A Ceia Brasileira de Ismailovitch - Homenagem ao Aleijadinho

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Homenagem ao Aleijadinho

A Ceia Brasileira de Ismailovitch



A Ceia Brasileira de Ismailovitch Homenagem ao Aleijadinho



A Ceia Brasileira de Ismailovitch Homenagem ao Aleijadinho 23 de julho de 2013 a 31 de julho de 2014 Museu Villa-Lobos


© Dimitri Ismailovitch 1890 – 1976 Curadoria: Eduardo Mendes Cavalcanti Assistente de curadoria: Leonardo Mendes Cavalcanti Expografia: Gerardo Vilaseca Tradução: Julio Bandeira Fotografias: Mariza Lima, exceto página 2: Sylvana Lobo, páginas 6 e 7: Marco Velasquez e páginas 13, 15, 16 e 17: Marcel Gautherot e Horácio Coppola. Capa e projeto gráfico: Gouramani Menezes Agradecimento: Alexey Lasarev, Alicia Reyes, Bartolomeu e Rosana Buarque de Holanda, Claudio Valério Teixeira, Coleção Marcelo Del Cima, Cristina Graça, Edson Motta Jr., George Ermakoff, Habib Abduche, Irene de Almeida Lima, José Alberto Gueiros, José Roberto Develard, Julio Bandeira, Laura Abreu, Laurita de Almeida Mendes, Luiz Mario Bonfatti, Luiz Fernando Freire, Nadia Podzemskaia, Paloma Lladó, Paulo Ribeiro, Wagner Tiso, Jornada Mundial da Juventude 2013, funcionários do Museu Villa-Lobos e Instituto Moreira Salles. Informações: w w w.facebook.com / DimitriIsmailovitch


Apresentação “A minha arte quase que é especializada em assuntos brasileiros. Entretanto, saindo disso e falando sobre a minha pintura, sou obrigado a dizer que toda a sua base é a iconografia russa, a arte bizantina e a persa. Estudei muito tempo em Constantinopla, e ali formei a minha mentalidade de pintor.” Dimitri Ismailovitch Autorretrato Óleo sobre tela, 115 x 96 cm, 1939 Coleção particular

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exposição A Ceia Brasileira de Ismailovitch – Homenagem ao Aleijadinho, especialmente concebida para a Jornada Mundial da Juventude 2013, reúne 6 pinturas e 14 estudos preparatórios para esta que é considerada uma obra-prima do artista russo-brasileiro. Considerado um mestre do realismo, Dimitri Ismailovitch (1890–1976) retorna ao cenário artístico brasileiro, através desta mostra, após quatro décadas de ausência. A exposição reúne uma pintura do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo, um autorretrato, fotos e uma trilha sonora de Villa-Lobos, especialmente elaborada pela equipe do Museu Villa-Lobos, além de textos de Antonio Bento e Carlos Drummond de Andrade. Também estarão presentes o Triptico S ôdade do C ordão e o retrato de Villa-Lobos, ambos de autoria de Ismailovitch e pertencentes aos acervos do Museu Nacional de Belas Artes e do Museu Villa-Lobos. Maria Margarida participa da mostra com a pintura Máscaras do acervo do Museu Villa-Lobos.

Eduardo Mendes Cavalcanti

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Vista da sala de exposição

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“Durante uma excursão a Ouro Preto, realizada há mais de trinta anos, o pintor Dimitri Ismailovitch interessouse vivamente pela obra do Aleijadinho, em torno da qual fez vários desenhos e quadros. O maior desses trabalhos é a C eia L arga , em que todos os comensais têm cabeças modeladas sobre figuras iconográficas produzidas pelo grande escultor brasileiro. Assim, o Salvador aparece com a mesma fisionomia do Cristo de madeira do Passo II de Congonhas. Alguns dos apóstolos são os profetas de Congonhas. Pedro é o mesmo do passo VI e outro apóstolo tem a cabeça do São Jorge que se encontra no museu de Ouro Preto. Finalmente, o traidor é o próprio Judas da Igreja de Nossa Senhora das Mercês. Esta Ceia de Ismailovitch intitula-se, muito adequadamente, Homenagem ao Aleijadinho. Trata-se, no gênero, de uma composição

anima todo o pensamento cristão é a

bem estruturada, onde as imagens

da concordância dos dois Testamentos;

do Aleijadinho estão agrupadas numa

toda a história do mundo está dividida

assembléia cheia de trágicos prenúncios,

em duas partes simétricas em relação a

à véspera da Paixão. É ainda uma das

um eixo que é Cristo. Os profetas são as

telas mais representativas, feitas no

prefiguras dos apóstolos e, se estes são

Brasil, para enaltecer a glória e a vigorosa

as colunas da Igreja, aqueles são seus

criação plástica do grande mestre do

pedestais.”

barroco mineiro.” Antonio Bento Rio de Janeiro, janeiro de 1970

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“A grande ideia que, na Idade Média,

Germain Bazin “O Aleijadinho e a Escultura Barrôca no Brasil” Editora Record, 1971


Ceia – Homenagem ao Aleijadinho Óleo sobre tela, 100 x 250 cm, 1945 Moldura Kaminagai Coleção particular

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Biografia

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intor e desenhista, Dimitri Ismailovitch nasceu em 11 de abril de 1890, no então Império Russo, na cidade de Satanov na Ucrânia. Era filho de Basilio e Natalia Ismailovitch. Estudou na escola militar Paulo I, em São Petersburgo e, já como tenente, assistiu às grandes manobras militares na França em 1911. Visitou os museus de Paris e estudou suas obras. Com o início da Primeira Guerra Mundial, serviu inicialmente na frente de batalha como metralhador, sendo posteriormente promovido a oficial membro do Estado-Maior do general Brusilov. Em paralelo, havia também se dedicado à pintura, tendo tido os primeiros estudos com os professores Zinoviev, Evlampiev, Dmitriev-Kavkazski e Selezniov. Ingressou na Academia de Belas-Artes da Ucrânia em 1918, tendo aulas com os professores Juk, Buratchek e Kritchevski, apresentando então, sua primeira exposição individual. Em meados de 1919, fugindo do regime imposto pela Revolução Bolchevique, se exilou em Constantinopla, onde estudou arte bizantina e persa. Influenciado pelo pintor de vanguarda russo Alexis Gritchenko (1883–1977), pintou óleos e aquarelas, fundindo a arte bizantina e a russa antiga com o modernismo europeu. Copiou afrescos e mosaicos da mesquita de Kahrié-Djami, antigo mosteiro bizantino de Chora, com o intuito de prosseguir, por conta própria, o trabalho interrompido pelo Instituto Arqueológico Imperial Russo. Saiu de Constantinopla no início de 1927, passando pela Grécia, onde fez exposição individual no Hotel Splendit, viajando em seguida para os Estados Unidos. No mesmo ano, fez exposições individuais na Gordon Dunthorne Gallery, em Washington DC, e no Brooklin Museum, em Nova York. Na ocasião, contou com o apoio de Edith Wilson, esposa do ex-presidente norte-americano Woodrow Wilson. Chegou ao Rio de Janeiro ainda no ano de 1927, onde expôs individualmente na embaixada norte-americana, com catálogo prefaciado por Ronald de Carvalho. Conheceu Graça Aranha, escritor modernista, que o introduziu no meio artístico e intelectual. No ano de 1928, realizou exposição individual no Victoria & Albert Museum, em Londres, com grande repercussão. Participou do Salão Revolucionário de 1931, na Escola Nacional de Belas Artes, ao lado de nomes como

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Dimitri Ismailovitch, 1927 Coleção particular

Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Ismael Nery, Cícero Dias, Guignard e Portinari. Em 1933, realizou exposição individual na rua Barão de Itapetininga 6, sob o patrocínio de Olívia Guedes Penteado, e a convite de Lasar Segall, participou da decoração do baile da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM), em São Paulo. Participou do Salão Paulista em 1939, 1940, 1949 e 1952; do Salão Nacional de Belas-Artes de 1939, 1952, 1964, 1966 e 1970; Exposição no Pavilhão Brasileiro da Feira Mundial de Nova York e no Riverside Museum, juntamente com Portinari, e outros artistas, em 1939; Exposição individual no Museu de Belas-Artes de Bordeaux, em 1948; Exposição Internacional de Arte Sacra, Roma, 1950; Exposição individual no Museum fur Kunst und Gewerbe de Hamburgo, em 1966; Bienal de São Paulo; Salão Nacional de Arte Moderna (RJ), em 1966, além de várias outras exposições nacionais e internacionais. Ilustrou em 1936, o livro M ucambos do N ordeste, de Gilberto Freyre, e em 1943 e 1947, os dois volu-


mes de I ntrodução à A ntropologia B rasileira , de Arthur Ramos. Naturalizou-se brasileiro em 1937, e consolidou-se como retratista. A convite de Heitor Villa-Lobos, participou com Di Cavalcanti e a pintora Maria Margarida Soutello da ornamentação do bloco carnavalesco S ôdade do C ordão em 1940. Entre seus quadros mais famosos destaca-se a C eia – H omenagem ao A leijadinho, baseado nas melhores obras do mestre do barroco mineiro. Notabilizou-se como retratista, embora tenha se dedicado com igual talento à paisagem, à natureza morta, à arte sacra, aos estudos etnográficos, à documentação da flora e à abstração. Expôs individualmente no Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1952. Suas obras podem ser vistas no Museu Pushkin, no Harvard Art Museum, no Museu Nacional de Belas Artes (RJ), no Museu de Arte Moderna(RJ), no Museu Nacional (RJ), na Pinacoteca do Estado de São Paulo, na Bibliothèque Nationale de France, dentre outros. Entre seus discípulos mais destacados estão a pintora luso-brasileira Maria Margarida Soutello e o pintor russo Vasiliev-Kadik. Dimitri Ismailovitch faleceu no Rio de Janeiro no dia 16 de outubro de 1976.

CAMINHOS DE UMA INSPIRAÇÃO ARTISTICA

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ntre as obras que figuram na E xposição I nter nacional de A rte S acra , organizada em Roma no Ano Santo de 1950, havia uma tela do pintor Dimitri Ismailovitch que merece uma consideração especial por vários motivos. O autor deu à obra o título C eia – H omenagem ao A leijadinho, porque as figuras têm por modelo esculturas do genial artista do Brasil colonial. Pode surgir a interrogação: sendo que as figuras não são fruto da imaginação do pintor, pode a obra ser chamada original, ou é simplesmente uma cópia? Respondemos que é uma obra de arte, uma obra original. Para isso precisamos analisá-la um pouco, assim como para compreender melhor seu valor e seu alcance. Ismailovitch, que está no Brasil há mais de vinte anos, hoje cidadão brasileiro, foi sempre atraído pela obra do Mestre Antonio Francisco, cuja alcunha de Aleijadinho tão vivamente contrasta

com a segurança de seu buril e com as obras admiráveis em expressão e técnica. Por ocasião de uma visita aos lugares sempre belos e interessantes de Minas Gerais, a terra de ouro, pensou numa obra pictórica que se inspirasse nas esculturas do artista brasileiro. Há, em Congonhas, os passos (pequenas capelas) com seus movimentados grupos, representando cenas da paixão de Nosso Senhor, num conjunto que sem dúvida é inspirado no Calvário de Braga (Portugal): a Ceia, o Horto, a Prisão, a Flagelação, etc. Mas nem todas as 68 figuras podem ser do Aleijadinho, parecendo várias figuras secundárias terem sido, pelo menos, preparadas por auxiliares. Assim não copiou (!) o professor Ismailovitch simplesmente um dos grupos, mas escolheu, entre as figuras do consagrado artista, as mais expressivas, as que mais condiziam com o seu plano: fazer uma Ceia do Aleijadinho. De 1942 a 1945 estudou as obras do Mestre e fixou, em estudos a crayon: os profetas da escadaria do adro, os passos da Coroação e da Ceia (todos de Congonhas); as figuras com as quais é todos os anos arrumada uma Ceia (na Quinta-Feira Santa) na igreja de Nossa Senhora das Mercês de cima, em Ouro Preto; e o célebre São J orge, hoje no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Este material, recolhido com tanto amor e cuidadosa seleção, levou-o para casa, e começou a composição. O povo pensa sempre que o maior artista é aquele que em menos tempo conclui sua obra. Porém, facilidade técnica e execução de uma ideia concebida como em um relâmpago, em um momento feliz, são coisas diversas. Beethoven era um assombro de improvisação ao piano; no entanto, fez 300 estudos até se decidir pelo tema, não muito complicado, do coro de sua N ona. Goethe, nem ele vagaroso para criar obras literárias, começou o Fausto no tempo de estudante (pelo ano de 1770) e terminou-o poucos meses antes de sua morte (em 1832), passando-se, portanto, mais de 60 anos. Boecklin pintou cinco vezes, a I lha dos M ortos, aliás, sempre feliz, e, contudo, achava necessário modificar sempre alguma coisa de uma tentativa para outra. Estas afirmações não querem excluir a possibilidade de criações espontâneas, em certas técnicas. Porém, não se deve alegar neste sentido o fato de que Mozart escreveu de um jato a abertura da Flauta M ágica , entregando aos presentes estupefatos uma

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parte da música após a outra: violinos, viola, flauta, clarinete, etc. Pois Mozart mesmo o explica: também ele digeriu lentamente uma ideia musical; mas, gênio e fenômeno que era, sem escrever uma nota. E, somente quando tudo estava pronto, sentou-se e passou a limpo seu trabalho mental. ”Quem não tem memória muito boa não pode pensar em ser compositor” dizia. Vejamos, agora, o que o artista Ismailovitch fez com as figuras de seu companheiro na arte. Foram, portanto, utilizadas oito figuras de pedra sabão (os profetas ), e quatro de madeira (Cristo, Judas, São Pedro e um apóstolo, São Jorge). Que transformação sofreram as figuras? Na C eia todas as figuras são animadas, isto é, vivas, de onde vem uma tranformação bastante sensível entre elas e os modelos em pedra. O próprio São Jorge, se a expressão da escultura é elegantemente viva, correspondendo ao material, toma um aspecto mais individual – humano. Menos diferença há no caso das figuras de São Pedro e de Judas. O Cristo foi apenas sintonizado ao conjunto. Os profetas têm todos eles turbantes e vestimentas orientais no adro de Congonhas no seu lugar. A posição das esculturas é muito variada e teve de ser modificada de acordo com a ideia nova da C eia. Ismailovitch fez estudos com modelos cerca da posição do corpo, e principalmente das mãos a ser adotada. Em seguida observamos na composição traços simbólicos, tanto do lado religioso, como do lado nacional, brasileiro: o ambiente geral é o de um grande recolhimento ao contrário da concepção de Leonardo da Vinci, que expressou o alvoroço causado pela profecia do Senhor: ”um de vós há de trair-me”. As mãos postas, a posição da cabeça, a expressão do olhar acentuam ainda mais este recolhimento. Duas mãos somente se destacam das demais: a de Jesus, que abençoa, e a do traidor, fechada como seu coração. Para sublinhar ainda o espírito ascético, reina extrema sobriedade nos detalhes: as cores apagadas, a mesa apenas esboçada, e o cálice, indispensável para o tema. Forte concentração liga as treze figuras, parcialmente sobrepostas. As auréolas em ouro aumentam esta ligação, iluminando belamente as fisionomias. Tanto mais brusca se sente a separação de Judas, o traidor, porquanto não somente é isolado desta faixa de luz, mas tem (a exemplo de certos afrescos orientais) a cabeça rodeada por um círculo negro, com que combina no

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desenho com as auréolas dos apóstolos fiéis, mas contrasta vivamente na cor. E a nota brasileira? Principalmente está no fato de serem utilizados não modelos vivos, como fizeram tantos pintores célebres, inclusive Leonardo, mas sim, as figuras do inesquecível gênio escultórico do Brasil. Para isso foi conservado, quanto possível, para a representação de figuras vivas, o caráter escultórico, tanto nas partes correspondentes aos modelos, como nas partes criadas, novas: cabelos, mãos e vestes. Para lembrar o material de que são feito os profetas, há uma moldura interna de pedra sabão, e o cálice é do mesmo colorido. As vestes são em cores verde e amarelo, com exceção do Cristo, em que se empregam o vermelho e branco, de acordo com a tradição geral. Finalmente, há uma nota, talvez desconhecida do próprio autor que agiu obedecendo ao subconsciente: existe algo do problema de imigração no quadro! Ismailovitch, que nasceu na Ucrânia, e fez seus estudos com ótimos mestres em vários lugares do Oriente (Constantinopla, Petrogrado, Atenas – de onde trouxe uma notável coleção de cópias artísticas de afrescos e mosaicos, assim como paisagens bizantino-orientais, que aqui o convidamos a mostrar, numa exposição ao público brasileiro). Chegou ao Brasil com a alma impregnada do misticismo oriental, e procurou na terra nova, exuberante de vida e de movimento, algo que se irmanasse às figuras bizantinas dos ícones. O resultado foi esta C eia , com suas figuras meio esculturas, meio santos vivos – com seu misticismo expressivo e o sugestivo fundo de ouro. E o elo de ligação entre sua terra de nascença e a terra de amizade que adotara por segunda pátria, é a mesma crença religiosa, de onde hauriu o tema religioso de sua H omenagem ao A leijadinho. Visto assim, a tela mereceu, por muitos motivos, figurar entre as obras brasileiras na E xposição I n ternacional de A rte S acra (e foi muito apreciada!): como obra de arte – como homenagem ao grande artista brasileiro, o Aleijadinho, – como prova de assimilação dos valores culturais brasileiros por um alienígena, que presta homenagem ao Brasil e contribui para seu progresso com um novo impulso, com ideias e conceitos diferentes, irmanados na mesma fé.

Padre Guilherme Schubert Ilustração Brasileira, julho de 1951.


Santuário de Bom Jesus de Matozinhos, Congonhas, MG Óleo sobre tela, 60 x 80 cm, 1945 Coleção particular

Marcel Gautherot / Acervo Instituto Moreira Salles Igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, c. 1942 Congonhas – MG

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COLÓQUIO DAS ESTÁTUAS

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obre o vale profundo, onde flui o Rio Maranhão, sobre os campos de congonha, sobre a fita da estrada de ferro, na paz das minas exauridas, conversam entre si os profetas. Aí onde os pôs a mão genial de Antonio Francisco, em perfeita comunhão com o adro, o santuário, a paisagem toda – magníficos, terríveis, graves e eternos, – eles falam as coisas do mundo que, na linguagem das Escrituras, se vão transformando em símbolo. As barbas barrocas de uns, panejadas pelo vento que corre as gerais, lembram serpentes vingativas, a se enovelarem; no rosto glabro de outros, a sabedoria ganha nova majestade; e os doze, em assembléia meditativa, robustos, não obstante a fragilidade do saponito em que se moldaram e que os devotos vão cobiçosamente lanhando – os doze consideram o estado dos negócios do homem, a turbação crescente das almas, e reprovam e advertem. – Uma brasa foi colada a meus lábios por um serafin – diz Isaías, ao pé da grade. E Jeremias, cavado de angústias, desola-se: – Pois eu choro a derrota da Judeia, e a ruína de Jerusalém… Este choro, através dos séculos, vem escorrer nos dias de hoje, e não cessa nem mesmo quando Israel volta a reunir seus membros esparsos, pois só outra Jerusalém, a celeste, não se corrompe nem se arruína.

Contudo, há esperança, mesmo para os que forem atirados à jaula dos leões – conta-nos Daniel (e em numerosas partes do mundo eles continuam a ser atirados; apenas os leões se disfarçam); esperança mesmo para os que, por três noites, habitarem o ventre de uma baleia – é a experiência de Jonas, a caminho de Nínive.

São mineiros esses profetas. Mineiros na patética e concentrada postura em que os armou o mineiro Aleijadinho; mineiros na visão ampla da terra, seus males, guerras, crimes, tristezas e anelos; mineiros no julgar friamente e no curar com bálsamo; no pessimismo; na iluminação íntima; sim, mineiros de há cento e cinquenta anos e de agora, taciturnos, crepusculares, messiânicos e melancólicos.

Na sua intemporalidade, são sempre atuais os profetas. Em qualquer tempo, em qualquer situação da história, há que recolher-lhes a lição: – Eu explico a Judeia o mal que trarão à terra a lagarta, o gafanhoto, o bruco e a alforra – é Joel quem fala. Ao passo que Habacuque, braço esquerdo levantado, investe contra os tiranos e os dissolutos: – A ti, Babilônia, te acuso, e a ti, ó tirano caldeu… Numa visão apocalíptica, Ezequiel descreve “os quatro animais no meio das chamas e as horríveis rodas, e o trono etéreo”. Oseias dá uma lição de doçura , mandando que se receba a mulher adúltera, e dela se hajam novos filhos. Mas Nahum, o pessimista, não crê na reconversão de valores caducos: – Toda a Assíria deve ser destruída – digo eu.

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• Assim confabulam, os profetas, numa reunião fantástica, batida pelos ares de Minas. Onde mais poderíamos conceber reunião igual, senão em terra mineira, que é o paradoxo mesmo, tão mística que transforma em alfaias e púlpitos e genuflexórios a febre grosseira do diamante, do ouro e das pedras de cor? No seio de uma gente que está ilhada entre cones de hematita, e contudo mantém com o Universo uma larga e filosófica intercomunicação, preocupando-se, como nenhuma outra, com as dores do mundo, no desejo de interpretá-las e leni-las? Um povo que é pastoril e sábio, amante das virtudes simples,da misericórdia, da liberdade – um povo sempre contra os tiranos, e levando o sentimento do bom e do justo a uma espécie de loucura organizada, explosiva e contagiosa, como o revelam suas revoluções liberais? •

Carlos Drummond de Andrade Os Doze Profetas do Aleijadinho, Hans Mann, Companhia Editora Nacional, 1973.


Marcel Gautherot / Acervo Instituto Moreira Salles Profeta Isaías, c. 1942 Congonhas – MG

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Horácio Coppola / Acervo Instituto Moreira Salles Profeta Jonas, 1945 Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos – Congonhas, MG


Marcel Gauterot / Acervo Instituto Moreira Salles Profeta Jonas, c. 1942 Congonhas – MG

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Acima Cristo do Passo da Flagelação Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

À esquerda Horácio Coppola / Acervo Instituto Moreira Salles Cristo coroado de espinhos, passo da Coroação de Espinhos, 1945 Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos – Congonhas, MG

Página seguinte Ceia – Homenagem ao Aleijadinho (detalhe) Óleo sobre tela, 100 x 250 cm, 1945 Coleção particular

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Profeta Habacuc Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

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São Jorge do Museu de Ouro Preto Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

Marcel Gautherot / Acervo Instituto Moreira Salles Profeta Habacuc, c. 1942 Congonhas – MG

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Judas Iscariotes da Nossa Senhora das Mercês em Ouro Preto Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

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Profeta Amós Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

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Profeta Joel Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

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Profeta Abdias Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

Horácio Coppola / Acervo Instituto Moreira Salles Profeta Joel, 1945 Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos – Congonhas, MG

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São Pedro do Passo da Ceia Sanguínea sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

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Profeta Isaias Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

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Profeta Nahum Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

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Profeta Baruk Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

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Profeta Ezequiel Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

Marcel Gauterot / Acervo Instituto Moreira Salles Profeta Jonas, c. 1942 Congonhas – MG

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Profeta Jonas Crayon sobre papel, 50 x 35 cm, 1945 Coleção particular

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Ceia Homenagem ao Aleijadinho número 2 Crayon sobre papel, 40 x 60 cm, 1975 Coleção particular

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ISMAILOVITCH, VILLA-LOBOS E O “SÔDADE DO CORDÃO”

I

smailovitch conheceu Villa-Lobos através do amigo em comum , o escritor Graça Aranha no final dos anos 1920, no Rio de Janeiro. Em 1927, ele ilustrou o livro Viagem M aravilhosa do escritor modernista, juntamente com Di Cavalcanti e José Maria dos Reis Junior. Di Cavalcanti, em 1920, realizou estudos de figurinos para a série C arnaval das C rianças , que o compositor desejava transformar em balé. Nos anos 1930, Cícero Dias executou décors para os balés Ju rupary e I ara , sendo o primeiro com a coreografia de Serge Lifar. Ismailovitch, Maria Margarida e Di Cavalcanti realizaram a decoração e estudos de figurinos para o bloco carnavalesco S ôdade do C ordão em 1940.

Eduardo Mendes Cavalcanti

cantiga infantil, reconstituímos, no ano de 1940, com imensa dificuldade, a organização completa do antigo cordão carnavalesco, gênero de agremiação recreativo-popular que viveu até fins do século XIX.

Com esse trabalho tivemos a intenção de reviver o melhor aspecto típico coreográfico da mais acentuada autoctonia, quer pelo ineditismo e imprevisto dos seus cânticos, danças, indumentárias e cerimoniais pitorescos,

“Sempre com o intuito de informar

como pelas suas rústicas realizações

e colaborar na educação folclórica

dramáticas, nas quais podia-se

nacional, além de pesquisas, colheitas,

verificar não existir imitação à maneira

estudos, seleções, colecionamento e

estrangeira, quer no todo quer em seus

ambientação musical que realizamos de

mínimos detalhes.

melodias anônimas de todo o interior

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do Brasil, desde a melopéia ameríndia,

Para tal empreendimento tivemos que

o cântigo do negro e do mestiço à

recorrer a elementos que já se achavam


Sôdade do Cordão Óleo sobre tela, 60 x 245 cm, 1940 Acervo Museu Nacional de Belas Artes – IBRAM/MinC

afastados da vida ativa, pois alguns deles contavam 90 anos de existência

Ministro da Educação e Saúde, implantou uma nova política cultural. Teve Carlos Drummond de Andrade como seu assessor direto, além de contar com a colaboração de diversos profissionais – artistas plásticos, cineastas, arquitetos, músicos, escritores e intelectuais – ligados ao modernismo. A noção de patrimônio cultural está diretamente vinculada ao surgimento dos Estados nacionais e ao processo de formação da nação e, durante o Estado Novo, demandou um enorme investimento na invenção de um passado nacional. Alguns aspectos e elementos da cultura brasileira foram preconizados como ícones nacionais, capazes de representar e estimular o sentimento de pertencimento, fundamental para a construção da ideia de nação. Se por um lado o antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Sphan (atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan) era responsável pela preservação e valorização dos

e tinham sido célebres na sua época.

Com o auxílio daqueles personagens, conseguimos elaborar, organizar e realizar um autêntico cordão para o qual foi dado o nome de Sôdade

do

C ordão.”

Heitor Villa-Lobos (Boletim Latino Americano de Música, Ano VI,Tomo VI. Rio de Janeiro, 1946. Reeditado pelo Museu Villa-Lobos, Presença de Villa-Lobos; vol.13º, MVL, 1991, p. 28-29)

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ensar na relação estabelecida entre Villa-Lobos e Ismailovitch significa nos remeter ao cenário político, cultural e social do país e à relação do compositor com a educação, instituída oficialmente durante as décadas de 1930 e 1940, por meio da criação da Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA) e do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico (CNCO). O trabalho realizado por essas duas instituições possui dimensões plurais e pode ser analisado sob a ótica da noção de patrimônio cultural concebida naquele momento e identificada com o movimento modernista. A partir de 1937, Gustavo Capanema,

Retrato de Villa-Lobos Óleo sobre tela, 53 x 45 cm, 1940 Acervo Museu Villa-Lobos – IBRAM/MinC

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monumentos arquitetônicos, a SEMA, no distrito federal, e posteriormente o CNCO, em todo o território nacional, investiram no campo da música por meio do cancioneiro folclórico e das manifestações da cultura popular. Neste contexto, o bloco carnavalesco S ôdade do C ordão aproximou os dois artistas e pode ser analisado como um dos projetos desenvolvidos neste período, fruto da articulação e da estratégia do Estado na construção de uma identidade nacional. O S ôdade do C ordão estava integrado ao projeto de educação musical implantado durante a gestão de Villa-Lobos como diretor da SEMA. Diferentes linguagens artísticas como a música, a dança e as artes plásticas foram utilizadas para recriar os cordões carnavalescos, proscritos pela polícia carioca na primeira década do século XX, e contribuir para a construção da representação da nação brasileira. O Bloco contou com a adesão de velhos participantes dos extintos cordões e com a participação de personagens da cultura popular do Rio de Janeiro, dentre eles o famoso Pai Alufá, José Gomes da Costa, conhecido também como Zé Espinguela, o músico e compositor Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga e a atriz Anita Otero. Di Cavalcanti desenhou os figurinos. Os croquis dos estandartes e das más-

caras foram confeccionados por Ismailovitch e Maria Margarida. Em Irajá, no Morro do Quitungo, aconteceram os ensaios. O S ôdade do C ordão apresentou-se ao público pela primeira vez durante a Feira de Amostras realizada no Rio de Janeiro, em 5 de fevereiro de 1940. Os objetivos essenciais do Museu Villa-Lobos hoje – a preservação do patrimônio cultural brasileiro através da música – estão engendrados nas ações da SEMA e do CNCO. A memória da relação estabelecida entre esses dois artistas está perpetuada através da pintura de Ismailovitch, um tríptico que retrata o artista plástico e o músico junto a personagens e adereços do S ôdade do C ordão. O óleo sobre tela de 1940 possui um forte conteúdo simbólico imbuído do conceito de identidade nacional, tal como era construído e imaginado naquele período. Pertencente ao Museu Nacional de Belas Artes, o trabalho integra a mostra de longa duração do Museu Villa-Lobos, e, agora, temos a oportunidade de vê-lo exposto lado a lado com A C eia B rasileira de I smailovitch – H omenagem ao A leijadinho.

Márcia Ladeira Ação Educativa do Museu Villa-Lobos / Agosto de 2013

Ensaio no Morro do Quitungo em Irajá. Arminda Villa-Lobos, Villa-Lobos Zé Espinguela, a atriz portuguesa Beatriz Costa e Ismailovitch, 1940 Acervo Museu Villa-Lobos – IBRAM/MinC

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Ismailovitch e o Mosteiro

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uem foi recebido um vez naquela velha casa da rua São Clemente, de janelas cerradas e lâmpadas acesas no dia claro, com a série de madonas a recobrir paredes de alto pé-direito e a rebrilhar no ouro das auréolas e dos fundos bizantinos, nunca se esquecerá do ambiente e seus moradores, como que desligados de qualquer cuidado secular e imergidos para sempre numa atmosfera mística de arte convertida em religião. Ali encontravam os fiéis – pois a casa tinha fiéis, que podiam cultivar gostos e ideias diferentes, mas se uniam na afeição aos moradores – um casal de artistas portugueses e um pintor ucraniano, indiferentes a trama de rivalidades e mexericos, que costuma envolver a prática das artes. O trabalho absorvia-os, sem a preocupação de fazer dele escada para o sucesso material ou mundano. Não estavam na crista da onda publicitária, mas em penumbra que não impedia que fossem conhecidos e admirados tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Assim viveram e criaram, por muitos anos, o casal Morel Soutello e o professor Dimitri Ismailovitch, iniciador, em pintura, de Maria Margarida Soutello, a madona de tranças pretas que ele fixou em tantos quadros dos quais não pretendia separar-se, como costumam fazer certos artistas (e Lasar Segall, outro russo de nascimento, foi um deles) que gostariam de ficar dispensados da venda de suas criações, consideradas prolongamentos do seu ser.

Maria Margarida Soutello e Ismailovitch, circa 1950 Coleção Marcelo Del Cima

Maria Margarida Soutello Máscaras Óleo sobre Tela, 149 x 117 cm, 1940 Acervo Museu Villa-Lobos – IBRAM/MinC

Falecido Morel, Maria Margarida e Ismailovitch continuam a cumprir, em quase silêncio, com algo de monacal, o destino que se traçaram, de devotamento integral à pintura. Para ela a noite é dia: lê e pinta nas horas em que estão dormindo os artistas, os modelos e as coisas, e uma claridade de sonho lúcido parece banhar suas telas de misticismo longamente absorvido na meditação e nos estudos filosóficos – misticismo que não exclui a técnica rigorosa, haurida de seu mestre. Já este, continuamente à procura de formas que se empenhava em captar na sua pureza, passava meses seguidos a contemplar espécies raras no Jardim Botânico, para documentar plasticamente o luxo gratuito de uma planta, a peculiaridade de um requinte floral, que habitualmente admiramos sem sentir-lhes a qualidade essencial de obra de arte da natureza. Exímio no retrato – e numerosos escritores brasileiros nos últimos 50 anos, que passaram por seu pincel exato e minucioso como diria Manuel Bandei-

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Igreja Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto, MG Óleo sobre tela, 80 x 63 cm Coleção particular

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ra, o atestam – Ismailovitch, em sua fase derradeira, trocou a figura realista pela abstração. Um crítico de autoridade, como é Antonio Bento, afirma o caráter original dessa experiência, que se desenvolveu à margem de correntes e tendências da moda. Cada quadro é distinto do outro, pela variação de soluções plásticas, constituindo o conjunto uma aventura pessoal de sentido muito particular. Dir-se-ia que Ismailovitch brincava tranqüilo e consciente, entre formas e problemas, com a segurança de um domador de imagens e a leveza de um bailarino. E o fez depois de deixar pelos museus e coleções particulares um universo de retratos, naturezas-mortas, estudos antropológicos e milhares de anotações icônicas e paisagísticas de Constantinopla, onde viveu na mocidade, após uma carreira militar que conheceu a fundo a angústia e a desolação da Primeira Guerra Mundial. Faleceu há dias, cercado de silêncio, como o silêncio foi, de resto, um dos elementos nutritivos que contribuíram para a realização de sua obra vasta, plena de modéstia e de consciência profissional. Sem ruído se foi o mestre, que tinha alguma coisa de puro, de ingênuo mesmo, em sua identificação com a arte, e que, sob a impassibilidade aparente das composições, colocava uma dose imensa de humanidade. Os amigos sabiam disso. A paixão de Ismailovitch era retratar sempre velhas amizades, pelo prazer de retratá-las, oferecendo os quadros a seus modelos diletos. A um, depois de fixá-lo de diferentes maneiras, ele cismou de ver dentro de um hábito de monge: – Você esta ganhando cada dia mais a cara de monge. Quero fazer seu retrato vestido de monge. Ao que o amigo respondeu, com sinceridade: – Monge eu? Longe disto. Você sim, você é o perfeito monge, de um mosteiro que fica na terra por engano. Agora, Maria Margarida está sozinha no Mosteiro.

Ismailovitch e o Cardeal Montini, futuro Papa Paulo VI, Rio de Janeiro, 1960 Coleção particular

Carlos Drummond de Andrade Jornal do Brasil 21 de outubro de 1976

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apoio

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realização


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