parte do duodeno, e com o baço, até mesmo intimamente com a artéria esplénica. Por isso, a necrose do pâncreas ou outras patologias pancreáticas que levem à compressão da artéria esplénica levam a isquémia do baço. Entre o pâncreas e a aorta, a rodear esta última, encontra-se o plexo celíaco, de extrema importância na transmissão da dor desta região.
EMBRIOLOGIA Da porção mais superior do tubo intestinal surgem dois divertículos: o pâncreas dorsal e o pâncreas ventral. Mais tarde, há uma rotação horária que permite a união dos dois pâncreas, formando-se o pâncreas. É possível, no entanto, não ocorrer esta rotação e consequente fusão, sendo que o doente tem dois pâncreas. O pâncreas divide-se em cabeça, pescoço, processo uncinado, corpo e cauda. Duodenopancreatectomia cefálica envolve remover toda a cabeça do pâncreas, normalmente no contexto de neoplasia, tendo como referência os vasos mesentéricos. Quando há invasão dos vasos mesentéricos, a esperança de vida é de 6 meses. Nesta cirurgia secciona-se ainda o estômago e a via biliar e envolve 3 anastomoses, tendo uma duração de 4 a 5h. A irrigação é feita através do tronco celíaco, sendo a cabeça do pâncreas a sua porção mais irrigada.
FISIOLOGIA O pâncreas é uma glândula endócrina e exócrina. Glândula endócrina: constituída por ilhéus de Langerhans, que produzem insulina e glucagina, permitindo o controlo sérico da glicose. Quando há destruição da porção endócrina, desenvolve-se uma diabetes. Glândula exócrina: lipase, tripsina, amilase, e outras enzimas fundamentais para a digestão, electrólitos, água e 1 a 2L/dia de solução alcalina. Quando há destruição da glândula exócrina em cerca de 90% (resta apenas 10% de produção de enzimas) surge esteatorreia, com perda de gordura e proteínas nas fezes.
SINAIS E SINTOMAS Dor abdominal (difusa, vaga, cinturão) Na pancreatite aguda, a dor característica é a dor epigástrica com irradiação em cinturão; normalmente surge após ingestão de álcool ou refeição; o doente coloca-se na posição genupeitoral/de maometano. As principais etiologias são: álcool, litíase, traumatismo, iatrogénica por acção do cirurgião ou pós-CPRE, infecção, auto-imune, idiopática e hipertriacilgliceridémia. Perda de peso O doente deixa de comer para não ter dor. 128
Anorexia, náuseas, vómitos Principalmente no contexto de pâncreas anelar, ocorre compressão duodenal, levando a vómitos. Intolerância glucose A destruição progressiva do pâncreas leva a diminuição da produção de insulina, normalmente associado a pancreatite crónica. Flatulência Por ausência de enzimas pancreáticas há acumulação de ar. Hemorragia gastro-intestinal Alternância entre icterícia e melenas faz suspeitar de ampuloma. Por vezes a esfincterectomia trans-endoscopica (ETE), realizada no âmbito de CPRE, é responsável por hemorragia, uma vez que é uma região ricamente vascularizada. Ascite A pancreatite aguda cursa com chamada de líquido à cavidade abdominal (SRIA), podendo evoluir para choque hipovolémico. Dor lombar Icterícia (cabeça do pâncreas) Fezes acólicas e urina escura
PATOLOGIA
Pancreatite aguda (alcoólica / litiásica) Pancreatite crónica Neoplasia pâncreas (ampola/cabeça/cauda) Tumores endócrinos (insulinoma/gastrinoma/VIPoma) Linfoma pancreático Trauma
Pancreatite aguda litiásica Pequenos cálculos são mais preocupantes, uma vez que mais facilmente migram e são responsáveis por patologia. Cálculos de maiores dimensões só chegam ao intestino no contexto de uma síndrome de Mirizzi, em que se forma uma fístula colecistoduodenal. Frequentemente, cálculos pequenos atravessam o ducto cístico no momento de contracção da vesícula após a refeição, podendo obstruir a ampola e a drenagem do canal de Wirsung. A consequente acumulação de secreção exócrina pancreática a montante pode activar a cadeia tripsina-tripsinogénio, iniciando a reacção auto-catalítica onde ocorre auto-digestão pancreática. No pior prognóstico, a digestão pancreática é extrema, havendo a necessidade de drenar o conteúdo intra-abdominal ou até mesmo de realizar uma laparostomia. No entanto, apesar da intervenção cirúrgica, a taxa de mortalidade é muito alta. É então uma doença benigna, mas que pode matar. A pancreatite aguda litiásica tem maior incidência em mulheres (4F’s): Female, Fertile, Fourty, Fat! Pancreatite aguda alcoólica tem a mesma incidência em homens e mulheres. 129
Critérios de avaliação da gravidade de pancreatite Critérios de Ranson: vistos às 0h e 48h e permitem obter prognóstico.
Critérios de imagem de Baltazar: Os critérios de Balthazar utilizados no estadiamento tomográfico qualificam a doença em graus de A a E com pontuação de 0 a 4 pontos, sendo: A (0 pontos): pâncreas de morfologia normal; B (1 ponto): aumento focal ou difuso da víscera; C (2 pontos): inflamação peripancreática; D (3 pontos): coleção líquida única; E (4 pontos): presença de duas ou mais colecções.
Pancreatite crónica Não dá sintomatologia aguda, mas leva a uma calcificação progressiva da glândula, com atrofia da mesma. Resulta em diabetes e esteatorreia. Tem menor gravidade que a pancreatite aguda.
Neoplasia Um tumor pancreático pode desenvolver-se em qualquer porção do pâncreas. Independentemente da localização são responsáveis por sintomatologia comum: emagrecimento, adenopatias, anemia, ascite. No caso de um tumor do corpo é característico o doente queixar-se exclusivamente de dor lombar. Isto, porque a massa tumoral vai comprimir o plexo celíaco que rodeia a aorta. Um tumor da cabeça leva a compressão das vias biliares, com consequente icterícia obstrutiva, acolia (fezes em massa de vidraceiro) e colúria (urina cor de vinho do porto). Basta apenas ter 3cm para ter sintomatologia e tornar-se irressecável. Um tumor da cauda do pâncreas é muito silencioso, desenvolvendo-se praticamente sem sintomatologia. Em casos mais avançados, poderá provocar compressão/destruição da artéria esplénica com consequente enfarte do baço. Podem ainda formar-se neoplasias produtoras de hormonas, como por exemplo, um insulinoma, gastrinoma, VIPoma. No caso de um insulinoma, verifica-se a produção aumentada de insulina, sendo o principal sintoma hipoglicémias consecutivas. Linfoma pancreático é uma entidade muito rara.
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Trauma O trauma pode ser iatrogénico ou resultante de um acidente de viação. Ocorre libertação do conteúdo dos canículos pancreáticos e canal de Wirsung, resultando numa auto-digestão, tal como na pancreatite. Como complicação deste processo comum à pancreatite aguda, forma-se uma fístula que pode ir até à pele, noutros forma-se um falso quisto do pâncreas, sem parede/cápsula, onde há organização dos tecidos envolventes por forma a confinar as enzimas e líquidos perdidos à zona em redor do pâncreas, eventualmente progredindo para a formação de uma cápsula, ou seja, de um quisto verdadeiro. Este pode comprimir estruturas vizinhas, provocando náuseas, vómitos e oclusão intestinal. Perante uma fístula pancreática, deve-se realizar uma ETE (esfincterectomia trans-endoscopica) para permitir uma maior drenagem do canal de Wirsung e diminuindo a quantidade de secreção libertada pela fístula, ou até mesmo resolvendo-a. É importante saber distinguir 2 sinais característicos de pancreatite: Sinal de Gray-Turner: coloração azulada da pele ao nível dos flancos. (em cima) Sinal de Cullen: coloração azulada da pele peri-umbilical; verifica-se também em rupturas de quistos ováricos. (em baixo)
BAÇO ANATOMIA Projecta-se no hipocôndrio esquerdo, localizando-se então na proximidade do estômago e cauda do pâncreas e protegido pela grelha costal. É envolvido por uma cápsula e extremamente bem irrigado, passando por ele cerca de 200 mL de sangue por minuto. Por vezes, em cirurgias ao cólon em que é necessário soltar o ângulo esplénico, durante a tracção do epíploon, secciona-se vasos esplénicos. É ainda mais grave quando, por confusão com tecido adiposo, se secciona parte da cauda do pâncreas, formando-se uma fístula pancreática que, como já referido, se trata através de uma ETE.
FISIOLOGIA O baço tem várias funções Funções imunológicas Activação complemento / IgG / IgM Importante até aos 20 e tal anos Funções de fagocitose Sinusóides esplénicos onde as células sanguíneas são filtradas 1000 x/dia - Eritrócitos deficitários - Plaquetas (púrpura trombocitopénica idiopática - PTI) 200 ml sangue/minuto adulto Pode resultar em esplenomegália Sépsis pós esplenectomia (aumenta a susceptibilidade a pneumococus) - se a esplenectomia for urgente, não se faz vacinação anti-pneumocócica. - se a esplenectomia é electiva, deve-se tomar a vacina anti-pneumococica 3 semanas antes. 131
TERAPÊUTICA Quando há trauma esplénico: Utiliza-se cola, redes e mantém-se o doente em vigilância; não é necessária cirurgia. Nas situações de traumatismo em 2 tempos, como por exemplo, um doente tem um trauma, não tem sintomatologia de ruptura de baço, não se faz nada e dá-se alta. Dois dias depois, o doente volta à urgência com dor no hipocôndrio esquerdo, taquicárdico, hipotenso e com hemoperitoneu (resultante da ruptura da cápsula esplénica), tendo de se avançar para a cirurgia. Indicações para esplenectomia: Hematológicas - PTI é a mais frequente; dá-se plaquetas enquanto se opera; após a remoção do baço, a contagem das plaquetas sobe exponencialmente 2/3 dias depois. - Esferocitose - Anemia células falciformes Infecciosas ou parasitárias - Principalmente em países africanos Trauma Tumor / Abcesso A saber para exame Cálculos grandes são melhores que os pequenos, podendo apenas provocar ileus biliar no contexto de s. mirizzi. Nem todos os cálculos da via biliar dão pancreatite (ver aula vias biliares) É possível formarem-se cálculos na via biliar sem vesicula biliar! Etiologias da pancreatite Critérios de gravidade da pancreatite 4F’s Sintomatologia do tumor do corpo, cabeça, cauda e insulinoma Sinal de Gray-Turner e de Cullen Qual o 1º exame que se pde perante um nódulo cervical? Ecografia! Diferença entre CAF e biópsia com agulha true-cut? Na CAF obtém-se células e na biópsia com agulha true-cut obtém-se histologia.
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HIPERTENSÃO PORTAL A pressão normal no sistema porta é de 8-13 cmH2O ou 10 mmHg, sendo que quando existe uma pressão superior a esta falamos em hipertensão portal.
ETIOLOGIA A HTP resulta de uma obstrução no território portal, que pode ser: Pré-hepática Malformações congénitas No período neonatal, as infecções umbilicais podem evoluir para uma trombose da veia porta (pileflebite) Oclusão venosa por tumor ou pancreatite crónica Hepática Cirrose Pós-Hepática Síndrome de Budd-Chiari, que leva a obstrução das veias hepáticas, que pode ser idiopatica ou por invasão tumoral
FISIOPATOLOGIA Encefalopatia hepática Ocorre por hiperamonémia, já que o fígado, com algum nível de insuficiência, perde a capacidade de converter amónia a ureia, não havendo a sua excreção. Para além disso, outras substâncias, como aminas, fenóis e ácidos gordos de cadeia curta, que fazem bypass ao fígado, vão estar envolvidos nesta patologia, bem como aminoácidos aromáticos que, a nível cerebral, vão ser usados para sintetizar falsos transmissores (por exemplo, serotonina). A encefalopatia classifica-se em 4 graus e está associada a uma manifestação característica, que é o flapping. I. Confuso, alterações psicométricas II. Comportamento inapropriado III. Confusão marcada, discurso incompreensível IV. Coma
Circulação colateral porto-sistémica Varizes esofágicas – a ruptura de varizes esofágicas é uma complicação grave de hipertensão portal, sendo que 60% dos doentes com cirrose desenvolvem varizes esofágicas e, 2 anos após o diagnóstico, 30% destes doentes sangra e, ainda, 50% destes morre no 1º episódio hemorrágico, pelo que é uma situação que requer medidas terapêuticas emergentes. Sem terapêutica, 60% dos doentes morre 2 anos após o 1º episódio hemorrágico, sendo necessárias também medidas de prevenção secundária. Os factores determinantes de ruptura são a dimensão das varizes, um gradiente de pressão venosa >12mmHg e a gravidade da doença hepática, nomeadamente situações de insuficiência hepática. 133
O grau de Child é um factor determinante na ruptura, sendo um factor prognóstico da taxa de mortalidade de cada episódio hemorrágico. Grau de Child Bilirrubina Albumina TP Ascite Encefalopatia Mortalidade
A (5-6) <2mg >35 1-4s Ausente Ausente 5%
B (7-9) 2-3mg 28-35 4-6s Ligeira Mínima 18%
C (10-15) >3mg <28 >6s Moderada Coma 68%
Varizes gástricas Gastropatia hipertensiva Varizes ano-rectais Circulação colateral na parede abdominal – cabeça de medusa
Esplenomegália Hiperesplenismo Pancitopénia Maior risco de ruptura espontânea do baço
Ascite Na HTP hepática e pós-hepática
Insuficiência hepática Cirrose severa
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HEMORRAGIA DIGESTIVA DEFINIÇÃO Qualquer perda de sangue que tenha como ponto de partida o tracto gastro-intestinal. Divide-se, de acordo com o seu local de origem, em hemorragia digestiva alta ou baixa. É importante conhecer a semiologia destes dois tipos de hemorragia digestiva, por forma a diagnosticá-las, sabendo que diferem também em termos de terapêutica e até de prognóstico. O ponto anatómico utilizado como referência é o ângulo de Treitz: Ponto de origem da hemorragia acima do ângulo de Treitz – hemorragia digestiva alta Ponto de origem de hemorragia abaixo do ângulo de Treitz – hemorragia digestiva baixa
HEMORRAGIA DIGESTIVA ALTA Patologias que mais frequentemente dão origem a hemorragia digestiva alta: Úlcera péptica (é de todas a mais frequente) Gastrite erosiva Varizes esofágicas (no contexto de cirrose hepática com hipertensão portal) Síndrome Mallory-Weiss Neoplasia gástrica (manifesta-se por hemorragias de pequeno volume)
Úlcera péptica Solução de continuidade da mucosa gástrica, até à submucosa. Consiste num processo de auto-digestão local, que resulta de um desequilíbrio entre factores protectores e agressores da mucosa gástrica. Factores de protecção Irrigação sanguínea Bicarbonato Muco Gap-junctions das células da mucosa Cutícula apical das células da mucosa Renovação do epitélio Factores de agressão Ácido clorídrico Pepsina AINE’s Corticoterapia Stress psiquico ou físico Álcool Café O processo destrutivo da mucosa e da submucosa, até à muscular pode atingir vasos que irrigam o estômago ou duodeno. 135
Na úlcera duodenal, a localização preferencial é a parede posterior da 1ª porção do duodeno e a sua lesão pode conduzir ao atingimento da artéria duodeno-pancreática, que tem um fluxo muito aumentado e será responsável por uma hemorragia de débito elevado.
Gastrite erosiva Processo de erosão da mucosa gástrica, que, à endoscopia, se revela num conjunto de úlceras superficiais de pequenas dimensões, que pode ter várias etiologias: Traumatismo Choque, sépsis Queimaduras graves Trauma do SNC Corticoides AINE’s Álcool Stress Estas úlceras podem sangrar, dando origem a uma hemorragia em toalha, que atinge o todo o estômago e/ou duodeno. A profilaxia desta complicação é feita com inibidores da bomba de protões.
Varizes esofágicas Veias da submucosa do esófago dilatadas. Podem atingir predominantemente o terço distal do esófago ou o terço proximal do estômago (ou fundo gástrico), em termos médicos devem ser designadas por varizes esofago-gástricas, ou seja, atingem o esófago na sua porção distal e estômago na sua porção proximal. Surgem normalmente no contexto de uma cirrose hepática, onde ocorre destruição do parênquima hepático, anomalia na circulação intra-hepática, com alteração da anatomia vascular venosa e diminuição do retorno venoso; consequentemente há aumento da pressão a nível da circulação portal levando a hipertensão portal. A hipertensão portal leva ao aparecimento de circulação colateral, com desvio do fluxo sanguíneo predominante para veias esofágicas, rectais e umbilical. Como estas não se encontram histologicamente preparadas para estes volumes de sangue, tendo baixo débito ou mesmo estando colapsadas, mais facilmente sofrem ruptura, com hemorragias consideráveis. Podem assim também formar-se varizes ano-rectais e cabeça de medusa.
Síndrome de Mallory-Weiss Lesão ulcerada/laceração longitudinal da junção esófago-gástrica, devido ao esforço associado ao vómito.
Tumores gástricos Podem ser benignos ou malignos. Sangram pouco: “todos os dias sangra um bocadinho”. Normalmente, o doente nem se apercebe que está a perder sangue, mas aparece na consulta com sinais e sintomas de perda hemorrágica. Pode ainda desenvolver uma anemia crónica microcítica hipocrómica.
CLÍNICA DA HDA Sinais e sintomas Os sinais e sintomas de um doente com hemorragia digestiva alta são:
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Hematemeses – vómitos com conteúdo hemático; pode ter sangue vivo, quando o fluxo sanguíneo é elevado, ou sangue escuro, tipo borras de café, resultante da semi-digestão do sangue pelo ácido clorídrico, quando o fluxo sanguíneo é baixo; predominantemente em casos de hemorragia aguda. Melenas – fezes com conteúdo hemático, escuras, tipo borra de café, uma vez que o sangue foi totalmente digerido pelo ácido clorídrico. Sinais de hipovolémia – que eventualmente se poderá manifestar por choque hipovolémico, em casos de hemorragias abundantes (tudo dependerá do débito da hemorragia, procurando-se impedir o agravamento da hemorragia, por forma a não evoluir para choque): palidez, epífora, hipotensão, taquicardia, taquipneia. Ansiedade expectável No caso de patologia cirrótica, encontrar-se-ão ainda outros sinais que poderão ajudar na orientação do diagnóstico: circulação colateral venosa superficial, cabeça de medusa, aranhas vasculares, ascite, icterícia, eritema palmar, telangiectasias, encefalopatia hepática, rarefacção pilosa.
Abordagem Tal como no trauma, a abordagem tem de ser rápida e eficaz, procurando-se simultaneamente: Diagnóstico etiológico (descobrir de onde o doente sangra e porquê) Reposição da volémia Parar a hemorragia É importante conhecer a história pregressa do doente, conhecer outras doenças e medicação habitual (AINE’s e corticóides).
Exames auxiliares de diagnóstico Endoscopia digestiva alta (diagnóstica e terapêutica) Permite identificar localização da lesão sangrante e permite parar hemorragia.
Tratamento Reposição da volémia Preparar acessos venosos periféricos, para permitir eventualmente recolher sangue para análise e principalmente para repor a volémia Transfusão de concentrado eritrocitário Administração de cristalóides com ou sem glucose Parar a hemorragia Endoscopia digestiva alta terapêutica Injecção de vasoconstitor ou esclerosante no vaso sangrante Fotocoagulação com laser Sprays hemostáticos Aplicação de calor local/canivete eléctrico/electrobisturi Aplicação de clipes, anéis de borracha 137
Balão de Segstaken-Blackmore - Utilizado na ruptura de varizes esofágicas - 1º é necessária a colaboração do doente para engolir a sonda, posteriormente, insere-se o balão até ao terço distal do esófago que, quando insuflado, comprime os vasos sangrantes - É uma medida drástica, mas eficaz - O doente tem de ser constantemente vigiado “o doente pode não morrer da doença, mas morre da cura” - À cabeceira do doente deve estar uma tesoura, pois em caso de mobilização do balão para a faringe, o doente pode morrer de asfixia. Cirurgia Com todos estes recursos actuais, a cirurgia é a última hipótese, só mesmo em casos de falência terapêutica, de hemorragia incontrolável/persistente ou recidivante. Evita-se a cirurgia porque, uma cirurgia no momento de uma hemorragia intensa tem maior morbilidade/mortalidade. Quando se opta por cirurgia, esta depende da etiologia da hemorragia.
HEMORRAGIA DIGESTIVA BAIXA Patologias que mais frequentemente dão origem a hemorragia digestiva baixa: Doença diverticular do cólon Angiodisplasia do cólon Pólipos (mais frequente no cólon) Doença inflamatória do intestino, doença de Crohn, mas mais frequentemente a colite ulcerosa Carcinoma colo-rectal (responsável por pequenas hemorragias e consequentemente anemia crónica) Hemorróidas Divertículo de Meckel O diagnóstico de hemorragia digestiva baixa é mais difícil, mas tem melhor prognóstico. É complicado diagnosticar, uma vez que o território de possível hemorragia é mais extenso e os métodos auxiliares de diagnóstico não permitem observar tão bem toda esta porção do tubo digestivo (maior e mais difícil de estudar). Afecta intestino delgado, cólon, recto e ânus, sendo esta última porção do tracto mais fácil de estudar. Por isso, é fundamental observar o doente, sem esquecer a realização do toque rectal.
Doença diverticular do cólon Patologia que se caracteriza pela formação de numerosos divertículos, associado ao envelhecimento (> 40 anos), aumento de pressão intra-abdominal e consumo reduzido de fibras alimentares. Os divertículos são mais comuns ao nível do cólon sigmoideu, tendo como complicações mais frequentes a diverticulite (processo inflamatório/infeccioso) e a hemorragia. Importante salientar que a hemorragia severa é mais comum do lado direito.
Angiodisplasia É mais frequente no cólon direito, em doente idoso e com patologia vascular variada, nomeadamente estenose aórtica severa.
Pólipos Formações polipóides da mucosa que crescem para o lúmen. Com o tempo, o pólipo evolui para adenocarcinoma do cólon. Pode ser ponto de hemorragia, caso ocorra a sua lesão e ruptura. 138
Doença inflamatória intestinal Doença de Crohn: pode eventualmente sangrar, apesar de a sua manifestação clássica não ser hemorragia. Afecta porções pontuais e distantes do cólon. Colite ulcerosa: tipicamente dá hemorragia digestiva baixa: rectocolite hemorrágica (nomenclatura francesa). É caracterizada por hemorragia do cólon e recto, sendo que a colite ulcerosa afecta mais o cólon distal e recto, em bloco.
Carcinoma colo-rectal Responsável por pequenas hemorragias e consequentemente por anemia crónica.
Hemorróidas Muito frequentes. Correspondem a uma hiperplasia e dilatação dos sinusóides das almofadas hemorroidárias, estando associadas a uma predisposição genética, sedentarismo e posição sentada, obesidade, gravidez e obstipação, com defecação prolongada. Por lesão externa (normalmente fezes duras) rompem e sangram. São visíveis ao exame objectivo e por isso fáceis de diagnosticar.
Divertículo de Meckel Consiste num divertículo localizado na proximidade do cego, composto por mucosa gástrica ectópica ou tecido pancreático e é uma das principais etiologias de hemorragia digestiva baixa.
CLÍNICA DA HDB Sinais e sintomas Os sinais e sintomas de um doente com hemorragia digestiva baixa são: Hematoquézia – fezes com conteúdo hemático, com sangue parcialmente digerido e portanto de coloração escura; ponto de hemorragia é proximal. Rectorragia – hemorragia rectal de sangue vivo, no momento da defecação; ponto de hemorragia distal; habitual nas hemorróidas. Sinais de anemia crónica – normalmente em carcinoma ano-rectal, de perdas hemáticas insignificantes mas contínuas; o doente chega à consulta com sinais de anemia crónica. Sinais de hipovolémia – se hemorragia for de alto débito, o que leva o doente à urgência. Ansiedade expectável
Abordagem Tal como no trauma, a abordagem tem de ser rápida e eficaz, procurando-se simultaneamente: Diagnóstico etiológico (descobrir de onde o doente sangra e porquê) Reposição da volémia Parar a hemorragia É importante conhecer a história pregressa do doente, conhecer outras doenças e medicação habitual (anticoagulantes). 139
Importante não esquecer no exame objectivo o exame ano-rectal. Entubação naso-gástrica – deve ser feita em doentes que chegam a urgência com hipovolémia e queixas de sangue vivo nas fezes, uma vez que a hemorragia digestiva alta é mais grave e deve ser prioritariamente excluída. Assim, faz-se uma aspiração e se se aspirar bílis sem vestígios de sangue, então o sangue vivo perdido nas fezes não resulta de uma hemorragia digestiva alta abundante.
Exames complementares de diagnóstico Colonoscopia – necessita de maior preparação intestinal, o que dificulta o diagnóstico em situações agudas. É também um método terapêutico. Enteroscopia – exame de difícil execução e com várias complicações e que nem sempre permitia o diagnóstico. Enteroscopia por videocápsula – o doente deglute uma cápsula com câmara fotográfica que tira fotografias a intervalos de tempo regulares. Ao final de algumas horas, o doente evacua a cápsula e avalia-se as fotografias. É um trabalho moroso mas muitas vezes eficaz. Sabendo a velocidade média do avanço da cápsula e o número da fotografia, tem-se uma noção da localização da lesão. Angiografia – permite diagnóstico e terapêutica Limitações: exige que o doente sangre entre 2 a 5mililitros/min (hemorragia significativa); nem todos os hospitais têm angiografia de urgência; os doentes nem sempre são transportáveis para serem deslocados ao local que tem o aparelho e o técnico disponível. Vantagem: a terapêutica é conseguida ao se injectar um produto que faz oclusão arterial localizada, interrompendo a hemorragia, com grande utilidade, por exemplo, em fracturas de bacia.
Tratamento Para parar a hemorragia Endoscopia terapêutica Angioembolização Cirurgia – a cirurgia é opção quando todas as outras terapêuticas falham. É electiva em casos de divertículos ou hemorróidas, por exemplo. Recorre-se à cirurgia de urgência quando o doente se encontra hemodinamicamente instável.
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OCLUSÃO INTESTINAL
A oclusão intestinal ocorre quando há uma obstrução à normal progressão do conteúdo intestinal ao longo do intestino, caracterizando-se por uma paragem da emissão de gases e fezes. Ocorre quando há alguma coisa que “entope” o intestino, por exemplo, compressão, dobragem, presença de conteúdo que oclua, etc. Designa-se por sub-oclusão uma situação em que o doente não consegue emitir fezes mas ainda consegue emitir gases. Há causas fisiológicas que podem levar a uma não progressão do conteúdo intestinal, como são algumas alterações neurológicas ou o uso de alguns fármacos (por exemplo, opióides), mas no contexto da cirurgia as causas mais relevantes são as mecânicas, associadas a barreiras físicas. No íleus paralítico, há uma perturbação da capacidade de propulsão motora, mas não propriamente a presença de um obstáculo.
CAUSAS As mais frequentes são bridas e aderências, hérnias e neoplasias. Dividem-se em:
Extrínsecas – estão fora do intestino, levando à sua compressão, dobragem ou distorção, impedindo a progressão do seu conteúdo. Bridas e aderências – são a principal causa de oclusão intestinal nos países desenvolvidos, já que há muitos doentes operados (cirurgia pélvica, cólon). A forma mais frequente de as aderências fazerem uma oclusão é quando há formação de hérnias internas por passagem de ansas intestinais que ficam encarceradas entre 2 aderências, sendo que podem ainda levar a uma angulação do intestino que impede a progressão do conteúdo intestinal. Os termos brida e aderência, na prática, são usados de forma sinónima, sendo que normalmente se designa especificamente de brida quando se trata de uma fita de tecido cicatricial, sendo que a brida é muito mais frequentemente causada por cirurgia, constituindo uma cicatriz operatória, apesar de poder, em casos raros, haver uma brida congénita. Existe uma grande variabilidade interpessoal em relação à formação destas estruturas, sendo que há doentes que tiveram processos inflamatórios extensos, foram submetidos a cirurgia e não apresentam bridas, enquanto que outras pessoas têm uma grande tendência para a sua formação. A oclusão devida a bridas e aderências é mais frequente no andar infra-mesocólico, já que o intestino é mais móvel, passando por entre as bridas com mais facilidade. Estas estruturas podem formar-se entre órgãos ou entre os órgãos e a parede. Hérnias (internas, da parede, crurais, de Richter) – são uma causa de oclusão característica DISTAL PROXIMAL dos países subdesenvolvidos, onde as hérnias não são tratadas electivamente antes de estrangularem. Hérnias encarceradas são aquelas que não se consegue reduzir, enquanto que hérnias estranguladas apresentam compromisso vascular, já que o seu meso está suficientemente comprimido para causar isquémia. A imagem chama a atenção para o conceito de “ansa cega”, que é uma ansa fechada nas 2 extremidades, ou que se comporta como se assim estivesse. Nessa situação, há passagem de gases e fezes para a zona de intestino herniado, que não vão conseguir progredir através do outro extremo. Uma situação semelhante ocorre quando há neoplasia obstrutiva do cólon com válvula íleo-cecal continente. 141
As hérnias crurais complicam mais que as outras porque, apesar de terem um anel pequeno, este é muito menos distensível, sendo delimitado, de um lado, por osso e, do outro, pelo ligamento inguinal. Nas hérnias musculares é mais fácil fazer a redução. Neoplasias – enquanto factores extrínsecos, normalmente não são tumores primários mas sim metástases ou carcinomatoses peritoneais, que levam a distorção do intestino, com compressão. Os implantes peritoneais são estruturas de tecido neoplásico, achatadas ou não, de consistência dura/cartilagínea, que não se vêm na TAC se tiverem menos de 1cm. Sendo tecido neoplásico, não respeita a comunicação com as outras células, pelo que pode invadir a gordura, o meso, uma ansa, duas ansas contíguas, etc., podendo levar a oclusão de diversas formas. Em doentes que foram operados a neoplasias, quando se encontram bridas há que desconfiar se são mesmo bridas ou se são implantes peritoneais. Volvo – torção de 180o do intestino sobre o seu próprio eixo. Deste modo, apenas ocorre ao nível da sigmoideia (localização mais comum), cego (em indivíduos em que este não é muito aderente) e cólon transverso (quando é muito redundante, ou seja, muito grande e com um meso muito laxo), sendo impossível acontecer ao nível do cólon direito ou esquerdo, dado que estes segmentos estão presos à parede abdominal, não conseguindo torcer sobre si próprios. É uma situação relativamente rara, sendo mais frequente em doentes de idade muito avançada, com obstipação crónica de longa duração. Quando ocorre em doentes jovens, está normalmente associada a outras comorbilidades, como malformações, doença psiquiátrica, neurológica, paralisia cerebral, etc. (situações em que há muita atonia muscular). Abcesso intra-abdominal – pode ter diversas etiologias, como apendicite, diverticulite, doença de Crohn, deiscência de anastomose, etc., mas o mais comum é o doente que engole uma espinha que, não perfurando a parede intestinal, a vai rasgando. Normalmente ocorre cicatrização progressiva da ferida, mas pode ocorrer nalgum ponto um processo inflamatório mais extenso que leve à formação de um abcesso.
Intrínsecas – causas da parede. Neoplasias – podendo existir no intestino delgado, ocorrem sobretudo ao nível do cólon, sendo tanto mais frequentes quanto mais avançada a idade do doente. Ao nível da sigmoideia, o calibre é menor e o conteúdo intestinal que lá chega é já praticamente sólido, pelo que, mais facilmente um tumor desta região causa uma oclusão, já que não precisa de crescer tanto como noutras regiões. Relativamente ao cego, muitas vezes a neoplasia tem como manifestação uma anemia oculta, já que o tumor tem tempo de crescer e ulcerar, sendo que quando se diagnostica pode ser já uma massa palpável, já que apenas vai dar obstrução numa fase inicial se se localizar junto à válvula íleo-cecal. Quando há obstrução com válvula íleo-cecal continente, o primeiro segmento do cólon a entrar em sofrimento é o cego, já que, segundo a Lei de La Place, um local com maior diâmetro consegue distender mais. Quando há uma pressão muito grande, o cólon pode começar a rasgar – diastase do cego – rasgando inicialmente em sentido longitudinal, como se as “taeniae” fossem tecido a esgaçar, de modo a aumentar o calibre do cego. Se houver ruptura, dá-se uma peritonite fecal. Em doentes com oclusão intestinal, é necessário perceber sempre em que estado se encontra o cego, porque isso vai ter implicações terapêuticas. Quando se opera um cólon esquerdo em oclusão, não se 142
pode fazer a anastomose de imediato, já que o intestino está cheio de fezes e há conspurcação por bactérias, que se encontram em número muito superior ao que existe num cólon normal, pelo que o risco de deiscência é muito grande. Nessas situações, faz-se uma colostomia temporária, operando-se depois electivamente, com a preparação adequada. Hoje em dia, é também possível fazer a colocação de uma prótese endoscópica que vai alargar o cólon e permitir a saída das fezes, fazendo-se depois cirurgia electiva. Em casos em que os parâmetros inflamatórios do doente estão a aumentar ou se há risco iminente de ruptura do cego, a abordagem endoscópica não é viável, porque tem de se actuar rapidamente. Doenças inflamatórias – sobretudo doença de Crohn Enterite rádica – devida a radioterapia, que, em termos abdominais pode ser feita por neoplasia do recto, endométrio, colo do útero, próstata, etc. Os aparelhos de radioterapia, hoje em dia, conseguem incidir muito sobre os tumores, poupando os tecidos adjacentes, mas mesmo assim ainda pode ocorrer esta complicação. A primeira manifestação pode ocorrer algumas semanas depois dos tratamentos e é, normalmente, hemorragia intestinal. Processos inflamatórios consecutivos levam à formação de tecido cicatricial retráctil que, mais tarde, pode condicionar uma obstrução intestinal. Invaginação pela válvula íleo-cecal – é muito rara nos adultos, sendo mais frequente em crianças (por volta dos 8 meses). Em adultos ocorre sobretudo quando há formações polipóides do delgado junto à válvula íleo-cecal que condicionam algum grau de obstrução. Nesta situação, o intestino responde com movimentos peristálticos mais vigorosos que acabam por levar à introdução do pólipo pela válvula.
Intra-luminais – alguma coisa dentro do lúmen que impede a progressão do conteúdo intestinal. Corpos estranhos – introduzidos por via oral, endorrectal, correios de droga Bezoar (raro) – corpo estranho que se forma intracorporalmente. É uma situação rara, sendo que os mais comuns são causados por cabelo (tricobezoar) ou fibras de diospiro (com muita celulose). Fecalomas – a sua frequência aumenta com a idade. Quando o doente já tem uma ampola rectal muito complacente e obstipação crónica de longa data, pode haver uma grande acumulação de fezes, que se pode manifestar de 2 maneiras: por uma diarreia quase com incontinência, constituída por fezes liquidas que conseguem passar à volta do fecaloma por oclusão/pré-oclusão Esta situação implica a realização de enemas de repetição para tentar amolecer o fecaloma, sendo que os laxantes não ajudam muito. Cálculos biliares – é uma situação pouco frequente, já que as pessoas vão ao médico em estadios mais precoces da doença vesicular. Cálculos biliares de grandes dimensões fazem um processo inflamatório da vesícula, com a formação de aderências aos órgãos vizinhos, nomeadamente ao duodeno, podendo formar-se uma fístula (Síndrome de Mirizzi). No Rx em pé, o doente tem: níveis no intestino delgado – normalmente o cálculo não ultrapassa esta região e não precisa de chegar a um local em que o calibre do intestino seja igual ao seu para impactar, já que é uma estrutura rugosa que vai causando inflamação no seu trajecto, aderindo mais facilmente à parede. 143
aerobilia (ar na via biliar) – outra causa de aerobilia é a CPRE. Há situações que contribuem como causas extrínsecas e intrínsecas para a oclusão intestinal. Exemplo: doença de Crohn – processos alternados de inflamação e desinflamação do intestino podem levar à formação de uma estenose cicatricial, que contribui como causa intrínseca, mas em períodos de exacerbação/crise, pode ocorrer a formação de um abcesso por alastramento do processo inflamatório para fora da parede intestinal, constituindo uma causa extrínseca para a oclusão intestinal.
TIPOS DE OCLUSÃO Oclusão intestinal simples Oclusão com estrangulamento – em que há compromisso da vascularização Oclusão em ansa cega – com estenose a montante e a jusante
FISIOPATOLOGIA Aumento do peristaltismo – para vencer o obstáculo a jusante Perda de fluidos e electrólitos para o lúmen e para a parede – já que há interferência na absorção intestinal. Desidratação Distensão intestinal, com aumento da pressão intra-abdominal – diminuição do retorno venoso Aumento da pressão intra-luminal - Diminuição do fluxo de sangue para a mucosa - Alteração da flora bacteriana – aumentam as bactérias mais virulentas
CLÍNICA Existem 4 sinais cardinais de oclusão intestinal, cuja ordem de aparecimento depende da zona de oclusão: Dor tipo cólica Mais espaçada quanto mais baixa a oclusão. Sentida tanto mais baixo quanto o local da oclusão. Vómitos Tanto mais precoce quanto mais alta a oclusão.Quanto mais distal, mais tardio, mais espesso e castanho, progressivamente mais fétido com o tempo de evolução Fecalóide – conteúdo do intestino delgado inferior estagnado, mais espesso e mais fétido (ser fecalóide não implica que tenha fezes e venha do cólon) Paragem de emissão de gases e fezes Se há um obstáculo, há aumento do peristaltismo em todo o intestino, pelo que o doente pode referir história de cólica e diarreia (conteúdo intestinal a jusante da oclusão), seguida de paragem de emissão de gases e fezes. Distensão abdominal Tanto maior quanto mais distal. Na oclusão do cólon com válvula íleo-cecal competente há grande distensão do cólon com risco de diastase do cego.
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Exame objectivo Inspecção Estado geral Distensão, movimentos de reptação (nas pessoas magras) Cicatrizes de cirurgias anteriores, hérnias Auscultação Ruídos hidro-aéreos aumentados de frequência e timbre À medida que a quantidade de líquido aumenta dentro do lúmen adquirem timbre metálico Podem diminuir com a evolução da oclusão Percussão Timpanizado Palpação Podem sentir-se movimentos peristálticos (reptação) Desconforto difuso Área localizada de dor e reacção peritoneal podem indicar processo inflamatório, estrangulamento ou a causa da oclusão Pontos herniários Toque rectal Massas, sangue, fecalomas
Exames complementares de diagnóstico Radiografia simples do abdómen (preferencialmente em pé) Níveis hidro-aéreos (caracteristicamente “em pilha de moedas”) Distensão Edema das ansas – é uma manifestação tardia de oclusão, que também pode ocorrer em doentes com insuficiência cardíaca (com edema generalizado). TAC Quando o diagnóstico não é evidente com radiografia. Tentativa de determinação da causa ou localização da oclusão, o que ajuda a programar a cirurgia (por exemplo, se for uma obstrução do cólon faz-se colostomia mas se for do delgado não). Se nos aparecer um doente com uma oclusão do delgado devido a uma brida, após estabilização hidroelectrolítica (potássio é muito importante para a peristalse), a primeira opção terapêutica é tentar alterar a mecânica local, de modo a tentar drenar o conteúdo que se encontra na ansa encarcerada. Para isso, começamos por pôr uma sonda naso-gástrica para aspirarmos o conteúdo a montante da oclusão, numa tentativa de drenar o conteúdo da ansa, para que fique de novo achatada e desencarcere por si só. Se os parâmetros inflamatórios aumentam e o doente fica instável, há indicação cirúrgica. Em caso de volvo, a primeira opção terapêutica é a colonoscopia com visão directa, que visa tentar inverter a situação. 145
OBESIDADE OBESIDADE A obesidade advém de um estilo de vida pouco saudável que passa por uma alimentação desregrada e pouco exercício físico. Os obesos têm muita dificuldade em mudar estes hábitos. Em termos de género, o rácio é de 9 mulheres obesas para 1 homem obeso.
CIRUGIA DA OBESIDADE A cirurgia da obesidade tornou-se exequível nos anos 90 do século passado com o advento da laparoscopia. Embora haja cirurgiões que fazem cirurgia bariátrica por laparotomia, por sistema, utiliza-se a laparoscopia. Actualmente fala-se em cirurgia metabólica e não em cirurgia da obesidade porque, hoje em dia, trata-se diabéticos tipo II não obesos executando um bypass.
Critérios para cirurgia Doentes com IMC superior a 35 kg/m2 com comorbilidades. Doentes com IMC superior a 40 kg/m2 preferencialmente com comorbilidades associadas. 2
IMC (ou BMI)
IMC (kg/m ) 18 - 24,9 25 - 29,9 30 - 34,9 35 - 39,9 >40
CLASSIFICAÇÃO Normal Excesso de peso Obesidade moderada Obesidade grave Obesidade mórbida
As comorbilidades associadas são: Diabetes mellitus tipo II – uma grande parte destes obesos são diabéticos. A obesidade está intimamente ligada com a resistência à insulina. Alguns obesos que não são diabéticos tomam um antidiabético oral como “prevenção”. Hipertensão Doenças cardíacas Problemas articulares – nomeadamente nos joelhos devido à sobrecarga de peso. Apneia do sono – como estes doentes não descansam adequadamente durante a noite, adormecem com frequência durante o dia. Refluxo gastro-esofágico – devido à pressão intra-abdominal que está aumentada. Litíase vesicular – nos doentes que vão ser sujeitos a cirurgia bariátrica, é possível efectuar-se também uma colecistectomia no mesmo tempo operatório, existindo ou não colelitíase. Isto porque é frequente desenvolverem litíase vesicular pós-operatoriamente e a anastomose realizada entre o coto gástrico e o intestino impede a realização de uma CPRE, deixando como única opção terapêutica a colecistectomia (a realização da CVL num 2º tempo operatório implica nova intervenção cirúrgica, com riscos, devendo ser evitada). Depressão – o doente obeso, não gostando da sua imagem, pode sentir-se deprimido, o que por sua vez, pode levar a que coma mais, sendo um ciclo vicioso. Infertilidade – por anovulação. Lesões cutâneas – por fricção do excesso de tecido e sudorese aumentada. Incontinência urinária – devido a pressão intra-abdominal aumentada. Estase venosa dos membros inferiores
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Estando várias e diferentes patologias envolvidas, é necessária uma equipa multidisciplinar para tratar estes doentes. Esta equipa é composta por endocrinologistas, psiquiatras/psicólogos, dietistas, internistas e cirurgiões. O doente só é candidato a cirurgia bariátrica após a avaliação do endocrinologista, que vai excluir uma possível doença metabólica (por exemplo, hipotiroidismo) como origem da obesidade. É fundamental explicar ao doente em que consiste a cirurgia e pedir que este assine o consentimento informado, pois existe sempre o risco de morte. É necessário realizar exames pré-operatórios como radiografia tórax, ECG, análises com função tiroideia e endoscopia digestiva alta. A endoscopia digestiva alta deve ser feita porque, dependendo da técnica cirúrgica utilizada, o médico pode não voltar a ter acesso aquele estômago e em Portugal existe uma incidência significativa de neoplasia gástrica. Além disso, sabe-se que os obesos têm um risco aumentado de neoplasia. Volume eater É o doente que come muito em quantidade, quer sejam doces, quer sejam salgados. A cirurgia mais indicada para estes doentes é a restritiva. Sweet eater É o doente que come muito mas em especial doces. É comum estes doentes levantarem-se a meio da noite para comer doces. Estes doentes devem ser submetidos a cirurgia mista (restritiva e mal-absortiva).
Tipos de cirurgia O tipo de cirurgia vai depender do IMC, das comorbilidades associadas e do padrão alimentar do doente. Cirurgia restritiva Há uns anos atrás colocava-se uma banda gástrica não ajustável a todos os doentes, que levava a que estes não comessem ou comessem muito pouco. A banda era colocada imediatamente a seguir ao cárdia e fazia-se um corte no estômago, como se pode ver na imagem à direita. Isto levava a uma sigmoidização do esófago. Actualmente, em doentes seleccionados coloca-se uma banda gástrica ajustável (como as que se observa nas imagens à esquerda) com uma camara de 25 cc. Assim o estômago tem capacidade para meio iogurte e, caso o doente coma mais do que isso, haverá regurgitação. A camara da banda é cheia com água destilada e não com soro, porque o soro (NaCl) precipita. Quanto maior o volume de água destilada contida na camara, mais apertada está a banda e menor o calibre do “tubo” de estômago por onde o bolo alimentar passa. Apesar de em pouca quantidade, se a pessoa comer mal em termos de qualidade não perde peso. Isto é, esta cirurgia não é a mais indicada para os doentes, que para além de comerem muito, têm uma especial preferência por doces. No sleeve gástrico ou gastréctomia vertical resseca-se parte do estômago de modo a formar uma manga. Apesar de o estômago passar a ter uma capacidade de 80 a 100 cc, há doentes que aumentam de peso. Enquanto que a banda gástrica tem uma origem europeia, o sleeve teve origem nos EUA, sendo inicialmente uma cirurgia prévia ao switch duodenal em doentes super obesos (IMC > 50 kg/m2). Aparentemente esta cirurgia é exclusivamente restritiva, no entanto, sabe-se que quando se resseca o fundo gástrico está-se tambem a remover as celulas produtoras de grelina (hormona reguladora da fome), aumentando a sensação de saciedade. 147
Cirurgia mal-absortiva Bypass intestinal Cirurgia Mista O bypass gástrico em Y de Roux ou switch duodenal associa um componente restritivo importante a um componente mal-absortivo mais ligeiro do que aquele que existe nas técnicas puramente mal-absortivas. É uma cirurgia restritiva porque se transforma o estômago numa cavidade com capacidade para 25 cc e trata-se de uma cirurgia mal-absortiva porque se anastomosa uma ansa duodenal à nova bolsa gástrica (o tamanho desta ansa vai variar de acordo com o IMC do doente). A bolsa gástrica é ligada ao intestino delgado na região do jejuno, ultrapassando assim apenas o duodeno, pelo que a acção das secreções pancreática e biliar é impedida a esse nivel, encontrando-se os sucos pancreáticos com a comida apenas ao nivel da válvula ileocecal, criando-se assim uma síndrome de Dumping secundária que desencoraja o consumo de açúcares e gorduras. Após a cirurgia é comum estes doentes terem défices proteicos, vitaminicos (vitaminas B6 e B12) e minerais (zinco). Pode ainda acontecer síndrome do intestino curto que cursa com esteatorreia. Esta técnica não implica ressecçao gástrica pelo que é reversivel. Pode-se ainda, em casos mais drásticos, associar esta técnica a um sleeve gástrico. A colocação de pacing gástrico é uma técnica utilizada há uns anos atrás. Trata-se de um pacemaker que se implanta na parede gástrica, que tem como objectivo estimular o sistema nervoso entérico de forma a promover a saciedade. Esta técnica foi descontinuada devido ao seu insucesso.
Complicações da cirurgia A nível anestésico estes doentes são complicados, não só pela dificuldade que há em entubá-los (pescoço curto, laringe comprimida pelo tecido adiposo e mamas grandes), como pelo facto de terem, frequentemente, patologias cardíacas e respiratórias associadas. Ainda do ponto de vista anestésico, houve uma grande evolução, pois no início da cirurgia bariátrica os doentes era anestesiados com fármacos que eram absorvidos pelo tecido adiposo, sendo necessária uma dose muito elevada devido à grande quantidade deste tecido. Apesar de ser uma cirurgia relativamente simples, a maioria destes doentes são diabéticos o que propicia à infecção e a grande quantidade de tecido adiposo dificulta a cicatrização das incisões, podendo haver deiscência. Estes doentes têm alto risco de sofrer fenómenos tromboembólicos, pelo que é necessário fazer profilaxia do tromboembolismo. A vantagem destes doentes, nomeadamente os obesos que não são diabéticos e não têm patologia cardíaca, é que, por norma, têm bons níveis de proteínas, nomeadamente, albumina.
CIRUGIA PLÁSTICA PÓS-OBESIDADE Por cada cirurgia bariátrica efectuada fazem-se 7 cirurgias plásticas. Só há indicação para cirurgia plástica após 18 meses da cirurgia bariátrica, pois é este o período de tempo em que é suposto o doente perder peso.
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PERITONITE Qualquer processo inflamatório agudo ou crónico da serosa peritoneal, independentemente da sua etiologia e extensão.
CLASSIFICAÇÃO Tempo de instalação Aguda – de instalação súbita, é muito mais frequente. Crónica – de instalação a longo prazo, dá sintomas que se arrastam durante muito tempo, sendo muito menos frequente. A peritonite crónica pode ser: Idiopática (peritonitis chronica fibrosa encapsulata) – peritonite de causa desconhecida, em que o peritoneu passa de uma membrana simples, maleável, fina e que se adapta às estruturas vizinhas a uma membrana fibrosa, tipo uma carapaça ou cabedal, que fica rígida, inextensível. Isto pode levar a complicações nos órgãos abdominais, nomeadamente dor, oclusão e incapacidade de os órgãos se distenderem dentro da cavidade abdominal, dando um grande incómodo, por exemplo, durante a digestão. A peritonite idiopática é menos rara que a pericardite ou a pleurisia idiopáticas crónicas. Na pericardite idiopática crónica, o coração é impossibilitado de distender aquando da entrada de sangue, podendo ser uma das causas de insuficiência cardíaca congestiva (há engurgitamento jugular e não há correcto enchimento das aurículas, que não dilatam). Iatrogénica – causada por um agente estranho que pode ser usado como meio médico ou medicamentoso, como: Pó de talco – mais frequente antigamente, quando os cirurgiões polvilhavam as mãos com pó de talco antes de calçarem as luvas. Verificaram-se então situações de peritonite de causa desconhecida, sendo que quando se abria o doente para ver a causa e se faziam biopsias do peritoneu, se encontravam cristais de talco no peritoneu. Practolol – β-bloqueante tomado por via oral que levava também a casos esporádicos de peritonite, encontrando-se cristais contendo practolol nas biópsias do peritoneu destes doentes. Por Tuberculose – dentre estas causas é a mais frequente, sendo provável que venha a aumentar com a diminuição de alguns tipos de cuidados de saúde e com as correntes migratórias. É provocada pelo bacilo de Koch. Vias de contaminação - Tuberculose intestinal – alimentar (leite) – as vacas podem ter uma forma de tuberculose, a tuberculose bovis, causada por um bacilo semelhante ao que provoca a doença no humano, que se pode alojar nas tetas das vacas e passar através do leite. A pasteurização do leite previne esta situação, pelo que é já muito rara nos países ocidentais, a não ser ligada a correntes migratórias (África e Leste). - Tuberculose pulmonar – metastática – o bacilo de Koch instalado nos pulmões pode entrar em circulação, instalando-se, por exemplo, nas meninges, onde causa uma meningite associada a deficits neurológicos em crianças, no pericárdio, no rim, no peritoneu, etc. 149
- Tuberculose genital – ascendente (quase exclusiva da mulher) – é uma doença sexualmente transmissível. No homem, o bacilo está alojado nos testículos e no epidídimo, sendo que quando contamina a mulher pode levar a uma endocervicite, endometrite tuberculosa e, através das trompas, pode originar uma peritonite tuberculosa pélvica. A tuberculose tende a provocar fibrose e estenose, pelo que, quando as trompas de Falópio são afectadas, ocorre infertilidade por obstrução das mesmas, que, normalmente, é irreversível (pode tentar-se nesses casos fertilização in vitro). Patologia - Forma granulomatosa - Cirrose hepática concomitante - Doentes com mau estado geral, muito debilitados Quadro clínico – independentemente da etiologia da tuberculose, as manifestações são as mesmas, tratando-se de um quadro clínico inespecífico, típico de um processo inflamatório crónico. - Astenia - Anorexia não selectiva - Náuseas e vómitos, devido a períodos de oclusão ou sub-oclusão associados a distensão de ansas. - Perda ponderal de 10 a 20Kg em 2 a 3 meses, que, sendo a tuberculose uma etiologia rara e muitas vezes esquecida, normalmente leva a pensar em caquexia neoplásica associada a uma forma avançada de neoplasia, pelo que a descoberta de tuberculose é uma agradável surpresa. - Abdómen distendido e doloroso à palpação. Como o bacilo de Koch tende a organizar-se e a formar tuberculomas (fibromas que no seu interior têm bacilos), é possível detectar tumores palpáveis. Quadro laboratorial – inespecífico - Hemograma – anemia crónica - Leucograma – normal, sem leucocitose ou neutrofilia - VS e PCR aumentadas - Electroforese de proteínas com aumento da γ-globulina - Exames bacteriológicos directo e cultural do líquido peritoneal negativos - Inoculação no cobaio positiva – o cobaio era um animal de laboratório com grande sensibilidade ao bacilo de Koch, no qual se inoculava o bacilo. O animal morria ao fim de cerca de 48h, sendo visíveis focos de tuberculose pulmonar na autópsia – teste positivo. Actualmente já não se faz. - Biópsia peritoneal positiva, obtida por laparoscopia ou laparotomia, onde se encontram granulomas tuberculosos. Terapêutica – bacteriostáticos/tuberculostáticos, que são os mesmos que se usa para tratar a tuberculose activa. Prognóstico - Fibrose com quadros sucessivos de oclusão intestinal, que pode ser fatal ou levar à necessidade de ressecar porções de intestino delgado, condicionando depois um Síndrome da Ansa Curta (intestino com menos de 1m de comprimento que condiciona a má absorção de vitaminas e minerais). Não sendo em si uma situação maligna, acaba por se comportar como um quadro complicado com prognóstico reservado. 150
Extensão Generalizada – o peritoneu tem uma área de cerca de 1,8m2, sendo equivalente à área de superfície corporal. A probabilidade de um doente queimado morrer é igual à percentagem de superfície corporal queimada. A morte por queimadura é muito impressionante, porque o doente está consciente até muito tarde, desidrata muito (reposição de volémia de 10 a 12L/dia), a temperatura das unidades de queimados é sempre muito alta, já que não há termorregulação pela pele, sendo necessário aquecer os doentes, e há ainda o problema das infecções. No peritoneu, a situação é semelhante, sendo que uma peritonite generalizada pode levar a desidratação, infecções associadas e bacteriémia, tratando-se de uma situação grave e comummente mortal. Localizada – geralmente ficam localizadas em espaços anatómicos bem definidos que, ainda assim, comunicam entre si, tendendo a confluir no fundo de saco de Douglas. Abcessos – colecções bem delimitadas de pus Sub-frénicos direito/esquerdo Sub-hepáticos direito/esquerdo Cavidade posterior dos epíploons – como tem o fígado e o estômago adiante, o quadro clínico pode aparecer atenuado, para além de que é uma zona de difícil acesso ecográfico, fazendo-se o diagnóstico na maior parte dos casos por TAC abdominal. Supra-mesocólicos e Infra-mesocólicos - ao pâncreas e duodeno sobrepõem-se o mesocólon transverso e o cólon transverso, delimitando-se os espaços supra-mesocólico e infra-mesocólico. Muitas das infecções são contidas por esta barreira. Para-cólicos direito/esquerdo – sendo estas 2 cavidades delimitadas pela raiz do mesentério e o intestino delgado Fossas ilíacas direita/esquerda Fundo de saco de Douglas – delimitado atrás pelo recto e adiante pela bexiga (no homem) ou pelo útero e vagina (na mulher). Deste modo, através do toque rectal ou vaginal, que é doloroso, é possível sentir um abaulamento no fundo de saco de Douglas, correspondente a um abcesso que pode também ser drenado por esta via. O aparelho ginecológico está aberto ao exterior através da vagina, colo do útero, corpo uterino e trompas de Falópio, que se abrem na cavidade peritoneal, pelo que uma infecção pode ascender da vagina até esta cavidade, o que acontece com relativa frequência. Por vezes os abcessos na periferia do saco de Douglas drenam espontaneamente, de uma forma mais ou menos crónica, podendo dar origem a fístulas perianais, pelo que tem de ser feito diagnóstico diferencial com Doença de Crohn, em que 95% dos doentes, ao fim de 5 anos, tem uma fístula perianal. Fístulas perianais crónicas, complicadas, múltiplas, recidivantes, de difícil resolução há que perguntar ao doente se não tem os outros sintomas associados a Doença de Crohn (por exemplo, diarreia) O grande epíploon é uma dependência do peritoneu que cobre praticamente todo o abdómen (tipo avental), chega a todos os locais e tem como função delimitar espaços, através da formação de plastrons (em associação com o cólon e as ansas do delgado, e ainda a fibrina que vai ocupar os espaços entre estes), permitindo conter os focos de infecção. A peritonite generalizada na criança é particularmente grave, não só em crianças muito pequenas, com imaturidade imunológica, mas também em crianças mais velhas, a partir dos 10 anos, que têm um sistema imunitário considerado maduro. Isto pode dever-se ao tamanho do grande epíploon, que não está ainda totalmente desenvolvido, tendo uma menor capacidade de conter a infecção. 151
Etiologia Séptica – desencadeada por microrganismos Não séptica ou Química – em que o peritoneu entra em contacto com substâncias que são agressivas: Cloridro-péptico – provocadas por perfuração de uma úlcera péptica, que faz com que o peritoneu entre em contacto com ácido clorídrico e pepsina. Pancreático – enzimas pancreáticas que entram em contacto com o peritoneu durante um processo de digestão pancreática característico de pancreatite aguda. Biliar - bílis Urinoso Sangue Independentemente da causa, a peritonite manifesta-se da mesma forma.
Patogenia Primária – não depende de outra patologia abdominal, sendo que o único órgão envolvido é o peritoneu. Por exemplo, quando uma bactéria é transportada pela corrente sanguínea e causa infecção no peritoneu. É mais frequente na criança, sobretudo recém-nascidos e na faixa dos 4-5 anos, bem como no sexo feminino. Quadro clínico - Distensão e dor abdominal - Febre Antecedentes pessoais - Criança – infecção recente (ORL ou do aparelho respiratório) – crianças que tiveram uma amigdalite, faringite ou otite e que aparecem uns dias depois com um quadro abdominal, devido a uma bactéria que entrou para a corrente sanguínea e se foi alojar no peritoneu. - Adulto – sobretudo doentes com cirrose hepática descompensada, que têm hipertensão portal e hipoalbuminémia, com baixa pressão oncótica, que desenvolvem ascite, um excelente meio de cultura para bactérias. Quadro laboratorial - Leucocitose com neutrofilia (mais de 8.000 a 10.000 leucócitos e mais de 80% de neutrófilos, respectivamente). Nas crianças até 10 anos, como há predomínio de linfócitos face aos neutrófilos, uma neutrofilia de 80% corresponderia, no adulto, a mais de 90%. Diagnóstico diferencial – é difícil, fazendo-se muitas vezes cirurgia para exclusão de peritonite por apendicite aguda. Na dúvida é melhor operar.
Bacteriologia – infecção monobacteriana (ao contrário das peritonites por perfuração de víscera oca) habitualmente por Gram positivos que são comuns nas crianças (pneumococcus, streptococcus βhemolíticos) ou, mais recentemente, Gram negativos. 152
Terapêutica - Cirurgia – exploração e aspiração - Antibioterapia Secundária – resultante de patologia noutro órgão abdominal Etiologia - Gastrite erosiva – caracteriza-se por ulcerações superficiais, múltiplas e continuadas, raramente perfura. - Úlcera gástrica e duodenal (penetrada ou não ao pâncreas) – permite a passagem de contaminantes como ácido ou alimentos para o peritoneu. - Neoplasia gástrica – pode perfurar, porque há uma desproporção entre o crescimento celular tumoral e a angiogénese, pelo que pode haver isquémia e necrose da massa tumoral. Um dos métodos em estudo para o tratamento do cancro é, por isso, a interrupção da angiogénese. - Doença de Crohn – podem fistulizar e fazer abcessos do peritoneu - Colite ulcerosa – pode fistulizar quando há uma dilatação extrema da parede, o megacólon tóxico, que se deve à presença de toxinas ou bactérias que levam a um cólon séptico muito distendido - Trombose mesentérica – necrose e perfuração das ansas do delgado - Colecistite aguda – pode perfurar mais facilmente no diabético, porque tem uma microangiopatia da parede, podendo haver ulcerações e perfurações. Um tumor da cabeça do pâncreas pode levar a uma grande dilatação das vias biliares e da vesícula, com a característica vesícula de Courvoisier-Terrier, que é a vesícula mais distendida que se pode palpar e não é dolorosa nem provoca reacção peritoneal. Nesta situação, apesar da dilatação das vias biliares, não há tendência para a infecção, enquanto que se houver uma obstrução por um pequeno cálculo há tendência à formação de colecistite, já que os cálculos podem ser reservatórios de bactérias. - Pancreatite – enzimas pancreáticas, sobretudo amílase. “Tudo aquilo que deve sair e não sai” tende a infectar. Exemplos: retenção de urina, retenção de leite durante a amamentação. Quadro clínico - Inicial – corresponde às entidades nosológicas associadas - Tardio (> 48h) – específico da peritonite e independente da etiologia que a determinou - Pode haver peritonite sem perfuração do órgão oco que a originou, por transdução bacteriana. Um órgão inflamado fica com uma membrana mais permeável, permitindo a passagem de bactérias. Isto é particularmente relevante ao nível do intestino, em que 80% do conteúdo é constituído por bactérias. Terciária – manutenção de estímulos pró-inflamatórios. São os doentes que já não têm febre, não têm bactérias isoladas, mas mantêm a peritonite. Peritonite controlada por cirurgia/antibioterapia, com erradicação bacteriana mas permanece uma situação pró-inflamatória. Há um quadro sugestivo de sépsis oculta sem a presença de um foco bacteriano.
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DADOS ESTATÍSTICOS 50 casos consecutivos operados num hospital em Portugal, 5 a 83 anos, média de idades de 36,97, 17F/33M, mortalidade global de 6%. Peritonite crónica – 0% Peritonite primária – 2% Peritonite química Perfuração de úlcera péptica – 6% Pancreatite necro-hemorrágica – 2% Peritonite Séptica Apendicite gangrenada, perfurada – 56% Perfuração do intestino delgado, hérnia estrangulada – 6% Perfuração do cólon – diverticulite, perfuração de neoplasia – 6% Perfuração da vesícula por colecistite aguda – 4% Salpingite, pelviperitonite – 6% Abcesso intra-hepático – 4% Pionefrose – 2% Muito importante – em situação de exame começar sempre por apontar as situações mais frequentes! Exemplo: Causas de cefaleias numa jovem de 18 anos – começar por falar, por exemplo, num síndrome gripal, em vez de partir logo para um aneurisma da artéria cerebral média.
QUADRO CLÍNICO Anamnese História Actual – sintomas do órgão onde se iniciou o processo Dor – de início vaga e mal definida (peritoneu visceral) e posteriormente mais intensa, bem definida (peritoneu parietal). Acentua-se com os movimentos. Náuseas e vómitos – reflexos, associados a íleus paralítico, com paragem da emissão de gases e fezes. Quando há uma infecção ou uma agressão à cavidade abdominal, o organismo reage de 2 formas: forma plastrons e o intestino pára, para evitar que os movimentos de reptação transportem de um lado para o outro agentes patogénicos. À auscultação há completa ausência de sons e, à palpação, há presença de um empastamento (plastron), uma zona menos depressível e com sensibilidade dolorosa aumentada, sendo difícil delimitar uma massa em concreto, mas tendo-se a sensação de que a mão não consegue ir mais fundo. Antecedentes pessoais Por exemplo, história de úlcera péptica, gravidez ectópica, litíase vesicular
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Exame objectivo Inspecção Estado geral, pulso, PA, temperatura, pele e mucosas, habitualmente secas e desidratadas (prega cutânea), sobretudo nas crianças Fácies peritonítico, com olhos brilhantes e encovados – desidratação grave, por passagem de líquidos para a cavidade peritoneal (the solution to pollution is dilution), provenientes dos espaços vascular e intra e extra-vascular. É frequente encontrar 5 a 6L de exsudado peritoneal nestas situações e são doentes que estão desesperadamente com sede. Tipo de respiração costal superior – o doente evita a respiração tóraco-abdominal para não movimentar o diafragma e aumentar a dor Abdómen pouco móvel com a respiração Posição de defesa - joelhos flectidos Palpação Contractura voluntária – tenta-se distrair o doente para conseguir palpar Contractura involuntária/reflexa – defesa – nesta situação não se consegue mesmo palpar, sendo a situação extrema o “ventre em tábua”, associado à perfuração de úlcera péptica. Intensificação da dor à descompressão – Sinal de Blumberg – está afectado o peritoneu parietal Percussão – pouco tolerada pelo doente Auscultação – abdominal, para pesquisa de ruídos hidro-aéreos, normalmente abolidos. Torácica, para despiste de pneumonia da base, que pode estimular o nervo frénico e simular uma apendicite aguda. Toque rectal/vaginal – palpação do fundo de saco de Douglas Complementar o exame geral com observação ORL e respiratória – sobretudo nas crianças Repetir observações pelo mesmo médico e analgesia com controlo do cirurgião – muitas vezes as pessoas tendem a tomar antibióticos ou analgésicos que têm em casa quando começam os sintomas, o que acaba por mascarar o quadro clínico, podendo levar ao agravamento da situação, que não é detectada precocemente. Punção/lavagem abdominal – em locais onde não há ecografia, TAC ou laboratório, uma das formas de diagnosticar peritonite é através desta técnica, que consiste em fazer uma punção com uma agulha intramuscular, que é ligada a um sistema de soro, e administrar 500 a 1000cc de soro morno para a cavidade peritoneal, movimentando o doente no leito de forma a conseguir uma boa amostra da cavidade peritoneal. Em seguida, extrai-se o soro para um saco e vemos se tem um aspecto límpido ou se vem turvo, o que indicará algum grau de contaminação.
Quadro Laboratorial Hemograma e hematócrito – o hematócrito está aumentado devido à desidratação e consequente diminuição de volémia. Leucograma – leucocitose com neutrofilia. PCR aumentada Amilasémia/Amilasúria – despiste de pancreatite aguda Creatininémia – sobretudo doentes idosos, pelo risco de IRA pré-renal 155
Glicémia Ionograma
Quadro Imagiológico Radiografia abdominal – pneumoperitoneu (à esquerda ou sobre o fígado), níveis hidro-aéreos, ansa sentinela, corpo estranho Radiografia torácica – excluir pneumopatia da base direita Eco Abdominal TAC Abdominal
Diagnóstico diferencial Pneumopatia das bases Enfarto miocárdio/pericardite Hemoperitoneu Pielonefrite Crises hemolíticas, porfirias Intoxicação pelo chumbo (saturnismo) – muito rara hoje em dia, era a “doença dos tipógrafos”, dando dor abdominal muito intensa Adenite mesentérica – sobretudo nas crianças
TERAPÊUTICA Princípios terapêuticos pré-operatórios Equilíbrio hidroelectrolítico: hidratar o doente, correcção iónica de acordo com o ionograma, Pressão Venosa Central (não deve ser superior a 10cmH2O, para evitar sobrecarga hídrica, com edema agudo do pulmão), algaliação (para avaliação da função renal) Entubação naso-gástrica – para evitar que o doente com perfuração de úlcera gástrica continue a perder conteúdo gástrico para o peritoneu. Antibioterapia / analgesia – por indicação expressa do cirurgião Princípios da terapêutica cirúrgica Interrupção da contaminação peritoneal, sutura de órgãos, excisão de órgãos ou de tecidos desvitalizados. Remoção de exsudados, de fibrina, de coágulos. Lavagem da cavidade peritoneal com 5 a 6L de soro morno, até o soro ficar limpo. Drenagem da cavidade peritoneal – sobretudo se houver grandes quantidades de pus, é importante deixar drenos. Peritonites não necessariamente cirúrgicas mas necessitando de vigilância cirúrgica obrigatória Peritonites químicas: pancreatite, úlcera perfurada coberta pelos órgãos vizinhos Peritonites primárias Abcessos em regressão Pelvi-peritonite
COMPLICAÇÕES
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Bridas – podem acompanhar o doente durante toda a vida e causar oclusão intestinal. Na cavidade pélvica, são uma causa de esterilidade feminina.
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