UFMS, CORUMBร , MS, MAIO DE 2011, Nยบ. 3
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 2
EDITORIAL A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 207, dispõe que ―as universidades [...] obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão‖. Isso significa dizer que o ensino, a pesquisa e a extensão são funções básicas das instituições universitárias, delas devendo receber tratamento equivalente, sem que haja prioridade a qualquer um dos pilares. Assim não agir é violar a legislação desde o seu fundamento maior, constitucional. Ainda que se considerem as iniciativas e as ações estatais no âmbito do fomento à pesquisa no primeiro decênio do século XXI, não observamos ainda, a nosso ver, no Brasil, uma efetiva e continuada política de estado voltada para a pesquisa. Ao menos, não do modo como as ações governamentais se voltaram, nesse período, para o crescimento do ensino. Até mesmo a extensão, que experimentou novas políticas em sua abordagem, muito do que foi feito tinha e tem, por fim, o incremento das atividades de ensino na graduação. De que carece a pesquisa, em especial em uma unidade universitária afastada dos grandes centros, como Corumbá? De que carece a pesquisa em uma instituição como a UFMS? De que carece a pesquisa em região fronteiriça e de média densidade populacional, mas em franco crescimento, como é o caso de Mato Grosso do Sul? Não se trata, tão só, de responder por que o Brasil não avança, quanto à pesquisa, na intensidade do seu crescimento econômico, na potencialização de suas virtualidades, na realização de sua condição de ator primus inter pares, tanto na América Latina quanto entre os países que agora almejam o proscênio internacional. Ao que parece, não planejamos o que queremos ser, de que modo queremos ser e o que faremos para alcançar tal objetivo. Vamos como for, confiantes por índole, e por índole sem planejamento, sem nos organizarmos, sem explicitar as metas a que o novo papel do Brasil e da universidade brasileira deveriam aspirar. O pior é que, ao que parece, os erros e defeitos do país cá se agigantam. Como a intenção constitucional não tem — para os governantes que a descumprem — contrapartida no Código Penal, resta, àqueles que por aqui mourejam na pesquisa, o pires na mão, o excesso de carga horária na graduação, atender às cobranças de atuar em projetos de extensão e responder à carga administrativa que sustenta o ensino. Decorre, desse quadro, a pouca efetividade como pesquisador. Claro está, essa pouca efetividade não é por opção, ela é consequência da conjuntura, da qual resulta professores estressados e extenuados.
Angela Varela Brasil Pessoa Rauer Ribeiro Rodrigues Editores
COMISSÃO EDITORIAL: Angela Varela Brasil (Coordenadora; Letras-CPAN-UFMS) Rauer Ribeiro Rodrigues (Vice-Coordenador; Letras-CPAN-UFMS) Rita Maria Baltar Van de Laan (Letras-CPAN-UFMS) Teresa Cristina Varela Brasil de Almeida (Letras-CPAN-UFMS)
COMISSÃO CIENTÍFICA: Rauer Ribeiro Rodrigues (Coordenador; Letras-CPAN-UFMS) Fabiana Portela de Lima (Vice-Coordenadora; Letras-CPAN-UFMS) Angela Varela Brasil Pessoa (Secretariado; Letras, CPAN-UFMS) Auredil Fonseca dos Santos (Letras, CPAN-UFMS) Dimair de Souza França (Pedagogia, CPAN-UFMS-UFMS) Edgar Aparecido da Costa (Geografia/Mestrado em Estudos Fronteiriços, CPANUFMS) Eduardo Gerson de Saboya Filho (História, CPAN-UFMS) Elaine Aparecida Cancian de Almeida (História, CPAN-UFMS) Elizabete Bilange (Letras, CPAN-UFMS) Fortunato Pastore (História, CPTL-UFMS) Joanna Durand Zwarg (Letras, CPAN-UFMS) Kelcilene Grácia-Rodrigues (Letras/Mestrado em Letras, CPTL-UFMS) Luciene Lemos de Campos (Mestre em Estudos Fronteiriços, SED, Três Lagoas, MS) Luciene Paula M. Pereira (Letras, CPAN-UFMS) Marcelo Dias de Moura (Matemática, CPAN-UFMS) Márcia Regina do Nascimento Sambugari (Pedagogia, CPAN-UFMS) Marco Aurélio Machado de Oliveira (Mestrado em Estudos Fronteiriços-CPAN-UFMS) Marcos Rogério Heck Dorneles (Letras, CPAN-UFMS) Maria Adélia Menegazzo (Letras/Mestrado em Estudos de Linguagens, CCHS-UFMS) Maria Auxiliadora Negreiros de Figueiredo Nery (Pedagogia, CPAN-UFMS) Mônica de Carvalho Magalhães Kassar (Mestrado em Educação Social-CPAN-UFMS) Regina Baruki (Letras, CPAN-UFMS) Rita Baltar Van der Laan (Letras, CPAN-UFMS) Sandra Hahn (Letras, CCHS-UFMS) Suzana Vinícia Mancilla Barreda (Letras, CPAN-UFMS) Teresa Cristina Varela Brasil de Almeida (Letras, CPAN-UFMS) Vanessa Bivar (História, CPAN-UFMS) Waldson Luciano Corrêa Diniz (História, CPAN-UFMS)
PERIODICIDADE: Semestral ― ISSN: 2176-6835 Mês de Circulação: maio e novembro Editoração: Rauer Ribeiro Rodrigues Capa — foto e arte: Rauer Endereço: CARANDÁ – Revista do Curso de Letras DHL / Câmpus do Pantanal / UFMS Profs. Angela e Rauer – editores Av. Rio Branco, 1270 – sala 217, Bloco H 79304-902 – Corumbá – MS (67) 3234-6830 angelavbr@brturbo.com.br / rauer.rauer@uol.com.br / revistacaranda@gmail.com A responsabilidade de cada artigo, no que se refere ao teor, à formatação e à revisão do texto, é do autor.
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ÍNDICE ARTIGOS O uso do comercial para o ensino de estratégias discursivas Ana Claudia Turcato Aurora Gedra Ruiz Alvarez Palavra e poder
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17 Carlos Antônio Magalhães Guedelha
Políticas linguísticas, representação e identidade no contexto plurilíngue brasileiro: panorama de um estudo em desenvolvimento na Amazônia Ocidental Edson Santos da Silva Júnior Mônica Maria Guimarães Savedra
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Memória e interdiscurso: questões e reflexões
34 Fábio Araújo Oliveira
Observações preliminares sobre a técnica narrativa n‘O Ateneu, de Raul Pompéia Franco Baptista Sandanello
39
Terceira idade: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura Luciana Santos de Oliveira
50
Percepção de sons de língua estrangeira pelo modelo de assimilação perceptual Mara Silvia Reis
62
A água e a seca: atalhos da oralidade
78 Maria Generosa Ferreira Souto
Textualidade: uma abordagem sobre seus critérios Midiã da Silva Borges Gomes Rosângela Maria Bessa Vidal A dinâmica lexical da linguagem jornalístico-política em textos escritos em língua portuguesa contemporânea na última década do século XX Pedro Antonio Gomes de Melo A tradução como criação literária e as escolhas do tradutor Rafaella Dias Fernandez
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93
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A criação do fantástico e do efeito de ambiguidade em ―O capitão do Estrela Polar‖, de Sir Arthur Conan Doyle Adolfo José de Souza Frota
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A epopeia de Silviano Santiago: viagens na dependência cultural latinoamericana Angela Mascarenhas Santos
127
Sociedade e subjetividade em Os ratos, de Dyonélio Machado Bárbara Del Rio Araujo ―A presença de tudo sempre perguntando‖ – a poesia de Alexander Search Cíntia França Ribeiro O contador de estórias: exercício do imaginário e da invenção Rita Maria Baltar Van Deer Laan Ane Carolina Randig Tavares Gisley Monteiro de Monteiro
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151
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O processo de formação d―A romana‖: anotações sobre o romance de Alberto Moravia Luciano Marcos Dias Cavalcanti Cilene Margarete Pereira
175
Pornoerotismo ou arte pornoerótica? — A escritura obscena de Hilda Hilst Mailza R. Toledo e Souza
189
A questão da morte e a existência humana: uma leitura de Aparição, de Vergílio Ferreira Maria Cláudia Simões
200
A palavra (real) nada suave: alguns apontamentos sobre a poesia de Orides Fontela Moisés Nascimento
210
Aspectos da estética barroca/neobarroca em Concerto barroco Thiago Miguel Andreu
217
Almeida Garrett: a estética romântica nas artes cênicas portuguesas Edson Santos Silva
226
Recepcionando Saramago: teoria, reflexão e prática em Todos os nomes e O homem duplicado Rosemary Conceição dos Santos
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LITER‘ARTES POESIA: A poesia é um raro momento de liberdade!
252
Alexandre Paulo Loro
DOSSIÊ Sintagma Verbal Simples: Verbos Apresentacionais Existenciais Renan Bernardes Viani Christian Botelho Borges Ivo Santos Escobar Monise Martinez Olívia Bueno Silva Fortes Marcelo Módolo
267
RESENHA Palavra e silêncio em Luiz Vilela
301 Wania de Sousa Majadas
SERVIÇO CARANDÁ — Chamada e Normas Para Colaborações
308
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ARTIGOS
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O USO DO COMERCIAL PARA O ENSINO DE ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS Ana Claudia Turcato1 Aurora Gedra Ruiz Alvarez2 Resumo: Esse artigo tem como objetivo mostrar o uso de comerciais de televisão em sala de aula como uma técnica pedagógica para o ensino de polifonia e monofonia estudadas por Bakhtin (1981). Pretende-se analisar as propagandas dos cosméticos anti-aging da Avon e da Natura como uma modalidade de leitura persuasiva dentro dessa tipologia textual. Palavras-chave: Estratégias de ensino, polifonia, monofonia. Abstract: This article aims to demonstrate how to work with television commercials as technique to teach polyphony and monophony studied by Bakhtin (1981). It intends to analyze the anti-aging cosmetics‘ advertisement between Avon and Natura as a persuasive reading modality of this textual typology. Keywords: Teaching strategy, polyphony, monophony.
Este artigo apresenta-se como uma possibilidade de trabalhar textos publicitários em sala de aula, como estratégia para o ensino dos conceitos de polifonia e monofonia. Mais precisamente, serão utilizadas propagandas de cosméticos, veiculadas na televisão. Segundo Bakhtin (2003, p. 297), ―para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros, em outras palavras, todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo.‖ Portanto, o discurso publicitário constitui um tipo de discurso altamente persuasivo. Procurar-se-á mostrar, por meio da análise de algumas peças publicitárias de cosméticos, as implicações da intencionalidade do criador em usar as estratégias discursivas polifônicas ou monofônicas, conceitos estes elaborados por Bakhtin, bem como destacar alguns recursos retóricos que caracterizam esses efeitos de sentidos na linguagem da propaganda. É importante que o professor crie situações em que o aluno desenvolva sua competência discursiva, para que ele, enquanto sujeito social seja capaz de utilizar a língua de modo variado bem como compreendê-la criticamente, dentro de vários contextos de prática oral e escrita. Segundo Freire (1992) cabe à escola formar cidadãos críticos, reflexivos, autônomos e conscientes de seus direitos e deveres, capazes de compreender a realidade em que vivem, preparados para participar da vida econômica, social e política, ou seja, a escola deve garantir a aprendizagem desses conhecimentos, habilidades e valores necessários à socialização desses indivíduos. Segundo esse autor, é importante que o aluno desenvolva, na escola, a competência linguística e estilística, ou seja, a aplicação de seus conhecimentos da
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Discente do curso de Pós-Graduação Mestrado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP. E-mail: anaturcato@hotmail.com
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Docente do curso de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP. E-mail: auroragedra@hotmail.com/auroragedra@mackenzie.br
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língua na organização e construção dos textos, bem como, permitir que o aluno utilize os recursos expressivos que mais se adéquem às produções textuais, dando sentido aos mesmos. Por conseguinte, percebe-se a importância de utilizar atividades diversificadas de gêneros textuais que permitam que o aluno compreenda melhor as leituras que permeiam o seu cotidiano, como também, as ideologias que estão por trás de cada texto, pois, para Bakhtin nenhum discurso é neutro, ele sempre é mesclado por outros discursos. Bakhtin (2003, p. 301) afirma que [...] o traço essencial do seu enunciado é o seu direcionamento a alguém [...] pode ser um público mais ou menos diferenciado, um povo [...] Todas essas modalidades e concepções do destinatário são determinadas pela atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere. Os efeitos das mensagens publicitárias não são os mesmos para todas as pessoas. Os estímulos combinam-se com a subjetividade e a história individual de cada leitor, resultando em diferenças quanto à percepção da mensagem. Portanto, acredita-se que o comercial televisivo seja um meio capaz de atingir a todos os públicos devido a sua relação e aproximação com as pessoas e também por estar sempre relacionado com o cotidiano de um povo, podendo assim, ser utilizado como um gênero instigante.
A LINGUAGEM DA PUBLICITÁRIA NA SALA DE AULA Diariamente os anúncios publicitários invadem as nossas casas, trazidos pela televisão e por outros meios de comunicação, como o rádio, as revistas, folhetos, etc. Neste artigo, apenas o comercial televisivo será considerado. Conforme Nelly Carvalho (2009), a propaganda é um veículo importante na sociedade atual, é considerada como uma ferramenta extraordinária nas mudanças do comportamento e da mentalidade dos receptores, criando e reproduzindo a imagem do mundo ideal, que, muitas vezes, está distante da realidade dos cidadãos comuns. Acima de tudo, a publicidade é discurso, linguagem e, portanto, manipula símbolos para fazer a mediação entre objetos e pessoas, ou seja, tem sempre um objetivo de manipular alguém para adquirir alguma coisa, reafirmando assim, as considerações de Fairclough (1990) ao citar que os discursos publicitários refletem as características da sociedade contemporânea, apresentando os bens de consumo à sociedade capitalista. A linguagem publicitária normalmente valoriza as vaidades humanas, o egocentrismo, o consumismo, pois, ela se aproxima das necessidades do indivíduo, de suas paixões e desejos, portanto, apresenta-se por meio de discursos persuasivos e envolventes. Um dos componentes linguísticos mais evidentes num texto publicitário é o uso da argumentação, apresentada com elementos persuasivos, que manifestam a intenção do emissor de atingir determinado grupo de receptores, de comunicar a mensagem e produzir efeito. De acordo com Carvalho (2009) o discurso publicitário funciona ideologicamente em três dimensões: na construção das relações entre produtor/anunciante X público; na construção da linguagem do produto; na construção do consumidor como membro de uma comunidade. Ela argumenta que a maior tarefa ideológica da publicidade é a de representar os valores, necessidades e gostos de uma comunidade,
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Deste modo, é acentuada a importância do professor mostrar aos alunos as vantagens e as desvantagens do ponto de vista do consumidor. Logo, proporcionar aos alunos uma reflexão sobre que tipo de consumidor que cada peça publicitária atinge; para quem ela é produzida; que tipo de linguagem é utilizada e quais as estratégias de discurso, apropriadas pelo enunciador, podem desenvolver nesses alunos o senso crítico e torná-los mais conscientes na hora de analisar as propagandas veiculadas pela mídia. Toda propaganda tem sua carga ideológica, que, na maioria das vezes, se configura como opressora, pois impõe uma vontade que nem sempre corresponde à realidade social, histórica e econômica da sociedade em geral, fazendo com que isso pareça natural, preciso e necessário, que surge para garantir a harmonia da vida em sociedade. Esse pensamento vem embutido no momento de nossa formação enquanto ser social, que vai desde o nosso desenvolvimento em família, na escola e em nossa vida em sociedade. Para Chauí (2000, p.25) ―[...] a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das idéias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, daí por diante, um sistema de idéias condenadas a desconhecer sua relação real com o real.‖ Sendo assim, Fiorin (2001, p. 26) afirma que ―numa formação social, temos dois níveis de realidade: um de essência e um de aparência, ou seja, um profundo e um superficial, um não visível e um fenomênico.‖ Para ele, o nível da aparência é o nível da inversão da realidade, onde a dominação, inclusive a linguística, se justifica e é socialmente legitimada: toda a estrutura social parece-nos justificada e natural. Muitas vezes, linguagem e ideologia se fundem de tal maneira, que é aparentemente impossível dissociar uma da outra, pois a linguagem é a principal arma pela qual a ideologia se constitui. É através dela que a classe dominante impõe o seu pensamento, elevando seu domínio, subjugando toda e qualquer contrariedade ou diferença. Em relação às implicações ideológicas embutidas na linguagem, Fiorin cita, Uma formação ideológica deve ser entendida como a visão de mundo de uma determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de idéias que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo [...] essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso, a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva [...] (2003, p. 32) Para esse autor, o discurso envolve ideologias de cada grupo social, pois, é por meio desta linguagem que se desenvolve a reprodução de conceitos elaborados por uma classe dominante, mas, a linguagem publicitária deve ser também espaço de reflexão, em que o professor pode e deve mostrar ao aluno os mecanismos do discurso e o que se esconde por detrás dele. Isso não significa dizer que ele deva defender as suas idéias políticas partidárias, mas tornar os alunos mais reflexivos aos discursos que os rodeiam. Portanto, o papel da linguagem publicitária na sala de aula não fica restrito a normas gramaticais e textuais, mas, deve levar o aluno a ser capaz de refletir, e, escolher, de acordo com a sua interpretação de mundo, se quer ou não reproduzir a ideologia dominante.
EFEITOS DE SENTIDO DO DISCURSO: POLIFONIA E MONOFONIA
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Os termos monofonia e polifonia dizem respeito aos procedimentos de construção das personagens utilizados pelo criador. Adotamos o enfoque do teórico Mikhail Bakhtin para o estudo dessa proposta. Para Bakhtin a palavra não é monológica, e sim plurivalente, e o dialogismo é uma condição constitutiva do sentido. O termo dialogismo, segundo a semiotisista Diana Luz de Barros (1994), refere-se ao princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo o discurso e o termo ―polifonia‖ para caracterizar um tipo de texto em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem. Neste caso, monofonia e polifonia são consideradas como efeitos de sentido decorrentes de procedimentos discursivos que se manifestam no texto. Destarte, mesmo sendo o dialogismo a condição basilar da linguagem e do discurso, encontram-se textos predominantemente polifônicos ou monofônicos, os quais vão depender das estratégias discursivas utilizadas pelo autor. Sobre o embate das várias vozes ocultadas ou reveladas no texto, Barros (1994, p. 06) comenta: Os textos são dialógicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais podem, no entanto produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas faz-se ouvir. Portanto, o dialogismo compõe a linguagem e os textos, ainda que existam textos nos quais a variedade de diálogos se mostra, enquanto que em outros, os monofônicos, ela se sufocam e apenas um impere entre eles. A polifonia é a única forma de preservar a liberdade de expressão do ser humano. Ela é um mecanismo contra a reificação do homem, Bakhtin coloca-se contra qualquer tendência à monologização da existência humana. Em Problemas da poética de Dostoiévski Bakhtin mostra que a diferença do autor de Crime e castigo não é a variedade de personalidades, de vidas e de dramas que povoam seus romances, mas sim a ―multiplicidade de vozes e de consciências independentes‖ (BAKHTIN, 1981, p. 02), apresentadas de tal forma que as personagens não parecem reproduzir o pensamento de um autor, mas se tornam donos de seus próprios discursos; é como se o romance contasse com vários autores, cada qual apresentando a sua visão do mundo. Por isso suas obras não são monofônicas, isto é, a expressão de um único eu que fala por meio de personagens, considerados como fantoches, mas polifônicas, ou seja, resultado da expressão de diversos indivíduos autônomos e livres em relação ao autor: A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características, mas tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis (BAKHTIN, 1981, p. 03). Os textos polifônicos são caracterizados pela falta de acabamento e de solução do herói. A atitude do autor em relação ao herói é dialógica, proporcionando uma autonomia e liberdade interna, pois, o texto, não sendo fechado, ou seja, sendo polifônico, permitirá ao leitor maior produção de sentidos.
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Para Bakhtin, o princípio composicional das obras de Dostoiévski e o elemento definidor da polifonia é ―a unificação das matérias mais heterogêneas e mais incompatíveis‖ e a existência de ―centros-consciências não reduzidos a um denominador ideológico‖ (BAKHTIN, 1981, p. 12). Ou seja, a polifonia é o componente que harmoniza a diversidade de vozes independentes produzindo diferentes efeitos de sentidos repercutindo múltiplas ideologias. A produção de sentidos gerada pela heterogeneidade discursiva concebe a monofonia ou a polifonia. Os textos monofônicos são apresentados como aqueles que possuem vários personagens, carregados de posições ideológicas independentes, mas que acabam expressando uma ideologia dominante. Dessa forma, nesses romances muitos personagens falam, todos eles exprimem uma visão unificada, compatível com a ideologia central do texto. Mas, no texto ou romance polifônico cada personagem tem autonomia, manifesta a própria concepção de mundo, não levando em consideração ideologia do autor da obra. A polifonia acontece quando cada personagem se manifesta com a própria voz, expressando assim, o seu pensamento individual. Portanto, ao ensinar em sala de aula essas estratégias de leitura discursivas por meio de propagandas, o professor terá um excelente recurso para representá-las, pois, todas elas apresentam uma carga discursiva que serve de instrumento de análise por parte de um leitor crítico que conseguirá perceber quais as vozes que perpetuam em cada discurso e que tipo de ideologia dominante está por trás de cada uma dessas mensagens publicitárias.
AVON X NATURA: ANÁLISE DAS VOZES DISCURSIVAS NAS PROPAGANDAS DE COSMÉTICOS Segundo Carvalho (2009) os textos publicitários quase sempre mostram que ―para a mulher ser feliz e bem sucedida precisa estar sempre bela ou parecer jovem‖. Para essa autora, a maioria dos textos femininos está centrada, no sucesso, na vaidade e na aparência. Já para Brémond (1977), as mulheres modernas não se deixam mais seduzir pela simples promessa de agradar aos homens, querem ser respeitadas pela sociedade. O comercial assume um papel relevante no processo de construção social desse gênero, em virtude de a televisão ser um importante veículo de transmissão e de incorporação de valores, como, por exemplo, o da feminilidade. Eles mostram imagens de figuras sociais conhecidas, para estabelecer ligação entre as reproduções de idéias e as construções sociais no que diz respeito às mulheres. As propagandas televisivas podem ser consideradas o protótipo da imagem dos nossos dias e da cultura atual. As suas características e capacidade de persuasão devem ser chamadas à discussão quando se pretende explorar os seus mecanismos e implicações. Segundo Bartherl (Apud CARVALHO, 2009), nas culturas ocidentais as mensagens publicitárias assumem assinalável importância enquanto veículos de valores à volta dos quais os indivíduos, de uma ou outra forma, constituem a sua identidade. Para ele, por relação àquilo que é mostrado nos anúncios, os personagens situam-se face a grupos e a tendências sociais. Aponta-se, pois, para a idéia de identificação com aquilo que é dado a ver em termos de valores e comportamentos. Esses modelos de como a mulher é representada nas peças publicitárias podem ser observados pelos comerciais de produtos de beleza anti-aging de duas grandes marcas de cosméticos, Avon e Natura. Observaremos a seguir, uma análise dos discursos contidos nessas propagandas.
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Foram selecionados para análise dois anúncios publicitários de cada marca. Cada um deles foi submetido à análise tendo em vista os conceitos de discursos polifônicos e monofônicos à luz da teoria de Bakhtin. Iniciaremos pela análise das peças publicitárias da Avon1:
(1) RENEW REVERSALIST
(2) RENEW REJUVENATE Nas propagandas da Avon as ―modelos‖ representam um padrão de beleza de uma mulher que não corresponde à mulher comum em nossa sociedade. Na propaganda (1) o discurso se apresenta da seguinte maneira: ―Pele mais jovem? Eu quero uma pele nova, [...]‖. Já no discurso da propaganda (2) vemos o seguinte trecho: ―Agora com o Renew Rejuvenate você pode ter a pele mais jovem e revitalizada como num centro de estética [...]‖. Tanto na propaganda (1) quanto na (2) predomina uma voz monofônica, um discurso autoritário que não dá autonomia de voz a outras vozes femininas de nossa sociedade contemporânea. Apresentam uma voz que tenta impor uma obrigatoriedade em ser ―jovem‖ ou pelo menos possuir uma aparência ―mais jovem e nova‖. Bakhtin cita que, O sentido total e conclusivo da vida e da morte e de cada personagem revela-se somente no campo de visão do autor e apenas à custa de seu excedente sobre cada uma das personagens, vale dizer, à custa daquilo que a própria personagem não pode ver nem entender (1981, p. 60). Assim, os discursos incorporados nas propagandas, muitas vezes, estão representando a idéia de seu autor, a sua visão de mundo. Os seus personagens não possuem autonomia para se expressar nem defender o seu ponto de vista. Assim, se constitui em grande parte uma voz 1
Esses vídeos estão disponíveis em: (1) <http://www.youtube.com/watch?v=K1HMhIUh1tA &feature=related> e (2) <http://www.youtube.com/watch?v=fSWnyvVSx0A&feature =related>.
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predominantemente ―superior‖ as outras, entendida como verdade absoluta, sem espaço para outras considerações. Esse mesmo estudioso argumenta que "[...] O autor não discute nem está de acordo com a sua personagem. Ele não fala com ela mais sobre ela. A última palavra cabe ao autor [...]‖ (ibidem, p. 60). Portanto, em se tratando de discurso publicitário, toda propaganda que não reflete a verdadeira face da sociedade, dialogando com ela, não mostrando o seu real pensamento e opinião constitui-se numa linguagem com tendência a monologização da existência humana. Partiremos agora para a análise das peças publicitárias da Natura1:
(3) NATURA CHRONOS RESPEITO À IDADE
(4) NATURA CHRONOS DEIXA O TEMPO Estreitamente ligada ao discurso publicitário da Natura apresenta-se outra noção bakhtiniana importante nessas propagandas, a polifonia, que nos leva a perceber a impossibilidade de contar com as palavras como se fossem signos neutros, transparentes, já que elas são afetadas pelos conflitos históricos e sociais que sofrem os falantes de uma língua e, por isso, permanecem impregnados de suas vozes, seus valores, seus desejos. Assim, esses textos polifônicos apresentados nas peças publicitárias se referem às outras vozes que condicionam o discurso do sujeito. A princípio é bom lembrar que o discurso, seja qual for nunca é neutro, pois, ele não é falado por uma única voz, mas por muitas vozes, geradoras de muitos discursos que se entrecruzam no espaço. Ele tem sempre uma ideologia por trás de suas idéias expressas para um destinatário, com a intenção de persuadí-lo. 1
Esses vídeos estão disponíveis em: (3) <http://www.youtube.com/watch?v=yNomdFFGZ1g> e (4) <http://www.youtube.com/watch?v=kgIjgKe256Q&feature=related>
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Em consonância com as asserções aqui apontadas, percebemos junto ao exemplo (3) em que diz: ―Cada rosto tem uma história, cada história tem um anti-sinais [...] Nova linha Natura Chronos, tem um para a sua história‖. Nesse trecho pode-se perceber várias vozes sociais que se cruzam nele, pois, pretende passar para o público a mensagem de que cada idade está sendo ouvida e levada em consideração, não para ser transformada, mas, para ser admirada e valorizada. Pode-se observar também no exemplo (4) ―Não tem idade certa para ser você mesma [...] o anti-sinais que não para no tempo‖ que a ideia manifestada pelo autor reflete as mesmas vozes ―equipolentes‖ e ―imiscíveis‖, Não há forças centrípetas nesses discursos, ou seja, vozes que ambicionem se impor como centro. Nas próprias cenas do comercial desse mesmo exemplo é mostrada a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes que constituem a propaganda. Nelas, são mostradas a ―mulher madura‖ em seus vários períodos de vida, num espaço do cotidiano, em que muitas mulheres podem se enxergar nelas. Portanto, esses discursos são elaborados de acordo com a ideologia de que os compõem, contudo, sem deixar de expressar o sentimento dos consumidores, neste caso, as mulheres. Não impondo uma voz em que lhes diz que devem ficar sempre jovens ou serem o que não podem ser, mas que, a sua identidade como mulher é única e que ela é bela, tanto por se cuidar quanto por sua experiência de vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Do exposto, pode-se considerar que a linguagem publicitária não é imparcial, e sim, repleta de ideologias de quem a constrói. Ela reflete o mundo cotidiano tendo como objetivo instigar o desejo de consumo de seus clientes em potencial. Fica evidente que a estrutura publicitária comporta uma argumentação linguística com a intenção de persuadir o consumidor, levando-o ao ato de compra, ao explorar as emoções básicas do ser humano e utilizar técnicas argumentativas para atrair a atenção do receptor. Dois discursos prevalecem nos comerciais de cosméticos analisados, o polifônico e o monofônico. Ambos são estratégias do discurso de que o criador utiliza para expor os seus pensamentos, de acordo com uma consciência ou levando em consideração as vozes de outros discursos. Por essa razão, os textos publicitários são um excelente instrumento para se trabalhar esses efeitos de sentidos do discurso. É muito importante escolher o texto publicitário de acordo com o nível de compreensão dos leitores/consumidores, assim, o resultado será mais positivo. Eles compreenderão mais facilmente a ideologia por trás de cada um. Outro aspecto importante a ser pontuado é a importância do conhecimento dos mecanismos do uso da linguagem com artifícios persuasivos, a fim de que os consumidores possam defender-se desse tipo de manipulação provenientes das propagandas veiculadas na televisão. É preciso, portanto, mostrar-lhes a riqueza das estratégias textuais e discursivas, a ilimitação dos efeitos de sentido que, com esses recursos, podem ser obtidos. Em suma, o texto publicitário pode fazer com que o leitor descubra que o discurso e o texto têm uma relação de cumplicidade e de entrelaçamento e que nem tudo o que é apresentado nas propagandas de televisão corresponde a sua vida ou irá contribuir para melhorá-la.
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REFERÊNCIAS: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (orgs.). (2003). Dialogismo, polifonia, intertextualidade em torno de Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Edusp. BRÉMOND, Janine. La publicité. Paris: Hatier, 1977. CARVALHO,Nelly. Publicidade, a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 2009. CHAUÍ, Marilena de Souza. O que é Ideologia. 38 ed, São Paulo:Brasiliense, 2000 FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. 2ª ed. London/New York: Longman, 1990. FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia.7ed, São Paulo:Ática, 2003. FIORIN,José Luiz. (2006). Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática,2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. Paz e Terra, 1992. AVON. Renew Reversalit: Campanha publicitária. 2010. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=K1HMhIUh1tA&feature=related>. AVON. Renew Rejuvenate. Campanha publicitária. 2009 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=fSWnyvVSx0A&feature=related>. NATURA. Chronos, respeito à idade. Campanha publicitária. 2010. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=yNomdFFGZ1g>. NATURA. Chronos, respeito à idade. Campanha publicitária. 2009. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=kgIjgKe256Q&feature=related>.
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PALAVRA E PODER Carlos Antônio Magalhães Guedelha1 RESUMO: Este artigo apresenta uma leitura do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, enfocando a relação entre palavra e poder, com base em reflexões teóricas de Bakhtin (1999), Bourdieu (2008) e Pêcheux (1997). A análise mostra que, se por um lado as palavras têm poder, por outro, o ―poder‖ tem palavras, das quais se serve para perpetuar a sua ideologia e legitimar o domínio do homem pelo homem. PALAVRAS-CHAVE: Vidas secas, palavra, poder, capital linguístico. PALABRA Y EL PODER RESUMEN: Este artículo presenta una lectura de la novela Vidas secas, Graciliano Ramos, centrándose en la relación entre la palabra y el poder, sobre la base de reflexiones teóricas de Bakhtin (1999), Bourdieu (2008) y Pêcheux (1997). El análisis muestra que si una parte las palabras tienen poder, por el otro, el "poder" tiene palabras, que sirve para perpetuar su ideología y legitimar la dominación del hombre por el hombre. PALABRAS CLAVE: Vidas secas, la palabra, el poder, el capital lingüístico. Inegavelmente há poder nas palavras. Melhor dizendo, o poder advém delas e nelas reside. Não é à toa que o cerne da tradição judaico-cristã assenta-se sobre a crença inarredável de que Deus, ao fazer uso da palavra, provocou a existência não só do homem, mas de todo o universo. (Gênesis, I) Aceitando-se ou não como válida a narrativa bíblica, não há como negar que a manipulação da palavra é sempre um flagrante exercício de poder. Bakhtin (1999), ao apontar novos horizontes para além das ideias linguísticas de Saussure, procura mostrar que a palavra é um campo de conflitos ideológicos, acentuando o caráter plurivalente, interacional e dialógico do signo, e invalidando a noção de neutralidade do mesmo. Dessa forma, ele traz à luz a constatação de que o uso da língua por um determinado grupo é regido pela gama de interesses desse mesmo grupo, não havendo, portanto, inocência na linguagem. Bourdieu (2008), estudando os diferentes efeitos de sentido no uso das palavras, chamou de ilusão o fato de se pensar que a língua funciona como um mero instrumento de comunicação. Para ele, a língua é bem mais do que isso: é um instrumento de poder. Nesses termos, dialoga com Pêcheux (1997), para quem o lugar social de onde se fala tem muita relevância nas situações de interação pelo uso da língua. Essa visão pressupõe a existência do direito à palavra, que não pertence a qualquer individuo, mas emana da posição social ocupada por aquele que congrega prestígio e domínio de situações ideológicas. Neste artigo pretendemos mostrar que o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, corrobora as teorias aludidas acima, no que concerne ao comportamento linguístico e postural das personagens, do narrador e até do seu autor empírico, Graciliano. Em Vidas secas, a lei do mais forte impera inexoravelmente nas relações humanas. E o mais forte é, conforme se configura em suas páginas, aquele que melhor detém, domina e manipula a palavra. 1
Doutorando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina; professor de Teoria Literária da Universidade Federal do Amazonas. E-mail: cguedelha@gmail.com
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Aplicando ao romance de Graciliano o conjunto do arrazoado acima produzido por cientistas da linguagem, percebemos que não é à toa que ele seja um romance mudo, povoado de personagens mudas. A família de Fabiano, o protagonista, é alijada de qualquer mecanismo de poder. Em decorrência disso, não logram transitar no complexo mundo das palavras. O narrador, além disso, embora disponha de recursos para tal, não se permite criar formulas mágicas para envolver essas criaturas em peripécias heroicas, de forma a vencer as forças que sobre eles fazem pressão. E por não saberem lidar com as palavras, Sinha Vitória, Fabiano e os dois meninos têm como elo entre eles o próprio silêncio, que os impossibilita de alçar o olhar para além do cotidiano tedioso e mesquinho. A esse respeito, Sant‘Anna (1984, p. 176) considera que Era justamente a incapacidade de Fabiano e Sinha Vitória de se articularem como sujeitos que os reduzia a meros objetos horizontalizando-os com a própria natureza. A impotência existencial dos figurantes corresponde a uma impotência verbal diante da realidade. Comunicando-se através de gestos, ruídos guturais animalescos, incapacitados de organizar o mundo num sistema de representações e ideias, eles se portam como coisas que podem ser permutadas tanto no tempo como no espaço. O crítico refere-se, evidentemente, a uma incapacidade lingüística que é perceptível em toda a obra. Pode ser percebida já no primeiro capítulo, quando o narrador põe em cena aquela família em penosa marcha, sem trocarem palavras. O filho mais velho, não conseguindo mais caminhar, lança mão do único recurso de que dispõe: senta-se no chão e se põe a chorar. A resposta do pai vem em forma de xingamentos e bofetadas sobre a criança. As únicas palavras que Fabiano consegue dizer equivalem a uma explosão de ódio contra aquele pequeno estorvo à caminhada: ―Anda, condenado do diabo‖. (Vs, p. 9) Ato contínuo, direciona o seu furor para a paisagem tórrida que o rodeia, desfiando um rosário de impropérios. No capítulo ―Menino mais velho‖, novamente é o primogênito da família que ocupa a cena, agora às voltas com a palavra inferno, que ouvira ser pronunciada por uma benzedeira. A curiosidade em saber o que significa a palavra move-o a perguntar o significado à mãe, que se encontra na cozinha. Esta explica-lhe que é um lugar ―cheio de fogueiras e espetos quentes‖, (Vs, p. 9) porém fica furiosa com o filho, que lhe devolve a pergunta: ―A senhora viu?‖ (Vs, p. 9) O menino recebe a fúria materna em forma de murros na cabeça e, sendo expulso da cozinha, vai purgar sua humilhação e desprezo junto da cachorra Baleia, que também fora enxotada. Nesse instante extremo de solidão, a criança parece se entender melhor com a cadela do que com os seus semelhantes. Em outro capítulo, ―Contas‖, Fabiano aparece como meeiro, sendo descaradamente enganado pelo patrão. A comida, a roupa, os instrumentos de trabalho, tudo tinha que ser adquirido das mãos do fazendeiro, que impunha ao vaqueiro o preço que bem entendesse, de sorte que Fabiano ia se endividando cada vez mais, sem a menor perspectiva de resolver o problema. Tinha, então, que pedir dinheiro emprestado ao chefe, e se tornava vítima de mais tapeação. O fazendeiro descontava do salário já minguado os empréstimos acrescidos de ―juros‖, calculados ao seu bel-prazer. Fabiano sabia que estava sendo ludibriado, pois contava com a retaguarda de Sinha Vitória, que lhe fazia as contas. Sendo analfabeta, ela utilizava sementes e efetuava as somas e diminuições. Conseguia um resultado correto, mas o patrão rapinava nos ―juros‖. Ao perceber que estava sendo enganado, o vaqueiro esboçou um
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protesto, que foi prontamente sufocado com severa ameaça de despejo. Assim ele acabou tendo que aceitar a situação, por não ter para onde ir. Salomão, considerado por muitos como homem mais sábio de todos os tempos justamente pelo uso que fez das palavras, assegura em sua prédica que ―há tempo para todo propósito debaixo do céu‖, havendo, inclusive, ―tempo de falar e tempo de calar‖. (Eclesiastes, III ) Porém, numa leitura detida de Vidas secas não é difícil perceber que essa regra áurea imposta pelo sábio não se aplica a Fabiano e toda a sua família, assim como não se aplica à vida de milhares de flagelados do Nordeste brasileiro e de tantos outros nordestes espalhados em vários quadrantes do planeta. Para estes, há apenas o tempo de calar, que se perpetua por força dos mecanismos de poder e opressão. Sem acesso ao mundo elitizado da escola, da leitura, da escrita e das contas, Fabiano aprendera desde muito cedo a obedecer sem reclamar. Resultava daí um misto de aversão e fascínio pelas palavras. Esse sentimento ambíguo direcionava-se aos homens que as manipulavam bem. Se eram bons de discurso é porque eram trapaceiros e sempre tinham más intenções, assim ele pensava. E restava para ele aquele desajeitamento em todas as tentativas de utilizá-las. O patrão, porque sabia usar as palavras, roubava Fabiano nas contas; o soldado amarelo, arrimando-se no poder que a farda emprestava, lançava mão das palavras para humilhar aquele trabalhador honesto; o fiscal da prefeitura, alegando cumprimento do dever, despejava repreensões sobre ele, simplesmente por tentar vender a carne do porco que abatera; enfim, o ―governo‖ – utilizando palavras que ele não conhecia (bonitas mas perigosas) – subjuga-o, da mesma forma como já fizera com seu pai, com seu avô, e provavelmente viria a fazê-lo com os dois meninos. Assim Fabiano pensava. E acreditava mais nessa possibilidade do que mesmo nos seus vagos sonhos de fartura e felicidade, nos quais nem mesmo chegava a acreditar. Entre Fabiano e a desumana estrutura social erguia-se uma nociva e intransponível barreira de palavras. Quando tentava se valer dessas palavras era punido severamente: reagir contra a arbitrariedade do soldado amarelo resultou em prisão com requintes de injustiça e desumanidade; ao questionar as contas do fazendeiro, fez brotar juntamente com a ira deste a ameaça de expulsão da fazenda, tendo que se retratar; ânsia de vender a carne de porco na feira, recebeu do fiscal da prefeitura reprimendas, multas e insultos morais. São exemplos de penosas e malogradas tentativas de abrir caminhos de acesso à convivência social mediante o uso da palavra. Entre deslumbrado e assustado, gaguejava um discurso postiço, artificial, completamente desconexo, fruto de uma mistura aleatória de termos ouvidos da fala do seu Tomás da Bolandeira. Um discurso alheio fragmentado ao ponto da incompreensão. Notadamente, Fabiano e sua família não tinham o ―direito à palavra‖, o capital linguístico de que fala Bourdieu. (2008) Sendo o capital linguístico uma moeda de troca no mercado simbólico das relações sociais, quem o possui adquire o direito à palavra. Não tendo trânsito no mercado simbólico, Fabiano não detinha esse ―direito‖, e fazer uso dele equivalia a uma usurpação, a uma intromissão descabida, inaceitável, passível de punição. Por isso, os inomináveis castigos por reclamar, questionar, abrir a boca quando ela deveria ser mantida fechada diante dos ―superiores‖. É o próprio Fabiano que assim raciocina, pela via do discurso indireto livre: ―Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo‖. (Vs, p. 24) Em casa, os meninos ouviam a conversa dos pais à noite e percebiam que Eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes, uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as palavras que lhes vinham ao espírito, e as imagens
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sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a situação falando alto. (Vs, p. 66-67) Fabiano não conseguia realizar um ato pleno de interação linguística nem mesmo dentro de casa, lugar onde ele – em tese – ocuparia o lugar social de maior preponderância, poderíamos dizer de mando. Essa impossibilidade o acompanhava e se ampliava quando, fora de casa, entrava em contato com pessoas que tinham poder de mando sobre ele. Na verdade, a escassez vocabular e a pobreza construcional faziam com que se apossasse de Fabiano um sentimento incontrolável de pequenez e impotência. Até a sua revolta era muda, como um silente e borbulhante caldeirão. Sonhar com seu Tomás da Bolandeira era uma forma de fugir da realidade, idealizando uma situação confortante. Castro (1997) frisa com propriedade que seu Tomás, por usar palavras bonitas, era tido como exemplo de sabedoria, era invejado por Fabiano como modelo de um indivíduo alfabetizado e ideal. ―Até votava‖. Assim, procurava imitar-lhe o vocabulário. Algumas palavras ele não entendia, as ideias ficavam truncadas; iludia-se com isso, achando que por imitá-lo melhorava a sua situação. Diz Castro (1997, p. 72) que ―ao se referir ao seu Tomás, o narrador cria formas de linguagem culta, caracterizando-o pessoa de certa leitura que, por isso mesmo, transformou-se num arquétipo em que os demais personagens se espelham‖. Assim é que, paralelamente à constatação de que as palavras têm poder, confirmamos também que o ―poder‖ tem palavras, nelas reside e por elas se faz. As palavras são usadas para subjugar os que nãos as têm. Estes, por sua vez, angustiam-se por não saber manipulá-las em seu próprio benefício, como fazer os ―poderosos‖. O ―governo‖, por meio de suas múltiplas formas de representação, converte-se em agência social arbitrária, especialmente porque usa uma linguagem que está além das possibilidades de entendimento de um homem simples como Fabiano. No entanto, em que pesem essas considerações, gostaríamos de salientar que o lugar social de maior evidência dentro do romance não pertence ao ―governo‖ e seus representantes, nem às pessoas da cidade armadas de sua sabedoria, muito menos ao seu Tomás, que embora tivesse leitura e uma boa linguagem, não soube manipular isso em seu próprio benefício e acabou ―sumindo no mundo‖. Esse lugar de proeminência pertence, evidentemente, ao narrador. É ele quem detém o maior acúmulo de capital linguístico no interior do romance. Paradoxalmente, é dele, o narrador, a mais plausível economia e contenção no uso desse capital simbólico. À guisa de demiurgo, esse narrador onisciente – magnífico criador de mundos – lança mão das palavras e provoca a existência de um universo fantástico, recriado a partir da tragédia nordestina. Mas Graciliano Ramos, que do lado de fora aciona o seu narrador, não permite que este se deixe arrastar pela soberbia perdulária face ao poder que a palavra lhe confere. É por isso que as palavras desse narrador possuem a medida exata da sobriedade. Há narradores que, ébrios do poder que emana das palavras, fazem das personagens marionetes que se comportam segundo os ditames de seus próprios caprichos e/ou ideologias. Graciliano, ao que se sabe, seria incapaz de gestar um narrador desse feitio. A este respeito, pronuncia-se Mercadante (1994, p. 25): O maniqueísmo fez surgir heróis artificiais, super-homens comunistas, vivendo em forma de chavões. Eram criaturas idealizadas, inconcebíveis, que transitavam como sombras nas histórias sempre iguais da chamada construção do Socialismo. À acusação de ser Vidas secas um livro anti-partido porque agredia o papel histórico dos
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comunistas quanto aos levantes de Natal, Recife e Praia Vermelha, Graciliano reagiu dizendo que suas personagens não eram seres idealizados e sim criaturas que ele conhecia. Justamente por causa das palavras o ―partidão‖ resolveu ―bater‖ impiedosamente no seu escritor mais ilustre, segundo atesta Mercadante (1994), atormentando-o com picuinhas e mesquinharias, enquanto o usava a todo vapor como figura de proa. Isto porque Vidas secas é um livro substantivo, e para os que concebem a literatura apenas como instrumento de propaganda ideológica, os adjetivos são essenciais. Além disso, Graciliano era antirretórico por temperamento e formação. Aborreciam-no as tiradas heroicas, as frases de efeito, o som e a fúria que nada significavam. (Mercadante, 1997) Embora tenha sido um militante fiel ao Partido Comunista, Graciliano negou-se a fazer uma literatura panfletária. A voz do narrador de Vidas secas sintoniza-se com sua própria voz e através do narrador fala ele, Graciliano, e não o Partido. Muitas obras, como um punhado dos livros de Jorge Amado, ao seguirem a trilha de uma literatura dita engajada, acabaram adquirindo ranços de panfletagem político-partidária sendo, por isso, adjetivas. Graciliano, optando por uma postura substantiva, sofreu na pele o resultado dessa opção. Segundo Mercadante (1994b), Graciliano desabafou que batiam nele duramente porque não fizera da gente nordestina, religiosa e conformada, duros combatentes de barricada ou rebeldes franciscanos do século XIV. Em Vidas secas, Graciliano criou um narrador artífice, um artesão da palavra. O resultado de suas reflexões é um texto enxuto, desprovido de qualquer espécie de adorno verbal. Conforme observa Castro (1997), as palavras têm encaixes milimetricamente calculados, de sorte que os excessos foram aparados e eliminados. O máximo de expressão no mínimo de vocábulos é a constante da obra, cujo predomínio de frases nominais e períodos construídos em parataxe, com orações justapostas, contribui para a perfeita simetria entre a forma e conteúdo. Sua linguagem é tão cortante quanto a aridez e infecundidade da terra nordestina. A agressividade da paisagem tórrida converte-se em aspereza lexical. A linguagem vai se secando como a paisagem que descreve. Teles (1996, p. 93) confirma essas considerações ao afirmar que as personagens pouco falam, a não ser no discurso indireto livre do narrador. Com este expediente técnico, o mundo se objetiva, as demais ações se tornam diretas e rápidas e a linguagem refletindo a própria essência do tema vai cada vez mais ficando nominal, paratática, secando-se também nas suas estruturas, tanto no plano do conteúdo quanto no plano da expressão. Dessa forma, o narrador de Vidas secas não é somente onisciente. É também onipotente: tudo pode através das palavras. Mas ao usá-las, recusa-se a pintar um quadro de idealizações. E com a mesma força rechaça a tentação do panfletismo. Mas como a linguagem nunca é inocente, ele tem uma meta ao utilizar as palavras, qual seja a redenção do homem, envolto em tragédias que, não raro, a natureza desencadeia e o próprio homem se encarrega de agravar. E o narrador faz isso sem devaneios sentimentais, sem arroubos discursivos, sem verborreia apaixonada. Apesar disso, e talvez por isso mesmo, Vidas secas é um libelo eloquente contra a insensatez humana e as injustiças sociais. Em síntese, palavra e poder são coisas indissociáveis. E se por um lado existe o poder das palavras, por outro existem as palavras do poder. Em ambos os casos está presente a ideologia, o que transforma as palavras num evidente sinal de perigo para aqueles que estão
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sob o seu domínio. Sendo o signo visceralmente ideológico, é necessário permanente estado de alerta diante dele. Vidas secas mostra isso na medida exata.
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POLÍTICAS LINGUÍSTICAS, REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE NO CONTEXTO PLURILÍNGUE BRASILEIRO: PANORAMA DE UM ESTUDO EM DESENVOLVIMENTO NA AMAZÔNIA OCIDENTAL Edson Santos da Silva Júnior Mônica Maria Guimarães Savedra 1 Resumo: Considerando a realidade plurilíngue do Brasil, este estudo tematiza relevantes questões vinculadas às ações de política e planificação linguística voltadas às populações indígenas, bem como à defesa de suas línguas e manifestações culturais. O cerne desta lucubração centra-se em processos de (des)construção identitária e representações linguísticas em um contexto sociolinguisticamente complexo. O trabalho visa mostrar um panorama de uma pesquisa em desenvolvimento que aborda o contato entre a língua portuguesa e a língua tikuna em quatro comunidades indígenas situadas nos municípios de Benjamim Constant e Tabatinga (Alto Rio Solimões – Estado do Amazonas), região de tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Palavras-chave: identidade, representação linguística, política linguística. LANGUAGE POLICIES, REPRESENTATION AND IDENTITY IN THE CONTEXT PLURILINGUAL OF BRAZIL: AN OVERVIEW OF A DEVELOPING STUDY IN THE WESTERN AMAZON Abstract: Taking into account the reality Plurilingual of Brazil, this study addresses important issues related to the language policy and actions of language planning aimed at indigenous peoples and protection of their languages and cultural events. The focus of this study is guided in the process of deconstruction / construction of identity and linguistic representations in a complex context sociolinguistically. This paper shows a picture of an ongoing research that addresses the language contact between the portuguese and the tikuna in four indigenous communities located in Tabatinga and Benjamin Constant (Solimões River State of Amazonas), a region of the triple border between Brazil , Peru and Colombia. Keywords: identity, linguistic representation, language policy.
APRESENTAÇÃO Tendo em vista a imbricada relação entre língua, sociedade e cultura, as diversas tipologias que caracterizam as situações de contato linguístico, seja bilíngue ou multilíngue, evidenciam aspectos culturais e identitários ímpares do plurilinguismo nacional. Neste enquadre, tratamos do contato entre a língua portuguesa e a língua Tikuna (um isolado linguístico falado por cerca de 40.000 habitantes em três países - Brasil, Colômbia e Peru) no contexto de quatro
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Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Contato: edsonjr_linguista@hotmail.com; msavedra@uol.com.br
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comunidades indígenas localizadas nos municípios de Benjamim Constant e Tabatinga, Estado do Amazonas. Este estudo de cunho etnográfico é componente das reflexões contempladas em uma pesquisa em desenvolvimento, que trata de nuances de (des)construção identitária a partir de práticas sociolinguísticas e de representação do status linguístico em uma conjuntura diglóssica e de contato entre línguas autóctones no noroeste do Estado do Amazonas (na região do Alto Rio Solimões). Atentos à discussão pertinente ao eixo temático, segue-se a tônica proposta pela assertiva de Cavalcante (1999) de que embora o universo indígena no Brasil hoje seja pequeno, é, sobretudo, extremamente rico e diverso no que concerne aos aspectos sociolinguísticos, sociohistóricos e socioculturais. Por isso, o estudo em questão se dedica a compreender a maneira como são abordadas as crenças, comportamentos e atitudes linguísticas, que se concretizam como formas de representação do status linguístico em contexto educacional bilíngue, envolvendo uma minoria étnica (indígenas das etnias Tikuna, Kokama, Cambeba e Caixana), e suas relações com o processo de (des)construção identitária de integrantes dessas comunidades linguísticas, bem como, às concepções acerca da implantação da educação bilíngue que legitima o contato entre a língua tikuna e a língua portuguesa em ambiente escolar formal. A temática que perpassa a pesquisa insere-se no campo de investigação da Sociolinguística, uma vez que vincula os estudos empreendidos à relevância social de mecanismos dinâmicos de uso funcional de línguas, bem como de representações que circundam tais usos. Para tanto, considera-se a máxima teórica deste campo disciplinar, cuja tônica se baseia nas diversas situações sociais e nos padrões de uso diferentes da língua, os quais se situam no tempo e no espaço com funções bem definidas e condicionadas por fatores diversos. De igual modo, levase em conta a relevante produção que vem sendo empreendida no campo do bilinguismo/ multilinguismo e línguas em contato, desde o final do terceiro quartel do século XIX, perpassando pelo aprofundamento de discussões e solidificação teórica dessas questões presentes nas postulações de Weinreich (1953). Os estudos sobre identidade social e linguística, marca do trabalho em questão, também tomam força com a expansão dos estudos de base etnográfica em Sociolinguística, como em Bernstein (1964) e Labov (1972). Na convergência desses aspectos teóricos, considerar a existência da pluralidade linguística implica conceber a língua como constitutiva da práxis, das dinâmicas sociais, as quais se estabelecem, em seus múltiplos contextos, como fatos sociais, determinados pelos valores imanentes e transcendentes da própria língua Nesse âmbito, a escolha do tema de investigação linguística voltada a uma população indígena não se deu aleatoriamente, uma vez que a proposta de trabalho se justifica pelo interesse que se torna quase um dever para todos aqueles que se preocupam em reconhecer e valorizar a identidade étnica específica de cada uma das sociedades indígenas. Em particular, compreender suas línguas e suas formas tradicionais de organização social, além de assegurar a essas comunidades a condição de cidadania linguística e um ambiente propício para efetivar e garantir uma educação linguística respaldada por uma metodologia apropriada e uma prática pedagógica condizente. Face a esta circunstância, considera-se a recência com que a Educação Escolar Indígena vem figurando no cenário da educação brasileira como uma das modalidades de ensino em
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expansão, até por conta do espaço que têm ocupado no desenvolvimento de políticas públicas educacionais. Outro relevante fator para o desenvolvimento do estudo baseia-se no caráter marcadamente intercultural, que perpassa esses processos de escolarização, conferindo ao contato entre índios e não-indíos, na esteira das dinâmicas sociais, um rico campo de exploração empírico. Cujo objeto, nesta investigação, pauta-se na relação entre a ação verbal, o sistema linguístico, outros sistemas semióticos e as ideias do senso comum que cerceiam o imaginário dos falantes sobre a língua e sobre o mundo social do qual fazem parte.
1) PARA O RECONHECIMENTO DE UM BRASIL PLURILÍNGUE: UM PERCURSO HISTÓRICO DE AÇÕES DE PLANIFICAÇÃO E POLÍTICAS LINGUÍSTICAS Ao reconhecer que vivemos em um país plurilíngue, reconhecemos a riqueza linguística e cultural de nosso país, onde coexistem em torno de 200 idiomas falados atualmente, sendo 180 provenientes de comunidades indígenas e cerca de outros 30 praticados em comunidades de descendentes de imigrantes.1 A pluralidade linguística do Brasil, reflexo da formação étnica de nosso país, manifesta-se em diferentes situações de/em contato, identificadas entre línguas autóctonas, exóctonas (línguas dos colonizadores, da escravidão, da imigração ou alóctonas), na diversidade linguística de fronteira (fronteiras hispânicas, anglófona e francófona), no contato com falares étnicos específicos, como por exemplo, falares ciganos, diferentes variações linguísticas em remanescentes quilombolas, na uso da língua brasileira de sinais em comunidades de pessoas surdas, bem como na aquisição formal de línguas estrangeiras. Neste trabalho, ao discutirmos política e planificação lingüística, adotamos a definição proposta por Savedra (2007), que ressalta a interdependência que assumimos para política e planificação linguística: O conjunto de medidas, projetos, estratégias induzidas (escolhas conscientes no âmbito de políticas públicas), que tem por objetivo regular o uso das línguas, para determinadas situações línguísticas (relação entre status e uso, peso das línguas), propondo ações de implementação e acompanhamento (emprego dos meios necessários para aplicação das políticas definidas).
Vislumbrando uma melhor compreensão da imbricada relação entre essa diversidade tipológica de situações de contato/ pluralismo linguístico e as intervenções políticas sobre as línguas, faz-se necessário uma retomada histórica das ações de política e planificação linguística havidas no Brasil desde o período colonial, perpassando por momentos relevantes para a construção dessas políticas, tais como a promulgação da Constituição Federal de 1988, o sancionamento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB-9394/96), até à oficialização de documentos que orientam o ensino de línguas. 1
Dados disponíveis na página do Ministério da Cultura (www.cultura.gov.br ) e nos relatórios técnicos do Grupo de Trabalho sobre a Diversidade Linguística (GTDL), encarregado de apurar informações a respeito dos diferentes idiomas falados no país com o objetivo de criar um Livro de Registro das Línguas Brasileiras.
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Dentre as ações identificadas no Brasil Colônia, selecionamos como mais relevantes : a) a separação cautelosa dos grupos étnicos africanos; b) a Carta Régia de 1727, determinando o ensino do português aos índios; c) a instrução dada pelo governador do Grão-Pará para que a língua portuguesa fosse privilegiada na aldeia de Santa Ana; d) o Alvará e Carta Régia de 1759, expulsando os jesuítas e d) o Diretório dos índios. No Brasil Império, destacamos duas ações, ambas havidas em 1824, que contribuíram de forma efetiva para a definição da forte tendência à defesa da hegemonia da língua portuguesa no território nacional: a) a promulgação da primeira Constituição do Brasil, que não cita as populações indígenas e suas línguas e b) o programa de imigração para o sul do país, através do qual cada vez mais imigrantes chegaram ao país, ressaltando aqui a falta de uma postura política, tanto social como linguística por parte do governo, que contemplasse tal parcela da população. O tom das ações a favor de uma hegemonização linguística é reforçado durante o período republicano brasileiro. A exemplo, a política de assimilação linguístico-cultural da língua portuguesa imposta pela política de nacionalização do Estado de Vargas. Como consequência, citamos ações reducionistas que muito contribuíram para o não reconhecimento do Brasil como um país plurilíngue, tais como: a) a proibição do uso da língua dos imigrantes; b) o fechamento de escolas bilíngues; c) a atitude ditatorial que resultou na tortura e prisão de imigrantes que usassem qualquer língua alóctone. Somente a partir da promulgação da Constituição de 1988, identificamos a primeira ação para o reconhecimento da pluralidade linguística no/do Brasil, quando, embora a língua portuguesa tenha sido declarada o idioma oficial do Brasil, houve a garantia aos índios sobre o direito ao uso de suas línguas tanto em contextos escolares quanto fora deles, assim como a processos próprios de aprendizagem. A partir de então, a emergência de intervenções de política e planificação linguística analisadas a partir do eixo das ações governamentais é patente. Dentre as quais podemos citar: a) a defesa das línguas autóctones, normatizada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/1996), pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena (1999) e pelo Plano Nacional de Educação (2001); b) o ensino de línguas estrangeiras, regulado pela LDB 9394/96 e pela Lei nº 11.161 de 5 de agosto de 2005, que regula o ensino da língua espanhola, que deve ser gradativamente implementado nos sistemas de ensino da educação básica, com previsão de término de implementação para 2010; c) o reconhecimento da pluralidade lingüística, regulado pela Lei nº 145 de 11 de dezembro de 2002, quando três línguas indígenas (Nheengatu, Tukano e Baniwa) ganham a condição de idiomas oficiais no município de São Gabriel da Cachoeira (Amazonas); d) a inauguração das primeiras escolas públicas bilíngues português-espanhol no sul do país, em março de 2005;
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e) a Criação do livro de registro das línguas, através da Portaria nº. 586, de 11 de dezembro de 2006, publicada em Boletim Administrativo Eletrônico do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN nº. 330 - Edição Extra, de 09/02/2007.1 f) a instituição do Inventário Nacional da Diversidade Línguística através do Decreto nº 7.387, de 9 de dezembro de 2010. Em estudos anteriores (Savedra, 2007; Savedra, 2008 e Savedra et.alli., 2008, SAVEDRA, 2010), fora oportuna a análise mais detalhada do percurso histórico de algumas ações de política e planificação linguística havidas no Brasil desde o século XVII até os tempos atuais. Nestes estudos, também foram apresentadas e discutidas as diferentes formas de defesa de um idioma nacional, bem como o desenvolvimento de ações que assegurem a diversidade linguística, provocada pelas diferentes situações de contato bi/plurilíngues aqui explicitadas. Como já mencionado nos estudos acima, o reconhecimento e a defesa da pluralidade linguística nacional apenas torna-se uma questão governamental, a partir de fortes ações de intervenções acadêmicas, respaldadas por fóruns de instituições e de associações nacionais, como a Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN)2 e a Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB)3, que elaboram documentos, propondo planos emergenciais de ações, bem como por ações de intervenção propostas por organizações não governamentais, como as desenvolvidas pelo IPOL (Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística).4 Inúmeras são, em todo o território nacional, as experiências de ações de política e planificação linguística desenvolvidas por órgãos não-governamentais. No caso, destacaremos aqui a atuação da entidade civil denominda Organização Geral dos Professores Tikunas Bilíngues (OGPTB), que desde a sua fundação, no ano de 1986, vem desempenhando relevante papel social e polítco de suprir as demandas por educação de qualidade e formação adequada a populações indígenas do sudeste amazonense. Sediada na Aldeia de Filadélfia, Município de Benjamim Constant (AM), a organização congrega cerca de 400 professores indígenas das etnias Tikuna, Kokama, Kambeba e Kaixana, que distribuídos ao longo da região do Alto Rio Solimões, atuam em cinco municípios além de Benjamim Constant: Tabatinga, Amaturá, Santo Antônio do Içá, São Paulo da Olivença e Tonantins. A OGPTB mantém consolidados programas de educação básica, ensino superior e formação de professores, todos devidamente credenciados para funcionamento junto a órgãos governamentais competentes. Para tanto, conta com uma renomada equipe de consultores, 1
Para elaboração deste livro, estão envolvidos os seguintes órgãos: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan/MinC), Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC; Museu Emílio Goeldi / MCT; Museu do Índio /Funai/MJ; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) /MPOG; Fundação Cultural Palmares / MinC; Laboratório de Línguas da Universidade de Brasília (UnB); Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados; Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural; Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (IPOL), Unesco/ONU. 2 Os debates promovidos pela ABRALIN foram publicados por Scliar-Cabral (1999:15-16). 3 Os documentos síntese do I e II Encontro Nacional sobre Política de Línguas Estrangeiras, que foram realizados na UFSC em 1996 e na UCPEL em 2000 estão disponíveis no site da Associação: www. alab.org.br. 4 As pesquisas a ações desenvolvidas pelo IPOL estão disponíveis no site do Instituto: www.ipol.org.br.
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especializados nas mais diversas áreas do conhecimento, de reconhecidas Instituições de Ensino e Pesquisa em todo o país, dentre os quais podemos citar somente na área de Linguística, a participação de pesquisadores e professores do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Laboratório de Línguas da Universidade de Brasília (UnB). A entidade atua para atender com primazia aos seguintes objetivos1: Desenvolver programas educacionais que priorizem a defesa da terra, do meio ambiente e da saúde, o estudo da língua materna, da arte e da cultura, valorizando os saberes tradicionais e disponibilizando novos conhecimentos, técnicas e informações. Propiciar nas escolas indígenas o compromisso com as necessidades, problemas e planos de futuro das comunidades, por meio de ações que contribuam, efetivamente, para a melhoria das condições de vida da população. Considerar, no desenvolvimento de projetos e programas, a função da escola como agência de defesa dos direitos assegurados aos povos indígenas pela Constituição e pelas leis de educação escolar indígena. 2) Educação bilíngue e intercultural Tikuna: reflexões no campo das políticas de língua Empreendido, inicialmente, por professores indígenas da OGPTB (Organização Geral dos Professores Tikuna Bilíngues), o projeto para implantação do Curso de Ensino Médio para Escolas Tikuna do Alto Solimões recebeu apoio da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas e de consultoria especializada externa. As diretrizes pedagógicas do projeto estruturam-se no tripé: educação diferenciada, educação bilíngue e intercultural. Conforme Ouellet (1991, p.29), o conceito de educação intercultural designa toda a formação sistemática que visa desenvolver, quer nos grupos majoritários, quer nos minoritários: Melhor compreensão das culturas nas sociedades modernas; Maior capacidade de comunicar entre pessoas de culturas diferentes; Atitudes mais adaptadas ao contexto da diversidade cultural, através da compreensão de mecanismos psicossociais e dos fatores sócio-políticos capazes de produzir racismo; Maior capacidade de participar na interação social, criadora de identidades e de sentido de pertença comum à humanidade. Incorporada também ao discurso pedagógico contemporâneo, a proposta de trabalho com o bilinguismo projeta-se no cenário sócio-histórico, político-econômico e cultural do país, em decorrência de mobilização realizada em torno da construção de políticas públicas educacionais respaldadas pela própria legislação educacional (através de dispositivos específicos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LBDB 9394/96) e documentos oficias de ensino, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), além, é claro, de dispositivos
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Mais informações disponíveis em: http://www.ogptb.org.br/apresenta.htm
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da Constituição Federal do Brasil (1988). Nesse contexto, as políticas públicas educacionais figuram, na verdade, como ações de política e planificação linguística. A exemplo, como consta do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI, 1998, p.118), no que tange às ações de planificação linguística: A inclusão de uma língua indígena no currículo escolar tem a função de atribuir-lhe o status de língua plena e de colocá-la, pelo menos no cenário escolar, em pé de igualdade com a língua portuguesa, um direito previsto pela Constituição Brasileira. Inúmeros são os textos oficiais a abordar a questão. Dentre eles, citamos os dispositivos legais constantes dos Artigos 78 e 79 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9394/96), que apontam como objetivo do ensino bilíngue assegurar às comunidades indígenas ―recuperação de suas memórias históricas; reafirmação de suas identidades étnicas; valorização de suas línguas e ciências[...]‖, além de ―fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade linguística[...]‖, demonstrando o interesse pela preservação cultural desses povos em concomitância com a garantia de um etnodesenvolvimento, o que lhes permite uma espécie de participação qualificada, por meio de mecanismos de controle social no desenvolvimento de propostas endógenas, assim como na formulação e execução de políticas públicas que lhes dizem respeito. Quanto à proposta de educação bilíngue Tikuna, dentre os principais objetivos figuram: a preservação das manifestações culturais juntamente com o ensino do valor da língua, da cultura e das práticas de trabalho. Estes tópicos também constam de Resolução da Câmara da Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (Resolução CEB n.3, de 10 de novembro de 1999), que em seu Artigo 5 prevê que ―A formulação do projeto pedagógico próprio, por escola ou povo indígena, terá por base (dentre outros): [...]as características próprias das escolas indígenas, em respeito à especificidade étnico-cultural de cada povo ou comunidade, bem como às realidades sociolinguísticas, em cada situação.‖
3) LÍNGUAS E CULTURAS EM CONTATO: REPRESENTAÇÃO LINGUÍSTICA E (DES) CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA Em um mundo pós-moderno, volatitilidade e instabilidade marcam a concepção que se tem de identidade. Rajagopalan (2003, p.59), a esse respeito, assinala o momento de crise que cerceia a identidade afirmando que isso se atribui ―ao excesso de informações que nos circunda e, por outro lado, às instabilidades e contradições que caracterizam tanto a linguagem na era da informação como as próprias relações entre os povos e as pessoas.‖ Tais posicionamentos sustentam a visão de que os efeitos do processo de mundialização1 sobre a diversificação cultural e linguística (através da imposição/assimilação/influência
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O conceito de mundialização aqui tomado parte da proposição de MATTELART (2005), considerando um conjunto de processos dinâmicos que envolvem o crescimento da interdependência e intercâmbio (em alguns casos relativos) de recursos, conhecimento, experiência, etc. entre povos e suas culturas em um nível global.
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externa) tornam ainda mais tênues o topos demarcatório no campo das identidades, sejam elas linguísticas, sociais ou étnicas. O que corrobora o aspecto não estanque que envolve e marca a identidade, a constante transformação. Por isso, faz-se mister salientar o papel que cabe a nós, linguistas, desempenhar diante de situações sociolinguísticas e culturalmente complexas, a revisão de ―muitos dos conceitos e das categorias com as quais estamos acostumados a trabalhar, no intuito de torná-los mais adequados às mudanças estonteantes, principalmente em nível social, geopolítico e cultural [...] ‖ (Rajagopalan, 2003, p.25). Não destoando das proposições acima e como nítido resultado dos efeitos da mundialização, o exemplo do que ocorre com parte dos jovens da etnia tikuna (dos grupos envolvidos na presente pesquisa) mostra também a atuação de sujeitos empenhados em acelerar o dinâmico processo de contato com quem eles mesmos denominam de comunidade nacional, ou seja, a população não-indígena. É com a intensificação e operacionalização dessas mudanças na estrutura e organização social, impactando diretamente na língua e cultura do povo tikuna, que emergem o crescente desejo por acesso às redes de informação e comunicação, o domínio de novos códigos (incluindo novas línguas), conhecimentos e técnicas. Nesse sentido: É importante entender que as pessoas muitas vezes usam línguas, ou variedades distintas de uma mesma língua, para dizer aos outros que são diferentes, que têm uma identidade própria. Esse é um dos motivos pelos quais as escolas indígenas e não-indígenas no país devem reconhecer e respeitar a imensa diversidade linguística aqui existente. (RCNEI, 1998, p.107) No âmbito da ―Língua e Cultura‖, tópico assim proposto como temática de arguição por parte de consultores (externos) da área de educação a fim de sondar as representações e construtos sociais existentes sobre a temática, um grupo de professores bilíngues da OGPTB elegeu como resposta ser mais importante para seu povo: a preservação das manifestações culturais, o ensino do valor da língua, da cultura e de práticas de trabalho, o esforço dos professores no fortalecimento da língua e da cultura, bem como o incentivo à produção artesanal1. Consoante aos exemplos expostos, a asserção de Rajagopalan (2003, p.93) ratifica a concepção de língua neste adotada: A língua é muito mais que um simples código ou instrumento de comunicação. Ela é, antes de qualquer outra coisa, uma das principais marcas de identidade de uma nação, um povo. Ela é uma bandeira política (Rajagopalan, 1999e, 2001c; 2002e). [...] Nesse sentido, 1
Esse levantamento e reflexões destinaram-se à organização da Proposta Curricular das Escolas Ticunas (para o Ensino Fundamental) e do Projeto Político-Pedagógico dessas escolas. Foram realizadas como parte das atividades do Projeto Educação Ticuna – Programa de Formação de Professores Indígenas/OGPTB, durante as aulas das professoras Jussara Gomes Gruber e Sirlene Bendazzoli.
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a identificação com a língua não é externa, não é uma super posição – política ou social- mas, sim, uma marca linguística intrínseca. O apego do falante à sua variante e à sua língua é sintomático e denuncia o significado cultural que sua língua representa para ele. Quando questionados sobre: ―O que queremos para a sociedade tikuna, quanto à educação?‖, outro grupo de professores tikuna em curso de formação inicial, como num contínuo polifônico, afirma querer para seu povo: Continuar estudando para assegurar o futuro e também ajudar a comunidade, para não esquecer as tradições e também para ter novos conhecimentos; ser respeitado pelos brancos. Nossa sociedade deve ser bem organizada, com escola funcionando, com os alunos estudando a língua materna e o português, aprendendo seus direitos e leis já publicadas no Brasil1. Os excertos de narrativas contidos no Projeto político-pedagógico para a implantação do Ensino Fundamental Bilíngue entre escolas Tikuna da Região do Alto Solimões, desvelam visões de mundo diferentes das nossas, como explicitado na relação que este povo estabelece entre língua e trabalho, além de atribuir ao aprendizado de língua portuguesa (como L2) à condição de cidadania e defesa de direitos. Isso reflete a posição de Rampton apud Maher (2010, p.38) de que a ―identidade lingüística do sujeito bilíngue refere-se às interpretações culturais das relações que o falante estabelece com as línguas que compõem seu repertório verbal‖. Por essa razão: Ozolins (1996) argumenta a favor da necessidade de que os pesquisadores envolvidos com políticas linguísticas examinem o que as línguas na realidade significam para os grupos que investigam, que efeito elas têm em suas práticas cotidianas, como eles se sentem em relação a elas. (MAHER, 2010, p.38) Tais proposições teóricas que perfazem e integram o universo das representações, sejam elas linguísticas ou sociais, remetem ao que Houdebine-Gravaud apud Pereira (2009, p.104) denomina de imaginário linguístico: ―a autora desenvolve a idéia de sentimentos linguísticos sobre as línguas, sobre a valorização e a desvalorização das formas linguísticas‖. A produção literária do povo tikuna, bem como de material didático referente ao eixo Artes e Linguagens pertinente ao currículo bilíngue intercultural, exemplificam, através de narrativas acerca desses materiais, os sentimentos em relação à própria língua materna: "Aí imaginei que seria bom fazer um livro com histórias pequenas, próprias para as crianças que estão começando na escrita da nossa língua. Nós, Ticunas, gostamos de escutar os pássaros na mata. Então a gente se lembra das histórias. Enquanto estou vivo, quero passar para as crianças as histórias que aprendi com meu 1
Idem
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pai e com meus avós. Quero que as crianças fiquem com esse saber e nunca esqueçam a nossa língua.― (Getúlio Nino Ataíde) Acerca de outro material, com textos na língua tikuna, o livro Cururugü tchiga (histórias de sapos), também se destina ao Ensino Fundamental, contendo, ao mesmo tempo, informações que ampliam o conhecimento sobre a natureza e a cultura local, captamos o seguinte comentário: ―Neste livro trazemos para a escola o nosso conhecimento, a nossa arte, a nossa língua.‖ (Getúlio Nino Ataíde). Nos trechos acima expostos, o papel da representação linguística é notável, evidenciando a premente necessidade e/ou disposição por parte do informante para o resgate, ensino e valorização da língua materna através de elementos da cultura do próprio povo. Em situações como essa, fica clara a ponderação de Calvet (1999), quando distingue duas categorias que enfocam o fenômeno da representação linguística: práticas (linguísticas propriamente ditas), ou seja, toda a produção linguística dos locutores, ao passo que as representações se referem ao modo como os falantes concebem suas práticas, o que dialoga com o conceito de imaginário linguístico, representação etc. E, para além, fundamenta um importante campo a ser mais perscrutado no campo dos estudos aplicados de linguagem: língua, cultura e identidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS No plano espistemológico, quanto à sustentação de teorias no âmbito de representações linguísticas, reações subjetivas à linguagem, crenças, comportamentos ou atitudes linguísticas, ou quaisquer outras nomenclaturas pares em tema, Alalin Rey (2001, p.115) adverte que ―toda linguística indiferente às relações entre os sistemas de signos e as funções antropológicas que os implementam está condenada ao isolamento ou às ilusões‖. Este fato justifica o estímulo ao desenvolvimento de novas propostas teóricas e metodológicas, capazes de munir sociolinguistas e linguistas aplicados na investigação cada vez mais profunda das questões aqui debatidas. Estes ideais, certamente guiam a execução desta pesquisa que busca não só perscrutar as relações afetivas dos sujeitos envolvidos no estudo com as línguas materna e portuguesa, mas sim, através dos resultados, ser capaz de apontar novos horizontes que subsidiem práticas pedagógicas mais eficazes quanto ao ensino de português como L2, bem como de língua materna, auxiliando também no processo de conscientização sobre a importância de valorização de suas línguas e culturas.
REFERENCIAS BERNSTEIN, B. Langage et classes sociales. Paris: Ed. de Minuit, 1975 [1964]. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9394/96. Disponível http://www.scribd.com/doc/19690886/LDB-ATUALIZADA. Acesso em 18/11/2009 às 20:17 BRASIL. RESOLUÇÃO CEB Nº 3, DE 10 DE NOVEMBRO DE 1999 CALVET, Louis Jean.. Pour une écologie des langues du monde. Paris: Plon,1999.
em
:
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 33 CAVALCANTI, M. Estudos sobre educação bilíngüe e escolarização em contextos de minorias lingüísticas no Brasil. In: D.E.L.T.A. Vol. 15, N. Especial, 1999. (p.385-417). LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. Trad. Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherrre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008 [1972]. MAHER, Terezinha de Jesus Machado. Políticas de língua e políticas de identidade: currículo e representações de professores indígenas na Amazônia ocidental brasileira. Currículo sem Fronteiras, v.10, n.1, pp.33-48, Jan/Jun 2010 MATTELART, Armand. Diversidade cultural e mundialização; tradução Marco Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2005. OUELLET, Fernand. L'Éducation Interculturelle. Éssai sur la Formation des Maîtres. Paris: L' Harmattan, 1991. PEREIRA, Telma. Representação e aprendizagem de uma língua estrangeira: status da língua francesa em contexto urbano e de fronteira. Synergies Brésil n° 7, 2009. (pp. 101-111) RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma linguística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. SAVEDRA, M.M.G. Línguas de/em contato: uma trajetória de planificação e política linguística no Brasil. Caderno de resumos do V Congresso Internacional da ABRALIN, 2007(p.804). __________. Línguas majoritárias e minoritárias no MERCOSUL: a questão de línguas oficiais, línguas de trabalho e línguas de ensino.In HORA, D. & LUCENA, R.M. Política lingüística na America Latina. João Pessoa: Idéia Editora, 2008. (pp.115-126) SAVEDRA et.al., Plurilinguismo e Contatos Linguísticos- Ações da PUC-Rio. Anais do 1º Forum Internacional da Diversidade Linguística: por uma política para a diversidade linguística no ensino de línguas, 2008. (pp.786-783) SAVEDRA, M.M.G. & SALGADO, A.C.P. Sociolinguística no Brasil: uma contribuição dos estudos sobre línguas em/de contato. 1. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. SCLIAR-CABRAL, L. Definição da Política Linguística no Brasil. Brasileira de Linguística. n.23, 1999.(pp.07-17)
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MEMÓRIA E INTERDISCURSO: QUESTÕES E REFLEXÕES Fábio Araújo Oliveira1 RESUMO: Muitos autores abordam os conceitos de memória e interdiscurso como equivalentes. Orlandi (2003, p.31), por exemplo, afirma que a memória participa da produção do discurso e que é fundamental o modo como ela ―ativa‖ as condições de produção2. Para a autora, a memória relacionada ao discurso ―é tratada como interdiscurso‖. A partir disso, pesquisamos uma equivalência entre tais conceitos na análise do discurso de linha francesa, considerando: a) a noção de interdiscurso e a história de sua formulação; b) o conceito de memória em trabalhos de Pêcheux; e c) a análise do emprego do termo memória em um trabalho contemporâneo de análise do discurso desenvolvido no Brasil. A investigação mostra-nos uma atualização da análise do discurso decorrente, nesse caso, da consideração de materialidades não-verbais para estudo. Com tal pesquisa, pretendemos contribuir para uma análise crítica da teoria em questão, condição importante para o seu contínuo avanço. PALAVRAS-CHAVE: Análise do discurso. Memória. Interdiscurso. Verbal e não verbal. MEMORIA E INTERDISCURSO: PREGUNTAS Y REFLEXIONES RESUMEN: Muchos autores abordan los conceptos de memoria e interdiscurso como equivalentes. Orlandi (2003, p.31), por ejemplo, afirma que la memoria participa de la producción del discurso y que es fundamental el modo como ―activa‖ las condiciones de producción3. Para la autora, la memoria relacionada al discurso ―es tratada como interdiscurso‖. A partir de ello, hemos investigado una equivalencia entre dichos conceptos en el análisis del discurso de la línea francesa, teniendo en cuenta: a) la noción de interdiscurso y la historia de su formulación; b) el concepto de memoria en los trabajos de Pêcheux; y c) el análisis del empleo del término memoria en un trabajo contemporáneo de análisis del discurso desarrollado en Brasil. La investigación nos muestra una actualización del análisis del discurso derivada, en este caso, de la consideración de la importancia de estudiar no verbal. Con esta investigación tenemos la intención de contribuir a un análisis crítico de la teoría en cuestión,una condición importante para su progreso continuo. PALABRAS CLAVE: Análisis del discurso. La memoria. Discurso. Verbal y no verbal. 1 Introdução Depois de pouco mais de três décadas de história no Brasil, a Análise do Discurso (AD) é uma teoria consolidada. No que diz respeito à linha francesa de vertente pecheutiana, as análises na área foram bastante desenvolvidas, constituindo um cenário amplo, variado e pertinente, mas a teoria não avançou muito: algumas questões teóricas colocadas pelo próprio Pêcheux, precursor da AD, perderam a inquietação própria do seu processo de construção e se 1
Professor Assistente de Língua Portuguesa da Universidade do Estado da Bahia – Uneb/ DCH/ Campus V. Mestre em Letras – UFBA e Doutorando em Linguística – Unicamp; faoliveira.uneb@uol.com.br. 2 A autora distingue as condições de produção em sentido estrito e em sentido amplo. 3 La autora distingue las condiciones de producción en sentido estricto y en sentido amplio.
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acomodaram, resultando em algo já relativamente estabilizado, como acontece com a noção de sujeito. Com os conceitos de memória e interdiscurso, todavia, há um debate mais profícuo, o que atua na atualização da teoria. É nesse debate que se inscreve o nosso trabalho. 2 Um percurso Em Análise do Discurso: princípios e procedimentos, uma importante obra introdutória dessa teoria, sua autora, Eni Orlandi, ao abordar o interdiscurso diz que: A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base no dizível, sustentando cada tomada da palavra (ORLANDI, 2003, p. 31). Como vimos, para a autora, memória, interdiscurso e memória discursiva podem designar a mesma coisa na Análise do Discurso. Utilizando os próprios conceitos de interdiscurso e memória, podemos afirmar que tudo que já foi dito sobre eles pode retornar e (re)significar no fragmento de texto destacado anteriormente. Em relação à AD especificamente, o já-dito mencionado por Orlandi já é uma formulação de Pêcheux (In GADET e HAK, 1997) na obra Análise automática do discurso (AAD-69). Na época em que esse texto foi publicado, ainda não havia uma teoria do discurso nem existia o conceito de interdiscurso, mas Pêcheux já refletia que: Por oposição à tese ―fenomenológica‖ que colocaria a apreensão perceptiva do referente, do outro e de si mesmo como condição prédiscursiva do discurso, supomos que a percepção é sempre atravessada pelo ―já-ouvido‖e o ―já-dito‖, através dos quais se constitui a substância das formações imaginárias enunciadas (...) (ibidem, p. 86) O já-dito de Pêcheux marca o início de uma longa reflexão na AD até chegar à formulação de interdiscurso/intradiscurso, como veremos no decorrer desse trabalho. A partir de reflexões sobre a pressuposição, Pêcheux substituiu esse termo filosófico e lógico, o já-dito, pelo termo pré-construído, desenvolvido também por Paul Henry. Inscrito no novo terreno do discurso, portanto despido de qualquer sentido lógico, o pré-construído ―permite pensar e apreender o interdiscurso, o conceito chave, ainda não formulado‖, como nos diz Maldidier (2003, p. 36), ―mas sem dúvida o mais fundamental de toda a construção teórica de Michel Pêcheux‖, ainda conforme a autora (ibidem, p. 36). É no livro Semântica e discurso, escrito por Pêcheux, que o conceito de interdiscurso foi explorado. O autor propôs chamar de interdiscurso, baseando-se em Althusser, (...) a esse ―todo complexo com dominante‖ das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdadecontradição- subordinação que (...) caracteriza o complexo das formações ideológicas. (PÊCHEUX, 1988, p. 162) Isso é fundamental para a compreensão da interpelação do indivíduo em sujeito. Tal procedimento ocorre pela identificação do sujeito com a formação discursiva em que ele é
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constituído, ou seja, com aquela que o domina. A identificação sustenta-se no fato de que os elementos do interdiscurso (pré-construído e processo de sustentação) são reinscritos no discurso do próprio sujeito, instaurando sua unidade imaginária. O conceito de interdiscurso é importante também ao enfocar a ―lei da desigualdadecontradição- subordinação‖, para a compreensão da ―intricação‖ das formações discursivas nas formações ideológicas. Associado ao conceito de interdiscurso, aparece, em Semântica e discurso, o conceito de intradiscurso, que é definido como: (...) o funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o conjunto dos fenômenos de ―co-referência‖ que garantem aquilo que se pode chamar o ―fio do discurso‖, enquanto discurso de um sujeito. (ibidem, p. 166) O intradiscurso é o lugar em que a forma-sujeito absorve/esquece o interdiscurso no intradiscurso. Em outras palavras, a formulação do sujeito absorve/esquece os sentidos jáditos que a constituem. Em síntese, Orlandi diz que: Todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). E é nesse jogo que tiram seus sentidos. (ORLANDI, 2003, p. 33) Segundo Pêcheux (1988), o intradiscurso possui um funcionamento específico, que só é possível devido à própria especificidade da materialidade da língua: no texto, podem ser estabelecidas relações co-referenciais, de articulação e de encaixamento, por exemplo. Nesse ponto, talvez se apresente uma questão: à medida que se tornam equivalentes memória e interdiscurso, as possibilidades de formulação da memória encontram-se no terreno do intradiscurso, mas uma série de registros da memória a conduzem a outros territórios: fotografia, dança, arquitetura etc. Assim, um entrecruzamento entre verbal e não-verbal põe em tensão a noção de intradiscurso. 3 O verbal e o não-verbal Pêcheux (In: ACHARD, 1999) aborda a relação entre verbal e não-verbal no artigo Papel da memória. Considerando o entrecruzamento dos objetos texto e imagem, e de suas memórias, Pêcheux aponta uma dificuldade para a Análise do Discurso: a de tanto se referir explicitamente à linguística quanto ao simbólico no sentido geral. É interessante observar que Pêcheux, nesse texto, não utiliza o termo interdiscurso, mas utiliza o termo memória, cuja definição apresentamos a seguir: (...) a memória seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ―implícitos‖ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível. (ibidem, p. 52)
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O autor problematiza o conceito de memória ao interrogar onde se situariam os ―implícitos‖, elementos ―ausentes por sua presença‖ na sequência lida. Também problematiza ao perguntar por que a AD ―não dirigiria seu olhar sobre (...) os procedimentos de montagem e as construções antes que sobre as significações‖ (idem). Ao abordar a imagem, Pêcheux (ibidem, p. 55) considera que o ―discurso a atravessa e a constitui‖, portanto ela é opaca e muda, ―aquela da qual a memória ‗perdeu‘ o trajeto de leitura‖, e não mais a imagem transparente. Uma pergunta finaliza a questão da relação entre imagem e o texto nesse artigo de Pêcheux: (...) no entrecruzamento desses dois objetos [imagem e texto], onde estamos tecnologicamente e teoricamente, hoje, com relação a esse problema que, após Benveniste, Barthes designou com o termo ―significância‖? (idem) Parece que à medida que o autor vai considerando um entrecruzamento entre verbal e não-verbal, o conceito de intradiscurso vai saindo de foco, o que favorece a equivalência entre os conceitos de interdiscurso e memória. Por outro lado, o autor valoriza a análise dos ―procedimentos de montagem‖ e das ―construções‖, terreno no qual o intradiscurso habita. 4 Uma brevíssima análise A fim de verificarmos na Análise do Discurso como é tratada a ―memória‖ relacionada a formas materiais da língua e a formas materiais não-verbais, analisaremos o artigo Espaços interditados e efeitos-sujeito na Cidade, produzido por Souza (In: ORLANDI(org.), 2001). Nele, o autor se propõe a analisar ―o aparecimento crescente de grades de ferro cercando praças públicas, jardins, monumentos, entradas de edifício, na cidade de São Paulo‖ (ibidem, p. 71) Segundo o autor, esse fenômeno permite refletir sobre ―como os limites entre espaços abertos e fechados estão sendo significados diferentemente no nível da forma material do significante.‖ (idem) (grifo nosso). Para Souza (ibidem, p. 72), ―sustentada no pré construído de que é preciso impedir a introdução do inimigo‖, a grade de ferro, ao interditar a passagem de pedestres e sob o ―efeito transverso de discursos sociais‖, leva-os a se construírem como ―sujeitos na exterioridade, ou seja, (...) a identificar-se como os que ficam do lado de fora.‖ Na sua análise, o autor parte de duas diferentes formas de discursividade: o visível e o enunciável. Assim, considera dois registros de memória: a fotografia e enunciados: ―cada um a seu modo, permite observar a intervenção da ordem simbólica no percurso do pedestre no instante preciso de uma travessia em logradouros públicos.‖ (ibidem, p. 73) Entretanto, os dois registros se cruzam numa mesma memória discursiva e sustentam modos enunciativos que se conectam pela intervenção do verbal sobre o não-verbal. Como se observa, o conceito de discurso compreende o verbal e o não-verbal. É interessante observar que, embora tanto as formas discursivas quanto os seus registros sejam diferentes uns dos outros, a memória é a mesma, pois as formas materiais se entrecruzam pela intervenção do verbal sobre o não-verbal. Perguntamos, agora, se haveria, em uma sociedade verbal como a nossa, a possibilidade de sustentação num pré-construído exclusivamente não-verbal. Em outras palavras, se haveria a possibilidade de uma memória que não estivesse sujeita à intervenção do verbal. Por outro lado, se tratarmos a memória, como acontece predominantemente em nossa sociedade, sempre como ―já-verbal‖, ou seja, sendo sempre discursiva, pois mesmo existindo outro registro material, o verbal intervém sobre ele, quando encontramos uma
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designação como ―memória metálica‖ ou ―memória fotográfica‖, devemos relacioná-las a novos conceitos (pondo em foco a teoria), ou entendê-las como novas formas materiais de registro da memória (pondo em foco a metodologia)? Notamos que nos casos de entrecruzamento de registros do verbal com o não-verbal, o conceito de intradiscurso não funciona totalmente, já que ele se limita à especificidade de um sistema: o linguístico. É interessante observar que Souza, em nenhum momento de seu texto, utiliza o termo intradiscurso. Nesse texto, o conceito é esquecido; e isso quer dizer alguma coisa. Em seu trabalho, o autor também compõe um diagrama de coleta fotográfica mostrando ―a foto funcionando na análise como um dispositivo material, assim como funcionam as formas materiais da língua‖ (ibidem, p. 74). Aqui, a questão que se coloca é se tal aproximação não silencia especificidades da língua não encontradas na fotografia, ou viceversa. 5 Conclusão Parece-nos que Pêcheux, ao formular inicialmente o conceito de discurso e interdiscurso, só considerou a materialidade linguística. À proporção que a teoria do discurso se debruçou sobre outras materialidades, a questão da relação da memória (constituição) com a atualização (formulação) na constituição dos sentidos limitou a noção de intradiscurso. No entanto, mesmo que se fale de atualização/formulação, acreditamos que ainda não há um conceito na AD que dê conta das especificidades de cada tipo de materialidade a ser trabalhada. Também não sabemos se isso é pertinente, mas é válido observar. Para finalizar, queremos dizer que o estudo feito nesse trabalho é modesto demais para acrescentar grandes contribuições a respeito de uma discussão sobre memória e interdiscurso no campo da AD. Entretanto, que sirva para uma reflexão sobre a importância fundamental desses conceitos na caracterização e atualização da teoria.
6 Referências MALDIDIER, D. (Re)ler Michel Pêcheux hoje. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas, SP: Pontes, 2003. ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 5ª ed. Campinas, SP: Pontes, 2003. PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F. e HAK, T. (orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani...[et al.] 3ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et alii. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1988 (1ª edição em francês 1975). PÊCHEUX, M. Papel da memória. In: ACARD, P. ... [et. al.] Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999. SOUZA, P. Espaços interditados e efeitos-sujeito na cidade. In: ORLANDI, E. P. (org.) Cidade atavessada: os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas, SP: Pontes, 2001.
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OBSERVAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A TÉCNICA NARRATIVA N‟O ATENEU, DE RAUL POMPÉIA Franco Baptista Sandanello 1 RESUMO: A confusão aparente da fortuna crítica do romance O Ateneu, de Raul Pompéia, no tocante a seus aspectos narrativos, parece ter sobrevalorizado ora a biografia do autor ora o contexto social de publicação da obra como eixos fundamentais de interpretação. O objetivo do presente artigo é, além de contribuir para o esclarecimento deste suposto equívoco com um levantamento da recepção crítica do romance, propor uma leitura da narração d‘O Ateneu a partir do modelo de análise presente nas obras teóricas de Gérard Genette Discurso da narrativa e Nouveau discours du récit, como forma de esclarecer as nuanças de focalização entre o narrador (adulto) e o protagonista (menino). Palavras-chave: Ateneu, focalização, Pompéia, Genette. PRELIMINARY OBSERVATIONS ON THE NARRATIVE TECHNIQUE OF O ATENEU, BY RAUL POMPÉIA ABSTRACT: The apparent confusion of the critics of O Ateneu, by Raul Pompéia, regarding its narrative aspects, seems to have overestimated either the biography of the writer either the work‘s publication context as essential elements of interpretation. The aim of this article is, besides its intent to contribute to the understanding of this alleged mistake with a review of its critical fortune, to propose an interpretation of O Ateneu‘s narration following the propositions of Narrative discourse and Narrative discourse revisited by Gérard Genette, as a means of clarifying the focalization aspects of the work and the dialogue between its narrator (adult) and its main character (boy). Key-words: Ateneu, focalization, Pompéia, Genette.
INTRODUÇÃO Ora compreendido pela crítica a partir do discurso de seu próprio autor, ora a partir de uma narração estreitamente vinculada à sociedade brasileira do Segundo Reinado, o processo narrativo d‘O Ateneu de Raul Pompéia despertou uma série de contradições em sua fortuna crítica. No primeiro caso, a aparente proximidade entre a pessoa do escritor e a voz do narrador protagonista contribuiu para uma reiterada análise dos pontos de contato entre o ―Eu‖ de Pompéia e o ―eu‖ de Sérgio, levando à ilusão de interpretá-los como partes distintas de uma mesma vingança pessoal; no segundo, o caráter ―histórico‖ inerente ao subgênero do romance de memórias em que se insere expressamente o romance por intermédio de seu subtítulo, ―Crônica de Saudades‖, levou a um apagamento gradual das condições subjetivas 1
Mestrando em Estudos Literários na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Julio de Mesquita Filho – UNESP – campus Araraquara, e licenciado em Letras pela Universidade Federal de São Carlos – USFCar (2009). O presente artigo é resultado da disciplina ―Aspectos da Narrativa‖ ministrada no primeiro semestre de 2010 pela Prof.ª Dr.ª Maria Célia de Moraes Leonel, a quem agradecemos pelas valiosas observações e sugestões. E-mail: franco@lancernet.com.br
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do mesmo, invertendo a ordem das relações narrativas e equiparando a narração de Sérgio a uma arma de resistência ideológica ao meio social das elites brasileiras (ou, ao menos, à versão suposta e sofrivelmente oficial dos fatos veiculada pelos colégios do período). Em ambas, um mesmo erro de leitura do texto narrativo dificulta a absorção das particularidades da obra: a falta de discernimento entre aquele que vê (Sérgio menino) e aquele que fala (Sérgio adulto), i.e., aquele que age e interage com as demais personagens da obra e aquele que interpreta posteriormente as sensações e experiências do primeiro, fornecendo uma versão parcial e definitiva do passado. A fim de esclarecer as nuanças deste impasse, faremos um breve levantamento inicial das diversas interpretações do foco narrativo no romance, aprofundando e problematizando suas contradições para, num momento posterior, arriscarmos uma análise nossa segundo a proposta de método presente em Discurso da narrativa e Nouveau discours du récit, de Gérard Genette, cuja capacidade em distinguir da problemática da narração (voz que expõe, organiza e comunica a narrativa) aquela outra do ―foco narrativo‖ (canal de informação / ―focalização‖ pelo qual as informações são dadas a conhecer) constitui um dos principais méritos teóricos no campo da teoria da narrativa e, mais particularmente, a principal razão de sua aplicabilidade à nossa proposta. A NARRAÇÃO D‟O ATENEU E SUAS INTERPRETAÇÕES A primeira grande tendência interpretativa do foco narrativo no romance de Raul Pompéia, seja pela questão já suscitada a respeito das semelhanças entre a pessoa do escritor e a voz do narrador, seja pela intimidade e convivência do autor e de seus familiares com seus primeiros intérpretes, marcou-se por um viés biográfico. Pautando-se na compreensão da personalidade do escritor como ponto fundamental de organização da narrativa, podemos apontar como alguns de seus intérpretes mais representativos Araripe Jr., Eloy Pontes e Olívio Montenegro. Em ―O Ateneu e o romance psicológico‖, estudo exaustivo a respeito do romance publicado na seção ―Novidades‖ da Gazeta de Notícias de 06/12/1888 a 08/02/1889, Araripe Jr. (1978, p. 170) avalia o narrador Sérgio a partir do temperamento de Pompéia, afirmando ser o seu papel na obra o de ―um eufemismo do escritor - uma objetivação, inconsciente, disfarçada, do pânico que atua no espírito do romancista toda vez que ele é obrigado a considerar direta ou indiretamente o meio‖. Desenvolvendo esta comparação, Araripe Jr. (1978, p. 174-175) aponta que o conflito entre Sérgio e o internato acontece à maneira daquele travado entre Raul Pompéia e o Rio de Janeiro do final do século XIX: o embate entre um ser ingênuo e sensível e uma sociedade repleta de defeitos. Se, por um lado, o crítico avalia que tal desajuste depara-se com a imaginação privilegiada de Sérgio / Raul e passa a ser redirecionado à distorção narrativa de suas memórias, reduzindo os elementos da sociedade a uma galeria de tipos caricaturizados, por outro, ressalva que ―tudo isso nasce por contragolpe de um grande e poderoso foco de lirismo‖, que faz com que ―a mor parte dos incidentes que tornam odioso o Ateneu do Dr. Aristarco [sejam] mais reflexo das sensações experimentadas pelo aluno do que produto da estrutura do instituto‖. Sem a mesma perspicácia de Araripe Jr. em ultrapassar os fundamentos biográficos de seu estudo e, com isso, entrever uma problemática propriamente narrativa do romance, Eloy Pontes (1935, p. 211-213) leva mais adiante a leitura biográfica d‘O Ateneu em um capítulo de sua biografia do escritor, A Vida Inquieta de Raul Pompéia, onde afirma que ―o romancista procura expulsar todos os recalques, todas as emoções, todos os complexos, que os anos não
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desvaneceram‖ dentro dos limites da obra, prenunciando nestas exteriorizações aspectos clínicos estudados somente anos depois pela psicanálise. Como exemplos de tal transposição, que, aliás, prefere deixar sem comentários no plano do mero reflexo pessoal, aponta as personagens Ângela e Ema como fixações das obsessões sexuais do escritor, julgando na primeira uma manifestação de seu ―diagnóstico de recalque‖ sexual e na segunda o ―fenômeno de transferência‖ de seu ―complexo de Édipo‖ (Pontes, 1935, p. 204-205). Por fim, Olívio Montenegro (1953, p. 116-117), em capítulo de seu ―O Romance Brasileiro‖ intitulado ―Raul Pompéia‖, parte das conclusões psicológicas da biografia de Eloy Pontes e afirma que o narrador do romance, à semelhança do escritor, observa os seres ficcionais a partir de um olhar tímido e orgulhoso, distorcendo-os em sua representação como ―sempre, quase todos, uns maus homens, rudemente deformados pelas curiosidades mais safadas do sexo, e pelas dissimulações mais malévolas do caráter‖. A partir desta chave essencialmente negativa de leitura, O. Montenegro (1953, p. 117) compreende a narrativa d‘O Ateneu como profundamente intoxicada pelo ―fanatismo‖ de seu autor, cujo estilo caricaturesco não poderia senão apontar para o ―exagero perverso de um traço que se quer impor como traço característico e único‖, i.e., a versão dos fatos manipulada pelo narrador. Assim, a narração do romance traduz-se em ―um desejo de vingança‖ embebido ―numa forma pretensiosa de dizer‖, e ―não parece infundir nenhuma verdadeira vida ao que é abstrato, como não parece infundir nenhuma realidade aos fatos, embora objetivos‖ (Montenegro, 1953, p. 120-121). Encerrando-se, pois, em uma leitura cega às peculiaridades da narração do romance, esta primeira linha interpretativa acaba por prescrever quais elementos na narração de Sérgio têm maior ou menor objetividade / realidade, comparando-os, sem mais, à personalidade de seu escritor. Atenta aos limites coercitivos deste ponto de vista, uma segunda linha interpretativa buscou posteriormente avaliar o foco narrativo do romance não mais como instrumento de vingança pessoal de seu autor, mas, invertendo os termos da equação, como arma de resistência ideológica coletiva à sociedade brasileira do Segundo Reinado. Dentre seus principais intérpretes podemos indicar Flávio Loureiro Chaves e Alfredo Bosi. Em ―O ‗traidor‘ Raul Pompéia‖, ensaio incluído no livro publicado em 1978 O brinquedo absurdo, Flávio Loureiro Chaves passa a analisar o microcosmo da experiência pessoal do narrador a partir do macrocosmo da sociedade brasileira e de seus substratos ideológicos. Para tanto, F. L. Chaves (1978, p. 63) toma um ponto de vista mais atento à temporalidade da narrativa e assinala que, se ―revolvendo o passado‖, o narrador experimenta um ―estranhamento‖ ao reconhecer no colégio um meio diferente do lar doméstico, ―é precisamente essa reação do contraste, induzindo o narrador ao correlato conceito de repugnância, que abre o abismo entre o indivíduo e a sociedade‖, parcialmente expresso no subtítulo ―Crônica de saudades‖. Enfatizando ―por um lado, o mundo social corrompido e invivível e, por outro, a desagregação da personagem que se enganou na leitura da alegoria [do internato] quando um dia, imaginou transferir para aí os ideais infantis‖, Chaves (1978, p. 65) afirma ser o papel do narrador-protagonista do romance o de um típico ―herói problemático‖, à maneira de Lucien Goldmann e G. Lukács: um crítico, direto ou indireto, do ―individualismo burguês‖ inerente às práticas do diretor e dos demais colegas. Na mesma esteira de F.L. Chaves, Alfredo Bosi (1988, p. 34), no ensaio ―O Ateneu, opacidade e destruição‖ de seu livro Céu, Inferno, aponta como fundamento da narração de Sérgio a crise de adaptação do protagonista a um meio escolar completamente distinto do doméstico e afirma que seu ―objetivo principal [é] contar a história dessa luta‖, bem como sua ―mensagem ideológica [é] dizer que ela é cruel, embora necessária‖. Para o crítico, enquanto no colégio predomina a seleção dos fortes sobre os fracos à semelhança do ―regime da
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sociedade burguesa‖, em O Ateneu prevalece a voz de um narrador que se rebela contra a opressão individual gerada pelas doutrinas do colégio num discurso que compreende ―a arte de narrar [...] como possibilidade de destruir‖ (Bosi, 1988, p. 57). Sob este signo da destruição, A. Bosi (1988, p. 57) aproxima Sérgio de Raul Pompéia e vê em ambos uma mesma necessidade de responder coerente e artisticamente a um meio avesso a valores humanos e à arte, compreendendo, por extensão, toda crítica de um e de outro ao internato e à sociedade nos limites do ―grau de terrorismo que lhe[s] é possível exercer‖. Reduzindo, pois, a problemática da narração à condição social e ideológica do artista, esta segunda linha interpretativa acaba por avaliar os elementos narrativos d‘O Ateneu conforme sua maior ou menor crítica a outros contextuais, numa repetição pelo avesso do mesmo erro anterior (biográfico). No intuito de escapar a este ponto de vista igualmente redutor, um terceiro grupo de críticos (e não uma terceira linha interpretativa, respeitando seu intuito ―comum‖ de ultrapassar os reducionismos anteriores) buscou avaliar o mecanismo narrativo da obra não exclusivamente por suas relações com a sociedade brasileira do Segundo Reinado, mas por um exame mais atento de seus elementos especificamente literários. Dentre estes, podemos destacar as leituras de Roberto Schwarz e Silviano Santiago. Em ensaio escrito em 1960 e publicado cinco anos depois em livro, ―O Atheneu‖, Roberto Schwarz (1981, p. 26-27), nem desvalorizando a especificidade dos objetos em prol de uma subjetividade individual, nem anulando o papel do indivíduo em favor de uma representação plena, coletiva, constata simplesmente que há no romance uma presença simultânea de narrador e mundo narrado, de onde surge o que considera seu problema central: a coexistência da ―ruptura entre a experiência adulta e infantil‖ e da ―continuidade entre as duas e sua coincidência‖. Para o crítico, embora o narrador seja a mesma pessoa da personagem central, Sérgio adulto e menino, ―a distância temporal a separá-los faz que seja objetivada a meninice pela maturidade‖, situando os eventos passados numa ―ordem perfeita, com critério realista na seleção dos episódios‖, a fim de ressaltar os momentos decisivos para sua formação (Schwarz, 1981, p. 27). Contudo, contaminada pela iniqüidade do mundo passado do internato, a evocação presente dos momentos decisivos para a formação de Sérgio ―perde, parcialmente, sua função de indicar os processos do real‖, limitando-se à reprodução dos mesmos recursos retóricos utilizados pelo diretor e pelos professores do Ateneu: ―o estilo pessoal de Aristarco e o estilo do livro, que dá conta de sua pessoa, [são] uma e a mesma coisa‖ (Schwarz, 1981, p. 29-30). Finalmente, em ensaio publicado em 1968, ―O Ateneu: contradições e perquirições‖, Silviano Santiago afirma ser contraditório o estilo rebuscado do romance dentro de uma narração autodiegética, i.e., sem demarcar uma falta de aprendizado literário do narrador à semelhança da ingenuidade e incipiência do protagonista menino. Para Santiago (1972), tal rejeição do estilo do personagem pelo narrador deriva de uma necessidade de Sérgio-adulto de demonstrar sua integridade presente perante o leitor, definindo ―a ambigüidade do emprego do eu como pessoa de narração no Ateneu‖ como a de ―um agressivo romance em que o narrador se esquece de si para analisar imaginariamente os sentimentos e as emoções do Outro‖. Desta forma, o julgamento de Sérgio-menino e de todos os demais personagens passa a ser feito absoluta e exclusivamente no nível da narração, uma vez que ―é Sérgio-narrador que critica Sérgio-personagem e que espera receber o beneplácito do leitor e do autor‖, valendo-se de um estilo sofisticado, adulto e irônico em todo diverso de um possível estilo adolescente (Santiago, 1972, p. 24). Transferindo, portanto, a discussão para uma análise das relações de focalização entre narrador e personagens, este terceiro e último grupo de críticos confirma as contradições
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inerentes a sua própria economia interna de romance de memórias, equivocadamente autobiográfico, e demanda uma revisão do diálogo que se estabelece entre o discurso adulto de Sérgio e sua narrativa infantil no internato. A NARRAÇÃO D‟O ATENEU E SEUS PROBLEMAS: ROTEIROS DE ANÁLISE Um primeiro e mais evidente caminho de análise da narração d‘O Ateneu segundo os dois livros indicados de Gérard Genette seria o de compreender o protagonista Sérgio como focalizador da narrativa adulta à maneira de Mieke Bal (1997, p. 143), donde, logicamente, o narrador extrairia seu material memorialístico. Contudo, como apontado pelo próprio G. Genette (1983, p. 49), ―o instrumento desta (eventual) seleção‖ [focalização] é ―precisamente uma seleção da informação narrativa em relação àquilo que a tradição chamou de onisciência [...], isto é, uma espécie de canal / gargalo de informação que não deixa passar senão o que é autorizado pelo seu contexto‖. 1 Ora, apesar de pertinente, esta observação demandaria uma análise de cada situação rememorada pelo narrador Sérgio (ou, pelo menos, de uma parte considerável delas), o que escapa aos limites desta discussão. Se aceitarmos, em contrapartida, a sugestão oferecida por Roland Barthes (1970) em ―Par où commencer?‖, ensaio publicado no primeiro número da revista Poétique, podemos encontrar, inversamente, um roteiro reduzido de análise, pautado basicamente em dois momentos: nos pontos inicial e final do que seria nosso percurso. Neste segundo caminho, que não representa um desvio de método em relação ao primeiro, mas apenas um desvio de etapas (em outras palavras, uma alteração quantitativa, e não qualitativa), é que buscaremos construir nossa leitura da focalização / foco narrativo do romance segundo G. Genette, avaliando como o percurso das memórias de Sérgio pode refletir as experiências vividas pelo protagonista, seja através de uma teorização /objetivação de seu caráter memorialístico (como ressaltado por Roberto Schwarz a respeito da dupla inserção temporal do narrador), seja através de um desenvolvimento / esmaecimento de suas experiências passadas na narrativa (como indicado por Silviano Santiago a respeito da luta do narrador por uma aprovação de si próprio). Neste sentido, e de um ponto de vista abrangente, a leitura que aqui esboçamos se integra ao terceiro grupo assinalado anteriormente, rejeitando as limitações das duas principais linhas interpretativas da crítica d‘O Ateneu. Para tanto, elencaremos os dois primeiros e os dois últimos parágrafos da narração e da diegese do romance, a fim de observar, repetimos, tanto uma conceituação quanto uma construção temporal características desta ―Crônica de Saudades‖. A NARRAÇÃO D‟O ATENEU E SEUS PROBLEMAS Abrindo o romance, uma digressão do narrador, separada do início da diegese por um espaçamento duplo, relativiza o papel das ―saudades‖ na escrita memorialística a partir de uma fala relatada logo na primeira linha da obra. Vejamos o trecho:
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―Par focalization, j‘entends donc bien une restriction de ‗champ‘, c‘est-à-dire en fait une selection de l‘information narrative par rapport à ce que la tradition nommait l‘omniscience, terme qui, en fiction pure, est, littéralement, absurde (l‘auteur n‘a rien à ‗savoir‘, puisqu‘il invente tout) et qu‘il vaudrait mieux remplacer par information complète – muni de quoi c‘est le lecteur qui deviant ‗omniscient‘. L‘instrument de cette (éventuelle) selection est un foyer situé, c‘est-à-dire une sorte de goulot d‘information, qui n‘en laisse passer que ce qu‘autorise sa situation‖ (grifos do autor).
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―Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta‖. Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico [...] Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado, beirando a estrada da vida (Pompéia, 1981, p. 29,31). Definindo o comportamento das memórias no romance, a concepção de tempo implicada nesta digressão de Sérgio é eminentemente estática (―Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas‖), isto é, de indiferenciação entre os fatos passados ou futuros perante a ―verdade‖ da luta constante com o mundo, prenunciada por seu pai (o que invalida, a rigor, um sentido saudoso que poderia advir da narração de sua infância). Logicamente, esta é a posição que se deveria concluir de um narrador cronista-autodiegético, observador e relator de seu próprio passado (ainda que distante temporalmente dele 1), pois, como diz G. Genette (1983, p. 71), há regiões ―fronteiriças, mistas ou ambíguas‖ da narração como esta do ―cronista‖, em que o narrador ―sempre está na iminência de uma participação, ou ao menos de uma co-presença na ação, que é propriamente aquela do testemunho‖ 2 (iminência esta pressuposta na posição temporal tomada pelo narrador Sérgio, em que a ―verdade‖ do momento presente da narração não sobrepõe a ―verdade‖ anterior do passado da diegese - ―a atualidade é a mesma em todas as datas‖, mas com ela estabelece um contínuo mutuamente dependente). É ainda esta configuração de ―testemunho‖ / confluência entre o discurso e a narrativa d‘O Ateneu que se pode depreender do início de sua diegese, imediatamente posterior ao trecho comentado. Vejamos outra vez: Eu tinha onze anos. Freqüentara como externo, durante alguns meses, uma escola familiar do Caminho Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai, distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia. Entrava às nove horas timidamente, ignorando as lições com a maior regularidade, e bocejava até às duas [...]. Ao meiodia, davam-nos pão com manteiga. Esta recordação gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou dos meses de externato; com a lembrança de alguns companheiros – um que gostava de fazer rir à aula, espécie de mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas costas da mão esquerda, uma protuberância calosa que tinha; outro, 1
A distância temporal entre narrador e protagonista, mais precisamente, é de quinze anos, conforme explicitado por Camil Capaz em sua biografia do autor. Segundo o crítico, a narrativa tem início em 1871, ano em que a princesa Isabel ocupa a regência do Império por motivos de saúde de D. Pedro II. A primeira festa do colégio presenciada por Sérgio atesta a perspicácia desta observação. Assim, a inserção cronológica da narrativa perpassa os anos de 1871 a 1873; datada de janeiro a março de 1888, a narração tem lugar quinze anos após a conclusão da diegese; dezessete, se comparada a seu início. Cf. Capaz, 2001, p. 108. 2 ―[…] situations frontalières, mixtes ou ambigues: celles du chroniqueur contemporain, dont je viens d‘évoquer quelques exemples, toujours au bord d‘une participation, ou pour le moins d‘une presence à l‘action qui est proprement celle du témoin […]‖. (grifos nossos).
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adamado, elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco, engomadinho e radioso, fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por botões de madrepérola (Pompéia, 1981, p. 31). Apesar de obviamente não contar com uma linguagem infantil, próxima daquela do protagonista de onze anos, ao longo de todo o trecho o foco da percepção recai sobre o menino Sérgio, que têm expostas suas atitudes e percepções mais gerais a respeito de sua primeira experiência escolar, desde o tédio cotidiano (―bocejava até às duas‖) até o prazer de comer pão com manteiga (―Esta recordação gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou dos meses de externato‖). Seus colegas são apresentados a partir de seu ponto de vista, exterior (―um que gostava de fazer rir à aula, espécie de mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas costas da mão esquerda, uma protuberância calosa que tinha‖, ―outro, adamado, elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco, engomadinho e radioso‖), assim como (e inclusive) suas professoras inglesas, cuja caracterização inicial, talvez sarcástica, corrobora sua falta de atenção ao método de ensino por elas aplicado (―[...] algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai, distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia. Entrava às nove horas timidamente, ignorando as lições com a maior pontualidade [...]‖). Estabelecido este primeiro paralelo ao redor do início do romance (e do paralelo harmônico, por assim dizer, entre os dados de seu discurso e de sua narrativa), vejamos se esta configuração permanece até o final do romance. Encerrado por uma nova digressão a respeito de sua ―crônica de saudades‖, o texto repete a separação inicial e conclui a narração num momento separado daquele da diegese (agora com não apenas um parágrafo de salto, mas também um travessão). Vejamos: Aqui suspendo a crônica de saudades. Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez, se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas (Pompéia, 1981, p. 272). De maneira inversa àquela vista no início do romance, o narrador recupera o sentido das ―saudades‖ de seu subtítulo ao admitir uma concessão ao seu conceito estático de tempo: se, por um lado, suas lembranças podem ser ―puras recordações‖, por outro sua evocação pode não ser apenas uma ―ocasião passageira‖, eternamente repetida, como mencionada anteriormente, mas também pode indicar um sentido último (e por isto mais relevante) de destruição, de aniquilamento do passado (―sobretudo - o funeral para sempre das horas‖). Neste sentido, não mais poderia haver uma continuidade entre seu passado e seu futuro, ou melhor, o presente de sua narração, como dantes, o que ensejaria, a partir daí, uma relação inversamente proporcional entre seu discurso e sua narrativa, isto é, uma desconstrução do passado ao redor do presente. Esta última configuração da obra se confirma nos parágrafos imediatamente anteriores à digressão apontada – referentes, pois, ao término da diegese. Vejamos: Falavam do incendiário. Imóvel! Contavam que não se achava a senhora. Imóvel! A própria senhora com quem ele contava para o jardim de crianças! Dor veneranda! Indiferença suprema dos sofrimentos excepcionais! Majestade inerte de cedro fulminado! Ele pertencia ao monopólio da mágoa. O Ateneu devastado! O seu trabalho perdido, a conquista inapreciável dos seus esforços!... Em paz!... Não era um homem aquilo, era um de profundis. Lá estava; em roda amontoavam-se figuras torradas de geometria, aparelhos de cosmografia partidos, enormes cartas murais em tiras [...]. Ele, como um deus caipora, triste, sobre o desastre universal de sua obra (Pompéia, 1981, p. 272-273).
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Invadindo o domínio das experiências presenciadas pelo menino, o narrador rompe com a auto-suficiência do relato cronológico dos eventos e incide em uma notação universalizante do comportamento de Aristarco, privado de individualidade, ou melhor, interpretado a partir de um olhar destacado de seu universo (―deus caipora, triste, sobre o desastre universal de sua obra‖). Para tanto, utiliza como transição duas falas transpostas do passado (―Contavam que não se achava a senhora‖ e ―A própria senhora com quem ele contava para o jardim de crianças!‖) num crescendo que simula a intensidade da tragédia do diretor e, com ela, a validade do julgamento do próprio narrador. Mas como poderia Sérgio ter acesso aos planos de Aristarco para o futuro, uma vez que sua mulher era responsável apenas pela enfermaria do colégio, e não como diz o narrador, pelo ―jardim de crianças‖? Perante este impasse, podemos aplicar a Raul Pompéia e a seu romance o mesmo que Genette (1995, p. 2006) afirma a respeito de Marcel Proust e de Em Busca do Tempo Perdido: [...] Proust esquece ou negligencia a ficção do narrador autobiógrafo e a focalização que ela implica, e, a fortiori, a focalização sobre o herói, que é a sua forma hiperbólica, para tratar a sua narrativa num terceiro modo, que é, evidentemente, a focalização-zero, ou seja, a onisciência do romancista clássico. O que, note-se de passagem, seria impossível se a Recherche fosse, como há quem nela queira ver, uma autêntica biografia. Sob este signo da distorção, previsto por Genette, em que a Recherche traduz-se como autobiografia ―ilusória‖, podemos então compreender O Ateneu, romance de memórias igualmente enviesado. Ora, toda ―narrativa homodiegética submete, em conseqüência de sua escolha vocal, uma restrição modal a priori que não pode ser evitada senão por uma infração, ou contorção perceptível‖ (Genette, 1983, p. 52), 1 o que, inevitavelmente, desautorizaria a versão dos fatos apresentada pelo narrador (em grau menor ou maior emocionalmente envolvido com aquilo que é narrado). Infração, ou contorção narrativa, é o que se pode observar diversas vezes ao longo do desenvolvimento do romance, donde retiramos outros dois exemplos que indicam emblematicamente as nuanças destas ―alterações‖ modais (Genette, 1995, p. 193), à guisa de conclusão. O primeiro assinala um excesso de informação narrativa, isto é, ―uma informação excedente à lógica do tipo adotado‖ (Genette, 1983, p. 44) 2: A cada entrada, o diretor lentamente fechava o livro comercial, marcando a página com um alfanje de marfim; fazia girar a cadeira e soltava interjeições de acolhimento [...]. O pai, o correspondente, o portador, despedia-se, depois de banais cumprimentos, ou palavras a respeito do estudante, amenizadas pela gracinha da bonomia superior de Aristarco [...]. A cadeira girava de novo à posição primitiva; o livro da escrituração espalmava outra vez as páginas enormes; e a figura paternal do educador desmanchava-se volvendo a simplificar-se na esperteza atenta e seca do gerente [...]. Quando meu pai entrou comigo, havia no semblante de Aristarco uma pontinha de aborrecimento. Decepção talvez de estatística, o número dos estudantes novos não compensando o número dos perdidos (Pompéia, 1981, p. 51-53). 1
―[…] le récit homodiégetique subit, en consequéquence de son choix vocal, une restriction modale a priori, et qui ne peut être evitée que par infraction, ou contorsion perceptible‖. 2 ―[…] information excédant la logique du type adopté‖. Trata-se, evidentemente, da narrativa autodiegética de memórias.
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Como poderia Sérgio ter acesso à postura ambígua de Aristarco frente aos ingressantes, bem como aos seus pais (―a figura paternal do educador desmanchava-se volvendo a simplificar-se na esperteza atenta e seca do gerente‖), sendo que, somente num momento posterior, teve o menino acesso à sala do diretor, rigorosamente fechada para que ele pudesse concentrar-se em seus supostos afazeres de gerente (―Quando meu pai entrou comigo, havia no semblante de Aristarco [...]‖)? Abandonando, pois, a focalização sobre o protagonista, Sérgio incide, à maneira de Marcel, num terceiro modo de focalização, cujos limites emulam aqueles do romance clássico (focalização onisciente) e direcionam o julgamento do leitor para uma aceitação mais cômoda (ou, ao menos, mais completa) da narração de Sérgio (de um lado, um menino – ele próprio – indefeso, de outro, um educador falso e desumano). Na direção contrária, mas reforçando o mesmo sentido do exemplo anterior, um segundo trecho retirado d‘O Ateneu indica não um excesso, mas uma lacuna nas memórias de Sérgio referente ao rompimento entre Sérgio e Bento Alves, cuja relação até então ocorrera sempre ―em pé de serenidade‖: Durante os primeiros dias do ano, poucos alunos chegados, ficávamos horas inteiras em companhia. Trouxera-me um presente de livros, com dedicatória a cores de bela caligrafia, inscrita em rosas entrelaçadas de cromo. Recordo-me também de um dulcíssimo cofre dourado de partilhas e outras ridicularias de amabilidade que me oferecia, passado de vergonha pela insignificância do obséquio [...]. Andavam assim as coisas, em pé de serenidade, quando ocorreu a mais espantosa mudança. Não sei que diabo de expressão notei-lhe no semblante, de ordinário tão bom. Desvairamento completo. Apenas me reconheceu, atirou se como fizera Rômulo e igualmente brutal [...]. Lutando na poeira, sob o joelho esmagador do assaltante, ataquei lhe a cabeça, a cara, a boca, a formidáveis golpes de tacão, apurando a energia de sola ferrada com a onipotência dos extremos. Bento Alves deixou-me bruscamente (Pompéia, 1981, p. 201-202). Não aventurando mais palavras em esclarecer este ―desvairamento completo‖ (que resultou mais tarde na saída de Bento Alves do colégio), Sérgio oculta o desfecho de todo um capítulo dedicado à relação com o amigo, cujas razões permanecem obscuras. Talvez não fossem elas favoráveis à imagem que tenta construir o narrador de si próprio no passado... Desta forma, ora por um excesso desmesurado de informações, ora pela ausência de dados importantes para a compreensão do protagonista (em termos genetteanos, ora por paralepse, ora por paralipse), temos que o narrador Sérgio reproduz em sua narrativa a mesma força (ou turvamento) emocional presente em suas digressões inicial e final acerca do Tempo, desautorizando sua própria versão dos fatos pela série de alterações que produz na focalização pressuposta por sua narrativa. Neste sentido, o caráter aparentemente contraditório do subtítulo de O Ateneu – ―Crônica de Saudades‖ – passa a designar, para além do sentido jornalístico evidente em um romance publicado em folhetim, uma inversão proposital do caráter histórico inerente ao conceito de crônica, isto é, de registro cronológico dos eventos passados ―na ordem em que ocorreram‖ (Coutinho, 1981, p. 13): não bastando inscrever uma seqüência de eventos concatenados pela memória, e através do filtro da memória, O Ateneu, romance subjetivo por excelência, estabelece uma linha reta entre a estrutura individual da juventude de um menino e a estrutura de toda uma instituição, traduzindo um pelo outro, como se fosse possível, no limite, que um prédio padecesse de saudades.
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Se a existência é uma luta e seu palco o internato, os exemplos acima demonstram que ela não acontece, entretanto, de maneira direta. Há formas diversas de driblar os mecanismos do colégio, e aquelas encontradas por Sérgio no presente de sua narração – a deturpação de ações e caracteres passados pelo excesso (Aristarco) ou pela falta de informações (Bento Alves) – bastam-lhe, ao menos em um primeiro momento, para que se firme como um ―forte‖ perante si sem que de fato apague das impressões do leitor a consciência de seu fracasso: ―Salvam-se as aparências, mas no fundo ainda refulge o estigma do passado, pois a história está sendo evidentemente mal contada‖ (Santiago, 1972, p. 30). Ocorrendo, portanto, de maneira indireta, a luta pela existência dentro da narrativa mimetiza a posição indireta de seu narrador distanciado (―ulterior‖, segundo Genette) e continua-lhe sua problematização presente no passado, ou, em outras palavras, anula-se perante a necessidade premente que tem Sérgio de reconstruir-se. Além disso, prevê seu caráter manipulador e desesperado ao apontar uma defesa impossível de sua primeira conceituação temporal frente ao leitor, que é servido de diversos exemplos de sua deturpação. Inadaptado no passado e ainda assim ansioso por mostrar-se forte no presente, apagando imaginariamente informações desfavoráveis, torna-se claro que o verdadeiro confronto estabelecido na / pela obra não é aquele previsto por Sérgio, i.e., de si contra o internato (―‗Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta‘‖), mas de si contra a imagem que faz de si mesmo. Tendo em mente todas as razões destacadas, não é possível assinalarmos, retomando os termos das duas linhas interpretativas anteriormente levantadas, uma maior ou menor pertinência dos dados da narrativa d‘O Ateneu segundo uma concordância ora com a personalidade de Pompéia ora com o contexto do Brasil do Segundo Reinado, uma vez que sua narrativa como um todo pode ser dita envenenada pela presença de um narrador absoluto, isto é, um narrador autodiegético acompanhado de uma focalização em terceiro nível (onisciente, no sentido já assinalado). Por isso, concluímos nossa discussão retornando às concepções temporais manipuladas pelo narrador, e destacamos que sua transformação resume pari passu as modificações provocadas pela voz narrativa nas focalizações e a própria voz narrativa (ou a imagem que de si própria produz), conduzindo a um campo novo de indagações a respeito do processo narrativo do romance.
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TERCEIRA IDADE: UMA PROPOSTA DE ESTUDO SOBRE O LEITOR E SUA MEMÓRIA DE LEITURA Luciana Santos de Oliveira1 Resumo: O presente artigo tem como proposta analisar o projeto de pesquisa intitulado TERCEIRA IDADE: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura o qual tenta relacionar a estética da recepção com a psicologia da velhice, a fim de conhecer e identificar vivências e percepções do público leitor que forma a Terceira Idade e que reside na Pia União do Pão de Santo Antônio, para o qual procede-se uma análise focada na memória, identidade e modernidade. Palavras-chave: Estética da Recepção. Identidade. Inclusão social. 3ª Idade. Memória de Leitura. Abstract: This article is to analyze the research project entitled ELDERLY: a proposal for a study on the player and his memory of reading which attempts to link the aesthetics of reception with the psychology of old age, to ascertain and identify experiences and perceptions the reading public how the Third Age and is the Pious Union of the Bread of St. Anthony, for which there shall be an analysis focused on memory, identity and modernity. Keywords: Aesthetics of Reception. Identity.Inclusion. 3rd Age. Memory Read. O objetivo deste trabalho foi possibilitar uma maior apreciação a respeito das aulas e textos analisados na disciplina ―Arte, Modernidade e Pós-Modernidade: Relações e Contradições‖ aplicadas ao projeto de pesquisa TERCEIRA IDADE: uma proposta de estudo sobre o leitor e sua memória de leitura, a qual se constitui de leitura detalhada de todas as observações que serão registradas através das entrevistas com os idosos. Nesta fase se buscará fazer um recorte da memória de leitura, interpretando a relação leitor x obra de forma atualizada. A seguir, será verificado o que cada elemento tem em comum com os outros e a partir desta análise validar a importância de se resgatar a memória de leitura, de forma a validar tradições e experiências na qualidade de vida, na Terceira Idade. O universo a ser pesquisado são os idosos que moram na Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio. Instituição sem fins lucrativos, fundada em 1930, que abriga homens e mulheres a partir dos 55 anos, reconhecida como utilidade pública por leis Estadual, Municipal e Federal. Como instrumento de pesquisa será adotado o questionário com perguntas abertas e a entrevista para oportunizar a interação e a troca de informação entre o pesquisador e o pesquisado. Ninguém nasce sabendo ler. À medida que se vive, aprende-se a ler. Se ler livros se aprende nos bancos da escola, outras leituras se aprendem na escola da vida, independente da aprendizagem formal e se perfaz na interação cotidiana com o mundo das coisas e dos outros. Ler é essencial, não apenas para aqueles que almejam participar da produção cultural mais sofisticada, dos requintes da ciência e da técnica, da filosofia e da arte literária. A própria sociedade de consumo faz muitos de seus apelos através da linguagem 1
Mestranda do programa de Pós-graduação em Comunicação, Linguagem e Cultura, da Universidade da Amazônia-UNAMA. E-mail: lucianasantosoliveira@yahoo.com.br
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escrita e chega por vezes a transformar em consumo o ato de ler, os rituais da leitura e o acesso a ela. Segundo Lajolo (2000, p. 108) ―a discussão sobre leitura, principalmente sobre a leitura numa sociedade que pretende democratizar-se, começa dizendo que os profissionais mais diretamente responsáveis pela iniciação na leitura devem ser bons leitores‖. Nesse sentido, salienta-se o papel social da leitura, visto que o homem leitor pode ampliar as possibilidades de amadurecimento individual e intelectual e, por conseguinte, compreender melhor a si e o mundo. Em contrapartida, as pessoas que não lêem tendem a ser rígidas em suas idéias e ações e a conduzir suas vidas e trabalho pelo que se lhes transmite diretamente. A pessoa que lê abre o seu mundo, pode receber informações e conhecimentos de outras pessoas de qualquer parte. No Brasil, uma relevante parcela da população encontra-se na Terceira Idade e, o que se percebe, é que essas pessoas ainda não são respeitadas como deveriam, muito menos desenvolvidas suas potencialidades e seu saber. Conforme Martins (2003, p. 21) ―a velhice está diferente. Surge uma nova geração, é a suplementar! Atualmente, um homem de 75 anos é igual a um de 60 anos de um passado não muito longínquo. A paisagem social e cultural está mudando. A velhice não é mais uma decadência, mas uma oportunidade‖. Dessa forma, pode-se dizer que no ato da leitura também entra em jogo a experiência de vida do leitor, porque entre a leitura de uma obra e o efeito pretendido ocorre o processo da compreensão, exigindo do leitor não só a utilização do conhecimento filológico, mas de todo o seu conhecimento de mundo acumulado. A chegada da Terceira Idade traz consigo limitações sobre um corpo já muito vivido, porém estas pessoas vêm mostrando perseverança em vencer obstáculos, tentando disputar espaços numa sociedade preconceituosa que considera a velhice como uma fase de desvitalização, acompanhada de uma errônea concepção de que os idosos são sujeitos carentes, que não possuem atributos para oferecer. No entanto, para combater a senilidade, é essencial que o indivíduo se dedique às atividades criativas, pois a criatividade conserva a lucidez. Isso remete às idéias de Martins (2003) que afirma que viver em um ambiente de atividade criativa beneficia assaz o ser humano. Neste caso, a atividade é de vital importância não só para o bem-estar físico, mas também para conservar a capacidade intelectual do indivíduo. Para tanto, é necessário formular estratégias diferenciadas que estimulem a memória de leitura, estudando este leitor, para que essas pessoas possam desfrutar das vantagens do hábito da leitura, proporcionando-lhes bem-estar, confiança, dinamismo e participação, superando inclusive, algumas crenças negativas que muitas vezes distanciam o idoso do seu meio social. Pelo contrário, o idoso pode ser produtivo, trabalhar e exercer atividades intelectuais como a leitura. Também o geriatra Berg (1979) se pronuncia a respeito da capacidade intelectual que, segundo ele, é mais aguda na velhice. Explica que: Enquanto o indivíduo se mantém em atividade intelectual ele continua com capacidade de produzir. À medida que o indivíduo envelhece, sua capacidade intelectual torna-se mais aguda e mais seletiva. Esses indivíduos, que são personalidades notáveis nos seus respectivos ramos de atividade, ao longo da vida sempre tiveram uma grande produção intelectual. Na faixa compreendida entre os 20 e os 30 anos de idade, é comum a existência de um interesse amplo, isto é, por várias atividades. A partir dos 30, o indivíduo vai começando a selecionar os assuntos pelos quais se interessa. Aos 60 essa seleção aumenta e ele se dedica, conforme cada caso, a dois ou três assuntos e se torna um craque naquilo. Podemos constatar que todos os grandes estadistas foram homens velhos, como, por exemplo, De Gaulle,
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Churchill, Ho Chi Min, Mao Tse-Tung. Noutros setores, podemos citar Bernard Shaw, Bertrand Russel, Picasso, Chaplin e Miro. O intelectual idoso não diminui sua atividade mental. O que diminui é a sua capacidade física (BERG, 1979, p.37). Jauss (1994) observa também a importância da memória da leitura através das gerações, enfatizando que diferentemente do acontecimento político, o literário não possui conseqüências imperiosas, que seguem existindo por si só e das quais nenhuma geração posterior poderá escapar. Ele só logra seguir produzindo seus efeitos na medida em que sua recepção se estenda pelas gerações futuras, ou seja, por elas retomada, na medida em que haja leitores que novamente se apropriem da obra passada, ou autores que desejem imitá-la, sobrepujá-la ou refutá-la. Esta é a importância da leitura como acontecimento que se realiza primordialmente no horizonte de expectativas dos leitores, dos críticos e dos autores. Ferrara (2007, p. 24) discorre sobre integrar sensações e associar percepções fazendo a relação destas com o ato de recepção, levando em consideração a experiência e a vivência do leitor: Sensações e associações despertam a memória das nossas experiências sensíveis e culturais, individuais e coletivas de modo que toda a nossa vivência passada e conservada na memória seja acionada. Na realidade é necessário despertar aqueles valores ou juízos perceptivos a que já nos referimos, compreender uma interação entre passado e presente, entre as sensações de ontem e de hoje, mais a reflexão sobre elas para compará-las e perceber-lhes os pontos de convergência e/ou divergência.
História e memória, utilizadas como caminho para o passado, surgem como um campo reivindicado por inúmeras áreas do conhecimento. Porém, o conhecimento a respeito do passado exige perspectivas que vão além das abrangidas pelas áreas de conhecimento, pois como o passado não está mais presente, aumenta a incerteza de seu conhecimento. É ai que está a importância da história de vida, do processo de rememoração como ferramenta necessária do conhecimento do passado para o entendimento do presente, uma vez que, A incerteza fundamental acerca do passado nos deixa cada vez mais ansiosos para confirmar que tudo se deu conforme relatado. Para nos assegurarmos que ontem foi tão importante quanto hoje, saturamonos de detalhes e fragmentos do passado, ratificando a memória e a história de forma tangível. Gostamos de imaginar que aqueles que então viveram, desejavam que soubéssemos o quanto tudo foi real (LOWENTHAL, 1998, p. 73). Nesse contexto, a valorização da memória é importante, no sentido de captar o passado das pessoas, expondo o que elas viveram e sentiram em sua história de vida e de seu tempo. Por isso, a memória de leitura, contada por idosos e idosas, poderá revelar facetas diversas e interessantes com grande significado para futuras pesquisas. Dessa forma, o projeto justifica-se por refletir e relacionar a teoria da estética da recepção com a psicologia da velhice, de forma a travar um diálogo entre a obra e o receptor, a fim de integrar suas percepções, vivências e memórias de leitura com a maneira como este destinatário julga a
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leitura recebida ao longo de sua história de forma a validar a tradição e a experiência de vida, que a idade proporciona. Refletir sobre a existência de um texto ou sobre um conjunto de uma produção literária sem levar em conta a concretização do ato da leitura, parece querer condená-la ao limbo, enclausurá-la e privá-la da própria existência, na medida em que cabe ao leitor o papel de trazê-la ao mundo. Num primeiro momento essa afirmação pode soar banal e sem força, e até desnecessária. No entanto, a figura do leitor no processo de reflexão não é um aspecto que faz parte da tradição dos estudos literários. Durante muito tempo, o interesse dos estudiosos ficou restrito à figura do autor ou à análise imanentista do texto. Foi com o advento da estética da recepção que o público leitor começou a desempenhar um papel importante na história da obra. Na tríade da hermenêutica literária (autor, obra e leitor), o leitor ocupa uma posição de destaque deixando de ser um simples destinatário passivo que recebe o texto, mas se transforma em elemento ativo que julga, aceita ou rejeita a obra recebida, na atualidade ou no passado, usando, para isso, a reflexão. Partindo desde princípio, escritor, texto e leitor não seriam parte integrante do mesmo processo? De acordo com Lyons (1999, p.9), ―a história da leitura é o estudo das normas e práticas que determinam as respostas dos leitores àquilo que lêem‖. Sartre (1964), ao levantar o questionamento ―Para quem se escreve?‖, observa que, à primeira vista, a resposta é certeira: aquele que escreve se dirige a todos os homens, ao leitor universal. Contudo, por mais que almeje a permanência de sua obra à posteridade, ―o escritor fala a seus contemporâneos, a seus compatriotas, a seus irmãos de raça ou de classe‖. Nessa perspectiva, o leitor assume uma natureza dupla: o leitor universal e o leitor concreto. As idéias de Sartre, gestadas no período conturbado do pós-guerra (1947), enfatizam o papel do leitor que, no ato de ler, complementa o ato de escrever. Outros estudiosos trouxeram à figura do leitor os holofotes, sem, contudo, construir um gerador que lhe fornecesse luz própria e que lhe prolongasse a existência. Coube ao professor da Universidade de Constança, Hans Robert Jauss, em sua aula inaugural do ano letivo de 1967 intitulada ―A História da Literatura como Provocação a Teoria Literária‖, revitalizar o questionamento dos estudos relativos à história da literatura e consolidar o papel do leitor enquanto ser integrante da estética literária. Nesse primeiro momento, Jauss realiza um panorama crítico da história da literatura tradicional e desenvolve sete teses objetivando uma nova metodologia e forma de (re) escrever a história da literatura. A aura que reveste a feitura da escrita faz com que habitem no imaginário do leitor, curiosidades e interesses sobre particularidades da vida do escritor. Como se dava a prática de leitura através de pessoas nascidas entre as décadas de 1920 e 1940? Como era a relação das pessoas com o livro? Havia bibliotecas que facilitavam o seu acesso? O acesso ao livro era obtido através de: empréstimo entre amigos e familiares ou compra? Como este leitor percebe o escritor e as obras literárias do seu tempo? De que forma essa memória de leitura pode ser resgatada e valorizada nos dias de hoje? Diante dessas indagações, cabe a este estudo desvendar o leitor da Terceira Idade que reside na Associação da Pia União do Pão de Santo Antônio, de forma a compreender a obra dentro dos limites do seu momento, inserido em seu contexto sóciocultural. Assim, ao analisar a experiência estética do público de leitores, através de seus próprios depoimentos, busca-se evidenciar as condições históricas dessa recepção; reconstruir seu horizonte de expectativas e reconhecer se essa produção foi relevante para a formação desse grupo de leitores.
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MEMÓRIA: COLEÇÃO DE CACOS Segundo Lezak (2004), a memória é uma habilidade capaz de registrar, armazenar e evocar informações. A memória é basicamente a conexão do passado com o presente, seja sob a forma de imagens, seja como intrusões implícitas ou explícitas de como agir. Xavier (1996) a considera uma capacidade de alterar o comportamento em função de experiências anteriores. Ainda relata que a memória é um processo básico para a sobrevivência, com a finalidade primordial de gerar previsões, o que é ratificado por Abreu (2001). A memória é uma importante função cognitiva do homem que se relaciona com outras funções como a linguagem e a atenção. Desempenha papel integrador, unificador e constitutivo em relação à nossa experiência pessoal e à nossa experiência sobre o mundo físico (GREEN, 2000). Somente o ser humano tem um sistema de memória tão complexo que lhe permite codificar, armazenar e integrar informações provenientes de múltiplas fontes e usá-las para interpretar, para organizar e para iniciar experiências, tanto sobre o mundo quanto sobre si mesmo. A aprendizagem e a memória são fundamentais para a experiência humana. Conseguimos adquirir novos conhecimentos sobre o mundo porque as experiências pelas quais passamos modificam o cérebro. E, depois que aprendemos, conseguimos reter os novos conhecimentos na memória, porque essas modificações são mantidas na nossa mente. Conseqüentemente, somos quem somos devido ao que aprendemos e relembramos. Ao analisar, por exemplo, o conceito benjaminiano de experiência pressupõe fazê-lo em oposição ao conceito de vivência. O termo vivência, na acepção de Walter Benjamin, significa estar ainda em vida quando um fato acontece. Pressupõe a presença viva e o testemunho ocular a um evento. Conjuga a fugacidade do evento e a duração do testemunho, a singularidade do ato de vida e a memória que o conserva e o transmite. Assim, as lembranças são guardadas na memória como uma fonte viva, uma vez que a memória permite registrar as mais vivas recordações que, a qualquer momento, podem aflorar. Logo, a memória é uma crescente reserva que dispõe da totalidade das experiências adquiridas e a experiência, resulta de um conjunto de vivências. Ecléa Bosi (1983), no primeiro capítulo de Memórias de velhos, a partir das contribuições de Henri Bergson, Maurice Halbwachs, Frederic Charles Barlett e Willian Stern, discute o conceito de memória. Ao mesmo em tempo em que apresenta as principais concepções presentes nos trabalhos de cada um dos autores supracitados, Bosi as relaciona (aproxima e contrapõe) dando relevância ao nexo entre memória e vida social. À noção de memória como conservação espiritual do passado, em Bergson, são incorporadas as concepções sociológica de Halbwachs e psicossocial de Barlett. As influências do ambiente (sócio-cultural) sobre o curso da memória individual ganham, dessa forma, lugar de destaque: mais do que uma ―ressurreição‖ do passado, ―a lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual‖ (BOSI, 1994, p.55). A memória do indivíduo encontra-se ligada às demais dimensões de sua existência atual: aos amigos, à família e aos outros grupos de pertencimento. O presente ressignifica o passado. Sob essa perspectiva, todo o trabalho com a memória – esta suposta capacidade de ‗reter‘ o passado - remete inevitavelmente ao presente vivenciado pelo sujeito que lembra; remete, pois, também aos contextos específicos (circunstanciais) nos quais se dá rememoração.
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Alistair Thomson, historiador oral australiano, agrega em seu trabalho, os principais pontos destacados até então. Em uma competente sistematização, que tem como base suas pesquisas junto a veteranos de guerra australianos (Anzacs), Thomson explora três interações chaves: as relações entre reminiscências pessoais e memória coletiva, entre memória e identidade e entre entrevistador e entrevistado. De acordo com o autor, ―compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa vida passada e presente‖ (THOMSON, 1997, p.56). A utilização do termo composição, nesse contexto, faz referência aos processos de reconstrução a que submetemos as imagens do passado a partir das solicitações atuais. Para tanto, são utilizadas as linguagens e os significados conhecidos e socialmente aceitos de nossa cultura (THOMSON, 1997). Os vínculos entre memória e vida social – ressaltados por Ecléa Bosi – são, dessa forma, contemplados a partir da noção de composição. Entretanto, conforme salienta Thomson, nem sempre as imagens e linguagens disponíveis e socialmente aceitas, em um determinado espaço-tempo, encaixam-se às experiências pessoais. Portanto, os relatos coletivos que usamos para narrar e relembrar experiências não necessariamente apagam experiências que não fazem sentido para a coletividade. Incoerentes, desestruturadas e, na verdade, ―não-lembradas‖, essas experiências podem permanecer na memória e se manifestar em outras épocas e lugares – sustentadas talvez por relatos alternativos – ou através de imagens menos conscientes. Experiências novas ampliam constantemente as imagens antigas e no final exigem e geram novas formas de compreensão. (...) Que memórias escolhemos para recordar e relatar (e, portanto, relembrar), e como damos sentido a elas são coisas que mudam com o passar do tempo (THOMSON, 1997, p.56/57).
IDENTIDADE E MEMÓRIA Canclini (2005, p. 117) concebe o conceito de identidade como ―construção imaginária que se narra‖. Hall (2003), não busca identidade nas origens ou tradições de um povo, mas opta pela identidade diaspórica, resultado híbrido entre múltiplas interferências culturais. Segundo esse autor: As identidades cultuais são pontos de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e história. Não uma essência, mas um posicionamento. Donde deve haver sempre uma política de identidade, uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia absoluta numa ―lei de origem‖ sem problemas, transcendental (HALL, 2006, p. 70). Essas dificuldades em definir cultura estão presentes em Diferentes, Desiguais e Desconectados (2005), obra em que o autor resume três grandes definições de cultura (2005, p. 37-41): 1- ―cultura é o acúmulo de conhecimentos e de aptidões intelectuais e estéticas‖; 2- cultura como tudo aquilo criado pelo homem e por todos os homens a partir do natural que existe no mundo. São os modelos de comportamento, os costumes, as distribuições espaciais e temporais; 3- definição sóciossemiótica, na qual a cultura abarca ―o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social‖. Contudo, para o autor, mais importante que se ater às definições de cultura ―é (...) descrever os esforços de convivência e não somente ressaltar as diferenças‖.
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Hall (2001) afirma que o sujeito contemporâneo apresenta-se composto de várias identidades. Desse modo, ele é definido como um indivíduo que não possui uma identidade permanente, se forem considerados antigos valores, como definidores de uma unidade subjetiva, e sim uma multiplicidade de desconcertantes e cambiantes identidades possíveis, podendo se identificar com cada uma delas. De acordo com esse enfoque, é possível pensar que todos são submetidos continuamente a influências de diversos sistemas culturais que se interpenetram e se entrecruzam, promovendo uma heterogeneidade cultural pela convivência de vários códigos simbólicos dentro de um mesmo grupo e até mesmo em um só sujeito. Hall defende que a identidade também pode ser retratada como sendo as várias máscaras sociais e ideológicas que nos identificam como seres humanos em momentos distintos. Em suas palavras, ―em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deve-se falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento‖ (2001, p. 39). No entanto, para Bhabha (1998), a questão da identidade não se estabelece somente no reconhecimento das diferenças com o outro. Segundo esse autor, essa questão é mais complexa e implica a representação do sujeito a partir da sua condição de diferente. Dessa forma, a construção de uma imagem do sujeito se estabelece na sua relação com um outro. Essa definição faz pressupor que a identidade de um sujeito se constitui a partir da experiência dele como indivíduo, como autônomo; e como ser coletivo, produto do meio por estar sempre inserido em um grupo social. E, essas duas últimas experiências são inseparáveis. Relacionando ao objeto de estudo, tanto Canclini quanto Hall, apresentam a possibilidade de representação e da reconstrução de identidades a partir do resgate mnemônico. A memória é, portanto, retratada como elemento que permeia a articulação da identidade do narrador (idoso), já que funciona como fio condutor entre o sujeito e o seu permanecer no tempo e no espaço. Pode-se observar, então, que é, por meio da sua memória, que o idoso se rearticula nesse contexto, buscando construir sua própria história, sua identidade e sua origem, ao buscar também, as identidades daqueles que, de alguma forma, contribuíram para a sua formação como sujeito, partindo de suas interações culturais. Tal procedimento mostra que a identidade articula o conjunto de referências que, de certa forma, orientam o narrador na sua forma de agir e de mediar seu relacionamento com os outros e consigo mesmo. Tudo isso se realiza por meio da própria experiência de vida do sujeito e das representações da experiência coletiva de sua comunidade e sociedade, aprendidas na interação com os outros. A identidade é, dessa forma, a continuidade das características do indivíduo através do tempo, enraizadas na memória, no hábito e nas formas de tradições comunitárias. É algo que se modifica de maneira lenta e imperceptível, por sofrer pequenas mudanças e variações em relação à sociedade da qual faz parte. Thomson (1997, p.57) também fala sobre a relação entre memória e identidade. Para o autor, esse sentido se fundamenta numa relação de reciprocidade entre identidade e memória. Nossas identidades influenciam o processo de construção de reminiscências na mesma medida em que são influenciadas por elas. ―Construímos nossa identidade através do processo de contar histórias para nós mesmos – como histórias secretas ou fantasias – ou para outras pessoas, no convívio social‖. Thomson (1997) entra em jogo, neste momento, a ação narrativa: Ao narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser. As histórias que relembramos não são representações exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais (THOMSON, 1997, p.57).
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Através da ação narrativa, isto é, do processo de composição (em sentido lato) e expressão de reminiscências – processo este influenciado pela identidade, assim como pelos contextos nos quais nos inserimos –, o passado é ressignificado, o presente reatualizado e nos projetamos em direção ao futuro (futuros possíveis e/ou desejados). Futuro, presente e passado se entrecruzam, encontram-se em nossas narrativas. Identidade e memória também. E é do entrecruzamento, do encontro entre identidade e memória que o significado do termo reminiscência é evocado por Thomson: ―reminiscências são passados importantes que compomos para dar um sentido mais satisfatório à nossa vida, à medida que o tempo passa, e para que exista maior consonância entre identidades passadas e presentes‖ (THOMSON, 1997, p.57). A memória como produto da linguagem, também é pensada como produção simbólica e parte integrante de um imaginário social. Nesse sentido, tanto a memória como a tradição são vistas como fruto de um tempo determinado e de um conjunto social dado, por poderem constituir-se elementos da história de mentalidades coletivas. Vale ressaltar, então, que a memória faz cruzar a história e a intimidade, por permitir que os acontecimentos públicos e os pessoais sejam nutridos de valores simbólicos vivenciados na encruzilhada da cultura e do desejo, oferecendo-nos, assim, focos e direções existenciais e sociais em meio às experiências vividas pelo sujeito. É inegável que a subjetividade alcançada pelas histórias contadas pelos idosos, é reconstruída nos interstícios e limiares das formas sociais e culturais de existência vividas. A memória é refletida pela vontade do ser social que exalta e destaca apenas os elementos-chave, de sua vivência, expressos na sua oralidade. Por isso, Vasconcelos (2001, p. 28) diz que a memória marca ―os pontos que se fixam em volumes de lembranças, prontas a emergir dos escaninhos mais profundos da alma, da pessoa que rememora‖. Nesse caso, observamos que o mais importante para a pessoa idosa é a sua própria rememoração, a qual ela expõe conforme sua vontade. É nesse vínculo entre presente e passado que se percebe a estreita relação entre a memória e o tempo. Encontra-se, portanto, nos idosos, uma memória atemporal que permite o acesso às histórias, mitos, lendas de mundos distantes, saberes e épocas longínquas. Essas histórias que foram retidas pela experiência, são percebidas pelo convívio e pela oralidade. A memória é, dessa maneira, constituída pelo distanciamento temporal do narrador em relação ao fato narrado e pela mescla de uma memória simultaneamente coletiva e individual. Nessa perspectiva, deve-se, ainda, ressaltar que os espaços da casa, do bairro e da cidade são retratados como lugares representativos da convivência, das trocas de experiências, das histórias, dos mitos, das lendas, das festas e dos jogos sociais. O homem moderno vive o presente sem laços com o passado, atropelado pelo excesso de apelos que a sociedade de consumo oferece, assim como na teoria freudiana do choque que inviabiliza a impressão mnemônica e o seu consequente traço duradouro. Tais características estão essencialmente presentes na atual sociedade da informação, em que a velocidade induz ao esquecimento, não havendo espaço para a memória. Nessa circunstância, pode-se afirmar, ainda, que a memória busca restaurar as lembranças e revitalizar dados do passado, preservando-se assim, aquilo que não pode mais ser vivido. Desse modo, ao se enraizar no social como linguagem, a memória possibilita a reelaboração das experiências desses diversos grupos sociais, por permitir que elas se manifestem e se vinculem através de um trabalho de diferentes vozes. Ressalta-se, ainda, que essas tradições são, por sua vez, conclamadas pela oralidade, por meio do olhar atento do narrador sobre esses mundos e culturas, possibilitando que elas sejam recordadas e relidas, impedindo, dessa forma, o seu total desaparecimento. É, assim, por meio da
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rememoração a partir do olhar subjetivo desse idoso-narrador, que nós, leitores, vimos a conhecer essa realidade.
MEMÓRIA E PÓS-MODERNIDADE Alberto Melucci, no livro O jogo do eu (2004), fala a respeito das dificuldades que se encontra para definir a experiência do tempo. Segundo o escritor, as referências que são feitas ao tempo remetem imediatamente a uma noção experiencial deste; remetem àquilo que, pelas próprias experiências, sabe-se ser o tempo: ―todos sabemos do que falamos quando dizemos ‗tempo‘‖ (MELUCCI, 2004, p.17). Contudo, é quando se tenta defini-lo que as dificuldades se apresentam. Esse antigo problema tem produzido, ao longo dos séculos, diferentes estratégias para sua superação, dentre as quais, possivelmente a mais frequente deve ter sido o uso de metáforas e de mitos. Desde as culturas mais antigas, nas quais a referência ao tempo vinha acompanhada de imagens divinas – aquáticas (fluidas) ou cíclicas – a experiência do tempo vem sendo traduzida através de suas utilizações. A partir da análise de três diferentes figuras – o círculo, a flecha e o ponto - utilizadas para esse fim, o de ―representar simbolicamente a dimensão indescritível do tempo‖ (MELUCCI, 2004, p.18), o autor constrói um quadro que nos permite vislumbrar as principais transformações ocorridas nas formas de se perceber o tempo ao longo da história. Na figura do círculo, o tempo é representado como um eterno retornar de todas as coisas; ―as coisas repetem-se e nada é definitivamente adquirido ou perdido‖ (MELUCCI, 2004, p.18). Essa metáfora que encontra na natureza, nos seus ciclos e ritmos, suporte material e inspiração, foi (e ainda é) utilizada por diversas culturas. A alternância entre os dias e as noites, entre as estações do ano, as fases da lua, a vida e a morte, revelam a existência de um tempo cíclico onde início e final tornam-se relativos; onde todo o início implica um final que, por sua vez, implica um (re) início. Esse tempo cíclico, representado pela figura do círculo, é ressignificado pelo cristianismo. A partir da idéia de gênese e de fim do mundo são instituídos os limites de um percurso, agora, linear. O tempo, ainda que continue apresentando-se à experiência imediata como uma sucessão de ciclos, ganha agora uma dimensão profunda (linear) em que tudo isso acontece. O tempo da vida sobre este planeta é um tempo marcado entre sua origem e seu anunciado final; o tempo da experiência passa também a ser o caminho que percorremos entre o nascimento e a morte, um percurso progressivo e irreversível no qual a possibilidade de salvação confere ao seu final o derradeiro sentido. Com o advento da modernidade, essa idéia - a de uma redenção final -, ressignificada, ganha força e projeção: A figura do círculo é substituída pela flecha, e o tempo, assim, segue um rumo, tem uma finalidade que é também o seu fim, ou seja, é o ponto final que dá sentido a todo o percurso precedente e ilumina as passagens intermediárias. A figura linear do tempo como flecha, seja ela interpretada no que implica salvação ou progresso, impregna as raízes profundas da cultura ocidental e alimenta, ainda hoje, nossa representação do tempo (MELUCCI, 2004, p.19). Conforme destaca Melucci, a noção de tempo na modernidade assenta-se sobre duas referências essenciais: a máquina e a meta. O tempo passa a ser medido por máquinas: é dividido em unidades estáveis e equivalentes que permitem a atribuição de valores precisos a cada uma delas. A partir daí, mais do que nunca, ―time is money‖. Os
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ritmos e as cadências que governam a vida moderna, deixam de ser ditados pelos ciclos naturais e passam a ser marcados pelo ―tic-tac‖ dos relógios. As experiências do tempo são forçosamente homogeneizadas: o tempo social desencontra-se cada vez mais dos tempos internos individuais. Pode-se falar, conforme Bauman (2001), em uma rotinização do tempo. Sob essa ótica, a linearidade das relações entre passado presente e futuro quando o presente decorre do passado na mesma medida em que o futuro decorre do presenteé atravessada por um jogo retroativo: é do futuro que partem os sentidos para a interpretação do passado e para a promoção do presente. O objetivo final para onde aponta a flecha justifica e condiciona os meios que se utilizarão para sua consecução. Contemporaneamente, entretanto, se assiste ―o ocaso dos grandes mitos da modernidade, de todos os contos de salvação que prometiam êxito no final do tempo‖ (MELUCCI, 2004, p.19/20). O futuro se torna cada vez menos provável e o passado cada vez mais distante. O presente consolida-se como o tempo próprio e único para a satisfação e o gozo. A metáfora da flecha já não serve para representar a experiência atual do tempo. Agora, o ponto expressa com maior precisão uma experiência de tempo fragmentada, descontínua e concentrada no presente. Vive-se, conforme sustenta Bauman (2001), a era da instantaneidade, quando ―‗instantaneidade‘ significa realização imediata, ‗no ato‘ – mas também exaustão e desaparecimento do interesse‖ (BAUMAN, 2001, p.137). A instantaneidade confere a cada momento valor inestimável e sentido em si mesmo. É nesse sentido que o autor dirá que ―a ‗escolha racional‘ na era da instantaneidade significa buscar a gratificação evitando as conseqüências, e particularmente as responsabilidades que essas conseqüências podem implicar‖ (BAUMAN, 2001, p.148). Em tempos de pós-modernidade1 (modernidade tardia? modernidade líquida?), a supervalorização do tempo presente se dá em detrimento das dimensões passada e futura das experiências. A busca pela ―gratificação evitando as conseqüências‖ desconsidera os saberes produzidos no passado e ignora os possíveis e inevitáveis desdobramentos de suas ações; também pressupõe uma desvinculação cada vez maior com o espaço, com tudo aquilo que impeça ou dificulte o movimento. Na era da instantaneidade, o ―movimento no espaço torna-se um fim em si mesmo‖ (MELUCCI, 2004, p30/31). O espaço, assim como o tempo é experimentado como uma construção multidimensional, sem referências estáveis. Nesse contexto, em que o ritmo da mudança dilacera nossas referências espaciais, o passado, cada vez mais distante, nos falta enquanto substrato e o futuro se rarefaz com a ausência do projeto. Neste caso, a desorientação é um claro risco que temos de assumir. Contudo, se por um lado a experiência pontual do tempo representa o ―esfacelamento da tradição‖ de que nos fala Arendt (2005), por outro lado ―na dimensão puntiforme existe também uma riqueza, a possibilidade de reativar o horizonte da presença como capacidade de viver momento a momento, tecendo a trama da continuidade (MELUCCI, 2004, p.36). O estabelecimento de relações entre passado, presente e futuro, entre as diferentes formas com que se experimenta o tempo, apresenta-se hoje como condição necessária para a reabilitação daquelas referências essenciais que permitem decidir e discernir (orientar) – justamente o que desafia o atual momento. 1
Frederic Jameson, em seu livro Pós-modenismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, contudo, alerta-nos: ―Pós-modernismo não é algo que se possa estabelecer de uma vez por todas e, então, usá-lo com a consciência tranqüila. O conceito, se existe um, tem que surgir no fim, e não no começo de nossas discussões do tema. Essas são as condições – as únicas, penso, que evitam os danos de uma clarificação prematura – em que o termo pode continuar a ser usado de forma produtiva.‖ (JAMESON, 2000, p.25).
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É no presente que se encontra ―o único horizonte possível para essa ligação: a presença é o lugar em que passado e futuro podem estar em uma relação circular‖ (MELUCCI, 2004, p.23). Memória e projeto se influenciam reciprocamente a partir do presente; o passado é ressignificado pelo que ―está sendo‖ e pelo que ainda ―está por vir‖ ao mesmo tempo em que engendra as condições de possibilidade atuais. O espaço, tal qual o é experimentado, vem sendo submetido a velozes transformações. O espaço físico, no qual residem e com o qual interagem as diferentes formas de vida que habitam este planeta e os espaços simbólicos, sobre os quais se constroem os sentidos da existência, têm sido objeto de contínua e, cada vez mais, intensa exploração. O advento urbano, por exemplo, em sua expansão desmedida, promove a transformação (destruição e reconstrução) do espaço. Essa transformação, dependendo da forma e da velocidade com que é conduzida (ou não é, se for o caso), abala os vínculos que se estabelece com ele; priva-se do contato com aqueles referenciais a partir dos quais são orientados. Éclea Bosi em seu livro Memória e sociedade: lembranças de velhos (1994) tece algumas considerações a esse respeito: Há algo na disposição espacial que torna inteligível nossa posição no mundo, nossa relação com outros seres, o valor do nosso trabalho, nossa ligação com a natureza. Esse relacionamento cria vínculos que as mudanças abalam, mas que persistem em nós como uma carência. Os velhos lamentarão a perda do muro em que se recostavam para tomar sol. Os que voltam do trabalho acharão cansativo o caminho sem a sombra do renque de árvores. A casa demolida abala os hábitos familiares e para os vizinhos que a viam há anos aquele canto de rua ganhará uma face estranha ou adversa (BOSI, 1994, p.451). É importante destacar que essa discussão não visa ao desenvolvimento de uma postura conservacionista, no sentido estrito de manter as coisas como elas estão; até mesmo por que, a mudança, inexorável em sua marcha, a tudo e a todos atinge – ―tudo muda o tempo todo‖. O que se pretende é conhecer os sentidos que se relacionam ao espaço e apresentá-los a reflexão; trazer à tona o espaço enquanto realidade complexa atravessada por múltiplos interesses e sentimentos. Faz-se importante, como nunca, restituir ao espaço sua complexidade, seus múltiplos sentidos, para que esse possa ser pensado e apreendido de outras formas. O que se discute, também, é a velocidade com que são operadas as transformações sobre o espaço: essa sim se apresenta hoje como uma das principais responsáveis pelo solapamento dos esteios e referenciais sobre os/ a partir dos quais as pessoas são orientadas. Novamente um excerto do trabalho de Bosi exemplifica essa questão: A memória das sociedades antigas apoiava-se na estabilidade espacial e na confiança em que os seres da nossa convivência não se perderiam, não se afastariam. Constituíam-se valores ligados à práxis coletiva como a vizinhança (versus mobilidade), família larga, extensa (versus ilhamento da família restrita), apego a certas coisas, a certos objetos biográficos (versus objetos de consumo). Eis aí alguns arrimos em que sua memória se apoiava (BOSI, 1994, p.447).
REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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PERCEPÇÃO DE SONS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA PELO MODELO DE ASSIMILAÇÃO PERCEPTUAL Mara Silvia Reis1 Resumo: A percepção de sons é hoje uma das variáveis de investigação nos estudos de aprendizagem do sistema fonológico de língua estrangeira. Nas ultimas décadas, diversas teorias ou modelos foram propostos na tentativa de explicar o quanto a experiência linguistica com a língua materna afeta tanto a percepção quanto a produção de fala não nativa. Este artigo apresenta um dos modelos de percepção de sons de língua estrangeira mais influentes nos estudos de fonética e fonologia, o Modelo de Assimilação Perceptual proposto por Best em 1995. Em 2007, Best e Tyler ampliaram o modelo abrangendo a aprendizagem perceptual. Além da apresentação dos dois modelos, o artigo também propõe sugestões de como utilizálos empiricamente. Palavras-chaves: percepção, aprendizagem perceptual, língua estrangeira Foreign language speech perception seen by the Perceptual Assimilation Model Abstract: Speech perception is currently one of the variables in studies that examine the how foreign language phonological systems are learned. Several theories and models have been proposed recently as an attempt to explain the extent of influence of the first language on the perception and production of non-native speech. This article presents one of the most prominent speech perception models in the are of phonetics and phonology, the Peceptual Assimilation Model proposed by Best in 1995. In 2007 Best and Tyler extended the model in order to encompass perceptual learning. Apart from presenting both models, the article also suggests ways of using them empirically. Keywords: perception, perceptual learning, foreign language
INTRODUÇÃO Até a década de 1990 os estudos em interfonologia, o estágio em desenvolvimento da fonologia da língua estrangeira (L2), concentravam suas investigações na produção de sons pelos aprendizes da L2. Com a introdução do Modelo de Aprendizagem da Fala (Speech Learning Model, Flege, 1995) e do Modelo de Assimilação Perceptual (Perceptual Assimilation Model, Best, 1995a), as pesquisas passaram então a examinar a percepção dos sons como outra variável no desenvolvimento da interfonologia. Estes não são os únicos modelos que envolvem a percepção no aprendizado da L22, mas são certamente os mais utilizados em estudos na área de aprendizagem de L2, sobretudo o modelo de Flege.
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Doutora em Linguistica Aplicada pela UFSC. Contato: marasreis@hotmail.com
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Outros modelos que envolvem a percepção de sons no desenvolvimento da interfonologia: Modelo do Magnetismo da Língua Nativa (Native Language Magnet Model, Khul, 1992, 1994, 2000; Khul, Iverson, 1995); Modelo de Interferência Fonológica (Phonological Interference Model, Brown, 1998, 2000); Modelo de
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Com o intuito de apresentar uma versão em português do Modelo de Assimilação Perceptual (MAP), este artigo apresenta o modelo de percepção de sons de L2 proposto por Best (1995) e seu posterior desdobramento em relação ao aprendizado perceptual, o Modelo de Assimilação Perceptual para L2 (MAP-L2, Best, Tyler, 2007). Uma vez que o desenvolvimento do MAP-L2 está intrinsecamente relacionado ao MAP, ambos os modelos serão apresentados paralelamente. Além disso, sugiro algumas formas de utilização dos modelos, maneiras pelas quais eles podem ser testados ou utilizados para explicar resultados de estudos.
PERCEPÇÃO DE SONS DA FALA A percepção dos sons da fala pode ser definida como o mapeamento do fluxo contínuo e variável dos sinais acústicos em objetos linguísticos, ou categorias fonéticas. Identificar categorias fonéticas é uma tarefa a ser enfrentada desde tenra idade, uma vez que a experiência linguística direciona a sintonia do sistema perceptual de acordo com a L1 (Grieser, Kuhl, 1989; Kuhl, 1993a, 1993b, 2000a, 200b, 2004, Kuhl et al., 1992; Zhang et al., 2005), Por categorização entende-se a organização de ―aspectos equivalentes entre diferentes objetos, baseada em características comuns ou similaridades com um protótipo‖ (Sternberg, Mio, 2009, p. 578, tradução da autora). Lotto and Sullivan (2007) definem categorização fonética como o processo pelo qual ouvintes interpretam e avaliam múltiplas pistas presentes nos sons da fala, processo que se conclui com a determinação de um segmento fonético ao som ouvido. Entretanto, a fala humana é caracterizada pela falta de invariância, ou falta de constância, ou seja, não há necessariamente uma correspondência direta de um para um entre fonemas e categorias fonéticas (Strange, 1995; Holt, 2008). Embora falta de invariância pareça impor dificuldades no estabelecimento de categorias fonéticas (McQueen, 2004), ainda assim os humanos demonstram uma alta habilidade de discriminar sons da fala de maneira categórica—como, por exemplo, de discriminar as categorias fonéticas entre as plosivas vozeadas /ba/, /da/ ou /ga/. Três principais perspectivas teóricas procuram elucidar o mecanismo pelo qual os ouvintes superam o problema de falta de invariância nos sons da fala, conseguindo por fim categorizá-los (Strange, 1995). O ponto de vista nativista propõe que os humanos são equipados de modo inato para lidar com a falta de invariância. Sob a perspectiva da Teoria de Aprendizagem Associativa, a categorização dos sons ocorre através da associação de estímulos novos e ambíguos à experiências prévias não ambíguas. E por fim, a Abordagem Ecológica, ou Teoria da Percepção Direta, rejeita que haja uma capacidade inata para lidar com o problema ou que associações mentais sejam responsáveis pela categorização fonética. Para Gibson (1979) elaborador da Abordagem Ecológica, os estímulos não são inerentemente ambíguos, Sua aparente ambiguidade ―é decorrente de inapropriado nível de análise do ambiente físico‖ (Strange, 1995, p. 5, tradução da autora). Hayward (2000) afirma que ―falta de invariância não é um problema para a Teoria da Percepção Direta porque ela deriva naturalmente a partir dos padrões gestuais‖ (p. 126, tradução da autora). Muito mais poderia ser dito sobre as teorias de percepção, porém este não é o enfoque do presente artigo. No entanto, o MAP tem na Abordagem Ecológica parte de sua Filogenia e Ontogenia (Ontogeny Phylogeny Model, Major, 2001) e o Modelo de Percepção Linguística da Segunda Língua (The Second Language Linguistic Perception Model, Escudero, 2005).
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fundamentação teórica e, por este motivo, o artigo prossegue com a apresentação do MAP e do MAP-L2 e a reintrodução de alguns conceitos da Abordagem Ecológica. O MODELO DE ASSIMILAÇÃO PERCEPTUAL E SUA EXTENSÃO PARA A L2 Best (1994a) afirma que o MAP é um modelo em desenvolvimento, iniciado em meados da década de 1980 na tentativa de explicar os efeitos da experiência da língua materna (L1) na percepção de contrastes fonéticos da L2. Dois são os referencias teóricos do modelo, a Abordagem Ecológica de Percepção (Gibson, 1979), originalmente elaborada para explicar o fenômeno da percepção visual, e a Fonologia Articulatória (Browman, Goldstein, 1986). Elucidar estas teorias está fora do escopo deste artigo, mas em poucas palavras, a Abordagem Ecológica preconiza que a informação é captada diretamente do ambiente. De acordo com a teoria, o observador e o ambiente formam um sistema único e, portanto, para que a se dê a percepção não há necessidade de que ocorram complexos processos cognitivos. A informação é em si repleta de riqueza, variedade e precisão, aspectos que habilitam o observador a perceber o objeto. Isso implica que não há necessidade de alto nível de processamento cognitivo, como enriquecimento, inferência ou dedução. Entretanto, o observador não percebe as propriedades intrínsecas dos objetos, mas detectam invariantes que especificam o comportamento atribuído (afforded) ao objeto (Michaels, Carello, 1981; Eysenck, Keane, 2005). O conceito de affordance refere-se àquilo que o ambiente oferece ao observador para que ele perceba o objeto da maneira como o faz. Por exemplo, uma cadeira não seria percebida como um objeto cadeira, mas como um objeto cuja affordance (atribuição) é ‗sentar‘ (Eysenck, Keane, 2005). Segundo Gibson, a noção de affordance permite que não haja necessidade de alto nível de processamento cognitivo e de armazenamento em memória de longo prazo. O quanto das invariantes presentes na informação pode ser registrado pelo observador é governado pela atenção, caracterizado por Gibson como controle de detecção. Para a Abordagem Ecológica, a aprendizagem educa a percepção (Eysenck, Keane, 2005), sendo o papel da experiência o de melhorar a habilidade de perceber. Sob a ótica da Abordagem Ecológica, dois tipos de invariantes são comumente descritos em fonética e fonologia: informações com invariantes de baixa e de alta ordem gestual. Um gesto é definido como a formação e liberação de algum grau de constrição ao longo do trato vocal. Invariantes de baixa ordem gestual são gestos genéricos do trato vocal que constituem a fala, um tipo de informação que pode ser detectada tanto por humanos quanto alguns animais (Kuhl, 1991; Kreutzer et al., 1991; Best, 1994a). Em contraste, invariantes de alta ordem gestual são aquelas que caracterizam os traços distintivos de uma língua específica, aqueles gestos que refletem as atribuições comunicativas da L1 (Best, 1995b), as informações que de fato regulam a percepção da fala (Rosenblum, 2004; Chipley, 2008). Para Best (1994a, 1995b), a aprendizagem perceptual, ou educação da atenção nos termos da Abordagem Ecológica, é aprender a detectar as invariantes de alta ordem gestual que revelam as propriedades estruturais e funcionais da informação, de forma que o observador educado é capaz de ouvir através das irrelevantes invariantes de baixa ordem. Além disso, a Abordagem Ecológica alega que os padrões articulatório-gestuais da L1 podem tanto orientar como restringir a captação da informação das categorias fonéticas da L2. Já a Fonologia Articulatória busca unificar os dois domínios clássicos no estudo da produção de fala—a fonética, de domínio físico, e a fonologia, de domínio cognitivo. Assim o faz porque trata os dois domínios como baixa e alta dimensão de um sistema único. Neste sistema único, no qual os gestos articulatórios da produção da fala são as unidades básicas dos
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contrastes fonológicos, o domínio fonético-físico restringe o nível abstrato do domínio fonológico-cognitivo. Baseado em ambas as teorias, Best (1994a, 1995b) afirma que adultos percebem sons não nativos através da comparação entre as semelhanças e as diferenças dos padrões gestuais da L2 e da L1, principalmente quando o ouvinte tem pouca ou nenhuma experiência linguística com a L2. A percepção de semelhanças e diferenças é regulada pela atenção educada, o que por sua vez é dependente do aprendizado perceptual do domínio fonético da L1. A sintonia perceptual no sistema da L1 é vista como a descoberta gradual de camadas de informação presente nos estímulos de fala. Ou seja, tanto a fonologia da língua nativa quanto seus detalhes fonéticos são perceptualmente descobertos/aprendidos através da experiência, experiência esta que orienta a percepção do ouvinte a padrões sonoros não familiares. Best (2005) ilustra a influência da experiência linguistica com a descoberta de que bebês em torno de 10-12 meses começam a reconhecer os detalhes fonéticos sub-lexicais, as regras fonológicas e as constelações gestuais recorrentes entre os gestos fonético-articulatórios a que estão expostos (Best, 1994b, 2005). No curso do reconhecimento destas constelações gestuais, as crianças descobrem os significados lexicais e sintáticos associados aos padrões fonéticos recorrentes, ou seja, eles descobrem a estrutura fonológica da língua nativa. A partir do estabelecimento da organização básica de padrões articulatórios da L1, os aprendizes tendem a procurar cada vez mais por padrões articulatórios familiares e/ou nativos, mesmo na fala não-familiar e/ou não-nativa. A Abordagem Ecológica afirma que a percepção e a produção da fala em L1 estão fundamentalmente relacionadas (Best, 1995b). Tecnologia de imagem cerebral, como o magneto encefalografia, revela que as áreas de percepção e produção no cérebro já estão conectadas no início da infância—quando bebês de 6 meses ouvem sons de fala, tanto a área de Wernicke quanto a área de Broca são ativadas simultaneamente, um fenômeno que não ocorre na percepção de sons que ao sejam de fala (Dehaene-Lambertz et al., 2006). Além disso, enquanto as crianças de até 6 meses de idade são capazes de discriminar sons de qualquer língua (Meltzoff et al. 2009), como conseqüência da experiência lingüística adultos desenvolvem um ―sotaque‖ tanto na produção como na percepção de sons não nativos (Best, 1994b, 2005). Para Best, no entanto, a capacidade de detectar discrepâncias entre os padrões da L1 e da L2 não é perdida com a maturidade, uma vez que adultos conseguem perceber tanto as diferenças dialetais de sua própria língua como a fala estrangeira com sotaque. Best define como domínio fonético universal a variação de sons da fala produzidos pelo trato vocal, e como domínio fonético nativo os padrões gestuais do inventário que caracteriza as categorias fonéticas nativas. Externo ao domínio fonético estaria o espaço não fonético, ocupado por sons que, embora produzidos pelo trato vocal, não são percebidos como sons de fala, tais como tosse, engasgos, risos ou assovios. Seguindo o raciocínio da Abordagem Ecológica, quando confrontados com sons da fala os ouvintes procuram ativamente por invariantes de alta ordem que especifiquem seus gestos articulatórios. O padrão fonológico de qualquer língua obedece às possibilidades físicas biomecânica do trato vocal. Cada língua possui o seu próprio espaço fonológico. Um espaço fonológico é um sistema que relaciona a estrutura interna dos fonemas (visto como um conjunto de traços distintivos) à estrutura do sistema fonológico como um todo. Um sistema fonológico, assim, aloca cada fonema em uma área específica dentro de todo o espaço que o sistema fonológico abrange. Por exemplo, a Figura 1 mostra dois sistemas fonológicos vocálicos diferentes, à esquerda do espanhol e à direita do inglês californiano. Em um sistema vocálico em que /a/ é a única vogal baixa, como em espanhol, sua localização é aproximadamente mediana no espaço fonológico. Em contrapartida, o inglês tem duas vogais baixas, // e //, sendo que o
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// ocupa uma posição mais à frontal no espaço, enquanto o // está numa região mais posterior (Bynon, 1996).
Figure 1 - Os espaços fonológicos vocálicos do espanhol
Fonte: Espanhol: Gasser, 2009. Inglês: Ladefoged, 2001. Assim, Best afirma que o domínio fonético universal está contido no espaço fonológico, enquanto o domínio fonético nativo regulamenta o lugar no qual um gesto ocupa no espaço fonológico. Sons não nativos são percebidos ―como possíveis locais para gestos que podem servir como unidades fonológicas‖ (Best, 1995b, p. 190, tradução da autora). O MAP tem como fundamental premissa a proposição de que os segmentos da L2 tendem a ser percebidos de acordo com suas semelhanças e diferenças com os padrões articulatório-gestuais mais próximos das categorias da L1 no espaço fonológico nativo. Best (1994a, 1995b) argumenta que dependendo da distância entre os segmentos da L1 e da L2 no espaço fonológico nativo, o segmento não nativo pode ser percebido de três maneiras amplas: (a) como segmentos categorizáveis, nos quais as invariantes gestuais de ambas as línguas podem ser percebidas como similares, sendo que neste caso o som da L2 é assimilado numa categoria da L1; (b) como segmentos incategorizáveis, nos quais o som da L2 é percebido como um gesto de fala, mas a sua organização não é assimilada a nenhuma categoria específica L1, e (c) como não-assimilável, quando o segmento da L2 não é percebido como um som de fala, a sua organização gestual ocupa uma área fora do espaço fonológico nativo, não sendo assimilado a qualquer categoria L1. Quando os segmentos da L2 são categorizáveis, ou seja, são assimilados numa categoria da L1, esta assimilação pode ocorrer de três formas diferentes: (a) como um bom exemplo da categoria da L1; (b) como um exemplo aceitável da categoria da L1, embora não ideal; (c) como um exemplar desviante da categoria da L1. A maneira como a assimilação se dá—boa, aceitável ou desviante—seria o fator determinante na discriminabilidade entre os membros dos contrastes da L2, entre os sons da L2 e da L1 e no potencial de aprendizagem dos sons não nativos. Best argumenta que a avaliação de assimilação de um único segmento da L2 no espaço fonológico da L1 não demonstra como a percepção de fato ocorre. Tarefas nas quais os participantes devem identificar um único segmento, por exemplo, seria inapropriado para examinar a assimilação de sons não nativos. Segundo ela, estruturas fonológicas ―englobam as relações funcionais sistemáticas entre formas fonéticas de um idioma, incluindo contrastes segmentares distintivos, a alternações alofônicas, as limitações fonotáticas e outros processos fonológicos‖ (Best, 1994a, p. 261, tradução da autora). Desta forma, Best afirma que somente uma relação sistemática entre diferentes categorias é capaz de capturar as invariantes de alta ordem da L2 e da L1, ao invés da simples detecção de uma única categoria. Ou seja, através da detecção de uma única categoria pode-se determinar se uma instância de /b/ é um exemplo da categoria /b/. Porém, sem uma comparação entre diferentes categorias o observador poderá
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não detectar a constrição que distingue entre /b/ e /d/, por exemplo. Enquanto a detecção de uma única categoria demanda a percepção de invariantes de baixa ordem, comparações entre diferentes categorias demandam a percepção de invariantes de alta ordem, justamente aquelas que determinam as semelhanças e diferenças entre os segmentos da L1 e da L2. Assim sendo, Best argumenta que as tarefas perceptuais que comparam diferentes categorias da L2 são mais propensas a revelar as relações funcionais dos sistemas fonológicos da L1 e da L2, ao invés de tarefas perceptuais que testam a assimilação de uma única categoria da L2. É importante lembrar a distinção entre as categorias fonéticas e fonológicas que Best e colegas descrevem. Categoria fonológica refere-se às informações que propiciam diferenças léxico-funcionais. Em contrate, categoria fonética refere-se às distinções não lexicais, como alofones ou realizações fonéticas próprias de línguas ou dialetos que, por exemplo, podem fornecer informações perceptuais sobre a região ou a identidade do falante. O MAP propõe seis possíveis padrões de assimilação, ou categorização, e os níveis de discriminabilidade para cada membro do contraste de acordo com cada padrão de assimilação. O modelo de percepção de sons de L2 foi recentemente ampliado a fim de prever a aprendizagem perceptual de sons da L2 (PAM-L2, Best, Tyler, 2007). Uma vez que as previsões de aprendizagem perceptual são intrinsecamente relacionadas ao padrão de assimilação e de discriminabilidade, ambas as versões do modelo serão, tanto quanto possível, descritas paralelamente. O segmento // será utilizado para ilustrar as previsões dos modelos, um segmento vulnerável ao fenômeno da substituição diferencial. Substituição diferencial refere-se à diferentes tipos de realizações fonéticas de um mesmo segmento, seja numa mesma língua ou línguas diferentes (Weinberger, 1997). O fonema // é tipicamente substituído por [t] por falantes de francês canadense (Brannen, 2002), de russo (Weinberger, 1997), de holandês (Wester et al., 2007), e de português brasileiro (Reis, 2006, 2010), e substituído por [s] por falantes de francês europeu (Brannen, 2002), de japonês (Brown, 1997; Lambacher et al., 1997) e de alemão (Hancin-Bhatt, 1994). Razões perceptuais são comumente citadas como provável motivo pela substituição diferencial de // (Hancin-Bhatt, 1994; Weinberger, 1997; Brannen, 2002; Blevins, 2006). Supondo que o os membros do contraste da L2 seja constituído pelas realizações inglesas [] e [t], eles poderão ser assim assimilados por falantes de línguas que não possuem estas realizações fonéticas: 1. Assimilação do Tipo Duas-Categorias (DC): ocorre quando ambos os membros do contraste, [] e [t] no exemplo, são assimilados em duas categorias diferentes da L1, digamos que o primeiro seja assimilado como /s/ e o segundo como /t/. Como os membros da L2 têm dois padrões distintos de assimilação, a prevê-se que a discriminação entre os membros seja excelente (Quadro 1). Quadro 1 - O padrão de assimilação perceptual do tipo Duas-Categorias e a previsão de discriminação segundo o MAP. Padrão de assimilação perceptual (MAP) Tipo DC Assimilação segmento L2 categoria L1 2 L2 2 L1 Previsão de discriminação Excelente
[]-[t] /s/-/t/
A aprendizagem perceptual segundo o MAP-L2, para qualquer tipo de padrão de categorização, será determinada por quão bem os membros do contraste da L2 são assimilados na L1—quanto mais próximos os sons da L2 estiverem dos padrões articulatóriogestuais da L1 no espaço fonológico nativo, mais facilmente eles serão assimilados como uma
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categoria da L1 e mais difícil será o aprendizado. A aprendizagem perceptual do tipo DuasCategorias se sobrepõe a outro padrão de categorização (Incategorizável versus Categorizável), seguindo o raciocínio usado por Best e Tyler (2007) na explanação do MAPL2, voltarei a este tópico após a explicação de todos os tipos de assimilação. 2. Assimilação do Tipo Afinidade-Categórica (AC): ocorre quando ambos os membros do contraste são assimilados em uma única categoria da L1. No entanto, um membro é percebido como melhor exemplar da categoria L1 que o outro. Por exemplo, ambos os segmentos de L2 [] e [t] podem ser assimilados como o L1 /t/, [t] pode ser ouvido como uma instância aceitável do L1 /t/, não ideal porque /t/ é aspirado em início de palavras inglesas, enquanto // pode ser percebido como um exemplar de desviante de /t/. Para este tipo de assimilação, a discriminação entre os pares pode variar de moderada a muito boa. O nível de discriminabilidade dependerá do grau de afinidade categórica para cada segmento da L2—quanto mais um membro se desvia da categoria da L1 pela qual se deu a assimilação, maior a chance de discriminação. Quanto à aprendizagem perceptual dos sons não nativos, Best e Tyler (2007) argumentam que a constante exposição à L2 pode possibilitar que os ouvintes formem uma categoria fonética e fonológica para o exemplar desviante. No entanto, não se espera que haja aprendizagem perceptual para o segmento considerado aceitável. Os autores ressaltam que a percepção de afinidade é o que determina a possibilidade de aprendizado—quanto menor a afinidade do segmento da L2 com a categoria da L1, maior a possibilidade de aprendizagem (resumo do exposto no Quadro 2). Quadro 2 - O padrão de assimilação perceptual do tipo Afinidade-Categórica, a previsão de discriminação segundo o MAP e a previsão de aprendizagem perceptual segundo o MAP-L2. Padrão de assimilação perceptual (MAP) Tipo AC Assimilação segmento L2 categoria 2 L2 1 L1 []-[t] /t/-/t/ L1 1º L2: desviante; 2º L2: aceitável Previsão de discriminação Moderada a muito boa Aprendizagem perceptual (MAP-L2) Segmento desviante possível Segmento aceitável difícil 3. Assimilação do Tipo Única-Categoria (UC): ocorre quando ambos os membros são assimilados para a mesma categoria L1. Diferente do tipo Afinidade-Categórica, no entanto, neste caso ambos os membros do contraste são percebidos como igualmente desviantes ou igualmente aceitáveis exemplares da categoria da L1. No exemplo com os segmentos ingleses [] e [t], ambos os sons podem ser percebidos como uma única categoria /t/ da L1, sendo ambos aceitáveis ou ambos desviantes da categoria nativa. Uma vez que ambos os membros são assimilados em uma única categoria da L1, presume-se que a discriminação seja difícil. A aprendizagem perceptual dos segmentos da L2 dependerá, novamente, de quão bem os sons são assimilados na categoria da L1 (resumo no Quadro 3). No entanto, os autores argumentam que é improvável ocorrer aprendizagem, eles pressupõem que os ouvintes ―teriam que primeiro aprender perceptualmente uma nova categoria fonética para pelo menos um dos sons da L2, para que então pudessem estabelecer uma nova categoria, ou categorias, fonológicas‖ (Best, Tyler, 2007, p. 30, tradução da autora). Quadro 3 - O padrão de assimilação perceptual do tipo Única-Categoria, a previsão de discriminação segundo o MAP e a previsão de aprendizagem perceptual segundo o MAP-L2.
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Padrão de assimilação perceptual (MAP) Tipo UC Assimilação segmento L2 categoria 2 L2 1 L1 L1 ambos desviantes ou ambos aceitáveis Previsão de discriminação Difícil Aprendizagem perceptual (MAP-L2) Improvável
[]-[t] /t/
Além disso, Best e Tyler afirmam que, para qualquer padrão de assimilação, a pressão por comunicação clara e precisa aumenta a probabilidade de aprendizagem perceptual. Ou seja, maior será a chance de aprendizagem se o segmento da L2 estiver inserido em palavras de alta frequência, se possui pares mínimos, ou fizer parte de contextos fonológicos densos. Palavras em contextos fonológicos densos são palavras com grande semelhança fonológica, nas quais o significado se altera com a adição, a exclusão ou a substituição de único fonema, como nas palavras inglesas cat, hat, at, cut, ou cap (Walley, 2007). 4. Assimilação do Tipo Ambos-Incategorizáveis (AI): ocorre quando ambos os membros do contraste encontram-se no espaço fonológico, mas não correspondem a qualquer categoria específica da L1. Os sons ingleses [] e [t], por exemplo, seriam ouvidos como sons de fala, mas não se assemelhariam a qualquer categoria específica da L1, poderiam ser assimilados igualmente como /t/, /f/ ou /s/, ou ainda como qualquer outro segmento da L1. O PAM prevê que a discriminação entre os membros seja entre difícil a muito boa. Esta disparidade entre difícil e muito boa discriminação ocorre porque a discriminabilidade depende da proximidade que os membros da L2 ocupam no espaço fonológico nativo e no quanto eles se distanciam perceptualmente da(s) categoria(s) da L1 mais próxima deles. A aprendizagem perceptual dependerá da relação que as categorias fonéticas da L2 e da L1 têm dentro do sistema interfonológico, não somente as semelhanças e diferenças entre os sons da L2 e da categoria individual da L1 mais próximo deles. Ou seja, pode ser que haja vários segmentos da L1 percebidos como semelhantes aos sons da L2. Neste caso, duas são as possibilidades de aprendizagem: primeiro, se cada um dos sons da L2 tem semelhanças com diferentes segmentos da L1 (2 L2 L1 /X/ e L1 /Y/), sendo que L1 /X/ e L1 /Y/ estão distantes entre si no espaço fonológico, os ouvintes provavelmente reconhecerão as diferenças léxico-funcionais dos sons da L2, o que poderia acarretar em aprendizagem de duas novas categorias fonológicas da L2. Na segunda possibilidade, os sons da L2 são percebidos como semelhantes à um segmentos da L1 muito próximos entre si no espaço fonológico (2 L2 L1 /X1, X2/), assim tanto a discriminação quanto a aprendizagem perceptual dos dois sons da L2 seriam difíceis. Neste caso, uma nova e única categoria fonológica para ambos os sons da L2 poderia ser aprendido (resumo no Quadro 4). Quadro 4 - O padrão de assimilação perceptual do tipo Ambos-Incategorizáveis, a previsão de discriminação segundo o MAP e a previsão de aprendizagem perceptual segundo o MAP-L2. Padrão de assimilação perceptual (MAP) Tipo AI Assimilação segmento L2 categoria 2 L2 não específico L1 []-[t] /t, f, s, ?/ L1 Previsão de discriminação 2 L2 L1 /X/ e L1 /Y/: possibilidade de muito boa 2 L2 L1 /X1, X2/: difícil Aprendizagem perceptual (MAP-L2) 2 L2 L1 /X/ e L1 /Y/: aprendizagem possível 2 L2 L1 /X1, X2/: difícil
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5. Assimilação do Tipo Incategorizável-Categorizável (IC): ocorre quando um membro não corresponde a uma categoria específica da L1 e o outro sim. No exemplo, [] seria ouvido como um som de fala, mas sua organização gestual estaria fora de qualquer categoria específica da L1, enquanto [t] poderia ser ouvido como um exemplo do L1 /t/. Assim, uma vez que um membro do contraste é assimilado em uma categoria L1 enquanto o outro é percebido meramente como som de fala, espera-se que a discriminação entre os membros seja muito boa (Quadro 5). Quadro 5 - O padrão de assimilação perceptual do tipo Incategorizável-Categorizável e a previsão de discriminação segundo o MAP. Padrão de assimilação perceptual (MAP) Tipo IC Assimilação segmento L2 categoria 2 L2 []-[t] L1 1º L2: não específico L1 /t, s, f, ?/ - /t/ 2º L2: 1 L1 Previsão de discriminação Muito boa 6. Assimilação do Tipo Não-Assimilável (NA): ocorre quando a organização gestual de ambos os membros do contraste não são percebidos como pertencentes ao domínio da fala. Neste tipo, tanto [] como [t] não seriam percebidos como sons semelhantes aos da fala humana. Espera-se que a discriminação entre os membros seja de boa a muito boa, dependendo de quão distante eles se encontram em termos gestuais, mesmo que fora do espaço fonológico. Quanto mais perto eles estiverem, mais difícil será a discriminação (Best, 2005). Best e Tyler (2007) sugerem uma investigação mais aprofundada sobre as possibilidades de aprendizagem perceptual deste padrão de categorização, já que afirmam não saber se os segmentos percebidos fora do espaço fonológico podem, ao cabo de muito contato com a L2, integrar o espaço fonológico da L1 como uma categoria fonética (Quadro 6). Quadro 6 - O padrão de assimilação perceptual do tipo Não-Assimilável, a previsão de discriminação segundo o MAP e a previsão de aprendizagem perceptual segundo o MAP-L2. Padrão de assimilação perceptual (MAP) Tipo NA Assimilação segmento L2 categoria L1 2 L2 L1 []-[t] ? Previsão de discriminação Boa a muito boa Aprendizagem perceptual (MAP-L2) A investigar A respeito de aprendizagem perceptual, dois tipos de assimilação restam a discutir— Duas-Categorias (DC) e Incategorizável-Categorizável (IC). Se apenas um membro de um contraste L2 é percebido como uma boa categoria da L1, nenhum aprendizado é esperado para esse membro. Neste caso, qualquer contraste deste membro com outro som da L2 resultará em assimilação do tipo DC ou do tipo IC. Best e Tyler (2007) preveem duas possibilidades para esses casos: (a) as categorias da L1 e da L2 são fonológica e foneticamente percebidas como boas equivalentes, o que resulta em pouco ou nenhum aprendizado perceptual, e (b), o som da L2 é percebido como um exemplar foneticamente e fonotaticamente desviante da categoria da L1, embora no nível fonológico eles tenham o mesmo papel léxico-funcional. Como exemplo de ―diferença fonética-fonotática‖ mas ―semelhança fonológica-funcional‖, Best (1995) e Best e Tyler (2007) citam a produção do fonema /r/ em francês e em inglês—compartilham do mesmo nível fonológico, mas diferem em nível fonético. Para os autores, neste caso é possível que haja aprendizagem perceptual no curso do desenvolvimento da L2. O Quadro 7 resume os dados de aprendizagem perceptual para os tipos DC e IC de categorização.
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Quadro 7 - Os padrões de assimilação perceptual do tipo Duas-Categorias (DC) e Incategorizável-Categorizável (IC), a previsão de discriminação segundo o MAP e a previsão de aprendizagem perceptual segundo o MAP-L2. Padrão de assimilação Tipo DC Tipo IC perceptual (MAP) Assimilação segmento L2 2 L2 2 L1 2 L2 2 L1 2 L2 []-[t] 1º L2: não /t, s, f, ?/ - /t/ categoria L1 específico L1 2º L2: 1 L1 Previsão de discriminação Excelente Muito boa Aprendizagem perceptual Membro com boa assimilação nenhum aprendizado (MAP-L2) (a) equivalência fonética e fonológica entre L1 e L2 pouco ou nenhum aprendizagem (b) L2 é bom exemplar, mas difere foneticamente possível aprendizagem Uma vez descritos os modelos e, brevemente, sua fundamentação teórica, resta saber por que e como utilizá-los. Os modelos de percepção ou aprendizagem em interfonologia são proposições que procuram explicar o complexo fenômeno de contato e aquisição de um sistema fonológico diferente do nativo. A contribuição à ciência virá somente através de estudos que testem se estas proposições têm fundamentos. Pesquisas descritivas, o formato mais comum de pesquisa em interfonologia no Brasil, se beneficiariam da utilização do MAP e/ou do MAP-L2. Poderiam continuar a informar que determinados sons da L2 são desta ou daquela forma percebidos por determinados grupos de falantes não nativos. Porém, estes estudos contribuiriam mais à ciência da interfonologia e da compreensão da percepção, produção e aprendizagem de sons da L2 se testassem as previsões de assimilação, de discriminabilidade e de aprendizagem propostos por este ou outros modelos. A seguir, exponho brevemente como o MAP e o MAP-L2 podem ser utilizados.
COMO UTILIZAR OS MODELOS Para empregar o MAP e o MAP-L2 é importante ter em mente que eles foram desenvolvidos tendo como base três principais perspectivas: (a) seguem a Abordagem Ecológica como o principal arcabouço teórico da percepção da fala. Dentro desta fundamentação, a informação é detectada diretamente através de um sistema integrado de percepção, sem auxílio de qualquer módulo inato de percepção de fala; (b) procuram explicar a percepção de falantes de L2 caracterizados como monolíngues funcionais, isto é, buscam elucidar a percepção de sons por pessoas que não estão diretamente aprendendo ou utilizando a L2 e são, portanto, linguisticamente ingênuos para os padrões de som dessa língua (Best, 2005; Best, Tyler , 2007); (c) devem ser utilizados para esclarecer a percepção à segmentos não familiares por adultos. As previsões sugeridas pelos modelos, sobretudo pelo MAP, foram examinadas empiricamente e resultados conflitantes foram encontrados. Por um lado, Wayland (2007) afirma que a maioria dos estudos com metodologia post hoc examinaram e corroboraram a
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relação entre padrões de assimilação perceptual e discriminabilidade. Por outro lado, os poucos estudos que analisaram os dados de uma forma ad hoc (Guion et al., 2000; Best Et Al, 2001; Harnsberger, 2001; Wayland, 2007; Reis, 2010) tiveram dificuldades em apoiar inteiramente a relações entre assimilação e discriminabilidade. Portanto, acredito que um design ad hoc seja o mais adequado na avaliação dos modelos. Ou seja, um teste que primeiro avalie o padrão de assimilação, antecipe a discriminabilidade entre os sons, para somente então testar a discriminação entre seus membros. Best (1995b, p. 194) afirma que a assimilação de sons não nativos no sistema da L1 pode ser examinada ―por meio de testes de identificação (rotulagem), de classificação ou de categorização (incluindo avaliações de afinidade) de sons não nativos‖ (tradução da autora). No entanto, o design mais comum de testes de assimilação perceptual consiste na combinação de tarefa de identificação e tarefa de avaliação de afinidade (category-goodness rating task). Na tarefa de identificação, os participantes são solicitados a primeiro identificar o som ouvido, geralmente utilizando um rótulo dentre um conjunto de possibilidades oferecidas. Em seguida, na tarefa de afinidade, os participantes devem avaliar o quanto o som ouvido afinizase, ou assemelha-se, ao rótulo que corresponde ao som em teste, nativo ou não. Por exemplo, o participante pode ouvir o som de [], primeiro o identifica utilizando um dos rótulos oferecidos, digamos que as consoantes T, F ou S. Em seguida deve marcar numa escala de afinidade o quanto o rótulo escolhido assemelha-se à consoante escolhida em sua L1, digamos que 1 corresponda a ―som completamente diferente‖ e 10 a ―som exatamente igual‖. Com os dados de identificação e avaliação de afinidade pode-se concluir o padrão de assimilação dos sons da L2 no sistema nativo e, a partir dos modelos MAP e MAP-L2, prever como será a discriminação entre os membros dos contrastes testados, assim como a possível aprendizagem perceptual. Em seguida avalia-se a discriminação categórica dos contrastes, verificando-se se a discriminabilidade prevista foi corroborada. Já a aprendizagem perceptual dos contrastes deverá ser examinada através de estudos longitudinais nos quais os testes de assimilação (identificação/afinidade) e discriminação categórica são repetidos esporadicamente. Acredito que os modelos sejam mais apropriados para testar a assimilação de consoantes uma vez que as vogais são produzidas em contínuo e são acusticamente diferenciadas pelas relações dos formantes. Neste caso, a percepção tende a acontecer também em contínuo. Por outro lado, as consoantes demonstram percepção categórica, importante característica para um modelo de percepção que tem no gesto a unidade fonológica básica. Embora o MAP ou MAP-L2 não proponham ou façam previsões a respeito da relação entre percepção e produção de L2, os defensores da Abordagem Ecológica advogam que a aprendizagem continua ao longo da vida adulta, uma vez que qualquer informação não detectada em determinado momento estará sempre disponível ao observador. Um exemplo de reeducação da percepção está no fato de que mesmo adultos podem alterar o seu sotaque regional na L1. Best não afirma explicitamente que a percepção acurada da L2 anteceda, oriente ou ocorra simultaneamente à produção em padrão nativo da L2. No entanto, pode-se deduzir que Best e colegas partilham da proposição de que a percepção e a produção estejam relacionadas1. Best (1994a) afirma que seria paradoxal se o desempenho acurado (produção) 1
Literatura revisada: Best et al., 1981; Best, Hoffman, Glanville, 1982; Best 1984, 1988, 1993, 1994a, 1994b, 1995a, 1995b, 1999, 2002, 2005, Best et al, 1988; Best et al., 1989; Best, Queen, 1989; Best, Strange, 1992; Best, Womer, Queen, 1994; Best et al., 1995; Best, Jones, 1998; Best, Avery, 1999; Best, McRoberts, Goodwell, 2001; Best et al., 2003; Best, McRoberts, 2003; Best, Halle, Pardo, 2007; Best, Tyler, 2007; Best et al., 2009.
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precedesse a competência (percepção) acurada. Por fim, Best (2005)1 afirma que o ―sotaque‖ na percepção da fala está provavelmente envolvido com as dificuldades em dominar uma produção no padrão nativo da L2, especialmente para o aprendizes adultos. Assim sendo, pesquisas poderiam examinar se os padrões de assimilação e de discriminação de sons da L2 têm relação com a forma como os sons são produzidos. Ainda que os modelos não sugiram esta relação, se iterados estudos a demonstrarem, esta seria uma grande contribuição na compreensão do complexo fenômeno entre percepção e produção da fala não nativa.
CONCLUSÃO Este artigo apresentou, sucintamente, como se dá a percepção de sons de L2 sob a perspectiva do Modelo de Assimilação Percetual e sua extensão para a L2. Trata-se de uma introdução em português aos modelos e à algumas formas de utilização empírica. Sem dúvida é imprescindível a leitura dos textos originais para a compreensão do desenvolvimento e fundamentação teórica dos mesmos, assim como dos mais diversos métodos utilizados pelas dezenas de estudos que os utilizam. Não acredito que, necessariamente, deva-se compartilhar do suporte teórico que norteia o MAP e o MAP-L2. Pessoalmente tenho reservas quanto a uma abordagem ascendente (bottom-up) de percepção como única fonte de explicação do fenômeno. Concordo com a afirmação de Sternberg (2003) de que a percepção da fala é um fenômeno por demais complexo para ser explicado por uma única teoria e que uma ―teoria de percepção completa deverá, necessariamente, incluir ambas as abordagens ascendentes e descendentes [topdown]‖ (p. 127, tradução da autora). No entanto, os modelos propõem hipóteses a respeito da percepção de sons não nativos inteiramente passíveis de exame e este é o papel da ciência—contribuir no suporte ou na falseabilidade de uma proposição.
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Gravação de áudio de Best (2005) na apresentação ―Conceptualising the development of the native listener: What are infants attuning to when they become perceptually tuned to the ‗sound patterns‘ of native speech?‖, disponível em <http://www.hcsnet.edu.au/files2/arch/ concom05/presentations/03.html>.
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A ÁGUA e A SECA: ATALHOS DA ORALIDADE Maria Generosa Ferreira Souto 1 RESUMO: A intenção desta comunicação é refletir sobre as metáforas da seca e da água na dinâmica social dos barranqueiros, que vivem nas agruras e durezas da seca, porém cercados pelas águas do rio São Francisco, compreendendo de Pirapora a Manga, ao norte de Minas Gerais. É específico em minha proposta discutir o São Francisco diferentemente de Grande Sertão: Veredas, não como elemento paisagístico, delimitador de territórios, mas um engendrador de lendas, antropozoomorfizado, perquirindo como os barranqueiros se representam nas suas manifestações e relações sociais no constructo de um só corpo: fabricar/narrar. Noutra travessia, farei uma metatextualidade no sertanejo, interligando o fazer fragmentário, numa espécie de ―quadros‖, no caminho das águas ribeirinhas. Palavras-chave: Oralidade; Rio São Francisco; narrador tradicional. The WATER and DRIES: SHORTCUTS OF THE ORALITY ABSTRACT: The intention of this communication is to reflect on the metaphors of dries and of the water in the social dynamics of the barranqueiros, that live in the agruras and durezas of dry, however surrounded by waters of the river San Francisco, understanding of Pirapora the Sleeve, to the north of Minas Gerais. He is specific in my proposal to differently argue the San Francisco of Great Hinterland: Trails, not as paisagístico element, delimiter of territories, but a engendrador of legends, antropozoomorfizado, investigating as the barranqueiros if represent in its manifestations and social relations in constructo of one alone body: to manufacture/to tell. In another passage, I will make a metatextualidade in sertanejo, establishing connection fragmentary making, in a species of ―pictures‖, in the way of marginal waters. Keywords: Orality; River San Francisco; traditional narrator.
É sempre um dilema ter que transpor ao mundo da escrita o universo da oralidade. A fala acompanhada dos gestos, do corpo, dos olhares, do riso, isto é, ―a mídia primária‖ (HARRY PROSS, 1971), mobiliza inúmeras ideias de como fazer uma travessia nos mitos que circundam a seca e a água às margens do Rio São Francisco, precisamente no norte de Minas Gerais. É com poesia que vejo as nuanças da oralidade, percebendo o múltiplo na experiência desses barranqueiros do Velho Chico para intercambiar ―sabenças‖, termo usado por Mário de Andrade, enfrentando, a seu modo, a luta pela sobrevivência nas pequenas cidades, porém não deixando desaparecer as narrativas orais, que Walter Benjamin (1987) afirma estarem desaparecendo. Veja como ressalta o autor: 1
Doutora em Comunicação e Semiótica. Mestre em Letras: Literatura Brasileira. Membro do Grupo de Pesquisas em Estudos Literários. Professora de Literaturas de Expressão Portuguesa, no Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES.e-mail: generosas@hotmail.com
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Ela [a narrativa] tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma discussão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida (...). O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria, o lado épico da realidade, está em extinção (Benjamin, 1987: 200). Discordo de Walter Benjamim, pois a tradição do ato de contar nas barrancas do Velho Chico continuam vivas, porém transformadas, fragmentadas, em memória coletiva. E estão vivas as memórias dos mitos das águas, justamente porque se transformaram. Trata-se de uma transformação nas chamadas reciclagens culturais, culturas híbridas, conforme Néstor G. Canclini (1997), uma condição da tradição. E esta tradição alia-se ao pragmático e define certas estratégias de enfrentamento da condição miserável em que vivem. São significativas as imagens que se colocam diante de nós: a fome que mata e que, em certa medida, conduz parte da revivescência do cabedal cultural e histórico dessas pessoas. A seca apresenta-se como um marco na memória dos barranqueiros do Velho Chico. A construção de memória da seca transita por caminhos diversos e muito específicos. Quando os barranqueiros re-citam suas lembranças, estão falando da vida nas suas mais entrelaçadas conexões temporais. Há um diálogo em travessia. As imagens clássicas da seca vão sendo abandonadas para dar lugar às metáforas do cotidiano, expressando angústia, mágoa ou conquista. A seca se veste de esterilidade. Com efeito, ela designa uma fase de provocações, que aqui se traveste em peças de barro, de lama, numa performance sobrecarregada de voz e de imagem: os potes e as moringas da cidade de São Francisco. Durante a feitura no barro, surgem os mitos do Caboclo d‘água, da Mãe D‘água, do Romãozinho, do Surubim Gigante debaixo da igreja matriz de São José, da Mula-sem-cabeça, do Cavaleiro encantado, do Espírito do armário, da Mulher de sete metros, do Lobisomem e da tocha encantada. Cada peça, pacientemente transformada em potes e em moringas, tem nas suas formas uma insuspeitada explicação cercada da tradição de contar. Todo barro tem em seu processo de feitura um narrar associado ao saber e à vivência de seu artesão. Assim sendo, o artesanato no barro e nas ―narrativas orais são representações do imaginário social e propiciam uma troca da exotopia, entendida aqui como o ato de olhar de fora a cultura estrangeira‖ (SOUTO, 2001). Antonio Candido apontou que o rio São Francisco, em Grande Sertão: Veredas, divide o mundo do sertão em duas partes: ―o lado direito e o lado esquerdo, carregados do sentido mágico-simbólico que essa divisão representa para a mentalidade primitiva‖. Os mitos acima descritos povoam o lado direito do rio. Apesar de toda a imensa rede associativa tecida pelo rio em GSV, faço uma ancoragem no simbolismo universal de fecundação, de fertilização do São Francisco. A água é fonte de vida. Gaston Bachelard afirma que a água ―é matéria fundamental para o inconsciente‖, e que ela deve comandar a terra. É o sangue da Terra. É a vida da Terra. É a água que vai arrastar toda a paisagem para seu próprio destino‖. Como se vê, percebe-se que Bachelard diz da água em sendo um signo que se torna pouco a pouco uma contemplação que se aprofunda, e que para ele é um elemento materializante, que arrasta o destino, a memória, numa espécie de travessia da identidade.
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E a água é, portanto, travessia iniciativa e emblemática. São duas ambiguidades contraditórias que povoam o imaginário do barranqueiro: a seca e a água do Velho Chico. Nesse enquadramento é que se pode ler a travessia do rio São Francisco para o encontro de fartura, de frutas, de néctar, de vida, após a chuva ou com a irrigação da terra, que ora se sentia seca, infértil. E subindo o rio, achamos o tecido pronto de Seu Manoel, em Ibiaí: as peneiras. Para cada entrelaçada da taboca, uma nova tessitura sobrecarregada de sentido. Os barranqueiros do São Francisco são como poetas natos, que re-citam as poéticas da oralidade e encontram a água viva, a água que renasce de si, a água que não muda, a água que marca com seu signo indelével as suas imagens, a água que é um órgão do mundo, como diz Bachelar ―um alimento dos fenômenos corredios, o elemento vegetante, o elemento lustrante, o corpo das lágrimas‖. Pensando dessa forma, apreendemos os elementos lustrantes nos mitos re-citados a cada dia, transformados, híbridos e vivos. Em Januária, encontrei a Associação dos balaieiros, que tecem as metáforas do tempo num misto de história e encantamento. O homem não experimenta mais nenhum impulso, não concebe nenhuma ideia, nem luz, nem calor, nem tato, caso não fabrique com as mãos a própria vida, o artesanato da memória. Entretanto, é na fase da seca que os barranqueiros do Velho Chico alcançam a maior intensidade, que a sua natureza ígnea se revela e que o seu fogo se introduz na imortalidade da união bem-aventurada. E daí surgem os mitos da seca, os mitos da identidade norte-mineira, transformados, mas em continuidade. O modus faciendi do artesanato da memória dos barranqueiros mostra-se relevante na construção de que deveríamos distinguir nas narrativas orais aquilo que é lembrado e faz a permanência da identidade cultural. O como se lembra ainda se dá através do ato de feitura mais tessitura. É um jogo do continuum. E nesse jogo, o narrador artesão tem o saber denotado na linguagem popular. Alimentar a palavra com a essência do vivido, moldando-a na prática da vida e, com isso, constrói sua identidade. Construindo o corpo narrativo, a partir da feitura das gamelas, das colheres de pau, das carrancas, dos barcos e remo, qual seria, enfim, a proposta dessas peças? Num e noutro caso, essa proposta talvez seja a de união (re)criação, mesmo, no entrelugar, no interdito. É a apreensão do maravilhoso, que aqui chamo toda alteração inesperada da realidade, ―o milagre‖, o metonímico, o inexplicável. No discurso da madeira esculpida, da carranca, o eu narrador diz das personagens e com as personagens, surgindo outras vozes, enunciadoras de outros diálogos. Já no discurso do barro, as narrativas são viabilizadas por um movimento dialógico enquanto espaço que se caracteriza pela mobilidade e pela reversibilidade em um só corpo: narrar/fabricar. Penso a oralidade, concordando com Ivete Walty (1998) quando diz que significa troca, interatividade, um jogo do continuum. Pode, também, ser considerado um rito de iniciação, quando o ato de construir/narrar é passado de geração para geração é feito como se fosse um processo ritualístico de estar sempre iniciando, numa espécie de narrador-viajante que Benjamin nos ensinou a conhecer, mergulhando na vida do contador e é dela extraída como informação útil ou ensinamento. O narrador é dependente da sua matéria-prima: a palavra viva, com atalhos, com tradição, com memória operadora de sentidos. Tenho me colocado a escutar e a degustar as histórias que esses barranqueiros reservam para seus ouvintes habituais, durante os serões noturnos, muito libidinal, uma verdadeira poesia oral. Cada mito re-citado é revestido de memória individual e de poesia. A memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, em forma de lembranças, inspiradas em conversas e escutas dos outros. Nada é original, mas é a partir das idéias do meio,
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passam a elaborar os seus próprios mitos e seus valores que circulam na práxis coletiva, conforme Alfredo Bosi (1987). Conforme Generosa Souto (2001), ―em grande parte da memória entra em cena a lembrança envolvedora do contador-barranqueiro‖ e dessa forma a memória passa a significar um processo de imersão na comunidade, na família, na infância, reencontrando as origens num misto de voz e imagens múltiplas de saudade, de prazer, de gozo. Dessa forma, vale ressaltar que combinar voz e imagem na escuta faz parte de uma busca pelo que Paul Zumthor (1993) ensina sobre performance na poesia oral. Em seu estudo sobre a literatura oral na Idade Média, Zumthor queixa-se do fato de a oralidade não ser interrogada sobre a sua natureza ou sobre suas funções próprias, e também não o ser a Idade Média lugar de ressonância de uma voz. Toda a filologia do século XIX, e mesmo do século XX, foi um dos métodos elaborados sob a influência do preconceito contra a oralidade da poesia medieval, que fez da escritura a forma dominante-hegemônica-da linguagem. Ao analisar as nuances do processo do narrador tradicional, chamou-se a atenção para um ponto instigante na abordagem da cultura popular expressa na oralidade: o ato de narrar, será a performance. Como Graciliano Ramos, faço uma travessia como metatextualidade no psicológico do sertanejo, investigando o homem, vivendo o seu drama irreproduzível de seu destino, ou seja, o homem universal. Ele que foi, sem dúvida, o escritor que soube exprimir, com maior agudeza, a dura realidade do homem nordestino sem se deixar encontrar pelo pitoresco regional. Ao criar Vidas Secas, Graciliano monta um romance fragmentário, espécie de ―quadros‖, episódios que acabam se interligando com uma certa autonomia, sem dúvida, diante de uma obra singular onde as personagens não passam de figurantes, onde a estória é secundária e onde o próprio arranjo dos capítulos do livro obedecem a um critério aleatório. Sendo assim, mesmo com uma estrutura descontínua, há uma proximidade entre o primeiro Capítulo Mudança, a chegada de uma família de retirantes e o último: Fuga, a mudança da família que, diante da seca, foge para o sul. Ocorre um misto de sonhos, de descrenças e de frustrações. Já os mitos do Velho Chico constituem quadros vivos que interligam a memória cultural e coletiva do povo, como um todo significativo, apesar de não haver critérios, pois se tratam de oralitura. Toda a ampliação das metáforas da seca: tristeza, carência, desolamento e amarguras contrapõem, agora, a ampliação do encantamento das águas do Velho Chico numa espécie de atalho sagrado, apresenta-representa o mundo aquático como reprodução do mundo do seco. É o lado esquerdo do rio. O mundo submerso é reprodução do mundo da terra. É um rito de iniciação falar dos mitos da água, quando a água é re-citada pelo seu valor sobrenatural e inexplicável. Daí não é raro deparar com o cavalo d‘água, o caboclo d‘água, a mãe d‘água e o minhocão gigante, tudo isso num palácio encantado, que sobrenaturaliza e encanta o barranqueiro. Assim, a mitopoética são-franciscana, nas vozes, na memória e nas narrativas do contar e recontar revela o encanto das águas, redesenhando outras perspectivas, que já não é mais passagem. São as águas nos atalhos da oralidade, que fazem mais esta travessia. Com todas as agruras da seca, os barranqueiros, ainda, criam e recriam histórias orais, pensando na água, numa espécie de jogo do continuum. A água faz a travessia do ambiente seco, sem vida, para um ambiente de produção e prosperidade, num ato de plantar, cultivar e colher para sobrevivência. Os artesãos do Vale do São Francisco são, também, narradores tradicionais nos moldes benjaminianos, e têm muito ―tecido pronto‖ e outros quase acabados. Seu Manoel artesão, da
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cidade de Ibiaí e Seu Manoel Carranqueiro, da cidade de Manga, foijam na madeira e na taboca, uma nova peneira, uma nova carranca e uma nova gamela, carpindo, com certeza, uma cultura sua, ímpar, sobrecarregada de um significante: narração oral. As carrancas de madeira são peças híbridas, na sua fisicalidade, e que expõem a performance, as marcas da voz que jaz no silêncio do corpo, a energia corporal, o sentido, o gesto de quem as modelam, sinalizando a mobilidade da maneira e do saber oral, através das mãos que modelam e fazem ecoar o grito de desespero, seja pela seca ou pela enchente em tempos de chuva. As carrancas significam amuletos para os supersticiosos e proteção aos navegantes do ―opará‖. Elas se fazem corpo e voz dos barranqueiros do Velho Chico. A voz foi então um fator constitutivo de toda obra que, por força de nosso uso corrente, foi denominada literatura, segundo Paul Zumthor (1993). Encerrando a viagem é preciso apreender a realidade na perspectiva do simbólico, da subjetividade enquanto fazer artístico e literário, arrancando a catarse dos sujeitos através da água e da seca nos atalhos da oralidade. Além das palavras orais há algo que as palavras poderiam significar (Ítalo Calvino)
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TEXTUALIDADE: UMA ABORDAGEM SOBRE SEUS CRITÉRIOS Midiã da Silva Borges Gomes1 Rosângela Maria Bessa Vidal2 RESUMO: Ao se deparar com algo escrito, muitos tendem a pensar que estão diante de um texto. Contudo, quando entendemos texto como um ato comunicativo, percebemos que alguns desses materiais escritos apresentam falha, pois muitas vezes não cumprem seu efeito comunicacional. Daí surge uma pergunta: o que é texto? Na tentativa de responder essa indagação, alguns estudiosos como Beaugrande e Dressler voltaram seus estudos para os elementos com os quais a textualidade está relacionada. O estudo desses elementos nos ajudará não só do ponto de vista do leitor – a compreender melhor e mais significativamente o texto – como também na ótica do produtor, pois atentaremos se estamos conseguindo cumprir a tarefa comunicativa do texto ao analisar como estamos utilizando esses elementos. Desse modo, este trabalho tem o intuito de analisar melhor quais são esses elementos e como eles se relacionam com o texto e entre si. Palavras-chave: Texto. Critérios. Textualidade. TEXTUALITY: AN APPROACH ON ITS CRITERIA ABSTRACT: When confronted with something written, many people tend to think they are faced with a text. However, when we understand the text as a communicative act, we realize that some of those written materials have failed, as they often do not reach its effect in communication. Hence the question arises: what is text? In an attempt to answer this question, some scholars like Beaugrande and Dressler, have turned their atention and studies for the elements which textuality are related with. The study of these elements will help us not only from the viewpoint of the reader – to understand better and more significantly the text – but also from the producer viewpoint, because we will can see if we are reaching the communication task of the text analyzing which manner are we using these elements. Thus, this study aims to better analyze what are these elements and how they relate to the text and each other. Keywords: Text. Criteria. Textuality. INTRODUÇÃO Com o objetivo de estudar os elementos relativos à textualidade se torna necessário abordarmos primeiramente o que é texto e o que é textualidade.
1 Aluna do Mestrado em Estudos do Discurso e do Texto da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (PPGL/UERN). midiasb@yahoo.com. 2 Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Professora do Mestrado em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (PPGL/UERN). rosangelavidal@uern.br.
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Segundo Costa Val (1991), texto é uma ocorrência linguística, seja ela falada ou escrita e independente e sua extensão, dotada de unidade sócio-comunicativa, semântica e formal. Dessa forma, percebemos que os mais diferentes discursos, produzidos nas mais distintas situações, constituem-se texto, já que, como ainda afirma a autora, ―o que as pessoas têm para dizer umas as outras não são palavras nem frases isoladas, são textos‖ (Costa Val, 1991, p. 3). A partir disso, podemos afirmar que textualidade são as características que fazem com que reconheçamos um texto como tal, e não apenas como um conjunto de frases. Costa Val apresenta sete fatores que Beaugrande e Dressler elegeram como responsáveis pela textualidade: coerência, coesão, intencionalidade, aceitabilidade, situcionalidade, informatividade e intertextualidade (idem). Marcuschi nos apresenta a forma como Beaugrand e Dressler observam esses critérios (Marcuschi, 2008). Segundo eles, a coesão e a coerência são orientados pelo texto; já a intencionalidade e a aceitabilidade referem-se ao psicológico; a informatividade, ao computacional; enquanto a situacionalidade e a intertextualidade se referem ao sociodiscursivo. Ainda de acordo com o próprio Marcuschi (2008), a textualidade não é uma característica imanente do texto, por isso ele apresenta alguns aspectos para que isso ocorra. Com base nesses conceitos gerais, passaremos a tratar de cada um desses elementos de forma mais complexa. Vale a pena ressaltar aqui dois pontos: primeiramente, que esses itens que compõem a textualidade estão intimamente relacionados e que o fato de separá-los em tópicos deve-se apenas à necessidade de uma melhor organização do trabalho. Afinal, apenas um único elemento não garante a textualidade e, em segundo lugar, que a ausência de algum desses itens não significa que não haja textualidade.
COESÃO E COERÊNCIA A coerência é tida como um dos elementos fundamentais da textualidade por ser ela responsável pelo sentido (COSTA VAL, 1991). A autora ainda acrescenta que a coerência ―envolve não só aspectos lógicos e semânticos, mas também cognitivos, na medida em que depende do partilhar de conhecimentos entre os interlocutores‖ (COSTA VAL, 1991, p. 5). O que envolve um outro aspecto, que iremos tratar mais detalhadamente em outro tópico, que é a aceitabilidade, pois ―um discurso é aceito como coerente quando apresenta uma configuração conceitual compatível com o conhecimento de mundo do recebedor‖ (p. 56). Já Koch e Travaglia dizem que a coerência tem a ver com a boa formação do texto, mas não no âmbito gramatical, e sim relacionada com a interlocução comunicativa. Eles ainda afirmam o seguinte sobre a coerência: (…) é o que faz com que o texto faça sentido para os usuários, devendo ser vista, pois, como um princípio de interpretabilidade do texto. Assim, ela pode ser vista também como ligada à inteligibilidade do texto numa situação de comunicação e à capacidade que o receptor do texto (que o interpreta para compreendê-lo) tem para calcular o seu sentido (Koch; Travaglia, 1995, p. 11).
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Segundo Costa Val, isso é essencial para a textualidade, ou seja, para um texto ser reconhecido como tal, é necessário que o leitor o faça. E a respeito disso ela acrescenta: O texto não significa exclusivamente por si mesmo. Seu sentido é construído não só pelo produtor como também pelo recebedor, que precisa deter os conhecimentos necessários à sua interpretação (Costa Val, 1991, p. 6). É importante destacar que nenhum texto apresenta totalmente as ideias na sua superfície. Podemos dizer com isso que nenhum texto é ―completo‖, antes o leitor deixa grande parte das informações a serem deduzias pelo leitor, ou seja, ao escrever, o autor omite certas informações, já contando com a capacidade que o leitor tem de abstrair tais informações a partir de seus conhecimentos e das informações que o texto apresenta. Se isso não ocorresse, seria praticamente impossível se concluir um texto, pois seria necessário a todo momento retomarmos e explicarmos de forma explícita os pormenores daquilo que se está escrevendo, o que seria totalmente inviável. Dessa forma, conclui-se que: (…) a coerência do texto deriva de sua lógica interna, resultante dos significados que sua rede de conceitos e relações põe em jogo, mas também da compatibilidade entre essa rede conceitual – o mundo textual – e o conhecimento de mundo de quem processa o discurso (Costa Val, 1991, p. 6). Ou seja, a coerência tem a ver com o texto em sua totalidade. Koch e Travaglia esclarecem isso quando dizem: Todos os estudos procuram demonstrar que a coerência é profunda, subjacente à superfície textual, não linear, não marcada explicitamente na estrutura de superfície. Além disso, é global e hierarquizadora dos elementos do texto (os sentidos desses elementos se subordinam ao sentido global unitário, os atos de fala que realizam se subordinam ao macroato de fala que o texto como um todo representa) (Koch; Travaglia, 1995, p. 12). Agora trataremos da coesão, que está intrinsecamente relacionada com a coerência, já que pode ser entendida como ―a manifestação linguística da coerência‖ (Costa Val, 1991, p. 6). A autora ainda destaca que a coesão é ―responsável pela unidade formal do texto, constróise através de mecanismos gramaticais e lexicais‖. De acordo com Costa Val (1991), um aspecto comum desses dois elementos é que ambos promovem a inter-relação semântica entre as partes do discurso. A coerência seria o elo entre as ideias apresentadas no texto, seria um elo conceitual, ao passo que a coesão é a materialização desse elo, e isso ocorre no plano linguístico. Koch e Travaglia (1995) colocam a relação entre coerência e coesão da seguinte forma: Ao contrário da coerência, a coesão é explicitamente revelada através de marcas linguísticas, índices formais na estrutura de sequência linguística e superficial do texto, sendo, portanto, de
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caráter linear, já que se manifesta na organização sequencial do texto (p. 13) E ainda destacam que ―A coesão é, então, a ligação ente os elementos superficiais do texto, o modo como eles se relacionam, o modo como frases ou partes delas se combinam para assegurar um desenvolvimento proposicional‖ (Koch; Travaglia, 1995, p. 13-14). Aqui cabe bem uma observação feita por Costa Val (1991, p. 7): ―É importante registrar que o nexo é indispensável para que uma sequência de frases possa ser reconhecida como texto. Entretanto, esse nexo nem sempre precisa estar explícito na superfície do texto por um mecanismo de coesão gramatical‖ . Para comprovarmos isso, utilizaremos a letra de uma música na qual fica claro que a ausência de conectivos não compromete a compreensão do texto, mas foi uma opção do seu autor, o que não denota em um erro, mas sim em um recurso estilístico. O Pulso Peste bubônica Câncer, pneumonia Raiva, rubéola Tuberculose e anemia Rancor, cisticircose Caxumba, difteria Encefalite, faringite Gripe e leucemia... E o pulso ainda pulsa E o pulso ainda pulsa Hepatite, escarlatina Estupidez, paralisia Toxoplasmose, sarampo Esquizofrenia Úlcera, trombose Coqueluche, hipocondria Sífilis, ciúmes Asma, cleptomania... E o corpo ainda é pouco E o corpo ainda é pouco Assim... Reumatismo, raquitismo Cistite, disritmia Hérnia, pediculose Tétano, hipocrisia Brucelose, febre tifóide Arteriosclerose, miopia Catapora, culpa, cárie Câimbra, lepra, afasia...
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O pulso ainda pulsa E o corpo ainda é pouco Ainda pulsa Ainda é pouco Assim... (Antunes) Percebe-se que apesar do texto ser formado basicamente por nomes de doenças sem haver conectivos entre elas, não incorre em incoerência, pois a relação conceitual existente supre a lacuna deixada pela falta do elementos de coesão. A ideia transmitida pelo texto, de que somos capazes de sobreviver apesar das enfermidades que nos sobrevêm, constrói uma teia conceitual que envolve o texto como um todo, e que apesar de não está explícita, atua na construção de um sentido coerente. O mesmo se pode dizer do uso de sentimentos como raiva, rancor, estupidez, ciúmes, hipocrisia e culpa que no contexto criado pelo produtor são tidos como enfermidades, já que também causam sofrimento ao ser humano, por isso também não incorre em incoerência. Como podemos notar, a ausência de elementos coesivos no texto não o torna automaticamente incoerente. É claro que em muitos casos isso ocorre, ou seja, é normal a falta de coerência estar muito relacionada ou até mesmo ser consequência da falta de elementos coesivos. Porém a relação conceitual do texto pode ultrapassar a esfera física do mesmo. Pois, como afirma Costa Val (1991, p. 10), ―o fundamental para a textualidade é a relação coerente entre as ideias. A explicitação dessa relação através de recursos coesivos é útil, mas nem sempre obrigatória‖. Como a própria Costa Val (1991) afirma, é difícil haver textos coesivos e incoerentes, pois a nossa competência textual intuitiva faz com que não produzamos determinados tipos de sequência (pelo menos na fala). Contudo, infelizmente, é comum na escrita os falantes produzirem textos incoerentes. Como forma de demonstrar que um texto pode ser coesivo e incoerente, usaremos um texto retirado de um livro didático da 2ª série (3º ano) e que nos é apresentado por Kleiman (2004, p. 18): ―O coelho Fofinho‖ O coelho Fofinho mora numa ilha. É uma ilha cheia de folhagem vermelha. O coelho Fofinho brinca com os galhos das árvores. Ele brinca também com bolhas de sabão. O coelho Fofinho olha a dança das bolhas. Cada bolha é um sonho colorido. Podemos perceber que o texto apresenta elementos de coesão, e o autor assim o faz pelo processo de retomada, além da utilização do pronome. Todavia, não há coerência entre as informações apresentadas, ou seja, as frases estão relacionadas no âmbito estrutural e superficial, porém o mesmo não ocorre com as ideias. O produtor não estabelece uma relação coerente entre os fato do coelho morar em uma ilha, na ilha haver folhagem vermelha e o coelho brincar com os galhos das árvores. Além disso, o autor insere novas informações sem correlacioná-las com as informações já
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apresentadas ao leitor, como por exemplo de onde vem as bolhas de sabão e que relação ela tem com as demais informações do texto. De acordo com Marcuschi (2008, p. 88), a manifestação da coesão ocorre da seguinte forma: ―Quando se diz que uma frase é coesiva, tem-se em mente o fato de que ela tem uma estrutura bem-formada. Mas quando se fala que um texto é coesivo, tem-se em mente que sua textura é comunicativa e compreensiva‖. Kleiman (2004) supõe que tal texto foi utilizado apenas para o trabalho dos dígrafos, fator que explicaria a não preocupação com a coerência textual. Percebe-se que textos desse tipo caminham na contramão das teorias textuais, pois colocam o texto como um repositório de frases e, para forjarem uma relação entre elas, se valem dos elementos coesivos, a fim de proporcionarem uma falsa sensação de coerência. Ainda sobre esses elementos, Costa Val (1991, p. 8) diz que ―uma sequência de frases interligadas por marcadores linguísticos de coesão que não correspondessem a relações lógico-semântico-cognitivas subjacentes não seria um texto‖. E acrescenta que a nossa competência linguística, na maioria das vezes, serve de impedimento para produzirmos tais sequências. E quando isso, ocasionalmente, ocorre, a mesma competência faz com que não o reconheçamos como um texto, pois apesar das frases estarem relacionadas no âmbito frasal, não há uma ligação plausível na esfera conceitual. Reforçando isso, Costa Val (1991, p. 8) afirma que ―a presença de recursos coesivos interfrasais não é suficiente para garantir textualidade‖, e complementa dizendo: É inegável a utilidade dos mecanismos de coesão como fatores da eficiência do discurso. Além de tornar a superfície textual estável e econômica, na medida em que fornecemos possibilidades variadas de se promover a continuidade e a progressão do texto, também permitem a explicitação de relações que implícitas, poderiam ser de difícil interpretação, sobretudo na escrita (Costa Val, 1991, p. 8-9). A respeito da coesão, Koch e Travaglia falam que a contribuição da coesão para com a coerência se dá parcialmente, e citam Charolles: ―os elementos linguísticos de coesão e conexão ajudam a estabelecera coerência, mas não são suficientes, nem necessários para que a coerência seja estabelecida, sendo preciso contar com os conhecimentos exteriores do texto‖ (1995, p. 23).
INTENCIONALIDADE E ACEITABILIDADE A intencionalidade, como o próprio nome já sugere, está relacionada a intenção. No ato comunicacional, ela está associada ao produtor do discurso, ou seja, ao produzirmos um texto, seja ele escrito ou oral, temos um objetivo comunicativo, uma intenção que pode convencer, informar, solicitar, etc. E essa intenção nos ajuda a selecionar os elementos que farão parte do nosso discurso e como eles serão apresentados. Por isso, a intencionalidade é um critério da textualidade, pois ela ajuda na elaboração do texto. Costa Val (1991, p.10) diz que ―a intencionalidade concerne ao empenho do produtor em construir um discurso coerente, coeso, capaz de satisfazer os objetivos que tem em mente numa determinada situação comunicativa‖. De acordo com Koch e Travaglia (1995, p. 79-80), a intencionalidade pode ser compreendida em um sentido restrito (relacionado à intenção do produtor) e em um sentido
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mais amplo que, aí sim, engloba todos os mecanismos usados pelo produtor para se produzir um texto de acordo com suas intenções. Na outra ponta desse processo, temos o receptor, já que todo o ato comunicacional envolve um emissor e um receptor. A aceitabilidade está relacionada à forma como o receptor compreende, aceita o texto produzido. Marcuschi (2008, p. 89), citando Beaugrande, diz que ―um texto não existe, como texto, a menos que alguém o processo como tal‖. Segundo Costa Val (1991, p. 11), a aceitabilidade ―concerne à expectativa do recebedor de que o conjunto de ocorrências com que se defronta seja um texto coerente, coeso, útil e relevante, capaz de levá-lo a adquirir conhecimentos ou a cooperar com os objetivos do produtor‖. Ainda de acordo com Costa Val, a comunicação ocorre quando se traça uma relação de cooperação entre os interlocutores, pois de um lado temos o produtor, que se esforça para que o texto seja relevante para o leitor, e do outro lado temos o leitor, que se dedica em tornar o texto significativo. Grice, que é citado por Costa Val (1991, p. 11), estabelece estratégias que seriam usadas pelo produtor para ter maior aceitabilidade por parte do recebedor. Essas estratégias são chamadas de máximas conversacionais. São elas: a necessidade de cooperação – o produtor se dispõe a atender às expectativas do receptor; a qualidade – diz respeito à veracidade de suas informações; a quantidade – está relacionada à informatividade, ou seja, o texto (discurso) deve apresentar informações novas que venham a acrescentar a quem as recebe; a pertinência e relevância das informações; a forma como essas informações são expostas – visando a clareza, ordenação, concisão, etc. Mas, da mesma forma que há todo um empenho por parte do produtor, o receptor também coopera para que o ato comunicacional se realize, pois quando o emissor desobedece a alguma dessas máximas, seja propositalmente ou não, o recebedor logo procura tecer uma relação significativa para esse evento. De acordo com Grice, citado por Costa Val (1991, p. 11), isso é chamado de implicadura conversacional. Costa Val afirma que ―o recebedor prefere supor que a infração aos princípios conversacionais seja intencional e tenha alguma significação do que simplesmente aceitar que seu interlocutor possa produzir um discurso impertinente e sem sentido‖ (p. 11). Ela ainda cita Charolles, que diz que o recebedor opta por dar um ―crédito de coerência‖. Dessa maneira, a comunicação se concretiza mesmo havendo algumas falhas no ato de sua produção, em virtude do contrato de cooperação. Ou seja, ―essa 'cumplicidade' do recebedor para com o texto é que possibilita que a produção não seja tarefa excessivamente difícil e tensa e, assim, viabiliza o jogo comunicativo‖ (Costa Val, 1991, p. 12). A relação entre a intencionalidade e a aceitabilidade é definida do seguinte modo por Koch e Travaglia (1995, p. 80): São as duas faces constitutivas do princípio de cooperação e, neste sentido, definitórias da coerência no sentido aqui proposto, de um princípio de interpretação segundo o qual sempre se juga que o texto faz sentido, é coerente e se faz tudo para calcular esse sentido.
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SITUACIONALIDADE A situacionalidade é um elemento de grande relevância, pois ela estabelece critérios na hora de produção de um texto. É com base na situação em que determinado texto foi escrito que o leitor é capaz de compreender melhor a intenção de seu produtor, desenvolvendo a capacidade de aceitação das informações ali contidas. Costa Val (1991, p. 12) diz que ―o contexto pode, realmente, definir o sentido do discurso e, normalmente, orienta tanto a produção quanto a recepção‖. A situação em que ocorre o ato comunicativo influenciará nos termos utilizados pelo produtor e na maneira que ele ordena os elementos dentro do texto. Um exemplo bem claro disso são os textos produzidos durante o período militar: como os autores e compositores tinham que driblar os mecanismos de censura, adaptavam seus textos à situação política do país. Isto fazia com que tais textos trouxessem muitas informações e críticas feitas através de insinuações. Havia nesses textos uma gama de implícitos que só poderiam ser detectados por um leitor que estivesse inteirado dos acontecimentos e das dificuldades que os autores tinham para protestar. Além disso, o fato de estarem a par da situação que motivou a produção do texto fazia com que o leitor fizesse uma leitura voltada para as implicitudes do texto. Esses textos se tornam difíceis de serem compreendidos em sua totalidade por pessoas que não vivenciaram ou desconhecem as características desse período da nossa história. Ou seja, para muitos, o fato de não conhecer as peculiaridades do momento em que ocorreu a produção de um texto lhes dá a sensação de estarem diante de um texto incoerente. Por outro lado, ao terem consciência de que o seu leitor saberá do que está sendo tratado no texto facilita a ação do produtor, que saberá quais informações podem ser ou não omitidas. Costa Val (1991, p. 13) coloca isso da seguinte forma: ―é importante para o produtor saber com que conhecimentos do recebedor ele pode contar e que, portanto, não precisa explicitar em seu discurso‖. Já Koch e Travaglia (1995, p. 78) expõem bem a importância da situacionalidade como um elemento de textualidade: A relação texto-situação se estabelece em dois sentidos: da situação para o texto e do texto para a situação. Isto significa que se, por um lado, a situação comunicativa interfere na maneira como o texto é constituído, o texto, por sua vez, tem reflexos sobre a situação, já que esta é introduzida no texto via mediação. O conhecimento do contexto sócio-cultural é o que permite discernirmos se determinado discurso é aceitável ou não, apropriado ou não à situação comunicacional. Sendo assim uma ferramenta de suma importância e determinante tanto para o ato de produção quanto de recepção de um discurso.
INFORMATIVIDADE Está relacionada à quantidade de informações novas presentes no texto. Quanto maior o número de informações não-esperadas, maior o grau de informatividade. Esse elemento, não diferente dos demais, é bastante relevante, pois um texto que possui apenas informações já conhecidas pelo seu leitor tende a tornar a leitura algo supérfluo. Vejamos o que Costa Val (1991, p. 33) fala sobre o baixo grau de informatividade:
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Um texto com baixo poder informativo, que não fornece os elementos indispensáveis a uma interpretação livre de ambiguidades, ou que se limita a repetir coisas que nada somam à experiência do recebedor, tem como efeito desorientá-lo ou irritálo, ou simplesmente não alcançar sua atenção. Tende a ser rejeitado. De outro modo, se um determinado texto traz em excesso informações desconhecidas, tornará a leitura tão sofrível que, igualmente ao primeiro caso, levará o leitor a abandoná-la. Dessa vez, porém, por ser para ele algo completamente desconhecido e, por isso, de difícil compreensão. Sendo assim, o produtor deve supervisionar a quantidade de informações novas a serem tratadas no seu texto, a fim de torná-lo atraente ao seu recebedor, procurando partir de conhecimentos que o seu receptor já detém e, com base neles, ir inserindo novas informações. Sobre isso, Costa Val destaca que ―um discurso menos previsível é mais informativo, porque a sua recepção, embora mais trabalhosa, resulta mais interessante, mais envolvente‖ (1991, p. 14). No caso de informatividade em particular, o emissor tende a errar tanto pela falta quanto pelo excesso. Como também nos afirma Costa Val, ―o ideal é o texto se manter num nível mediano de informatividade, no qual se alternam ocorrências de processamento imediato, que falam do conhecido, com ocorrências de processamento mais trabalhoso, que trazem a novidade‖ (1991, p. 14). É importante lembrar que cabe ao autor selecionar os dados que precisam ser explicitados e aqueles que podem ser omitidos por serem de fácil dedução por parte do leitor, sob pena de tornar o texto inatingível por quem se dispõe a lê-lo. Aqui cabe uma outra colocação a esse respeito: ―A informatividade exerce, assim, importante papel na seleção e arranjo de alternativas no texto, podendo facilitar ou dificultar o estabelecimento da coerência‖ (Koch; Travaglia, 1995, p. 81). INTERTEXTUALIDADE A intertextualidade é entendida como uma relação de dependência entre os textos (Koch; Travaglia, 1995). Essa relação pode se estabelecer de três formas: no aspecto conteudista, formal ou tipológico. A intertextualidade relacionada ao conteúdo do texto ocorre quando as informações e ideias de um determinado texto remetem a um outro texto. Koch e Travaglia (1995, p. 88) expõem essa relação ao dizerem que ―o entendimento desse texto depende do conhecimento de outros e, portanto, sua coerência‖. Acrescentamos também a fala de Costa Val (1991, p. 15): ―Inúmeros textos só fazem sentido quando entendidos em relação a outros textos, que funcionam como seu contexto‖. Quanto a forma, a intertextualidade está ligada à estrutura do texto, ou seja, quando um texto apresenta semelhanças com a estrutura de um outro. Já a intertextualidade relacionada aos tipos textuais nos leva a analisar as características que diferenciam os diferentes gêneros textuais. Dessa forma, todos os textos de um determinado gênero devem apresentar essas características que permitem que ele seja reconhecido como tal e, assim, ele mantem uma relação com todos os outros textos classificados em sua categoria.
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São essas características que permitem que reconheçamos uma receita médica, por exemplo, e não a confundamos com um convite de aniversário. Esse tipo de intertextualidade é de suma relevância para que ocorra a coerência textual, como afirmam Koch e Travaglia (1995, p. 92): ―Para que um texto seja bem compreendido e visto como coerente, é preciso que apresente certas características próprias do tipo textual do qual ele é apresentado como sendo um exemplar‖. Uma observação importante a esse respeito é feita por Coulthard e citada por Koch e Travaglia, ressaltando que alguns textos que têm uma forma fixa podem ser completamente comprometidos caso haja uma alteração, por pequena que seja, nas características tipológicas. Ainda no tocante a intertextualidade, destacamos a fala de Koch e Travaglia que afirmam: ―todas estas questões ligadas à intertextualidade influenciam tanto o processo de produção como o de compreensão de textos e apresentam consequências no trabalho pedagógico com o texto, como tudo o mais que vimos até aqui‖ (1995, p. 95). CONCLUSÃO Como podemos perceber, todos os elementos estudados apresentam uma ligação entre si, pois a textualidade está relacionada a diferentes aspectos. Não podemos esquecer que a ausência de algum deles não implica necessariamente em falta de textualidade. A respeito disso, Marcuschi (2008, p. 133) destaca que: Esses critérios não podem ser transformados em regras constitutivas de texto, tornando-os eficientes e adequados. Eles não são princípios de boa formação textual (...). O importante é observá-los como princípios de acesso ao sentido textual. E isso não é decidido pelos 'princípios', mas pela maneira como operamos com eles enquanto critérios. Sendo assim, podemos compreender que o conhecimento desses elementos serve para direcionar a nossa atividade leitora, bem como de produção de texto. Todavia, não são regras de conduta, afinal, em se tratando da produção de um texto, não há e nem pode haver critérios definidos e imutáveis, pois sempre deve-se levar em conta por que e para quem estamos escrevendo. Esses são os aspectos que devem nortear a nossa escrita, porque se tivermos sempre em mente a nossa intenção comunicativa, utilizaremos os elementos adequados e o faremos da forma mais conveniente para alcançarmos nosso objetivo e, dessa forma, nossos textos cumprirão seu papel comunicacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Arnaldo. O pulso. Disponível em <http://letras.terra.com.br/titas/48989>. Acesso em 14 de abril de 2011. COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: teoria e prática. 10ª ed. Campinas, SP: Pontes, 2004. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1995. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de textos e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.
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A DINÂMICA LEXICAL DA LINGUAGEM JORNALÍSTICO-POLÍTICA EM TEXTOS ESCRITOS EM LÍNGUA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA NA ÚLTIMA DÉCADA DO SÉCULO XX Pedro Antonio Gomes de Melo1 Resumo: A dinâmica do léxico é resultado da criatividade linguística do falante e das necessidades de representação da realidade. Os neologismos são criados a partir da utilização dos processos de formação de palavras e o surgimento destas novas unidades léxicas na língua está vinculado às inovações do mundo exterior, uma vez que o léxico corresponde ao nível linguístico mais diretamente ligado à realidade extralinguística. Neste artigo, apresentamos uma reflexão sobre a formação lexical neológica observada em textos jornalístico-político escritos na imprensa periódica em língua portuguesa contemporânea na primeira década do século XXI. Esta investigação do léxico, objetiva descrever a neologia na mídia escrita e seus fatores internos e externos relacionados a essa formação vocabular. Palavras-chave: Léxico; Língua portuguesa; Linguística; neologismo. THE DYNAMICS OF LANGUAGE LEXICAL-JOURNALISTIC POLITICAL IN TEXT WRITTEN IN CONTEMPORARY PORTUGUESE LANGUAGE IN THE LAST DECADE OF THE XX CENTURY Abstract: The dynamics of the lexicon of linguistic creativity is a result of the speaker and the needs of representing reality. The neologisms are created from the use of processes of word formation and the emergence of these new lexical units in language is tied to the innovations from the outside world, since the lexical level corresponds to the language more directly connected to extra-linguistic reality. This article presents a reflection on the lexical formation neological observed in journalistic and political texts written in the press in contemporary portuguese in the last decade of XX century. This investigation of the lexicon, aims to describe the neology in print media and its internal and external factors related to the training vocabulary. Keywords: Lexicon; Portuguese language; Linguistics; neologism.
APRESENTAÇÃO Os neologismos são algo de necessário à sociedade contemporânea, participante de mudanças e ávida por novidades. Estas novas formações vocabulares são responsáveis pelo crescimento lexical da língua, dando ao sistema linguístico expansão, pois as línguas vivas, isto é, ―que serve de instrumento diário de comunicação entre os indivíduos componente de uma nação‖ (SILVA, 2010, p. 15) não podem ficar na inércia, precisam
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Graduado em Letras: português / inglês pelo Centro Estudos Superiores de Maceió - CESMAC, especialista em língua portuguesa e mestre em linguística pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Atualmente, é professor assistente de língua portuguesa e linguística da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL e da Faculdade São Vicente de Pão de Açúcar - FASVIPA. E-mail: petrus2007@ibest.com.br.
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crescer, precisam acompanhar as transformações políticas, econômicas e sociais pelas quais passa uma nação, para que possam servir de instrumento atualizado de iteração social. Neste artigo, faremos uma reflexão sobre a neologia, seguida de uma exposição dos processos responsáveis pela dinâmica léxica do português contemporâneo na formação e/ou criação de neologismos na linguagem jornalística-política em sua modalidade escrita na última década do século XX, no Estado de Alagoas. Como forma de delimitarmos o campo de observação do fenômeno linguístico investigado, optamos pelo exame de textos jornalísticos escritos, pois a imprensa escrita periódica possui uma linguagem dinâmica, resultado da necessidade de sua constante atualização para informar seus leitores, como também para exprimir situações novas ou noticiar novas ideias e objetos criados, consequentemente, formando palavras novas. É oportuno ressaltarmos que a nossa opção pela investigação do léxico a partir da modalidade escrita, no presente artigo, não significa a falta de consciência do valor linguístico da modalidade falada para os estudos da língua(gem), mas, para o propósito deste trabalho de cunho lexicológico e/ou lexicográfico, essa nos pareceu ser a escolha mais apropriada. Para Matoré (1972), essas duas disciplinas que estudam o léxico mantêm necessariamente uma forte relação de interdependência e complementaridade entre si. Apesar da relação de completude entre elas, Nunes (2006, p. 149) explica-nos que a distinção fundamental entre ―Lexicologia e Lexicografia está no fato de que a primeira, com o estudo do léxico, desenvolve um saber especulativo, enquanto que a segunda, com a produção de dicionários, caminha para o desenvolvimento de um saber prático‖. O princípio adotado neste estudo como discernimento para reconhecermos uma palavra como nova no acervo lexical da Língua Portuguesa do Brasil, foi o critério do nãoregistro dessa unidade lexical nas seguintes obras: Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (2009) e Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (2009), que são, após o novo acordo ortográfico da língua portuguesa, os dicionários de palavras mais utilizados, no Brasil, do português contemporâneo. Admitimos o critério da não-dicionarização como caráter neológico de uma palavra, pois concordamos com Carvalho (1983, p. 48), quando afirma que ―o dicionário é a fonte segura do estudo do léxico. A ele recorremos, quando hesitamos quanto à grafia e o significado de um termo‖. Sendo assim, os vocábulos já registrados nos citados dicionários de palavras do português brasileiro não terão status de neologismos nas observações realizadas neste estudo. Finalizando esta apresentação, destacamos que a neologia consiste em um tema fundamental para descrição do léxico segundo uma ótica científica, contribuindo para um melhor entendimento desse sistema, visto que sua evolução lexical, embora constante, passa despercebida ao próprio usuário da língua geral. Na verdade, a língua é neológica por natureza, já que toda sociedade evolui, consequentemente também evolui o seu sistema linguístico, sendo incontestável que a língua se vale fundamentalmente de mecanismos lexicais, em lato sensu, para cumprir os propósitos comunicativos de interação social entre seus usuários. Os dados que compuseram a amostragem da linguagem jornalística escrita na imprensa periódica do Estado de Alagoas na última década do século XX foram coletados em dois momentos cronologicamente distintos. A primeira coleta de dados foi realizada no período de março a julho de 1996 nos jornais: Gazeta de Alagoas, O Jornal e O Diário. O segundo momento da coleta de dados correspondeu ao período de julho a dezembro de 1998. Foram seguidos os mesmos procedimentos metodológicos adotados na primeira coleta, salvo
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a substituição do periódico O Diário pelo jornal Tribuna de Alagoas, pois aquele não circulava mais no Estado de Alagoas. Este corpus foi resultado de uma pesquisa de mestrado em Linguística realizada na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Neste artigo, utilizaremos apenas alguns exemplos de neologismos detectados no referido corpus para ilustramos as reflexões aqui apresentadas. Julgamos suficiente o uso de até 3 ocorrências de neologismos, quando possível, para ilustrarmos cada processo de formação de palavras novas, já que se torna desaconselhável um número maior de exemplificações por sobrecarregar o texto.
O LÉXICO E SUA NEOLOGIA NA LÍNGUA PORTUGUESA EM SUA VARIANTE BRASILEIRA O léxico consiste no inventário aberto de palavras de que uma dada língua dispõe. De forma geral, podemos considerá-lo como sinônimo de vocabulário. Na verdade, o vocabulário é o léxico individual de um dado falante/ouvinte. Léxico e vocabulário se encontram em relação de inclusão, isto é, o vocabulário é sempre uma parte, de dimensões variáveis conforme a solicitação do momento, do léxico individual, que por sua vez, faz parte do léxico global. Conforme Katamba (1993, P. 99), ―o léxico não é uma lista passiva de palavras e de seus significados, mas um lugar cheio de vitalidade em que as regras são usadas ativamente para criar novas palavras.‖ Trata-se de um repertório aberto, quer dizer, capaz de se enriquecer e se ampliar sempre. Filologicamente, estudos lexicais possibilitam não apenas conhecermos a língua em si mesma, mas também, questões extralinguísticas relacionadas às comunidades que a fala, ou seja, estudar o léxico implica também resgatar a cultura de um povo. Isquerdo e Krieger (2004, p.11) explicam-nos que ―como repertório de palavras das línguas naturais traduz o pensamento das diferentes sociedades no decurso da história‖. Do ponto de vista sociolinguístico, Biderman (1981), concebe o léxico como o patrimônio social da comunidade por excelência, juntamente com outros símbolos da herança cultural. Partindo dessa abordagem, o léxico é transmitido de geração a geração como signos operacionais, por meio dos quais os indivíduos de cada geração podem pensar e explicar seus pensamentos e ideias. O sistema lexical de uma dada língua dispõe de diferentes regiões linguísticas, a saber: as gírias (linguagem comum a um mesmo grupo social); os jargões (vocabulário típico de uma dada especialidade profissional); os estrangeirismos (palavras estrangeiras incorporadas à língua); os arcaísmos (vocábulos e/ou expressões que caíram em desuso) e os neologismos (palavras recentemente formadas e/ou criadas). Segundo Carvalho (2009, p. 19), o léxico é ―a menos sistemática das estruturas linguísticas, o léxico depende, em grande parte, da realidade exterior, não-linguística‖, ele reflete a cultura da comunidade, a qual serve de meio de expressão, visto que, no momento em que se cria algo de novo ou surgem novos fatos sócio-político-culturais, há uma necessidade de nomeá-los, formando-se novas palavras; esses itens lexicais, por serem uma criação individual, podem ser aceitos ou não, ter vidas breves, caindo no esquecimento. A constituição do acervo lexical do Português é basicamente latina. A Língua Portuguesa representa o estado atual do sermo vulgaris passado por inúmeras transformações na Lusitânia; por isso não é de estranhar que a língua dos romanos constitua o substrato de nossa língua. O idioma dos romanos sobrevive nas atuais línguas românicas como antecedente
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imediato dessas línguas, sua dinâmica lexical se apresenta como um fenômeno linguístico de caráter universal, já que todas as línguas vivas estão em constante transformação e ampliação. Isso ocorre de maneira lenta e gradual que geralmente passa despercebida ao falante/leitor. (cf. MELO, 2008) No entanto, não só do acervo latino se valeu a Língua Portuguesa, já que houve também a influência de outros idiomas de povos invasores (ou não-invasores), em seu acervo lexical. Podemos detectar a existência de elementos aloglóticos pré-romanos e pós-romanos, introduzidos na fase da formação da língua; elementos aloglóticos das modernas línguas europeias, latinas e não-latinas; elementos aloglóticos de línguas extraeuropeias, resultado dos descobrimentos (cf. CARVALHO, 2009). E ainda houve, na Língua Portuguesa, variante usada no Brasil, pelas condições de ocupação e colonização, uma grande influência dos substratos indígenas e dos falares africanos, justamente no campo lexical, pelas necessidades comunicativas surgidas. Portanto, também se enriqueceu a Língua Portuguesa do Brasil de uma gama considerável de palavras não registradas no Português falado em outros continentes. No que diz respeito a palavras não vernáculas, ou seja, os empréstimos e os estrangeirismos, podemos afirmar que são muito frequentes no mundo moderno, sobretudo os anglicismos, que se vêm propagando por todas as línguas, em virtude do papel hegemônico exercido pelos Estudos Unidos da América. Assim sendo, decorrentes de contato interlinguístico, não poderia ser diferente no sistema lexical do português brasileiro contemporâneo. De fato, o idioma inglês tornou-se a língua universal da ciência e da tecnologia, por conseguinte, representa uma fonte lexical muito fecunda na formação do léxico das línguas modernas. A frequência dos anglicismos, no acervo português do Brasil, demonstra a relação da língua com o mundo exterior; na medida em que há mudanças de ordem econômica entre as nações, essas modificações se refletem também no sistema linguístico, sobretudo em seu léxico. Assim, os estudos diacrônicos mostram que a incorporação de unidades léxicas neológicas representa o desenvolvimento do léxico dos idiomas. Essas transformações linguísticas são motivadas também por influências de fatores de natureza diversas: geográfica, sociocultural, histórica, entre outros. Esse desenvolvimento lexical se faz através dos processos de formação de palavras, portanto com os recursos linguísticos que a própria língua oferece. Essa ampliação e/ou renovação lexical pode ser condicionada por fatores externos e internos à língua. No âmbito dos primeiros, as evoluções sócio-econômico-culturais parece-nos ser um dos elementos extralinguísticos mais atuantes nesse processo de dinamização lexical junto com a criatividade comunicativa dos falantes. Esse desenvolvimento modifica o meio, faz com que o homem, envolvido no processo de evolução, crie e reformule certos termos e expressões linguísticas. Já em relação aos internos, parece-nos que os mecanismos derivacionais proporcionam aos usuários diversas possibilidades nas combinações para formação lexical. Tornando-se mais produtivos na função de criar neologismos. Em suma, a língua está sempre recebendo forças externas e internas em sentidos opostos, não-excludentes, mas complementares. As primeiras dão um cunho novo à expressão são as forças dinâmicas da linguagem. As segundas asseguram a sua conservação, são as forças conservadoras da linguagem, responsáveis pela impressão de que a língua em uso encontra-se estática. Todavia, temos conhecimento que só aparentemente a língua se apresenta inerte. Em outros termos, Freitas (2007) explica-nos que, toda língua é o produto de
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forças que sobre ela atuam: a centrífuga, que corresponde à força externa, e a centrípeta, que corresponde à força interna. Desse modo, a inovação lexical, ampliando e/ou renovando o léxico, torna-se verificável na medida em que signos linguísticos são criados e/ou formados ou sofrem modificações e/ou acréscimos em seus significados. Trata-se de um processo inerente à língua e não uma ameaça à sua continuidade. Na verdade, essa dinâmica é uma característica necessária a todas as línguas e poucos se dão conta dessa evolução, porque é feita de modo inconsciente e coletivo. No entanto, o aparecimento de novos termos e significados é fácil de ser constatado, sobretudo nos meios de comunicação escrita. Para corroborar o supradito, faz- se necessário citarmos Barbosa Apud Isquerdo e Oliveira (1998, p. 34) quando afirma que: É lícito definir a norma do universo léxico como o lugar de equilíbrio dinâmico, o lugar do conflito e o epicentro da tensão entre aquelas forças contrárias. Esse equilíbrio e essa tensão são observáveis com clareza, em qualquer etapa sicronicamente considerada de uma língua, por três aspectos: a conservação de grande parte do léxico, o surgimento de novas unidades lexicais, o desaparecimento de outras. Distinguem-se, entre as unidades que permanecem as que apresentam freqüência de atualização estável, crescente ou declinante.
A FORMAÇÃO NEOLOGICA EM TEXTOS ESCRITOS PELA IMPRENSA PERIÓDICA DO ESTADO DE ALAGOAS NA ÚLTIMA DECÁDA DO SÉCULO XX. Toda língua se constitui fundamentalmente por duas classes de palavras: as que refletem o universo extralinguístico, nomeando as coisas, as qualidades e os processos, cujo grupo constitui o léxico – um sistema aberto em constante ampliação, e as que funcionam apenas dentro do sistema linguístico, aquelas palavras de significação interna como os morfemas gramaticais, responsáveis pela organização e estrutura da língua. Os processos neológicos de formação lexical, registrados em textos jornalísticos escritos na mídia impressa, são os mecanismos pelos quais os novos itens lexicais do sistema aberto são formados e/ou criados na língua. Esses recursos linguísticos atuam em nível fonético-fonológico, morfossintático e semântico-lexical. No português contemporâneo, variante usada no Brasil, os processos mais produtivos na formação neológica são a Derivação e a Composição, que, apesar de completamente diferentes no procedimento de formar palavras, unem-se na função de formálas e, consequentemente, tornam-se os mais fecundos na ampliação e/ou renovação do acervo lexical do sistema linguístico em questão. A derivação consiste no mecanismo pelo qual as novas unidades lexicais são formadas a partir da anexação de afixos (prefixo e/ou sufixo) a uma base autônoma. Como exemplificado nos neologismos dos enunciados (01) e (02), respectivamente. (01) ―Uma superagência oficial formada por funcionários da Polícia Federal.‖ [O Diário, 05/06/1996, p. 7, grifo nosso] (02) ―Sempre pode ser dorotheizado a qualquer instante.‖ [O Diário, 09/05/1996, p. A-10, grifo nosso] Basilio (2007) explica-nos que os afixos apresentam funções sintáticosemânticas definidas: essas funções delimitam os possíveis usos e significados das palavras a serem formadas pelos diferentes processos de derivação.
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Vale destacarmos que todo processo derivacional ocorre em torno de uma só palavra primitiva, de um só radical. A tradição gramatical considera afixos apenas as formas presas (não-autônomas). Todavia, registram-se ocorrências de palavras novas formadas a partir de unidades léxicas que não são reconhecidas como prefixos, mas palavras autônomas com categorias gramaticais definidas. Porém, podem ser detectadas na função prefixal, sendo assim inclusas na derivação, formando neologismos. Dentre esses itens lexicais as formas mal-, não- e recém-, tradicionalmente classificados como advérbios ou substantivos, e comclassificado como preposição anexam-se a bases autônomas, não com a função de adjunto, mas para formarem novas unidades lexicais. Como podemos observar nas sentenças (03), (04), (05) e (06). (03) ―e os novo Deputados e Senadores não querem que lhes caiam nos ombros a possível culpa de alguma coisa mal-elaborada, maldiscutida ou malredigida.‖ [O Jornal, 11/11/1998, p. A / 2, grifo nosso] (04) ―A decisão foi tomada ontem em protesto contra a não-implantação do piso de três mínimos pelo governo.‖ [O Jornal, 08/10/1998, p. capa, grifo nosso] (05) ―Há poucos dias, recebi visita do recém-empossado Ministro da Justiça paraguaio.‖ [O Jornal, 01/11/1998, p. A / 2, grifo nosso]. (06) ―Os com-terra, com cristo! os sem-terra, com Calixto.‖ [Gazeta de Alagoas, 16/06/1996, p. A-2, grifo nosso] Na Língua Portuguesa do Brasil, geralmente, os morfemas prefixais não mudam a categoria gramatical da base a que se unem. Entretanto, é possível registrarmos em textos jornalísticos escritos na última década do século XX, os prefixos anti- e macro- unidos a uma base substantiva atribuindo-lhe função de adjetivo, ocorrendo o processo de recategorização. Portanto, podemos afirmar que em certos casos os prefixos mudam a classe da palavra a que se agregam na função de formar neologismos. (07) [...] ―mas fez a maioria no Senado, aliás uma superbancada, com 28 senadores a partir de 1999.‖ [O Jornal, 27/10/1998, p. A / 2, grifo nosso]. (08) [...] ―criou ontem por decreto cinco novos ministros: Comunidade de Estados Independentes (CEI), Comércios, Assuntos Regionais, Assuntos Nacionais e um encarregado da política antimonopólios.‖ [Tribuna de Alagoas, 23/09/1998, p. 14, grifo nosso]. (09) ―A comissão especial de inquérito da Câmara Municipal de Maceió pôs o ventilador na macrodrenagem e insiste em levantar a denúncia de macrofatura [...] para evitar o suposto macroprejuízo.‖ [Gazeta de Alagoas, 06/09/1998, p. A 4, grifo nosso]. (10) ―Campanha pró-Alagoas repercute no congresso.‖ [O Diário, 16/07/1996, p. capa, grifo nosso]. Acreditamos que essas unidades estejam se gramaticalizando como prefixos, ampliando, assim, os recursos comunicativos da língua, sobretudo para expressar novos conceitos, surgidos a partir do desenvolvimento político, econômico e social. O processo de formação derivacional subdivide-se em prefixal, sufixal, parassintética e regressiva. Porém, na tradição gramatical, acrescenta-se como processo de formação derivacional a conversão, denominada pela nomenclatura gramatical brasileira como derivação imprópria. No entanto, a conversão é um processo com características próprias, pois não há anexação de afixos à nova palavra formada, nem há redução de elementos em sua formação mórfica, a nova palavra é formada pela recategorização, isto é, pela mudança de sua categoria gramatical. Portanto, não se trata de um processo derivacional; além do mais, no fenômeno da conversão ocorre um processo semântico e não morfológico que é a
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caracterização do processo derivacional. É o contexto em que está inserida a unidade lexical que nos permite observar o fenômeno da conversão (BASÍLIO, 2007). (11) ―O Deputado Federal José Thomaz Nonô (PSDB) diz que está mais à vontade com sua nova função dentro do partido tucano.‖ [Gazeta de Alagoas, 09/05/1996, p. A - 3, grifo nosso]. (12) ―O Partido Verde (PV) e o Partido da Social Democracia (PSD) já decidiram que vão lançar candidato laranja à Prefeitura de Maceió.‖ [Gazeta de Alagoas, 16/06/1996, p. A 5, grifo nosso]. Do ponto de vista linguístico, as unidades léxicas tucano e laranja, a priori, são classificados morfologicamente como substantivos que designam objetos (pássaro e fruta, respectivamente). Entretanto, nos enunciados (11) e (12) funcionam como adjetivos, caracterizando os substantivos a que se referem. No processo de derivação prefixal, a nova palavra é obtida a partir da anexação de um prefixo a uma base. Já na derivação sufixal, a nova forma lexical é formada a partir da anexação de um sufixo a uma base. ―Na Língua Portuguesa, os sufixos lexicais servem principalmente para acrescentar a um termo a ideia de grau e a de aspecto, ou para transformar uma palavra de uma classe para outra‖. (CARVALHO, 1983, p. 79) Ao contrário do que ocorre com os prefixos que guardam certo sentido, de maneira mais ou menos clara, com relação ao sentido da palavra primitiva, os sufixos, geralmente vazios de significação, têm por finalidade formar paradigmas de palavras da mesma categoria gramatical. (13) ―Tucaneando - Na última quarta-feira, 16 de maio, dia da emancipação política de Cururipe‖ [...] [Gazeta de Alagoas, 19/05/1996, p. A – 4, grifo nosso]. (14) ―O que mais dificulta a bolização dos políticos é o fato de o parlamentar-candidato não ter opção de licenciar-se.‖ [Gazeta de Alagoas, 29/05/1996, p. A – 4, grifo nosso]. (15) “Prefeitável - O deputado estadual Luciano Amaral comanda também o diretório municipal do PSDB em Major Isidoro.‖ [O Diário, 24/05/1996, p. 3, grifo nosso] Na derivação regressiva, a nova unidade lexical é formada pela redução da palavra primitiva. Em outros termos, ocorre o fenômeno da derivação regressiva quando a criação e/ou formação do neologismo deve-se à supressão de um elemento considerado de caráter sufixal. Esse processo torna-se importante na formação de substantivos derivados de verbos que são chamados de deverbais e são sempre abstratos. Esse procedimento de formação de palavras se opõe às derivações prefixal e sufixal que são progressivas, pelo fato de haver redução de uma palavra já existente. Faz-se mediante supressão de elementos terminais (sufixos ou desinências). Conforme os dados coletados neste trabalho, a derivação regressiva não apresentou produtividade lexical na formação de neologismos na linguagem jornalística escrita na imprensa do Estado de Alagoas. A derivação parassintética ocorre quando a palavra nova é obtida por acréscimo de afixos (prefixo e sufixo) ao mesmo tempo a uma base, de forma que a exclusão de um ou de outro morfema derivacional resulta numa formação lexical inaceitável na Língua Portuguesa. Nesses neologismos ambos os afixos são corresponsáveis pela nova acepção que se introduz. Logo, o que distingue a derivação parassintética dos outros processos derivacionais é o fato de o acréscimo dos afixos ser simultâneo, como ocorre nas palavras destacadas na sentença (16). (16) ―Deve ser esse neoburrismo ou neocavalismo, de que falo.‖ [Gazeta de Alagoas, 09/05/1996, p. A-2, grifo nosso] O prefixo neo- e o sufixo –ismo afixaram-se simultaneamente a uma base nominal formando um novo vocábulo. Percebemos que a exclusão de um ou de outro afixo
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dessas unidades lexicais neológicas apresentadas resulta numa forma lexical não existente no léxico português. No caso de formação lexical por composição, o novo item lexical é formado a partir da junção de mais de uma base autônoma para obtenção de uma nova palavra. Enquanto, na derivação, o processo de formação envolve afixos, que são elementos fixos, na composição, ao contrário, o procedimento de formar palavras envolve a união de uma base à outra. Convém assinalarmos que na palavra composta, os elementos primitivos perdem a autonomia de significação em benefício de uma unidade semântica, isto é, um único conceito, novo, global. Essas composições lexicais desempenham função de palavras, tendo-se unidades sintáticas se cristalizando numa função morfológica ou lexical. O que caracteriza e define a função do processo de composição é a sua estrutura, de tal maneira que, das bases que se juntam e/ou aglutinam para formar uma palavra, cada uma tem seu papel definido pela estrutura. Essa é sintática, diferentemente do que ocorre nos casos de derivação. No processo de formação neológica composicional, podemos distinguir duas formas de composição: a justaposição e a aglutinação. Nos compostos formados de palavras ou radicais pertencentes a classes gramaticais diferentes, de estruturas sempre binárias, tem-se um elemento que é o principal, o núcleo, e um elemento que é o especificador, o adjunto. São, portanto, compostos determinativos ou subordinativos. Na formação dos compostos por justaposição, também denominada de composição perfeita, não há alteração morfo-fonética e/ou gráfica nas bases que se unem para formar a nova palavra. Nas palavras justapostas, os termos associados não conservam a sua individualidade semântica, mas apenas sua individualidade formal. (17) ―Se depender das atuais perspectivas, a candidatura de Ronaldo Lessa vai disputar com o ex-prefeito-tampão o segundo turno.‖ [O Jornal, 09/06/1996, p. A - 3, grifo nosso]. (18) ―Já que nunca passava de 10% chegou a ser chamado de candidato-garçom em comparação à gorjeta dada a esses profissionais.‖ [O Jornal, 11/10/1998, p. A / 3, grifo nosso]. (19) ―com o advento do voto eletrônico, o que substituirá a expressão „poca-urna‘? será „queima-computador‘ ou ‗explode-chip‘?‖ [O Jornal, 04/10/1998, p. A / 3, grifo nosso]. (20) ―Ambos com discagem gratuita, que fazem parte da Central de Atendimento (disqueseca) montada pela SUDENE.‖ [Tribuna de Alagoas, 13/11/1998, p. 5, grifo nosso]. Já na formação dos compostos por aglutinação há perdas morfo-fonéticas e/ou gráfica nas bases (ou em uma das bases) que formam o novo vocábulo. Esse fica subordinado a uma única acentuação prosódica, ordinariamente a do último vocábulo (21) [...] ―inaugurou também um laboratório médico e um centro de saúde bucal (escovódromo).‖ [Gazeta de Alagoas, 11/05/1996, p. D -14, grifo nosso]. (22) ―Entre os projetos de nascimento em defesa dos direitos homossexuais está a criação de um namoródromo gay.‖ [Gazeta de Alagoas, 22/06/1996, p. A - 2, grifo nosso]. (23) ―Dignidade para os Brasiguaios.‖ [O Jornal, 08/11/1998, A / 9, grifo nosso]. Nos neologismos compostos, esses itens lexicais juntos fazem parte de uma só classe de palavra formando uma nova palavra-base, em que prevalece a unidade semântica. Em outros termos, esses compostos constituem componentes frásicos com o valor de uma unidade lexical. Como foi exemplificado nos enunciados (17), (18), (19), (20), (21), (22) e (23). Além dos dois processos principais na formação neológica na função de formar palavras novas, derivação e composição. Há outros mecanismos linguísticos, embora menos gerais, usados pelo falante no procedimento de formar novas palavras, que também contribuem para o enriquecimento do acervo lexical da Língua Portuguesa, a saber:
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hibridismo, a abreviação vocabular, a acrossemia, a conversão, as formações onomatopaicas e o redobro. Esses procedimentos lexicais são normalmente pouco abordados nos compêndios gramaticais modernos, como também nas gramáticas tradicionais, que pecam pela sumaridade e pela insuficiência de análise. (cf. BUENO, 1968; ALMEIDA, 1985; MESQUITA, 1996; LIMA, 2000; CUNHA; CINTRA, 2008; BACHARA, 2009; entre outros). O hibridismo consiste no processo de formação lexical no qual a nova palavra é composta a partir de elementos de sistemas linguísticos diferentes. Por exemplo, nas sentenças (24) e (25), detectamos elementos linguísticos do português e do inglês nas formações neológicas. (24) ―Os moradores do conjunto Stella Maris estão revoltados com a possibilidade de o PMBox que eles próprios construíram no residencial ser transferido para outro local.‖ [O Jornal, 10/11/1998, p. A / 3, grifo nosso] (25) ―com o advento do voto eletrônico, o que substituirá a expressão ‗poca-urna‘? será ‗queima-computador‘ ou ‗explode-chip‘?‖ [O Jornal, 04/10/1998, p. A / 3, grifo nosso]. A abreviação vocabular é um caso particular da derivação regressiva, mas com características linguísticas próprias. Genericamente, o processo derivacional regressivo ocorre também através da mudança da categoria gramatical (recategorização), já no caso da abreviação, apesar de ocorrer redução do vocábulo, esse permanece na mesma classe de palavra da unidade lexical reduzida. Na derivação regressiva há redução específica: eliminase no vocábulo derivado o sufixo ou a desinência do derivante, no caso da abreviação, a redução não se pauta por critérios específicos e homogêneos, podendo a unidade lexical nova ser obtida a partir da redução ao prefixo ou corte de sílabas. Como ocorre nas frases (26) e (27). (26) ―Decisão do TC reabre debate sobre a macro (macrodrenagem)‖. [O Jornal, 11/11/1998, p. A / 4, grifo nosso]. (27) ―Mas, se as micro (microempresa) e pequenas empresas são as usinas geradoras de pontos de trabalho.‖ [O Jornal, 30/12/1998, p. A /2, grifo nosso]. Pensamos que o procedimento de reduzir vocábulos na formação de unidades lexicais novas vem ratificar o aspecto dinâmico da língua, visto que, evidentemente, são palavras longas que sofrem redução a favor da comunicação mais ágil e mais rápida, até limites que não prejudicam a compreensão destes signos linguísticos na linguagem jornalística em sua modalidade escrita. A Acrossemia constitui um tipo especial de formação de vocábulos e de fecundidade lexical relevante na Língua Portuguesa hodierna, na qual a unidade lexical nova pode ser formada a partir da redução de uma expressão substantiva a seus elementos: letras, sílabas iniciais, mediais ou sinais. Trata-se, portanto, de um mecanismo fonomorfológico de criação lexical que nem sempre os fonemas são encadeados nos significantes desses signos linguísticos, todavia, segue o princípio de linearidade, nessa particularidade reside toda vitalidade do processo acrossêmico na língua e sua produtividade lexical. Alves (1990, p. 56) afirma que esse tipo de formação lexical ―é resultado da lei de economia discursiva. O sintagma é reduzido de modo a torna-se mais simples e mais eficaz no processo de comunicação‖, porém, somente exerce tal papel se essas formações forem identificadas pelo receptor. Essa identificação dependerá da competência linguística e, mais ainda, do conhecimento de mundo do mesmo. Por serem práticas e cômodas aos usuários da língua, as siglas e os acrônimos ―estão se multiplicando cada vez mais na língua portuguesa contemporânea do Brasil e fazem parte
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quase que insubstituivelmente em textos escritos e/ou falados em quase todos os níveis de uso da língua‖. (MELO & BRITO, 2009, p. 135). Nos enunciados a seguir, temos registros de neologismos criados com siglas nas frases (28) e (29) ou derivados dessas unidades lexicais (siglas ou acrônimos) nas frases (30) e (31). Siglas: FHC – (Fernando Henrique Cardoso) + FMI – (Fundo Monetário Internacional) (28) ―Sai hoje o pacote FHC-FMI.‖ [O Jornal, 28/10/98, p. Capa, grifo nosso]. Sigla: PHD – (Philosophiae Doctor) + DEUS (substantivo masculino concreto) (29) ―Comandados por PHDeuses,‖ [...]. [Gazeta de Alagoas, 18/06/1996, A -2, grifo nosso]. Acrônimo: IBOPE – (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) + -ANO (sufixo popular ) (30) ―Os erros ibopeanos.‖ [O Jornal, 11/10/1998, p. B / 8, grifo nosso]. Sigla: PDV – (Programa de Demissão Voluntária) + -ISTA (sufixo grego de istés) Quanto à aceitabilidade no acervo da língua dessas formas neológicas, entendemos como um indício de que as formações acrossêmicas já se encontram no domínio linguístico popular, o fato de os acrônimos e as siglas derivarem palavras novas, revelando sua integração no acervo lexical do Português. Por conseguinte, sendo reconhecidas na formação lexical como verdadeiras palavras. O processo de redobro ou reduplicação se apresenta como um recurso de caráter morfológico, no qual o neologismo é obtido a partir da repetição ou reduplicação completa ou parcialmente da base que formará a nova palavra. Em outros termos, consiste na criação de forma lexical pela repetição de outra preexistente, sem ou com alteração de sua estrutura fônica. No enunciado (31), há registro de neologismo formados através redobro total e nos enunciados (32) e (33) neologismos formados por reduplicação parcial. (31) ―Ele mesmo, o catorze-catorze, a confraria mandou confeccionar o troféu e vai mandar para Brasília.‖ [O Jornal, 09/10/1998, p. A / 3, grifo nosso]. (32) ―A turma „collorida‟ montou uma farsa‖ [O Jornal, 14/07/1996, p. A - 13, grifo nosso]. (33) ―Fenômeno não foi a eleição, será a vollta.‖ [O Jornal, 18/04/1996, p. A - 2, grifo nosso] No caso das formas das sentenças (32) e (33) de repetição parcial, os neologismos foram formados pela duplicação da consoante lateral [l] com uma conotação semântica relacionada ao Ex-presidente da República Federativa do Brasil Fernando Collor de Mello. A repetição do grafema ―l‖ nas palavras remetem aos dois lls do sobrenome da referida personalidade política brasileira. É pertinente destacarmos que os elementos repetidos (letras, sílabas ou palavras) não apresentam interesse quanto à questão das relações sintáticas. Todavia, são relevantes quanto às relações semântico-fonéticas da língua. Por conseguinte, a característica essencial do redobro consiste em concatenar duas ou mais formas explorando o efeito semântico, gráfico e/ou sonoro daí decorrente. Esse recurso linguístico era muito comum na morfologia do indoeuropeu. As formações onomatopaicas ou onomatopeias são palavras que procuram imitar sons, voz ou ruídos de objetos ou animais, contudo não há uma idêntica reprodução do som ou ruído originário pelo vocábulo criado, mas apenas uma aproximação destes. (34) ―O plim-plim da emissora de Roberto Marinho não quer se tornar alvo de campanha política na seara alagoana.‖ [Gazeta de Alagoas, 24/04/1996, p. 3, grifo nosso] Para Alves (1990, p. 12), a criação onomatopaica ―está calcada em significantes inéditos. Entretanto, [...] não é totalmente arbitrária, já que ela se baseia numa relação, ainda que imprecisa, entre a unidade lexical criada e certos ruídos ou gritos‖. Podemos considerar uma arbitrariedade relativa em oposição a uma arbitrariedade absoluta e esse tipo de neologismo é pouco comum na linguagem jornalística impressa no Estado de
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Alagoas, pois, geralmente os neologismos têm sua gênese em formas linguísticas préexistentes. Considerações finais Os aspectos abordados no presente artigo, envolvendo a formação neológica na linguagem jornalística escrita na última década do século XX no Estado de Alagoas, permitem-nos tecer algumas considerações finais. Primeiramente, a neologia está presente na língua, também de maneira efetiva na modalidade escrita, contribuindo à ampliação e/ou renovação do léxico. Pode ser considerada como um fenômeno linguístico de caráter universal, uma vez que toda língua viva se expande, se transforma, evolui, sobretudo seu acervo lexical. Esses vocábulos novos atestam a criatividade comunicativa e a necessidade de novas unidades lexicais na função de nomear a realidade extralinguística do usuário da língua, ou seja, o aparecimento de novas realidades sócio-econômico-culturais geralmente, propicia e, às vezes, até obriga, a criação de neologismos em favor da economia discursiva. Todavia, para formarmos uma palavra nova, não basta apenas a criatividade: torna-se necessário, também, obedecermos a certas regras inerentes à língua para compormos os vários segmentos que formam a estrutura da nova unidade lexical. Caso contrário, seria impossível decodificá-la. No entanto, acreditamos que essas normas ou regras de formação de palavras não são conscientes no usuário (leitor/escritor) no momento da formação lexical. Essa dinamicidade léxica está condicionada a fatores externos e internos à língua. Na verdade, uma língua está sempre recebendo força centrífuga e força centrípeta em sentidos opostos, não excludentes, mas complementares. A dinâmica lexical, no âmbito dos fatores externos, depende principalmente da evolução das necessidades comunicativas da sociedade que a usa, e esta evolução se encontra diretamente relacionada ao crescimento intelectual, social e econômico dessa mesma sociedade. Essas novas unidades lexicais se não desaparecerem, desneologizar-se-ão, ou seja, integrar-se-ão ao léxico geral da língua. A dicionarização pode representar a continuidade de seu uso, consequentemente, a sua integração no acervo lexical do português. A grande parte dos neologismos tem sua origem em formas linguísticas préexistentes ligadas a determinadas noções e utilizadas em novas formações lexicais, estabelecendo uma ligação com conhecimentos anteriores. Os vocábulos novos podem ser formados a partir de processos autóctones ou por adoção de um item lexical de outra comunidade linguística. A produtividade lexical do processo derivacional por prefixação, em muitos casos, decorre de um desejo de economia discursiva por parte do falante/emissor porquanto uma frase negativa, expressa por uma palavra formada por prefixação, torna-se mais econômica do que uma construção sintática negativa; da mesma forma são os casos do emprego de elementos prefixais seguidos de substantivos exercendo uma função adjetiva. Podemos interpretar esse procedimento lexical como um indício de que a formação lexical segue uma tendência natural da língua em favor da economia expressional. Já na formação lexical por composição, a justaposição imediata é bem mais produtiva do que a justaposição mediata; a estrutura justaposta por substantivo mais substantivo (subst. + subst.) pode ser considerada como o modelo de estrutura morfológica mais produtiva entre todas as estruturas compostas de caráter neológico.
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Na formação lexical por aglutinação, os neologismos são formados por truncação linguística de bases autônomas e não-autônomas que se aglutinam, ocorrendo perda mórfica e/ou gráfica em um ou mais elementos que constituem a nova palavra. A produtividade lexical dos processos de formação dos compostos tem na justaposição sua fonte mais produtiva na criação de neologismos. Acreditamos que essa fecundidade léxica pode ser interpretada como uma tendência linguística, na qual há um favorecimento à formação lexical em que não ocorra perda mórfica entre os constituintes da nova palavra, em favor de regras linguísticas conservadoras inerentes à língua, com a finalidade de assegurar a conservação desse sistema linguístico. Além da derivação e da composição, também, são registrados na formação neológica da língua portuguesa outros mecanismos lexicais menos gerais na formação e/ou criação de novos vocábulos. Embora menos importantes, também contribuem para a ampliação e/ou renovação do léxico português. A acrossemia é um desses processos de formação vocabular menos gerais e bastante frequente na formação de palavras novas na linguagem jornalística escrita. Essa produtividade lexical, nesse gênero de linguagem, é previsível, uma vez que o citado mecanismo linguístico consiste em um processo moderno e generalizado na imprensa periódica. Podemos relacionar a grande fecundidade lexical da acrossemia ao dinamismo da linguagem jornalística que exige o máximo de informações com um número mínimo de palavras. Dessa forma, motivando o uso de formações acrossêmicas como as siglas e os acrônimos. Atualmente, as instituições são menos conhecidas por suas denominações completas do que pelas siglas e/ou pelos acrônimos correspondentes, em virtude da nãonecessidade do usuário da língua de reconhecer, em muitos casos, a forma plena subjacente à forma acrográfica. Essas formas lexicais, uma vez criadas e vulgarizadas, passam a ser reconhecidas como palavras primitivas, inclusive formando derivados. Além da acrossemia, podemos detectar a formação lexical por redobro, esse mecanismo apresenta uma produtividade regular na mídia escrita. Trata-se de um procedimento de formação neológica que se caracteriza pela exploração do efeito semânticovisual decorrente da repetição lexical, com a finalidade de acentuar o aspecto durativo do citado processo de formação neológica. Os neologismos formados por redobro podem apresentar uma repetição parcial ou total. O surgimento dessas novas unidades a partir da repetição total (ou reduplicação) de bases é mais fecundo lexicalmente do que por meio da repetição parcial. O usuário da língua ao criar um neologismo tem, muitas vezes, plena consciência de que está inovando, neologismando, criando e/ou formando novas unidades lexicais, quer pelos processos autóctones, quer pelos processos não-autóctones. Essa sensação neológica é traduzida, nos textos jornalísticos, por processos visuais como as aspas, o tipo de letra, a presença ou ausência do hífen, entre outros, que visam realçar o resultado da criatividade lexical na modalidade de língua escrita. Muitos dos neologismos cairão no esquecimento e não serão mais lembrados, enquanto outras formações lexicais, dentro de algum tempo, não mais serão percebidas como novas, devendo ser incorporadas ao léxico da Língua Portuguesa do Brasil. E, ainda, as renovações e/ou inovações da produtividade lexical do Português atual, variante usada no Brasil, devem ser entendidas apenas como uma amostra limitada do que esse tema pode proporcionar, se pesquisado mais amplamente. Essa limitação é, no entanto, imposta pela própria amplitude e largueza da temática do trabalho ora realizado. O surgimento de novas unidades lexicais na língua está vinculado às inovações do mundo, isto é, a comunidade evolui, consequentemente evolui também seu sistema
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linguístico, já que ao léxico corresponde o nível linguístico mais diretamente ligado à realidade extralinguística pelas necessidades surgidas. Referências ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 5. Ed. São Paulo : Global, 2009. ALVES, Ieda Maria. Neologismo : criação lexical. São Paulo : Ática, 1990. ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 33. ed. São Paulo : Sairava, 1985. BASILIO, Margarida. Teoria lexical. 8. ed. São Paulo : Ática, 2007. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira/ Lucerda, 2009. BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. A estrutura mental do léxico. In: Estudos de filosofia e linguística. São Paulo : T. A. Queiroz / Universidade de São Paulo, 1981, p. 131-45. BUENO, Francisco da. Gramática normativa da língua portuguesa. 7. ed. São Paulo : Saraiva, 1968. CARVALHO, Nelly. Empréstimos linguísticos na língua portuguesa. São Paulo : Cortez, 2009. _____.Linguagem jornalística: aspectos inovadores. Recife : Secretaria de Educação de Pernambuco - Associação de Imprensa de Pernambuco, 1983. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 5. ed. Rio de Janeiro : LEXIKON, 2008. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4. ed. Curitiba : Positivo, 2009. FREITAS, Horácio Rolim de. Princípios de morfologia. 5. ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro : Lucena, 2007. ISQUERDO, Aparecida Negri.; KRIEGER, Maria da Graça. (orgs). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. v. II Campo Grande : EDUFMS, 2004. _____.; OLIVEIRA, Ana Maria P. Pires. As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande : EDUFMS, 1998. KATAMBA, Francis. Morphology. Houndmills : The Macmillan Press, 1993. LIMA, Rocha, Gramática normativa da língua portuguesa. 38. ed. Rio de Janeiro : J. Olympio, 2000. MATORÉ, G . La méthode en lexicologie. 2. ed. Paris : Didier, 1972. MELO, P. A. G. de. Relevância do estudo do latim e sua Derivação Portuguesa na Formação do estudante dos cursos de Letras Clássicas e Vernáculas. In: SILVA, Eliane Bezerra da; MELLO, Janaina Cardoso de (org). Literatura, História e Linguagens: Diálogos possíveis. João Pessoa: EDUFPB, 2008. pp. 29-37. _____; BRITO, Bartolomeu Melo. A incompreensão da acrossemia como fator condicionante à inadequação conceitual e à imprecisão terminológica nas aulas de português na educação básica. In: SILVA, Eliane Bezerra da; MELLO, Janaina Cardoso de (org). Diversidade cultural: Universidade e etnias negra e indígina em Alagoas possíveis. João Pessoa: EDUFPB / UNEAL, 2009. pp. 29-37. MESQUITA, Roberto Melo. Gramática da língua portuguesa. 5. ed. São Paulo : Saraiva, 1996. NUNES, José Horta. IN: GUIMARÃES, Eduardo (org). A Palavra e a Frase. Campinas, SP, Pontes Editores: 2006. SILVA, José Pereira da. Gramática histórica da língua portuguesa. Rio de Janeiro : Edição do Autor, 2010.
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A TRADUÇÃO COMO CRIAÇÃO LITERÁRIA E AS ESCOLHAS DO TRADUTOR Rafaella Dias Fernandez1 RESUMO: Paulo Ronai, em Escola de Tradutores (1956), definiu a tradução como arte. Para o autor, o tradutor, além de um conhecimento indispensável da língua, precisa de imaginação. Assim, a tradução será pensada a partir de seu caráter literário, como criação poética. Há um encontro entre o tradutor e a obra a ser traduzida, há uma ligação entre as línguas, há um brilho com a união de ambas. Portanto, há razões para a escolha da obra a ser traduzida pelo tradutor, uma delas seria o amor à língua a ser traduzida. Ronai também acredita que há explicações para justificar a escolha do original pelo intérprete, essas são: afinidade pelo autor, descoberta de uma grande matéria-prima ou a ―sensação de se encontrar em transe parecido ao em que já se debateu o grande escritor estrangeiro, o qual se torna assim um irmão na infelicidade.‖ (RONAI, 1956, p. 36). Este artigo tem como objetivo refletir sobre a tradução como estratégia de desconstrução/construção da identidade do autor, usando para isto as obras poéticas de Herberto Helder e tentando investigar, mais especificamente, quais foram os interesses que o levaram a atividade de tradução. Palavras-chave: Tradução; Criação; Afinidade. THE TRANSLATION LIKE POETIC CREATION AND THE TRANSLATOR‟S CHOICES ABSTRACT: Paulo Ronai, in ―Escola de Tradutores‖ (1956), defined the translation like art. For the author, the translator, beside of the an indispensable language‘s knowledge, needs imagination. Thus, the translation will be considered from its literary character, like poetic creation. There is a meeting between the translator and the work of art to be translated, there is a connection between languages, there is a shine with the union of both. So there are reasons for choosing the work of art to be translated by the translator, one of them would be the love for the language to be translated. Ronai also believes there are explanations to justify the choice by the original artist, these are: affinity for the author, discovery of a raw material‘s huge or the "feeling of being in a trance similar to that already discussed the great foreign writer, which thus becomes a brother in misfortune." (RONAI, 1956, p.36). This article has the objective to reflect on the translation as a strategy of deconstruction/construction of the author's identity, using for this poetic works of Herberto Helder and trying to investigate more specifically, what were the concerns that led to the translation activity. Key-Words: Translation; Creation; Affinity.
Herberto Helder em suas obras poéticas compreende que os elementos do mundo são instáveis, que tudo está em constante transformação, e que apenas duas coisas seriam consideravelmente estáveis em uma obra: o silêncio e a morte do autor. O silêncio seria 1
Graduanda em Letras - Licenciatura em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará e bolsista FAPESPA do projeto de pesquisa ―A tradução como recepção na poesia portuguesa contemporânea‖, orientado pela Profª. Dra. Izabela Guimarães Guerra Leal. E-mail: rafaelladias_fernandez@hotmail.com.
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considerável porque a fala não é completa, nunca se consegue chegar a um consenso universal, a um entendimento uno, as pessoas sempre têm a necessidade de explicações, uma fala gera a outra e assim por diante. Através da fala, há um entendimento efêmero acerca dos assuntos tratados e a grande inquietação do poeta é não conseguir dizer tudo o que necessita, as palavras não são suficientes para expressar todos os sentimentos e angústias dos seres humanos. Assim, só o silêncio seria capaz de ser completo, visto que a fala não consegue ser. O paradoxo é tentar dizer o indizível, pois como o poeta poderia dizer o silêncio? Assim, a outra questão considerada estável por Herberto Helder é a morte, pois, com a morte do autor, toda a sua obra estará terminada. Enquanto o autor estiver vivo, ele poderá retirar e acrescentar elementos de sua obra. Mas essa incerteza causa uma grande angustia no autor, visto que ele nunca conseguirá chegar a uma plenitude e nem a um consenso no que quer dizer e no que consegue transmitir através da obra. A morte também representa o desconhecido, representa aquilo que não podemos experimentar e representa o fim de tudo, como então conseguir dizer tudo o que se pretende se com a morte acaba tudo? Através desta insatisfação com a plenitude do que pretende exprimir, o poeta conclui que a melhor solução é transmutar os seres e as obras, utilizando a metamorfose, pois a própria morte é um tipo de metamorfose, visto que é uma transformação de um estado para outro, e só a metamorfose permite uma constante e renovada transformação na vida da linguagem e das obras. A base sobre a qual é construída a poética de Herberto Helder é essa idéia constante de metamorfose, de transformação. Para o poeta, o poema é algo que está em constante movimento, obedecendo apenas a uma lei: a da metamorfose, como o próprio autor nos mostra em um texto de Retrato em Movimento (1968), que mais tarde seria integrado e alterado em Os Passos em Volta (1997) sob o titulo de ―Teoria das Cores‖, na íntegra abaixo o texto original, que depois fora modificado: Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe. O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia o que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos fatos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor - sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insidia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor. Ao meditar sobre as razoes da mudança exatamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efetuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo. (HELDER, 1997, p.21;22) A partir deste texto, é possível fazer algumas considerações acerca da poética de Herberto Helder. Para o autor, a lei da metamorfose é a lei que preside toda criação artística, pois o pintor estava pintando o peixe que ele acreditava ser vermelho e no processo de passar
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o que estava vendo para o quadro, o peixe mudou de cor. Assim, a mudança aconteceu no momento em que o pintor ia concretizar uma imagem fixa do peixe em um quadro, o que, na verdade, não existe, já que a realidade está em constante transformação. Ao pensar que o peixe era uma estrutura fixa, o próprio peixe mostrou ser instável, ser flexível a outras condições. Como acontece com o poema, que está em constante movimento. Herberto Helder afirmou que o livro flutua e que está em constante suspensão. Assim também é o poema, está sempre em transformação, aceitando variadas possibilidades de leitura. Então, o objetivo do poeta é trabalhar na transformação, na metamorfose, como fez o pintor, ele entendeu o que acontecera e abriu mão da realidade, o pintor se permitiu ter liberdade artística. O conto também aborda a questão da fidelidade, pois o poeta acreditava estar sendo fiel à imagem que estava vendo do peixe e ao tentar concretizá-la percebeu que a fidelidade não existe. Assim, para Herberto Helder, o artista só deve ser fiel à lei da metamorfose. É a partir desta lei que preside todo o trabalho artístico e poético que pensaremos o trabalho tradutório realizado por Herberto Helder. A tradução a ser analisada será aquela em que o tradutor, assim como o pintor no conto ―Teoria das Cores‖, não busca a fidelidade em relação à obra original. O importante é a possibilidade de modificar a própria língua materna e de fazer o original transmitir o seu brilho à tradução. Paulo Ronai, em Escola de Tradutores (1956), definiu a tradução como arte. Para o autor, o objetivo de toda arte é algo impossível, pois o poeta tenta exprimir o inexprimível, o pintor tenta reproduzir o irreproduzível e o tradutor se empenha em traduzir o intraduzível. A tradução é também uma forma de intertextualidade, é uma apropriação do que a cultura do outro tem de melhor. Leyla Perrone-Moisés, em Flores da Escrivaninha (1990), utiliza o termo antropofagia cultural, emprestado de Oswald de Andrade, para nomear esse rapto da cultura alheia. O termo foi proposto com o intuito de nomear a devoração crítica no Modernismo. A metáfora da Antropofagia é baseada na cultura indígena. Para os índios, devorar o outro representava adquirir suas virtudes e qualidades. Prova disto é que os candidatos à refeição tinham que dar provas de sua valentia, de sua coragem. Para o índio a ser devorado e sua tribo, era uma honra esse ritual. Então, há na devoração uma seleção, assim como no processo de intertextualidade. No caso da tradução, essa seleção é bem visível na escolha do tradutor em relação à obra a ser traduzida. Ronai acredita que há razões para a escolha da obra a ser traduzida. Há um encontro entre o tradutor e a obra original, há uma ligação entre as línguas, há um brilho com a união de ambas. Então, para o autor, essas explicações são: afinidade com o autor, a descoberta de uma grande matéria prima ou a “sensação de se encontrar em transe parecido ao em que já se debateu o grande estrangeiro, o qual se torna assim um irmão na infelicidade”. (RONAI, 1956, p.36). Herberto Helder também acredita que há razões para o tradutor escolher uma obra, sendo que uma delas é o amor, como ele nos mostra no prefácio de O bebedor nocturno, no qual o poeta afirma que o prazer de traduzir é decorrente do amor. ―O meu prazer é assim: deambulatório, ao acaso, por súbito amor, projectivo.‖ (HELDER, 1995, p.72). Assim, a fidelidade à obra original não importa, o que está em jogo é a possibilidade de brincar com as línguas, é a oportunidade de recriar aquele brilho original que a obra primária ofereceu na leitura. Walter Benjamin, em ―A tarefa do tradutor‖ (2008), propõe que todos os gestos realizados na tradução são feitos por algum tipo de amor à língua. O autor afirma que a tradução não tem como finalidade imitar o original, mas sim ―insinuar-se com amor nas mais ínfimas particularidades.‖ (BENJAMIN, 2008, p.38). Para Benjamin, a boa tradução não visa servir ao leitor, pelo contrário, a forma como vai ser recebida não importa, o importante é tentar buscar uma relação íntima e profunda entre as obras e entre as línguas.
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Herberto Helder, ainda no prefácio de O bebedor nocturno, afirma a importância da liberdade. ―E agora, que já disse tudo, digo que não gosto de justificações. A regra de ouro é: liberdade. E pede-se desenvoltamente ao leitor: que leia aqueles poemas o mais livremente que puder.‖ (HELDER, 1995, p.73). Para o poeta, o fundamental é ter liberdade para modificar a obra conforme a necessidade do tradutor e liberdade para o leitor, que a cada leitura pode aventurar-se a novas descobertas. É possível então brincar com as palavras, e, no caso da tradução, com o brilho que a obra estrangeira oferece. Para os poetas em geral, o processo de tradução é fundamental, já que, ao traduzir, a língua materna pode ser transformada, modificada. A tradução possibilita ao poeta essa transmutação e as obras de Herberto Helder são um exemplo disso, como o próprio poeta define em um de seus livros: A transmutação é o fundamento geral e universal do mundo. Alcança as coisas, os animais e o homem como o seu corpo e a sua linguagem. Trabalhar na transmutação, na transformação, na metamorfose, é obra própria nossa. (...) o poema é o corpo da transmutação, a árvore do ouro, vida transformada: a obra. (HELDER, 1977, p. 21). Em suas obras poéticas, Herberto Helder procura essa deformação, essa transformação da língua, levando em consideração todas as possibilidades que a liberdade tradutória oferece. Um exemplo disso é dado mais uma vez no prefácio de O Bebedor Nocturno, onde o poeta fala da vida do poliglota. Para ele, o cotidiano do poliglota é animado por movimentos de deslocações e de transformações, mas por trás disso, há um desespero surdo, pois o poliglota busca uma unidade perfeita entre os idiomas, e a mesma não existe. Assim, o poeta chega a uma conclusão: saber línguas é o que menos importa. O que está em jogo é a recriação. É a transformação. É a transmutação que a língua possibilita. O prazer consiste em vagar pelo poema. O labor do artista é esse, é o de ajustar o poema ao seu afeto pessoal, às suas necessidades secretas. Na explicação da tradução do poema ―A criação da lua‖ dos índios caxinauás, o poeta critica a tradução feita por Dechartre, pois o autor francês pensou que tivesse traduzido o poema na íntegra, mas o que traduziu era o glossário do poema. Com isto, a crítica feita por Herberto Helder é de que ao procurar o glossário, a verdadeira intenção de Dechartre era traduzir exatamente o que estava presente no glossário. Com isto, a preocupação do francês era acertar as mesmas palavras da língua original, esquecendo, assim, o que é mais importante na hora de traduzir, que é a liberdade que a atividade tradutória oferece. Ao traduzir o glossário, o verdadeiro intuito do francês era traduzir exatamente o conteúdo escrito, enquanto o intuito deveria ter sido com os encantos sentidos na língua dos caxinauás, com o brilho que o contato com a obra alheia oferece, para assim, usar a tradução para transmutar este brilho na língua estrangeira em um encanto e sentimento em uma obra na língua materna. Assim, Herberto Helder resolveu traduzir o poema dos caxinauás. Para manter a essência do poema, foi preciso bagunçar a língua portuguesa, foi preciso transformá-la. E é isto que está em questão na atividade de tradução, não somente a busca por semelhanças entre as línguas, mas também a busca de uma relação entre elas e a possibilidade que a tradução oferece de transmutação da língua do tradutor. No fim da explicação do poema, o poeta nos dá uma possível definição do que seria a tradução: ―Acertar, através do erro feliz e de uma invenção de movimento, com a potência directa natural da poesia‖ (HELDER,1997b, p.45). Ao traduzir, sempre faltará uma palavra ou expressão, e o bom tradutor, para poder transmutar a língua materna, acrescenta e retira
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elementos, tendo total liberdade para modificar conforme queira, porque é essa a finalidade da tradução, ser um erro feliz.
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A CRIAÇÃO DO FANTÁSTICO E DO EFEITO DE AMBIGUIDADE EM “O CAPITÃO DO ESTRELA POLAR”, DE SIR ARTHUR CONAN DOYLE Adolfo José de Souza Frota1 Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o conto ―O capitão do Estrela Polar‖, de Sir Arthur Conan Doyle, e discutir a presença do fantástico nessa narrativa. Partindo da teoria de Tzvetan Todorov, complementada por Filipe Furtado, pretendemos comentar como o fantástico se configura a partir da presença marcante do narrador que assegura e estimula o efeito da ambiguidade. Muito mais do que a hesitação do narratário, acreditamos que o fantástico se baseia na criação de uma narrativa que, através de componentes essenciais como a presença de um narrador que discute a sua confiabilidade, mantém a ambiguidade do enredo. Palavras-chave: Fantástico, narrador, estranho, maravilhoso THE CREATION OF THE FANTASTIC AND THE EFFECT OF AMBIGUITY IN “THE CAPTAIN OF THE POLE-STAR”, BY SIR ARTHUR CONAN DOYLE Abstract: This article aims to analyze the short-story ―The Captain of the Pole-star‖, by Sir Arthur Conan Doyle and to discuss the presence of the fantastic in this narrative. Based on the theory of Tzvetan Todorov, complemented by Filipe Furtado, we intend to comment how the fantastic is configured from the strong presence of the narrator that ensures and stimulates the effect of ambiguity. More than the hesitation of the narratee, we believe that the fantastic is based on the creation of a narrative that, through the essential components, like the presence of a narrator that discusses his reliability, keeps the ambiguity of the plot. Keywords: Fantastic, narrator, uncanny, marvelous
A literatura moderna de temática sobrenatural, cuja origem remonta à segunda metade do século XVIII, teve um período de grande produtividade no século XIX, tanto em romances (Drácula, Carmilla, Frankenstein, O médico e o monstro) quanto em contos (―A queda da casa de Usher‖, ―O fantasma e o consertador de ossos‖). Propomos nesse artigo uma discussão do tema do fantástico percorrendo autores como H. P. Lovecraft, Selma Calasans, T. Todorov e Filipe Furtado com o objetivo de analisar o conto de Arthur Conan Doyle ―O capitão do Estrela Polar‖ e discutir a principal característica do fantástico: sua ambiguidade. Analisaremos como é construído a ambiguidade a partir da ação do narrador e personagem central da narrativa, John McAlister Ray. Discutiremos, também, outra característica básica do fantástico: o fato de ser uma literatura que especula a existência do sobrenatural.
Breve exposição teórica sobre a literatura fantástica A literatura fantástica fundamenta a sua estrutura a partir do papel do narrador (e da personagem) na criação do efeito de dúvida e, de acordo com Todorov (2007), o texto deve 1
Professor da UEG de Campos Belos. Doutorando em Letras – UFG. Email: adolfo_thedrifter@yahoo.com.br.
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gerar a hesitação no leitor implícito. A dúvida é em relação à existência ou não de uma possibilidade metaempírica até então desconhecida. O efeito do fantástico dura apenas esse momento de hesitação, algo que pode ser momentâneo, ou em alguns casos, pode se estender até o final da leitura, quando o leitor não consegue responder a pergunta central: existe o sobrenatural? Um dos primeiros autores a discutir a literatura sobrenatural foi Howard Phillips Lovecraft que escreveu, em 1927, O horror sobrenatural na literatura, um ensaio que tenta explicar o motivo da proliferação de histórias de horror, assim como faz um levantamento dos principais autores ocidentais que escreveram sobre o tema. Nesse ensaio, Lovecraft considera apenas a literatura que, de acordo com ele, inspira horror. Lovecraft (1987, p. 1-2) constata que o envolvimento com o fantástico demanda um esforço por parte do leitor, pois uma das primeiras limitações do gênero está na comparação com a vida real. Segundo ele, o leitor precisará ter ―uma certa dose de imaginação e capacidade de desligamento da vida do dia-a-dia‖ para poder se envolver na trama que vai, exatamente, discutir temas que ultrapassam a habilidade de compreensão humana. Com isso, Lovecraft (1987, p. 4-5) sugere uma outra condição necessária para o fantástico: a derrogação ou a suspensão das leis da natureza conhecida, a única defesa que temos, segundo ele, das agressões do caos e dos demônios do espaço desconhecido. A proposta desse autor norte-americano é vincular a idéia do fantástico à história de horror. Com isso, o medo, principalmente daquilo que é desconhecido, é caracterizado como o sentimento mais básico do ser humano e condição fundamental para o efeito do fantástico. Esse sentimento primordial é expresso na forma mais elementar de cultura, o folclore, através das figuras macabras e demoníacas. A literatura, então, assume o papel de manifestação cultural e psicológica ao também expressar histórias que envolvam fenômenos sobrenaturais ou qualquer outro tipo de assunto que provoque o medo (LOVECRAFT, 1987, p. 1). Dessa forma, Lovecraft (1987, p. 3) também associa a composição de histórias sobrenaturais a uma tendência do ser humano de expressar o medo do desconhecido. Sendo a dor e o perigo da morte as emoções mais lembradas, o folclore expressou, de forma mais constante, o lado ―negro e malfazejo do mistério cósmico‖, aquilo que o homem ainda não entendeu e que teme. O autor norte-americano dá importância fundamental para a criação da atmosfera. Segundo ele, o horror é suscitado não apenas pela violência de sacrifícios secretos, ossos ensanguentados e formas amortalhadas fazendo tinir correntes. Antes de qualquer violência e horror físico, é preciso conceber a criação de um ambiente de terror sufocante e inexplicável. Aliada a concepção dessa atmosfera está a criação da sensação de medo. Entretanto, o medo tem que ser do contato com o desconhecido, com a força que ultrapassa o conhecimento científico da época. Caso a história tenha uma explicação dos seus fenômenos através dos meios naturais, ela não se constitui como fantástica. Por isso, o autor afirma que ―[o] único teste para o verdadeiro horror é simplesmente este: se suscita ou não no leitor um sentimento de profunda apreensão, e de contato com esferas diferentes e forças desconhecidas [...]‖ (LOVECRAFT, 1987, p. 5-6). Mas, o que significa escrever sobre experiências extraordinárias, fortemente presente em todas as culturas, porém relegada a superstição e crendice popular pelo discurso científico e racionalista? A literatura do sobrenatural surge como uma reação ao racionalismo que predominava no século XVIII. De acordo com Selma Calasans Rodrigues, em O fantástico (1988, p. 27),
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[o] fantástico, no sentido estrito, se elabora a partir da rejeição que o Século das Luzes faz do pensamento teológico medieval e de toda metafísica. Nesse sentido ele operou uma laicização sem precedentes do pensamento ocidental. Pensar o mundo sem o auxílio da religião ou de explicações metafísicas, essa é a grande proposta do século XVIII. Rodrigues se refere ao fantástico (ou literatura do sobrenatural) que foi iniciada na era moderna, a partir do século XVIII e que costuma debater a existência do metaempírico. Essa proliferação significa que, no seio do racionalismo europeu, um gênero ocorre em paralelo com toda a força de oposição ao pensamento científico, uma forma de reação a razão. Estamos nos referindo à literatura gótica, iniciada com o romance de Horace Walpole O castelo de Otranto e amplamente desenvolvida pela literatura anglófona. Dessa forma, a literatura metaempírica tem como pressuposto primordial um discurso de oposição ao cientificismo que julga poder explicar a natureza a partir da análise racional. Sendo assim, é comum a presença de um narrador ou personagem diante do embate entre a possibilidade de fenômenos que a nossa filosofia não compreende e a total segurança da ―explicabilidade‖ do mundo. A certeza de que o mundo pode ser compreendido ou a incerteza desse aspecto que assegura a tranquilidade do narrador/personagem é o que ajuda a caracterizar o fantástico. Mesmo que o medo seja o efeito da literatura sobrenatural no discurso de Lovecraft, é preciso ressaltar que o medo é provocado pelo desconhecido, pelo inexplicável. O homem necessita ter o poder de entender e explicar o mundo. O grande teórico do fantástico é Tzvetan Todorov, autor de Introdução à literatura fantástica. O autor búlgaro ampliou o conceito do fantástico a partir de uma diferenciação quanto ao seu conteúdo, levando em consideração uma conjetura essencial para o debate fantástico que já ressaltamos: a discussão sobre a existência de duas realidades em uma narrativa e a possibilidade de escolha (ou não) entre essas duas alternativas. As realidades são, precisamente, a natural e a sobrenatural. O fantástico, na teoria todoroviana, se configura e se baseia na possibilidade de explicação lógica ou não de determinado acontecimento. Todorov (2007, p. 30) defende que a principal característica do fantástico é a hesitação que o leitor implícito (narratário) tem ao questionar se a narrativa que ele está lendo possibilita a existência do sobrenatural. Caso isso seja possível, a narrativa entra para outro gênero: o maravilhoso. Caso, de alguma forma, o evento extraordinário acabe sendo explicado, se configura o estranho. O fantástico se nutre dessa discussão e jamais opta por alguma alternativa: Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós (TODOROV, 2007, p. 30-31). Discutindo essa experiência extraordinária, Filipe Furtado, em A construção do fantástico na narrativa enfatiza que, além da noção de sobrenatural, alguns fenômenos inexplicáveis pela ciência da época podem não ser sobrenaturais em outros períodos
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históricos, ou a falta de conhecimento do narrador, em relação a determinado acontecimento, pode contribuir para uma falsa noção das manifestações metaempíricas: Portanto, o conjunto de manifestações assim designadas inclui não apenas qualquer tipo de fenômenos ditos sobrenaturais na acepção mais corrente deste termo [...], mas também todos os que, seguindo embora os princípios ordenadores do mundo real, são considerados inexplicáveis e alheios a ele apenas devido a erros de percepção ou desconhecimento desses princípios por parte de quem porventura os testemunhe. Sobre este último aspecto, recorde-se que muitas ocorrências entendidas durante milênios como sobrenaturais vieram, em etapas posteriores do desenvolvimento humano, a ser plenamente compreendidas e, por consequência, racionalizadas, integradas no plano da natureza conhecida. Por outro lado, um conjunto de fenômenos inteiramente explicáveis e naturais para determinada civilização pode ser objeto de leitura sobrenatural por outra sociedade contemporânea da primeira que se encontre num estádio cultural e tecnológico muito mais atrasado (1980, p. 20). O fantástico é um gênero que se sustenta desde que o leitor implícito não opte pela aceitação ou negação do sobrenatural. Sendo assim, Todorov (2007, p. 31) defende que o fantástico seja ―a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural‖. O efeito do fantástico, para Todorov, não está subordinado ao efeito do medo e do horror, como por exemplo aponta Lovecraft em O horror sobrenatural na literatura. O medo não é uma condição necessária, apesar de estar frequentemente ligado ao gênero. O que é fundamental no fantástico é a possibilidade de hesitação entre a razão e a ―desrazão‖, entre uma explicação natural ou sobrenatural para a história. O fantástico implica a integração do leitor no ―mundo das personagens‖. Todavia, Todorov (2007, p. 37, grifo do autor) esclarece que a idéia de leitor não contempla o leitor real, e sim uma ―‗função‘ de leitor, implícita no texto (do mesmo modo que nele acha-se implícita a noção do narrador)‖. A partir desses dois autores (Lovecraft e Todorov), é possível considerar que o efeito do fantástico está apoiado na recepção do texto por parte do leitor implícito. Se o medo não é característico do fantástico, como defende Todorov, a hesitação é fundamental. Essa hesitação pode ser do narrador, da personagem, mas é sobretudo do leitor. A hesitação do leitor é provocada pela ambiguidade da história. Para Todorov (2007, p. 43-44), isso ocorre por causa da utilização recorrente de dois procedimentos de escritura: o imperfeito e a modalização. Em relação ao imperfeito, em uma frase como ―amava Aurélia‖, não é determinado se o falante ainda a ama ou não, gerando, portanto, a imprecisão quanto ao sentimento. Já a modalização é possível ser observada a partir da análise dessas frases: ―chove lá fora‖ e ―talvez chova lá fora‖. No primeiro caso, há certeza do fenômeno, enquanto que no segundo, não há. Ao lado do fantástico, que permite a leitura e a hesitação na compreensão de outras realidades, Todorov (2007, p. 47-63) apresenta mais duas possibilidades literárias que complementam a noção do fantástico. Segundo ele, quando uma história apresenta um acontecimento aparentemente sobrenatural, mas acaba recebendo uma explicação racional e a vida volta à normalidade, tem-se o estranho; quando a história revela a existência de uma natureza que está além da nossa compreensão, tem-se o maravilhoso.
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O estranho procura restabelecer a ordem da natureza ao racionalizar os acontecimentos que poderiam facilmente cair no sobrenatural. Há o anseio de que se mantenha o status quo, ou seja, o período anterior ao acontecimento aparentemente extraordinário. Com esse gênero, tanto o narrador quanto as personagens têm as suas convicções mantidas, as suas crenças são respeitadas e preservadas, mesmo que a história pareça conspirar contra elas. O maravilhoso não questiona ou nega qualquer manifestação metaempírica. Se um fantasma aparecer, ou um nigromante ressuscitar um demônio, tal improbabilidade (em nosso mundo racional e científico), por mais que possa chocar as personagens ou o narrador, acaba sendo aceito. Muitas vezes é até combatido quando o sobrenatural se manifesta para o mal, como acontece em Drácula, do irlandês Bram Stocker. A figura de Van Helsing, o caçador de demônios, se torna o agente que luta para restabelecer a ordem, mesmo que essa ordem aceite a presença de manifestações que estão além da nossa compreensão. O fantástico é o único dos três gêneros do sobrenatural que confere uma extrema duplicidade em relação à ocorrência sobrenatural. Conforme Furtado (1980, p. 35,36), ao manter o extraordinário em constante antinomia (realidade ou ilusão dos fenômenos metaempíricos), esse gênero procura manter em equilíbrio o debate sobre esses dois elementos cuja coexistência parece não ser possível. Para ele, a ambiguidade ―resultante desta presença simultânea de elementos reciprocamente exclusivos nunca pode ser desfeita até ao termo da intriga, pois, se tal vem a acontecer, o discurso fugirá ao gênero mesmo que a narração use de todos os artifícios para nele a conservar‖. As personagens são muitas vezes os elementos mais adequados para enfatizar a ambiguidade da experiência sobrenatural e para suscitar uma leitura que reflita sobre essa experiência, especialmente por causa da forma como elas podem reagir perante o fenômeno extraordinário (FURTADO, 1980, p. 38). Isso é bastante comum em histórias onde a personagem central é a narradora, a única que ―comunica‖ sua impressão sobre a experiência, o que de certa forma enfatiza o aspecto subjetivo da narrativa. Para Furtado (1980, p. 40-41), a hesitação é um elemento importante para a criação do fantástico, mas não é o seu elemento decisivo e único, conforme observamos na teoria de Todorov. Segundo ele, [l]onge de ser o traço distintivo do fantástico, a hesitação do destinatário intratextual da narrativa não passa de um mero reflexo dele [do narrador], constituindo apenas mais uma das formas de comunicar ao leitor a irresolução face aos acontecimentos e figuras evocados. Por isso mesmo, como todas as outras características do gênero (a começar pelo tratamento, que lhe é específico, da própria temática metaempírica), a função do narratário terá de subordinar-se, servindo-a, à ambiguidade fundamental que o texto deve veicular. Dessa forma, o papel do narratário (o leitor implícito) é importante para o fantástico, mas não é o fator único para que o gênero se configure. De acordo com Furtado (1980, p. 74), a existência do narratário nem sempre se torna aparente no texto, pois ele depende de fatores diversos, como o fato de ser intradiegético ou extradiegético, sua importância relativa na obra enquanto narratário e personagem propriamente dita, o grau de ingerência na ação que lhe é conferido, o seu maior ou menor conhecimento dos meandros da intriga, entre outros. Ainda conforme Furtado, isso significa que as diferentes gradações e clareza daí decorrentes ―podem muitas vezes levar a que o papel do narratário não seja entendido, e por consequência, seguido pelo leitor real de textos do gênero‖. Além disso, a
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diversidade de leitores reais e a presumível variedade de suas reações perante a intriga tornam bastante improvável que a hesitação aconteça na maioria das leituras. Outro fator levantado por Furtado (1980, p. 77) que corrobora a sua tese sobre as diferentes reações dos leitores é a reação a uma segunda leitura. A segunda leitura difere totalmente da primeira, visto que o leitor real dificilmente terá a mesma atitude do narratário perante o sobrenatural. Dessa forma, ele conclui: Assim, facilmente se depreende que afastar o traço distintivo do fantástico da sua situação própria (a ambiguidade) para o colocar no papel (nem sempre explícito ou convincente) destinado ao narratário, como o faz Todorov, equivale a dar prioridade ao acessório sobre o essencial, privilegiando um fator aleatório em desfavor de uma característica constante de qualquer narrativa que se inscreva no gênero (1980, p. 76). Fator essencial para a criação do efeito de dúvida, da hesitação perante a história, algo que é destinado ao narratário e que é experimentada pelo leitor real, é a intriga. A narrativa fantástica deve fornecer condições necessárias para o surgimento da hesitação, através de elementos intrínsecos à própria narrativa: Com efeito, para que a reação destinada ao narratário (a hesitação) possa ser por ele ―cumprida‖ com um mínimo de lógica e venha, com grande probabilidade, a ser experimentada pelo leitor real, é sobretudo necessário que a narração tenha criado na intriga condições para que tal se verifique. Ora, tais condições deverão primeiramente resultar da ambiguidade intrínseca da ação e do seu alastramento a todas as estruturas do discurso (FURTADO, 1980, p. 78, grifo do autor). O fantástico apresenta uma estrutura bem fechada e cheia de convenções. O sobrenatural, dessa forma, fica submetido a certas regras que potencializam e asseguram sua verrosimilhança. Isso pode ser observado na caracterização da figura do monstro. O tratamento dado à caracterização de um monstro (o vampiro, por exemplo) deve obedecer a certas convenções ―impostas‖ pela imagem que a opinião geral tem em relação a ele. Essa personagem, naturalmente inverossímil segundo a opinião comum, torna-se plausível diante dos cânones que ―orientam‖ o fantástico se ela evidenciar as características codificadas pelo gênero, ou seja, os atributos ―inerentes‖ a sua representação clássica (a aparência humana, a pele pálida, os dentes caninos e longos, a preferência pelo sangue humano, a preferência pela noite, a habilidade de se transformar em morcego). O vampiro perderia toda a credibilidade caso fosse representado com patas de bode, cabeça gelatinosa, tentáculos ou qualquer outra característica que ―fugisse‖ da imagem que temos dessa criatura (FURTADO, 1980, p. 5051). As reações das personagens que entram em conflito com o sobrenatural também obedecem a determinadas regras do gênero. Se a personagem, por exemplo, ―graceja‖ com o monstro em estilo coloquial, seu comportamento ―perde consistência‖ de acordo com as regras do fantástico. O que se espera da personagem perante uma ocorrência metaempírica é o medo e a perplexidade, jamais o comportamento divertido. Tal atitude, defende Furtado (1980, p. 52), ―contribuiria para desfazer a ambiguidade essencial do gênero‖.
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Assim, conclui o autor português, fica cada vez mais aparente que a narrativa fantástica é menos emancipada e espontânea e mais limitada e convencional do que poderia sugerir o ―falso libertarismo estético‖ que o gênero procura se envolver: Com toda a obra intensamente invadida pelo verossímil, ela entrega-se a cada passo a um sem-número de normas, de esquemas, de códigos previamente definidos pela mentalidade dominante da época em que foi produzida e pelos seus reflexos literários cristalizados no gênero em que se inclui (FURTADO, 1980, p. 52). Outro aspecto que corrobora a sua plausibilidade e que reforça a ambiguidade da narrativa é a presença de personagens respeitáveis, seja pela idade, seja pela sabedoria, seja pela posição social ou pela credibilidade diante da sociedade (FURTADO, 1980, p. 54-55). Essa credibilidade fica evidente pela própria narrativa, quando o narrador, em primeira pessoa, por exemplo, evidencia a sua respeitabilidade diante da sociedade e sua incredulidade em relação à experiência sobrenatural (algo que poderá ser observado no conto que vamos analisar). Além disso, outros meios são empregados com o intuito de garantir a credibilidade do relato sobrenatural: a referência a documentos, diários e cartas, a descoberta de livros antigos, geralmente em latim ou em formas anacrônicas de idiomas vivos, às vezes em idiomas fictícios, servem para reforçar a ―confiabilidade‖ do texto. O papel do narrador-personagem é fundamental no fantástico para a criação do efeito de dúvida, principalmente quando este se torna cético às evidências de que está passando por uma experiência extraordinária. Normalmente, o cético provém de camadas sócio-profissionais consideradas mais respeitáveis, o que contribui para a credibilidade de seu relato, pois ele é o primeiro e talvez maior crítico de sua experiência. Conforme Furtado (1980, p. 56-57), mesmo quando o narrador se convence da veracidade da ocorrência sobrenatural, ―o seu crédito como testemunha de confiança não sofre grande abalo, assim se propiciando uma mais completa adesão por parte do receptor real do enunciado‖. Além disso, a explicação racional para alguns aspectos secundários do sobrenatural contribui para captar a confiança no leitor, ―criando-lhe a falsa sensação de que a obra, embora revele um certo número de fenômenos repugnantes à sua razão, não o procura mistificar, dado que também se apressa a criticar esses elementos quando tal se torna necessário‖. Vejamos como isso acontece no conto ―O capitão do Estrela Polar‖. O fantástico em “O capitão do Estrela Polar”, de Sir Arthur Conan Doyle O conto de Conan Doyle é uma narrativa em forma de diário, escrito pelo estudante de medicina John McAlister Ray e posteriormente publicado pelo pai, com uma nota explicativa sobre a história que visa ―autenticar‖ o relato do filho. A primeira entrada no diário acontece em 11 de setembro, quando há as primeiras informações sobre a posição geográfica do navio, que estava encalhado nas geleiras do mar da Antártida. O navio em questão é o Estrela Polar. Seu capitão é Nicholas Craigie. A terceira entrada no diário, em 12 de setembro, apresenta as primeiras impressões do narrador em relação à tripulação do barco. John introduz um problema secundário e que vai ganhar dimensão central com o passar dos dias: os marinheiros estão se queixando de que constantemente têm ouvido gritos e lamentos humanos. Como John é um cientista, seu primeiro comportamento é rejeitar qualquer possibilidade da existência de
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fenômenos sobrenaturais e atribuir explicações racionais tanto para o comportamento dos marinheiros quanto para o significado daqueles sons: É estranho que a superstição tenha alcançado tal mestria nessa raça cabeçuda e utilitária [...]. Já tivemos uma epidemia total dela nesta viagem, a ponto de eu me sentir tentado a servir rações de sedativos e tônicos para os nervos juntamente com a porção de sábado de grogue. Seu primeiro sintoma foi quando, logo após a partida de Shetland, os homens no leme se queixavam de ter ouvido lamentos e gritos ao movimento do navio, como se algo o tivesse seguindo e não conseguisse alcançá-lo. Essa afirmação fantasiosa tem se repetido durante toda a viagem, e nas noites escuras, no início da pesca às focas, encontrávamos grande dificuldade em persuadir os homens a cumprir seus turnos. Não há dúvida de que o que ouviam era ou o ranger das correntes do leme, ou o grito de algum pássaro marinho. Tenho sido tirado da cama várias vezes para ouvi-lo, mas é quase desnecessário dizer que nunca pude identificar nada de anormal. Os homens, todavia, estão tão absurdamente convencidos que é inútil discutir com eles. Falei com o Capitão sobre isso, mas, para minha surpresa, ele o recebeu com muita seriedade e na verdade pareceu bastante perturbado com o que lhe contei. Eu julgara que pelo menos ele estaria acima dessas ilusões populares (DOYLE, 2004, p. 200, grifo nosso). No primeiro momento, John tem certeza que o medo dos marinheiros ocorre por causa de uma superstição coletiva, algo perfeitamente aceitável por ele em se tratando de pessoas com pouco estudo e conhecimento científico. Na verdade, o que o surpreende é o fato de que o capitão do Estrela Polar, um homem teoricamente mais ―educado‖, tenha reagido daquela forma, considerando (e não negando) a possibilidade de que algo extraordinário tenha acontecido. É evidente que, em uma narrativa fantástica, o sobrenatural seja negado assim que comece a se manifestar. Entretanto, outros acontecimentos futuros irão perturbar o narrador e afetar o seu julgamento desses eventos, principalmente quando ele percebe que outros marinheiros de reputação mais confiável começam a relatar o aparecimento de um fantasma. O primeiro marinheiro a ver o fantasma foi o sr. Mason, o segundo imediato do navio. O narrador, ainda não abalado e confiante, sugere que o segundo imediato havia se excedido na bebida, algo perfeitamente possível. Entretanto, essa experiência afetou o sr. Mason de tal forma que o médico se viu na obrigação de medicá-lo. John cita a narração do sr. Mason, que estava junto do arpoador John McLeod: ―Já estive dezessete anos na região e nunca ouvi foca, velha ou nova, fazer um som como aquele. Enquanto estávamos lá na cabeça da proa, a lua saiu de trás de uma nuvem e nós dois vimos uma espécie de vulto branco movendo-se no campo de gelo, na mesma direção dos gritos que nós tínhamos ouvido. Perdemos ele de vista por um momento, mas ele voltou pela proa de vigia e vimos ele como uma sombra no gelo. Mandei buscar os rifles lá embaixo, e McLeod e eu descemos até o gelo, pensando que talvez fosse um urso. Quando chegamos lá perdi McLeod de vista, mas continuei indo na direção onde podia ainda ouvir os gritos. Eu segui eles por uma milha ou
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talvez mais, e então correndo em volta de um monte dei de cara com ele, lá em pé, parece que me esperando. Não sei o que era. De qualquer modo, não era um urso. Era alto, branco e ereto, e se não era um homem nem uma mulher, aposto que era alguma coisa pior. Voltei correndo para o navio o mais depressa que pude e fiquei danado de feliz quando me via a bordo. Assinei embaixo que faria meu dever no navio, e no navio vou ficar, mas ninguém vai me ver de novo no gelo depois do pôr-do-sol‖ (DOYLE, 2004, p. 201). A visão do segundo imediato recebe uma explicação racional do narrador, que atribui ter sido a visão de um jovem urso ereto sobre as pernas traseiras, uma atitude possível, por parte do urso, quando ele se sente ameaçado, como se fosse uma forma de intimidação. Além disso, a pouca iluminação do lugar pode ter contribuído para o engano do sr. Mason: ―Sob pouca luz, ele se assemelharia a uma figura humana, especialmente a um homem cujos nervos já estavam um tanto abalados‖ (DOYLE, 2004, p. 201). Até o momento, os argumentos do médico conseguem explicar a aparição do suposto fantasma. Entretanto, não podemos esquecer que aqueles experientes marinheiros podem diferenciar um ruído ou forma de animal de algo inexplicável pela lógica de John. Quer dizer, a presença de um médico nessa narrativa servirá para contrabalançar a idéia do sobrenatural, pois sua figura é respeitável socialmente. A figura do marinheiro, se comparada à figura do médico, é bem menos respeitada pela sociedade. 1 Porém, o marinheiro é muito mais experiente e possui também mais conhecimento marítimo do que um médico. Por isso, ele está mais apto para diferenciar elementos naturais dos não-naturais. Esses detalhes presentes no relato de John devem ser considerados. O efeito do fantástico (a ambiguidade), até o momento, está preservado se pensarmos que, por um lado, pela ação explanatória do narrador, que é convincente, a visão do vulto não passa de histeria coletiva de seres propensos à superstição. Por outro lado, devese considerar também a possibilidade de que o sobrenatural esteja de fato acontecendo porque vários marinheiros estão relatando a experiência com o extraordinário. Dentre esses marinheiros está o capitão, tido pelo narrador como alguém que perdeu a sanidade, que está louco. Essa idéia é corroborada pelo episódio em que ambos estavam conversando, quando Nicholas afirma ter visto o vulto. Naturalmente, apenas ele o viu. Para justificar-se, o capitão alega que John não poderia ter visto o fantasma por ele não usar uma luneta. Mesmo estando ―louco‖, de acordo com o narrador, o capitão está preocupado com a opinião do camareiro do Estrela Polar. Por isso ele pede para que John não o deixe entrar em seu quarto, pois teme que o empregado desconfie de sua sanidade. As aparições continuam, porém, o único que não acredita no vulto é John. Essa particularidade está de acordo com o efeito do fantástico, ou seja, de provocar dúvida, de suscitar a ambiguidade da narrativa, pois se o narrador visse o fantasma e, acima de tudo, compartilhasse da mesma opinião dos marinheiros, a narrativa seria maravilhosa, e não fantástica. Quando conversava com John, o capitão pergunta: ―[...] Pesadelos são sinais de loucura?‖ ―Às vezes‖, respondi. ―De que mais? Quais seriam os primeiros sintomas?‖
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Estamos seguindo a lógica da narrativa fantástica de Filipe Furtado, e não uma opinião pessoal.
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―Dores de cabeça, ruídos nos ouvidos, clarões diante dos olhos, delírios...‖ ―Ah, e daí?‖, ele interrompeu. ―O que você chamaria de delírio?‖ ―Ver algo que não está lá é um delírio.‖ ―Mas ela estava lá!‖, resmungou ele para si. ―Ela estava lá!‖ (DOYLE, 2004, p. 204, grifos do autor). Para John, Nicholas Craige perdeu a sanidade e começou a delirar, sinal evidente de loucura. Caso isso seja verdade, é preciso considerar que todos no Estrela Polar, com exceção do narrador, que continua registrando em seu diário os acontecimentos na embarcação, estão loucos e foram afetados coletivamente. Os sintomas apresentados pelo capitão servem para reforçar a explicação médica de que nada extraordinário está acontecendo. A posição científica do narrador fará com que ele fique cada vez mais isolado. O fato de o barco estar preso no gelo em um lugar inóspito serve para reforçar a tese do narrador, de que a tripulação sofre de superstição coletiva. Os marinheiros começam a associar a falta de sorte (o barco estar preso) à presença de um ser misterioso. Mas, é preciso considerar também que tal defesa racional, por parte do narrador, serve como um subterfúgio para que ele não sucumba à idéia de que tudo aquilo que acredita precisa ser revisto. Certo dia, o narrador comenta a aparição de uma raposa do Ártico, animal raro nos blocos de gelo, mas comum na terra. Esse animal, que ignora a periculosidade humana, costuma se aproximar dos homens se tornando facilmente capturado. O que lhe chamou atenção foi que a raposa não quis se aproximar do barco, muito pelo contrário, ela fugiu rapidamente pelo gelo. Esse estranho comportamento fez com que a tripulação tivesse certeza de que o navio estava condenado. O narrador comenta: ―É inútil tentar argumentar contra tal superstição pueril. Eles já decidiram que há uma maldição sobre o navio, e nada jamais os convencerá do contrário‖ (DOYLE, 2004, p. 205). Com o passar dos dias, surgem mais relatos de avistamento do vulto. O narrador, mesmo contra a maioria, continua preservando a base científica como meio de explanação universal. Entretanto, as aparições para diferentes marinheiros começam a afetar suas convicções. No dia 17 de setembro, o narrador escreve: ―O Bogie novamente. Graças a Deus que tenho nervos fortes!‖ (DOYLE, 2004, p. 208). Esse comentário justifica a pressão exercida pelas circunstâncias, pois John tenta permanecer firme na crença de que não existem fantasmas. Ele está cada vez mais isolado no navio, pois um número sempre crescente de marinheiros alega ter visto o espectro: Há muitas versões da questão, mas a soma total delas é que algo sinistro adejou pelo navio inteiro durante a noite toda, e que Sandie McDonald de Peterhead e Peter Williamson ―outrora‖ de Shetland o viram, como também o sr. Milne na ponte – portanto, com três testemunhas, eles podem argumentar mais fortemente do que o segundo imediato fizera. Falei com o sr. Milne após o desjejum e disse-lhe que ele deveria estar acima de tais absurdos e que, como oficial, deveria dar aos homens um exemplo melhor. Ele balançou agourentamente sua cabeça curtida pelo tempo, mas respondeu com a habitual cautela, ―Talvez sim, talvez não, Doutor‖, disse, ―eu não disse que era um fantasma. Num posso dizê que ponho minha fé em garrafas no mar e coisa assim, embora muita gente diz que viu uma coisa parecida. Não é fácil me dar medo, mas talvez seu sangue corria
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o mais que pode, homem, se em vez de procurá ele de dia o senhor estivesse comigo noite passada e visse uma forma feia como aquela, branca, repulsiva, ora aqui, ora lá, e saudando e chamando na escuridão como uma ovelhinha que perdeu a mãe. Ocê não teria tanta pressa em dizê que é coisa de comadres faladeiras, é o que penso.‖ Vi que era inútil argumentar com ele, e portanto me contentei em lhe rogar, como um favor pessoal, que me chame na próxima vez que o espectro aparecer – um pedido com o qual ele concordou, exprimindo eloquentemente suas esperanças de que tal oportunidade jamais ocorra (DOYLE, 2004, p. 208-209, grifo do autor). O problema relacionado à aparição do vulto, que vai incomodar o narrador e afetar o seu discurso, começa quando marinheiros de ―boa reputação‖ declaram ter visto o fantasma. O capitão, um homem que possui boa cultura filosófica e opiniões fundamentadas a partir de uma inquirição racional, é um dos primeiros a acreditar que o navio está sendo assediado. Isso é inegável e John acaba reconhecendo, mesmo que o seu discurso procure simular toda a racionalidade do argumento cientificista, que há algo de errado naquele navio. As informações são repassadas de forma paulatina, como se John estivesse investigando os estranhos fenômenos e estranho comportamento dos marinheiros. A cada nova entrada no diário, uma nova informação vem complementar a noção geral da história. O capitão, afirma ele, vem murmurando consigo algo misterioso. Certa vez, o narrador o viu dizendo: ―Pouco tempo mais, amor... pouco tempo mais!‖ (DOYLE, 2004, p. 209). Na sequência dos acontecimentos, descobriremos que o espectro, caso realmente exista, pode ser o da noiva do capitão, conforme a informação da nota explicativa feita pelo pai de John, no final da narrativa. A atmosfera no Estrela Polar vai ficando mais lúgubre à medida que novos acontecimentos relacionados à aparição do vulto são relatados pelos marinheiros. O narrador procura enfatizar que é o único homem que ainda mantém a calma e o comportamento racional: Existiu jamais um homem em posição semelhante à minha, entre um capitão demente e um imediato que vê fantasmas? Às vezes penso que sou o único homem realmente são a bordo – exceto talvez o segundo engenheiro, que é de natureza contemplativa e jamais se importaria com nada por todos os demônios do Mar Vermelho, contanto que o deixem em paz e não desarrumem suas ferramentas (DOYLE, 2004, p. 209). Contudo, mesmo tentando continuar firme na idéia de que o sobrenatural é apenas fruto da superstição humana, o narrador teme que seu relato possa ser desacreditado pelos leitores que duvidarão da veracidade do documento, mesmo que ele se esforce para manter a ―imparcialidade‖ da narrativa. Por isso, ele se queixa: ―Pensarão que estou inventando quando contar em casa todas as coisas estranhas que me sucederam‖ (DOYLE, 2004, p. 209). Essa aparente ―imparcialidade‖ é mais uma das características do fantástico, pois o narrador precisa exprimir confiabilidade, provar que não está sendo vítima de superstição e que tem buscado explicação racional para todos os fenômenos descritos. Esse comportamento reforça o efeito da ambiguidade porque a voz predominante do conto é a de um narrador que busca ser imparcial e racional. O problema é que ele se torna o único do Estrela Polar a não acreditar (ou finge não acreditar) na possibilidade da existência de fantasmas, mesmo que
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outras personagens de certa ―credibilidade‖ aceitem o sobrenatural. Esse transitar entre duas alternativas possíveis é a característica primordial do fantástico. A certeza de que o sobrenatural não existe é abalada quando John confessa ter passado por uma estranha experiência: Estou bastante assustado, embora me sinta mais calmo agora, graças a um copo de conhaque bem forte. Mas ainda estou muito abalado, como se verificará por minha caligrafia. O fato é que passei por uma estranha experiência e estou começando a duvidar de que estava certo ao classificar todos a bordo como loucos, porque afirmavam ter visto coisas que não pareciam razoáveis segundo meu entendimento. Ora bolas! Sou um louco em deixar que uma coisa insignificante me desanime, e contudo, como ocorreu depois de todos esses sinais, isso adquiriu uma importância adicional, pois não posso duvidar quer da história do sr. Milne quer da história do imediato, agora que passei por tudo aquilo de que costumava desdenhar (DOYLE, 2004, p. 209210, grifos nossos). Nesse momento, John não exprime mais a certeza de que não existe o sobrenatural. Entretanto, esse relato é ambíguo, visto que ele vê algo estranho, mas tenta amenizar o efeito da experiência ao criticar seu comportamento. Se por um lado o narrador demonstra ter ficado impressionado ao ouvir um possível som sobrenatural, por outro, logo em seguida, aparentemente mais calmo, ele volta a ter ―presença de espírito‖ quando sugere uma explicação racional para a experiência: ―Afinal, não era nada de muito alarmante – um mero som, e foi tudo. Não posso esperar que quem ler isto, se é que alguém jamais o fará, se solidarize com meus sentimentos ou compreenda o efeito que ele produziu em mim [...] (DOYLE, 2004, p. 210). É possível afirmar que o narrador está mais preocupado com o que os seus ―leitores‖ comentarão a respeito de sua sanidade mental do que com a veracidade do fenômeno sobrenatural, pois sua fé na ciência está enfraquecida. Ele expressa isso no depoimento deixado logo após a narrativa da experiência que o fez considerar a existência do metaempírico: Assim estava eu, apoiado no balaústre, quando se elevou do gelo, quase exatamente abaixo de mim, um grito, agudo e penetrante, no ar silencioso da noite, começando – assim me pareceu – com uma nota impossível de ser alcançada por uma prima-dona e ascendendo a tons cada vez mais altos até culminar num lamento de intensa dor, que poderia ter sido o último grito de uma alma perdida. O terrível guincho ainda soa em meus ouvidos. Parecia exprimir um pesar, um indescritível pesar, e uma profunda saudade, mas não obstante nele havia por vezes uma nota de louca exultação. Pareceu-me vir de perto de mim e contudo, quando olhei para a escuridão abaixo nada pude vislumbrar. Esperei um pouco, mas não ouvi nenhuma repetição do som, então desci, mais trêmulo do que jamais ficara em toda a minha vida. Enquanto descia a gaiúta, encontrei o sr. Milne, que subia para render sentinela. ―Ora, Doutor‖, disse ele, ―talvez sejam as comadres faladeiras, não é? O senhor não ouviu um som de gaita de foles? Seria uma superstição? O que o senhor acha?‖ Fui obrigado a desculpar-me com aquele sujeito franco e reconhecer que eu estava tão intrigado
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com aquilo quanto ele. Talvez amanhã as coisas pareçam diferentes. No momento, mal me atrevo a escrever tudo que penso. Ler isto novamente em dias futuros, quando me libertar de todas essas conotações, poderá fazer com que me despreze por ter sido tão fraco (DOYLE, 2004, p. 210-211, grifos nossos). John está confuso porque, provavelmente, ele presenciou um acontecimento sobrenatural (ou ele pensa ter presenciado, segundo o seu comentário). Para reforçar essa possibilidade, outro marinheiro também ouviu o mesmo ruído (ou afirmou ter ouvido). Mesmo assim, ele tenta buscar um subterfúgio que explique a sua aparente ―fraqueza‖. Dessa forma, é possível admitir que ele teve, de fato, contato com o sobrenatural. Entretanto, também é possível conceber que as circunstâncias adversas tenham-no influenciado. É um mistério que, se solucionado, sairá da esfera do fantástico e cairá na esfera do maravilhoso ou do estranho. O narrador, mesmo com essa experiência, procura manter a ―sanidade‖ e o ―equilíbrio‖ de sua história relegando ao leitor o papel de interpretar a narrativa. Doravante, ele não mais tecerá comentários científicos que procurem explicar satisfatoriamente os acontecimentos, ou quando isso ocorrer, será mais um comentário pessoal que não buscará o convencimento do leitor. Ao colocá-lo como participante na construção ou negação da autenticidade da narrativa, o narrador estará reforçando o efeito de ambiguidade na interpretação, pois ele terá a sua ―convicção‖, mas respeitará a opinião dos outros marinheiros: Tentarei expor as circunstâncias que envolveram seu desaparecimento. Se porventura alguém tiver a oportunidade de ler as palavras que escrevo, confio em que se lembrará que não escrevo com base em conjeturas ou em rumores, mas sim que eu, um homem são e culto, estou descrevendo detalhadamente o que realmente ocorreu diante de meus olhos. Minhas inferências só a mim pertencem, mas dou garantias quanto aos fatos (DOYLE, 2004, p. 213). Os momentos finais da história corresponderão à visão ―fantasmagórica‖ do capitão (e do narrador), ao desaparecimento do capitão, à procura por ele e ao encontro do seu corpo. Em todos esses momentos, John destacará o aparecimento do vulto não mais com certeza científica. Ele não deixará de colocar sua opinião, mas também não refutará a possibilidade de que exista o sobrenatural. Aparentemente demonstrando imparcialidade, John começa a narrar a visão misteriosa que ele e o capitão tiveram: Pela súbita intensidade de sua postura, percebi que ele vira algo. Postei-me sorrateiramente atrás dele. Ele estava fitando com um olhar de ansiosa interrogação o que parecia ser uma grinalda de névoa, soprando rapidamente ao lado do navio. Era um corpo nebuloso e indistinto, desprovido de forma, ora mais, ora menos visível, conforme a luz incidia sobre ele (DOYLE, 2004, p. 213-214). O capitão corre em direção ao vulto e desaparece no gelo, o vulto que não só ele viu, mas o narrador também, um vulto de corpo volumoso, porém indistinto. Ele não teve como negar que viu algo estranho: ―Mal posso crer que não estava sonhando ou sofrendo de
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algum pesadelo terrível enquanto escrevo estas palavras‖ (DOYLE, 2004, p. 214). O fantástico será reforçado porque o narrador, em determinado momento, sugere que a visão possa ser sobrenatural, em outro, que o fenômeno não passa de um acontecimento natural. Ele continuará tendo a crença que não existe o extraordinário, mas não negará que algo provavelmente metaempírico também possa ter acontecido. O corpo do capitão é encontrado. Nesse momento, a equipe de busca vê algo perturbador: Enquanto nos aproximávamos, uma lufada de vento apanhou aqueles minúsculos flocos em seu redemoinho e eles giraram no ar, desceram em parte e então, presos novamente na corrente, lançaram-se rapidamente em direção ao mar. Aos meus olhos parecia apenas uma nuvem de neve, mas muitos de meus companheiros afirmaram que tomou inicialmente a forma de uma mulher, deteve-se sobre o cadáver e o beijou e então precipitou-se através da banquisa. Aprendi a jamais rir da opinião de quem quer que seja, por muito estranha que possa parecer (DOYLE, 2004, p. 215, grifos nossos). Se no começo da narrativa, o narrador assumiu a postura de um cientista, que rejeita qualquer evento que fuja de uma explicação racional, no final da narrativa, essa postura se torna questionável, visto que ele revela a crença no juízo final quando cita o episódio em que o mar devolverá seus mortos. É possível que o narrador esteja sendo irônico com a fé religiosa, mas também é possível que, depois da viagem no Estrela Polar, o seu mundo tenha se modificado. A confiabilidade do narrador está abalada. Isso também é um efeito intencional do fantástico. Caso o leitor acredite no narrador, em suas explicações racionais, então o conto será estranho. Caso o leitor acredite que o narrador e as demais personagens tenham experimentado o contato com o extraordinário, então o conto será maravilhoso. O fantástico se assenta nessa possibilidade, jamais pendendo para um dos lados. O leitor pode considerar duas explicações possíveis: ou o narrador estava certo desde o começo, mesmo que a influência dos outros marinheiros tenha modificado o seu pensamento, ou ele estava errado e, com o desenvolvimento de outros acontecimentos, o sobrenatural tenha sido revelado. De qualquer forma, a pretensa imparcialidade de seu relato reforça a ambiguidade. Mais do que isso, o comentário final do dr. John McAlister Ray, pai do narrador, acrescenta a dúvida sobre a veracidade da história. Mas ele também assegura que o filho não é propenso a ―vôos da imaginação‖. A narrativa lhe pareceu tão absurda que ele não pretendia publicá-la. Para reforçar a ambiguidade, o dr. John releva que o capitão fora noivo de uma jovem morta de forma trágica, quando este viajava: Li sobre os estranhos acontecimentos ligados à morte do Capitão do Estrela Polar, tal como narrados no diário de meu filho. Estou inteiramente convencido de que tudo ocorreu exatamente como ele descreveu e, com efeito, disso tenho a mais absoluta certeza, pois conheço-o e sei que ele é um homem calmo e avesso a vôos da imaginação, com o maior respeito pela veracidade. Ainda assim, a história é, à primeira vista, tão vaga e tão improvável que durante muito tempo me opus à sua publicação. Nos últimos dias, porém, chegou-me um testemunho independente sobre ela que a colocou sob nova luz. Eu fora a Edimburgo para uma reunião da Associação
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Médica Britânica, quando encontrei-me casualmente com o Dr. P., um antigo colega, agora clinicando em Saltash, Devonshire. Quando lhe contei essa experiência de meu filho, ele me declarou que conhecia o homem e passou, para minha surpresa, a descrevê-lo de uma forma que se adequava admiravelmente bem à registrada no diário, exceto pelo fato de referir-se aos tempos em que ele era mais jovem. Segundo seu relato, ele fora noivo de uma jovem senhora de beleza singular e que residia na costa da Cornualha. Durante sua ausência no mar, sua noiva morrera em circunstâncias particularmente terríveis (DOYLE, 2004, p. 216). O comentário de John pai serve para aumentar a ambiguidade porque ele possibilita uma leitura dupla: ou a narrativa é estranha porque, à primeira vista, parece ser vaga e improvável, ou ela é maravilhosa, porque o relato foi imparcial e o vulto que assombrava o navio era o vulto da noiva do capitão. O mistério é uma característica assaz importante para o fantástico. Possibilitando essas duas alternativas, e não optando por nenhuma delas, o fantástico se constrói nessa ambiguidade.
Referências DOYLE, Sir Arthur Conan. O capitão do Estrela Polar. In: DOBRÁNSZKY, Enid Abreu (Org.). Clássicos do sobrenatural. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. São Paulo: Iluminuras, 2004. p. 197-216. FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980. LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Tradução de João Guilherme Linke. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maira Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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A EPOPEIA DE SILVIANO SANTIAGO: VIAGENS NA DEPENDÊNCIA CULTURAL LATINO-AMERICANA Angela Mascarenhas Santos1 RESUMO: Ao refletir sobre os efeitos dos processos de colonização nas nações latinoamericanas, Silviano Santiago sustenta a inevitabilidade da dependência cultural, mas propõe que esse reconhecimento se faça de modo crítico e transgressor. Este artigo examina o modo como o escritor utiliza o motivo literário da ―viagem‖ e o modelo da ―epopeia‖ - dois elementos da literatura clássica – no romance Viagem ao México. Para tanto, o trabalho parte do entrecruzamento dos discursos teórico-crítico e ficcional do escritor. Da análise empreendida observa-se que a narrativa abala o tradicional motivo literário e desloca a estrutura narrativa clássica, num processo de repetição em ―diferença‖. Palavras-chave: viagem, epopeia, repetição, diferença. AN EPIC ON SILVIANO SANTIAGO: Journeys of the Latin-American Cultural Independence ABSTRACT: Reflecting on the effects of the process of colonization in Latin American nations, Silviano Santiago argues the inevitability of cultural dependency, but proposes that this undertaking is done in a critical and transgressive manner. This article analyzes how the writer uses the literary motif of the "journey" and the model of "epic" - two elements of classical literature - the novel Viagem ao Mexico. Therefore, this work starts with the interconnection of the theoretical, critical and fictional discourses of the writer. From the completion of this analysis it is observed that this narrative shakes the traditional literary motif and changes the classical narrative structure, a process of repetition in "difference." Key words: journey, epic, repetition, difference.
INTRODUÇÃO A multiplicidade da atividade intelectual e o entrecruzamento das atuações profissionais de Silviano Santiago propiciam um campo fecundo para a seleção de questões merecedoras de investigação sobre sua produção textual (HOISEL, 2008). Dentre os diversos temas estudados pelo escritor, as viagens europeias, os processos de colonização e a dependência cultural dos países latino-americanos sobressaem em sua produção teórica e crítica e são abordados também pela escrita ficcional, sendo de modo mais direto no romance Viagem ao México, no qual tematiza a viagem realizada pelo dramaturgo francês Antonin Artaud ao México em 1936.
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Mestre em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura pela Universidade Federal da Bahia. Comunicação de trabalhos no IV Congreso Internacional de Letras Transformaciones Culturales. Debates de la crítica, la teoría y la lingüística en el Bicentenario e II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras. Publicação de texto completo nos Anais do II colóquio Filosofia e literatura. Experiência como professora de pós-graduação em Jornalismo cultural. Endereço eletrônico: amsangela@yahoo.com.br.
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Num rápido apanhado introdutório, oportuno destacar que Silviano Santiago (1978), desde o texto ―O entre-lugar do discurso latino-americano‖, manifesta uma preocupação especial quanto ao dilema do intelectual latino-americano oriundo do processo de colonização, consistente em voltar-se para o modelo etnocêntrico, que sempre lhe atribui o signo da inferioridade, do atraso e da dependência, ou voltar-se para a cultura apagada, que não pode ser, de todo, recuperada. Como solução possível, apresenta uma outra perspectiva para os estudos comparatistas, a partir da valorização da ―diferença‖, e elabora o conceito de ―entrelugar‖, que permite ao intelectual a observação, a análise e a interpretação dos diversos elementos culturais responsáveis pela sua formação. Ao propor que a dependência cultural seja assumida pelo intelectual latino-americano como inevitável, o escritor ressalva que essa admissão não deve ser pacífica nem ordeira, mas acompanhada de uma postura crítica e transgressora. Para tanto, cabe a esse mesmo intelectual selecionar aquilo que, na tradição etnocêntrica, abre espaço para a transgressão, aquele aspecto da tradição que, alcançando uma potência extrema, salta em direção ao outro, num legítimo movimento de repetição em ―diferença‖. No romance Viagem ao México, utilizando-se do jogo ficcional, por sua vez, o teórico Silviano Santiago reflete sobre os mais diversos temas, desde o próprio ato da escrita até a proposta teatral de Antonin Artaud. No mesmo espaço, aciona reflexões anteriormente desenvolvidas no trabalho crítico, que giram em torno dos motivos das viagens europeias ao Novo Mundo, dos processos de colonização e do esgotamento da cultura europeia. Considerando-se, portanto, o entrecruzamento dos discursos e a coincidência existente entre a elaboração teórica e crítica sobre essa temática e o texto literário referido, o presente trabalho propõe-se a examinar alguns parâmetros da cultura etnocêntrica utilizados pelo escritor no citado romance, os modos dessa utilização, os pontos de transgressão e de diferenciação, de modo a compreender o processo de construção desse ―entrelugar‖ na escrita ficcional. No entanto, diante da impossibilidade de ser efetuado um mapeamento exaustivo dos elementos da tradição etnocêntrica apropriados pelo romance, o estudo elegeu dois aspectos fundamentais para a sua composição, a saber: o motivo e o modelo narrativo. Assim que, a partir da análise do motivo usado pela narrativa, in casu, a ―viagem‖, são examinados alguns abalos promovidos sobre esse clássico motivo literário. De igual modo, ao escolher a epopeia como modelo, o romance o faz de modo a deslocar a estrutura narrativa clássica. Antes do enfrentamento direto dos dois elementos selecionados, chama a atenção, ainda, para o fato de que nesse processo de observação, análise, interpretação, crítica e transgressão da cultura etnocêntrica por parte do intelectual latino-americano, Silviano Santiago adota, como conceito operacional, da noção de ―diferença‖ cunhada a partir das propostas teóricas de Jacques Derrida e Gilles Deleuze, além dos demais aspectos de desconstrução e reversão elaborados pelos dois filósofos. Tal proposição sustenta-se exatamente no abalo provocado por esses conjuntos teóricos no pensamento metafísico ocidental que sustentou – e até hoje sustenta – as relações de dependência mantidas no decorrer do tempo e ratificadas pela era dita globalizada. Desta forma, no estudo ora efetivado, parte-se do pressuposto de que Silviano Santiago tem ciência e consciência da atuação da ―diferença‖ no processo de elaboração da escrita ficcional e da sua potência afirmativa, tanto que algumas das propostas teóricas referendadas na não-ficção do escritor aparecem no romance exatamente no modo como são absorvidos os elementos da tradição selecionados para análise (a viagem e a epopeia).
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UMA VIAGEM TRANSGRESSORA Os estudos literários há muito dão conta do caráter canônico do tema da ―viagem‖ dentro da literatura ocidental, pois que a integra desde a Grécia antiga e suas epopeias homéricas até os vários diários de viagens que ocupam as famosas listas dos mais vendidos elaboradas pela imprensa atual. Assim, o fato de recorrer à temática da viagem leva-nos a refletir acerca das motivações – conscientes ou inconscientes – que estão por trás dessa escolha. O argumento escolhido pelo escritor tem uma correlação muito estreita com sua vida, desde quando sua formação está diretamente relacionada com os diversos deslocamentos físicos feitos com o passar dos anos. Ao mesmo tempo em que realizava migrações geográficas, a intensa leitura desde a tenra idade, a diversidade dos estudos empreendidos e a multiplicidade da atuação profissional permitem afirmar que Silviano Santiago também empreendeu ―viagens‖ e deslocamentos de outra ordem, tão relevantes quanto os deslocamentos físicos para a riqueza de sua formação. Por isso, as múltiplas viagens, literais e figuradas, constituem elementos significativos para qualquer reflexão sobre a sua produção textual. Logo, as experiências vivenciadas pelo escritor lhe permitiram compreender o quanto de descoberta do mundo e de si mesmo uma viagem permite. Nela as pessoas têm contato não apenas com o outro, com a diferença, mas também com o outro que há dentro de si mesmos, com a diferença própria. Por todas essas razões, ao falar de viagem o escritor trata de uma viagem literal, externa, e de uma viagem figurada, interna. O tema da viagem, portanto, tem uma ambiguidade que permite abordar várias dimensões das relações intersubjetivas, viabilizando a recorrência nas narrativas. Uma outra dimensão do termo, que, inclusive, recebe um tratamento evidente no romance, é o uso metafórico da viagem como processo de escrita. Ao longo do texto, pode-se perceber que o narrador/escritor enfrenta uma difícil viagem pela construção de uma narrativa moderna, que não pode mais contar com as certezas verificadas na narrativa clássica, fato que lhe imprime medo e suscita audácia. Insistindo um pouco mais na análise dos fatores que levaram Silviano Santiago a escolher esse motivo literário, oportuno ressaltar que ele, na qualidade de pesquisador e professor, sempre manifestou interesse quanto às viagens expansionistas e ao processo colonial delas decorrente. A temática envolvendo viagens perpassa sua produção ensaística, como se infere, a título exemplificativo, dos textos ―Por que e para que viaja o europeu?‖ (2002) e ―A viagem de Lévi-Strauss aos trópicos‖ (2006). O assunto, em sua acepção literal, igualmente comparece em obras ficcionais do escritor, como nos contos de Histórias mal contadas (2005) e no romance Stella Manhattan (1991). Em sua extensão simbólica, por sua vez, na forma de viagem através da memória (MOTA, 2001), foi utilizado nos romances Uma história de família (1992) e Heranças (2008). Retornando ao ensaio ―Por que e para que viaja o europeu?‖ (2002) – com o qual o romance Viagem ao México dialoga –, tem-se que ele traça um apanhado dos motivos das viagens realizadas pelo europeu, desde aquelas com o propósito colonizador até as atuais viagens turísticas, passando pela consciência ressentida do antropólogo. No romance em análise, Silviano Santiago retoma a reflexão quanto às motivações dos estrangeiros – principalmente os europeus – em suas viagens transatlânticas. Critica a manutenção do ideário
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exótico que ainda desperta ―[...] os delírios utópicos dos viajantes estrangeiros [...]‖ (VM1, p. 112), que partem para a América Latina mais interessados em confirmar as descrições lançadas nos diários e guias de viagens do que em perceber a cultura e vida locais. O embarque de Artaud na Antuérpia também revela algumas das motivações das viagens dos europeus, desta feita tratando daquelas realizadas pelos imigrantes pobres que, como colonizadores tardios, vão ―fazer a América‖, trabalhando no processo de industrialização das antigas colônias (SANTIAGO, 2006), bem como as viagens empreendidas pelas famílias judias na fuga do nazismo alemão. Em uma outra passagem do livro, merecedora de transcrição, o motivo da viagem aproxima-se daquele que será manifestado pela personagem Artaud: Quando o cérebro da Europa se cansa, ele gosta de sair a passeio pelas antigas civilizações que não fazem parte da sua tradição, como se, durante essas férias alvissareiras, a massa cinzenta, exposta aos eflúvios do calor dos trópicos, pudesse se desvencilhar do peso que a comprime naquele momento histórico. [...] (VM, p. 316). Imperioso ressaltar que a reflexão transcrita em destaque foi extraída da fala da personagem Cardoza y Aragon, intelectual guatemalteco que vivia no México à época da viagem de Antonin Artaud e foi um de seus cicerones. Trata-se de um personagem real e figura como participante da intelectualidade da década de 1930, que tinha a preocupação em afirmar a inserção do México na modernidade ocidental. Por esse motivo, inserto em seu contexto original, a fala da personagem tem o cunho crítico quanto às proposições ideológicas de alguns intelectuais europeus preocupados com o resgate da cultura autóctone nos países colonizados, a exemplo de Artaud, o que contrariava as pretensões nacionalistas do grupo. Voltando, mais uma vez, à leitura do ensaio ―Por que e para que viaja o europeu?‖ (2002), vê-se que ele assim resume os motivos da viagem do dramaturgo francês: [...] Cansado da esclerose galopante que invadia o palco burguês europeu, Artaud sai à cata de expressões ―teatrais‖ em que os fundamentos da experiência cênica não tivessem ainda sido abafados pelo processo de comercialização e profissionalização dos tempos modernos. [...] (SANTIAGO, 2002b, p. 235). No texto ficcional, Silviano Santiago continua a examinar os motivos da viagem realizada por Antonin Artaud, valendo-se da oportunidade, inclusive, para travar um longo diálogo com as propostas teatrais do dramaturgo. A primeira referência à viagem no romance é feita no ―Canto I‖ (p. 38), quando o narrador está iniciando o contato com Artaud, este ambientado na Paris de 1935, aquele, no Rio de Janeiro de 1992. Ainda na posição de escriba do protagonista – porque com o correr da narrativa vai assumindo cada vez mais as rédeas da estória –, o narrador ouve a palavra ―viagem‖ e interrompe a transcrição da fala de Artaud para descrever a postura da personagem e o momento em que ela profere o termo, direcionando-nos para o questionamento de seu significado. O vocábulo deixa de ter o sentido concreto de percurso rumo a um local para ter uma acepção mais subjetiva, no sentido de uma opção em face do 1
As transcrições do romance Viagem ao México serão chamadas pelas iniciais VM seguidas das páginas respectivas.
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desespero, uma alternativa para um desenganado, uma solução para um conjunto de problemas, uma solução ―[...] diante de um impasse na equação [...]‖ (VM, p. 39). Em seguida, o narrador retoma a transcrição da fala de Artaud, quando este equipara a viagem à penetração na sala de cinema do Quartier Latin, pois, ainda que não se lembre do detalhe de cada acontecimento, todo o seu tempo e seu espaço são comprimidos na experiência pessoal como uma verdadeira potência de significação. Essa mesma potência de significação é novamente referida mais adiante, quando se lê: A viagem ao México também podia se reduzir para ele a uma saída e a um retorno, e entre uma e outro, brotava uma lembrança semelhante às das imagens claras e mudas que se acendem no escuro da sala de cinema ao início da projeção e se apagam com as luzes acesas do auditório logo após a palavra fim. Entre a partida e a volta, nas mãos e na mente do viajante pesa uma espécie de pacote bem compactado e embrulhado em papel e fita coloridos, que ali permanece como a dizer da necessidade de ser entregue a alguém para que adquira o significado latente. (VM, p. 42). Para explicar o pacote compactado e embrulhado o narrador vale-se da imagem das ―[...] gigantescas prensas que vieram juntas com a sociedade de consumo [...]‖ (VM, p. 42), resultantes ―[...] da abundância e do consumo imoderados, da falta de memória da tecnologia contemporânea [...]‖ (VM, p. 42), e da imagem final do carro prensado. Essa sucessão de imagens mostra a incapacidade de a narrativa moderna relatar as experiências vivenciadas, por exemplo, numa viagem, diferentemente do que acontecia com as narrativas clássicas que relatavam as experiências dos antigos marinheiros. Sendo um romance que reflete, dentre outras questões, sobre o próprio ato de narrar e do lugar da narrativa na sociedade moderna, encontram-se várias outras passagens que reportam ao questionamento da viabilidade e eficácia atuais da narrativa clássica. Logo, ainda que o motivo dessa narrativa seja canônico (a viagem), ela não repete o ―mesmo‖ da tradição literária etnocêntrica, até porque a sociedade moderna assim não permite. A repetição dá-se, necessariamente, em ―diferença‖ e o motivo canônico aciona o apoio de outros recursos para obter significação. Torna-se imperioso abrir um parêntese para esclarecer que as acepções de ―repetição‖ e ―diferença‖ utilizadas como operadores de leitura emergem das propostas filosóficas de Jacques Derrida e Gilles Deleuze. Ambas pressupõem a ausência de uma origem e, por isso, existiria apenas o traço a denunciar uma origem que não é origem de nada, pois enquanto traço já é, em si mesmo, repetição. A repetição tem, portanto, um caráter de perversão e subversão, pois quando se repete a mesma linha esta já não é a mesma (DERRIDA, 1995). Na leitura proposta por Gilles Deleuze, as duas noções devem ser adotadas de modo associado e relacionadas à noção de eterno retorno. Este último pode ser compreendido como o lugar onde se produz a ―diferença‖, por meio de um mecanismo de seleção fundado na repetição, diverso, contudo, da seleção platônica, esta baseada na identidade entre a cópia e a Ideia. Trata-se da eliminação das ―diferenças‖ médias e seleção daquelas que suportam a prova do eterno retorno, pois não é tudo que retorna, mas somente as formas extremas, aquelas que alcançam o extremo da potência e saltam como repetição em direção ao outro. Assim, no instante em que a narrativa repete um motivo literário clássico esse mesmo ato perverte e subverte sua significação tradicional. Diante disso, a ―viagem‖ ganha no texto uma dimensão de significado desprovida de referencial absoluto na linguagem, por mais que
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esta esforce-se para abarcá-la. Por maior que seja o empenho do narrador em relatar as experiências da viagem que Artaud fez ao México, sua gama de sentido é múltipla e variada e depende de outras estratégias, como da utilização do conjunto de imagens invocado (cinema mudo, embrulho compactado, prensas gigantes e carro prensado). Além desse conjunto de imagens, mesmo assim a compreensão da narrativa depende da suplementação efetuada por cada leitor, destinatário do pacote-compactado-embrulhado. O leitor acrescenta um significante para suprir e substituir a falta do lado do significado e fornecer o excesso necessário, abrindo-se o espaço para o jogo da suplementariedade (DEPARTAMENTO DE LETRAS DA PUC/RJ; SANTIAGO, 1976, p. 88). Esse jogo da suplementariedade decorre da compreensão da ausência de origem (arkhê), em função da qual todo elemento passa a ser repetição, representação, derivação, simulacro, cuja significação dáse a partir de um movimento de jogo das substituições denominado suplementariedade. Por isso, se o vocábulo transcende o seu sentido dicionarizado e passa a ter um alcance mais subjetivo, como o de solução de um impasse, outros também se tornam possíveis. Entretanto, o romance confere um extenso tratamento à viagem no sentido de resolução dos problemas atravessados por Artaud – e pela sociedade europeia, pois o protagonista figura como metonímia dela –, como se observa da seguinte passagem: Forço você a (ou seria: esforço-me por fazer você) acreditar que é mais fácil para mim explicar o que ele não conseguia explicar quando esquentava o corpo e a mente para assumir a raiz quadrada da sua vida que representava a viagem ao México. Esta ia tirá-lo, só ela podia retirá-lo do impasse em que se encontrava desde o começo do verão de 1935, época em que o desconcerto reinava soberano nas engrenagens do cotidiano e em que os sucessivos planos feitos e desfeitos o empurravam não só para a noite e o sono, mas também para o sono sem a noite, e ainda para o sonho imprevisto e compensador. (VM, p. 40-41). Ao longo do romance pode-se verificar que o protagonista atravessa um momento de crise profissional e pessoal intenso. Apesar de ser reconhecido como gênio pela intelectualidade francesa, suas ideias sobre o teatro e a cultura são recepcionadas com ressalvas, provavelmente em função do comportamento social que as acompanha. Por entender que o teatro é um duplo da vida, leva para o seu dia-a-dia suas concepções sobre a sociedade burguesa, repudiando as regras que as sustentam e transgredindo-as em todas as oportunidades. Em contrapartida, sendo extremamente pobre, depende da benevolência de muitos dos integrantes da mesma sociedade que repudia, aos quais dirige sucessivos pedidos de ajuda financeira. Como se não bastasse, o público não compreende suas propostas teatrais, o que compromete a encenação de seus espetáculos e fá-lo aceitar as propostas de trabalho no cinema comercial. Toda a pobreza e a rejeição são agravadas pela dependência do láudano, responsável pelo consumo de boa parte da renda auferida. A descrição foi efetuada para demonstrar que no verão de 1935 Artaud encontra-se sem dinheiro suficiente para suprir suas necessidades essenciais; vive na residência de um amigo que lhe cedera temporariamente o apartamento; atravessa um momento de dependência química extrema; não dispõe de apoio para empreender nenhum de seus projetos para o teatro. A viagem surge como uma solução definitiva para todos os problemas e como oportunidade de renovação pessoal e profissional. Fruto de uma sugestão de Hugh Guiler, marido de Anais Nin, em 1933, segundo o romance, a viagem teria como destinação primeira a Argélia. O México surgiu como
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substituto por uma conjunção de fatores, dentre os quais, citam-se: a) a possibilidade de pôr em prática neste país suas elaborações dramáticas através da encenação de Conquista do México; b) as experiências espirituais vivenciadas por conhecidos do dramaturgo no México; e c) as informações sobre a existência de um movimento promovido por intelectuais mexicanos, no intuito de recuperar a ancestralidade mítica mexicana. A viagem ao México passa a ter, então, um propósito de repouso e renovação espiritual, semelhante ao vivenciado por ele nos processos de desintoxicação, aliado à possibilidade de serem aprofundadas algumas das propostas teatrais que borbulhavam em seu pensamento. A personagem tem a expectativa de, no contato com os mitos, extrair a transfiguração de seu próprio ser, do Homem e da sociedade francesa, o que só seria viável mediante o retorno à história primitiva do México, pois na Europa já não seria mais possível recorrer a uma ancestralidade. A avaliação que Artaud faz da sociedade europeia do início do século XX implica na incapacidade de integrar-se a ela. Segundo a personagem, há um esgotamento da cultura europeia como um todo, manifestado principalmente na produção teatral, que, por estar totalmente atrelada ao texto e à psicologia, perdeu todo o caráter de espetáculo e distanciou-se da vida. O fragmento seguinte resume a concepção de Artaud acerca da Europa no início do século XX: A Europa [...] perdeu a magia, ou seja, o uso das idéias abstratas e coletivas pelas quais uma verdadeira cultura começa e pelas quais perdura. Veja você, Nandino, por mais que os procure, não encontro nas estantes francesas um poema onde o sangue fale, não encontro nos ateliês de artistas amigos meus alguma imagem ou alguma estátua onde se exprima uma alegoria violenta. Por isso vim ao México buscar os tesouros sepultados e latentes da Terra Vermelha. (VM, p. 317) Portanto, a única forma de reaproximar a cultura da vida seria o retorno do homem ao mito para que desse retorno pudesse renascer uma outra sociedade e um outro homem. Diante da necessidade e da possibilidade de renovação social, Artaud pretende empreender a viagem exatamente para coletar elementos que permitam à Europa retornar aos deuses, ao mito, ao princípio, à origem, pretende ―[...] drogas mágicas e poderosas que podem operar a ressurreição do cadáver peninsular europeu [...]‖ (VM, p. 250). Trata-se de uma nova chance para ele mesmo e para todo o ocidente, ―[...] um novo norte para a vida [...]‖ (VM, p. 101) uma ―[...] nova vida ao Ocidente [...]‖ (VM, p. 250). A personagem acredita possuir condições de captar as ―drogas mágicas‖ porque mantém com os deuses um diálogo que não consegue manter com os seus conterrâneos e contemporâneos, conforme se lê: A fala dos deuses abre diante dos meus olhos o mapa dos céus e indica o percurso das modificações vitais que podem começar a ocorrer no mundo desde que tenha dado o primeiro passo do périplo pelo mapa da terra mexicana. Com os homens falo a linguagem da moeda de ouro, mas os deuses me falam através da moeda luminosa dos astros. Os homens, quando não me enxotam de casa, me empurram para o vizinho. Os deuses me acolhem num outro e radioso amanhã. [...] (VM, p. 45) Desta forma, percorrer os caminhos da terra mexicana faz parte do seu destino, que é marcado, outrossim, pela missão de levar ao México uma proposta descolonizadora que lhe permita resgatar a ancestralidade perdida no curso do processo de colonização.
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Conforme fora acima pontuado, um dos motivos pelos quais Artaud escolheu o México como destino foi o fato de obter informações quanto a um suposto movimento nacionalista de resgate da ancestralidade mexicana. Assim, porque ―[s]ó o Teatro pode hoje ajudar os mexicanos a reencontrar essa cultura indígena recalcada, repudiada, destruída pela colonização européia [...]‖ (VM, p. 102), sua viagem passa a ter por intento, também, ―levar‖ para o México instrumentos que viabilizassem esse resgate. Para tanto, seria necessário não só estabelecer um público no México, mas, da mesma forma, uma conversa ―[...] de igual para igual com os responsáveis pelo governo desta terra, tanto pode ser uma autoridade como pode ser o mais miserável dos índios escondidos nalguma grota perdida [...]‖ (VM, p. 314). A proposta de Artaud para o México, resumida na transcrição que se segue, consiste em ajudar o país a desaprender tudo o que foi absorvido durante o processo de colonização, pois ele tem consciência do erro desse processo: A Europa ensinou errado. Foi uma perda de tempo para todos vocês, perda inestimável em termos culturais. A única coisa de que tenho certeza, a minha única originalidade, é que sou eu quem tem a consciência do erro cometido pela cartilha. Vim aqui para proclamar o erro de séculos e não para trazer a mensagem conformista do acerto. [...] (VM, p. 314) A postura de Artaud, no particular, não deixa de ter certa nuance messiânica e totalitária, própria da sociedade etnocêntrica que o gerou, pois, por mais que se opusesse aos pilares da sociedade burguesa, como um ser humano formado em seu interior introjetou alguns de seus elementos constitutivos. Logo, a forma como prega suas ideias para o México aproxima-se do discurso neocolonial de dominação pela concentração de conhecimento. Talvez esse tenha sido um dos motivos da intolerância manifestada por Torres Bodet quando do primeiro encontro na embaixada mexicana na França. Na oportunidade, o francês não escondeu que pretendia ir ―[...] ao México para explicar a cultura do país primitivo aos seus habitantes de hoje, inclusive às altas autoridades [...]‖ (VM, p. 112). Não se pode negar, contudo, que Torres Bodet subscreve o discurso conservador e colonialista característico dos movimentos nacionalistas que inundaram as nações periféricas entre o final do século XIX e início do século XX, as quais pretendiam inserir-se na modernidade ocidental e, para isso, negavam qualquer necessidade de recorrer à ancestralidade para a afirmação da identidade nacional, fato que contribuiu com o desconforto demonstrado ao dramaturgo e seus projetos. Todos as expectativas de Artaud com relação a viagem, no entanto, serão frustradas, pois não conseguirá livrar-se do vício do láudano, não obterá independência financeira, não ajudará o México a resgatar sua ancestralidade – até porque esse não era o objetivo dos mexicanos naquele momento –, e não conseguirá estabelecer um diálogo com os mexicanos integrantes da intelectualidade, nem com os membros das camadas mais baixas da sociedade. Ele encontra no Novo Mundo apenas uma cópia do Velho Mundo, tendo viajado ―[...] tanto para chegar ao Reino do Mesmo [...]‖ (VM, p. 320). Voltará para a Europa sem sinal de renascimento/transformação pessoal nem social; com a mala cheia de anotações para a construção de seu livro sobre a experiência com os índios Tarahumaras, mas com nenhuma poção mágica. Toda a viagem está marcada por um signo de mau agouro, como um anúncio do fracasso final, que, entretanto, não é percebido por Artaud. Inicialmente ele não consegue estabelecer uma conversa amigável com Torres Bodet, representante da embaixada mexicana na França, oportunidade em que fica manifesta a incompatibilidade entre a concepção do dramaturgo quanto à ancestralidade mexicana e a concepção que o próprio México tem de seu
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passado, prenunciando uma incomunicabilidade. Alguns outros acontecimentos também sinalizam para o desfecho infeliz da viagem, como a mudança no horário do embarque na Antuérpia para o dia seguinte ao inicialmente previsto, o que forçou Artaud a despender o já insuficiente dinheiro com hospedagem naquela cidade; a perda do horário do café da manhã no hotel da Antuérpia, novamente lhe levando a contrair despesas desnecessárias; a necessidade de mudança de classe para o desembarque no México com novas despesas imprevistas; o fato de ninguém lhe aguardar no porto de Vera Cruz (México) e a ausência de trem para a cidade do México no mesmo dia da chegada. A imagem do corpo magro de Artaud caminhando no porto da Antuérpia com a mala na horizontal corresponde a uma cruz (VM, p. 139) e, associada aos demais fatos, autoriza a interpretação no sentido do mau agouro. Todos os episódios e sinais são enfrentados por Artaud com otimismo. O narrador chega a questionar, no início do ―Canto XI‖, se teria adiantado adverti-lo quanto ao fracasso anunciado da viagem, pois ―[...] mesmo se ditas, essas palavras prévias de cuidado e alerta teriam evitado o desastre? teriam suavizado a decepção final? [...]‖ (VM, p. 305). Em verdade, outro não poderia ser o resultado final da viagem de Artaud, uma vez que ele foi em busca de uma ancestralidade intocada que não mais existe. Tanto assim que, após as decepções sofridas e ao convencer-se da frustração de seus objetivos com a viagem, ele insiste ainda mais em sua ―busca do impossível‖ (VM, p. 373), penetrando no interior do país, experiência da qual resultará o livro Os Tarahumaras, ao qual o romance de Silviano Santiago suplementa. Apesar de todos os signos, Artaud faz sua viagem exterior e interior ao mesmo tempo em que o narrador faz sua viagem pela narrativa; ambas são necessárias e indispensáveis, pois, por mais que a experiência pessoal seja intransmissível (VM, p. 305), o que tornaria ineficaz toda e qualquer narrativa moderna, o erro é necessário para a constituição do ―homem humano‖ (VM, p. 306). Feito todo esse exame da utilização do signo da ―viagem‖ no romance, podemos propor que ao tratar de um motivo canônico da literatura ocidental, o escritor não se limita a repetir o mesmo e conhecido tema; ao contrário, ele seleciona uma viagem que tem, em seus próprios motivos, uma proposta desconstrutora, uma proposta de questionamento dos limites da tradição etnocêntrica, de resgate de culturas não-ocidentais para, por meio dessas, recuperar o sopro de vida perdido pela sociedade europeia. Trata-se de uma viagem em sentido inverso às viagens colonizadoras, já que Artaud quer ―descolonizar‖ o México e levar para a Europa os valores da ancestralidade mexicana. Portanto, na mesma fatura em que repete o tema canônico Silviano Santiago transgride os seus limites, rejeitando o mesmo e incorporando a ―diferença‖.
UM MODELO EM RASURA Ao utilizar um motivo canônico em seu romance, Silviano Santiago também aciona os demais textos da literatura ocidental que abordam a viagem em suas narrativas, notadamente as epopeias clássicas, como dá conta a estruturação do texto em exórdio, cantos e epílogo. O escritor trabalha num jogo de aproximação e distanciamento da epopeia no exato momento em que a elege como paradigma para, em seguida, desconstruí-la enquanto modelo (DIAS, 2008). Na qualidade de, antes de mais nada, um leitor de sua época, Silviano Santiago reinventa as tradições e rompe com o senso comum, que nada mais faz do que reproduzir o discurso alheio (SOUZA, 2008). Dentre as epopeias clássicas, o escritor elege um modelo específico a ser seguido e transgredido, qual seja, a epopeia portuguesa Os lusíadas, com a qual o romance mantém uma
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relação por também se constituir na narrativa de uma conquista. Só que, no particular, a conquista opera-se no inverso, pois ao invés de Artaud partir para conquistar o México, ele parte para buscar elementos que possibilitem a conquista da França pelo México. As referências a Os lusíadas são percebidas principalmente no exórdio do livro. Isso mostra a gentileza do narrador, que concede pistas ao leitor quanto à postura do intelectual que pensa a dependência cultural como inevitável, bem como das transgressões à tradição que se operam no desenrolar da narrativa. Desse modo, todo o exórdio pode ser visto como um momento de preparação do leitor para a viagem pelo texto que ele irá enfrentar. No início do exórdio há uma citação a um episódio épico, uma repetição da tempestade de Baco (Os lusíadas, ―Canto VI‖, estrofes 70-84), como se verifica da transcrição: Sem que os marinheiros da armada de Vasco da Gama percebam, aparece uma nuvem negra no horizonte do meio-dia branco de luz. Ela se aproxima lentamente da nau capitânia, ganha corpo, faz os ventos crescerem, se agiganta e se desdobra, e de maneira imprevista toma conta dos céus, escurecendo os ares azuis e serenos ao seu redor, e o mar alto, como se estivesse batendo contra rochedos invisíveis saídos do nada das profundezas oceânicas, começa a maquinar ondas e mais ondas, sucessivas, incessantes, longas, espetaculares e insanas, gigantescas vagas que espumam bordados e rendas e cujo barulho ensurdecedor leva os marinheiros portugueses a tapar os ouvidos, ou a cruzar os braços em total impotência, ao mesmo tempo em que fecham os olhos para que o resto de vida que lhes sobra se apóie nos labirintos felizes da memória à espera da ajuda todo-poderosa de alguma divindade extraterrena. Por que somos de Ti desamparados, se este nosso trabalho não Te ofende? – é a ladainha recitada pelos marinheiros portugueses que, desde a década final do século XV, chega até os meus ouvidos neste dia de 1992 em que dou início à narrativa da viagem de Antonin Artaud ao México, em 1936. (VM, p. 11) Observa-se que o narrador reescreve o episódio da tempestade, encerrando-o com a transcrição literal dos versos seis e sete da estrofe 82, para, logo em seguida, interromper a reescrita com os esclarecimentos das circunstâncias em que se dá a narrativa que ali se inicia. Isto porque o narrador não pretende simplesmente reescrever o mesmo texto clássico, mas, ao contrário, escrever um outro texto que o incorpore e o supere. Nesse sentido, a referência à tempestade provocada por Baco contra os portugueses afigura-se oportuna no texto segundo porque nos dois relatos de viagem se observa o confronto entre forças de conservação e de inovação. Veja-se que na epopeia lusitana, os navegadores portugueses figuram como homens de coragem, desbravadores e conquistadores, que levam o novo e o diferente para a Índia, região ―dominada‖ por Baco, onde era adorado. Por isso, a chegada dos portugueses com todo o seu aparato colonizador implica em ameaça para a ordem estabelecida por Baco em suas terras, razão por que ele tenta, durante toda a narrativa épica, impedir o sucesso da viagem. Assim, a tempestade trata-se de uma estratégia adotada pelo deus pagão para preservar a ordem e impedir o advento da diferença. Diante disso, Baco figura como uma força de conservação que atua contra a força de renovação empreendida pelos portugueses.
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No caso de Viagem ao México, por sua vez, a narrativa nele empreendida, em se tratando de uma produção latino-americana, leva para o seio da tradição literária de origem etnocêntrica o novo e o diferente, motivo pelo qual enfrenta a resistência criada por toda uma ordem estabelecida por essa mesma tradição. Como resultado desse confronto, ao texto da tradição, por estar mais próximo da origem1, credita-se um valor de superioridade, em oposição ao texto latino-americano, para o qual se atribui uma condição de inferioridade própria daquela atribuída ao simulacro platônico. Na reescrita do episódio da tempestade, o narrador no mesmo instante em que assume o caráter inevitável da dependência cultural questiona a tradição literária e o seu cânone, contestando a justificativa para relegar aquela narrativa, ou qualquer outra produzida pela margem do mundo etnocêntrico totalitário, ao segundo lugar, à condição de mero simulacro e de simples reprodutora já que tudo é repetição. Como se não bastasse isso, os textos produzidos à margem, ao contrário de ofenderem a literatura, consagram-na pela repetição, desde quando esta implica, a um só tempo, na valorização e na transgressão do elemento repetido, pois para repetir é necessário identificar no elemento uma potência extrema que lhe permita o retorno. Entretanto, em sendo retorno, só pode ser feito em ―diferença‖, o que denuncia um gesto de resistência no interior da própria repetição, conforme explanado linhas atrás. Por isso, inexistem meios de narrar a viagem de Artaud ao México desprezando a ―ladainha‖ que chega a essas paragens desde o final do séc. XV – época da ―invenção‖ do continente americano –, até porque essa mesma ―ladainha‖ constituiu o escritor, o narrador (também escritor) e o leitor enquanto seres. O narrador empreende uma outra reescrita do texto camoniano no exórdio, desta feita reportando-se ao episódio do Adamastor (Os lusíadas, ―Canto V‖, estrofes 37-60). Do mesmo modo que o Adamastor é uma figuração do medo, individual e coletivo, que alimentava o imaginário dos navegadores portugueses desde a Idade Média, a reescrita do episódio no exórdio reporta-se ao medo do narrador/escritor em enfrentar os percalços da escrita, e, para esse enfrentamento, o narrador inventa-se monstro. Os objetos do medo, na viagem, são o desconhecido e a diferença. O contato com o desconhecido subverte o reino do mesmo e instala, no espaço, o outro e a diferença, cujo enfrentamento inspira a noção de perigo. Daí decorre uma tendência a preencher o vazio causado pelo desconhecido por aquilo que é conhecido, in casu, um imaginário préconstituído pelo perigo; daí decorre, também, uma tendência a inventar monstros. Na escrita, assim como na viagem, também se enfrenta o medo porque o escritor usa um sistema com leis e vida próprios (a língua), sobre o qual não detém poder integral, fato que possibilita a produção de instâncias no texto que escapam ao seu comando (DERRIDA, 2006). Portanto, como um mar nunca antes navegado, o processo de escrita também comporta um confronto com o desconhecido, já que o escritor não domina todos os limites da linguagem e não pode controlar tudo o que se processa em sua escrita. Ademais, a leitura promovida por outros leitores – diferente do escritor, ele mesmo, um leitor – confere nuances de significação ao texto, sempre em constante suplemento, num devir louco. Então, a força que impele o escritor para a escrita na página em branco a ser marcada pela tinta e a que impele o leitor para a leitura das páginas já escritas são a mesma força que impeliu os navegantes em outros tempos: a audácia, irmã do medo. O medo constitui alicerce para novas experiências e alavanca de engrenagem (SANTIAGO, 2006b), pois na mesma proporção em que inventa monstros, incita a audácia necessária para prosseguir. Em função disso, do
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Termo aqui entendido sob rasura, na esteira das teorias de desconstrução e reversão do platonismo.
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mesmo modo que os navegantes portugueses superaram seus temores e enfrentaram o Adamastor, movidos pela audácia, fá-lo o narrador/escritor no romance. O imaginário medieval concernente ao Cabo das Tormentas e ao Atlântico, de construção e reconstrução de monstro, tem paralelo com o imaginário referente à escrita, sua degradação, seu caráter secundário e de diferença, a ser enfrentado pelo narrador (e por todo e qualquer escritor), a ser singrado por ele: ―Singrar os mares nunca dantes navegados, eis a vontade de Vasco da Gama e dos marinheiros ao deixarem o porto do Restelo, eis a minha vontade ao dar início a esta narrativa de viagem em que sou referência e sirvo de ponto de fuga‖ (VM, p. 13). Nessa atividade, contudo, o narrador assume uma posição dupla: a) de referência da narrativa, porque congrega todo um imaginário, toda uma formação cultural que o compõe enquanto intelectual e a qual ele não pode negar; e b) de ponto de fuga, exatamente por possuir todo um imaginário e um construto cultural do qual deve fugir e transgredi-lo. Será, pois, no entrelugar da referência e da fuga que a narrativa constrói-se; esse será o único lugar possível no qual a narrativa pode constituir-se, afirmando e assumindo sua diferença. Outro episódio reescrito foi a despedida da armada de Vasco da Gama retratado no final do ―Canto IV‖ d‘Os lusíadas, que integra o ―Canto V‖ do romance, quando narra o embarque de Artaud no S.S Albertville. Mas, diferentemente da epopeia lusitana, a figura insatisfeita com a situação da Europa – naquela, o Velho do Restelo; no romance, Artaud – parte para a viagem em busca de solução para o esgotamento do continente. Paralelamente à reescrita, o narrador reflete sobre a língua utilizada. Ao referir-se à ―[...] língua da epopeia lusa, agora abrasileirada [...]‖ (VM, p. 14), denuncia um dos pontos pelos quais o intelectual brasileiro não tem como se despir de toda a tradição eurocêntrica oriunda do processo colonial: a língua que o forma tem uma origem lusitana e, mais que isso, também toma emprestado de outras línguas de países de dominação (como o francês) alguns vocábulos. Nesse processo de empréstimo o vocábulo traz consigo não apenas a relação de significante e significado que lhe caracteriza como signo, mas, também, toda a carga semântica, cultural e histórica que o gerou. Nesse sentido, interessante a ambiguidade do verbo ―singrar‖ (de origem francesa) revelada pelo narrador, que contempla tanto o sentido de navegar, quanto o de ―[...] fustigar, bater com a vara, açoitar [...]‖ (p. 14), bem como a confissão quanto à utilização ambígua na narrativa não só deste como de outros vocábulos. Prosseguindo na elucidação da ambiguidade do termo, o narrador mostra que os navegantes ao mesmo tempo em que singravam (navegavam) os mares eram singrados (açoitados, fustigados) pelo vento nos rostos apavorados. Valendo-se do paralelo estabelecido entre a viagem e a escrita, pode-se trazer o verbo ―singrar‖ para este campo e observar que no mesmo instante em que o escritor singra (navega) a tradição literária ele é singrado (açoitado) por ela porque a subverte e a transgride; da mesma forma em que o narrador singra (navega) a folha de papel em branco, lançando-lhe marcas de sua narrativa, ele é singrado (açoitado) pela narrativa nos pontos em que ela escapa ao seu controle; a um só tempo em que o leitor singra (navega) o texto escrito, ele é, por este, singrado (açoitado) ao atribuir-lhe outras possibilidades de significação. Quer na navegação em stricto sensu, quer na navegação pela escrita, quem singra é, na mesma medida, singrado. Seguindo a tradição épica, no ―Exórdio‖ o narrador faz um preâmbulo da narrativa que empreende e vale-se da oportunidade para alertar o leitor quanto às singularidades do texto, que não pode mais ser tomado como uma narrativa clássica, como antes explicitado. Nesse espaço, portanto, ele assume explicitamente que a dependência cultural é inevitável, pois traz ―[...] dos marinheiros (já sei agora que não é apenas dos marinheiros lusitanos meus), [traz] de todos eles a invenção de monstros pela magia alucinatória da ficção audaciosa [...]‖ (VM, p.
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14). Através do artifício da invenção do monstro, o narrador aproxima-se e distancia-se da narrativa clássica, desde quando o monstro por ele inventado não lhe é exterior, mas interior ao seu próprio ser. Ele exterioriza sua própria monstruosidade, sua própria diferença para ter condições de empreender a narrativa. O narrador tem consciência de que sua ―[...] genealogia se afunda no passado como um balde afunda no buraco do poço em busca de água [...]‖ (VM, p. 18), um passado que alcança a Mesopotâmia, berço do mais antigo vestígio de escrita. Tem consciência de que na mesma proporção em que afunda no encontro com passado que o constitui, emerge na constatação do presente em que se afirma na ―diferença‖, no devir-louco da literatura latinoamericana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Promovido o exame proposto, pode-se sustentar que, com o romance, Silviano Santiago, ao visitar a tradição etnocêntrica, abala seus alicerces e fá-lo explicitamente. O escritor acolhe essa mesma tradição em seu processo criador, incorporando-a, mas a partir dela produz um outro texto, marcado pela ―diferença‖, com características de transformação, crítica, superação e suplementação do modelo, traços próprios dos textos produzidos pelos intelectuais latino-americanos que, compreendendo a extensão de seu papel, colocam-se no ―entrelugar‖ das referências culturais que os constituíram.
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SOCIEDADE E SUBJETIVIDADE EM OS RATOS, DE DYONÉLIO MACHADO Bárbara Del Rio Araujo1 RESUMO: O presente artigo visa ao estudo da relação entre os elementos sociais e subjetivos na forma composicional da obra Os Ratos, de Dyonélio Machado. Embora a crítica literária, diante da tentativa de distinção entre romances sociais e intimistas do decênio de 30, tenha enfaticamente analisado a obra como um romance social, pode-se verificar em sua estrutura estética o aspecto subjetivo, introspectivo, relacionado aos aspectos sociais. Propõe-se, neste trabalho, evidenciar um método ambíguo de composição do romance que associa dinamicamente a preocupação social, o contexto político ao aspecto subjetivo, psicológico, na fatura do romance. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Sociedade. Subjetividade. Decênio de 30. Os Ratos. SOCIETY AND SUBJECTIVITY IN OS RATOS, BY DYONELIO MACHADO ABSTRACT: This paper aims to contemplate the relation study between the social and subjectivities elements in the mold structure of Os Ratos, by Dyonelio Machado. Although the literary critics, based in a trying distinction between social novels and introspective novels from thirty decade, have emphatically analyzed the book as a social novel, it is possible verify in its esthetic structure the subjective, introspective aspect related to social elements. This work proposes to evidence the novel‘s ambiguous composition method, which associates dynamically the social worries, the politic context to the subjective, psychological aspect. KEY-WORD: Literature, Society. Subjectivity. Thirty Decade. Os Ratos. 1. INTRODUÇÃO Antonio Candido em seus estudos acerca da Literatura Brasileira sempre privilegiou uma metodologia que integrasse os fatos estéticos e históricos, numa associação dos aspectos da organização social, da mentalidade e da cultura brasileira à criação literária. Nesse sentido, as esferas literatura e sociedade são sempre em suas análises abordadas buscando evitar uma relação mecanicista ou condicionante, privilegiando observar como as sugestões e influências do meio se incorporam a estrutura da obra de modo visceral. Tal questão é denominada pelo crítico como uma ―redução estrutural‖, procedimento que aborda a obra literária em uma visão integral, eliminando os extremos de uma análise puramente formal ou uma análise fundamentalmente sociológica, periférica, contemplando, por sua vez, um viés analítico que interage o externo ao interno, ou seja, como o social se une, não como causa nem significado, à constituição estrutural do romance.
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Mestranda do programa de pós-graduação em Estudos Literários da UFMG (POSLIT/UFMG). Bolsista da CAPES tem como objeto de estudo especificamente a área de Literatura Brasileira, linha de pesquisa Poéticas da Modernidade. Email: barbaradelrio.mg@gmail.com
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Diante dessa proposição metodológica, busca-se nesse artigo compreender como os elementos sociais interagem junto aos aspectos subjetivos, psicológicos na fatura do romance Os Ratos, de Dyonélio Machado. A obra, ainda que tratada pela crítica literária como um romance social, visto que a literatura dos anos 30 fora marcada pela impregnação do discurso da realidade brasileira, narrativas analisadas próximas aos estudos sociológicos, apresenta uma segunda via, a subjetividade e introspecção, tão importante quanto o aspecto ressaltado, que ficou apagado nessa tradição. A presente análise pretende, pois a um estudo dinamizador dessa polarização entre o social e o subjetivo de modo a revelar que o livro de Dyonélio Machado, Os ratos, pode até ser social, como os olhos do seu tempo fixou, mas esta longe de ser apenas isso (BUENO, 2006, p. 578). 2. OS RATOS DENTRE O ROMANCE BRASILEIRO DE 30 No ensaio ―A revolução de 1930 e a Cultura‖, Antonio Candido disserta sobre o decênio caracterizando-o pelo engajamento político, religioso e social no campo da cultura: ―Como decorrência do movimento revolucionário e das suas causas, mas também do que acontecia mais ou menos no mesmo sentido na Europa e nos Estados Unidos, houve nos anos 30 uma espécie de convívio íntimo entre a Literatura e as ideologias políticas e religiosas. Isto, que antes era excepcional no Brasil, se generalizou naquela altura a ponto de haver polarização dos intelectuais nos casos mais definidos e explícitos, a saber, os que optavam pelo comunismo ou o fascismo. Mesmo quando não ocorria esta definição extrema, e mesmo quando os intelectuais não tinham consciência clara dos matizes ideológicos, houve penetração difusa das preocupações sociais e religiosas nos textos, como viria a ocorrer de novo nos nossos dias em termos diversos e maior intensidade‖ (CANDIDO, 2006, p.123) A literatura do período, demarcadas conscientes ou inconscientemente por inserções ideológicas, trazia, nesse sentido, temáticas visando aos dramas brasileiros, que davam contorno a fisionomia do período, como a decadência da aristocracia rural e formação da classe proletariado, êxodo rural e a vida difícil nas cidades. Impregnados da atmosfera social, as publicações contemplavam representar criticamente a realidade brasileira. João Luis Lafetá, em ―1930: A Crítica e o Modernismo”, refere-se ao período, em comparação a década de 20 e ao célebre movimento Modernista, como a configuração da passagem do projeto estético ao projeto ideológico, já que as produções literárias que lhe pertence explicitavam em primeiro plano a ―consciência social‖, a ânsia de interpretar o passado e explicar os fatos políticos do presente, fato que relegou, em certos casos, uma despreocupação formal, ou seja, o excesso de relevância aos problemas da sociedade assim como da mente do individuo perante a organização social fizeram com que algumas produções tornassem a criação literária ficção filosofante, uma ilustração da ideologia defendida. Tomado como produto mais característico do período, essas produções literárias ditas sociais eram apresentadas sob uma perspectiva dicotômica, dissociados das produções ditas intimistas na tradicional questão da separação entre romance social e romance intimista dos anos 30. A maioria dos estudos das obras que compõe o período exibe a tendência de supervalorizar escritores, cujas produções apresentam como traço principal o engajamento e os enredos fortemente ideológicos em detrimento de outros, cuja representação da realidade
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não se faz de modo tão objetivo, integrado a uma vertente mais subjetiva, psicológica, trazida, portanto, nesse contexto, como uma linhagem marginal e secundária. A preocupação excessiva com o teor ideológico seguindo da rigidez classificatória fez com que diversas obras fossem analisadas de forma simplificada, não reconhecendo devidamente a fatura requintada de alguns romances, que conseguem dinamizar esse liame social e intimista, como, por exemplo, Os Ratos. A obra de Dyonélio Machado foi ressaltada pela tradição literária pelo aspecto social de reconstrução observante da pequena classe média e teve por grande parte dos críticos sua análise estruturada pelo aspecto documentário, em que o tema direcionava a uma representação referencial e objetiva da realidade. Em muitas dessas análises, considerava-se o caráter de representação realista como cópias fiéis ou exatas do plano real, ou seja, a captação direta dos fatos em um processo de imitação simplificado e ingênuo, que desvaloriza as matizes miméticas da obra de arte. O crítico Adonias Filho, por exemplo, valoriza as produções da década por esse caráter referido e aposta que a matéria ficcional fixa o documento sem qualquer superação, oferecendo ao romance a possibilidade de apreendê-la e conservá-la, configurando o mundo brasileiro (FILHO, 1969, p.16). Entretanto, diante da organização da narrativa do romance, pode-se evidenciar uma estrutura mais complexa que relaciona o aspecto histórico social, descrições da realidade circundante, e que muitas vezes apresenta um caráter mais pictórico, mais direto, ainda assim não documental, aos aspectos psicológicos e subjetivos. Trata-se de uma estrutura ambígua em que ao apresentar o social perpassa-se o subjetivo, a penetração interiorizante, psicológico do personagem. Não se trata de um acionamento da subjetividade a margem, em veias ocultas, do aspecto sociológico, mas integrado, dialético, em que ao representar um elemento o outro aparece espontaneamente, fazendo compor uma forma social e subjetiva do romance. Desta maneira, consegue-se assimilar os dois modelos (o social e o lírico) tradicionalmente vistos como distanciados e independentes. Na busca por unir essas vertentes do romance, Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira, propõe uma hipótese de trabalho e interpretação da obras que compõe o período, dentre elas Os Ratos, pela tensão entre a relação das esferas sociais e subjetivas. Tendo por base a ―formulação genética estrutural do romance‖, de Lucien Goldman e a crítica dialética, propõe a compreensão das obras dos anos 30 pela homologia entre a sua estrutura estética e a estrutura social: ―A costumeira triagem por tendências em torno dos tipos romance social /romance psicológico ajuda só até certo ponto o historiador literário; passado esse limite didático, vê-se que além de ser precária em si mesma (..) acaba não dando conta das diferenças internas os principais romancistas situados em uma mesma faixa‖. (BOSI, 1974, p.438) Em consonância com os estudos do crítico supra referido, Luis Bueno, em Uma historia do Romance de 30, busca uma genealogia comum entre a vertente social e subjetiva, apontando para uma dinamicidade nessa polarização, resgatando diversos autores que cruzam essas fronteiras e escapam esse círculo fechado e que por vezes ficaram a margem do entendimento tradicional da critica literária, como, por exemplo, Dyonélio Machado, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e Rachel de Queiros: ―Trata-se de uma falsa diferenciação, pois não há nada que separe o que há de psicológico, subjetivo do que há de social no homem, e que
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o isolamento desses fatores não faz outra coisa que levar a uma redução de parte a parte das possibilidades de ressonância do romance enquanto gênero – e o mais bem sucedidos autores do período são aqueles capazes de escapar a esse tipo de armadilha.‖ (BUENO, 2006, p.203) Diante de uma perspectiva integradora, Luis Bueno estabelece uma constante nas relações entre essas duas vertentes que não podem mais ser identificadas como rigidamente separadas. Na busca por semelhanças entre essas linhas de interpretação, o crítico define três pontos que as integra: O primeiro é o que ele chama de ―colocação da discussão de um problema‖, seja este de natureza moral ou social. O segundo ponto comum entre os dois modelos estéticos seria um elemento que reforça esse primeiro, ou seja, a ―delimitação histórica dos personagens, que vivem um tipo de transição específica da sociedade brasileira‖ (BUENO, 2006, p.102). E o terceiro ponto que os aproxima é a presença do clima de dúvida e indecisão, do impasse insolucionável, presente nas obras de modo intrínseco às suas estruturas composicionais. (BUENO, 2006, p.102). Tais aspectos, que de maneira geral compõe os romances de 30, fazem transparecer que a perspectiva mais tradicional, que opõe as duas vertentes, e as caracteriza pela distinção rígida, não se mostra muito eficiente para que se efetue uma análise completa dos romances do decênio. Ao contrário, revela que uma perspectiva dialética, matizada entre os elementos sociais e subjetivos corrobora para o empreendimento de uma leitura mais crítica e atenciosa das narrativas do período. A análise do romance Os ratos, que se segue, portanto, visa à compreensão desses elementos relacionados dinamicamente na fatura romanesca, ou seja, enfatiza como a preocupação social, as coordenadas espaciais e históricas, expressas na narrativa, pode ser entendida pela integração ao aspecto subjetivo, psicológico. Tendo em vista a estrutura composicional da obra, pode-se evidenciar como o elemento subjetivo, introspectivo, tem tanta importância quanto o aspecto social, já que este é, por repetidas vezes na narrativa, utilizado para incorporação do outro elemento. 3. FORMA AMBÍGUA DO ROMANCE: SUBJETIVIDADE E SOCIEDADE EM OS RATOS O romance Os Ratos (1930) tem como cenário a cidade de Porto Alegre, onde se passa o drama de um dia na vida do protagonista Naziazeno. Funcionário público de pequeno escalão, chefe de uma família pequena, o personagem vive às voltas com problemas financeiros. A primeira cena apresentada na narrativa é a ―pega‖ do barnabé com o leiteiro, que vem cobrar as dívidas do leite e lhe dá, sob ameaça de cortar o fornecimento do produto, vinte quatro horas para o acerto. São exatamente essas horas que o leitor irá acompanhar junto a angústia do funcionário público, os eventos do cotidiano, a sociedade deflagrados nas situações ocorridas do livro. Nesse sentido, tanto a estrutura social quanto a mediocridade do protagonista, que mal percebe sua condição de inserção nesse ambiente, são, na narrativa, evidenciados em uma estratégia estética de composição que consegue captar a subjetividade, o psicologismo de Naziazeno em meio ao registro social e histórico. Diversamente de outros romances da década de 30 também classificados pela crítica literária como um romance social, Os Ratos dramatiza os elementos sociais não pela ação do personagem, mas a partir de sua visão do mundo, ou seja, pela subjetividade deste, fixa-se a sociedade. Desta maneira, pode-se justificar a denominação ―ambígua‖ para empreendimento metodológico utilizado na composição romanesca, já que existem dois movimentos explícitos que ocorrem simultaneamente: um referencial e objetivo, ressaltado pela tradição literária, e outro
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psicológico, intimista. Sob perspectiva dinâmica, esses elementos se entrelaçam, fazendo com que pelo uso sistemático da subjetividade, da introspecção permita-se uma figuração mais ampla, integral, da sociedade. Luis Bueno, ao analisar o romance, evidencia a estratégia de associação entre essas vertentes social e subjetiva pela voz narrativa que se centra no protagonista e se articula, salvo nos diálogos diretos, na terceira pessoa, que é tradicionalmente a voz da objetividade tanto quanto a da onisciência. (PAES,1990,p.51). A figura do narrador, que assume uma perspectiva distanciada em relação ao protagonista, organiza e subverte o relato do personagem em um discurso em terceira pessoa, ao mesmo tempo em que o toma literalmente, assumindo o discurso desse personagem, o que, nesse sentido, cria a ilusão da eliminação dessa distância. Há, portanto um efeito de dois movimentos na narrativa - um primeiro de distanciamento e organização do discurso do protagonista e um outro de proximidade desse discurso como um estrategema, uma proximidade enganosa, para enfatizar ainda mais a diferença entre a instância do personagem e da narrativa. Assim, nesse jogo de perspectiva narrativa, o desenho psicológico de Naziazeno durante todo romance ocorre pela voz do narrador, que o representa sem adesão, embora há momentos que pela estratégia de aproximar-se do protagonista dar a parecer que a voz do personagem é a mesma assumida pelo narrador. Essa estratégia, quando a voz ainda aproxima discursivamente do protagonista para que se simule uma situação, tenta demonstrar que é vedado ao narrador criar discurso que ultrapasse os pensamentos do personagem. Porém não se trata de uma limitação da voz narrativa, como se quer dar a entender, mas um ardil de um narrador que se aproxima e usa da visão do personagem para ultrapassá-la e evidenciar mais do que este personagem vê : ―A distância com relação ao outro permanece registrada no discurso, mas a forma com que essa distância assumirá na constituição da voz narrativa parece paradoxal: ele faz em certa medida do olhar de Naziazeno o seu próprio olhar‖ (BUENO, 2006, p.578) Todo acontecimento é, portanto, configurado como Naziazeno os percebe. Ele vê as cenas e as imagina para o futuro, mas o narrador é quem assiná-la essa visão, abarcando-a e ampliando-a. Pela subjetividade do protagonista, sua perspectiva íntima de encarar as situações, o mundo, a sociedade, é, pelo plano da narração, trazida e colocada como espetáculo. Pelo olhar de um amanuense devedor, de um homem em posição degradada, que os acontecimentos, o funcionamento da sociedade capitalista são configurados: ―A vida é representada como um espetáculo logo na cena inicial de Os Ratos, e Naziazeno é ali um protagonista: (..) O leiteiro falando alto diz que não aceita mais desculpas- quer o pagamento até o dia seguinte. É sob o impacto dessa posição degradada no espetáculo que Naziazeno sai e toma o bonde rumo ao trabalho. A sensação de que é observado em posição humilhante continua e ele se encolhe no bonde imaginado quem tem notícia do que se passou. Esse tom geral do espetáculo da vida que se transforma e Os Ratos: Há alguém em posição superior que goza do momento de exposição de suas qualidades e alguém em posição inferior que passa pelo vexame da exposição de seu erro‖. (BUENO, 2006, p.585) O articular da movimentação narrativa, diante da estratégia do narrador, que ora aproxima tanto da visão do personagem, aponto de dar a entender a anulação da voz do narrador em função da voz do personagem, e ora demonstra-se ampliada, capaz de demarcar os limites do ponto de vista do personagem e a visão crítica do narrador sobre ele, permite fazer conhecer tanto o psicológico do personagem quanto a sociedade que ele habita. Trata-se
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de uma relação dialética entre a perspectiva social e a perspectiva subjetiva, psicológica, que embora tomada pela tradição crítica como vertentes opostas, são na narrativa aproximadas, fazendo com que no momento intimista, introspectivo do personagem; aqui a voz narrativa acaba incorporada ao ponto de vista do protagonista ―um relato de primeira pessoa, apresentado na terceira‖; surja de forma articulada a representação da sociedade de maneira distanciada, propiciado, agora, pela movimentação da instância narrativa, que amplia a perspectiva do protagonista. ―É como se o narrador fosse o olho por de trás do personagem‖ (BUENO, 2006,p.583), que ora assume sua visão, dramatizando-a e ora a amplia, a traspassa. Em uma articulação de perspectivas, essa voz narrativa, que se conforma com a consciência do protagonista, mas também, sob distanciamento crítico, não faz do faz do discurso do protagonista um discurso heróico, não o projeta, ao contrário, o amplia, deixando evidente críticas às ações do personagem e a sociedade que ele se insere, revela uma dissonância entre o narrador e Naziazeno a ponto de apresentar o protagonista como um pobre diabo, cuja visão é limitada e que não consegue apreender a dinâmica de funcionamento social. Nos trechos selecionados do romance, evidencia-se o distanciamento do narrador que mergulha na visão do protagonista, mas em um mergulho controlado, já que polvilha no texto observações dos enganos e do olhar reduzido do personagem: O bonde, que deslizava numa corrida vertiginosa, pára de súbito, travado com força (..). Naziazeno mal percebe o que diz o motorneiro. Há um estribilho dentro do seu crânio: ―Lhe dou mais um dia! Tenho certeza‖... Quase ritmado: “Lhe dou mais um dia! Tenho certeza..‖ E que ele está- se fatigando, nem resta dúvida. A sua cabeça mesmo vem-se enchendo confusamente de coisas estranhas, como num meio de um sonho, de figuras geometrizas, de linhas em triangulo, em que a sempre um ponto doloroso de convergência... Tudo vai ter a esse ponto... Verdadeira obsessão (MACHADO, 2002, p.18-19) O trecho citado apresenta a cena de Naziazeno indo para repartição onde trabalha. O narrador consegue apreender o pensamento de Naziazeno, a angústia que sente por ter apenas 24 horas para sanar a dívida com o leiteiro, além de visualizar todo o conjunto da cena, distanciado, e enunciar criticamente que o protagonista mal presta atenção ao que passa ao seu redor – como o breque súbito do bonde quase a atropelar as crianças que brincam perto da linha férrea. Dotado de estrategemas, esse narrador manipula a narrativa apreendendo pela subjetividade no personagem, sua introspecção a sociedade que o cerca. Na passagem seguinte selecionada, o narrador ao aproximar da visão do protagonista, revela todo o esforço que o mesmo faz para angariar os valores para liquidar o débito, mas ao distancia-se, ao ampliar a visão, profere comentários ironias a afirmar certa inanição, preguiça, por parte do personagem que tende a esperar a resolução dos problemas: ―Idealizar outro plano? Tem uma preguiça doentia. A sua cabeça esta oca e lhe arde, ao mesmo tempo. Aliás o sol já vai virando para tarde (já luta há meio dia), perdeu já a sua cor doirada matinal, uma calmaria suspende a vida da rua e da cidade (...) Não sabe como encherá a tarde. O seu nevoeiro só lhe permite ver um raio muito pequeno, muito chegado. Aquela hiperaguda fixação num ponto em que estivera até então, como é bom suceder a um período vazio.. vazio.. Porque é preciso renunciar aquele desejo de conseguir o
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dinheiro. Não se arranjam sessenta mil réis quando se quer... Renunciar..‖ (MACHADO,2002, p.42) Esse distanciamento do narrador, que deflagra o pensamento do personagem e o crítica, é ainda por vezes, marcado na narrativa graficamente. Alguns termos aparecem destacados apenas para marcar a diferença entre a linguagem do narrador e a do personagem, quando incorporada ao discurso do narrador. Noutras ocasião, apenas ocorre por ênfase a alguma ação dos personagens e às vezes, essas marcas gráficas indicam algum tipo de ironia do narrador, como, por exemplo, na citação acima quando essa voz narrativa refere ao empenho de Naziazeno que desde cedo até o meio dia ―já luta‖ para captar o dinheiro. Ironicamente, o narrador questiona esse empenho do protagonista, que se resume na aposta de alguns tostões em jogos de bicho, em pedir emprestada quantia necessária para o diretor da repartição e esperar pelo auxilio do seu amigo Duque, reforçando, portanto a visão de Naziazeno como um patético pequeno burguês incapaz de resolver a quitação de sua dívida. Em outros trechos da narrativa esse recurso é também utilizado como quando para referir-se ao plano elaborado para angariar o dinheiro. ―Seu plano‖ é marcado em itálico sugerindo que Naziazeno, um pobre-diabo não pode ser de fato autor do bosquejo: ―O seu plano começa a abalar-se. As primeiras dificuldades aparecidas,aquela confiança cega se esvai.Vem-lhe outra vez a idéia tudo quanto há de inviável nele. Admira-se mesmo de haver posto toda a sua esperança nesse empréstimo. Duque procederia de outro modo: cavaria.Parece-lhe mais digno pedir, exibir uma pobreza honesta, sem expedientes, sem estrategemas. Entretanto, quando reflete no trabalho de Duque, acha-o superior, superior sobretudo como esforço, como combate....(MACHADO, 2002, p.28-29) As marcas gráficas também são no trecho acima utilizadas em ―trabalho‖. Marca-se sempre a palavra trabalho em itálico, pois esse narrador recusa-se associar a ocupação comum, um trabalho, as atividades ilegais que Duque praticava. Da mesma maneira, para referir-se a outro personagem, ―Dr.‖ Mondina, grafa-se a abreviação doutor entres aspas, já que não se tem a certeza que o personagem possui esse titulo, ao contrário na narrativa dá-se a entender que é um rábula. A dissonância entre a visão do narrador e a viso do protagonista pode ainda ser deflagrada através do manejo do tempo na narrativa. Durante toda narrativa, há um esforço do narrador em transparecer no narrado a percepção de Naziazeno em relação ao decorrer das 24 horas que ele tem para a aquisição do dinheiro. Sua angústia em gradação ao decorrer do dia e a necessidade em encontrar solução para seu problema financeiro é acompanhada pelo leitor através da instância narrativa que se aproxima da visão do protagonista. Os capítulos da insônia é narrado, por exemplo, a deflagrar toda lentidão que assombra a noite do protagonista. Recursos como alongamento dos episódios, a ênfase na repetição das mesmas idéias, o uso de reticências num caráter de suspensão do discurso são lançados mão pelo narrador para representar na voz narrativa a impressão daquele momento para o protagonista. Entretanto, essa estratégia na passagem do capítulo 7 para o capítulo 8 é encerrada. Nesse momento, revela-se o domínio da narrativa, a estrategema de reconstrução do episódio por parte do narrador, já que a placencia de acontecimentos descritos pelo o olhar do protagonista até então sob certa linearidade, é substituída por uma lacuna. O leitor não sabe o que ocorreu entre a saída de Naziazeno da repartição, final do capítulo sétimo e a cena focalizada de Naziazeno subindo uma rua de um bairro elegante a procura de cobrar dinheiro para um
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cidadão que mora no número 357, início do capítulo oitavo. Nesse sentido, deixa-se novamente demonstrar o jogo de perspectivas narrativas, que enlaça a visão do protagonista ao mesmo tempo em que a sobrepõe, a analisa e a crítica, deixando em evidencia a representação do cotidiano, da sociedade e a figuração do outro, do mundo do individuo, e do individuo em meio à realidade que o cerca. Diante dessa ambivalência de perspectivas, a configuração do individuo e a configuração social são captados em conjunto. Os aspectos sociais são juntamente com o psicologismo do personagem, sua introspecção, fixados. O narrador consegue por meio da ampliação da visão do personagem em relação à estrutura social revelar sua limitação em não compreender as hierarquizações presentes na sociedade da qual faz parte. A representação da sociedade na narrativa se faz pela associação com a subjetividade do protagonista, que deixa evidenciar a alienação do sujeito em relação à compreensão do funcionamento a sociedade: Naziazeno não consegue perceber que há uma estrutura social a que se liga seu aperto financeiro, ao contrário, pensa que a simpatia humana é que organiza a vida. Nota-se, portanto através da estratégia narrativa, a configuração dissonante do mundo que o personagem imagina habitar e a sociedade que este de fato vivencia, como, por exemplo, na cena em que o protagonista pede dinheiro emprestado ao diretor da repartição onde trabalha. O personagem como não entende a hierarquia das relações sociais e pensa que essas são regidas pela simpatia e amizade espera ter do diretor satisfatória recepcionalidade, no entanto o narrador ampliando o pensamento do personagem deixa evidente que as leis sociais são de outra ordem: ―O Diretor não parou n a Diretoria: foi direto as obras. A porta, o subdiretor, o capataz e o Dr. Rist o esperam e o seguem com o olhar. (..) Naziazeno resolve esperá-lo ali fora também (..). Não pensou como vai abordá-lo – se a sós com ele,se diante dos outros. Tudo aquilo é tão simples, tão familiar.... ―Eu compreendo essas coisas Naziazeno...‖ - O Sr. Pensa que eu tenho alguma fábrica de dinheiro? (O diretor diz essas coisas a ele, mas olha para todos, como que a dar uma explicação a todos. Todas as caras sorriem). Quando seu filho esteve doente, eu o ajudei como pude. Não me peca mais nada. Não me encarregue de pagar as suas contas: já tenho as minhas, e é o que me basta...(risos). (MACHADO, 2002, 38) Em outra passagem adiante, pode-se melhor evidenciar como a subjetividade do protagonista apresenta-o como medíocre, incapaz de vislumbrar as situações de maneira racional, somente pelo viés da amizade, de favores corroborando para que ele não perceba a configuração da sociedade : ―Conhecera Justo Soares a propósito daqueles ―metros cúbicos de recalque‖ um pouco intrincados. Fizera-se intimidade entre eles (Justo é um rapaz muito agradável). Felizmente tudo se solucionou, e já faz algum tempo. Agora Justo Soares não o cumprimenta mais: é que certas amizades se extinguem quando se extinguem os negócios que as originaram. E é razoável. Quantos conhecidos seus nessas condições ele poderia rememorar!.. (MACHADO, 2002, p.40)
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Desta forma, pelo estrategema da narrativa consegue-se dar a dimensão social do texto pela representação da exploração física e mental do sujeito. Os problemas da sociedade são configurados de maneira vertical, permitindo descrevê-lo juntamente com o mundo particular do individuo sofrendo processo de marginalização econômica. A narrativa revela a subjetividade de um personagem que se aceita um pobre diabo, vendo-se como um miserável por não compreender a estrutura da sociedade e os mecanismos para ascender. É o retrato crítico da miséria da sociedade pelas visada da subjetividade individual. ―O narrador assim constituído pode dar a exploração econômica, tão tematizada pelo romance proletário dos anos 30 uma dimensão que ficou fora da grande massa dos livros que se produziram naqueles anos. Em Os Ratos mais que miséria física se destaca uma espécie de miséria mental‖ (BUENO, 2006, p. 590) Naziazeno representara sempre o olhar humilhado, que não vê a estrutura social e as possibilidades mobilidade que nela existem. ―Sua mentalidade esta de tal maneira conformada ao estado das coisas que não consegue imaginar um mundo funcionando sobre outra ordem‖. (BUENO, 2006, p. 590). Dyonélio Machado consegue, pela estratégia narrativa, recriar as miudezas do cotidiano e investir nelas uma significação transcendental, deflagrando na dificuldade de sobrevivência física propriamente dita, o achatamento da visão que converge todas as mazelas e revela no protagonista a figura de um pobre diabo que desiludido não consegue ter em si na alma ainda que frustrada a interioridade de seus ideais (PAES, 1990, p. 56). 4. CONCLUSÃO A análise empreendida neste trabalho revelou que pela configuração da voz narrativa pode-se conjugar os aspectos sociais, tradicionalmente destacados pela critica literária, aos fatores subjetivos, ambos fundamentalmente relacionados na composição da obra Os Ratos. O narrador distanciado, capaz de registrar uma cena significativa, os detalhes do cotidiano e comentar paralelamente a situação do protagonista, deflagrando-o como um marginalizado em meio a sociedade, revela, pelo uso sistemático da introspecção, da subjetividade do personagem, seu estreitamento mental que impede o surgimento de uma vontade de se opor as forças sociais reduzindo-o aos horizontes possíveis dentro do sistema de exploração econômica. (BUENO, 2006, p.595). Naziazeno, diferente dos protagonistas de alguns romances também classificados como sociais, na dicotômica visão social e intimista da tradição literária, não é um malandro ou um herói que vislumbra de alguma maneira a possibilidade de mudança social. Sua mente cansada e conformada vê a vida como um espetáculo em que os figurantes têm papeis fixos (BUENO, 2006, p.584). O que o interessa diante de toda a situação vivia é a captação do valor para sanar sua divida com o leiteiro, tornando-se, portanto, incapaz de entender e enxergar alguma possibilidade ascensão, mudança de papel na sociedade. ―Preso em sua vida de rato, nada além do dinheiro podia resolver seu problema‖ (BUENO, 2006, p.595). Pela composição estrutural do romance, que como exposto não distancia a esfera subjetiva da esfera social, ao contrario, une essas instâncias dinamicamente, Os Ratos figura de forma mais aguda o esmagamento do proletário no capitalismo. A exposição da subjetividade do protagonista, a encenação do seu psicologismo, tão apagada na exaltação do romance proletário, dá à obra a possibilidade de representar de forma mais ampla o outro e a sociedade.
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REFERÊNCIAS: ADORNO, Theodor W. ―Posição do narrador no romance contemporâneo‖. In: Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; ed. 34, 2003 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura. 3. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1985 BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: editora da Unicamp, 2006. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo: 1989 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. FILHO, Adonias. O romance brasileiro de 30. Rio de Janeiro: Bloch. 1969 LAFETÁ, João Luiz. 1930: A Crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades; ed. 34, 2000. MACHADO, Dyonélio. Os ratos. 22. ed. São Paulo: Ática . 2002 PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 SCHWARZ, Roberto. Que horas são? : ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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“A PRESENÇA DE TUDO SEMPRE PERGUNTANDO” – A POESIA DE ALEXANDER SEARCH Cíntia França Ribeiro1 RESUMO: Criado na juventude de Fernando Pessoa, o heterônimo inglês Alexander Search ainda não é bastante estudado pela crítica, mas representa um momento decisivo na produção poética pessoana rumo à modernidade. Este trabalho tem o objetivo de identificar, na obra de Alexander Search, as características que o aproximam da poesia moderna, bem como situá-lo dentro do projeto heteronímico do poeta português. Para isso, é necessário recuperar, primeiro, a formação britânica do poeta português, que repercutiu desde cedo em sua prática poética e em suas reflexões teórico-literárias. A seguir, a partir das particularidades heteronímicas de Search e das características de sua poesia, é preciso situá-lo em relação à lírica moderna que surge com Baudelaire no século XIX. Finalmente, cumpre avaliar, com base no estudo de alguns princípios fundamentais da teoria estética de Pessoa e da lírica moderna em geral, o lugar de Search no percurso de modernização do poeta português. Palavras-chave: Alexander Search, Fernando Pessoa, modernidade, heteronímia. “ALL THING‟S PRESENCE E‟ER IS ASKING” - ALEXANDER SEARCH‟S POETRY ABSTRACT: Developed in Fernando Pessoa‘s early adulthood, his English-language heteronym Alexander Search is not yet largely studied by scholars. However, Search represents a turning point in Pessoa‘s poetic work towards its modernity. This study is aimed at identifying, in Alexander Search‘s production, the features that make it verge on modern poetry, as well as placing him into the context of Pessoa‘s heteronymic project. To reach this goal, I first recover Fernando Pessoa‘s British background, which early echoed in his poetry and theoretical writings. Then, I approach Search‘s poetic and heteronymic features in order to place him into the context of 19th century modern lyric brought out by Baudelaire. Finally, by examining some pivotal principles concerning Pessoa‘s aesthetic theory, as well as modern lyric in general, I try to determine Search‘s position in the Portuguese poet‘s modernization path. Keywords: Alexander Search, Fernando Pessoa, modernity, heteronymy.
1. ESTES QUE SE ASSINAM: A PRÁTICA HETERONÍMICA E O ROMANTISMO INGLÊS A presença de tudo se impõe, mas não simplesmente: é preciso atribuir um valor a cada coisa e definir seu estatuto no desempenho de qualquer ação. O confronto com tudo que existe, aqui entendido como as coisas e acontecimentos sensíveis, passíveis de percepção tátil, visual, auditiva, olfativa, gustativa, pode suscitar variadas respostas. Pode-se adotar a postura de não enxergar nas coisas mais que essa sua manifestação sensorialmente perceptível e dizer 1
Aluna do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES. Endereço eletrônico: cintia.fribeiro@gmail.com.
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que elas não significam nada além do que são; pode-se adotar essa postura como ideal que permanecerá inevitavelmente inalcançado, e nesse caso assumir também a dúvida que necessariamente vai pesar sobre o segredo que haveria por trás de sua concretude. Pode-se negar veementemente essa postura e criar um labirinto de sentidos que conduzirão a uma verdade transcendente ou a lugar nenhum. Todas essas alternativas, aparentemente incompatíveis, são experimentadas por Alexander Search, heterônimo de língua inglesa de Fernando Pessoa. A educação britânica de Pessoa é um dado biográfico bastante conhecido. Tendo vivido de 1896 a 1905 em Durban, África do Sul, nos tempos em que aquele território pertencia ao Império Britânico, frequentou escolas britânicas e, portanto, foi academicamente educado na cultura anglossaxã. Essa formação foi determinante para que Pessoa ocupasse uma zona fronteiriça e assumisse um ponto de vista distanciado em relação à tradição portuguesa, possibilitando-lhe que, mais tarde, ao optar por se tornar português, pudesse revigorá-la com sua crítica e poética anglicizadas, incorporando ao seu próprio projeto poético os princípios que permitiriam sua modernização e a da poesia de língua portuguesa. Na obra teórica do escritor português, é frequente a menção a poetas de língua inglesa. Em ―Os graus da poesia lírica,‖ por exemplo, Tennyson, Browning e Shakespeare são apontados como exemplos máximos de despersonalização poética (Pessoa, 1986, p. 275). Igualmente importantes para Pessoa foram os românticos. A teoria poética de Wordsworth (1987, p. 184), com sua concepção de poesia como um transbordamento de emoção recordado na tranquilidade, implica um processo de desdobramento temporal do eu cujo resultado é a expressão, no poema, de um sentimento que não corresponde ao que o eu realmente sente, mas ao que recorda ou imagina. A emoção recebe, dessa forma, um tratamento objetivo, pois deixa de dizer respeito diretamente ao eu, é tratada como se pertencesse a outro — outro momento, outro eu. Sua expressão é mediada pela razão, pelo intelecto. Esse é um dos fundamentos do fingimento, como se depreende da seguinte anotação, originalmente em inglês, de Pessoa: Três tipos de emoções produzem boa poesia — emoções fortes, mas breves, capturadas como arte assim que tenham passado, mas não antes que tenham passado, emoções fortes e profundas, lembradas muito tempo depois; e falsas emoções, isto é, emoções sentidas no intelecto. Não é a insinceridade, mas uma sinceridade traduzida, a base de toda arte.1 (apud Monteiro, 2000, p. 14, minha ênfase, minha tradução) A sinceridade traduzida importa, assim, ―a intelectualização de uma emoção, ou uma emocionalização da ideia‖ (Pessoa, 1986, p. 383), procedimentos característicos da nova poesia portuguesa que Pessoa teoriza e pratica. Dentro dessa nova poesia, ele constrói e identifica o Sensacionismo como o mais poderoso movimento estético, fundando-o nos princípios de que: Todo objeto é uma sensação nossa. Toda arte é a conversão duma sensação em objeto. Portanto, toda arte é a conversão duma sensação numa outra sensação. (Pessoa, 1986, p. 426)
1
Originalmente, em inglês: ―Three sorts of emotions produce great poetry — strong but quick emotions, seized upon for art as soon as they have passed, but not before they have passed; strong and deep emotions in their remembrance a long time after; and false emotions, that is to say, emotions felt in the intellect. Not insincerity, yet a translated sincerity, is the basis of all art.‖
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Os princípios do Sensacionismo permitem inferir que, para Pessoa, a existência do objeto depende necessariamente de sua percepção por um eu e o objetivo da arte é a criação de novas sensações, uma vez que ela é ―a sensação multiplicada pela consciência‖ (Pessoa, 1986, p. 432). O Sensacionismo pretende, dessa forma, ampliar as possibilidades de percepção, e o método para alcançar essa finalidade é a heteronímia, a criação de personalidades imaginadas, pois, uma vez que cada homem percebe o objeto de forma diferente, deve-se trocar de personalidade – ou, na expressão de Pessoa, outrar-se – para, a partir de uma outra consciência, adquirir outra percepção do objeto. A capacidade de exprimir diferentes vozes por meio do método heteronímico está também ligada ao bilinguismo. Pessoa afirmou que ―um verdadeiro homem só pode ser, com prazer e proveito, bilíngüe‖ (apud Lopes, 1995, p. 8). O bilinguismo do poeta pode ser entendido, num sentido metafórico, como essa própria capacidade, que lhe permitiu a realização estética das virtualidades humanas. Em seu sentido literal, a defesa do bilinguismo acrescenta à heteronímia outro instrumento de despersonalização necessário à realização daquelas virtualidades: Antes de mais, um tão completo processo de despersonalização lírica não poderia efectivar-se tão perfeitamente senão num homem cuja dualidade linguística lhe desse a linguagem como um sistema de signos e relações destituído de outro valor que o de serem equivalentes de um sistema para o outro [...] (Sena, 1982, v. 2, p. 92, ênfase no original) Inevitável seria, portanto, com sua formação britânica, que Pessoa fosse em inglês, o que aconteceu cedo em sua produção, com a criação de vários heterônimos que escreviam originalmente nessa língua, assim como o heterônimo Pessoa fez com bastante frequência, quer em escritos teóricos, quer em sua prática poética. 2. ―ESTE QUE SE ASSINA ALEXANDER SEARCH‖ Fernando Pessoa registra a ficha biográfica de Alexander Search no caderno intitulado The transformation book ou Book of tasks. Dentre os 115 poemas atribuídos ao heterônimo, publicados em conjunto pela primeira vez em 1995, a maioria dos textos datados foi escrita quando Pessoa tinha por volta de 20 anos, idade em que Search declara ter morrido, em um poema-epitáfio datado de 1908. Entretanto, o último poema escrito pelo heterônimo, para seu livro Documents of mental decadence, data de 1916, quando teria, assim como o poeta português, 28 anos. A inclusão desse heterônimo feito nascer no mesmo lugar, dia e ano de Pessoa — Lisboa, 13 de junho de 1888 — num caderno com tais denominações é bastante sugestiva do projeto pessoano e do processo de constituição de Alexander Search como integrante dele. A denominação de Caderno de encargos já revela a sistematização consciente da distribuição de tarefas e textos a cada heterônimo segundo a personalidade e convicção literária. Que esse mesmo caderno se chame, simultaneamente, O livro da transformação é indicativo, por sua vez, da assunção do outramento heteronímico como método de composição literária e, no caso de A. Search, ainda é sugestivo de sua própria gênese. É preciso lembrar que a heteronímia inglesa de Pessoa não nasceu com Search. Antes dele, David Merrick, Charles Robert Anon, Horace James Faber e um Dr. Gaudêncio Nabos assinaram ou assinariam, segundo planos de obras a executar e publicar, textos diversos em inglês. Desses quatro, três, de algum modo, transformaram-se em A. Search. O primeiro a entrar em atividade, D. Merrick, foi gradualmente substituído por C. R. Anon, a quem foi
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atribuída a autoria de poemas inicialmente assinados por Merrick. É significativo que, em 1904, Anon tenha escrito três poemas no caderno de Merrick, e que uma lista de contos desse caderno tenha tido sua autoria alterada para Anon. Faber, por sua vez, é um escritor de histórias de detetive, ensaísta e poeta satírico. Assina com Anon, de quem é amigo inseparável, o conto ―The case of science master,‖ e um texto sem título, aparentemente para publicação no Almanach do Diário Illustrado. O conto ―A very original dinner,‖ também escrito por Faber, é assinado depois por Search. Assim, estabelece-se uma espécie de linha sucessória entre esses primeiros heterônimos ingleses de Pessoa, que se transformam uns nos outros até chegar a Search, cuja obra abrange textos escritos em Durban e em Lisboa. Pessoa tinha planos de que, dividindo consigo a autoria de interseccionist poems, e consigo e com Sá-Carneiro a de poèmes intersectionnistes, Search participasse da revista Europa, projeto modernista frustrado, anterior a Orpheu. Do heterônimo se sabe, ainda, que tinha sua própria biblioteca, da qual faziam parte livros de Byron, Corneille, Lady Mary Wortley Montague, Whitman, e um ensaio de filosofia médica de Roullier. Além de Alexander Search, constam de O livro da transformação Charles James Search, seu irmão mais velho, tradutor, Jean Seul de Méluret, encarregado de escrever, em francês, ―poesia e sátira ou obras científicas com um propósito satírico ou moralizante‖ (apud Lopes, 1990, v. 2, p. 196), e Pantaleão, aparentemente pseudônimo de heterônimo indeterminado, cujos encargos se limitam a executar uma lista composta de quatro títulos. A A. Search é designado fazer tudo que não se inclui entre as tarefas dos outros três, além de escrever a sua própria obra, composta de cinco títulos, entre ensaios e livros de poemas. A competência de A. Search dentro do Caderno de encargos é, dessa forma, bastante ampla, e sua poesia pode versar sobre quase qualquer matéria, assim como seus ensaios. A tradutora Luísa Freire define da seguinte maneira os temas de Alexander Search, que repercutirão na obra madura de Pessoa: a procura da verdade e da razão das coisas; o desajustamento em relação ao mundo e à natureza; o eterno adiamento de si e a ociosidade consciente; a obsessão do inexplicável e a incapacidade de exprimir a alma; a náusea de viver e a certeza de não ser compreendido; o fingimento e as máscaras; a fugacidade do tempo e do amor; o mistério da vida e do além e a percepção de uma vida anterior; a desistência perante o transcendente e o irremediável [...] (Freire, 1995, p. 21) A multiplicidade temática de Search parece bastante adequada à amplitude de sua própria personalidade, já alimentada de outras tantas. Esse espaço heteronímico tão cheio de vertentes será bastante propício à contradição: ao mesmo tempo em que constitui a gênese do eu de Search, já é, potencialmente, seu esfacelamento, que se manifesta através da loucura decorrente de um exercício obsessivo de reflexão em busca da verdade em um mundo ilusório. O tom decadentista, angustiado e sombrio de Search, que não consegue escapar de um certo confessionalismo sentimental adolescente, denuncia sua formação literária: Poe, Baudelaire, Rollinat. Christopher Auretta (1993, p. 87) caracteriza sua poesia como ―um gênero de soma-síntese das correntes literárias de fin de siècle.‖ A localização da dicção poética de Search na mescla de correntes literárias do fim do século XIX torna necessária uma investigação mais detalhada de como se dá a aproximação de sua poesia com as tendências estéticas que definem o rumo da modernidade a partir de Baudelaire. A afinidade com o poeta francês se estabelece, como veremos, a partir de um locus simbólico específico que terá consequências importantes no desenvolvimento da poética de Search.
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3. O DIABO DA MODERNIDADE: POE, BAUDELAIRE, SEARCH A ficha biográfica de Search não é o único documento em que foi definido por Fernando Pessoa. No plano de uma peça intitulada ―Ultimus joculatorum,‖ encontra-se, entre as personagens mencionadas, Caesar Seek, equivalente a Alexander Search, conforme explicitação do próprio Pessoa, que o descreve como ―alheio ao riso, oscilando entre a meditação profunda e torturada e a amargura... (amarga ironia, às vezes???)‖ (apud Lopes: 1990, v. 1, p. 103). Dessa peça também faria parte o personagem Jacob Satan, com o qual Search assina um compromisso em texto de sua autoria. Nesse compromisso, Search, apresentado como proveniente do inferno, ou habitante do inferno, promete não recuar das tarefas de fazer o bem à humanidade, não escrever textos de má índole que possam causar dano a quem os lê, não esquecer, ao atacar a religião em nome da Verdade, que ela dificilmente pode ser substituída, e não esquecer que o homem sofre e está doente (Search, 1966, p. 10). Dessa forma, Search compartilha a imagem que Baudelaire faz de Edgar Allan Poe como homem de gênio cuja nobre missão de buscar a Verdade conduz a uma vida desequilibrada, pela qual é socialmente – e injustamente, segundo Baudelaire – julgado e condenado. A condenação injusta de Poe, incompreendido por seus compatriotas, leva o francês a dizer dele ―o que o catecismo diz do nosso Deus: ‗Ele sofreu muito por nós.‘ ‖ (Baudelaire, 1993, p. 42). O poeta, tomando o lugar de Deus, mas sem perder sua mácula humana – Baudelaire (1993, p. 48) dirá também que Poe ―afirmou imperturbavelmente a maldade natural do homem‖–, é um anjo caído. Alexander Search assume, dessa forma, além das tarefas assinaladas no Caderno de encargos, o compromisso luciferino de levar ao homem o conhecimento da Verdade numa época enferma. Em ―O poeta maldito‖, ele traça o perfil desse poeta que vive num mundo degradado e ama os homens, mas cuja vida e morte é solitária e vã: Poeta maldito ele aqui jaz, Do céu azul oculto; atrás De lama e lixo, ele aqui jaz Bem no fundo da corrente. Estranhos sonhos sonhou em mente. Amou os homens, mas não fez nada P'la humanidade. Seu pensar vão. [...] Cheio dos detritos da urbe imensa Sobre ele o rio passa a correr. Negra, sobre ele, passa a torrente. Fundo, onde a luz não pode ver, Maldito seja eternamente! (Pessoa, 1995, p. 179) O lugar do poeta maldito de Search é a cidade, é dela que vêm os detritos que o enterram e, supõe-se, era nela que o poeta vivia, ignorado pelos homens que amava, mas pelos quais não fez nada, dada a inutilidade de sua arte, seu sonho e seu pensar. Todos os elementos naturais que o cercam estão corrompidos: a visão do céu é obstruída e o rio é entulhado de lixo. Embora a cidade não seja descrita, é possível imaginá-la como um mundo decadente, sujo e hostil, uma vez que toda a degradação do cenário tem sua origem na ―urbe imensa.‖ A contaminação do rio pela grande cidade, por sua vez, o transforma em uma metáfora dessa urbe, com sua multidão anônima – e anônimo também é o poeta – que transita
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ininterruptamente, atropelando aquele que não adere a esse movimento. A busca do poeta, que poderia iluminar a vida dos homens, acaba por condená-lo ao degredo social. O cenário urbano moderno, que começa a ser desenhado no século XIX e cujo modelo é a Paris de que fala Benjamin, modernizada pelas obras públicas promovidas por Haussmann, com a abertura das galerias e a iluminação noturna, é claramente a condição de existência desse poeta, pois só nesse espaço foi possível ao homem, pela primeira vez, a experiência do anonimato e da errância, ou seja, o apagamento do eu e o deslocamento aleatório. A nova cidade também é o lugar do surgimento das histórias policiais, cujo conteúdo social é ―a supressão dos vestígios do indivíduo na multidão da cidade grande‖ (Benjamin, 1989, p. 41). Mais uma vez, Poe é uma figura capital, e é ainda Benjamin quem diz sobre ―O homem das multidões,‖ conto que interessou particularmente a Pessoa: é algo como a radiografia de um romance policial. Nele, o invólucro que representa o crime foi suprimido; permanece a simples armadura: o perseguidor, a multidão, um desconhecido que estabelece seu trajeto através de Londres de modo a ficar sempre no seu centro. Esse desconhecido é o flâneur. (1989, p. 45) Todos esses elementos estão presentes no conto de Poe, que identifica seu perturbado homem da multidão como um homem triste e diabólico: ―Lembro-me bem de que minha primeira ideia, ao vê-la [a expressão do homem], foi que Retzsch, se a houvesse contemplado, tê-la-ia preferido, especialmente, para suas encarnações pictóricas do diabo‖ (Poe, 2001, p. 395). É precisamente o ponto de vista desse diabólico homem da multidão que Pessoa decide assumir no esboço de uma aparente reescrita do conto de Poe. Embora o manuscrito desse esboço não seja datado, a leitura de Poe é reconhecidamente marcante na juventude do poeta português. Em 1903, Pessoa anota ter lido quase todos os poemas dele, e em 1906 há o registro de um plano de ―correção‖ de ―A carta roubada‖, a ser executado por C. R. Anon. A leitura do escritor norte-americano se faz, é importante lembrar, nos anos de produção dos heterônimos de língua inglesa de Pessoa e de maior produção de Alexander Search. A poesia de Search remete, dessa forma, à figura do poeta desajustado, marginal, habitante de um mundo sombrio e decadente. Não obstante a juvenilidade de sua poesia, Search foi levado até muito longe por Pessoa, se se considerar que ainda há registro de sua produção em 1916, quando Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro já existiam, e que sua participação foi cogitada numa frustrada revista modernista. Seu abandono tardio revela a importância estrutural de uma voz que se constituiu num momento decisivo da formação poética de Pessoa, de sua opção por encarnar a nova poesia portuguesa. A poesia de Search está, assim, na encruzilhada: entre duas línguas, duas cidades, dois momentos da vida e do projeto pessoano. Sua voz parece levar essa encruzilhada a todos os lugares, daí sua angústia. A encruzilhada é um lugar de escolha, e também o lugar tradicional para um pacto com o diabo. Sedlmayer (2009, p. 1) registra que, dentro da obra de Pessoa, a presença do diabo é mais frequente nos heterônimos ingleses de sua juventude. Essa presença diabólica parece estar associada à situação intersticial da própria dualidade linguística, descrita por Sena como ―pensar em inglês e escrever em português‖ (apud Sedlmayer, 2009, p. 5). Nesse ponto, é preciso referir a atividade de Pessoa como tradutor de Poe, o que o vincula também a Baudelaire, não só pela importância que o poeta francês teve no estudo e reconhecimento de Poe como gênio literário — em textos que Pessoa leu — mas pelo lugar entre línguas que ocuparam na tradução desse escritor. Detectando esse lugar compartilhado com Baudelaire, Sedlmayer afirma que
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Pessoa cria um lugar intermediário onde se alojar entre Deus e o Diabo. Se o escritor francês marca esta localização geográfica e imprecisa no limbo e vai rumo a uma quarta viagem (Dante, efetivamente, já realizara três), Albert Thibaudet falará, em 1936, de como o poeta de Florença continuará no poeta de Paris, e de como o catolicismo filosófico e literário baudelairiano cria o limbo como interstício. (2009, p. 5) O pacto diabólico de Alexander Search, além de modular sua voz poética conferindolhe o tom luciferino, atribui-lhe o lugar ―fronteiriço, hesitante e prenhe de oscilações‖ (Sedlmayer, 2009, p. 5). Sua aproximação com Baudelaire nesse locus, por outro lado, é também sua aproximação com a modernidade. Auretta (1993, p. 87) menciona um ―incipiente modernismo‖ de Search. Sedlmayer (2009, p. 1) se refere a ―um estranho modernismo.‖ Pergunto: que modernidade? 4. ―O ODOR DA PAZ PERTURBADA‖: A INSTABILIDADE DO SENSÍVEL EM ALEXANDER SEARCH A hipótese que se levanta é a de que, em Search, a experiência dos objetos que constituem a realidade sensível se faz segundo um percurso que põe em risco a integridade do eu e a sua concepção como uma unidade com existência autônoma e independente em relação ao objeto, com o qual estabelece uma relação cognoscitiva unidirecional de que tem total domínio. Na poesia de Search, essa realidade resiste a desempenhar o papel puramente passivo de objeto, chegando, por vezes, a adquirir certas prerrogativas humanas. A relação que se estabelece entre o eu e as coisas é, assim, provocadora de uma desestabilização do estatuto de ambas as partes, numa atitude típica da arte moderna. Na encruzilhada poética de Search, o contato com os objetos sensíveis externos ao eu surge como uma situação privilegiada de manifestação da angústia causada pela impossibilidade da definição do estatuto das coisas — loucura, verdade metafísica, existência empírica pura e simples? A análise de alguns poemas de Search permitirá explorar como essas possibilidades de apreensão do real se realizam e se transformam. Num de seus epigramas, ele começa por atribuir à natureza estados de espírito humanos: Se Cíntia sorria, a Natureza sorria, Os rios, diamantes, brilhavam ao dia; No ramo, afinadas, aves cantavam Enquanto, mugindo, os gados pastavam. [...] Se Cíntia zangada, tudo em som alterado E o mundo mudava o curso esperado; O sol era fraco, a lua escurecia, A noite um inferno, o dia anoitecia. Mas, vivendo esse tempo, cego o meu olhar Para tais milagres poder contemplar. (Pessoa, 1995, p. 35)1 1
Deste ponto em diante, nesta seção, informarei apenas a página dos trechos citados entre parênteses, a seguir às citações dos poemas de Alexander Search, devido à grande quantidade de citações feitas para a análise dos textos. A adoção da regra convencional aplicada ao restante do trabalho, nesse caso, prejudicaria a legibilidade, pela obstrução visual que o excesso de referências causaria. Ressalto que todos os poemas de Search têm como fonte a edição de Poesia inglesa publicada em 1995, com tradução de Luísa Freire.
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A experiência da realidade, nesse caso a natureza, é, assim, determinada por um elemento que lhe é exterior e independente — os estados de espírito de Cíntia — e do qual o real se torna um signo metafórico, uma vez que é estabelecida a correspondência entre o sorriso da musa e o brilho do dia, sua raiva e a escuridão natural da noite. Entretanto, já no fim da primeira estrofe, o poeta se confessa cego ao que chama, ironicamente, ―milagres,‖ e prossegue, na segunda estrofe, com o desmascaramento da humanização da natureza para afirmar a impossibilidade de que o real seja percebido dessa maneira: Nem no ramo as aves cantavam melhor, Nem a Natureza tinha um brilho maior; Nem girava o mundo ou ficava retido; O que então girava era o teu sentido. (p. 35) A realidade não corresponde a algo além de si mesma e sua percepção permanece inalterada pelas mudanças do estado de espírito dos indivíduos que a observam. Todo sentido do real só existe por atribuição humana e é ilusório. Sobre o mundo, nada se pode afirmar, seu verdadeiro estado não tem representação possível na lógica da linguagem: ―nem girava ou ficava retido.‖ A negação da possibilidade de metaforização do real através da humanização da natureza em Search lembra quase imediatamente o mestre dos heterônimos, Alberto Caeiro. Entretanto, enquanto em Caeiro a realidade é uma verdade à qual o eu deve aceder pela percepção sensorial e exclusivamente por ela, nesse epigrama de Search, o eu poético se coloca como mero observador e parece recusar-se a se entregar às suas próprias sensações devido a uma espécie de racionalização, presente de forma mais clara no original, com o uso do verbo methinks na abertura da segunda estrofe, em que se desmascara a humanização do real promovida na primeira. Essa racionalização é que, aparentemente, impede-o de experimentar o real de uma maneira que desestabilize os limites entre o eu e o mundo nesse poema. A necessidade da racionalização, contudo, já indica que esse risco está presente. A experiência ideal da realidade, para Search, pode ser encontrada em ―Um dia de sol‖, um dos raros poemas do heterônimo em que não predomina o tom de angústia e sofrimento ou a ironia amarga que destrói a crença em qualquer aspecto positivo da vida e dos homens. Nele, o eu se rende à experimentação sensorial da realidade, buscando a fruição de ―Tudo que é simples e brilhante,/Despercebido à mais aguda mente‖ (p. 173), e assumindo uma postura infantil em sua naturalidade de percepção do mundo e, ao mesmo tempo, consciente da grandeza maior do universo e da unidade que existe entre todas as coisas, alcançada e sentida pelo eu precisamente através da sensorialidade: Aqui estendido deixem-me ficar Diante do sol, da luz absorvida, E em glória deixem-me morrer Bebendo fundo da taça da vida; Absorvido no sol e espalhado Por sobre o infinito firmamento Como gotas de orvalho, dissolvido, Perdido num louco arrebatamento; (p. 175) A morte gloriosa do eu, que se dissolve ao se fundir impessoalmente a toda a vida, é concebida como uma forma de libertação dos poderes opressores da alma e da mente individuais, daí o tom otimista com que a experiência do real é capturada em ―Um dia de sol‖. Esse modo de experiência do real, em que o mundo é nada mais que objeto sensível, não subsiste, entretanto, como a única vertente da poesia de Alexander Search. Em ―Começo‖, não só se atribui ao real a possibilidade de significação metafórica como
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espelho do eu — ―lá fora e cá dentro a tormenta sombria‖ (p. 51) — como se pode entender que é sua a voz alheia que ―se ergue em alegria‖: E algo sinistro e uma ventania Me fazem tremer na frágil compleição; e, alheia a mim, com tudo a desabar, Uma voz — não a minha — se ergue em alegria. (p. 51) Mais adiante, no fim do poema, o pensamento, por sua vez, se revela um elemento causador de desvio, portador de um medo e de um horror que não encontram paralelo no mundo real e conduzem o eu às portas da loucura: Sopra forte, ó vento! Empalidece, ó dia! Não podeis em medo e horror condizer Com o que trago em mim e é meu ser, Este vão pensamento que se extravia À profunda agonia subordinado; O que sente o trinco do portal da razão Cair, com um som de conclusão, Como algo se fecha e p'ra sempre acabado. (p. 51) A atribuição de sentido ao real pelo eu, absorto em ―sombrios enigmas universais‖ (p. 61), isto é, imerso no pensamento vão que o constitui, está, assim, em relação direta com a loucura. Apesar de revelar um comportamento do eu bastante distinto do que existe em ―Epigrama,‖ ―Começo‖ corrobora a ideia de que ver na realidade sensível algo mais que ela própria é uma doença do pensamento. Entretanto, em ―Começo‖ essa doença parece inevitável, pois é imposta pela presença do mundo em si. Isso é claro no primeiro verso, e especialmente no original em inglês — ―Darkness and storm outside make inward gloom‖ (p. 50) —, em que o verbo usado expressa uma relação causal entre o que se passa no exterior e o que se passa no interior, que pode ser interpretado tanto como o interior da casa em que se encontra o poeta quanto como o próprio eu. A confusão entre o eu e o mundo provocada pela doença do pensamento diante da presença das coisas leva a uma experiência de terror e incompreensão, uma vez que a própria razão é posta em risco. Em ―Mania da dúvida,‖ persiste a hesitação do eu diante das possibilidades de conhecimento da verdade das coisas. O mundo concreto manifesta duas dimensões experimentadas pelo eu – ―As coisas são e parecem‖ (p. 97) – que é posto em dúvida sobre o ser e o parecer. A dimensão do ser é a presença do mundo em si, enquanto o parecer implica uma relação com algo que está de fato ausente, embora presentificado exatamente pelo efeito do parecer. Tudo parece, de tal forma que não é possível estabelecer plenamente a fronteira entre a presença real e a produzida pelo parecer. Assim, a natureza da realidade se aproxima daquela do sonho: ―É falsa a verdade? Qual o seu aparentar/Já que tudo são sonhos e tudo é sonhar?‖ (p. 97). Esse estado de dúvida permanente é apresentado como decorrência das próprias características das coisas, que são e parecem. São as coisas que impõem a dúvida ao eu, é a presença delas que pergunta uma pergunta que tem a elas próprias por objeto. Todas as coisas parecem repetir a esfinge, ―decifra-me ou te devoro,‖ e o eu está irremediavelmente sujeito a esse jogo. A vítima do enigma é a razão, condenada a falhar ―No encontrar/Mais do que as coisas em si revelam ser,/Mas que elas, por si só, não deixam ver‖ (p. 97). As coisas se comportam como as palavras, que também padecem da mesma ambiguidade constitutiva, revelar e mascarar o que revelam com sua própria presença. O real adquire, assim, um caráter onírico e ilusório devido à dissolução do limite entre eu e objeto ocorrida na perquirição de que se faz o conhecimento das coisas. A constituição desse espaço indeciso, híbrido, na poesia de Search, será fundamental para as formulações de Pessoa sobre a arte moderna e sua execução dessa concepção, como se verá adiante.
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5. COMO SE FORMAM OS SONHOS: A MODERNIDADE DE ALEXANDER SEARCH Em uma espécie de ensaio teórico que integra o conto ―A porta,‖ Search discorre sobre a experiência das coisas e a possibilidade de perceber nos objetos algo que ultrapassa suas qualidades sensíveis. Essa percepção da ―alma das coisas, seu significado sutil,‖ é definida como uma faculdade dos chamados loucos, maníacos e sonhadores, e decorre da relatividade da percepção (Search [s.d.] p. 45). É impossível, de acordo com esse raciocínio, formar um consenso acerca da realidade empírica, que, por sua vez, só existe em relação àquele que a experimenta e da forma como a experimenta, pois, se é impossível uma afirmação categórica sobre qualquer coisa devido à relatividade com que é percebida, é impossível afirmar sua própria existência, a qual depende dessa percepção. A impossibilidade de formação desse consenso leva à relatividade dos conceitos de loucura e lucidez. Diz Search: Pode algum homem diferir de outro homem na natureza das suas faculdades? Não. E se a diferença for apenas de grau, como podemos nós, uma vez que as nossas concepções, percepções das coisas diferem de homem para homem, dizer onde está um louco? Se cada homem fosse juiz, todos os outros homens seriam loucos. (Search [s.d.] p. 46) O problema do limiar entre loucura e lucidez será retomado por Álvaro de Campos. Em ―Tabacaria,‖ por exemplo, o poeta se interroga sobre a possibilidade de que tantos homens sejam gênios como se julgam, sobre as certezas dos loucos do manicômio e como a sua incerteza de tudo determinaria sua sanidade mental. Ele é, na verdade, simultaneamente lúcido e louco. O estado limítrofe entre lucidez e loucura está relacionado, assim como em Search, à divisão entre o mundo exterior e o interior, de que o eu se ressente. Em ―Tabacaria‖, essa divisão conflituosa e confusa toma a forma da oposição entre a ―Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora‖, e ―a sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro‖ (Campos, 2001, p. 363). De acordo com o raciocínio de Search, esse limiar que leva o eu ao limite da razão é instaurado pelo próprio ato de percepção das coisas, que põe em confronto o eu e o mundo, pois ―não existem coisas, mas coisas sentidas‖ (Search [s.d.] p. 46). A incerteza e a dúvida parecem ser congênitas a certos homens, nomeadamente os poetas, que, segundo a tradição romântica, são justamente aqueles dotados de percepção superior. Contudo, se para Wordsworth e Shelley a faculdade de percepção superior do poeta tinha uma função iluminadora e estava ligada à elevação moral do homem, para Search essa percepção é o caminho da loucura, ainda que tente relativizá-la nesse ensaio, pois não vem – e isso é expressamente reconhecido por ele – acompanhada da compreensão. A preocupação com a elevação moral do homem proporcionada pela arte já estava presente nas reflexões estéticas de Fernando Pessoa nos anos de produção de Alexander Search. Num manuscrito com data provável de 1907, próximo, portanto, de ―A porta‖, o poeta português define que ―a finalidade da arte é a elevação do homem por meio da beleza‖ (Pessoa, 1973, p. 27, ênfase no original). Essa definição, atrelada à ideia do bem, como nos românticos ingleses – pois não se pode elevar uma coisa fazendo-a tender para o mal (Pessoa, 1973, p. 27) –, logo conduz à indagação sobre o gosto de certos escritores por assuntos grosseiros, e, dentre esses escritores, Pessoa menciona justamente Poe. É interessante notar as interrogações que dominam o texto a partir desse ponto, precisamente quando se começa a tratar da literatura moderna:
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Como explicamos o gosto que tantos autores revelam por assuntos grosseiros, desagradáveis, repugnantes? Como poderemos explicar (...) de Zola; o ―Gato preto‖, de Edgar Allan Poe? Um motivo para este gosto encontramo-lo, segundo julgo, no espírito científico e analítico do autor. Outra razão consiste na originalidade do tema. Estará ela no cultivo de sensações novas? Será tal gosto patológico ou não? Como Baudelaire no seu ―Le voyage‖, descerão au fond de l'enfer pour trouver du nouveau? (Pessoa, 1973, p. 28) No parágrafo seguinte ao último citado, Pessoa abandona esses questionamentos para tratar da vagueza do símbolo, e volta a citar como modelo um romântico inglês: Shelley. Os versos de Baudelaire de que Pessoa se apropria são os que encerram As flores do mal, e dizem: ―Ir ao fundo do abismo, Inferno, Céu, que importa?/Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!‖ (Baudelaire, 1985, p. 453,1 ênfase no original). Pessoa substitui o Ignoto (inconnu) pelo inferno (enfer), lugar cuja importância para a dicção poética de Search já foi demonstrada, e transforma o que em Baudelaire é conclamação e convicção exclamativa em dúvida. A questão central que se coloca é a da arte moderna, ou o que significa para a arte, e ao dizer arte Pessoa diz fundamentalmente literatura, o gosto pelo grotesco e pelo estranho, essa nova descida ao inferno que se impõe. Afinal, como realizar a finalidade de ascensão da arte por meio do gosto pelo vil? Seria isso possível? Seria necessário buscar o novo da arte no inferno? Uma tentativa de resposta a essas perguntas deve retornar a alguns aspectos importantes da lírica moderna e ao pensamento estético e teórico-literário do próprio Pessoa sobre essa poesia. A partir de um estudo fundamentado essencialmente na poesia francesa de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, Hugo Friedrich (1991) caracteriza a lírica moderna como uma poesia inquietante, obscura, resistente à compreensão, que radicaliza a diferença entre as funções poética e comunicativa da língua. A palavra-chave de Friedrich (1991, p. 15) para descrever a lírica moderna é a dissonância, resultante da incompreensibilidade e da fascinação provocadas por sua leitura e responsável pela tensão inquieta que a acompanha. A lírica moderna recusou-se à transmissão de conteúdos certos e determinados. Os recursos de linguagem usados nessa poesia são intelectualmente trabalhados de modo a produzir possibilidades incertas e obscuras de significados complexos e/ou absurdos. A relação entre palavra e conteúdo, ou entre significante e significado, é, assim, um dos alvos preferenciais da perturbação característica da poesia moderna. A realidade, como objeto de representação da língua, não poderia, é claro, atravessar incólume essa perturbação. Ela deveria, pois, ser transformada, submetida a um procedimento de análise e destruição para, então, ser reconstituída de modo a gerar uma imagem desarmoniosa, causadora de estranheza e incompreensão. A reconstituição deformadora da realidade acarreta sua desnaturalização, sua artificialização – o artificial, esse adjetivo tão característico da vida moderna. Em Baudelaire, a busca dessas novas realidades passa fundamentalmente pela criação de um novo tipo de beleza, a bizarra, misteriosa e agressiva, encontrada na anormalidade. Só ela seria capaz de produzir as novas sensações, as dissonâncias necessárias à poesia moderna, contrariando o gosto banal. O grotesco, o vil, o feio se tornaram, assim, qualidades desejáveis da poesia na modernidade. Exatamente aqui entram os questionamentos de Pessoa. Como se percebe pelas perguntas feitas por ele, a preocupação com o cultivo das sensações na poesia já é central nos 1
A tradução é de Ivan Junqueira. Originalmente, em francês: ―Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe?/Au fond de l'Inconnu pour trouver du nouveau!‖ (Baudelaire, 1985, p. 452)
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anos de produção de A. Search. O modo de cultivá-las a partir do gosto pelos ―assuntos grosseiros, desagradáveis, repugnantes,‖ presente em Baudelaire e Poe, é que é questionado. Na poesia de Search, de fato, apesar da constante tormenta, há poucas imagens de conteúdo grotesco, capazes de provocar um verdadeiro choque estético, e certamente nenhuma de um horror tão intenso quanto O relato de Arthur Gordon Pym, de Poe, que Baudelaire (1993, p. 39-41) cita longamente num de seus ensaios sobre o escritor. O grotesco, em Search, é mais presente como descrição de uma sensação do próprio eu poético do que como efeito das imagens do poema. O trabalho formal exigido pela lírica moderna na criação de realidades dissonantes consagrou a poesia como produto de um exercício impessoal do intelecto servindo-se da imaginação, que permite a decomposição e recriação do real. Dessa forma, a lírica moderna se configura como um terreno de construção de artifícios, irrealidades, opondo-se radicalmente ao materialismo cientificista, grosseiro e banal da vida moderna e ao realismo literário cujo objetivo é meramente copiar em palavras essa realidade. A oposição entre a arte como domínio da imaginação criadora e a materialidade banal da vida moderna está presente no ―Salão de 1859‖ de Baudelaire. Nesse texto, ele enfrenta precisamente, segundo Giorgio Agamben (2007), o problema da mercadorização da arte, ao qual o poeta francês responde com a proposta de criação de objetos artísticos que negassem a mercadoria pela própria radicalização do processo de fetichização que a constitui. O choque de incompreensão – a dissonância de que fala Friedrich – postulado por Baudelaire como atributo primordial da arte moderna decorreria exatamente da necessidade de destruir o valor de uso da obra, que consiste na inteligibilidade. Semelhante oposição também é encontrada nos escritos teóricos de Pessoa. Num manuscrito com data provável de 1913, ele define a arte moderna como a arte do sonho (Pessoa, 1973, p. 153). O poeta usa a figura de um governante, o Infante D. Henrique, para demonstrar como o mundo moderno perdeu a dimensão do sonho aplicada à criação das formas de vida social. D. Henrique, o Navegador, rei de Portugal no século XV e iniciador da expansão marítima portuguesa, é apresentado por ele como um sonhador. Naquela época gloriosa, governar era sonhar, criar, pois a faculdade de sonho nada mais é, para Pessoa, que a própria faculdade poética.1 Na era moderna, entretanto, ―os homens diminuem. Gradualmente, cada vez mais, governar é administrar, guiar‖ (Pessoa, 1973, p. 154). A explicação científica do mundo, o industrialismo, o imperialismo e a democracia são as causas apontadas por Pessoa para essa diminuição dos homens: a mediocridade da vida moderna. A função da arte será, segundo ele, interpretar a nova realidade social moralmente decadente e materialmente saturada, opondo-se a ela. Por isso, para desempenhar o papel de oposição a essa realidade, a arte moderna deve ser a arte do sonho. Mas o que é o sonho? ―Coisa real por dentro,‖ diz Álvaro de Campos em ―Tabacaria‖ (2001, p. 363). Realidade formada no espírito, imaterial, imaginada, sentida. Como arte do sonho, a arte moderna é subjetiva. É importante esclarecer o sentido dessa subjetividade na poesia de Pessoa. Ela não significa, repita-se, que a arte é uma expressão do eu empírico, ou a heteronímia seria impossível. A subjetividade da arte está antes ligada a outras definições já citadas ao longo desse estudo: ―a arte é a sensação multiplicada pela consciência‖ (Pessoa, 1986, p. 432) e ―todo objeto é uma sensação nossa‖ (Pessoa, 1986, p. 426). Se a arte moderna é arte do sonho e é simultaneamente sensação 1
Pessoa segue aqui o passo de Shelley (1987) em ―Defesa da poesia.‖ De acordo com o poeta inglês, as formas de vida social são, por vezes, a mais alta manifestação poética de uma civilização, a exemplo do que ele afirma ser o caso da Roma antiga. É importante notar nesse contexto, mais uma vez, que Shelley descreve o poeta como o legislador não reconhecido. Ao se referir ao Infante D. Henrique, Pessoa reúne na mesma figura o sonhador, detentor da faculdade poética, e o governante – ou legislador – de fato, e, nesse caso, reconhecido.
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multiplicada pela consciência, sonho, sensação e consciência estão integrados no fazer poético. Se os objetos, por sua vez, só existem como sensação em relação a alguém que os percebe, são destituídos de realidade objetiva. Nesse sentido, a arte moderna é subjetiva e é arte do sonho, porque o sonho é a realidade formada, no interior da consciência, pela sensação das coisas. A modernidade da arte de Pessoa depende, portanto, da perturbação do limite entre objeto e sujeito para que se forme o sonho. À materialidade objetiva da vida moderna o poeta opõe a espiritualização do mundo. Alexander Search foi o primeiro passo, ainda obscuro, nessa direção. Search caminhava nas trevas: em sua poesia, a experiência do espaço limiar entre eu e mundo conduz primordialmente ao terror e à loucura. Em sua busca pelo novo, ele contemplou sem compreender, sucumbiu progressivamente à medida que Pessoa amadurecia sua técnica, sua língua, seu projeto de modernidade, sua poética. Os outros vieram, era a hora.
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O CONTADOR DE ESTÓRIAS: EXERCÍCIO DO IMAGINÁRIO E DA INVENÇÃO Rita Maria Baltar Van deer Laan 1 Ane Carolina Randig Tavares 2 Gisley Monteiro de Monteiro 3 Resumo: Neste artigo, pretende-se expor os resultados alcançados do projeto de pesquisa realizado na Escola Estadual Rotary Club, situada na periferia de Corumbá-MS. Nesta análise, objetivou-se verificar como se dá a receptividade das crianças – em processo de alfabetização – com a escuta de estórias como fonte de apreciação literária. Foram selecionadas estórias dos clássicos universais e adaptadas à linguagem infantil, apresentadas às crianças através de dramatizações, fantoches, narrações simples, vídeos etc. Acredita-se que essa relação lúdica entre as crianças e as estórias levará as mesmas ao interesse pelo ―reino da invenção‖ literária e, a partir daí, ficarão motivadas a ler e exteriorizar suas criações, ou seja, suas próprias ―invenções‖. Palavras - chave: Clássicos universais; contar estórias; receptividade. THE STORYTELLER: EXERCISE OF THE INVENTION AND IMAGINARY Abstract: This article will present the results of a research project developed in the Fundamental cycle, at the Rotary Club state school, in Corumbá – MS. Its aim was to understand the children‘s receptivity, in alphabet learning process, in listening to stores as a source of literary enjoyment. There were selected to the classical tales and adapted to the children‘s language. They were told through theatrical representations, videos, imagery and puppet shows. This playful relationship between the children and stories will lead them to the literary invention kingdom, and from then on, they will be motivated to read and create their own "inventions". Key-words: Universal tales, story-telling and receptivity.
INTRODUÇÃO A importância de contar estórias para crianças é possibilitar um momento mágico em que o contador de estórias e a criança compartilham o prazer da descoberta de um mundo novo. Este mundo novo é a possibilidade do exercício do imaginário de ambos, sem tanta interferência dos ―ruídos‖ do mundo exterior. Segundo Prieto, teórica que nos auxiliou a compreender essa arte no decorrer do projeto, ―a arte de contar histórias é como resgatar o nosso próprio destino: descobrir a que sonho pertencemos e encontrar caminhos para a própria vida‖. (Prieto, 1999, p.09). A nossa proposta de contar estórias para trinta e cinco crianças do 2º ano do ensino fundamental em uma escola da periferia de Corumbá, onde o descaso e a violência fazem 1
Professora Doutora do curso de Letras, da UFMS - CPAN; rita_van_der_lan@hotmail.com Acadêmica do curso de Letras Habilitação Português /Espanhol, UFMS - CPAN;anejagatta@hotmail.com 3 Acadêmica do curso de Letras Habilitação Português / Espanhol, UFMS-CPAN; gisleymm@hotmail.com 2
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parte do cotidiano dessas, poderá proporcionar as mesmas uma percepção de que a realidade em que vivem pode, ao menos, ser ―sublimada‖ de forma lúdica, a partir das estórias adaptadas pelos acadêmicos. Assim, a identificação dos pequenos ouvintes com as emoções e aventuras dos heróis, mitos, contos de fadas e suas participações e produções artísticas dramatizações, desenhos e brincadeiras - possibilitará que elas vivenciem esteticamente os seus conteúdos, liberte as suas emoções e criem uma atitude mais sensível em relação ao seu comportamento e à realidade em que vivem. Neste contexto, procurou-se não só proporcionar esses momentos tão fundamentais para o exercício do imaginário, da criatividade e ampliação do repertório cultural das crianças, como também buscar, através da experiência empírica, reflexões e idéias de como se dá esse processo, dando ênfase na mútua relação entre as crianças e o contador, as crianças e as estórias, assim como a forma que elas manifestam sua criatividade. Essas constatações poderão contribuir para a valorização desse tipo de prática, assim como proporcionar aos profissionais da educação infantil subsídios que venham a colaborar para a inserção de seus alunos no universo literário. Para tanto, o trabalho desenvolveu-se com a participação de graduandos do curso de Letras–Espanhol, que se comprometeram com o desenvolvimento na escola, com a orientação da professora tutora. A metodologia utilizada foi o levantamento bibliográfico, e como instrumento para coleta de dados, utilizou-se um roteiro de observação e um material de controle (ficha descritiva de cada atividade). Todas as informações foram coletadas pelo grupo de colaboradores no segmento de 10 encontros, de agosto a setembro de 2009, período em que uns apresentavam as estórias e desenvolviam as atividades complementares e os demais coletavam as informações.
DESENVOLVIMENTO E DEMONSTRAÇÃO DOS RESULTADOS É muito importante que as crianças tenham contato desde cedo com as narrativas universais, pois entendemos que desvendar os clássicos é uma maneira de manter viva as estórias de tradição, que tanto tem a nos dizer. Como afirma Calvino apud Machado, ―um clássico é aquele livro que nunca terminou de dizer o que tinha para dizer (...) são livros que as pessoas relêem, mas que qualquer leitura ou releitura é uma nova descoberta‖. (Calvino apud Machado, 2000, p.23). Não estamos desmerecendo nenhum outro tipo de narrativa, mas gostaríamos de vivenciar o encontro do pequeno ouvinte com as narrativas atemporais, e perceber de que forma respondem as estórias. Ana Maria Machado, em seu livro Como e Por que Ler os Clássicos Universais desde cedo motivou-nos nessa investigação. E segundo a autora, ―o que interessa mesmo a esses jovens leitores que se aproximam da grande tradição literária é ficar conhecendo as estórias empolgantes de que somos feitos‖. (Machado, 2000, p. 12). A nossa preocupação inicial foi em relação ao que queríamos com as estórias - abordar conceitos morais ou a ludicidade nelas contidas? E para entendermos essa interrogativa, recorremos a teóricos como Coelho que afirma: Controvérsia que vem de longe: tem raízes na antiguidade Clássica, desde quando se discute a natureza da própria literatura (utile ou Dulce? Isto é didática ou lúdica?) e, na mesma linha, se põe em questão a finalidade da literatura instruir ou divertir? Eis o problema que está longe de ser resolvido. As opiniões divergem e em certas épocas se radicalizam. Entretanto, se analisarmos as grandes obras
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veremos que pertencem a essas duas áreas distintas: a arte e a pedagogia. (Coelho, 2000, p.46). Há muitos séculos, todas as narrativas têm nos proporcionado prazer e têm sido de significativa importância nos momentos aparentemente mais comuns da nossa existência e no desenvolvimento da personalidade. Nesta pesquisa, utilizamos narrativas de diversas categorias, que foram adaptadas à linguagem infantil. Entre as quais, clássicos da mitologia, com A Caixa de Pandora; clássicos bíblicos com Jonas e a baleia; Literatura de cavalaria, com D. Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes y Saavedra, literatura fantástica com O mágico de Oz, de Frank Baum; conto realista, com A pequena vendedora de fósforos, de Hans Christian Andersen, etc. Toda construção de resultados demandou comprometimento e preparo de todos os participantes. Foi preciso muita leitura relacionada a técnicas de contar estórias, recursos desde a escolha das estórias, e adaptações dessas, até a aplicação de atividades relacionadas – para que, após muito ensaio e dedicação, contássemos as estórias de forma segura. A cada encontro íamos amadurecendo, buscávamos observar as reações das crianças, para entendermos como elas percebiam a estória. Como afirma Machado: (...) também não é necessário que esta primeira leitura seja nos textos originais (...), mas creio que deve procurar propiciar é a oportunidade de um primeiro encontro. Na esperança de que possa ser sedutor, atraente, tentador e que possa redundar na consciência na construção de uma lembrança (mesmo vaga) que fique por toda a vida. (Machado, 2002, p.12-13). Desta forma, o grupo ―O contador de estórias‖ priorizou o encontro entre a criança e a estória, levando–as ao exercício do imaginário, possibilitando a construção de suas percepções, como também a libertação de suas emoções através da expressão do seu interior em suas manifestações, criações e invenções. Podemos afirmar que o gosto pelas estórias já está incutido nas crianças, o que ajudounos foi a criação de um horário e dia da semana específico para os nossos encontros, elas esperavam ansiosas, falavam sobre as estórias e perguntavam todos os dias à professora se haveria estória. Nos encontros, ficavam impacientes em saber qual seria a nova estória contada. Notamos mudanças em seus comportamentos, pois nas primeiras apresentações elas se mostraram muito alvoroçadas, no entanto, no decorrer dos encontros as crianças apresentaram–se mais atentas e participativas. Segundo o relato da professora, ocorreram melhoraras expressivas em relação a comportamento, concentração e participação dessas nas aulas, como também maior interesse por estórias.
A RELAÇÃO DOS ALUNOS COM AS ESTÓRIAS Importante destacar que nossa intenção não foi o de encontrar soluções ou ditar regras morais, embora estas narrativas contenham em seu conteúdo implícito grande dose de moral, mas sim despertar a sensibilidade para os clássicos universais, assim como instigar a imaginação e perceber como se dá este processo. Conforme Vigotski: (...) é necessário observar que essa moral exerce uma influencia devastadora sobre a própria possibilidade da percepção artística e da relação estética com o objeto. É natural que sob esta concepção a obra de arte perde qualquer valor autônomo, torna-se uma espécie de ilustração para uma tese moral de cunho geral. O resultado é um
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amortecimento sistemático do sentimento estético, sua substituição por um momento moral estranho à estética e daí a natural repugnância estética que noventa e nove por cento dos alunos que passam pela escola secundária experimentam pela literatura clássica. (Vigotski, 2004, p.328). Dessa forma, entendemos que não é interessante utilizar as estórias como pretexto meramente educativo. Antes disso, é preciso priorizar o lúdico, levar os pequenos ouvintes a experimentarem novas vivencias que, ludicamente, se incorporarão em seu desenvolvimento intelectual e existencial. Segundo Frantz: Não podemos esquecer também que a criança dessa faixa etária vive a fase do pensamento lúdico e a fase do pensamento mágico. Brincar, fantasiar, questionar é a forma utilizada por essa criança para conhecer e explorar a sua realidade, para construir os seus conhecimentos. (Frantz, 2005, p.16). Conseqüentemente, neste encontro da criança com a estória, que tem por objetivo tocar a sensibilidade e curiosidade, proporcionando um momento de fruição, inevitavelmente elas acabam indiretamente assimilando o sentido implícito das estórias. Para exemplificar, ao trabalharmos com o musical Os Saltimbancos – com a versão em português de Chico Buarque - percebeu-se que é pela solidariedade e pela união das forças que o jumento, a gata, a galinha e o cachorro conseguem sobrepujar e vencer as agruras da vida que levaram sob o jugo dos seus patrões e conquistar a liberdade e a construção de uma cidade ideal e harmônica para os seus propósitos. Na dramatização dessa estória, ao assumir o papel de outra pessoa, por exemplo, do trabalhador braçal na figura do jumento; do artista, no caso da gata e do ―guardião da ordem‖, no caso do cachorro, a criança realiza as ações imaginárias dos ―bichos‖ e de alguma forma acaba absorvendo a mensagem da estória, que as ―regras‖ impostas a estes são injustas e os privam da liberdade. Um outro exemplo é o conto A roupa nova do imperador, nesta narrativa, demonstrase bem o papel da sociedade atual, os súditos do rei na história, preferem serem hipócritas a serem sinceros, por temerem ao rei. Em contrapartida Andersen quebra esta convenção com a figura do menino que não se inibe em dizer a verdade, o rei está nu! Neste momento a criança utiliza-se da imaginação, do maravilhoso, atribuindo assim significados a imagem, e estas significações são a força motriz para essa relação entre aluno e estória, pois são exatamente estas construções de significados que a criança vai desenvolvendo internamente, contribuindo para o desenvolvimento de idéias e pensamentos. ―Para a psicanálise o maravilhoso sempre foi e continua sendo um dos elementos mais importante na literatura destinada as crianças (...) a significação simbólica do maravilhoso esta ligada aos eternos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional‘‘.(Coelho, 2000, p.54 ). Entende-se que muitos elementos deste conto contribuem para a formação e desenvolvimento emocional das crianças, por exemplo, a distinção entre a verdade e a mentira muito evidente no papel dos trapaceiros que enganam o rei, e a atitude do menino em dizer a verdade. Desta forma, a criança consegue estabelecer o contato com o real e ―incorporar‖ o conhecimento já produzido pela humanidade. Assim ―encontra-se o inicio da socialização e racionalização da realidade‖ (Coelho, 2000, p.34). Daí a importância do contador de estória que atua como agente estimulador, fundamental não só em levar às crianças ao encontro com o mundo contido no livro como também ao mundo real que se apresenta a partir de suas abstrações e criações.
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Mas o que nos chamou atenção é que na maioria das estórias, as crianças não se interessaram pela moral apresentada e muitas vezes nem a percebiam. Na dramatização do conto A pequena vendedora de fósforos, de Hans Christian Andersen, é notável essa percepção, pois toda a simpatia das crianças ficou com a menina vendedora de fósforos, no entanto, elas não se importaram e não se sensibilizaram com o sofrimento da garotinha, ao contrario, elas riram as gargalhadas na cena em que a garotinha sofria de fome e frio. E ao perguntar qual parte as crianças mais gostaram da estória, uma menina de oito anos respondeu: - a parte que ela ficou deitada no chão (...) , ou seja, ela sequer percebeu que nessa cena a menina havia morrido congelada. De igual maneira, na fábula A galinha ruiva, a simpatia das crianças foi provocada pelos amigos preguiçosos da galinha que, ao invés de ajudar a mesma no plantio, na colheita do trigo, ficaram brincando de peteca, corda, pipa e peão. E essa estória foi tão interessante que, ao final, quando fizemos uma brincadeira de recontar a estória, todas às crianças esqueceram partes das falas da galinha, porém, todas repetiram com exatidão a fala dos amiguinhos preguiçosos que sempre respondiam negativamente ao convite de trabalho a eles propostos. Desta maneira, nunca podemos estar certos do tipo de efeito moral que as estórias contos, fábulas, narrativas – irão exercer na criança ―porque nunca podemos estar certos de que a nossa estimativa lógica venha a justificar-se com exatidão quando aplicada a crianças‖. (Vigotski, 2004, p.327). Cada criança interpreta a estória de acordo com o seu psiquismo que está estruturado em seu conhecimento de mundo. Outro aspecto importante verificado pelo grupo, diz respeito às interferências dos alunos nas estórias. Em diversos momentos ocorreram interferências entre o narrador e os ouvintes; por exemplo, na estória Pinóquio perguntávamos: - o que vocês acham que vai acontecer com Pinóquio? – ou será que Pinóquio voltará para casa? – e, surpreendentemente, elas respondiam, sem hesitar. Neste caso a interferência foi fundamental para o entrosamento dos alunos com relação à narrativa, assim como é o momento em que os pequenos ganham voz e dizem o que pensam. Podemos afirmar que os alunos responderam muito bem à narrativa, mesmo esta sendo um pouco extensa, eles dialogavam com o texto e prestavam muita atenção. No entanto, é preciso ter muito cuidado com essas intervenções, pois ―as crianças devem habituar-se também a ouvir caladas sem interferir, pois a interferência poderia comprometer a atenção das crianças‘‘. (Coelho, 1997, p.44). Em outro momento, na dramatização do mito da Caixa de Pandora, os alunos foram estimulados a questionar o conteúdo da caixa. Como o contador explicara que a caixa que Zeus conferia à Pandora continha algo perigoso para os seres humanos, os alunos lançaram diferentes suposições: cobras, ratos, baratas. O que nos surpreendeu foi a resposta de um aluno que afirmou haver uma bomba na caixa. Enquanto os outros apresentavam em suas suposições ligadas à natureza que os circunda e que pode se tornar ameaçadora para o próprio indivíduo, como por exemplo: barata, aranha, entre outros, o garoto que enfatizou a bomba ―poderia‖ estar fazendo uma leitura perpicaz de sua realidade social. Em várias outras estórias, as crianças, de alguma forma, externavam através de gestos e falas seu interior e sua leitura das narrativas. Como Heloísa Prieto afirma: (...) o próprio professor deve ter consciência de passar impunemente pelo contato com o imaginário dos seus alunos. É necessário ter em mente a subjetividade desse momento em que a própria visão de mundo, a trama das histórias que o envolve, deverá entrelaçar-se com o mundo de cada um. (Prieto, 1999, p.32).
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Cada aluno faz uma leitura particular da estória, e, é muito importante perceber essas diferenças, pois é um momento de troca na qual o aluno tem a liberdade de exterioriza seus sentimentos e o professor pode criar um vinculo maior através de um diálogo na busca de compreensão de determinados comportamentos. Notamos que esse diálogo é muito enriquecedor no desenvolvimento das crianças. Mas o interessante nestas constatações foi perceber que o que interessou de fato ás crianças foi o lúdico, a brincadeira, divertir elas com as estórias.
FORMA DE APRESENTAÇÃO DAS ESTÓRIAS Feita a seleção das dez estórias, estudamos a melhor forma, ou seja, o recurso mais adequado para apresentá-las. Para tanto, recorremos a teóricos que tratam de técnicas e recursos, como Betty Coelho e Dohme. De maneira geral, as autoras apresentam os seguintes tipos de recursos: narrativa simples com ou sem o auxílio do livro; fantoche; dramatizações; imagens, etc. Procuramos utilizar diversos recursos, logo surtiram resultados variados em cada apresentação. Entre as atividades, dramatizamos a Caixa de Pandora, O Mágico de Oz e A Pequena Vendedora de Fósforos. Sem dúvida este recurso foi um dos mais atraentes às crianças. Ficaram maravilhadas com os personagens. No caso de A Pequena Vendedora de Fósforos, a atenção voltou-se para a narradora (contadora), pois as crianças buscavam nela, prever o que aconteceria com a personagem principal. Aí percebemos a importância do preparo do contador, desde a entonação, dicção e domínio da estória, pois se tratava de uma dramatização com o auxílio do narrador. Já nas estórias O Patinho Feio, Os Saltimbancos, e D.Quixote de la Mancha, utilizamos imagens, e esse recurso foi muito positivo, pois os alunos ficaram muito atentos. Por se tratar de crianças de faixa etária de 6 a 7 anos, na grande maioria de nossas leituras os autores ressaltam sob a importância das imagens na consolidação do conhecimento dos pequenos, pois eles estarão explorando o mundo externo, decifrando os diferentes tipos de linguagem. ―Fase em que a criança começa a aprendizagem de leitura e precisa ser seduzida (...) O motivo central deve ser proposto com textos breves, interagindo com os desenhos ou imagens propondo um diálogo que envolva o leitor aprendiz‖. (Coelho, 2000, p.201-202). Na estória A Roupa Nova do Imperador, de Hans Christian Andersen empregamos um vídeo com imagens e um narrador, e essa foi a única estória sem intervenção do contador de estórias. Neste caso, os alunos não responderam de forma positiva, demonstravam-se desinteressados, dispersaram com facilidade e não comentaram ao final. É importante que esses mitos e narrativas não caiam no esquecimento neste mundo moderno e tecnológico; sabe-se que a tecnologia é fator coadjuvante nesse processo, mas não deve tornar-se preponderante. Não devemos deixar a prática de contar estórias de lado numa sociedade em que a praticidade e o imediatismo vêm a comprometer esta arte milenar. De acordo com Battaglia (2003): (...) numa sociedade que valoriza a velocidade, a informação, desvalorizando a experiência, precisamos alargar e diversificar as oportunidades de conhecimento do mundo, possibilitando vivências que façam as crianças se apropriarem de suas histórias de vida, escolhendo-se como cidadãs e sujeitos (Battaglia, 2003, p.118). Neste contexto, procuramos aliar o tradicional (contar estórias) à tecnologia, pois essa mescla enriqueceu a qualidade das estórias e o rendimento das crianças em sala de aula. Essa relação fez-se necessária para o grande êxito desta experiência, pois desde a narração simples
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até uso de imagens pelo reto projetor e datashow, nos auxiliaram e colaboram de forma muito positiva em nossos resultados.
A RELAÇÃO DOS ALUNOS COM O CONTADOR DE ESTÓRIAS A cada encontro com os pequenos ouvintes, éramos surpreendidos por um novo comportamento. Logo na chegada à escola, muitas das crianças vinham nos abraçar, assim como pedir a benção, um comportamento extremamente afetuoso. Esse comportamento de respeito e simpatia, pelo grupo, deixou os encontros com um clima de amizade e cumplicidade, pois os pequenos sabiam que só haveria estórias se colaborassem com os contadores, ficando em silêncio. As crianças de modo geral, mesmo algumas vezes demonstrando-se agitadas, apresentaram bom comportamento durante as estórias; o grupo não precisou de grandes esforços para deixá-las mais calmas. Um dos teóricos ao qual recorremos para entender essa relação de afetividade entre aluno e professor, no caso, aluno e contador, foi Piaget. Segundo a ótica piagetiana, o afeto desempenha um papel essencial no desenvolvimento da inteligência, pois segundo esse teórico, ―vida afetiva e vida cognitiva são inseparáveis, embora distintas‖ (Piaget, 1977, p.16). Ressalta ainda que, sem afeto não há interesse, motivação pela aprendizagem, ou, no caso, o interesse pela escuta de estórias só vai se construindo a partir dessa mútua relação de trocas entre o aluno e o contador. Desta forma, procuramos proporcionar um território seguro onde os pequenos ouvintes pudessem depositar confiança e assim expressarem mais espontaneamente, suas emoções, aprovações ou reprovações. Acreditamos que este comportamento afetuoso da parte das crianças para com os contadores de alguma forma esteja interligado à realidade social e familiar dessas crianças. Na ultima apresentação O mágico de Oz, notamos grande carga afetiva das crianças para com os contadores, ficaram emotivos e interagiram com a estória. No final, quando nos despedimos deles, todos abraçaram os personagens e fizeram comentários como: - eu gostei muito da estória (...), foi muito legal (...), vou sentir saudades! Outro ponto importante é a oralidade, assim como a expressão corporal do contador teve papel fundamental para o êxito desse recurso. ―O bom contador, não se senta e fica falando impávido, o corpo deve acompanhar o que está sendo descrito, os gestos devem ser coerentes com a narração, usados para reforçá-la‖. ( Dohme, 2000, p.45). Toda a preparação por parte do contador foi fundamental, pois, todas as técnicas estudadas colaboraram de forma positiva com a receptividade das crianças.
CRIAÇÕES E PARTICIPAÇÕES DOS ALUNOS Para Vigotski, não há uma fronteira impenetrável entre a fantasia e a realidade. Segundo esse pensador, tanto a atividade lúdica quanto a atividade criativa surgem marcadas pela cultura e mediadas pelos sujeitos com quem à criança convive. Entendemos que com a nossa pesquisa, ao contar estórias, poderemos observar nas crianças, ao se envolverem em um mundo ilusório e imaginário, a possibilidade de realização de desejos que não podem ser realizados no seu cotidiano. A cada encontro, após as estórias contadas, partíamos para as atividades subseqüentes. Segundo Betty Coelho (1997), a estória funciona como um agente desencadeador de criatividade, inspirando cada pessoa a manifestar-se, expressivamente, de acordo com a sua
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preferência. Durante os encontros, desenvolvemos atividades diversificadas: desenhos, relatos, dramatizações, músicas, mímicas, brincadeiras. Antes e após a contação de estórias, travávamos um diálogo com as crianças de modo a criarmos uma atmosfera propícia, mais atraente, que envolvesse os alunos. Nesse diálogo, perguntávamos, por exemplo: - Alguém já ouviu falar de Dom Quixote? Alguns respondiam: - Sim...! Mesmo não tendo conhecimento da estória, se manifestavam, e, ao final das estórias, era comum ouvirmos: - Conta de novo (...), Mais uma vez (...). Percebemos que a maioria das crianças se expressavam com frases curtas, coordenadas, mas sempre atribuindo significados à estória. Vale ressaltar que estamos diante de uma diversidade de pensamentos e ―quando se ignora a diversidade cultural do seu grupo de alunos, em um país de população heterogênea como o Brasil o educador cria um espaço de incomunicabilidade‖ (Prieto, 2001, p.31). E diante dessa heterogeneidade, respeitando-se as particularidades, observamos manifestações variadas em relação às criações artísticas dessas crianças, por exemplo: havia crianças que escondiam seus próprios trabalhos, outras corriam para mostrar aos contadores, assim como percebemos que alguns demoravam mais para buscar inspiração. No quesito participação, notamos que as crianças, a cada encontro, mostravam-se mais participativas do que de início. Olhares desconfiados na expectativa transformaram-se em olhares desinibidos, cheios de entusiasmo. Por exemplo, na estória A galinha ruiva, solicitamos a participação dos pequenos para relatar a estória à sua maneira. Em um dos relatos, uma garotinha contava a seqüência dos fatos corretamente, mas não lembrava o nome dos personagens. Ela dizia: - e aí a coisa dizia: eu não (...) e aí a outra coisa dizia eu não(...). Um dos ouvintes se manifestou e disse: - não é assim, tá errado. Neste momento, todos caíram as gargalhadas. Então falamos que a estória pertencia a ela, portanto, ela poderia contar a estória do jeito que achava melhor. Em outros momentos, trabalhamos com a dramatização de estórias, como O Patinho feio, deixando-os à vontade para interpretar a leitura que fizeram da estória. Foi trabalhada também a mímica, com a qual eles tinham que representar uma personagem da estória Pinóquio. No último encontro apresentamos O Mágico de Oz; ao final da encenação, solicitamos aos alunos que assim como a personagem Doroty que pediu à boa fada para voltar para casa, que fizessem um pedido também. Todos falaram no ouvido da fada, mas o grupo resolveu mudar de estratégia solicitando que cada criança falasse em voz alta o que queria ser quando crescer. Surtiram respostas como: ―quero ser médica‖, ―quero ser professora‖, ―eu quero ser um policial, soldado‖, ―quero ser lixeiro‖, e um deles disse ―eu quero ser o homem de lata‖. Essa criança se identificou com o personagem e desejou com sinceridade ser igual a ele. Este processo é muito importante para a criança, pois é aqui que ela é estimulada através do exercício do imaginário a apresentar de maneira criativa os seus devaneios e a sua leitura do mundo ou a sua releitura da estória através de suas manifestações artísticas. A criança interpreta a simbologia das narrativas e suas representações de acordo com suas vivências, e é muito enriquecedor a esta, compartilhar com os outros essas vivências, permitindo assim uma interação com as outras crianças, enfim com o mundo exterior.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados da pesquisa apontaram que utilizando-se o lúdico, a brincadeira de contar estórias, podemos proporcionar as crianças uma maneira mais atraente de se relacionar com as estórias. Através da experiência empírica, buscamos atentamente observar como se dá
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a receptividade das crianças com alguns dos clássicos universais. Neste contexto, procuramos relacionar nossas observações com teóricos como, Bety Coelho, Zilberman, Frantz, Nelly Coelho - que discutem literatura infantil, Piaget - voltado a desenvolvimento da criança e questões de estética com Vigotski, para darmos maior credibilidade a nossos resultados. Os aportes teóricos foram fundamentais na construção da demonstração dos resultados. Foram coletadas muitas informações em nossos encontros, e para proporcionarmos uma apresentação mais clara e objetiva, buscamos selecionar as informações que julgamos mais pertinentes. O principal objetivo da pesquisa foi verificar como se dá a receptividade das crianças em processo de alfabetização. O primeiro aspecto discutido foi à relação da criança com as estórias. Aqui constatamos que nem sempre a criança corresponde de maneira direta ao sentido moral existente da estória. Como Vigotski aponta, a moral percebida pela criança nem sempre corresponde à mensagem que o professor espera que ela compreenda. Como já exemplificamos em A galinha ruiva ao invés da criança identificar com a ―ética do trabalho‖ a importância da cooperação, elas se identificaram com a repetição das falas, compartilhando com os personagens ao responderam ―-eu não‖, como forma de resposta ao pedido da galinha. Nunca sabemos ao certo o sentido que a estória terá, cada estória é uma surpresa, a criança atribui a ela um sentido muito particular. Sabemos da importância da moral das estórias, mas essa moral não deve se sobressair sobre a percepção artística que nasce a partir da relação estética da criança com a estória. Pois é esta relação lúdica entre as crianças e as estórias que levará as mesmas ao interesse pelo ―reino da invenção‖ literária e, a partir daí, ficarão motivadas a ler e exteriorizar suas criações, ou seja, suas próprias ―invenções‖. Num segundo momento, procuramos entender a relação entre a criança e o contador de estórias. Sabemos da importância dos teóricos na elaboração dos resultados, mas nada tira o prestígio da experiência de convívio na escola com os pequenos. A cada encontro uma descoberta, proporcionando um grande envolvimento entre alunos e o grupo de contadores, e essa troca de atenção e estímulo foi extremamente importante, tornando-se o alicerce do nosso convívio, a troca de afetos e respeito entre criança e contadores foi o que sustentou todo o processo possibilitando resultados muito satisfatórios durante as atividades. Paralelo ao desenvolvimento cognitivo está o conhecimento afetivo ―afeto inclui sentimentos, interesses, desejos, tendências, valores e emoções em gerais‖. (Piaget, p.22). Piaget um dos estudiosos que buscou entender como é construído o conhecimento da criança, nos auxiliou a compreender a função da afetividade para o desenvolvimento intelectual infantil. Entendemos que a afetividade vem antes do cognitivo, pois se proporcionarmos uma atmosfera propicia e atraente ao aluno, na qual este se sentirá motivado e seguro, certamente suas chances de interesse pelas estórias serão maiores. Outro aspecto discutido, diz respeito às manifestações artísticas das crianças. ―A história não acaba quando chega ao fim‖ (Coelho, 1997, p.59). Foi fundamental darmos continuidade às estórias, através de atividades lúdicas relacionadas à estória, pois isto ajudou a criança a desencadear sua criatividade, através da brincadeira, desenho, relatos, dramatizações. Neste momento é que percebíamos com maior precisão a leitura delas em relação às estórias. O que chamou-nos atenção foi à autonomia que elas foram ganhando no decorrer do processo, de início tínhamos certa dificuldade em fazê-las participar principalmente nas dramatizações, depois brigavam para representar. Ademais todas estas constatações verificadas no decorrer do processo, foi possível perceber mudanças significativas no comportamento dos alunos. A cada encontro as crianças demonstravam-se mais envolvidas com as estórias, mais atentas e participativas. Segundo relato da professora regente dos alunos do 2º ano ocorreram melhoras expressivas em relação
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a comportamento, pois os alunos tornaram-se mais participativos nas aulas, demonstraram maior interesse pelas estórias e aumento da concentração nas disciplinas de modo geral. Outro recorte que julgamos importante discutir são os recursos utilizados nas apresentações. Utilizamos desde a narração simples até suportes tecnológicos como datashow e retro-projetor. O interessante foi perceber que muito dos recursos apresentaram-se de forma muito positiva às crianças, exceto a utilização de vídeo com a narração própria, sem interação do contador. Estas averiguações indicam que é possível utilizar tanto recursos tradicionais como tecnológicos, para despertar o interesse dos alunos, na tentativa de se trabalhar com leitura de estórias em sala de aula. Estas constatações servirão para subsidiar e orientar educadores ao trabalharem estórias voltadas à oralidade, como fonte de apreciação literária. A narrativa centrada na oralidade é uma maneira muito divertida e prazerosa de proporcionar a criança esse primeiro encontro. Dessa forma acreditamos que a literatura aliada à arte de contar estória é profícua para iniciar nossas crianças neste universo cheio de descobertas, pois oportunizará a elas maneiras diferente de ver e entender sua realidade, assim como incutir nelas o gosto pela leitura.
REFERÊNCIAS BATTAGLIA, S. M. F. A Criança e a Literatura. IN : DIAS, M. C. M. & NICOLAU, M. L. M.(Orgs).Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP : Papirus 2003. COELHO, Betty. Contar histórias – uma arte sem idade. São Paulo: Ática, 1997. COELHO, Nely Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática / Nely Novaes Coelho. – 1. ed.São Paulo:Moderna,2000. DOHME, Vânia D´Angelo.Técnicas para contar histórias.São Paulo: Informal Editora, 2000. FRANTZ, Mª Helena Zancan. O ensino da literatura nas séries iniciais. Ijuí: Unijuí, 2005. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo.Rio de Janeiro:Objetiva,2002. PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança – imitação, jogo e sonho, imagem e representação. RJ – LTC – 1973. PRIETO, Heloísa. Quer Ouvir Uma História?Lendas e Mitos no Mundo das Crianças. São Paulo: Angra Ltda, 1999. VIGOTISKY, Levin Semenovich. Psicilogia Pedagógica – L.S. Vigotiski: tradução do russo e introdução de Paulo Bezerra. – 2ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2004. ZILBERMAN, Regina. Literatura e Pedagogia Ponto e Contraponto. São Paulo: Global, 2008.
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O PROCESSO DE FORMAÇÃO D“A ROMANA”: ANOTAÇÕES SOBRE O ROMANCE DE ALBERTO MORAVIA Luciano Marcos Dias Cavalcanti1 Cilene Margarete Pereira2 Sem os valores normativos é inevitável que a humanidade transforme em valores os fetiches: dinheiro, consumo, poder, força, produção, sexo, os cacos da assim chamada existência. (Alberto Moravia) Resumo: Em 1947, Alberto Moravia, consagrado pelo sucesso de seu primeiro romance Os indiferentes (1929), publica A Romana. Narrado na primeira pessoa, o romance acompanha a trajetória da protagonista e narradora Adriana rumo à prostituição. Nesse processo de inserção ao mundo luxurioso, Adriana rompe com seus valores e anseios, inicialmente centrados na constituição de uma família modelar. Este artigo propõe uma reflexão sobre o romance A Romana a partir de seu diálogo com a ―estética realista/naturalista‖, sobretudo como resposta aos desejos da literatura italiana do pós-guerra – marcada anteriormente por uma narrativa hermética e obscurantista – e com a ―narrativa de formação‖ – na medida em que explora o amadurecimento da personagem no tempo e espaço narrativos. Palavras-chave: ―construção narrativa‖; ―estética realista/naturalista‖; ―formação de personagens‖. EL PROCESO DE FORMACIÓN DE A ROMANA: NOTAS SOBRE LA NOVELA DE ALBERTO MORAVIA Resumen: En 1947, Alberto Moravia, consagrada por el éxito de su primera novela Os indiferentes (1929), publica A Romana. Narrado en primera persona, la novela sigue la trayectoria de la protagonista y narrador Adriana hacia la prostitución. En el proceso de introducir el lujo de mundo, Adriana saltos con sus valores y aspiraciones, centrándose inicialmente en el establecimiento de un modelo de familia. Este artículo propone una reflexión sobre la novela A Romana de su diálogo con el "realista/naturalista estética", sobre todo como una respuesta a los deseos de la literatura italiana de posguerra: seleccionada previamente por una narrativa hermético y oscurantista – y con la narración de "formación", en la medida en que explora la maduración del personaje en la narrativa tiempo y espacio.
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Doutor em Teoria e História Literária/Unicamp; Pós-Doutorando em Literatura Brasileira/UNESP-Araraquara (bolsista FAPESP); autor de vários artigos em periódicos especializados e de Música Popular Brasileira e Poesia: A valorização do “pequeno” em Chico Buarque e Manuel Bandeira, publicado pela Editora Paka-Tatu (2007); e-mail: bavarov@terra.com.br.
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Doutora em Teoria e História Literária/Unicamp; Pesquisadora Colaborada do IFCH/Unicamp; Professora do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Vale do Rio Verde (UNINCOR); autora de vários artigos em periódicos especializados e de A assunção do papel social em Machado de Assis: uma leitura do Memorial de Aires, publicado pela Editora Annablume em parceria com a FAPESP (2007); e-mail: polly21@terra.com.br.
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Palabras clave: "creación narrativa"; "realista y naturalista estética"; "formación de caracteres". Em 1947, Alberto Moravia publica A Romana,1 dezoito anos depois de seu primeiro romance Os Indiferentes (1929), sua narrativa de maior sucesso. Ao contrário do texto de 1929, em que havia excessiva fragmentação das personagens e das situações; 2 em A Romana, o que se nota primeiramente é que Moravia quer, antes de tudo, contar uma história. A narrativa, centrada na primeira pessoa, é apresentada linearmente acompanhando a vida da narradora Adriana dos 16 anos aos 21anos. Nesse trânsito temporal (cerca de cinco anos), a moça torna-se prostituta. O romance é protagonizado, assim, por uma adolescente em processo de inserção no mundo adulto, evidenciando a formação e o crescimento emocional e psíquico da personagem feminina – caracterizado, sobretudo, pelo tom reflexivo da narrativa.3 A narração juvenil aproxima A Romana de Os indiferentes, já que há também um distanciamento do costumeiro olhar adulto. No romance de 1929, os protagonistas são Miguel – primeiro anti-herói do romance italiano – e Carla, jovens irmãos que assistem inertes e indiferentes à desconstrução da família burguesa.4 Pela descrição acima, é possível perceber que A Romana dialoga conceitualmente com a estrutura do ―romance de formação‖ (Bildungsroman),5 narrativa originária no Iluminismo Alemão que teve como paradigma do gênero a obra de Goethe, Os anos de aprendizagem de
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A Itália, nesse momento histórico, passa por um retrocesso cultural. De acordo com Moravia, de 1945 a 1968, em toda sociedade italiana (que na década de 30 havia passado por uma revolução política) ―são abolidos os regulamentos – psicológicos, morais, consuetudinário – por imposição do regime fascista, em particular à sua burguesia‖. (Moravia, apud Ajello, 1986, 45). 2
Os indiferentes apresenta uma estrutura narrativa teatralizada, na qual o reduzido número de personagens – todas dotadas de duplicidade – e de espaços sugere uma sensação claustrofóbica e dissimulada. Sobretudo em Miguel concentra-se a força temática do romance, já que a personagem está inerte, falta-lhe o desejo de ter desejo. 3 ―Gisella era minha melhor amiga, e Gino o meu noivo: hoje posso julgá-los com frieza, mas naquela época minha cegueira a respeito deles era total. Já disse que considerava Gino perfeito; quanto a Gisella, percebia talvez seus defeitos, mas, em compensação, achava que tinha um bom coração e que gostava de mim, atribuindo sua solicitude pela minha vida não ao despeito de saber-me inocente e ao desejo de me corromper, mas a uma bondade mal compreendida e desviada.‖ (Moravia, 1982, 64). 4
Moravia observa esse aspecto como um indicativo do sucesso literário de Os indiferentes: ―Não existia, então, nem romances nem romancistas na Itália, exceto Italo Svevo. Com exceção dele, era necessário recuar até 1910 - quase vinte anos antes - para encontrar D'Annunzio, que apresentava os burgueses transfigurados em heróis. Sim, na obra de D'Annunzio, todos os burgueses eram heróis! E foi isso que fez o sucesso de Gli Indifferenti: eu tinha mostrado a burguesia tal como ela era, muito pouco heroica‖. (Moravia, apud Chapsal, 2011, sem página). 5
O conceito inaugural do ―romance de formação‖ deve-se ao filósofo Karl Morgenstern que, em 1820, assim o definiu: ―[Tal forma de romance] poderá ser chamada de Bildungsroman, sobretudo devido a seu conteúdo, porque ela representa a formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um grau determinado de perfectibilidade; em segundo lugar, também porque ela promove a formação do leitor através dessa representação, de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romance‖. (Apud Maas, 2000, 46); ―Sob o aspecto morfológico, é relativamente fácil a compreensão do termo Bildungsroman. Por um processo de justaposição, unem-se dois radicais – (Bildung – formação – e Roman – romance) que correspondem a dois conceitos fundadores do patrimônio das instituições burguesas‖. (Maas, 2002, 13).
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Wilhelm Meister (1795-1796).1 Em Estética da Criação Verbal, Mikhail Bakhtin, preocupado em construir uma tipologia do romance a partir da análise espaço-temporal e da imagem do herói, observa algumas particularidades do Bildungsroman, ressaltando que neste tipo de narrativa, a imagem do herói já não é uma unidade estática mas, pelo contrário, uma unidade dinâmica. Nesta fórmula de romance, o herói e seu caráter se tornam uma grandeza variável. As mudanças por que passa o herói adquirem importância para o enredo romanesco que será, por conseguinte, repensado e reestruturado. O tempo se introduz no interior do homem, impregna-lhe toda a imagem, modificando a importância substancial de seu destino e de sua vida. (Bakhtin, 1992, 237, grifos do autor). Os comentários de Bakhtin a respeito do ―romance de formação‖ alcançam, em parte, a narrativa de Moravia, que dialoga com o gênero ao traçar o percurso de amadurecimento/formação de sua heroína – aspecto fundamental em qualquer ―narrativa de formação‖. Apesar disso, A Romana não comporta uma grande dinamicidade da personagem levando à reestruturação do enredo romanesco conforme sugere Bakhtin. A personagem moraviana parece atender, antes, a um estado embrionário inequívoco, fazendo com que a narrativa dialogue também com o naturalismo. Em outras palavras, por mais que o romance de Moravia esteja inscrito na tradição da ―narrativa de formação‖ ou possa ser associado a esta por explorar o amadurecimento de sua personagem em uma trajetória espaço-temporal; ele parece apontar certa previsibilidade no destino da protagonista Adriana em sua inserção ao mundo do sexo pago e da negação dos sonhos familiares e amorosos.2 Essa concepção ―naturalista‖/―fatalista‖ na trajetória da personagem tem intenção de evidenciar a postura política do livro/do autor de denúncia social3 - nas palavras de Adriana: ―sensação de servidão e desumanização‖. Mas no mesmo instante em que aceitei esse meu destino senti uma dor lúcida e aguda. E uma repentina clarividência, como se o caminho da vida, geralmente tão escuro e tortuoso, se tivesse de repente aberto diante de mim reto e claro, me revelou de estalo tudo aquilo que perderia em troca do silêncio de Astarita. Meus olhos se encheram de lágrimas, e cobrindo o rosto com o braço comecei a chorar. 1
―O romance de formação tem um papel de enorme envergadura na literatura alemã em geral, um papel que, em países como França e Inglaterra, é desempenhado pelo romance social‖, segundo observa Karin Volobuef (1999, 43). 2 Talvez o romance de Moravia possa ser associado ao tipo formativo que Bakhtin apresenta como dotado de uma ―temporalidade cíclica‖, que ―consiste em representar (...) certo modo de desenvolvimento típico, repetitivo, que transforma o adolescente idealista e sonhador num adulto sóbrio e prático – uma trajetória que, no final, é acompanhada de graus variáveis de cepticismo e resignação.‖ (Bakhtin, 1992, 238). Próximo deste está o tipo ―biográfico ou autobiográfico‖, em que a transformação do heroi se dá no tempo por meio de um ―conjunto de circunstâncias, de atividades, de empreendimentos, que modificam a vida. E o destino do homem que se constrói, e, ao mesmo tempo, este se constrói, constrói seu caráter‖. (Bakhtin, 1992, 239). 3
No famoso prefácio de Il sentièro dei midi de ragno (A trilha do ninho das aranhas), de 1964, Calvino anunciava: ―Já nos anos cinquenta, o quadro estava mudado, começando pelos mestres: Pavese morto, Vittorini fechado em silêncio de oposição, Moravia que, em um contexto diferente, vinha adquirindo um outro significado (não mais existencialista, mas naturalista) e o romance italiano tomava o seu curso elegíacomoderado-sociológico, no qual todos terminamos por escavar um nicho mais ou menos cômodo (ou por encontrar as escapatórias)‖. (Calvino, 2004, 22).
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Compreendi que corava de extrema resignação, e não de revolta; e, de fato, mesmo entre as lágrimas senti que mexia as pernas em direção a Astarita. (Moravia, 1982, 83, grifos nossos). Como eu, Gisella esperava acertar na vida um dia, e suponho que essa seja uma esperança comum a todas as mulheres da minha espécie. Mas para mim representava um anseio natural, enquanto para Gisella, que dava importância à opinião do mundo, era sobretudo uma questão social. Ela temia que os outros pensassem que ela fosse o que era, embora levada a sê-lo por uma vocação muito mais profunda que a minha. Eu, pelo contrário, não me envergonhava; apenas tinha, em certos momentos, uma sensação de servidão e desumanização. (Moravia, 1982, 249, grifos nossos). O romance A Romana é dividido em duas partes, compostas, respectivamente, por nove e onze capítulos apenas numerados. Esta divisão tem por finalidade expor de forma mais direta e explícita as mudanças da protagonista (principalmente de seus valores normativos) e sua progressiva entrada no mundo da prostituição. Esse procedimento narrativo apresenta vantagens e desvantagens. A maior desvantagem diz respeito à própria construção linear da história que, se por um lado assegura fluidez ao contado – é nítida a sensação do romanesco e de sua evolução –; por outro parece apontar para um tradicionalismo que não existia no primeiro romance de Moravia. Aliás, a fragmentação excessiva de Os indiferentes era seu maior e principal trunfo narrativo. A quebra das situações – que ocorriam em curtíssimo espaço temporal, (algo próximo de 48 horas) – dava à narrativa um aspecto moderno e experimental e marcava a própria fragmentação da realidade vivida por seus personagens em franca decadência financeira e moral. A maior vantagem narrativa da divisão do romance em duas partes se associa ao seu próprio andamento da história, pois Moravia tem a intenção de narrar o amadurecimento da protagonista Adriana e os agentes responsáveis por sua formação. Isso só é possível se ele explorar intensamente a linearidade do texto. No começo da segunda parte, por exemplo (capítulo primeiro), Adriana já se apresenta como prostituta, diferenciando-se de sua ―sósia‖ e ―amiga‖ Gisella no modo de atuação profissional: Agora, eu e Gisella, mais do que amigas, éramos sócias. Não concordávamos, é verdade, quanto aos lugares a frequentar, pois Gisella preferia os restaurantes e os lugares de luxo, e eu, os bares mais modestos ou até mesmo a rua: mas tínhamos estabelecido, mesmo para essa diferença de gostos, uma espécie de acordo, e nos revezávamos, uma acompanhando a outra a seus lugares preferidos. (Moravia, 1982, 179). A Romana é, portanto, um texto bem diverso de Os indiferentes; não importa aqui a Moravia as estratégias narrativas de fragmentação e desconstrução, mas o contato permanente e direto com a realidade e a vida, com a sociedade e seus aspectos políticos – dispostos, muitas vezes, na escolha antagônica de suas personagens: um agente da repressão fascista (Astarita); outro revolucionário (Giacomo), por exemplo. A simplicidade narrativa de Moravia, conseguida graças à linearidade do romance e às constantes explicações de sua protagonista, evidencia também sua postura intelectual de rompimento com qualquer posição elitizada da arte, que pretenda separar literatura e vida ou
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que almeje a chamada ―arte pura‖.1 A opção por uma narrativa sem rebuscamento estilístico é explicada pelo autor a partir de sua inserção na tradição fabular: ―Eu, por exemplo, nasci narrador, contador de fábulas: quando criança, estando sozinho, contava romances a mim mesmo, em voz alta. Tratava-se de instinto, de impulso obscuro e violento que não tinha qualquer necessidade de escrita.‖ (Moravia, 1995, 92). Ao contrariar o perfeccionismo estilístico de Flaubert, Moravia chama a atenção para a verdadeira missão do romancista, o exercício do ―instinto de narrador‖: Flaubert escreveu bem demais, ao menos Madame Bovarry. A Educação Sentimental é obra já fluida, há mais estrutura, menos obsessão estilística: mas também aí falta a instinto do narrador. Nem se fale das obras mais detestáveis de Flaubert, como Salambô. A narração fica inteiramente emperrada. Não segue adiante, fica estagnada. Ouve-se uma espécie de ―rom rom‖ insuportável. (Moravia, 1995, 92). Exercendo seu ―instinto de narrador‖, Alberto Moravia percorre um caminho distinto da tendência literária italiana da década de trinta, na qual a literatura sente a influência do fascismo pela forte tendência de desempenho político e refúgio na torre de marfim literária, presente em revistas como a ―Ronda‖ e ―Solária‖ (eliminada quando se torna ponto de referência cultural muito independente do regime), pela ―prosa d‘arte‖ e pela poesia hermética que aparecem ambiguamente como ―defesa de valores poéticos que certamente se opunham às instruções da política fascista, mas ao mesmo tempo eram evasões da realidade, que não permitiam a denúncia da trágica situação daqueles anos‖. (Squarotti et alli, s/d, 125-126). Mas a experiência da guerra (e do pós-guerra) confere outra posição ao escritor: a de inserção na realidade e de denúncia – aspecto que pontua o ―naturalismo‖ existente em A Romana. De fato, esse novo posicionamento interessa mais de perto Moravia, assim como atingia Elio Vittorini e Cesare Pavese. O primeiro, em Conversa na Sicília (1941), apresenta o ―abstrato furor de Silvestro (...) do homem que sente a tragédia da história mas só pode se mover à margem dela...‖ (Calvino, 2009, 11); o segundo polemiza com os herméticos ao escrever poemas nos quais habitam operários, barqueiros e bêbados, sem nos deixar esquecer ―que o protagonista não é o operário ou o bebedor, mas o homem que os está observando de viés, da mesa oposta da taberna, e que gostaria de ser como eles mas não sabe.‖ (Calvino, 2009, 11-12). De acordo com Squarotti et alli, entre 1943 e 1945, a Itália passa por um período de agitação cultural interdisciplinar em vários campos do conhecimento, acentuado pela guerra e pela experiência da ―Resistência‖ como oposição declarada ao fascismo. A literatura passa, então, a refletir sobre temas antes censurados: a miséria, a opressão dos camponeses, a luta 1
Moravia assume que mantém um movimento criativo duplo que vai da ―narrativa mais popular‖ a ―intelectualizada‖: ―... após uma evolução formal muito complicada, tentei duas experiências paralelas: de uma vez escrevi um romance sobre as ‗massas‘, de outra vez sobre os intelectuais. Costumo alternar. Escrevi A Romana e, em seguida, A Desobediência. Depois escrevi L'amore conjugale, seguindo-se Il conformista. Ultimamente escrevi A ciociara, a história de uma prostituta, e agora estou a escrever um romance em que o herói é um pintor‖. (Moravia, apud Chapsal, 2011, sem página). Em outro momento da entrevista, afirma: ―Na minha opinião, não existem hoje mais do que duas formas de romances possíveis: o romance de ideias e o romance popular‖. (Moravia, apud Chapsal, 2011, sem página).
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política, a condição operária, a catastrófica situação nacional são tópicos que ganham relevância. Depois da libertação, e já durante tanto tempo mantida em silêncio, afirma-se uma ânsia de dizer, de comunicar as coisas mais simples e diretas. Nasce um impulso que deseja, afinal, encontrar o real, longamente deformado pela retórica do regime, ou mascarado pela introspecção e pela metafísica. Existe uma busca pela presença, depois de tantos anos de hermética ―ausência‖. Aquilo que, entre 1945 e 1955 assume o nome de ―neorrealismo‖, com uma aproximação explícita do realismo ottocentesco para além de todos os experimentalismos do Novencento, fundamenta-se essencialmente numa esperança de imediatismo: é uma busca do contato direto e total entre autor e leitor, entre obra e público, é uma tentativa de comunicação, de aprofundamento da relação entre literatura e sociedade. (Squarotti et alli, s/d, 538).12 A realidade da guerra e do pós-guerra aflora em A Romana na projeção que há do regime fascista e da posição revolucionária por meios de dois importantes personagens: Astarita e Giacomo, respectivamente, – ambos amantes de Adriana.13 Em 1947, ano da publicação do romance, não é possível a Moravia escrever sem se referir a essa realidade tão próxima e perturbadora. Escrever, para Moravia, não quer dizer fugir da realidade, mas o contrário: envolver-se nela, conferir-lhe presença. A experiência formal está intrinsecamente ligada ao real, e o romance, na concepção de Moravia, só pode ser experimental até os limites da experiência. Para exorcizar seus fantasmas, o escritor tem de enfrentá-los diretamente no ato da escrita: essa parece ser a opção de Alberto Moravia e de outros escritores italianos dessa época. A Romana se coloca, portanto, dentro de uma perspectiva mais ―realista‖; e deve ser lido, como nos explica Giorgio Squarotti, a partir da proposição de que todos os romances de Moravia nada mais são do que divagações ensaístas que, no entanto, rejeitam códigos ensaísticos para adotar os 12
A importância da experiência narrativa fica bastante óbvia no prefácio que Italo Calvino faz em 1964 para Il sentièro dei nidi di ragno (A trilha do ninho das aranhas), ao ―narrar‖ a ―mania de contar‖ que assolara os escritores e o povo depois da guerra: ―Ter saído de uma experiência – guerra, guerra civil – que não poupara ninguém, estabelecia uma comunicação imediata entre o escritor e o seu público: estávamos frente a frente, em pé de igualdade, cheios de histórias para contar, cada qual tivera a sua, cada qual vivera vidas irregulares dramáticas, aventureiras, roubávamos as palavras uns da boca dos outros. a renascida liberdade de falar para as pessoas foi, de início, vontade incontrolada de contar: nos trens que recomeçavam a funcionar, apinhados de gente e de sacos de farinha e de latas de óleo, cada passageiro narrava aos desconhecidos as vicissitudes por que havia passado, e assim cada cliente às mesas dos ‗refeitórios do povo‘, cada mulher nas filas dos estabelecimentos comerciais; o cinzento das vidas cotidianas parecia coisa de outros tempos; movíamo-nos em um multicolorido universo de histórias.‖ (Calvino, 2004, 6).
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Astarita, o agente da repressão fascista, introduz no mundo de Adriana a violência ao estuprá-la e exigir-lhe, por meio de chantagem, seu silêncio e resignação. Num primeiro momento, a violência de Astarita a leva a refletir sobre seus sonhos familiares, reiterando-os para, logo, anulá-los em detrimento de uma mudança interior: ―Agora, pensava, nada mais me impediria de casar e levar a vida que aspirasse. Mas ao mesmo tempo sentia que minha alma estava irremediavelmente mudada, e que lá, onde por um tempo houvera tantas esperanças frescas e ingênuas, havia agora uma segurança e uma determinação muito mais forte, embora de uma força triste e sem amor‖. (Moravia, 1982, 84).
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da escrita convencional do romance, só que esvaziada e como que impostura do exterior. (...) Nesse sentido, Moravia consegue retratar vícios e mesquinhezes dos burgueses e pequenos burgueses, com um realismo provocatório e irredutível ao clima da cultura dominante da Itália fascista, menos desossados, mostrando uma participação mais calorosa e apaixonada, e aí temos textos como Agostini (1944) e La romana (1947), dedicados à temática sexual como forma de conhecimento do mundo. E são textos sem dúvida mais ―belos‖, com laivos de lirismo e esperança utópica, mas também tradicionais com relação a outras obras moravianas. (Squarotti et alli, s/d, 524-525). Romances como A Romana estão inscritos, assim, dentro de uma perspectiva de formação do individuo a partir da compreensão de sua sexualidade; do vigor da vida, que desperta tão intensamente na protagonista Adriana. Nesse sentido, mais do que nunca a experiência do outro/do corpo do outro se faz necessária e fundamental para sua própria construção da identidade: ―minha força não consistia em desejar ser aquilo que não era, mas em aceitar o que era‖ (Moravia, 1982, 219). Nesse trânsito com o outro, a categoria do gênero se impõe a partir de um desdobramento conceitual importante: de um lado estão as mulheres responsáveis pelo ―despertar sexual‖ da protagonista por meio da valorização do corpo e da beleza postos a serviço do ―mundo do trabalho‖; do outro se assomam as figuras masculinas dotadas, todas, de funções que desnaturalizam os sonhos da protagonista, isto é, promovem o processo de desromantização da visão de amor e família de Adriana. Do lado feminino estão, portanto, a mãe da protagonista – não nomeada propositadamente para estender o significado de seu papel materno distante do convencionado – e Gisella, modelo que a inicia na prostituição. Aos dezesseis anos eu era uma verdadeira beleza. Tinha o rosto de um oval perfeito, estreito nas têmporas e mais largo embaixo, os olhos compridos, grandes e suaves, o nariz reto descendo da testa numa única linha, a boca grande, com lábios bonitos, vermelhos e carnosos, que rindo mostravam dentes regulares e muito brancos. Mamãe dizia que eu parecia uma madona. Percebi minha semelhança com uma atriz de cinema que fazia sucesso naquela época, e comecei a pentear-me como ela. Mamãe dizia que, se meu rosto era bonito, meu corpo o era cem vezes mais; corpo como o meu, dizia, não tinha outro em Roma. Naquele tempo eu não ligava para o meu corpo, achando que a beleza estava toda no rosto, mas hoje posso dizer que mamãe estava certa. (Moravia, 1982, 7).14 mamãe, entusiasmada, começou a dizer para o pintor: - veja só que seios... que quadris... veja que pernas... onde é que o senhor vai encontrar seios, pernas e quadris como esses? - E falando me apalpava, como se faz com os animais no mercado para incentivar os compradores. (Moravia, 1982, 8).
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Este trecho inicia o romance de Moravia, apontando algumas características importantes de sua protagonista: a beleza, a similaridade com um ícone cinematográfica (e sua imitação), mas, sobretudo, a aceitação (depois da vivência e da reflexão) do veredicto da mãe sobre a importância do corpo.
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A ausência paterna e o estado de privação – possivelmente alargado depois da morte do pai da protagonista – ajudam a problematizar a importância da mãe de Adriana na formação do caráter e dos valores da filha, em seu ―processo de educação‖, sobretudo ―sentimental‖. Mamãe (...) fazia grande planos a meu respeito; mas eram, como percebi logo, plano que excluíam qualquer arranjo do tipo que eu pretendia. Ela pensava, em resumo, que com minha beleza eu poderia aspirar a qualquer tipo de sucesso, mas não me tornar mulher casada, com família, como todas as outras. Éramos muito pobres, e minha beleza se lhe afigurava a única riqueza que dispúnhamos, e, como tal, não apenas minha, mas também dela, não fosse, como já disse, por outro motivo, senão por ter-me posto no mundo. E no seu entender devia utilizar essa riqueza sem qualquer respeito pelas conveniências, para melhorar nosso estado. (...) Numa situação como a nossa, a ideia de fazer minha beleza produzir era a primeira que lhe poderia ocorrer. Mamãe empacou naquela ideia e nunca mais saiu dela. (Moravia, 1982, 15). Ambas (mãe e filha) moram em um pequeno apartamento construído para ferroviários em um conjunto habitacional no subúrbio de Roma. Depois da morte do pai, Adriana começa a posar para pintores e a ajudar a mãe no corte e na costura de camisas, únicos sustentos da escassa família. Para ressaltar o estado de privação/exclusão de sua protagonista, Moravia reporta-se à imagem do parque que a menina nunca pode frequentar; o que prevalece em Adriana é a sensação da descoberta de algo que antes apenas intuía: Talvez não tivesse essa sensação de mundo feliz proibido, se mamãe, durante minha infância, não me tivesse mantido distante do parque, assim como de qualquer outra diversão. Mas a viuvez de mamãe, sua pobreza, e, sobretudo, sua hostilidade para com as distrações que a sorte não lhe prodigalizava, não me permitiram pisar no parque, como, de resto, em todos os lugares de diversão, a não ser bem mais tarde, quando fiquei moça e me temperamento já estava formado. Deve ser por isso, provavelmente, que me ficou para toda a vida uma espécie de suspeita de ter sido excluída do mundo alegre e cintilante da felicidade. Suspeita da qual não consigo libertar-me sequer quando tenho certeza de estar feliz. (Moravia, 1982, 14). O confronto ideológico entre mãe e filha15 é, assim, exasperado a partir das insistentes divagações da narradora a respeito dos seus ―desejos familiares‖, seja na descrição simplória de um lar visto por entre janelas ou nas aspirações maternas de sobrevivência, seja nas promessas falsas do namorado Gino: Numa noite de verão, passeando com a mãe pela avenida, vi, através das janelas de uma daquelas viletas, uma cena familiar que me ficou gravada e me pareceu corresponder perfeitamente à ideia que eu tinha de uma vida normal e decente. Uma sala pequena mas limpa, com papel de parede florido, uma cristaleira e uma lâmpada central 15
Adriana, no entanto, busca entender a posição materna: ―pobreza, servidão e poucas alegrias logo encerradas com a morte do marido. Era natural, se não justo, que considerasse a vida honesta e familiar como uma desgraça, tentando evitar que eu me deixasse atrair pelas mesmas miragens que a tinham arruinado.‖ (Moravia, 1982, 16).
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suspensa sobre a mesa posta. Ao redor da mesa, cinco ou seis pessoas, entre as quais, me parece, três crianças de oito a doze anos. No meio da mesa uma sopeira; e a mãe, que, de pé, servia a sopa. Pode parecer estranho, mas daquelas coisas todas a que mais me impressionou foi a luz do lustre central; ou melhor, o aspecto extraordinariamente sereno e normal que as coisas adquiriam naquela luz. (Moravia, 1982, 14-15). Mamãe pensava sempre no meu futuro, e logo começou a ficar descontente com minha profissão de modelo. Achava que ganhava pouco; além disso, os pintores e seus amigos eram pobres e nos estúdios não havia esperança de faze encontro úteis. Mamãe cismou de repente que eu podia tornar-me bailarina. Vivia cheia de ideias ambiciosas, enquanto eu só pensava (...) numa vida tranquila, com marido e filhos. (...) Ela não considerava a profissão de bailarina muito lucrativa em sim, mas, como repetia sempre, ―uma coisa puxa outra‖; e, aparecendo num palco, havia sempre a possibilidade de encontrar um cavalheiro rico. (Moravia, 1982, 17). - Uma moça com você (...) deve ficar em casa e talvez até trabalhar... mas num trabalho honesto... que não a ponha em condições de sacrificar sua honra... uma moça como você deve casar, ter casa, filhos e ficar com o marido. Era exatamente o que eu achava, e não sei nem exprimir minha felicidade ao perceber que ele pensava da mesma forma, ou pelo menos parecia pensar. (Moravia, 1982, 28). Ao lado da mãe de Adriana surge Gisella – espécie de eco que sussurra o valor da beleza como meio de vida. De personalidade bem diversa da de Adriana, ela é a responsável, enfim, pela iniciação da protagonista no mundo da prostituição. A capacidade perceptiva da moça – já iniciada no mundo das aparências – é apresentada ao leitor através do reconhecimento de Gino como um falsário: ―você disse que ele era alto, e, ao contrário, é quase mais baixo de que você... tem olhos fingidos que não encaram a gente... nunca fica natural e fala de jeito rebuscado que a gente vê logo que não está dizendo o que pensa... e depois, esse alarde todo, e é chofer.‖ (Moravia, 1982, 65-66, grifos nossos). Para Gisella, aspectos sociais (e seus símbolos) são componentes importantes para avaliação da pessoa. É assim que ela irá aliciar Adriana, promovendo a humilhação da amiga a partir da exaltação de símbolos de status que a moça não possui – a começar pelo rebaixamento da profissão servil de Gino. É por meio de Gino, no entanto, que se tem a iniciação subjetiva de Adriana ao mundo luxurioso e comercial do sexo: o namorado é responsável, em parte, pela primeira desilusão amorosa – pela ―renúncia aos antigos sonhos de uma vida decente e normal‖ (Moravia, 1982, 137), levada a cabo pelas mãos grosseiras e violentas de Astarita –, ao mesmo tempo em que a apresenta ao mundo burguês ao introduzi-la na casa dos patrões. Esse deslocamento espacial promove a percepção do outro e da carência material em que vive: E pensei que não poderia considerar-me feliz enquanto não conseguisse vestir-me bem e viver numa casa como aquela. Quase me deu vontade de chorar, e sentei-me atordoada na cama, sem dizer nada. (Moravia, 1982, 45-46).
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Assim, num momento, só por ter visto aquela casa, eu estava muito diferente da moça tímida e ingênua que há pouco tinha entrado; e isso me surpreendia, e eu achava quase difícil reconhecer-me. (Moravia, 1982, 47). Adriana pode ser caracterizada como uma espécie de anti-heroína, já que transita em um universo moral pouco acessível a aquilo que se convencionou como heroicidade romanesca. Ao dar voz narrativa a uma prostituta, Moravia pontua o romance pelo privilégio da temática sexual – assim como fará, mais tarde, em A Ciociara (1957). Este aspecto nos sugere, antes de qualquer outra investigação, pensar a respeito da caracterização do texto moraviano como erótico, libertino ou pornográfico. Moravia, acostumado às reprovações morais de seus livros, discorria sobre a sexualidade de suas personagens de modo didático, enfatizando, a princípio, um ―problema de designação‖: o que antes se afirmava por ―amor‖ é agora designado por ―sexo‖. (...) no mundo moderno não existem muitos valores seguros e sólidos, sendo o sexo um desses valores. Ora, o escritor tem necessidade de se basear naquilo que, a seus olhos, represente uma certa realidade. Outros escritores apoiam-se sobre o dinheiro; em Stendhal, por exemplo, existe a missão social. Para mim, talvez seja o sexo. (Moravia, apud Chapsal, 2011, sem página). É comum recorrer a estas definições (erótico, libertino, pornográfico) sempre que qualquer obra remeta o leitor para um conteúdo cujo objeto seja a sexualidade. Essa caracterização, muitas vezes depreciativa e deslocada, atingiu vários escritores: de Boccaccio a Jean Genet, passando por Bocage, Oscar Wilde, Flaubert, Laclos e Sade.16 Este tipo de categorização esboça um evidente preconceito estético ao procurar distinguir uma obra do restante das produções literárias valendo-se de rótulos que, nem sempre adequados e/ou corretos, pretendem traduzir marcas diferenciadoras entre os gêneros literários – ―gêneros sérios‖ e ―não sérios‖. Nesse sentido, a representação erótica, como aponta José Antônio Durigan, foi e ainda costuma ser marotamente colocada a nível das coisas não sérias (ou demasiadamente sérias), rebaixada ao nível das manifestações imorais, irrelevantes, apolíticas, menores, desagregadoras e perigosas, ou incentivada até uma saturação restritiva (a constante repetição do mesmo, do igual, reduz e restringe). (Durigan, 1985, 10-11).17 O que se nota, em A Romana, é a necessidade de Moravia construir uma escrita libertária, que, ao mostrar os segredos do cotidiano de suas personagens – no qual o sexo 16
Além de escritor ―erótico/pornográfico‖, por muitas décadas Moravia também recebeu o rótulo do protótipo do escritor engajado, que assinava manifestos, participava de polêmicas e avançava na linha de frente. Ver: Entrevista sobre o escritor incômodo – realizada por Nello Ajello. Trad. Pedro Gascez Ghirardi. Civilização Brasileira: São Paulo, 1986. 17
―A relação entre a prefixação de espaços para a representação sexual e o comportamento ambíguo das metalinguagens obrigou o erótico a refugiar-se no domínio do implícito, do não dito, das entrelinhas, do sussurro, que, com o tempo, passaram a ser aceitos quase como suas características absolutas.‖ (Durigan, 1985, 11). Neste romance, Moravia parece, em certos momentos, romper com essa determinação do texto ―erótico‖, sendo, muitas vezes, explícito e provocante na narração de suas cenas, estimulando o realismo de seu texto.
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assume a condição de ―bem de consumo‖ e ―valor moral‖ –, produz uma espécie de inventário da condição humana, sufocada pela mordaça do desejo sublimado, ora por condicionantes religiosos, ora manipulado por sanções socioculturais ou ideológicas como ocorre com Giacomo, estudante de Direito e amante de Adriana, na segunda parte do romance. Giacomo, moço oriundo de uma família burguesa, representa a possibilidade de Adriana romper com o mundo comercial do sexo e se inserir no espaço familiar que tanto ansiava: Sua família, pelo pouco que pude deduzir, porque não gosta de falar nela, era exatamente uma daquelas famílias nas quais, nos meus vagos sonhos de normalidade, teria gostado de nascer. Uma família tradicional, com um pai médico e dono de terras, uma mãe ainda jovem, que ficava muito em casa e só pensava no marido e nos filhos e três irmãs bastante frívolas e um irmão. O pai, é verdade, metia-se em tudo e era uma autoridade local, e a mãe era carola, as irmãs bastante frívolas e o irmão maior um doidivanas da espécie do seu amigo Giancarlo, que a mim, nascida em condições e entre pessoas tão diferentes, não pareciam sequer defeitos... A família, além disso, era muito unida, e todos, tanto os pais como os irmãos, gostavam muito de Mino. A mim parecia que tinha muita sorte em ter nascido numa família assim. Ele, pelo contrário, alimentava contra a família uma antipatia, um desagrado que eram para mim absolutamente incompreensíveis. (Moravia, 1982, 316-317). Mais do que desejar a concepção de família representada pela de Giacomo, o que Adriana parece buscar é a sensação de ordem e de organização,18 do conforto do enquadramento social, isto é, aquilo que é negado, artificialmente, pelo jovem revolucionário – que, como todas as personagens masculinas do romance, apresenta duplicidade. No caso de Giacomo, a duplicidade é ideológica. Ao mesmo tempo em que nega esse modelo burguês (representado pela família) – e se recusa ao sexo por entendê-lo como meio de alienação social19 –, repudia o popular: 18
Por isso as imagens comparativas à organização/limpeza são tão recorrentes no romance: ―Eu estava muito impressionada pela vila da patroa de Gino, e me parecia inevitável que só houvesse felicidade entre coisas bonitas e limpas. Percebia que nunca teríamos condições de possuir, não digo uma casa como aquela, mas nem sequer um quarto daquela casa; entretanto, obstinadamente, esforçava-me por superar essa dificuldade, explicando-lhe que até mesmo uma casa pobre pode parecer rica se for realmente limpa como um brinco. (...) Tentava convencer Gino de que a limpeza pode tornar bonitas as roupas feias; mas na realidade, desesperada com a ideia de minha pobreza e ao mesmo tempo consciente de que o casamento com Gino era o único meio de que dispunha para sair dela, queria sobretudo convencer a mim mesma.‖ (Moravia, 1982, 48-49); ―Não sei qual o ímpeto que me dominava. Era talvez o mesmo que impulsiona a dona da casa, encontrando a paz somente após uma longa negligência, a limpar a própria casa, encontrando a paz somente após varrer o último grão de poeira, a última penugem escondida debaixo dos móveis ou nos cantos. E realmente todos os detalhes da minha história, libertava a alma e a mente e me sentia mais leve e limpa‖. (Moravia, 1982, 289).
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Adriana refere-se a essa negação sexual do namorado como ―aspiração à castidade‖ sem entendê-la de fato, já que em sua concepção o sexo é libertário: ―Ele não se conformava em me amar, a não ser com muita relutância e muito remorso, como quem se decide a fazer e sabe que não deveria fazer. Mas eu tinha certeza de que seu mau humor não duraria muito e que seu desejo por mim, por mais combativo e odiado que fosse, seria definitivamente mais forte do que aquela estranha aspiração à castidade.‖ (Moravia, 1982, 302). Para a personagem revolucionária, o sexo estaria ligado a uma posição conformista, aprisionadora. Sua duplicidade ideológica fica evidente também nisso, já que, apesar das recusas, envolve-se sexualmente com Adriana.
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- Os ricos são horríveis... mas o pobre, embora por razões diferentes, não são certamente melhores. - Seria mais simples – disse – confessar francamente que você odeia todos os homens sem distinção. Riu e respondeu: - de forma abstrata, quando não estou entre eles, não os odeio... aliás, eu os odeio tão pouco que acredito na sua capacidade de melhorar... se não acreditasse, não me meteria em política... mas, quando estou com eles me repugnam ... Realmente acrescentou de repente com ar sofrido - , os homens não valem nada. (Moravia, 1982, 320, grifos nossos). A negação de Giacomo parece estar voltada, dado seu niilismo, ao próprio homem, incapaz, segundo ele, de se constituir (na essência) em algo melhor do que a mentira – por mais que o discurso do jovem sugira o contrário. Assim, todos, inclusive ele próprio, vão sendo rotulados de farsantes: - Ou você não sabe que este mundo é o mundo do ―como se‖... o mundo do ―como se‖? Não sabe que, desde o rei até o mendigo, neste mundo todos se comportam ―como se‖... o mundo do como se‖, do ―como se‖, do ―como se‖ ... (Moravia, 1982, 332). A questão da farsa e da duplicidade de Giacomo se faz mais presente na cena em que o jovem e preso delata – sem ameaças ou tortura – todos os seus amigos à polícia. O interrogatório é feito por Astarita, com quem Giacomo se simpatiza por sua função, identificando-se ao regime fascista: ... quando a gente renuncia e não sabe ser aquilo que quer, aparece aquilo que é... ou não sou eu por acaso filho de um rico proprietário de terras?... e aquele homem, na sua função, não estava defendendo meus interesses? reconhecemo-nos como pertencentes à mesma raça... solidários na mesma causa... O que é que você está pensando? Que o achei simpático pessoalmente? Não, não. Achei simpática sua função... senti que era eu quem o pagava, eu a quem ele defendia, eu que estava atrás dele como dono, apesar de estar na frente como acusado. (Moravia, 1982, 365). Não é sem razão que Giacomo torna-se, via Astarita, um agente da repressão fascista que tem o papel de ―vigiar os ricos‖ aliados à resistência: ... é isso que vou fazer... vou ter um bom salário, morar nos hotéis de primeira classe, viajar nos melhores trens, comer nos melhores restaurantes, vestir-me num ótimo alfaiate, frequentar as praias de luxo, as estações de esqui mais renomadas... afinal, quem é que a senhora está pensando que sou? (Moravia, 1982, 381). O desnudamento promovido pelo texto de Moravia atinge tanto o universo feminino quanto masculino: as situações ficcionais expõem as figuras da mulher (principalmente) e do homem no enfrentamento de suas próprias vicissitudes, carências e traumas, através de uma escrita sem disfarces. Então percebia que minha angústia não era devido ao que fazia, mas sim, mais profundamente, ao simples fato de viver, que não era nem
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ruim nem bom, mas somente doloroso e insensato. (Moravia, 1982, 173). Ademais, o romance de Moravia dialoga com problemas sociais da Itália contemporânea ao livro. Nesse caso, como classificar A Romana como um texto pornográfico e apolítico? As descrições sexuais (pontuais no romance) estão a serviço do realismo narrativo pretendido por Moravia, já que sua protagonista é uma prostituta. Sua iniciação sexual de Adriana revela, no entanto, uma particularidade: a disposição sexual tratada com tintas naturalistas. Gino me repetia ao ouvido, diligentemente, palavras doces e frases persuasivas, com a intenção visível de me atordoar para que não percebesse que, enquanto isso, suas mãos tentavam me despir; mas era desnecessário, em primeiro lugar, porque eu tinha decidido entregarme a ele, e, em segundo, porque agora odiava essa minha roupa antes tão amada, e ansiava por ver-me livre dela. Nua, pensava, seria tão bonita, ou mais, do que a patroa de Gino e todas as outras mulheres ricas do mundo. Por outro lado, havia meses que meu corpo esperava esse momento, eu o sentia, a contragosto, palpitante de impaciência e de força reprimida, como um animal faminto e amarrado, ao qual, finalmente, após longo jejum, tiram-se as amarras e se oferece comida. (Moravia, 1982, 48, grifos nossos). A questão do gênero – tratado no âmbito da figuração ficcional – se impõe ao texto de Moravia a partir da escolha de sua protagonista. Em ―O miolo do leão‖, ao dissertar sobre a figuração dos dois tipos de heróis na narrativa italiana (―o protagonista lírico-intelectualautobiográfico‖ e ou aquele ligado à ―realidade social popular ou burguesa, metropolitana ou agrícola-ancestral‖), Italo Calvino observa a frequência feminina na literatura italiana, seja na criação artística, seja na protagonização de narrativas. Para ele as poucas exceções à recusa de representar (...) a inteligência, os poucos exemplos de determinação intelectual, moral ou de ação, encontramos nos personagens femininos de alguns de nossos escritores, e os encontramos com muita frequência, ora realizados poeticamente, ora só no plano das intenções, nos livros das escritoras. (Calvino, 2009, 14). Além do caso exemplar de Adriana em A Romana; A Ciociara tem como personagens principais a viúva Cesira (também levada à prostituição) e sua filha Rosetta. O que poderíamos designar apenas como um recurso didático pós-hermético; para Calvino, significa a construção de uma personagem por inteiro e não apenas ―formada de lirismo‖. (Calvino, 2009, 15). Ao optar pela protagonização e focalização feminina – de uma mulher ―fadada‖ pelas condições sociais e educacionais à prostituição –, Alberto Moravia não só dialoga com a tradição literária italiana de sua época – ―a comprovação de que a figura tradicional do intelectual está derrotada‖ (Calvino, 2009, 15) –, mas reafirma seu desejo de romper com as amarras da estrutura burguesa – essencialmente patriarcal –, sustentando algo que já estava posto em seu primeiro romance Os indiferentes. Ao final do romance, depois o suicídio de Giacomo e grávida de um assassino (Sonzogno) – o filho é fruto também de um estupro –, Adriana tem o amparo da família do jovem revolucionário e a possibilidade real de romper com o passado de privação e subserviência sexual. Positivando sua narrativa, Moravia se distancia do naturalismo fatídico
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do início, sugerindo sua crença no ser humano, em sua capacidade de superação. A imagem é dada por intermédio da nudez grávida da protagonista e das premonições de Giacomo – responsável indiretamente pela criação da criança: De repente encontrei-me deitada na cama, a luz da lâmpada refletida no meu ventre nu. Apertava as coxas, não sei se por frio ou vergonha, e cobria o sexo com as mãos. Mino me olhava, e depois disse: - Agora o seu ventre vai inchar... vai inchar cada vez mais... e um dia a dor vai obrigá-la a abrir as coxas que você aperta agora tão ciumentamente... e a cabeça já cabeluda do menino surgirá, e você o empurrará para a luz, e o pegarão e o porão nos seus braços... e você será feliz... e haverá mais um homem no mundo... (Moravia, 1982, 401). A protagonista chega ao fim de uma trajetória reafirmando os valores que a conduziam no início, aos dezesseis anos, inaugurando um novo ciclo em que a maternidade assume uma função essencial de formação/educação de outro ser/outra família/outra sociedade.
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PORNOEROTISMO OU ARTE PORNOERÓTICA? A ESCRITURA OBSCENA DE HILDA HILST Mailza R. Toledo e Souza1 RESUMO: Distinguir erotismo e pornografia não é tarefa fácil, principalmente se pensarmos estes conceitos à luz das teorias pós-modernas, segundo a qual não se destrói o valor da ―verdade‖, mas realmente se questiona as condições dessa verdade (Hutcheon, 1991, p.31). Em termos gerais, podemos dizer que a pornografia encontra-se dentro do campo semântico do erotismo. O erotismo é um universo vasto, de intensidade sensorial onipresente e que pode expressar, em certos contextos, o extremismo essencialmente fetichista, forçadamente ejaculatório e impessoal da pornografia. Neste artigo buscaremos demonstrar de que forma o pornográfico e/ou o erótico se configura na trilogia ―pornográfica‖ de Hilda Hilst, que aqui preferimos nos referir como obscena, ainda que artisticamente literária, problematizando as tensões limítrofes destes conceitos neste conjunto de textos e suas relações sociais, políticas e existenciais. Palavras-chave: pornografia, erotismo, pornoerotismo; Hilda Hilst ABSTRACT: To distinguish eroticism and pornography is not an easy task, especially when these concepts are analyzed by the light of the postmodern theories, according to which the value of the "truth" is not destroyed, but the conditions of this truth are actually questioned (Hutcheon, 1991, p.31). In general terms, we can say that the pornography belongs inside the semantic field of the eroticism. The eroticism is a vast universe, of omnipresent sensory intensity and able to express, in certain contexts, the essentially fetishistic extremist, compulsorily ejaculatory and impersonal aspects of the pornography. In this article we will aim to demonstrate through which forms the pornographic object and / or the erotic object is shaped in the "pornographic" trilogy of Hilda Hilst, whom here we prefer to consider as obscene, although artistically literary, setting up a free discussion about the bordering tensions of these concepts in this set of texts and their social, political and existential relations. Keywords: pornography, eroticism, porno-eroticism; Hilda Hilst
Erotismo vem de Eros, deus grego do amor, enquanto pornografia vem de pornos, referente à prostituta. Para Barthes (1984, p.89), há uma distinção entre o desejo ―pesado‖ da pornografia e o desejo leve e bom do erotismo, onde o pornográfico desvirtuaria o erótico. Mas o erotismo, mesmo quando francamente assumindo o terreno da pornografia, é portador de certa luz e equilíbrio, contrariando os preceitos deturpados preconizados pela moral religiosa cristã que ainda hoje incentiva a auto-castração voluntária, a mesma moral que partiu do ―amai-vos uns aos outros‖ para terminar nas torturas monstruosas seguidas os assassinatos de um número desconhecido de centenas de milhares de vítimas inocentes do Tribunal da Santa Inquisição. Por outro lado, se pensarmos a pornografia como um desejo pesado ou sinistro, a ela estarão associados os exageros insaciáveis que fazem do parceiro(a) um mero personagem a 1
Doutora pela USP na área de Estudos Comparados com a tese “Do corpo ao texto: a mulher inscrita/escrita na poesia de Hilda Hilst e Paula Tavares. E-mail: izarodrigues_46@hotmail.com
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ser utilizado na associação mental sexo = sujeira = satisfação imediata a qualquer custo. Não há espaço para qualquer espécie de respeito humano ou qualquer preocupação para com os sentimentos e necessidades do outro, apenas sua transformação em fetiche da vez, promovendo uma distinção básica com a emoção erótica que considera a hipótese de envolvimento amoroso em longo prazo, enquanto que a emoção pornográfica fatalmente nos separa – nos deixa na solidão, tão logo uma das partes, raramente ambas, se considerar sexualmente saciada. Nesse sentido, a pornografia nos remete ao ―erotismo dos corpos‖ segundo a concepção batailleana. É justo neste ponto que os dois conceitos voltam a se aproximar, pois o ―erotismo dos corpos‖ postulado por Bataille (1987, p.18) franqueia amplo espaço à violência, que encaminha à perda da razão e leva o homem ao resgate da animalidade. Mas a distinção permanece ainda no fato de que a pornografia não ultrapassa as dimensões da fisicalidade animalesca, sendo que a dor e o prazer devem se combinar, de forma tosca e improvisada, na construção de fetiches e obsessões de consumo oportunista e, freqüentemente, predatório a ponto de tornar-se, algumas vezes, criminoso. O erotismo, por sua vez, ainda segundo os postulados batailleanos, ultrapassa a fisicalidade animalesca, alcançando a consciência do homem, colocando, assim, o ser em foco, o qual pode também apresentar graus variáveis de insanidade e de patologia social, logo o ponto nevrálgico da discussão não seria apenas o grau de obscenidade presente em qualquer obra artística, mas o de perturbação emocional que uma obra erótica ou pornográfica possa expressar e incitar. No centro desse universo obscuro onde esteticamente tateia-se entre o grotesco e o belo, devemos definitivamente reconhecer a luta filosófica e literária de Sade, Masoch e até mesmo de Hilda Hilst, posto que cada qual, a seu modo e em seu tempo, conseguiu singularmente imprimir seu erotismo resvalando calculadamente nas fronteiras da pornografia deixando, como legado artístico, a possibilidade vivida de instalação de sentido e harmonização entre ambos. Sendo assim, não buscamos aqui definições conceituais estanques acerca do erotismo e da pornografia, pois, no contexto pós-moderno, já não há mais espaço para verdades absolutas, estamos trilhando os caminhos do risco, sem dados que nos viabilizem a assegurar fatos, sem modelos a oferecer, e sem garantias. Nessa perspectiva, o conceito de erotismo e sua representação encontram-se interligados a tudo o que a sociedade vê como erótico, recebe-o e assim o assimila. Constatando-se essa dificuldade em reconhecer fronteiras, não podemos instituir a representação pornográfica como antítese da erótica. Constatamos, porém, que há, em alguns aspectos, a sobreposição, porque do ponto de vista cultural não há fatos estanques, há possibilidades que se interligam. Entretanto, se por um lado não podemos excluir a possibilidade de interseção entre a representação erótica e a pornográfica, por outro, não podemos reduzi-la, posto que o erotismo não possa ser restringido ao obsceno, pois nele não se esgota em face de sua dimensão intrinsecamente humana. Ao contemplarmos a escritura hilstiana, percebemos que a maneira como a autora utiliza-se do elemento erótico traz uma singular inovação na linguagem poética brasileira, além disso, consciente ou inconscientemente os traços de sua personalidade impregnam sua obra, o comportamento dela meio ―rude‖, direto, trouxe à arte poética um novo dinamismo, a tensão narrativa movimentou a poesia, a inserção poética influenciou o ritmo da narração, criando, deste modo, uma nova maneira de se fazer arte Insatisfeita e desapontada com a receptividade de sua obra, tanto junto à crítica quanto com o público, ela decidiu publicar a chamada trilogia obscena, que na verdade trata-se de uma tetralogia: O caderno rosa de Lori Lamby (1990); Contos d'escárnio/ Textos grotescos
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(1990) e Cartas de um sedutor (1991), em prosa, e um volume em forma de poemas intitulado Bufólicas (1992)1. Embora não tenha obtido a repercussão que esperava, pois seus textos passam bem longe da pornografia banal do gosto popular, ela abriu caminho à revitalização da literatura erótica elevada à categoria de arte literária e, em certo nível, também da literatura pornográfica. Nesse conjunto de obras, Hilda Hilst mostra que o obsceno, se o entendermos no sentido da origem etimológica do termo como ―aquilo que está fora de cena‖, está presente tanto na pornografia mais chula quanto no erotismo mais refinado. De certa forma, ela foi profética, ao delinear em sua obra erótica/obsceno o crepúsculo literário da obscenidade erótica/pornográfica, na medida em que, comparada às obras ditas eróticas dos últimos dez anos evidencia-se, inequivocamente, um progressivo enfraquecimento do lado estético do obsceno, que vai sendo anulado em manifestações explicitamente grosseiras e/ou apenas pornográficas. Em suma, o pornográfico e também o erótico são considerados obscenos, na medida em que promovem a transgressão ao interdito imposto à sexualidade. Ainda que o erotismo o faça de forma mais sublime, através de metáforas e sugestões; enquanto que a pornografia, por sua vez, o faz de forma mais crua e reveladora, com imagens diretas dos órgãos genitais ou das praticas sexuais, muitas vezes aberradas e até escatológicas, configuram-se como uma transgressão exercida de forma mais agressiva com a finalidade de derrubar os tabus sociais. Sendo assim, buscaremos por em foco e em discussão as imagens que possam nos indiciar as diferenças ou possíveis conexões entre o erótico e o pornográfico nas obras hilstiana supra citadas. Essa ilustração é válida por demonstrar que, apesar dessa variação de linguagem, oscilante entre o erótico e o pornográfico, nos referidos textos hilstianos permanece a busca pelo sentido sócio-existencial da temática erótica, através de sua textualização. O caderno rosa de Lori Lamby (CRLL) e Contos d'escárnio/ Textos grotescos (CETG) foram publicados no mesmo ano, 1990, sendo este último o segundo a ser publicado e Cartas de um sedutor (CS) o terceiro em 1991, no ano seguinte, formando a tetralogia obscena, foi publicado Bufólicas, em estrutura poemática. Na trilogia narrativa, aberrações sexuais, incesto, pedofilia, prostituição infantil, fetiches, sexo com animais e toda ordem de desordem comportamental são apresentados de forma natural e, por vezes, até romântica pelos narradores, seja pela pequena Lori e por seu pai (CRLL), por Crasso e Hans Haeckel (CETG) ou por Karl e Stamatius (CS) que, de certa forma, representam um duplo alterego da autora. A própria Hilda Hilst em várias entrevistas declarou que decidiu escrever literatura pornográfica a que ela mesma se referiu como ―Vou fazer uma coisas porcas‖ 2, para vender mais e se alegrar um pouco. Talvez ela tenha realmente se divertido, mas o objetivo de vender mais e fazer ―umas coisas porcas‖ não foram atingidos, certamente não atingir o primeiro objetivo foi conseqüência de não ter alcançado o segundo, posto que aquilo que a autora conseguiu, realmente, foi extrapolar todas as formas possíveis de transgressão, até mesmo a do gênero pornografia, pois: Misturando as aventuras sexuais de Crasso a ataques a Ezra Pound, às editoras e às letras brasileiras, a escritora constrói sua 1
2
Neste texto, porém, abordaremos somente as obras estruturadas em prosa. Em entrevista concedida à equipe de CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Instituto Moreira Salles. N.0.8.
Outubro de 1999. p. 30.
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ficção criando situações e tipos que desestabilizam o pornográfico. Como a pornografia é um discurso veiculador do obsceno (exibe o que deveria estar oculto) e por isso é espaço do proibido, do interdito, daquilo que não deveria ser exposto (a sexualidade fora do lugar), ao inserir em sua narrativa elementos supérfluos a esses atributos, Hilst ―destempera‖ a matéria pornográfica. (Azevedo Filho, 2002, p.28). Portando, conforme observado na citação acima, pela densidade textual e sofisticação da narrativa, composta por estratégias retóricas como a ironia, por exemplo, a trilogia modelada por um discurso bivocal, resultante da intenção de ironizar e da duplicidade de narradores, não consegue enquadrar-se ao gênero pornográfico, pois apesar de algumas cenas explicitas: ―... jogo tudo fora, me atiro em cima de Eulália, a xota engole o meu pau, agora ela senta sobre a minha cintura, toda esticada Eulália, é fina quando foder...‖ (HILSt, 2002, p. 127), a pornografia, assim como o erotismo, passa a ser um dos elementos constitutivos da narrativa e não sua matéria-prima principal, e talvez por isso a própria autora tenha nomeado o conjunto como um ―porno-chique‖ ou ―erótico-pornô‖. Ao iniciar a leitura do CRLL, o leitor, já na segunda página, escandaliza-se pelo tom infantil, banal e inocente com que a pequena Lori, uma menina de oito anos, apresenta-se e conta ―do jeito que sabe‖ suas ―brincadeiras‖ luxuriosas decorrentes de sua suposta prostituição infantil, articulada pelos próprios pais, e escritas posteriormente em seu caderno rosa. O que escandaliza mais não é a prostituição em si, mas o fato de que a menina não apresenta nenhum sinal de trauma, maus-tratos, medo, vergonha ou qualquer outra característica que possa vitimá-la, como espera ―a moral e os bons costumes‖. Já de saída a situação, criada pela autora, coloca em questão o sentido da inocência, pois tudo em Lori inspira inocência, exceto ou inclusive o fato de que ela vivencia com naturalidade a sua sexualidade: Eu deitei com a minha boneca e o homem que não é tão moço pediu pra eu tirar a calcinha. Eu tirei. Aí ele pediu para eu abrir as perninhas e ficar deitada e eu fiquei. Então ele começou a passar a mão na minha coxa que é muito fofinha e gorda, e pediu que eu abrisse as minhas perninhas. Eu gosto muito quando passam a mão na minha coxinha. Daí o homem disse para eu ficar bem quietinha que ele ia dar um beijo na minha coisinha. Ele começou a me lamber como meu gato me lambe, bem devagarinho, e apertava gostoso o meu bumbum. ... Mami avisou o homem que só pode pôr o dedo senão dói. E foi uma delícia. Eu queria mais... Agora eu não vou contar mais porque a mami chamou para eu tomar leite com biscoito (Hilst, 2005, p.13-17) A descrição do ato sexual segue por três páginas e conforme o fragmento do relato acima, Lori encara as relações que mantêm com o moço tão naturalmente como irá ―tomar leite com biscoito‖, pois além de não demonstrar nenhum trauma ainda ressalta o prazer que sente ao declarar que ―foi uma delícia‖. E é este o tom de toda a narrativa registrada no caderno rosa, a crueza do léxico pornográfico é suavizada pela linguagem infantilizada da narradora mirim, um exemplo disso são as formas diminutivas que ela emprega para se referir aos órgãos sexuais: ―coisinha‖, ―piupiu‖, ―coninha‖, ―xixoquinha‖, ―xixiquinha‖, ―abelzinho‖, além da simplicidade e da restrição do seu repertório lingüístico que caracterizam a linguagem infantil: ―aquela coisa tão dura‖, ―coisa-pau‖, ―coisona‖, entre outras. Tal caracterização, porém, não atenua as imagens, o que tornaria as relações sexuais apenas sugestivas, como é mais comum na linguagem erótica, e nesse aspecto há uma
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aproximação maior ao discurso pornográfico, mas esta obscenidade revelada com tanta clareza não é suficiente para caracterizarmos a obra como meramente pornográfica, já que por trás dos muitos arranjos retóricos e estilísticos elaborados pela autora, está a sua crítica ferina ao mercado editorial, e sendo assim podemos considerar que Lori é a voz da ironia hilstiana que ataca também a sociedade de consumo, pois a menina se inicia sexualmente para ajudar os pais financeiramente e para comprar as coisas que vê ―na televisão e na escola. Aquelas bolsinhas, blusinhas, aqueles tênis e a boneca da Xoxa.‖ (Ibidem, p.18) e depois acaba gostando de seu trabalho, além de querer se tornar uma escritora e ganhar ainda mais dinheiro contando suas ―bandalheiras‖. O pai de Lori, porém, apresenta a outra face autobiográfica da narrativa, pois a própria menina questiona o porquê de darem dinheiro para ela e não para o pai, que é um gênio: ―Por que será que não dão dinheiro pro papi que é tão gênio, e pra mim eles dão só dizendo que sou uma cachorrinha?‖ (Ibidem, p.23-25). Assim como Hilst, ele também tentará se enfronhar na literatura pornográfica para ganhar dinheiro, mas fica claro que o fará somente por pressão do editor: ―O Lalau falou pro papi: por que você não começa a escrever umas bananeiras pra variar? Acho que não é bananeira, é bandalheira, agora eu sei‖. (Ibidem, p. 19). Das bandalheiras sugeridas pelo o editor surge ―O caderno negro‖, de autoria do pai de Lori, sendo que o CRLL ganha, então, outro narrador, o jovem chamado Edenir, protagonista dessa outra narrativa que vai desenvolver-se paralela à da menina. Mas, no decorrer da leitura, o leitor vai surpreender-se ao constatar que Lori apropriou-se de alguns escritos de seu pai, que foram por ele desprezados, para compor seu caderno rosa. Nesse momento a revelação mais importante que, de certa forma, traz um alívio para o leitor mais moralista, é o fato de que não houve a prostituição propriamente dita da menina, e que seus relatos eram tão ficcionais quanto os do pai, o que esclarece também a oscilação da linguagem ora mais elaborada, ora do mais baixo calão, revelando a incapacidade da menina de escrever de forma tão rebuscada: Minha pomba rosa, minha avezinha sem penas, minha boneca de carne e de rosada cera, os cabelos castanhos de seda roçando a cintura, meu cuzinho de amora, a boca de pitanga mordiscando o rosa brilhante da minha pica sempre gotejando por você, princesinha persa. (Ibdem, 79) O fragmento acima é um trecho da carta que o ―Tio Abel‖ escreveu para a Lori e ela copiou em seu diário, que depois saberemos ser uma página desprezada por seu pai, assim como as demais cartas que a menina narrou como se fosse correspondência de seu querido amigo/cliente, este dado além de conferir verossimilhança à obra, pois se trata de uma narradora de oito anos, cujo repertório verbal não seria assim tão vasto, demonstra também o conflito e a dificuldade do pai em atender as exigências do gênero pornográfico conforme os gostos do mercado editorial, como podemos perceber no trecho a seguir referente a uma cartinha que Lori manda para os pais que, após tomarem conhecimento do caderno rosa, foram parar numa casa de repouso: Papai, no dia em que vocês pegaram o meu caderno rosa eu ouvi o tio Lalau dizer depois da mami desmaiar lendo alguns pedaços, eu ouvi assim ele dizer: ―Isto sim é que é uma doce e terna e perversa bandalheira‖.
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... Eu adoro escrever também, papi. Eu adoro você. E desculpe eu inventar que você gosta de lamber a mami, eu não sabia que você não gostava. E desculpe, mami, de inventar que você lia e me ensinava as coisas do meu caderno. Parece mesmo que vocês não gostaram, mas eu não escrevi para vocês, eu escrevi pro tio Lalau. (Ibdem, 95-96) Lori Lamby, com seu olhar inocente e puro sobre as relações sexuais e principalmente da liberação do prazer, ainda que num plano metaficcional, nos remete a refletir sobre a natureza humana. Seu ponto de vista, despidos dos valores morais que regem as atitudes e pensamentos do homem, e principalmente da mulher, em relação ao próprio corpo, vai ao encontro do que diz Bataille (1987, p. 11) sobre a atividade erótica como uma busca psicológica, através do questionamento do ser, levando-o ao auto-conhecimento. Deste modo, através dessa narradora mirim, a autora ataca o moralismo hipócrita que insiste em desvencilhar da condição humana sua intrínseca realidade animal em relação ao sexo, que é, talvez, a principal via de harmonização entre o ser humano e a natureza em toda a sua acepção. Se no CRLL podemos associar, com maior estreiteza, o pai de Lori ao alter ego de Hilda Hilst, em Contos d’escárnio: textos grotescos (CETG) essa identificação é mais assimilada a Hans Haeckel (observe que as iniciais de seu nome são as mesmas de Hilda Hilst), personagem de um escritor angustiado, cuja voz narrativa se alterna com a de Crasso, outro personagem que se pretende fazer escritor a partir do contato que teve com os contos do primeiro, quando este se suicidou, a interação com os textos não só o impeliu a se tornar escritor, como também o fez refletir sobre suas questões existenciais, embora tendesse a tornar-se corruptível e venal, ao contrário de Hans. Segundo Azevedo Filho (2002, p.76), Crasso é um escritor ―duplo ao avesso, díspar de Hans Haeckel, espelho da própria Hilda‖. Ainda segundo este autor em CETG, Hilst não consegue construir personagens primárias o bastante para configurar seu texto como pornográfico ou erótico, não sendo esta observação uma crítica negativa, ao contrário, isto acontece em face da preciosidade do estilo da autora que mesmo nessa obra na qual, aparentemente, ela visa a provocar também o riso, os personagens interrompem o motivo pornográfico para refletir sobre o mundo, a morte, e até sobre a língua portuguesa. Hilst, porém, através do discurso de Crasso lança suas ácidas críticas ao mercado editorial graças ao qual o valor artístico das obras fora preterido em favor do venal. Enquanto Lori no CRLL escreve, inicialmente para ajudar o pai, atendendo as exigências do editor que queria bandalheiras e ―putarias‖, Crasso, por mero acaso, aventura-se na literatura porque, segundo ele, a qualidade da escritura não mais importa. Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que lêem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? (Hilst, 2002, p. 14) Ao contrário de Lori, Crasso tem consciência de estar escrevendo ―lixo‖, pois sabe que para entrar para o rol dos escritores contemporâneos não é necessário ter talento literário, mas sim capacidade de se adequar às regras do mercado, ainda que para isto tenha que ―vender a alma ao diabo‖ como disse o pai de Lori a certa altura, também aqui a pornografia é mais uma metáfora do que um gênero, pois para Crasso, em seu ―roteiro de fornicações‖, titulo de seu
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livro que consiste em narrar suas memórias sexuais, diz que estas são ―putarias bem menos imundas‖ que aquelas que comandam os jogos de poder que regem as relações sociais. É nesse sentido que se configura o ―escritor duplo‖ de Hilda Hilst, a que se refere Azevedo Filho (2002, p.76), pois, do mesmo modo que a autora, Crasso era culto: ―Eu que na mocidade havia lido Spinoza, Kierkegaard, e amado Keats, Yeats, Dante, alguns tão raros, mas deixem pra lá, enfim que bela droga o que eu vinha fazendo da minha vida‖. (Ibidem, p. 31), logo, ao questionar e criticar sua própria escrita, ele assume a incumbência de ironizar esse nicho mercadológico, inventariando as fórmulas que compõem o código da pornografia comercial: Enfio minha cabeça-abóbora candente entre as venosas virilhas de Clódia. Esquecido de mim, amargado, só tu, cona de Clódia, me olha o olho. Enquanto te chupo me vêm resíduos do Partido, não aquele, o Partido de mim estilhaçado. Lúcido antes, agora derrotado mas ainda vivo, derrotado mas ejaculando, o caralho nas tuas mãos, a cabeça abóbora nas tuas coxas, o grosso leitoso entupindo os poros das tuas lamas. Arquejo. Vejo Deus e toda a trupe, potestades, arcanjos. Estou cego de santidade. De velhacaria. (Ibidem, p. 46) Os dois últimos períodos do fragmento acima são emblemáticos ao que diz Bataille: ―o erotismo sagrado confunde-se com a busca, exatamente com o amor de Deus‖, e é a característica dessa busca que se pretende ir além do mundo imediato que aponta para uma abordagem religiosa do erotismo. Em CETG as relações entre sexo e animalidade são também constantemente invocadas, mas com imagens diferentes das percebidas no CRLL: Ó conas e caralhos, cuidai-vos! Clódia anda pelas ruas, pelas avenidas, olhando sempre debaixo de nossas cinturas! Cuidai-vos, adolescentes, machos, fêmeas, lolitas-velhas! Colocai vossas mãos sobre as genitálias! A leoa faminta caminha vagarosa, dourada, a úmida língua nas beiçolas claras! Os dentes, agulhas de marfim, plantados nas gengivas luzentes! ... Quer lamber-vos a cona, quer adestrar caralhos, quer o néctar augusto de vaginas e falos! (Ibidem, pp36-37) Hans Haeckel é o escritor-personagem que representa a face genial de Hilda Hilst e que nutria um projeto literário-existencial, se recusando a aderir às regras da pornografia comercial, conforme atesta sua fala: ―Não posso. Literatura para mim é paixão. Verdade. Conhecimento‖. (Ibidem, p. 41). Semelhantemente ao pai de Lori, cujo nome estrategicamente não é citado, não aceita prostituir-se para o mercado: ―Eu sou um escritor, meu Deus! UM ESCRITOR! UM ESCRI TOR!!!, vou fazer um pacto ( o que será, hein tio?) com o demônio, vou vender a alma pro cornudo do imundo!‖ (Hilst, 2005, p.84). A convicção de Hans o levou ao suicídio. Também o pai de Lori, por suas convicções e por ter encontrado e lido o caderno rosa escrito pela filha de apenas oito anos, teve um fim trágico, juntamente com a mãe da menina, foi para o hospício. É importante notar, aqui, o sentido de denúncia social que se confere à obra hilstiana, pois nos obriga a refletir sobre a corrupção da infância e a banalização do sexo pelo capital. Crasso, ao se libertar definitivamente da influência de Hans, torna-se famoso e rico. Ironicamente, mais uma vez vence a força do capital. Crasso conscientemente incorpora as normas editoriais mercadológicas, assim como Lori, que por ser inocente e isenta dos pejos moralistas, consegue também atender a tais normas. Ambos o fazem por dinheiro, ele para
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poder usufruir os prazeres e o luxo que o dinheiro pode proporcionar: ―Caviares, codornas, faisões recheados de cerejas, cús de canários com amêndoas, alcaparras e uvas, xerecas de gazelas, os tais tordos de Josete, enfim tordos.‖ (Ibidem, p.113) e Lori aprendeu a amar o dinheiro porque com ele pode comprar as coisas que vê na televisão e na escola: ―Aquelas bolsinhas, blusinhas aqueles tênis e a boneca da Xoxa‖. (Hilst, 2005, p. 18) Em Cartas de um Sedutor (CS), o volume que fecha a trilogia, há também um personagem escritor desprezado pelo mercado, assim como acontece no CRLL e em CETG, mas ao contrário do que acontece nos dois primeiros volumes, em CS é o personagem fracassado que inicia a narrativa, sendo assim as palavras iniciais do texto são sensivelmente discrepantes do tom infantil e lúbrico de Lori e do matiz irônico e escrachado de Crasso. COMO PENSAR O GOZO envolto nessas tralhas? Nas minhas. Este desconforto de me saber lanoso e ulcerado, longos pêlos te crescem nas virilhas se tu ousas pensar, e depois ao redor dos pêlos estufadas feridas, ouso pensar me digo, a boca desdentada por tensões e vícios, ouso pensar me digo e isso não perdoam. (Hilst, 2002, p. 15) A citação acima compõe o início de Cartas de um Sedutor (CS), e trata-se das reflexões de Stamatius (Tiu) que, por ser um escritor genial, foi terrivelmente castigado perdendo a casa, a mulher e até os dentes para pagar sua hipoteca, fadado a viver na mendicância recolhendo lixo, ao lado de Eulália, sua limitada companheira. Assim como nos outros dois volumes, há uma metaficção, uma duplicidade narrativa na voz de dois personagens, ―escritor-perdedor e escritor-vendido‖ conforme Pécora (in: HILST, 2002, p. 10), mas ao contrário do que acontece em CRLL e CETG, nas CS é privilegiada a voz do autor ficcional marginalizado, Karl é o segundo personagem-autor-narrador, criado pelo primeiro, sendo um personagem-escritor oportunista, descomprometido com a arte literária e facilmente adaptável às exigências mercadológicas, para quem o sexo nada mais é do que uma mercadoria e, portanto, destituído de qualquer potencial reflexivo, seja em âmbito existencial, político ou filosófico. Stamatius e Karl, embora imbuídos de valores totalmente diferentes, são faces de uma mesma autora, no caso Hilda Hilst, pois, ―nem o primeiro é desistente da estupidez do mundo, nem o segundo cede a ele apenas por amor venal de seus dotes‖ (PÉCORA, in: HILST, 2002, p. 10), com seus vazios, mutilações e desequilíbrios estes personagens representam o humano em seu desespero. Em entrevista a Cadernos de Literatura Brasileira (1999, p.37), Hilda Hilst, como já o fizera outras vezes, ao ser questionada sobre o que busca em sua obra, respondeu: ―Deus é Deus. O tempo todo você vai ver isso em meu trabalho‖, é no contato com o seu trabalho que vislumbramos o quão sanguinário, violento, irado e, salvo pela onipotência, dotado de características tão marcadamente humanas, é o deus hilstiano. Stamatius, segundo sua história, é um personagem que busca na arte o aperfeiçoamento da alma, o que não deixa de ser uma forma de estar mais perto de Deus, neste sentido há sensível identificação entre o escritor ficcional e o escritor real, Hilda Hilst que, assim como seu personagem, constata a decadência do meio literário e, por meio de Stamatius, lança com ironia e deboche suas ácidas críticas sobre esse meio. Interessa-nos, no entanto, em virtude da natureza dessa leitura, ressaltar as conexões entre o ―pornoerotismo‖ dessa obra e o território existencial humano. Sendo assim, percebemos uma sensível relação entre a banalização do sexo e da arte no mundo capitalista, gerando no escritor ficcional, uma das interfaces do escritor real, a angústia diante da finitude existencial. Conflitado entre as crenças de seu mundo interior e a realidade dura que se
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apresenta no exterior, Stamatius busca opções para se imunizar das tentações da carne e do capital, resultando, possivelmente dessa tensão, a criação do personagem Karl, um libertino burguês que narra, através de cartas, suas relações hetero /homossexuais e incestuosas com a mãe e a irmã. Na citação a seguir, Stamatius dá a sua definição de Karl: Aquele idiota do Karl só pensava em meter. Sabe-se que, menininho, pôs a bimba na boca da mãe. A mãe não suportava o menino Karl. Era um enfiar o dedo no oiti o dia inteiro. E gostar. E pendurar-se entre as pernas da irmã, agarrar-se a elas como um bicho viscoso. Entrar nos meios da mãe. Queria ser escritor aquele cara! Aquele fuleraço! Vivia catando e cantando moçoilos pelas ruas... e as mulheres o amavam. Tolas. Por que pensar nele agora? Porque o que há de cinismo e mistificação entre as gentes não é fácil de esquecer não. E ele é um dos primeiros, quando se pensa em vazio e bandalheira. (Hilst, 2002, p. 124) É a partir de Karl que uma segunda voz narrativa se instaura, conseqüentemente mais uma interface, que as reflexões acerca da morte e da literatura, respectivamente do sexo e do capital tornam-se mais evidentes. A obscenidade torna-se um recurso de questionamento sobre a decadência de valores, o sexo ora é visto sob a perspectiva batailliana da embriagues erótica, na qual dois indivíduos vislumbram a continuidade: ―Quando gozo, espio a amplidão. A minha amplidão aqui de dentro.‖ (Ibidem, p. 17), ora se esbarra na moral cristã convencionada, segundo a qual o sexo é sujo e pecaminoso: ―Imaginas mesmo, Cordélia, que um Deus ia se ocupar de alguém que estivesse comendo uma maçã lá na Mesopotâmia? Sentes culpa de quê? A que pecados te referes? Aquelas siriricas inocentes pensando em papai?‖ (Ibidem, p. 38). Tratamento semelhante é dispensado à literatura que em alguns momentos é concebida como um canal entre o humano e o sagrado o qual, assim como a experiência erótica, busca a transcendência das dimensões humanas visando ao seu redimensionamento existencial. Stamatius, ao ter um insight, ou um ―momento de iluminação‖ (Ibidem, p. 129) sobre o que fazer aqui na Terra, abandona sua vida de futilidades e status para dedicar-se a escrita ou à missão de ―dizer o impossível‖: ...e eu tentando apenas inventar palavras, eu apenas tentando dizer o impossível ... Vou perguntando mas não espero respostas, quero continuar perguntando mas sabendo que não vou ouvir vozes, nem Daquele lá de cima que há muito viajou a caminho do Nada. ... Mas fico a escrever com este toco e quando acabar o toco troco um coco por outro toco de lápis... (Ibidem, p. 129) Stamatius vive conflitado por seus questionamentos existenciais. Entre valores éticos e estéticos, e as exigências do mercado editorial, pelas quais ele é obrigado a trair seus princípios para garantir a subsistência no selvagem ringue capitalista, onde se vê preso a angustiantes reflexões: Sempre devo pensar no pau. Ou nos ovos. Ou na manjuba. É assim que quer o editor. ‗Pode pensamentear um pouco, negão, mas sempre contornando a sacanagem‘. Estou preocupado porque fora as 1.500 posições do Kama Sutra devo inventar novas. E novos enfoques. Tô até suando.‖ (Ibidem, p. 142)
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A literatura torna-se, assim, algo que lhe causa profundo desconforto, colocando-o em crise e, muitas vezes, levando-o a repensar sua missão, pois imagina o quanto seu trabalho pode ser ―inútil‖ na sociedade contemporânea: ―E por que continuo a sujar os papéis tentando projetar meu hálito, meus sons, no corpo das palavras?‖ (Ibidem, p. 139). A possibilidade do silêncio é aventada, mas para que sua alma sobreviva, ainda que num corpo ―lanoso‖ e ―ulcerado‖, Stamatius resiste, mas para isto projeta-se em Karl, seu personagem escritor libertino e vendido que, no trecho a seguir, retruca seu criador: ―O negócio é inventar escroteria, tesudices, xotas na mão, os caras querem ler um troço que os faça esquecer que são mortais e estrume. ... com tua mania de infinitude, quem é que vai te ler?‖ (Ibidem, p. 138). Assim, o relacionamento entre criador e criatura é marcado pela contradição: ―Eu, Stamatius, digo: vou engolindo, Eulália, vou me demitindo desse Karl nojoso‖. (Ibidem, p. 89). Esses fragmentos nos fazem pensar que Stamatius, assim como a própria Hilda Hilst, se recusava a escrever tendo como único objetivo ganhar dinheiro, por isso não consegue construir uma escrita edificada na pornografia almejada pelo mercado deste gênero, alcançando, no máximo, uma escrita que bordeja o pornográfico e o erótico, ou seja, uma espécie de pornoerotismo ou erotismo-pornô, que vai muito além da excitação sexual ou da distração, sua prosa ―pseudopornô‖ ou ‗pornô-erótica‖, conduz o leitor a refletir sobre as fragilidades, frivolidades, precariedades, frustrações, aberrações... enfim, a olhar para dentro de si mesmo sem pejo, aberto a toda sorte de sentimentos e situações que podem acometer ao ser humano em sua complexa e ―deslumbrante‖ (palavra que a própria autora utilizava freqüentemente para definir sua obra) tarefa de existir por uma linguagem cambiante que, facilmente, se movimenta do inocente ao perverso, do sublime ao grotesco. Desse modo, esta literatura põe em questão todo o edifício moral e humano convenientemente estabelecido pela sociedade tradicional. Isto acontece porque Hilst, com ironia e até deboche, traz o obsceno á cena da trilogia, ou seja, tabus sexuais, como a pedofilia, a zoofilia, a prostituição infantil, incesto... Enfim as libertinagens mundanas representadas através de seus personagens escritores que são ora vítimas, ora cúmplices dessa dissolução humana e social de valores. A abordagem feita sobre a condição humana, nessas obras, enfatiza a solidão existencial a que estamos submetidos. A angústia e o desespero que marcam alguns de seus personagens, em virtude deste isolamento, podendo até culminar com o suicídio, no caso de Hans Haeckel, por exemplo. Também este aspecto nos remete aos postulados batailleanos acerca da natureza descontínua dos seres: Cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida podem ter um interesse para os outros, mas ele é o único diretamente interessado. Ele nasce só. Ele morre só. Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade. (Bataille,1987, p.12) O desejo de vencer a angústia da descontinuidade se manifesta na escrita do grupo de personagens escritores fracassados perante o mercado, pois sua prosa que se quer pornográfica, assume configurações poéticas que denunciam uma ―mania de infinitude‖ (HILST, 2002, p. 138), ou seja, um desejo de ir além, estendendo os conflitos de sua existência individual ao da existência humana e vice-versa, nesse sentido a escrita assume o poder de transformação engendrado nos domínios do erotismo, pois segundo Bataille (1987, p. 23): ―A poesia conduz ao mesmo ponto como cada forma do erotismo; conduz à
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indistinção, à fusão dos objetos distintos. Ela nos conduz à eternidade, à morte, e pela morte, à continuidade‖. Portanto, assim como o erotismo batailleano, a escrita hilstiana, aqui em especial na voz deste grupo de personagens apresentado, funda-se num dilema paradoxal, vertiginoso e existencial que transita entre os caminhos do corpo, do coração e/ou do sagrado. Em sua genialidade a autora pode não ter alcançado o objetivo de ―escrever umas coisas porcas‖ venais, mas certamente inovou e redimensionou o sentido do erótico e/ou do pornográfico, conseguindo ser iconoclasta enquanto simultaneamente segue esculpindo outras tantas imagens literariamente deslumbrantes, com suas mãos de artista que Deus- seu eterno parceiro, rival e desafeto amado e odiado, na mesma proporção- lhe concedeu.
REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4.ed. Trad. Carla de Querioz. São Paulo: EDUSP, 1984. BATAILLE, Georges. O Erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. HILST. Hilda. Bufólicas. [organização Alcir Pécora]. São Paulo:Globo, 2002. ___________. Contos d‟escárnio: textos grotescos. [organização Alcir Pécora]. São Paulo:Globo, 2002. ___________. Cartas de um sedutor. [organização Alcir Pécora]. São Paulo: Globo, 2002. ___________. O Caderno rosa de Lori Lamby. [organização Alcir Pécora]. São Paulo: Globo, 2005. SOUZA, Mailza Toledo e. Do corpo ao texto: a mulher inscrita/escrita na poesia de Hilda Hilst e Ana Paula Tavares. Tese de Doutorado. USP -São Paulo, 2009. 204 p.
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A QUESTÃO DA MORTE E A EXISTÊNCIA HUMANA: UMA LEITURA DE APARIÇÃO, DE VERGÍLIO FERREIRA Maria Cláudia Simões 1 RESUMO: Vergílio Ferreira, romancista e ensaísta português, apresenta em seu romance Aparição (1959) relevantes questões sobre a condição humana. À luz das discussões desenvolvidas pelos filósofos Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre, a obra proporciona uma importante oportunidade de reflexão sobre a vida e a morte, apresentando ressonâncias com o Existencialismo. O presente artigo pretende discutir a questão da morte e a existência humana em Aparição, focando em alguns dos personagens do romance em pauta. A obra de Vergílio Ferreira oferece uma reflexão sobre uma vida repleta de possibilidades que o indivíduo detém até o momento em que a inverossimilhança da morte ocorrer. PALAVRAS-CHAVE: Existencialismo, morte, Dasein THE ISSUE OF DEATH AND HUMAN EXISTENCE: A READING OF APARIÇÃO BY VERGÍLIO FERREIRA ABSTRACT: Vergílio Ferreira, Portuguese novelist and essayist, presents in his novel Aparição (1959) relevant issues on human condition. In the light of discussions developed by philosophers Martin Heidegger and Jean-Paul Sartre, the work provides an important opportunity for reflection over life and death, displaying resonances with Existentialism. This article intends to discuss the issue of death and human existence in Aparição, focusing on some characters of the novel. Vergílio Ferreira‘s novel offers reflection over a life fraught with possibilities that the individual has until the moment in which the implausibility of death occurs. KEY-WORDS: Existentialism, death, Dasein
INTRODUÇÃO Vergílio Ferreira, pensador contemporâneo, apresenta em seu romance Aparição (1959) relevantes questões sobre a condição humana. Ensaísta e romancista português, Vergílio Ferreira oferece ao leitor uma valiosa oportunidade de refletir sobre a vida e a morte. O objetivo do presente artigo é investigar a questão da morte e a existência humana em Aparição. Tendo em vista a amplitude do tema, este trabalho pretende concentrar sua análise em alguns dos personagens do romance em pauta. Assim, será observada a questão da morte para os personagens Alberto Soares, Bailote, Carolino e Sofia. Em sua obra O Romance de Vergílio Ferreira: Existencialismo e Ficção, Aniceta de Mendonça declara que ―o romance [Aparição] não é outra coisa senão a transposição 1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: simoes_me@yahoo.com.br
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para o plano da arte daquilo que obceca o escritor [Vergílio Ferreira]: o significado do homem sobre a terra‖ (Mendonça, 1978, p. 64). O romance de Vergílio Ferreira proporciona um relevante momento de reflexão sobre a condição humana. Contudo, é necessário compreender o homem que figura na ficção deste autor. Aniceta de Mendonça acrescenta que é ―importante esclarecer que homem é esse que comparece, com toda a regularidade possível, nas páginas do autor de Aparição‖ (Mendonça, 1978, p. 20. Itálico no original.). Em Aparição, pode-se observar ressonâncias entre o romance e a corrente filosófica existencialista. Como Aniceta de Mendonça afirma: Precisamos de recorrer a um sintagma heiderggeriano para definirmos esse homem no qual se centram todos os temas da ficção vergiliana. Trata-se do Dasein, já traduzido (...) por estar-sendo. É o ser do estarsendo que determina o ente que somos; a essência do estar-sendo reside na sua existência; a estrutura desta existência chama-se existencialidade e os caracteres ontológicos do estar-sendo são designados por existenciais. É, portanto, ao esquema da existencialidade, que reune em si todos os caracteres ontológicos, que devemos chamar homem no romance ensaístico de Vergílio Fereira. Se bem que o sintagma homem não seja muito usado pelos filósofos da existência, ele equivale, na terminologia existencial, ao Dasein (Mendonça, 1978, p. 21. Itálico no original.).
APARIÇÃO: DISCUTINDO A QUESTÃO DA MORTE E A EXISTÊNCIA HUMANA Em Aparição, o personagem principal e narrador do romance é Alberto Soares. Professor do liceu, Alberto relembra a morte de seu pai Álvaro, que ocorreu durante a ceia de Natal, perante seus familiares. O falecimento de seu pai leva Alberto a refletir sobre a morte. A morte fulminante de Álvaro deixa tanto Alberto quanto sua família atordoados. Sua reflexão sobre a morte leva-o a desejar ―justificar a vida em face da inverosimilhança da morte‖ (Ferreira, 2005, p. 49). A busca do significado do homem é, por exemplo, retratado na infância de Alberto quando este indaga seu pai: ―Quem sou eu?‖ para qual obtém a seguinte resposta: ―tu és meu filho, um homem, um ser vivo que pensa, que vive e que há-de morrer como todo o ser vivo‖ (Ferreira, 2005, p. 25). Álvaro responde sob a ótica da evolução da vida. Contudo, Alberto sentia que tal resposta era insuficiente: ―[eu] sentia, como sinto, que alguma coisa ficara por explicar e que era eu próprio, essa entidade viva que me habita, essa presença obscura e virulenta que me aparecera, (...) quando a vi fitar-me do espelho‖ (Ferreira, 2005, p. 26. Itálico no original.). A resposta de seu pai não satisfaz Alberto e sua necessidade de compreender a magnitude da condição humana. Sua busca em entender quem ele era permanecia incompleta. Ao perceber sua própria imagem no espelho, Alberto dá-se conta de sua presença no mundo. Em Vergílio Ferreira: Excesso, Escassez, Resto, Luís Mourão, ao relembrar o episódio no qual Alberto, quando menino, realiza a descoberta do eu, declara: Relembremos a cena com que se faz remontar à infância o alarme da descoberta do eu. A criança [Alberto] vai ao quarto, pressente a presença de alguém, grita que há um ladrão no quarto e só depois
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compreende que o que viu sem ver foi o seu reflexo no espelho. Arriscaria dizer que este ladrão no quarto do eu é a metáfora involuntária, até porque verosimilmente infantil, do assalto constante que é a ideologia move ao sujeito. Só que esta metáfora tem mais interesse do que o seu sentido apenas defensivo, porque mostra precisamente que é impossível defendemo-nos de todo deste assalto. A metáfora diz também o paradoxo da constituição do sujeito: primeiro é o ladrão, depois o eu. Só sabemos de nós, do nosso eu, através do outro, de muitos outros (Mourão, 2001, p. 39). A aparição de seu eu para Alberto pode ser interpretada como o Dasein, o ser-aí, o ser que existe no mundo. Segundo Aniceta de Mendonça, ―Alberto (Aparição) pessoalizou o ser do Dasein‖ (Mendonça, 1978, p. 112. Itálico no original.). É importante salientar que a percepção de nossa existência reside nos olhos do outro. Por meio do espelho, Alberto toma consciência de sua existência. Foi necessária a intervenção física de um espelho a fim de que Alberto visse o seu próprio eu. Apesar de constatar a presença de seu eu no mundo, o protagonista do romance ainda procura a origem de seu ser. Alberto indaga como, com tantos acasos, seu eu surgiu no planeta: Assim, quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo, o que descubro não é o alarme da evidência, o prodígio angustioso da minha condição: o que descubro quase sempre é a indiferença bruta de uma coisa entre coisas. (...) Eis-me procurando a verdade primitiva de mim, verdade não contaminada ainda da indiferença. Mas onde esse sobressalto de um homem jogado à vida no acaso infinitesimal do universo? Se meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se os pais de ambos se não tivessem conhecido; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se... Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas – e esse homem sou eu...‖ (Ferreira, 2005, p. 49-50). Alberto pergunta-se o que haveria acontecido se várias situações não tivessem ocorrido antes mesmo de sua existência. Os eventos que ocorreram parecem interligados a fim de que outros fatos surjam na humanidade. Numa cadeia de acasos que compõem a vida, Alberto considera-se o elo perdido entre infinitos elos. O questionamento de Alberto em relação ao ser-no-mundo não está somente ligado à sua presença enquanto habita a face da Terra. Sua reflexão atinge o homem em relação à sua morte. Alberto também reflete sobre o que acontece com o ser que habitava o corpo de um morto. Diante do cadáver de seu pai, Alberto questiona onde está quem habitava aquele corpo. Alberto ainda declara: ―Quem te habitava não é. Viverás ainda na memória dos que te conheceram. Depois esses hão-de morrer. Depois serás exactamente um nada, como se não tivesses nascido‖ (Ferreira, 2005, p. 51). Alberto afirma que, após a morte de seu pai, aquele que habitava seu corpo permanecerá vivo nos que o conheceram. Contudo, em face da certeza da morte, é fato que esses também morrerão e, com eles, suas lembranças e todos os que moravam em suas memórias. Assim, é necessário reconhecer a importância do outro, pois ele será, na verdade, o elo que unirá à vida aquele que partiu para a morte.
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Em O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica, Jean-Paul Sartre, ao discutir a questão da morte, afirma: ―A característica de uma vida morta é ser vida da qual o Outro se faz guardião‖ (Sartre, 2007 , p. 663). Os vivos mantêm acesa a existência dos que faleceram. Quando esses vivos morrerem, será como se os que haviam falecido anteriormente nunca tivessem existido. Alberto reconhece em si o papel de guardião da vida de seu pai: ―agora ainda vives para mim porque te sei‖ (Ferreira, 2005, p. 51). Alberto Soares aflige-se com o fato de que aquele que era seu pai e que agora está morto ainda vive em sua memória: Mas o que me estrangula de pânico, me sufoca de vertigem é teres sido vivo, é tu [Álvaro] estares ainda todo uno para mim, na memória do teu riso, no tom da tua voz, que era lenta, sossegada, nas ideias que punhas a viver entre nós, na realidade fulgurante de seres uma pessoa. Recordo-te totalizado, olho-te. Que é que te habita, que é que está em ti e és tu? Não, não é a carne, não é o corpo: é aquilo que lá mora, aquilo que ainda dura de ti nestas salas, neste ar, aquilo que eras tu, o teu modo único de ser, aquilo a que nós falávamos, atravessando a tua parte visível. E, no entanto, sei, sei que esse tu real que te habitava não era senão a sua morada; como o espaço de uma casa, a intimidade do home, são as paredes que o fazem: derrubada a casa, a intimidade que lá havia também morre... (Ferreira, 2005, p. 45-46. Itálico no original.). Alberto compara o corpo e o eu do homem, no caso, seu pai, com uma casa e sua intimidade. Segundo ele, aquele que habitava o corpo vivo morre quando seu corpo perde também a vida. E Alberto possui consciência de que a morte é a certeza de sua vida, pois o ―‗eu‘ é para morrer‖ (Ferreira, 2005, p. 47). Não há como evitar o fim da vida ao chegar o momento da morte. Assim, uma vida de possíveis encontra seu fim diante do absurdo da morte. Nesse momento de reflexão, Alberto Soares proclama a morte de Deus, situação esta óbvia para ele. Alberto considera que Deus é absurdo também. O protagonista ainda acrescenta: Deus está morto porque sim. Não foi bem, meu velho, porque me ensinaste a história da terra e do homem e dos bichos que já não há e de que há seres humanos desde há dois dias, isto é, desde há um breve milhão de anos, se tanto. Não foi por isso, não foi por isso. Foi porque Deus se me gastou. Sei só que não está certo que ele viva. Sei que ele é absurdo porque o é. Sei que ele está morto, porque não cabe na harmonia do que sou. Não cabe. (...) E, todavia, pesa-me como uma pata de violência a realidade da pessoa que somos. Há muita coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa ainda a morrer. Mas por enquanto está viva. Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade do que existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU, este vulcão sem começo nem fim, só actividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo o que digo e faço e vejo – e onde se perde e esquece. EU! Ora este ―eu‖ é para morrer. Morre como a intimidade de uma casa derrubada. Sei-o com a certeza
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do meu equilíbrio interior. Mas como é possível? Agora eu sou essa intimidade, agora eu sou o seu espírito, a sua evidência (Ferreira, 2005, p. 46-47. Itálico no original.). Para Alberto, é claro que Deus está morto, não havendo outra possibilidade. Como Alberto mesmo afirma, Deus está morto porque sim. Em O Discurso de Vergílio Ferreira como Questionação de Deus, Maria Joaquina Nobre Júlio declara que ―todos [os heróis vergilianos] têm de comum o repetir a lição nietzscheana de que Deus ‗morreu‘‖ (Júlio, 1996, p. 52). O protagonista de Aparição não foge a essa regra observada por Maria Joaquina N. Júlio. De acordo com Alberto, Deus se lhe gastou e Deus não cabe na harmonia do que Alberto é. Outra questão a ser observada reside no título da obra. Aniceta de Mendonça declara que ―o título de Aparição dispensa comentários maiores, uma vez que o sintagma se repete com notória frequência (...) porque é o emblema mais reiterado da motivação composicional, e é a partir dele que se justifica esteticamente e filosoficamente a narrativa‖ (Mendonça, 1978, p. 67. Itálico no original.). A aparição que é representada no romance pode ser vista como a aparição do ser-aí, do Dasein, o ser que Alberto toma ciência de que existe. A palavra aparição opera um importante papel na narrativa, uma vez que ela evidencia mais claramente o confronto com o Dasein. Caso a aparição do ser-aí pudesse passar despercebida, o fato de a palavra em si surgir em vários momentos no decorrer do romance faz até mesmo o leitor menos atento tomar consciência do posicionamento do homem no mundo. Em Para uma Leitura de Aparição de Vergílio Ferreira: RomanceEnsaio ou Romance-problema, Julieta Moreno Pina declara: ―Aparição‖ é a palavra que serve de título a esta obra e com que nos defrontamos a cada momento, donde a necessidade de uma reflexão sobre o seu possível entendimento. Para o protagonista [Alberto], relembrar o passado à luz da lua é fazê-lo aparecer, é tentar encontrar a realidade oculta, a primeira, a antiga, a verdade perfeita (Pina, 2002, p. 69). No decorrer do romance, a palavra aparição é empregada em várias ocasiões, levando o leitor a refletir sobre o que tal vocábulo representa. Alberto busca a verdade que encerra a vida e a morte. Essas questões refletem a procura de Alberto em compreender a vida à luz da discussão da morte. Como mencionado anteriormente, a questão da morte está fortemente presente em Aparição. Todavia, é necessário reconhecer que a questão da vida é o tema significativo da obra em pauta. Em Vergílio Ferreira: A Celebração da Palavra, Fernanda Irene Fonseca afirma: O tema obsessivo da Morte (eu preferiria dizer o tema obsessivo da Vida, pois na mundividência de Vergílio Ferreira a Morte funciona claramente como um écran negro em que se inscrevem e destacam com redobrada nitidez os contornos brilhantes da Vida) está intimamente ligado ao da Palavra. Só a Palavra por dizer permanece para além da Morte (‗As palavras são a morte das coisas‘) (Fonseca, 1992, p. 27).
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Nas páginas de Aparição, apesar de a questão da Morte surgir em vários momentos, pode-se perceber que a Vida é a questão primeira a ser destacada. Alberto reflete sobre a condição humana, levando em consideração não apenas a morte, mas também a vida do homem. Nesse sentido, por exemplo, o protagonista realiza reflexões sobre seu eu, incluindo as responsabilidades que devem advir de seus atos. Alberto busca no eu as respostas que almeja e não na figura de um Deus. Em Escritores Portugueses, Nelly Novaes Coelho declara: Aparição (1959) é o romance onde Vergílio se debruça sobre o serem-si e projeta num plano vertical a sondagem da aventura humana. Seu herói, Alberto, busca o ‗eu‘ essencial (=sein) – aquele que se oculta sob a forma do existente (=dasein) e cuja verdade autêntica só é alcançada (...) numa súbita e fugaz ―aparição‖ (ou é sentida como uma ―presença no sangue‖), porém jamais apreensível pelo conhecimento lógico-objetivo. (...) No conflito íntimo de Alberto e nos dramas das demais personagens configura-se a problemática existencialista: a conscientização do ―eu‖ absurdamente voltado para a morte e a obscura certeza de que é no Homem que estão as respostas definitivas (e não em um Deus ou algo transcendente, portanto FORA dele) (Coelho, 1973, p. 215. Itálico no original.). Com o intuito de analisar a questão da morte em Aparição, é importante ressaltar o relevante papel desempenhado pelo personagem Bailote. O patrão de Bailote disse-lhe que sua mão já não era mais adequada para semear. Assim, o agricultor procura novamente o Dr. Moura, médico que era conhecido do pai de Alberto, a fim de que ele lhe desse algum remédio para seu problema de saúde, pois a ginástica para sua mão que fora recomendada anteriormente pelo próprio médico não havia surtido efeito. Como Dr. Moura não forneceu remédio algum, Bailote enforca-se. Bailote comete suicídio porque não consegue perceber nenhum outro possível para si mesmo. Em ―Aparição de Vergílio Ferreira: Breve Estudo‖, Beatriz Berrini afirma que para Bailote ―ou a vida continua tal qual, ou deixa de ser‖ (Berrini, 1972, p. 75). Berrini acrescenta: Semeador, [Bailote] integrava-se na criação da vida, e o universo cumpria-se no seu gesto. Ele era deus, pois participava da força da terra. Parece então bem próximo a Tomás [agricultor, irmão de Alberto]. Não mais podendo semear, entretanto, sente-se inútil, excluído da vida universal. Bailote não tem consciência do próprio valor como ser vivo (Berrini, 1972, p. 75). Tendo em vista que Bailote já não poderia exercer sua profissão de semeador, o agricultor prefere tirar sua própria vida. Bailote não é capaz de imaginar possibilidade alguma para si mesmo, além de semear. Em O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica, Jean-Paul Sartre declara que ―a morte jamais é aquilo que dá à vida seu sentido: pelo contrário, é aquilo que (...) suprime a vida toda significação. Se temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus problemas não recebem qualquer solução‖ (Sartre, 2007, p. 661). Sartre acrescenta:
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O suicídio não pode ser considerado um fim de vida do qual eu seria o próprio fundamento. Sendo ato de minha vida, com efeito, requer uma significação que só o porvir pode lhe dar; mas, como é o último ato de minha vida, recusa a si mesmo este porvir; assim, mantém-se totalmente indeterminado. De fato, caso eu escape da morte, ou se ―falho‖, não irei mais tarde julgar meu suicídio como uma covardia? O fato não poderá demonstrar-me que outras soluções teriam sido possíveis? Mas, uma vez que essas soluções só podem ser meus próprios projetos, não podem aparecer a menos que eu continue vivendo. O suicídio é uma absurdidade que faz minha vida soçobrar no absurdo (Sartre, 2007, p. 661. Itálico no original.). Bailote procurou a própria morte por não encontrar razão para sua vida. Se seu intento não tivesse obtido o resultado que ele esperava, haveria a possibilidade, considerando as palavras de Sartre, de o agricultor perceber que havia outros possíveis para sua vida além de semear. Entretanto, esses possíveis dependem de decisão do próprio ser em pauta. A responsabilidade sobre suas ações deve sempre ser observada. Como já mencionado, pode-se perceber a presença do pensamento existencialista nesta obra de Vergílio Ferreira. O romance ilustra, por exemplo, a questão de o homem ter o seu destino em suas próprias mãos. Em O Existencialismo é um Humanismo, Jean-Paul Sartre afirma: Vedes bem que ele [exitencialismo] não pode ser considerado como uma filosofia do quietismo, visto que define o homem pela acção; nem como uma descrição pessimista do homem: não há doutrina mais optimista, visto que o destino do homem está nas suas mãos; nem como uma tentativa para desencorajar o homem a agir, visto que lhe diz que não há esperança senão na sua acção, e que a única coisa que permite ao homem viver é o acto (Sartre, s/d, p. 272). Segundo Sartre, o Existencialismo é uma doutrina otimista, pois reconhece a possibilidade de o homem escolher seu próprio destino. O homem é livre para tomar decisões de acordo com sua vontade. De acordo com Sartre, até mesmo, ao recusar-se a escolher, o homem já está fazendo uma escolha (Sartre, s/d, p. 280). Ao dar um fim à sua vida, Bailote fez uma escolha: um absurdo como a própria morte. Contudo, é importante destacar que os atos do homem são de sua total responsabilidade e que, ao meio ou às circunstâncias, não deve ser atribuída culpa pelos atos de outrem. O suicídio de Bailote faz Alberto refletir sobre a condição humana: ―Que fazemos nós na vida? Que incrível pertinácia nos resolve numa ilusão toda a imensidade do milagre de estar vivo? Não vale então nada, meu velho desconhecido, esse prodígio de seres, em face de uma mão que não é já a de um semeador?‖ (Ferreira, 2005, p. 63). Alberto pergunta ao agricultor, já morto, se o milagre que é a sua vida perde todo o sentido pelo mero fato de ele não poder semear mais. Após seus questionamentos, Alberto considera que seria necessário que ele fizesse urgentemente uma conferência que lhe fora solicitada anteriormente a fim de que ele pudesse transmitir sua mensagem: Era necessário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente necessário que a vida se iluminasse na evidência da
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morte. Viriam a chamar-me ―mórbido‖, ―doentio‖. Porquê? Mais real do que nascer era morrer. Porque quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o universo, é a pura necessidade de ser. Um homem só é perfeito, só se realiza até os seus limites, depois de a morte o não poder surpreender. Não porque a tivesse decorado como um gatopingado, não porque a tivesse esquecido, mas por tê-la incorporado na plenitude da vida. Sabia bem quanto era difícil já não digo esta aceitação esclarecida mas até o ver o problema, sofrer o impacto da sua fulgurante aparição. Eu próprio quantas vezes o esqueço! Quantas vezes me remordo em desespero, porque nada vejo, nada vejo! (Ferreira, 2005, p. 64. Itálico no original.). Pode-se observar que, em Aparição, o tema da morte é considerado sob a ótica da vida. Para uma vida plena, é importante que o homem perceba a morte como a finitude dos seus possíveis, mas que até ela ocorrer, que não deve ser por suicídio, há uma infinidade de possíveis à disposição do homem. E quando morrer, o homem ainda viverá nas lembranças dos que permaneceram no mundo até que eles também encontrem seu fim. Em ―O Homem ‗Paixão Inútil‘ na Aparição de Vergílio Ferreira‖, Maria do Céu G. Z. Fialho declara que o último projeto da vida do homem é a morte. Fialho acrescenta que ―Para além dela [da morte] apenas resta a memória, cada vez mais esbatida, nos que ficam; isto é, depois da morte apenas resta a existência do outro do lado de fora, o juízo dos vivos sobre os que morreram, uma espécie de imagem síntese‖ (Fialho, 1976, p. 61). Alberto tem consciência da relevância do outro na ocasião da morte, uma vez que o outro possui o papel de manter vivos os que morreram. É importante também ressaltar o posicionamento do personagem Carolino em relação à morte. Ele ambiciona o poder de Deus e como Deus é criação e ele, Carolino, não pode criar, ele opta por destruir. Carolino declara a Alberto: ―Eu sou um homem! (...) Sei o que quero. Sou livre, sou grande, tenho em mim um poder imenso. Imenso como Deus. Ele construía. Eu posso destruir‖ (Ferreira, 2005, p. 211). Assim, com a morte em suas mãos e o poder de decidir sobre a vida do outro, Carolino, apesar de ser um homem, sente-se imenso como Deus. Como não detém o poder de criar a vida, Carolino busca o poder de criar a morte, tornando-se superior ao homem comum, uma vez que ele se considera grandioso como Deus. Julieta Moreno Pina afirma que se para Carolino ―matar é igual a criar (poder dado aos deuses e transferido para o homem), estaremos perante aquele que mata para ser deus‖ (Pina, 2002, p. 75). Carolino busca o poder que o ato de tirar a vida de alguém pode lhe proporcionar. Segundo Julieta Pina, primeiro, Carolino ―manifesta seu poder ao matar a galinha que depois olha fascinado; depois, ao matar Sofia, Carolino cumpre-se e assume-se como deus-homem que mata para criar, criar o seu orgulho, criar uma imagem de superioridade, impregnada embora de tristeza‖ (Pina, 2002, p. 75). Carolino exerce seu poder como homem para destruir e, assim, tornar-se um deus, um deus que mata, que destrói. É interessante observar como a personagem Sofia opera em relação a Carolino e a Alberto. Dr. Moura, pai de Sofia, esclarece ao protagonista que sua filha havia tentado se matar em duas ocasiões. Ele, inclusive, lamenta o fato de sua filha não ser casada (Ferreira, 2005, p. 59) como se o matrimônio a fosse impedir de cometer tal ato. Até mesmo como se sua atitude em tirar a própria vida fosse resultado de situações alheias à sua vontade. Ao fazer tais comentários, Dr. Moura parece não ter consciência de que as ações de sua filha são de inteira responsabilidade de Sofia.
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Suas tentativas em morrer são escolhas que ela mesma havia feito em relação à sua vida. Sartre declara, em O Existencialismo é um Humanismo, que o homem está condenado a ser livre: ―Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer‖ (Sartre, s/d, p. 254). A responsabilidade de Sofia deve ser considerada. No romance de Vergílio Ferreira, é possível perceber a questão da responsabilidade dos atos por parte do homem, não devendo existir o pensamento de que Deus tenha sua parcela de responsabilidade por tais ações. Como Julieta Moreno Pina declara: A análise do pensamento existencialista de Aparição implica termos reconhecido, por parte do seu autor, um esforço para compreender a complexidade da condição humana em termos humanos, isto é, sem recursos ao sobre-humano, aproximando-se de Sartre na recusa da intervenção teológica quanto à procura a que vota (Pina, 2002, p. 77). A decisão de Sofia também paira sobre o seu relacionamento com Alberto e Carolino. Entre os dois, Sofia escolhe a destruição oferecida por Carolino em detrimento da vida que poderia lhe ser proporcionada por Alberto. Sobre o posicionamento de Sofia no que se refere a ambos, Julieta M. Pina declara que a ―relação com Carolino é provocação a Alberto, mas é atracção da loucura e da morte, é ter o outro lado do protagonista, aquele em que a lógica dos sofismas não actuava, aquele que poderia cumprir a sua escolha – a morte‖ (Pina, 2002, p. 64. Com sua ligação a Carolino, Sofia atinge Alberto e, de certa forma, acaba por conseguir seu objetivo de morrer, uma vez que havia tentado suicídio anteriormente. Carolino pode ser visto como uma maneira de proporcionar a Sofia o seu desejado fim. Julieta Moreno Pina acrescenta que a ―morte das personagens é pretexto para interrogação e busca do ‗eu‘, surge como uma espécie de revelação brusca e súbita, e é no reconhecimento de sua certeza insuperável que o homem encontra o seu ser autêntico, nem por isso se sentindo satisfeito‖ (Pina, 2002, p. 75). Ao reconhecer a ocorrência da morte como indubitável, o homem pode abraçar uma vida autêntica e estar ciente dos seus possíveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Como este artigo procurou discutir, o romance Aparição proporciona um importante momento de reflexão sobre a vida, a morte e o homem. No decorrer da obra, o leitor acaba por ter a oportunidade de tomar consciência de sua presença no mundo, da liberdade que possui sobre suas ações, da responsabilidade que deve assumir por seus atos, sem atribuir seus fracassos, decorrentes de sua próprias decisões, à alegada existência de Deus. Além disso, o homem deve estar ciente da vida autêntica que pode desfrutar, até o momento em que a inverossimilhança da morte ocorrer. O fato de a única certeza de que o homem possui em relação à sua vida é a própria morte deve ser percebido como um estímulo a uma vida autêntica, e não a uma existência repleta de inautenticidade. Em "Da Fenomenologia a Sartre", Vergílio Ferreira afirma que Sartre defende que o Existencialismo seja qualificado como humanista, tendo em vista que ―o Existencialismo confere ao homem o máximo de dignidade, atribuindo-lhe a legislação sobre si próprio, a primazia na situação eu-mundo, recusando pois, paralelamente, a submissão a valores
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impostos e aos quais devêssemos submeter-nos‖ (Ferreira, s/d, p. 214). Como o presente artigo buscou demonstrar, tais questões podem ser observadas no romance ora abordado. Aparição oferece um importante momento de reflexão sobre a morte e a existência humana. Vergílio Ferreira ensaísta e Vergílio Ferreira romancista proporcionam uma relevante oportunidade ao leitor de entrar em contato com questões que assolam a condição humana.
REFERÊNCIAS BERRINI, Beatriz. Aparição de Vergílio Ferreira: Breve Estudo. In: GODINHO, Helder (Org.). Estudos sobre Vergílio Ferreira. Lisboa: INCM, 1982, p. 65-79. COELHO, Nelly Novaes. Escritores Portugueses. São Paulo: Quiron, 1973. FERREIRA, Vergílio. Aparição. Lisboa: Bertrand Editora, 2005. ______. Da fenomenologia a Sartre. In: SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 2 ed. Lisboa: Editorial Presença, s/d, p. 9-230. FIALHO, Maria do Céu G. Z. O Homem ―Paixão Inútil‖ na Aparição de Vergílio Ferreira. In: GODINHO, Helder (Org.). Estudos sobre Vergílio Ferreira. Lisboa: INCM, 1982, p. 49-64. FONSECA, Fernanda Irene. Vergílio Ferreira: A Celebração da Palavra. Coimbra: Almedina, 1992. JÚLIO, Maria Joaquina Nobre. O Discurso de Vergílio Ferreira como Questionação de Deus. Coimbra: Colibri, 1996. MENDONÇA, Aniceta. O Romance de Vergílio Ferreira: Existencialismo e Ficção. São Paulo: ILHPA – HUCITEC, 1978. MOURÃO, Luís. Vergílio Ferreira: Excesso, Escassez, Resto. Coimbra: Angelus Novus, 2001. PINA, Julieta Moreno. Para uma Leitura de Aparição de Vergílio Ferreira: Romance-Ensaio ou Romance-Problema. Lisboa: Editorial Presença, 2002. SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução: Paulo Perdigão. Petrópolis: Editora Vozes, 2007. ______. O Existencialismo é um Humanismo. Tradução: Vergílio Ferreira. 2 ed. Lisboa: Editorial Presença, s/d.
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A PALAVRA (REAL) NADA SUAVE: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A POESIA DE ORIDES FONTELA Moisés Nascimento1 RESUMO: O texto pretende, valendo-se dos poemas ―Transposição‖, ―Fala‖ e ―Meio - dia‖, olhar a maneira que o real – sempre fluxonal e multiforme – aparece na poesia de Orides Fontela. Com atenção especial às palavras ―lucidez‖, ―claridade‖, ―palavra‖ e ―real‖, o intuito aqui é analisar esses modos de aparição, nunca sem inquietação e desconforto, ancorado nas leituras de Heiddeger e Deleuze. PALAVRAS-CHAVE: 1. Orides Fontela; 2. Real; 3. Palavra. LA PALABRA (REAL) NADA SUAVE: ALGUNOS APONTAMIENTOS EN LA POESÍA DE ORIDES FONTELA Resumen: El texto pretende, valiendose de los poemas ―Transposição‖, ―Fala‖ y ―meio – dia‖, observar la manera que el real – siempre fluxonal y multiforme - aparece en la poesia de Orides Fontela. Con atención especial a las palabras ―lucidez‖, ―claridad‖ y ―real‖, nuestro intuito acá es analisar estos modos de aparición, nunca sin inquietud y malaya, afianzado en las lecturas de Heiddeger y Deleuze. Palabras-llave: 1. Orides Fontela; 2. Real; 3. Palabra.
Y cada día que pasa me parece más lógico y más necesario que vayamos a la literatura – seamos autores o lectores – como se va a los encuentros más esenciales de la existência, como se va al amor y a veces a la muerte, sabiendo que forman parte indisoluble de um todo, y que um libro empieza y termina antes y mucho después de su primera y última palabra. Julio Cortázar
Proferir dizeres sobre a vida, sobre o estar no mundo com clareza, linearidade e desenvoltura, coloca alguns indivíduos como que possuidores das fórmulas da existência feliz e próspera; pensar a existência ainda que em um prisma histórico, porém não-linear, sob um ―tempo cíclico‖ (ANDRADE, 2010, p. 11), coloca Orides Fontela com uma das principais vozes poéticas contemporâneas. Se olhar para a essência, numa perspectiva histórica, corre o risco de culminar em aforismos suaves e delicados; o contrário, a miragem cíclica, admite que não há possibilidade de se chegar a ―coisa em si‖ sem passar pela destruição e, consequentemente, pela dor. Negar a dor, acreditar numa vida constante e precisa, que passa 1
Músico e Professor de literatura brasileira, atualmente é aluno do Mestrado em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo e bolsista da CAPES. Escreve regularmente no blog: www.portalyah.com/fragmentosnaribalta. E-mail: moyseshoots@gmail.com
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por agruras, mas que são suprimidas pelo objetivo maior: viver tranquilo – é o que fazem os que compreendem a vida apenas como ―conforto‖; aceitar o oblíquo, enxergar a dor, manter o desconforto – eis, novamente, Orides Fontela. Acredito que um dos principais compromissos da obra literária é convocar o indivíduo à realidade. Um olhar atento ao noticiário, aos jornais impresso e online, à fome e à sede que bate à porta ou esbarra nas esquinas, pontos de ônibus e bares, permite pensar que há uma sedação, que há uma cortina transparente que possibilita a visão, porém não incomoda; coisas acontecem no mundo, porém lá fora. O sujeito contemporâneo está anestesiado para aquilo que incomoda a visão, para o que promove o choque e, sobretudo, questiona o habitual. Ele vê, observa e segue. No entanto, o contato com o texto literário talha a anestesia e impulsiona o sujeito para o confronto; redireciona-o fora do velho cogito cartesiano que envolve a retina desde o despertar: Transposição Na manhã que desperta o jardim não mais geometria é gradação de luz e aguda descontinuidade de planos. Tudo se recria e o instante varia de ângulo e face segundo a mesma vidaluz que instaura jardins na amplitude. que desperta as flores em várias coresinstantes e as revive jogando-as lucidamente em transposição contínua. Neste poema, a poeta já pontua nos dois primeiros versos a ruptura com o tempo linear e histórico: não há na ―manhã desperta‖ formas retas, equilibradas e compassadas. Na medida em que a luz aparece, o real gradativamente apresenta-se sob novas configurações. Colocar o ―jardim‖ como ―não geométrico‖ é situá-lo fora de quaisquer axiomas, postulados, definições, teoremas e corolários tão caros à semântica matemática e às definições sobre o sujeito moderno. Aqui, ―não mais‖; ou seja: não há apenas uma possibilidade, uma forma, um plano único e fixo. Aquilo que desperta já se oferece em fluxos (―é gradação de luz e aguda/ descontinuidade de planos‖). E o projeto, que para o sujeito moderno necessita de sequência e é imprescindível para a perfeita vivência do sujeito, aparece ―descontínuo‖. Aqui, tudo se (re) significa, através de ―instantes‖ que sempre estão ―sendo‖; há sempre um ―devir‖. O dia que surge, e com ele o jardim evocado pouco a pouco, em nada se repete, em nada se parece com o ontem; é o novo (nada) que desbota, sempre pela mesma ―vidaluz‖ que assegura a memória, a tradição, porém recriada, sob novo ângulo e face, instaurando não mais uma forma precisa, mas várias; vários ―jardins na amplitude‖. Despertar-se fora da lógica de Descartes, despertar-se longe das diretrizes do ―realismo que reproduz a fachada‖ (ADORNO, 2003, p.57), apresenta o sujeito da arte contemporânea ―despido‖. É interessante atentar-se para a transformação que o prefixo des, em todas as suas aparições, proporciona, denunciando que algo se modificou. Porém, se a observação agora passar pelo fato de que é dessa forma que o sujeito nasce, mas que a vivência, as convenções, o controle social vestem de tal forma que não mais se conhece nos dicionários populares a palavra originária anterior ao ―despir‖, pode-se afirmar que essa nudez é paradoxalmente ―lúcida‖; com o mesmo passo que gera dor, gera também sabor; na medida
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em que produz desconforto, produz também o conforto, pois a essência do devir reside em não só ―puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo‖, mas ―para‖ além da ―doxa‖. Ainda com Deleuze, ―o paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas‖ (DELEUZE, 2009, p. 1-2-3). Daí o instante (fluxo) despertar as ―flores‖ ―jogando-as lucidamente‖. Se já se tornou lugar-comum a afirmação de que o sujeito contemporâneo não possui identidade fixa, é não-linear, que, ao contrário do sujeito moderno (que necessita de uma persona), questiona o lugar do Eu na pós-modernidade; percebe-se que é neste não-lugar – instante de dor, desconforto e, ao mesmo tempo, de saber –, neste ―despertar – despido‖ – espaço do qual fala o eu-poético da poesia de Orides – que a literatura se recria. A (re) criação possibilitada pela nudez só se dá a conhecer a partir da trans-missão, pois é tão somente pela arte, pelo habitar que a arte proporciona, que é possível (re) chegar ao sujeito despido, ao renovo, ao ―instante‖. Ora, se só se sabe pela arte, é permitido afirmar junto com Heidegger que quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja, mais aberto e preparado para acolher o inesperado é o seu dizer; com maior pureza ele entrega o que diz ao parecer daquele que o escuta com dedicação, e maior a distância que separa o seu dizer da simples proposição, esta sobre a qual tanto se debate, seja no tocante à sua adequação ou à sua inadequação. (HEIDEGGER, 2007, p. 168) Quanto mais abertura, mais liberdade, mais livre acesso; quanto mais nudez, mais real, mais sabor, mais dor, mais. No entanto, é nesse movimento do ―quanto mais‖, nada linear e adocicado, que se situa o indivíduo. Conforme já se sabe desde Platão, só é possível pensar a liberdade a partir da prisão; e só é possível chegar ao real, isto é, só é possível habitar ―poeticamente‖ (HEIDEGGER, 2007, p. 179). É somente este ―habitar‖ que ―desperta as flores em várias/ coresinstantes e as revive/ jogando-as lucidamente/ em transposição contínua‖. A ―transposição‖, outra palavra bastante cara à semântica matemática, embora aqui também apareça como um elemento que permite uma nova combinação, esta nunca é seqüencial, sistêmica; pelo contrário, é fluxonal e, por isso, essencial e imprescindível para se chegar ao ponto vélico da existência, atingível somente pela ―lucidez‖. Do contrário, ter-se-ia um real limitado às formas geométricas, lineares, sem a profusão de imagens que se apresenta na ―manhã‖. A literatura só acontece no instante em que se ―torna uma questão‖. É exatamente na problematização, no questionamento, no lançar perguntas, na inquietação que desestabiliza o leitor que a obra literária se afirma como obra que pensa filosoficamente, como uma escrita que se propõe a pensar o sujeito e a existência. Parece-me que a obra de Orides Fontela tem essa preocupação. Conforme se enxerga na reportagem sobre a poeta no programa Entrelinhas – TV Cultura, Orides não fez poesia por acaso: na verdade, poesia fazia parte da sua essência. Todo o seu esforço, todo o seu fôlego, desde ir a São Paulo estudar filosofia até a renúncia do mundo que a cercava, como se pode perceber no registro da TV, foi dedicado à poesia. A pobreza, por vezes evocada pelos leitores mais desatentos de sua poesia, não se erige como tema da sua obra, mas como um estilo de vida, isto é, sem a carga negativa que em geral a palavra possui; a poeta reivindicava, a partir da total abstenção de uma vida inserida dentro do sistema, um novo lugar para o fazer poético. Havia nela a necessidade de mostrar uma poesia de raciocínio, profunda, fora das zonas elitistas que comumente circundam a literatura; havia no seu projeto a exigência de apresentar uma poética que em nada se separasse da existência.
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Daí a pobreza como uma ―abdicação do supérfluo‖, como uma tentativa de deixar o ―mundo nu‖: ―o real nos doerá para sempre‖.1 Isso aproxima bastante a poética oridiana da de Clarice Lispector. Há em ambas as escritoras uma obra filosófica que se toca quando o assunto é a pobreza. Clarice, embora não se tem notícia de uma postura tão radical quanto a de Orides, também pensava aquele estado como que essencial. O leitor com certeza deve se lembrar do conto Ovo e a galinha, em que Clarice adverte: ―deve se dizer ‗ovo da galinha‘. Se eu disser apenas ‗o ovo‘, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu‖. Em outro trecho do conto, afirma o seguinte: ―porque na pobreza do espírito eu toco na santidade‖. No entanto, parece que aqui há uma ressalva nesse toque: ―pode-se dizer ‗um rosto bonito‘, mas quem disser ‗o rosto‘, morre; por ter esgotado o assunto‖. Ou seja: sabe-se o que significa essa pobreza; no entanto, tocá-la traz consequências. Todavia é nela que se encontra um espaço destituído da dominação, um lugar de ―não poder‖: ―não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer‖. Essa busca pelo ―não poder‖, pela essência, pelo real em sua plenitude; não é exatamente o que busca fazer a todo instante em sua criação literária a poeta Orides Fontela? Tentar questionar (tatear) a pobreza é tentar – a todo o instante – desnudar-se, expor-se a morte; é a busca incessante pelo grau zero, pela essência, pelo ―nada‖, tão caro à Heidegger. FALA Tudo será difícil de dizer: a palavra real nunca é suave. Tudo será duro: luz impiedosa excessiva vivência consciência demais do ser. Tudo será capaz de ferir. Será agressivamente real. Tão real que nos despedaça. Não há piedade nos signos e nem no amor: o ser é excessivamente lúcido e a palavra é densa e nos fere. (Toda palavra é crueldade.) Há aqui uma aproximação complexa e interessante. Para além de dizer ―palavra real‖, a poeta aproxima ―palavra‖ e ―real‖ da mesma forma com que concatena ―claridade‖ e ―lucidez‖ ao longo da sua poética. No entanto, entre estas duas, não há dúvida que existe uma relação direta: a ―luz‖- cidez é impiedosa; nunca chega uniforme. O que evoca a consciência, o real que aparece – e só aparece porque existe língua – está sempre em demasia, como pode 11
Informações encontradas no sítio eletrônico do programa Entrelinhas – TV Cultura. A reportagem consiste em uma compilação de várias reportagens feitas com Orides Fontela, além de entrevistas com amigos e estudiosos da obra da poeta. Disponível no sítio: http://www2.tvcultura.com.br/entrelinhas/busca.asp?txtBusca=orides+fontela Acesso em: 16/04/2011.
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se ver nos versos ―luz impiedosa‖ e ―é excessivamente lúcido‖ do poema acima, assim como no poema Meio - dia: Ao meio-dia a vida é impossível. A luz destrói os segredos: a luz é crua contra os olhos ácida para o espírito. A luz é demais para os homens (Porém como o saberias quando vieste à luz de ti mesmo?) Meio-dia! Meio-dia! A vida é lúcida e impossível. ―Claridade‖ e ―luz‖ são colocadas lado a lado como coisas completamente concatenadas, que confluem para a destruição do conforto do sujeito. A luz que chega ao meio-dia é simplesmente uma lucidez insuportável para o homem moderno, que tem na fixação, no enquadramento, na linearidade seus pilares fundamentais. Confrontar esses pilares, des-cobrir aquilo que parece mistificado, desnuda o sujeito, coloca-o diante da possibilidade de morte, do ―nada‖, do ―impossível‖ ―(porém como o saberias/ quando vieste à luz/ de ti mesmo?)‖. Parece que ―claridade‖ e ―lucidez‖ caminham dessa forma em Orides. Tanto a primeira quanto a segunda parecem confirmar a ―impossibilidade‖ de chegar a pobreza, haja vista o excesso de iluminação que o ―dia‖ (real) parece ―impor‖. Quero, porém, pensar um pouco mais junto à ―palavra‖ e ao ―real‖. Se me volto para tais palavras de maneira singular, de imediato percebo que tratam de coisas bastante diversas; ―palavra‖, por si só, parece já estar relacionada à representação, ao símbolo - signo. Parece que é a ―palavra‖ que cabe representar o ―real‖. ―Real‖ que já apresenta no nome a dureza da própria expressão, que, desde a abordagem pela ―doxa‖ até a abordagem filosófica, tangerá as noções de concreto, de empírico. No entanto, parece que a poeta coloca essas duas palavras como que sinônimas. Na verdade, as duas noções falam da mesma coisa: ―real‖ e ―palavra‖ são a vida nada ―suave‖, ―impiedosa‖, ―agressiva‖, ―despedaçada‖, ―ferida‖ que Orides nos apresenta. O existir no mundo, aqui convocado por essas duas expressões, é doloroso, agressivo, desconfortante. ―A palavra real‖ nada mais é do que o próprio mundo concatenado a experiência sentida pelo sujeito na pele. Quando o eu - lírico conclui que ―não há piedade nos signos/ e nem no amor: o ser/ é excessivamente lúcido/ e a palavra é densa e nos fere‖ fala a partir de uma posição, de um lugar, de um ponto além do narrador clariceano de O Ovo e galinha; é como se a voz do eu – lírico partisse do ―mundo nu‖. Percebe-se nesses versos um desnudamento do sujeito pelo real – língua. ―Claridade‖, ―lucidez‖, ―palavra‖, ―real‖: todas essas palavras são causadoras dos mesmos sintomas: impossibilidade da fala – ―Tudo será difícil de dizer‖; consciência exacerbada – ―excessiva vivência/ consciência demais do ser‖; ferida e dilaceramento – ―Tudo será capaz de ferir/ Tão real que nos despedaça‖; impiedade e densidade – ―Não há piedade nos signos/ a palavra é densa e nos fere‖. Embora por vezes evoquem significados diversos, todas aqui parecem afirmar esse real tão caro à poética de Orides. Vale a pena retomar o pensamento de Roland Barthes em sua Aula, quando afirma que a língua é ―fascista‖, pois sempre nos obriga a dizer. Para ele, não existe liberdade ―senão fora da linguagem‖. Como não existe sujeito sem a linguagem, não há possibilidade de se estar
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longe da dominação do ―real/palavra‖. Conforme afirma Heidegger, é preciso estar atento ao ―ao vigor próprio da linguagem‖: Enquanto essa atenção não se dá, desenfreiam-se palavras, escritos, programas, numa avalanche sem fim. O homem se comporta como se ele fosse criador e senhor da linguagem, ao passo que ela permanece sendo senhora do homem. Talvez seja o modo de o homem lidar com esse assenhoramento que impele o seu ser para a via da estranheza. É salutar o cuidado com o dizer. Mas esse cuidado é em vão se a linguagem continuar apenas a nos servir como um meio de expressão. (HEIDEGGER, 2007, p. 126) E o que Orides apresenta na sua obra é uma busca incessante pela pobreza-essência. Tentar tatear isso, é tentar tocar o ―impossível‖, é colocar o sujeito no seu estado de puro devir. ―Palavra‖ e ―Real‖ demonstram que esse tatear é a essência; porém, essa empreitada, que em Barthes sabemos ser de trapaça, de esquiva, de revolução, nunca será suave. E é exatamente isso que configura o paladar da literatura: colocar o sujeito em confronto com a ―palavra‖, debruçar o indivíduo diante das diversas angústias que compõe o ―real‖. Agora se justifica o prefácio de Julio Cortazar: ―y cada día que pasa me parece más lógico y más necesario que vayamos a la literatura [...] como se va a los encuentros más esenciales de la existência, como se va al amor y a veces a la muerte, sabiendo que forman parte indisoluble de un todo‖ (CORTAZAR, 2004, p. 313). Confrontar-se com o texto literário – tanto para os que criam quanto para os que apreciam – é ir ao encontro do imprescindível para a vida – ou seja, o amor, a morte (fluxo), a ―identidade infinita‖, para dialogar novamente com Deleuze (DELEUZE, 2009, p. 2) –, no esforço constante de driblar o ―mundo genérico‖ que circunda o sujeito contemporâneo. Como nos diz Alexandre Moraes, ―não mais, portanto, coisa, mas ser em outros mundos deste mundo mesmo que envelheceu e precisa no instante do fluxo fazer-se e fazer com que poeticamente possamos habitar o mundo e só assim, construir, habitar fato por fato‖ (MORAES, 2010, p. 6), nunca se esquecendo que este é um movimento que, assim como o livro, ―empieza y termina mucho antes y mucho después de su primera y última palabra‖. Esse processo, que só se finaliza quando é ―retirada‖ do sujeito a capacidade de pensar, fragmenta, ―destrói segredos‖, ―despedaça‖, é ―cruel‖. Porém, é denso, fere, dá sabor, e possibilita sempre o novo.
REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. ―Posição do narrador no romance contemporâneo‖. In:_______. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeira. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2003, p. 55-63. ANDRADE, Alexandre de Melo. Construção destrutiva e destruição construtiva: a poesia de Orides Fontela. Disponível em: http://www.textopoetico.org/index.php?option=com_content&view=article&id=28&Itemid=14 Acesso em 16/04/2011. BARTHES, Roland. Aula. Trad: Leila Perrone-Moyses. São Paulo: Cultrix, 2007. CORTÁZAR, Julio. ―Realidad y literatura en América Latina‖. In:_______. Cortázar – obra crítica. V. 3. Buenos Aires:Suma de Letras Argentina, 2004. p. 303-321. DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. Trad: Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
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ASPECTOS DA ESTÉTICA BARROCA/NEOBARROCA EM CONCERTO BARROCO Thiago Miguel Andreu1 Resumo: ―Todo debate sobre a modernidade na América Latina que não inclua o barroco é parcial e incompleto‖ nos diz Irlemar Chiampi. É essa perspectiva que assumimos na discussão proposta neste trabalho. Estabelecemos aqui, duas etapas de desenvolvimento: a primeira será apresentar a conceituação e, por conseguinte, ―americanização‖ do termo barroco que, ao sair de seu âmbito universal, particulariza-se como projeto estilístico na literatura hispano-americana das décadas de 50 e 60 do século passado. Na segunda parte, temos como corpus de análise o romance carpentieriano Concerto Barroco, utilizado para uma breve aplicação dos tópicos estruturais do barroco/neobarroco, propostos pelo autor cubano Severo Sarduy. Aqui, articularemos ainda, mecanismos de estrutura com a temática barroca que se instaurou de forma definitiva na produção conhecida como boom latinoamericano. Esse recorte coloca-se como uma tentativa de se discutir o barroco/neobarroco, tanto em seu aspecto formal como temático, aproximando-os, pois a apreensão da problemática de tal conceito, como também o entendimento das circunstâncias da produção literária hispano-americana reclamam estudos que coloquem em confluência texto e contexto. Palavras-chave: neobarroco, Concerto Barroco, Alejo Carpentier Resumen: ―Todo debate sobre la modernidad en Hispanoamérica, que no incluya el barroco es parcial e incompleto‖ nos dice Irlemar Chiampi. Es esa la perspectiva que asumimos en la discusión propuesta en este trabajo. Establecemos aquí, dos grados de desarrollo: el primero será presentar la conceptuación y, también, la ―americanización‖ del término barroco que, al salir de su ámbito universal, se particulariza como proyecto estilístico en la literatura hispanoamericana de las décadas de 50 y 60 del siglo pasado. En la segunda parte, tenemos como corpus de análisis la novela carpentieriana Concierto Barroco, utilizada para una rápida aplicación de los tópicos estruturales del barroco/neobarroco, propuestos por el autor cubano Severo Sarduy. Aquí, articularemos aún, mecanismos de estrutura con la temática barroca que se coloca de forma definitiva en la producción conocida como boom latinoamericano. Ese trayecto se pone como un intento de discutirse la estética, en sus aspectos formales y temáticos, acercándolos, pues la aprehensión de la problemática de dicho concepto y, aún, del entendimiento de la producción literaria hispanoamericana reclaman estudios que coloquen en sintonía texto y contexto. Palabras-clave: neobarroco, Concierto Barroco, Alejo Carpentier
1. APRESENTAÇÃO O barroco, etimologicamente, não tem demarcações definitivas: parte dos estudiosos afirma que poderia derivar da forma espanhola barrueco ou berrueco (pérola irregular), outros acreditam que o termo proviria da Escolástica, designando o quarto modo da segunda 1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraquara/bolsista CAPES. E-mail: thiagoandreu@hotmail.com.
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figura do silogismo e há, ainda, um grupo que caracteriza o estilo como uma aparição extravagante. De forma vasta e de difícil demarcação, em termos de caracteres literários, a estética se remodelou na produção literária hispano-americana do século passado, recebendo, a partir de então a nomenclatura neobarroco. O estilo, segundo Irlemar Chiampi (p. 6, 1998), moderniza-se, migra de seu âmbito universal e toma feições particularizadas na produção literária conhecida como boom latinoamericano. Esse seria o terceiro ciclo de inserção da estética na modernidade, processo atrelado à implicação cultural e a certa interação entre as formas barrocas com um determinado conteúdo americano, o que, até certo ponto, valida as considerações carpentierianas acerca do assunto. Para Carpentier, a América Latina é a terra do barroco, devido a traços como a mestiçagem, à crioulidade e à simbiose, encontrados no continente; estes fatores, por sua vez, seriam determinantes na produção artística latino-americana. O escritor, em trabalhos como "Lo barroco y lo real Maravillhoso" (1964) e o afamado prólogo de El reino de este mundo (1949), desenvolve uma ideologia que liga inseparavelmente a América ao barroco. Sua tentativa é a de desenvolver a temática, transformando tal estilo em um legado natural do continente, como legitimação da cultura hispano-americana. Também nas considerações acerca do assunto, surge o destacado texto “Por uma ética do desperdício‖, parte de ensaios de Escritos sobre um corpo (1969), do cubano Severo Sarduy, que revela preocupação notória a respeito dos aspectos estruturais do estilo. O autor parte do princípio de que o enunciado é artificializado e se prolonga em emaranhados linguísticos, através de proliferações de signos que fazem do discurso uma cadeia labiríntica; sua estrutura em espiral alcança os mecanismos da paródia, da intertextualidade e do erotismo literário. Ligado ao grupo Tel Quel e a Roland Barthes, utilizando-se de fórmulas para sistematização da estética, Sarduy apresenta-nos o texto supracitado como um estudo preocupado decisivamente com o rigor e a forma literários. Concerto Barroco, obra do escritor cubano Alejo Carpentier de 1974, coloca-se com expressividade no contexto de produção literária na América Latina do século passado, se tomarmos como estilo demarcatório dessa época o barroco e, se considerarmos, também, as discussões levantadas por autores como o próprio Alejo Carpentier, Lezama Lima e Severo Sarduy a respeito da formação da identidade e da Literatura Hispano-americana. O Concerto se dá em inícios do século XVIII, quando um milionário mexicano (nomeado, na história, apenas como Amo), deixa o ―Novo Continente‖ para uma temporada de luxos e prazeres em Veneza, com seu criado negro, Filomeno. Os dois passam, primeiramente, pela Espanha, e constatam que, ao contrário dos rumores que corriam na América de que esse país seria belo, limpo e harmonioso, encontram-no feio, sujo e envelhecido. Transcorrido algum tempo de viagem, chegam a seu destino: a cidade de Veneza. Em pleno Carnaval, Amo e Filomeno protagonizam um concerto diferenciado, que reunirá os maiores nomes da Europa barroca, mesclando a música do Velho e do Novo Mundo, fatos, espaços e personagens da História, transgredindo barreiras cronológicas. Em linhas gerais, essa seria a história contada no romance de Alejo Carpentier. No que diz respeito à sua diegese, salientam-se duas questões: A personagem Amo não possui nome no transcorrer da história, somente no Carnaval veneziano, será tratada como Montezuma que, como se sabe, foi uma das figuras centrais da História de Conquista. Há, no espaço diegético do Concerto, certo entrelaçamento de personagens que não conviveram no mesmo espaço cronológico, como também, dos fatos da História Oficial, ratificando a estrutura barroquizante da obra, objeto de estudo de nosso trabalho.
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2. TÓPICOS ESTRUTURAIS DO NEOBARROCO EM CONCERTO BARROCO 1 – Artifício Nódulo, barro, exagero e desperdício. Esses quatro substantivos nos auxiliam a compreender um pouco a concepção sarduyana sobre o barroquismo literário hispanoamericano. É essa estética, sobretudo, artificialização do discurso: não há objetividade explícita, de forma que o tecido discursivo se transforme em cadeias de signos artificializadas que, se por um lado ornamentam o texto, por outro ziguezagueiam o sentido de suas construções; em consequência disso, o significado toma outras formas, que não a direta, transformando o texto em um labirinto linguístico. Note-se em ―[...] a visitante noturna [...] cruzando as pernas no mais aberto descaramento, enquanto a mão do Amo se lhe extraviava entre as rendas das anáguas, buscando o calor da segreta cosa cantada por Dante.‖ (CARPENTIER, 1985, p.12) (Grifo nosso). O termo aqui que corresponderia, em um primeiro momento, ao órgão sexual feminino é escamoteado e substituído por segreta cosa, que no contexto nos revela seu sentido original e que, digno de nota, traz então, no discurso, um significado segundo que se relaciona à intertextualidade com Dante e com o caráter jocoso da descrição, comumente empregados no discurso neobarroco hispano-americano. Outra construção típica do barroquismo latino-americano seria a proliferação desordenada de signos, segundo Sarduy. O enunciado multiplica-se, às vezes em substantivos, outras em adjetivos, que não cessam. Esse processo implica em um disparate de justaposições, ou aproximação de termos considerados heterogêneos; enfim, uma descrição abusiva no discurso, que, não raro, faz com que o leitor perca o fio condutor da leitura, e tenha de retomar o trecho em que ocorre tal efeito. Trata-se de uma ―cadeia de significantes que progride metonimicamente‖, uma ―justaposição de unidades heterogêneas, lista díspar e colagem.‖ (SARDUY, 1979, p. 62). Esse recurso pode ser reconhecido no início da narrativa, em que há uma descrição dos elementos que seguiriam viagem e dos que ficariam no Continente Americano. Ocorre uma divisão desses objetos, pormenorizada pelo Amo, que naquele momento é o narrador da história. Observe-se o emprego exaustivo do vocábulo prata, que ora é utilizado no enunciado com valor substantivado, ora assume papel de adjetivo, caracterizando os objetos descritos. De mesma importância, desenvolve-se o jogo construído entre as palavras prata e pratos, apresentando ao leitor uma aliteração em p e t que corrobora a musicalidade e o caráter circular-proliferante do excerto: ―De prata as delgadas facas, os finos garfos; de prata os pratos onde uma árvore de prata lavrada na concavidade de suas pratas [...]; de prata os pratos fruteiros, [...] de prata os pratos peixeiros [...]. (CARPENTIER, 1985, p. 7) Seguindo as considerações acerca do barroquismo, outra forma de artificialização do discurso se dá por meio de condensação, que consiste em formar um determinado signo linguístico a partir da aglutinação de outros dois que, a partir de então, passam a revelar um significado diferenciado do que se fossem aplicados de forma separada. Tal estratégia estilística, se atentarmos para seu caráter extratextual, nos revela um mecanismo de explicitação, no discurso, do inter-relacionamento de culturas, reclamando para o romance, caráter híbrido de constituição. Trata-se, pois, de um efeito análogo ao processo de condensação, compondo uma ―prática do barroco: a permutação, espelhamento, fusão, intercâmbio entre os elementos – fonéticos, plásticos‖ (SARDUY, 1979, p. 65) que ―resulta em um terceiro termo que resume semanticamente os dois primeiros‖ (SARDUY, 1979, p. 65).
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De fato, vê-se dito mecanismo em diversos momentos da narrativa; dentre eles, o que nos chama a atenção é a passagem em que o Amo, já na Europa, se deleita com um vinho que não é romano, nem espanhol, mas um produto da intersecção entre essas duas culturas [vinho romagnola]. O contraste é obtido por meio de aglutinação dos signos que fazem referência à Espanha e a Roma: ―A irmã porteira apareceu com dois cestos repletos de empadas, queijos, pão de rosca e croissants, [...], sobre os quais assomavam os gargalos várias garrafas de vinho romagnola.‖ (CARPENTIER, 1985, p. 53). Ainda nesse recurso, pode-se observar na obra de Carpentier, ocorrência de outras estruturas de condensação, que atuam no nível dos signos culturais híbridos, como é o caso de "Montezuma entre romano e asteca" ou "sandálias e huipil iucatano". O terceiro termo subsiste, também, na intersecção dos dois elementos anteriores que, neste caso, encontram-se na conjunção interpretativa e não lingüística. 2 – Paródia A paródia é elaborada como um recurso estilístico utilizado para evocar insatisfação e contrariedade quanto a um determinado modelo respeitado e tido como clássico, por suas qualidades de forma e de conteúdo, mas que, em uma leitura diacrônica, começa a sofrer desgaste. No que diz respeito à Literatura, tal modelo é posto à prova, sendo reelaborado e transgredido, produzindo, geralmente o efeito de humor no sujeito que decodifica os signos e conecta o texto parodiado ao que é lido. Assim, o elemento paródia, grosso modo, pode ser tomado como produto de uma reação contrária a determinados paradigmas sócio-culturais, políticos, ideológicos e, inclusive, estéticos que vigeram em uma dada sociedade, em certo momento, mas que se tornaram insuficientes para traduzir sua problemática, em outro tempo, no caso, no "agora" em que se produz o texto-paródia. Essa insuficiência, levada às últimas consequências, causaria um intenso desconforto que conduziria à produção da referida estética. Tal procedimento literário ocorre no romance Concerto Barroco, porém, sua construção é feita, por meio de uma estratégia um pouco mais complexa, abrangendo algumas questões que foram pontuadas por teóricos mais recentes. O que o tornaria especial, para eles, seria, entre outros aspectos, duas propriedades centrais: 1 – utilização do recurso, em concomitância a um determinado jogo entre real e nãoreal, travado no discurso literário; 2 – aparição do elemento de paródia em textos inseridos de forma fragmentada no discurso: o metatexto e a citação. Nesse caminho, pode-se constatar que o efeito de paródia não teve poucas ocorrências nos romances hispano-americanos do século passado, que o empregavam, inculcando no texto, discussões sobre as verdades históricas e sua possibilidade de sofrer falseamento ou manipulação. Considerando-se o romance uma metaficção historiográfica, é inegável que, no procedimento de construção da paródia ―existe una utilización simultánea de intertextos literários e históricos”. A sua vez, esse mecanismo “da lugar a un nuevo fenómeno dentro de la práctica de la cita‖, constituindo, assim, “un tipo de "parodia seriamentente irónica", dado su contradictorio doble carácter.”(RINCÓN, 1995, p. 154) E a Bíblia voltou a tornar-se ritmo e a morar entre nós com "Ezekiel and the wheel", antes de desembocar num "Hallelujah, hallelujah", que evocou, para Filomeno, subitamente, a pessoa d'Aquele — o Georg Friedrich daquela noite — que descansava, sob uma abarrocada estátua de Roubiliac, no grande Clube dos Mármores da Abadia de
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Westminster, junto ao Purcell que tanto sabia, também, de místicas e triunfais trombetas. (CARPENTIER, 2008, p. 83) Tem-se, neste caso, a Bíblia como objeto de intertextualidade. Os fragmentos tomados nessa passagem estão relacionados à cantiga "Ezekiel and the whell" e manifestações de "Hallelujah, hallelujah", de forte proximidade com o catolicismo. O estranhamento contido nessa cena, que causa incômodo, é a coexistência de tal objeto, tido como sagrado pela cultura ocidental, com "místicas e triunfais trombetas", estátuas do compositor francês Roubiliac e do britânico Purcell, e, sobretudo, com a música que insere ao contexto, uma atmosfera bem mais profana que religiosa. Assim, a imagem formada, a partir da relação desses elementos, é de uma espécie de mosaico, oriundos das mais diversas culturas, que formam uma "festa", um "concerto" de signos, que se manifestam nos inter-textos do romance. Dentro da concepção sarduyana de Paródia, esse recurso é, antes de qualquer coisa, ―uma incorporação de um texto estranho ao texto‖, ―colagem ou superposição à superfície do mesmo – forma elementar de diálogo‖. Esse traço está concatenado à sua concepção de paródia e carnavalização do discurso, como mistura de gêneros, ou intrusão de um tipo discursivo em outro. Seria, pois na ―carnavalização do barroco que se insere, um traço específico, a mistura de gêneros, a intrusão de um tipo de discurso no outro‖ (SARDUY, 1979, p. 69). Filomeno foi se aproximando lentamente da imagem, como se temesse que a Serpente pudesse saltar para fora da moldura e, batendo numa bandeja de rude som, olhando os presentes como se oficiasse numa estranha cerimônia ritual, começou a cantar:
Mamita, mamita, ven,ven,ven, Mírale lo sojo Que parecen candela Mírale lo diente [...] (CARPENTIER, 1985, p. 49) Outra aparição da intertextualidade se dá através de um tipo diferenciado, que é nomeado por Sarduy como Citação. Segundo o autor, seria uma incorporação de uma personagem, de uma frase ou de um contexto à história que está sendo construída. Esse recurso ilustra o diálogo entre obras, muitas vezes, obtido por meio de ironias que são direcionadas ao texto com que se estabelece contato. Na obra Concerto Barroco, são estabelecidas relações com diversos textos e, também, com a História. No decorrer da narrativa, há referências a Silvestre de Balboa, ao pintor Michelângelo, ao poeta Horácio e ao músico Antonio Vivaldi, a citar alguns. [...] tratou o mexicano de entreter seu criado com a história de um fidalgo louco que havia andando por aquelas regiões e que, numa ocasião, tinha acreditado que uns moinhos (―como aquele ali...‖) eram gigantes. Filomeno afirmou que tais moinhos em nada pareciam gigantes e que gigantes de verdade havia uns, na África, tão grandes e poderosos, que brincavam à vontade com raios e terremotos. (CARPENTIER, 1985, p. 32)
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Neste excerto, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes é o texto parodiado e, como se nota, há inserção desse objeto citado por fragmentação e utilização do recurso paródia, em concomitância com o jogo entre ficção e realidade, incutido no discurso. Ora, sabe-se que a história do fidalgo e seu escudeiro Sancho está documentada em um livro de origem espanhola. Assim, o estranhamento provocado pela citação da obra cervantina encontra-se no fato de seu enredo não ser tomado como uma ficção, como uma história escrita, mas sim, por insinuar e confundir o relato com algo acontecido na história, do ―mundo real‖, embaralhando os conceitos de realidade e não-realidade, no discurso. Essa ancoragem no real é feita com o comentário da personagem Mexicano: "(como o que você pode ver ali)", pelo emprego do verbo ver, indicando constatação da verdade; isto é, a intenção do Amo, com tal comentário, é dizer: eles (os moinhos) existem, sim! O efeito de paródia toma mais corpus, quando a personagem Filomeno relativiza a concepção europeia do que é relatado (sobre moinhos e gigantes, verdade e mentira, real e imaginário), com as crenças africanas, induzindo a um diálogo que desloca o centro para outra cultura. A fala do criado negro: "gigantes de verdade havia alguns, na África, tão grandes e poderosos que brincavam à larga com raios e terremotos...", maximiza a perda da objetividade e da possível verdade, atribuída ao discurso histórico e às Verdades tidas como absolutas, fazendo da passagem um hilário jogo com os discursos, problematizando a noção de história oficial. 3 - Erotismo Como um determinado efeito estético conseguido pelo emprego do barroquismo literário, o erotismo literário se revela na ruptura que é produzida na linguagem direta e objetiva. A artificialização do discurso implica numa não intencionalidade de se transmitir mensagem, como também em um desperdício, em um esbanjamento de signos que proliferam encadeados uns aos outros.
No erotismo a artificialidade, o cultural, se manifesta no jogo com o objeto perdido, jogo cuja finalidade está em si mesmo e cujo propósito não é a veiculação de uma mensagem – a dos elementos reprodutores neste caso – mas seu desperdício em função do prazer. Assim, como a retórica barroca, o erotismo se apresenta como a ruptura total do nível denotativo, direto e natural da linguagem – somático – como a perversão que implica toda metáfora, toda figura. (SARDUY, 1979, p. 78) Note-se como se inicia o IV capítulo de Concerto Barroco: Em cinza de água e céus enevoados, não obstante a suavidade daquele inverno; sob o acinzentado de nuvens matizadas de sépia que se pintavam, embaixo, sobre as amplas, fofas, arredondadas ondulações — indolentes em seus vaivéns sem espuma — que se abriam ou se misturavam ao serem devolvidas de uma a outra margem; entre os esfuminhos de aquarela muito aguada que esbatiam o contorno de igrejas e palácios, com uma umidade que se definia em tons de alga sobre as escadarias e os atracadouros, [...] entre cinzentos,
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opalescências, matizes crepusculares, sanguinas apagadas, fumaças de um azul pastel, tinha estourado o carnaval, o grande carnaval da Epifania, em amarelo-laranja e amarelo-tangerina, em amarelocanário e em verde-rã [...] (CARPENTIER, 1985, p. 35) (Grifo nosso) A mensagem direta e objetiva do fragmento anterior é bastante reduzida [tinha estourado o carnaval, o grande carnaval da Epifania], se a compararmos com a extensão do todo transcrito; ao passo que o início do capítulo, no discurso, apresenta como funcionalidade tão-somente o desperdício linguístico, revelando, por conseguinte, o caráter 'erotizante' do neobarroco. A proliferação erótica presente no excerto não cessa, no momento em que a mensagem foi transmitida (anúncio do Carnaval) e o discurso retoma seu caráter de signos em cadeias [em amarelo-laranja e amarelo tangerina, em amarelo-canário e em verde-rã...] ao longo do discurso narrativo.
3. IDEOLOGIA BARROCA DE CARPENTIER Se, no plano da estruturação enunciativa, Sarduy nos propõe tópicos que revelam mecanismos estéticos do neobarroco, no campo ideológico acerca do assunto é o próprio Carpentier quem nos elucida questões pertinentes ao contexto de produção literária hispano-americano. O escritor do Concerto busca a palavra própria do Novo Continente, que não seja importada da Europa e, por conseguinte, que não desconsidere os elementos que compõem sua cultura, no processo de construção do discurso. Assim, mesclar vocábulos [romagnola], construir estruturas culturalmente híbridas como [Montezuma entre romano e asteca], proliferar signos em descrições agonizantes [De prata as delgadas facas, os finos garfos; de prata os pratos...] ou ainda esconder o significante primeiro, substituindo-o por outro [segreta cosa] são recursos que apontam para uma preocupação estética infiltrada no ideal de América como uma pluralidade inter-relacionada de elementos oriundos de fontes europeia, indígena, africana... típica do escritor. A perseguição do autor por formas que lembram outras artes, sobretudo, a música, é um traço bastante notável em suas obras e, em Concerto Barroco, vê-se essa estrutura. Sendo a arte musical um espaço em que há interação ou transposição de temporalidades, ela abre margem para uma tentativa de reinterpretação da História de Conquista do Continente Americano, deslocando e, mais ainda, questionando o trajeto da viagem protagonizada pelos espanhóis, pois, não por acaso, é pelo inverso do trajeto dos viajantes europeus que se dá a narrativa carpentieriana. O foco torna-se, a partir de tal postura, o Novo Mundo e a voz ideológica, por sua vez, é a do Homem latino-americano. Música y épica son dos factores de primerísima importancia en la producción literaria de Alejo Carpentier. Más de una vez se han señalado el carácter y los elementos épicos en esta obra, que encierra el esfuerzo más serio y logrado de um novelista latinoamericano por crear una forma – a un tiempo nuestra y universal – capaz de captar lo esencial de esa epopeya que es la historia de nuestra América. (ACOSTA, 1981, p. 13)
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Neste caso, o estudioso Leonardo Acosta, nos coloca a conexão que há entre a arte musical e o barroco. Para o autor de Música y épica en la novela de Alejo Carpentier, a circularidade é condição inerente ao barroco e, sendo assim, transgride a concepção de história com fluxo temporal linear. La forma circular es, desde luego, negadora del tiempo según la perspectiva del esquema lineal del mismo que ha caracterizado a la filosofía burguesa occidental, y sobre todo a partir del concepto burgués del ―progreso‖. Pero esto no quiere decir que el autor se adhiera a uma concepción cíclica de la historia, como han querido ver algunos analistas y críticos de su obra. Se trata, ante todo, de un recurso formal tomado de la música y, específicamente, del barroco (...) (ACOSTA, 1981, p. 19). Transplantado no discurso de Concerto Barroco, esse vértice ideológico carpentieriano de busca pela identidade hispano-americana, por meio do barroco, se faz transparecer no comportamento da personagem Amo, ao longo da narrativa e, sobretudo, nas últimas páginas do livro, em que há um extravasamento da subjetividade, por meio de monólogo interior, trazendo à tona a auto-reflexão sobre esse aspecto. Esse processo reflexivo é, em termos mais abrangentes, análogo ao que se submete o Homem latino-americano no mundo. Diante da América de artifício do mau poeta Giusti, deixei de sentir-me espectador para tornar-me ator. Tive ciúme de Massimiliano Miler, por vestir-se com a roupa de Montezuma que, de repente, tornou-se tremendamente minha. Parecia-me que o cantor representava um papel a mim destinado, e que eu, por ser fraco e medroso, fora incapaz de assumir. E senti-me subitamente fora da situação, exótico neste local, fora de lugar, longe de mim mesmo e de tudo que é realmente meu... Às vezes é preciso afastar-se das coisas, pôr um mar no meio, para ver as coisas de perto. (CARPENTIER, 1985, p. 77) Nos meandros dessas considerações, resta ao leitor mais atento, uma indagação ressonante: afinal, qual é o 'rosto' do Amo? Seria ele um indígena? Um mexicano? O próprio Montezuma? Essas questões, possivelmente, não tenham uma resposta categórica. Talvez, seja o caso de considerá-las como ponto-chave para se compreender a ideologia barroquizante de Carpentier e conduzi-las a um plano de significação contextual: afinal, qual é o caráter identitário do Hispano-americano? – postura que está no cerne das propostas do autor do Concerto. O titilo do romance já nos antecipa duas propostas bastante pertinentes, se queremos estabelecer diálogo com Carpentier teórico. São elas a estrutura narrativa estar atrelada a duas outras manifestações artísticas (a Música e o Teatro), como também a utilização desse recurso para organizar esteticamente a cronologia da história presente na obra. Veja-se o esquema gráfico a seguir: * correlação com estrutura musical Estrutura Narrativa * correlação com o teatro
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A priori, se considerarmos a obra em questão como uma estrutura narrativa que apresenta influência de outras artes (no caso, a Música e o Teatro) a discussão acerca do recurso de agregar fatos, espaços e personagens da História, em interpolações constantes na narrativa, assume teor legítimo, já que tomar o constructo narrativo como uma estrutura sinfônica, bem como, atribuir a ele perspectivas cênicas, desautoriza a temporalidade linear e, por sua vez, reorganiza o tempo diegético, fazendo dele uma espécie de oráculo, em que é possível confluir presente, passado e futuro. Esse mecanismo, segundo Carlos Fuentes (1990), em seu Valiente Mundo Nuevo: épica, utopía y mito en la novela hispanoamericana, seria típico de Alejo Carpentier, uma vez que o autor cubano busque, não raramente, alcançar uma "utopía temporal", através de "un avanzo en el espacio, buscando el manantial de la música". Carpentier transporta para seu trabalho de construção narrativo a "melodia como totalidade coerente significativa", à semelhança de uma sinfonia, já que esta se configura como uma ―totalidade que engloba, como atualidade, o presente, o passado e [...] o futuro, como um horizonte de possibilidades e expectativas.‖ (ROSENFELD, 1996, p. 82) Típica da narrativa Carpentieriana, a interpolação de temporalidades na história, fazendo desta um emaranhado de fatos que passam a pertencer a uma cronologia isotópica, assumem uma postura de contestação do que seria realmente a História e discute essa última sob uma ótica americana. Faz-se, a partir de então, uma interferência no discurso histórico eurocêntrico, surgindo a possibilidade de leitura e interpretação dos fatos pelo americano. Carpentier, desta forma, nos apresenta o caráter ideológico incrustado no discurso neobarroco da Literatura hispano-americana de seu tempo e, é possível inferir que, nesse aspecto, a ideologia barroquizante de Alejo Carpentier se encontra com a de Sarduy, uma vez que este considere o estilo, uma voz da Literatura "que recusa toda instauração e que metaforiza a ordem discutida", um barroco que não aceita o que foi imposto e que num concerto encontra margem para o diálogo.
REFERÊNCIAS: ACOSTA, Leonardo. Música y épica en la novela de Alejo Carpentier. La Habana: Letras Cubanas, 1981 CARPENTIER, Alejo. Concerto Barroco. São Paulo: Brasiliense, 1985 ______. Razón de Ser. La Habana: Letras Cubanas, 1984 CHIAMPI, Irlemar. Barroco e Modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1998 FUENTES, Carlos. Valiente Mundo Nuevo: Épica, utopía y mito en la novela hispanoamericana. México (D.F.): Fondo de Cultura Económica, 1990 RINCÓN, Carlos. La no simultaneidad de lo simultáneo: postmoderidad, globalización y culturas en América Latina. Bogotá: Universidad Nacional, 1995 ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1996 SÁNCHEZ, Cristo Rafael Figueroa. De los resurgimientos a las fijaciones del neobarroco literario hispanoamericano. In: Poligramas del grupo Relecturas de la historia literaria hispanoamericana: formación, transmisión y revisión del canon, 2006 SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. São Paulo: Perspectiva, 1979
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ALMEIDA GARRETT: A ESTÉTICA ROMÂNTICA NAS ARTES CÊNICAS PORTUGUESAS Edson Santos Silva 1 Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar um breve panorama da estética romântica nas artes cênicas portuguesas. A partir de Almeida Garrett, o teatro português dará os primeiros passos em busca de um teatro nacional, sobretudo por meio dos dramas históricos e de atualidade. Palavras-chave: Garrett- teatro romântico- drama de atualidade- drama histórico ALMEIDA GARRETT: THE ROMANTIC ESTHETIC IN THE PORTUGUESE PERFORMING ARTS Abstract: This article aims to present a brief overview of the romantic esthetic in the Portuguese performing arts. From Almeida Garrett, the Portuguese theater will give the first steps in search of a national theater, with historical and current dramas. Key Words: Garret – romantic theater – current drama – historical drama
Almeida Garrett é considerado o introdutor do Romantismo em Portugal, em 1825, com o poema Camões. O título da obra já deixa clara a postura nacionalista do autor: a vida do grande poeta Luís Vaz de Camões será posta em revista. Curiosas são suas palavras no prefácio à primeira edição: Não sou clássico nem romântico; de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia (assim como em coisa nenhuma), e por isso me deixo ir por onde me levam minhas idéias boas ou más, e nem procuro converter as dos outros nem inverter as minhas nas deles: isso é para literatos de outra polpa, amigos de disputas e questões que eu aborreço. (1904) De todos os meios artísticos, Garrett elegerá o teatro como basilar, tanto para levar sua voz liberal, quanto para colocar em cena o projeto engajado de sua dramaturgia. Não seria exagero afirmar que o Romantismo luso possui um nome e um gênero teatral autônomo: Almeida Garrett e o drama. Claro está que a palavra ―drama‖ não será usada como categoria literária que se opõe à categoria do lírico e do épico, mas sim como aquele gênero teatral definido por Victor Hugo e defendido por Garrett, ou seja, o drama seria a junção do sublime com o grotesco e, por isso, se endereçaria às massas burguesas. Será com Almeida Garrett que o teatro português passará por uma profunda reforma e será também por ele que, em 1838, com o drama Um Auto de Gil Vicente, nascerá a estética romântica nas artes cênicas portuguesas. 1
Professor doutor em Literatura Portuguesa, pela USP. Professor do ensino superior naUNICENTRO Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná- DELET - Campus IRATI
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Inicialmente, faz-se necessário analisar a situação do teatro português antes de Garrett assumir o cargo de Inspetor Geral dos Teatros e Espetáculos, em 1836. A situação do teatro em Portugal antes do advento do Setembrismo era esta: enquanto o povo inculto se divertia com os entremezes e as farsas de cordel, a Corte se encantava com as montagens faustosas da ópera italiana, responsáveis pela desnacionalização do teatro luso. A burguesia letrada, por sua vez, aplaudia tragédias imitadas do francês. Acrescente-se a estes dados a penúria das casas de espetáculos em Portugal, no século XIX. Com exceção do teatro de São Carlos, em Lisboa, e o São José, no Porto, havia espaços menores que levavam à cena espetáculos de qualidade duvidosa, como o Teatro do Bairro Alto, o Teatro do Salitre e o Teatro da Rua dos Condes. No âmbito político, o Setembrismo (1836-1840) teve curta duração, não obstante ocorreram, nesse período, grandes inovações legislativas, sobretudo no campo da cultura. Vale ressaltar que foi por essa época que Garret trabalhou incansavelmente pela reforma do Teatro Nacional. Os gêneros entremezes, farsas de cordel, ópera italiana, tragédias imitadas do francês, representados nos palcos portugueses, segundo Garrett, eram inadequados à burguesia que o Setembrismo promovia, ou seja, após a Revolução de Setembro nascia um novo público e era urgente criar uma nova forma dramática, uma vez que ―o gosto do público sustenta o teatro‖. (1966, p. 1320) Em suma, Garrett queria criar um teatro para o povo, porque como repetira inúmeras vezes, ―é preciso entender para apreciar e gostar‖. (1966, p. 39, v.2) Diante do nível cultural dos portugueses à época, o teatro serviria de livro para aqueles que não possuíam livros. A ilusão teatral, para Garrett, portanto, estaria em vantagem se comparada, por exemplo, com a epopeia, por ser mais viva e natural, uma vez que a totalidade da Nação ―não lê, nem sabe de poemas, que sobretudo longos, não entende.‖ (1966, p. 1994, v.2) Diante desse quadro, Garrett, ciente de que não havia em Portugal um teatro material à altura desse nome, nem um drama, nem atores, apenas traduções e adaptações, começará a dar os primeiros passos em busca de um teatro nacional. De início, fará com que o Teatro da Rua dos Condes passe a funcionar como Teatro Nacional e Normal, até que se construísse o Teatro Nacional D. Maria II, cuja inauguração se daria em 13 de abril de 1846. Em 1839, começa a funcionar o Conservatório, dividido em três seções: Escola Dramática, Música e Dança, Mímica e Ginástica Especial. Em seguida, nesse mesmo ano, realiza-se o primeiro concurso para atribuição de prêmios às peças de teatro consideradas, por Garrett, meio de divertimento, instrução e edificação do povo lusitano. No tocante a atores estrangeiros, ―convém estudá-los, convém imitá-los no que é imitável, nacionalizando-os; mas o que faz gala de imitar às tontas os estrangeiros e desprezar os seus, não é só tolo, é ignorante e estúpido.‖ (1966, p. 1497, v.1) Aponta Garrett que a mais urgente das três necessidades do teatro – um teatro material, um drama, um ator – era a formação de um repertório dramatúrgico original, e completa que era necessário compor dramas nacionais e não se limitar apenas a traduções e adaptações de estrangeiros. Esta ideia já fora esboçada em 1827, quando Garrett vaticinava: ―[...] Tem as histórias dos nossos reis antigos tanto facto dramático ou seja para tragédias ou para comédias! E tudo é traduzir as peças estrangeiras, os factos da história que não são nossos, que nos não interessam.‖ (BARATA, apud BUESCU, 1997, p. 144) Instalado o provisório Teatro Nacional no Teatro da Rua dos Condes, Garrett organizará uma Companhia, e nela reunirá os melhores artistas de época, entre eles, Carlota Talassi, Florinda Toledo, João Anastácio Rosa e a estreante Emília das Neves, que brilhará nos palcos paulistanos entre 1864 e 1898. A direção da Companhia ficou a cargo do ator e encenador francês Emile Doux. No repertório da Companhia constarão dramas do
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romantismo francês, que de certo modo influenciarão na evolução da dramaturgia romântica portuguesa. Quatro autores terão destaque no período: Victor Hugo, Alexandre Dumas, Pixerécourt e Scribe. A estreia da Companhia no antigo Teatro da Rua dos Condes deu-se a 07 de janeiro de 1837, com o melodrama Há 16 anos ou Os Incendiários, de Victor Delange. Todavia, somente a 15 de agosto de 1838 subiria ao palco Um Auto de Gil Vicente, peça cujo tema fora extraído da história pátria e, portanto, a primeira obra a compor a formação de um repertório dramatúrgico original, como desejava o autor do drama. Convém frisar desde já, como aconselha Décio de Almeida Prado (1972), que as divisas entre drama romântico e melodrama nunca primaram pela nitidez, ainda que se trate de Garrett, dramaturgo que sempre se bateu contra a tirania do gênero melodramático. De qualquer modo, com Garrett ―o romantismo perde a virulência, suaviza-se, sentimentaliza-se, revela a sua face angélica, freqüente na poesia lírica, mas raríssima no palco.‖ ( p. 44) A partir desse momento, surgiram da pena garrettiana outros textos teatrais, cujos assuntos, deliberadamente, eram extraídos da história pátria: Filipa de Vilhena, (drama histórico, assim como Um Auto de Gil Vicente), que os alunos do Conservatório representaram com o título Amor e Pátria, no Teatro do Salitre, em 30 de maio de 1840. Em 1841, vem a lume O Alfageme de Santarém, e seus cinco atos em prosa subiram à cena em março de 1842. No ano seguinte, é escrita a obra prima da produção dramatúrgica de Garrett: Frei Luís de Sousa, composta por três atos em prosa, sendo representada pela primeira vez no mesmo ano de publicação (1843). Com essas obras, Garrett lançará as bases para a restauração do teatro português. O resultado do concurso instituído pelo Decreto de 15 de novembro de 1836, por ideia de Garrett, apresenta alguns dados que colaboram para entender o teatro português no século XIX. As mais de vinte peças que se apresentaram ao concurso tinham temática eminentemente histórica e pode-se dizer que o melodrama histórico foi a tônica dominante nos palcos portugueses nesse século. Era, portanto, um teatro convencional em que os lugares cênicos de todas as peças apresentavam mais ou menos os seguintes ambientes: ora uma sala de armas, ora uma cela de convento, um cárcere subterrâneo ou ainda uma floresta sombria. Nesses cenários aconteciam enredos previsíveis e crimes hediondos, que apresentavam, como é comum nos melodramas, uma visão maniqueísta de mundo em que as personagens se dividiam entre vício e virtude, culpa e inocência, perfídia e bondade. E em 1842, foi exarada a fls. 119, a seguinte sentença definitiva, de Joaquim Larcher, vice-presidente do Conservatório e Inspecção Geral dos Teatros, a propósito do concurso: Tendo se resolvido, na conformidade do artigo cinqüenta e três, capítulo quinze, título segundo dos Estatutos, em sessão plena e pública do Conservatório Real de vinte e seis de março de mil oitocentos e quarenta e dois que, entre os dramas admitidos às provas públicas nos anos de 1839 a 1840 e de 1840 a 1841, deveriam obter o prêmio definitivo os seguintes: a saber: Os Dois Renegados – O Camões do Rossio – Os Dois Campeões – e O Cativo de Fez - imediatamente se procedeu à abertura das cédulas, havendo-se por dispensado o que determina o artigo cinqüenta e quatro dos Estatutos, em atenção à extrema demora que este processamento havia tido, e foram proclamados por autores das ditas peças: a saber d‘Os Dois Renegados, o Sr. José da Silva Mendes Leal Junior - d‘O Camões do Rossio o Sr. Inácio Maria Feijó – d‘Os Dois Campeões o sr. D. Pedro de Costa e Sousa de Macedo – e d‘O Cativo de Fez o Sr. Antonio Joaquim da
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Silva Abranches. Portanto, mando que se expeça a favor de cada um dos ditos autores, ou de seus cessionários, ordens de pagamento pela soma complementar do prêmio. Sobre o empresário que é, ou era, do Teatro Nacional Normal a quem, na forma das escrituras incumbe satisfazê-lo. Conservatório Real de Lisboa e Inspecção Geral dos Teatros e Espetáculos do Reino em trinta de março de 1842. Essa informação permite asseverar que os planos de Garrett para fomentar, como ele fizera com Um Auto de Gil Vicente, o drama histórico, não surtiram efeito, como será observado nas outras peças premiadas, isto porque ―... assistiu-se a uma manifesta desproporção entre os ideais propugnados pela teorização garrettiana e a prática dos muitos que, seduzidos pelo caminho traçado, não sabiam, porém, rechear com verdadeiro talento poético-dramático o esquema formal proposto.‖ (BARATA, 1991, p. 294-295) Os ideais defendidos por Garrett podem ser resumidos pela defesa que ele faz, no prefácio que antecede Um Auto de Gil Vicente, ao gênero drama, único capaz de satisfazer uma sociedade nascida com o Setembrismo; devido à indefinição de tal sociedade, casa-se com o drama, gênero ―ainda balbuciante‖, mas capaz de modificar os pensamentos que a produziram. Em outras palavras, Garrett queria, através do teatro histórico, criar um novo gênero que agradasse à classe média, como atestam suas palavras: [...] Os leitores e os espectadores de hoje querem pasto mais forte, menos condimentos e mais substancial; é povo, quer verdade. Dai-lhe a verdade do passado no romance e no drama histórico, no drama e na novela da actualidade oferecei-lhe o espelho em que se mire a si e ao seu tempo, a sociedade que lhe está por cima, abaixo do seu nível – e o povo há-de aplaudir, porque entende: é preciso entender para apreciar e gostar. Eu sempre cri nisto; a minha fé não era tão clara e explícita como hoje é, mas sempre foi tão implícita. Quis pôr a teoria à prova experimental e lancei no teatro Um Auto de Gil Vicente. Já escrevi algures, e sinceramente vos repito aqui, que não tomei para mim os aplausos e favor com que o recebeu o público; não foi o meu drama que o povo aplaudiu, foi a idéia, o pensamento do drama nacional.‖ (1966, p. 1087, v. 1) O plano de Garrett não se concretizou, porque segundo Luiz Francisco Rebello, ―Mendes Leal abriu caminho a todo um repertório cujo pendor melodramático e folhetinesco eram tônica e isto se repetiu, também, com os outros vencedores do Concurso.‖ (1980, p. 56) O drama romântico, proposto por Garrett como gênero para atrair a ―nova sociedade‖ pós-setembrismo, tinha um claro projeto dramatúrgico, isto é, revisitar o passado para compreender o presente e com isso evitar, no futuro, erros pretéritos. Dentro desse projeto também ficava claro o desejo garrettiano do nascimento de uma geração de dramaturgos portugueses capazes de criar textos cujos temas fossem extraídos da história pátria. Com isso, evitavam-se, na óptica garrettiana, as meras traduções de peças, sobretudo francesas, com as quais seria inviável a criação de um teatro nacional. O projeto idealizado por Garrett se perdera nas mãos de seus seguidores oriundos inicialmente com o primeiro concurso instituído pelo Conservatório. Mendes Leal, Silva Abranches, Inácio Maria Feijó e Pedro Sousa de Macedo, ganhadores do primeiro concurso, não assimilaram as lições de Almeida Garrett e
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preocupados apenas em revestir as suas obras de uma cor local que eles confundiam com o pitoresco da linguagem arcaica e com todo um aparato puramente exterior e circunstancial, os dramaturgos da geração pós-garrettiana lançaram-se perdidamente na estéril reconstituição de um passado cuja verdadeira fisionomia lhes escapava por completo. (REBELLO, 1968, p. 76) Essa estéril reconstituição do passado foi tão explorada pelos dramaturgos que um crítico da época, Andrade Ferreira, chegou a dizer que o que se via nos palcos era a praga do drama histórico, porque ―tudo começou a escrever dramas históricos, e o drama histórico tornou-se o pesadelo das platéias e a cabeça de Medusa dos críticos respeitadores das severas tradições da cena.‖ (apud REBELLO, 1980, p. 52) O drama histórico, longe de desaparecer dos palcos portugueses, começa, entretanto, a dar sinais de cansaço. Aos poucos, assiste-se a uma transição de fôrmas na cena teatral, ou seja, o drama histórico cede espaço para o drama da atualidade. A partir de 1851, Portugal entra em lenta industrialização e este processo acentua-se com a construção da rede ferroviária, em 1856. Nascem, nesse período, uma desenfreada especulação financeira, e um descontentamento por parte das classes menos favorecidas. Como já dissera Garrett, para uma sociedade nova, um gênero novo. Em suma: diante da nova sociedade – a dos operários e a de uma industrialização crescente – os dramaturgos vão, através de suas peças, tentar corrigir as desigualdades e injustiças sociais a partir do teatro. As intenções dos escritores com o drama de atualidade serão, assim, humanitárias e sociais. Os modelos para tais dramaturgos serão os mesmos que balizaram o drama histórico, ou seja, seguiam ou procuraram seguir os modelos melodramáticos de Pixerécourt e Dennery, campeões do melodrama no século XIX. Os temas básicos dos dramas de atualidade poderiam ser resumidos em três conflitos capitais: entre o dever e a honra, entre o indivíduo e a sociedade e, por fim, entre a aristocracia decadente e a classe trabalhadora. Os mesmos excessos cometidos no drama histórico serão observados no de atualidade. O parentesco entre os gêneros é tão grande que Rebello chega a dizer que ―se não fossem outras a época em que se situava a ação e as roupagens envergadas pelos atores, nem se daria pela diferença. (1980, p.80) Assim, as personagens continuam convencionais, tal qual a maneira como se exprimem, e ainda: são peças artificiais e estruturalmente folhetinescas. O esgotamento do drama histórico e a mudança política operada em Portugal, com a queda do Cabralismo e o triunfo da Regeneração, levaram os autores dramáticos a mudar o rumo da criação dramática. Talvez as duas melhores definições do que seja este gênero venham das penas de dois escritores do gênero: Mendes Leal e Ernesto Biester. Para o primeiro, drama de atualidade é a comédia que não exclui as lágrimas, que sabe aliar a ironia com a veemência, o sarcasmo acerbo com a eloqüência audaz, as delicadezas de sensibilidade com os raptos de entusiasmo, que não gasta monotonamente uma corda única da atenção e do coração, mas faz vibrar todas, tirando de cada qual o seu som, é inquestionável o gênero, vário e multíplice, que mais se enquadra com o espírito móbil, perscrutador e inquieto de uma sociedade que é toda de acção. [...] tudo, em suma, concorrente à ação – ao drama, como lhe chamavam os gregos - , à acção tal como a sociedade oferece em
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exemplo ao teatro, tal como o teatro a deve relembrar em cópia e lição à sociedade. (Apud REBELLO, 1980, p. 76-77) Para Biester, o drama de atualidade deveria ser a ―reprodução verdadeira dos costumes contemporâneos, da vida do nosso tempo, da sociedade actual‖, ou seja, deveria ser ―a reprodução fiel do que o espectador vê todos os dias.‖ (REBELLO, 1968, p. 78) Justiça seja feita – Mendes Leal e Biester são os responsáveis pela incipiência teórica da estética realista em Portugal, todavia, como bem aponta Silvia Cristina Martins de Souza, os dois ―professavam um tipo de realismo bastante peculiar que, apesar de próximo do realismo francês, pelo lado das idéias, tendia à mistura de gêneros dramáticos, bebendo em fontes tão diversas quanto o drama, o melodrama e o dramalhão‖. E por isso ―o drama de atualidade‖, ou a ―comédia realista‖ [portuguesa] tal como esses dois dramaturgos defenderam na ocasião, deveria tirar de cada um desses gêneros sua parcela de ‗verdade‘ aproximando-se da realidade sem deixar de ser idéia e abraçando a vida com seus motivos para sorrisos e lágrimas, tudo sobressaindo em relevo pelo contraste e de acordo com a ação a qual a sociedade oferece como exemplo do teatro e este deve recambrar em cópia a lição à sociedade. (2002, p. 265) Os principais autores do gênero foram Mendes Leal, Ernesto Biester, César de Lacerda, Gomes de Amorim e Camilo Castelo Branco. O drama de atualidade trouxe, para os palcos portugueses, os bastidores políticofinanceiros da Regeneração, em que se veem em cena a observação crítica da sociedade, característica da comédia, aliada esta com as características do drama romântico: situações patéticas e expressão exaltada dos sentimentos. Dessa forma, todas as peças tentavam cumprir os dois requisitos básicos a que o drama de atualidade deveria obedecer – a ―cópia e a lição‖. Entende-se por cópia o retrato da sociedade, segundo os modelos maniqueístas que enquadravam os enredos. De um lado, fidalgos arruinados, políticos corruptos, jogadores e sedutores profissionais, jornalistas venais e especuladores e agiotas; e de outro, jovens donzelas vítimas, comumente, de ―predadores‖ para salvar a honra de pais, ingênuas seduzidas e abandonadas, filhos bastardos conquistando espaços pela via do trabalho, velhos serviçais capazes de morrer por seus senhores e, por fim, artistas incompreendidos. A lição, repetida à exaustão nos palcos, outra não era que aquela alardeada por Biester, ou seja, o castigo ao vício e o prêmio à virtude. Típico exemplo de melodrama de atualidade será Nobreza d’Alma (1858) Denominada drama, Nobreza d’Alma é de fato um exemplo típico do melodrama de atualidade, em que, nos dois atos que a compõe, há a exacerbação da ideologia do ―castigo ao vício e o prêmio às virtudes.‖ O enredo da peça gira em torno do altruísmo de Luís, pintor, cujo desejo é viver de sua arte. Luís tem como amigos, desde a infância, Doutor e Henrique. No momento em que se desenrola a trama, sabe-se que Doutor exerce sua profissão com dignidade e nobreza, além de ser defensor da pátria. Há, contudo, entre esta personagem e a irmã de Luís, Magdalena, um amor não correspondido, uma vez que a moça nutre afeto por Henrique, que no passado engravidara e abandonara a jovem Carlota. Na ausência de Henrique, que fora servir a pátria no exterior e agora voltara com uma medalha de honra ao mérito, Carlota e a criança foram protegidos e sustentados por Luís, com o pouco rendimento de sua atividade artística. Por último, o happy end acontece: Henrique assume a mulher e o filho, o Doutor logra o amor de Magdalena. Por fim, Leonor, esposa de Luís, orgulha-se da nobreza de alma do marido. Vale a pena chamar a atenção para alguns expedientes presentes na peça, pois eles atestam a permanência de uma fôrma, isto é, a melodramática, ao longo de todo o século XIX, nos palcos portugueses. Como se pode perceber, a peça em questão é um melodrama de
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atualidade. Se no melodrama histórico havia, na cena lusa, personagens inteiriços, em 1858, no de atualidade, há personagens com possibilidade de regeneração. Esta regeneração é claramente percebida em alguns personagens: Luís, outrora uma espécie de ―Don Juan‖, é agora o fiel esposo de Leonor, a quem dedica profundo amor e respeito; Carlota, antes impura, agora ―modelo de mães‖, a ponto de inspirar um quadro que dará a glória ―ambicionada‖ por Luís, depois de ter sido abandonada por Henrique, o aparente vilão da peça, e de ter ficado só no mundo após a morte de seu pai; Henrique, ao final da peça, regenera-se ao saber-se pai; todavia, quando viajou ―partia para uma longa viagem de recreio e estudo; de recreio, porque a fortuna que herdara lho permitia; de estudo, porque tinha nos hombros umas dragonas que desejava ilustrar‖ (BIESTER, 1958, p. 22) Dessa maneira, de um lado, o dinheiro a tornar o homem vil, Henrique, e por outro, a arte a nobilitá-lo, Luís. Essa dicotomia entre bem e mal, vício e virtude é motor da fôrma melodramática. Acrescentem-se a esse dado: a revelação de segredos por meio de carta: ―deixa cair a carta distrahidamente‖. (p.10); a purificação da alma através do trabalho ―(...) prefiro o do meu trabalho. Assim como não faltei com elle, queria poder contar com a indenisação‖. (p.11) Nesta fala, Luís defende seu trabalho de artista. Aliás, foi com esse trabalho que ele sustentara o filho de Henrique na ausência deste; por último, a honra do homem, a ―nobreza da alma‖ está no coração do homem. ―A honra de um homem deve estar no coração e quando está, todas páginas d‘elle são egualmente honrosas.‖ (BIESTER, 1858, p. 22) As paródias feitas ao melodrama por Gomes de Amorim e Camilo Castelo Branco não foram suficientes para pôr fim ao esquema de repetição dos dois gêneros em voga em Portugal – o drama histórico e o de atualidade. Em 1869 sobe ao palco A Morgadinha de ValFlor, de Pinheiro Chagas, logo alcançando um dos maiores sucessos em toda a história do teatro português. Tal êxito, entretanto, não foi capaz de minar os eventos pós 18 de março de 1871: proclamação da Comuna de Paris. Este fato foi, nas palavras de Rebello, o ―sinal precursor de uma transformação da sociedade que, no teatro, iria precisamente encontrar no Realismo a sua expressão mais conseqüente.‖ (REBELLO, 1968, p. 92) O artigo intitulado Chronica litteraria, de Ernesto Biester, publicado em 31 de janeiro de 1862, na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, (p.548 a 552) evidencia a importância da escola de arte dramática em Portugal. Antes, porém, de entrar no assunto do texto, Biester passa em revista o teatro romântico português. Afirma que ―quando a escola ultra-romântica estava em voga, apareceu em Portugal uma companhia francesa e ela interpretou na Rua dos Condes algumas peças daquele repertório.‖ O maior ator dessa Companhia de grande importância, tanto em Portugal quanto no Brasil, foi Emile Doux. Apesar de faltarem condições para ser ―bom mestre‖, Doux, segundo Biester, ensinou aos atores portugueses a inspiração, o belo rasgo e o entusiasmo íntimo. Esses expedientes estavam em concordância com o gênero a que pertenciam os dramas românticos representados, isto é, os grandes arrebatamentos, as exclamações ruidosas, os transportes exaltados. Gênero que devia ser grandioso, elevado, rico de esplendores, admirável nos arrojos da fantasia, ―mas falso, mas ideal‖. As personagens dos dramas românticos deveriam ser arrebatadas e seus enredos complicados e inverossímeis. Os artistas deixavam-se guiar, portanto, pela frase imaginosa do autor, ―que sendo como era, exagerada, lhe facilitava o exagero.‖ Em seguida, o gênero, ainda de acordo com Biester, modificou-se e surgem algumas composições menos exageradas e mais verdadeiras na ação e no desenho dos personagens, insinuando já a nova escola ―que tempos depois se chamou a escola do realismo.‖ Entre os dramas românticos e a escola realista nasceu o melodrama, gênero em que mais se sobressaíram ―os nossos melhores artistas‖. Biester passa, então, a explicar a razão
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pela qual o melodrama fora tão promissor em Portugal. E assevera: ―a razão consiste em que as suas vocações alvoreceram sob a influência desse gênero, que nunca deixaram de cultivar, embora modificado, para que os atrai necessariamente a educação artística que receberam.‖ Não estaria Biester referindo-se à influência de Emile Doux? Para Biester, a retomada ad infinitum do melodrama na cena portuguesa ocorria, talvez, em benefício ao cofre, mas prejuízo com toda a certeza à arte. [Esse prejuízo da arte ocorre porque] ―a inverossimilhança dos caracteres, dos diálogos e até do vestiário, é o que basta para arrefecer a inspiração de um artista que compreende a verdade e para quem repugna a mentira. Nada mais parvo do que um ator que se apaixona numa cena impossível, e que pronuncia eloqüentemente discursos absurdos. É por se escreverem obras semelhantes e por se representarem, que não há atores verdadeiros e todos deviam sê-lo. Quando o teatro for verdadeiro, todos os atores serão verdadeiros, mesmo os mais medíocres, os mais tímidos. Seja o teatro verdadeiro e todos que tiverem inteligência e coração serão grandes atores.‖ (BIESTER, 1862, p. 552) Após apresentar os malefícios do melodrama, tanto para os atores quanto para o público, Biester reafirma, categoricamente, que sem uma escola de arte dramática em Portugal não se pode falar em teatro, ―porque é uma arte quase perdida no mundo, e que só pelos esforços de um gênio completo poderá ressuscitar.‖ Como se pode constatar, Garrett, anos antes, implantara uma escola de arte dramática cujo objetivo era o mesmo ansiado por Biester: educar e habilitar os indivíduos que pretendiam seguir a carreira de teatro. O elenco de disciplinas dessa escola deveria contemplar a arte de declamar, o difícil estudo da gesticulação e só no terceiro ano seriam confiados aos discípulos os papéis de uma peça. Por fim, Biester sintetiza o objetivo principal a que deve se propor uma escola de arte dramática: ―habilitar, educar um discípulo que tiver vocação para interpretar e compreender por ação da própria inteligência, amestrada nestes exercícios, os variados papéis que lhes forem atribuídos.‖ Outro artigo imprescindível para melhor compreensão do teatro no Romantismo português é o intitulado Achaques da nossa literatura dramática, de José Maria de Andrade Ferreira, publicado na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, 1860. (p. 456 a 467) Como fizera Garrett, em 1836, e fará Eça de Queirós em 1871, José Maria de Andrade Ferreira inicia seu artigo apontando as causas da decadência/enfermidade do teatro, em Portugal, desde o século XVI. A primeira causa deve-se à usurpação do trono português pelos Phillippes, e as famosas comédias de Calderón, os sainetes e os entremezes de Ramon e Miguel Sanches e ainda algumas obras de poetas castelhanos e até o ―sentir e pensar de Castella para o coração e lábios de não poucos portugueses.‖ Esta invasão castelhana fez com que ―políticos degenerados‖ começassem a pensar com a cabeça dos ―nossos vizinhos‖, e os escritores passassem a compor no idioma de Cervantes. E na esteira do pensamento garrettiano, afirma Andrade Ferreira: ―por onde se vê que a praga dos estrangeiros sempre foi velha: os modos por que se tem manifestado esta doença é que tem variado.‖ Em outros termos, Garrett resumiria toda assertiva em uma palavra: tradução. Em suma, não houve teatro português sob o jugo castelhano.
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A segunda causa apontada diz respeito à corrupção moral, o jesuitismo, a tirania do fanatismo religioso e a Inquisição que impediam o desenvolvimento do teatro em terras lusas. A terceira causa surgiu na Arcádia. Isso porque se inaugurou com ela a quadra da literatura mitológica e, consequentemente, o desprezo pelos assuntos contemporâneos, nacionais, corriqueiros ou, em outros termos, ―a imitação resumia o seu dogma capital e fora dos gregos e latinos não reconhecia apóstolos nem evangelistas.‖ Depois da Arcádia, uma pior enfermidade, ―mais flageladora, não só para o teatro português, como para todos os teatros‖: o gênero sentimental ou lacrimoso, a que os franceses denominaram larmoyant e os espanhóis, por seu turno, chamaram lloron. Ao citar o melodrama, José Maria de Andrade Ferreira apresenta uma breve história do gênero. O melodrama nasceu na Alemanha, pelas mãos de Kotzebue, com o drama Mysanthropia e arrependimento. ―Não é fácil de prever os dilúvios de lágrimas e os abalos de sensações dolorosas que produziu seu drama‖. De fato, a partir da encenação desse drama, o gênero varreu os palcos mais importantes da Europa. Por muitos anos, o melodrama fez sucesso na França e fora dela e foi moda. Nas palavras de José Maria, essa moda fazia ―alarde de peito sensível a ponto de só levar ao palco produções dramáticas que fizessem chorar‖. Em Portugal, o melodrama fora introduzido no início do século XIX, por Antônio Xavier Ferreira de Azevedo, autor de mais de cinquenta títulos, entre eles, A sensibilidade no crime. Ainda segundo José Maria de A. Ferreira, as influências políticas que vieram após 1820 repercutiram no teatro de um modo lastimável, porque desviaram da cena os poucos talentos literários e as raríssimas vocações que procuravam, ainda que por caminhos que nunca poderiam chegar a fins satisfatórios e completos ―a restauração e lustre do teatro português.‖ Os efeitos da restauração liberal na década de 30 manifestaram-se em obras como Fronteiro d’África, Dois renegados, Homem da máscara negra, Cativo de Fez e Maria Telles. Essas obras apresentam um mesmo viés, isto é, ―a fantasia do poeta se deleita em divagar pelas eras decorridas e identifica-se com os seus personagens mais característicos.‖ Portanto, está-se diante de um teatro de recorte histórico e será essa forma ―a fisionomia quase absoluta dos dramas de então.‖ O drama histórico terá longa duração nos palcos portugueses e passará de um amor às tradições nacionais, de uma inspiração das idades cavalheirosas, de uma predileção do espírito poético de uma imitação a uma ―contagiosa mania literária‖, nefasta para a cena nacional. O drama histórico, irmão gêmeo do melodrama, fizera por pouco tempo desaparecer da cena portuguesa os dramas lacrimosos. Todavia, acompanhando o pensamento de José Maria Ferreira, houve um momento em que o drama histórico e o melodrama se identificaram e se consubstanciaram, formando o drama ultra, que seria uma ―espécie de caldeira‖ capaz de pôr aos pulos o coração do sexo feminino e ainda ―lançar nos mais terríveis pesadelos o espírito de um povo de boa-fé. ― Em cena, havia estupros, envenenamentos, raptos, delitos, duelos, vinganças atrocíssimas, pugilatos de paixões, tiroteio de afetos, entre outros expedientes que enchem ―o cérebro de fantasmas pavorosos e produz insultos epiléticos.‖ A forma, entretanto, entrou em desgaste e ―o gosto depravado das plateias grosseiras ―necessitava de outros lenitivos‖. Dessa forma, o drama histórico, o melodrama de paixão e o melodrama de peripécias absurdas cansaram o público que ―carecia de sossego‖. Nesse momento, entra em cena ―a palavra dos escritores sensíveis, de talentos elegíacos, os partidários do madrigal na cena.‖ Do resultado desses elementos nasceu o drama íntimo. As cenas de sobressalto são substituídas, portanto, pelas de pieguice. Se o tirano fora o filho predileto do melodrama, o drama íntimo terá sua filha mimosa, a ingênua. José Maria Ferreira, ironicamente, apontará a diferença entre um gênero e outro, tendo como baliza a
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ingênua, criatura simples, de voz aflautada, com o riso da primitiva inocência a brincar-lhe nos lábios. Completará afirmando: d‘aqui em diante o teatro põe na rua todos os personagens sinistros das antigas composições aterradoras e apenas admite o pai nobre, o galã afetuoso, a irmã dedicada; e apenas para fazer sobressair os dotes cândidos da alma pura e simples da ingênua, lhe põe ao lado de uma tia ríspida ou um tutor, que em matéria de consórcio, não conhece senão as conveniências sociais e a leis do interesse.(p.543) O ―aprimoramento‖ dos expedientes do drama ultra-romântico desaguou no drama angustioso, que seria, nas palavras do autor, ―uma repetição do drama lacrimoso‖. José Maria finaliza o artigo Achaques da nossa literatura dramática com pessimismo. Afirma que quando o teatro não se restringe aos seus elementos verdadeiros, o estudo da sociedade e a observação da humanidade, cai no chavão das formas e ―se há de ser o espelho da vida real e uma lição para as platéias, fica sendo apenas uma fórmula caprichosa da fantasia poética, e uma distração sem ensino, nem exemplo, nem frutos perduráveis para as classes que poderiam aproveitar mais com este gênero de literatura.‖ O tom desalentador em relação ao teatro romântico português apresentado por Ernesto Biester e José Maria Andrade Ferreira, nos dois artigos publicados na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, gera uma indagação: houve, de fato, em Portugal, uma verdadeira dramaturgia romântica? A resposta a esta questão, seguindo-se o pensamento de Duarte Ivo Cruz, é não. Isto porque o único e verdadeiro dramaturgo romântico da literatura portuguesa foi Almeida Garrett. Essa afirmação se sustenta pela irregularidade que envolve a história do teatro em Portugal. Não há, no teatro português, uma linha clara de evolução, como também na qualidade dos autores, na capacidade de organização, na continuidade da sucessão de estilos, temas e ideologias. Será ainda essa irregularidade que permitirá afirmar que o teatro nasce com Garrett, em 1820, com sua Mérope, e atinge o apogeu em dois momentos – em 1838, com Um Auto de Gil Vicente, e em 1843, com a obra- prima Frei Luís de Sousa. Em outras palavras, ainda seguindo o pensamento de Duarte Ivo Cruz, a dramaturgia do Romantismo português apresentará dois caminhos: teatro romântico e teatro ultraromântico. Por teatro romântico, entenda-se um teatro inspirado na pátria, isto é, teatro de intervenção porque patriótico, voltado para as raízes nacionais e, por isso, historicista. Dentro dessa proposta romântica, o teatro garrettiano estaria comprometido com o esclarecimento da mentalidade pública. Se há um teatro que se preste a resgatar o nacionalismo adormecido, outro não é que o teatro histórico. A proposta historicista de Garrett redundou, todavia, no ultra-romantismo, porque seus seguidores, tomados pelo sentimentalismo exagerado, se afastaram dos princípios norteadores de uma literatura dramática portuguesa original e caíram no vazio dos enredos lacrimejantes e das peripécias imprevistas. Para além dessa trajetória, Garrett foi, ao mesmo tempo, criador do teatro nacional e de uma estrutura teatral integrada. Em 1836, é criado o Conservatório Nacional de Arte Dramática, da Inspecção Geral dos Teatros e do Teatro Nacional e dos Concursos de Dramaturgia. Pode-se afirmar, portanto, que apenas Garrett assumiu, porque tinha claramente um projeto de restauração da cena nacional, o rigor do romantismo puro. O que de fato reinou no século XIX, nos palcos portugueses, foi o ultra-romantismo, às vezes travestido de teatro romântico. E se o fenômeno teatral se configura como o consórcio entre dramaturgia, cena, público e até a intervenção do Estado nesse processo, não houve, de fato, uma dramaturgia romântica em Portugal. Garrett surge como uma figura singular e sua visão estrutural acerca
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do fenômeno teatral levou-o a criar um instrumento adequado de estímulo e incentivo à produção cênica. Seria justo culpá-lo, se os autores da época não estiveram à altura de tão necessária empreitada? Por fim, vale acrescentar como o próprio Garrett refletiu acerca do teatro de seu tempo: Pois o teatro... Que se lembre alguém, na província, dos martírios que sofreu o ouvido com os berros da prima-dona, as desafinações do tenor, ou com o enfadonho ressonar daquela adormecida orquestra de São Carlos! A enjoativa tradução de uma comédia da Rua dos Condes, roída de incurável sífilis, figura-se aveludada de todas as graças do estilo de Scribe. E o destempero original de um drama plusquam romântico laureado das imarcescíveis palmas do Conservatório para eterno abrimento das nossas bocas! Lá de longe aplaude-se a gente com furor e esquece-se que fumou todo o primeiro acto cá fora, que dormiu no segundo e conversou nos outros, até à infalível cena da xácara, do subterrâneo, do cemitério, ou quejanda, em que a dama, soltos os cabelos e em penteador branco, endoidece de rigor o galã passando a mão pela testa, tira do profundo tórax os três ahs! do estilo, e promete matar o seu próprio pai que lhe aparecera, o centro perde o centro da gravidade, o barbas arrepela as barbas... e maldição, maldição, inferno!... – Ah, mulher indigna, tu não sabes que neste peito há um coração, que deste coração saem umas artérias, destas artérias umas veias – e que nestas veias corre sangue... sangue, sangue! Eu quero sangue, porque eu tenho sede, e é de sangue... Ah! pois tu cuidavas? Ajoelha, mulher, que te quero matar... esquartejar, chacinar! – E a mulher ajoelha, e não há remédio senão aplaudir... (2001, p. 155) O fragmento acima corrobora as ideias de Garrett acerca da dramaturgia portuguesa. Primeiro, os martírios da ópera italiana. Em seguida, a incurável sífilis das traduções, isto é, as ―macaquices francesas‖. E por fim, e talvez o mais grave de todos, a premiação de peças ultra-românticas pelo Conservatório criado por ele. Observe-se o quanto Garrett se detém nesse aspecto, apresentando os equívocos do teatro ultra-romântico, cujos cenários abusam de subterrâneos, de cemitérios, das interjeições Ahs!, das imprecações e do sangue. Estes expedientes geram ―abrimento de bocas‖, sono e descaso com o que se passa em cena.
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CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 237 FERREIRA, José Maria de Andrade. Achaques da nossa literatura dramática. Revista Contemporânea de Portugal e Brasil. Lisboa, abril, 1862. GARRETT, Almeida. Obras Completas. Editores Lello e irmãos, 1966. volumes 1 e 2. ______. Obras Completas. Grande Edição Popular Ilustrada. Lisboa: Empresa Histórica de Portugal, 1904. ______. Viagens na minha terra. Lisboa: Guimarães Editores, 2001. PRADO, Décio de Almeida. João Caetano: o ator, o empresário, o repertório. São Paulo: Perspectiva, 1972. REBELLO, Luiz Francisco. História do teatro português. 2 ed. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980. ________. O teatro romântico: 1838- 1869. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980. SOUSA, Silvia Cristina Martins de. As noites do Ginásio. Teatro e Tensões Culturais na corte (1832-1868). Campinas: Unicamp, 2002.
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RECEPCIONANDO SARAMAGO: TEORIA, REFLEXÃO E PRÁTICA EM TODOS OS NOMES E O HOMEM DUPLICADO Rosemary Conceição dos Santos1 RESUMO: Este trabalho vale-se dos conceitos de horizonte de expectativa e efeito, próprios da Estética da Recepção, e os aplica à análise de algumas críticas jornalísticas acerca das obras Todos os nomes e O homem duplicado, de José Saramago, publicadas em jornais de grande circulação no Brasil, nos primeiros doze meses após a publicação dessas obras. Revisa, também, a Estética da recepção, enquanto teoria, distinguindo a proposta teórica de dois significativos teóricos da mesma: Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Foca, adicionalmente, os sucessores críticos que a Estética da Recepção conquistou após Jauss e Iser. PALAVRAS-CHAVE: Acadêmica.
Saramago,
Estética,
Recepção,
Crítica
Jornalística,
Crítica
ABSTRACT: This work used concepts such as expectative horizon and effect considered typical characteristics of the Reception Aesthetics, and both were applied to analyse of some few jornalistic criticisms about the books All the Names and The duplicated man, by Jose Saramago, published in newpapers of large circulation in the Brazil, in first twelve months after their publication. It also reviews the aesthetics of reception, as a theory, differentiating the theoretical proposal of two significant theorists same: Hans Robert Jauss and Wolfgang Iser. Foca ,additionally, the successors to critics who won the Aesthetics of Reception after Jaussand Iser. KEY WORDS: Saramago, Aesthetics, Reception, Jornalistic Criticism, Academic Criticism.
.1.A Estética da Recepção 1.1.Histórico De acordo com a Encyclopedia of Contemporary Literary Theory2, convencionou-se chamar Escola de Konstance um direcionamento em crítica literária, desenvolvido por professores e estudantes na Universidade de Konstance, na Alemanha Ocidental, durante o final de 1960 e início da década de 70. Neste direcionamento, priorizou-se a leitura e recepção de textos literários em detrimento dos tradicionais métodos de análise textual até então utilizados. Estes, por sua vez, eram considerados desinteressantes pelos adeptos da nova teoria, por enfatizarem a análise de conteúdo de uma obra literária sem relacioná-lo ao momento histórico e tão pouco refletir sobre as diferentes expectativas do público que o
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Pós-Doutora em Cognição, Leitura e Literatura pela USP. Doutora em Literatura Portuguesa (USP). Mestre em Estudos Literários (UNESP). Professora Adjunta do CEUCLAR. Pesquisa as questões da alegoria, estética da recepção e cognição e leitura. É especialista na obra de José Saramago. Contato: cienciausp@usp.br.
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MAKARYK, Irena. Encyclopedia of Contemporary Literary Theory: Approaches, Scholars, Terms. Toronto: University of Toronto Press, 1993.
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recebia. Segundo Zilberman1, esta observação se referia, principalmente, para a obra de Ernst Robert Curtius, intitulada Literatura européia e Idade Média latina, publicada em 1948, que propunha o estudo de textos de diferentes épocas, sem, todavia, relacioná-los ao momento histórico, nem refletir sobre as alterações sofridas em virtude de mudanças contextuais, sejam estas as novas normas literárias de um certo período ou as diferentes expectativas do público. Além disso, a observação vale também como crítica aos estudos filológicos, ao New Criticism, à estilística, todos de grande inserção na universidade alemã durante os anos 50, e, principalmente, a dois manuais de ampla circulação nos meios acadêmicos na mesma época, a saber, Análise e interpretação da obra literária, de Wolfgang Kayser e A arte da interpretação, de Emil Staiger, ―partidários convictos dos métodos imanentes e intratextuais quando da análise da ficção e da poesia.‖2 Comumente conhecida como Teoria da Recepção ou Estética da Recepção, esta abordagem dominou o cenário da Teoria Literária na Alemanha por cerca de uma década. No entanto, foi na década de 80 que seus trabalhos mais estimulantes foram traduzidos. Seus dois teóricos mais representativos foram Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, embora muitos dos alunos de Jauss, entre eles Hans Ulrich Gumbrecht e Karlheinz Stierle, também tenham feito importantes contribuições. A Escola de Konstance surgiu em uma época de grande turbulência na sociedade da Alemanha Ocidental. Nas universidades por todo o país, o movimento estudantil fazia agitação a favor da reforma educacional e defendia um questionamento básico dos métodos tradicionais e valores morais. A Universidade de Konstance, fundada em 1967, estava em primeiro plano na reforma educacional e, portanto, foi uma das instituições mais atingidas por esse movimento estudantil, exibindo, dentro de seus muros, um ambiente propício ao florescimento das novas idéias em Teoria Literária e Estética.
1.2.O enfoque de Jauss A Estética da Recepção data de 1967, por ocasião da aula inaugural de Jauss, como recém-nomeado professor de línguas românicas na Universidade de Konstance. O título original de sua aula foi O que é e com que fim se estuda a história da literatura, vindo, posteriormente, a apresentar-se como A história da literatura como provocação da ciência literária. Através dela, Jauss investe contra o ensino até então vigente e propõe um outro caminho, iniciando, com isso, uma posição epistemológica que supõe uma outra colocação da literatura em relação ao conhecimento, ou seja, propõe uma teoria em que a investigação muda de foco, passando do texto, enquanto estrutura imutável, para o leitor e suas expectativas em relação ao texto. No seu início, a meta principal da Estética da Recepção era reabilitar a história para valorizar o conhecimento do texto. Para tanto, trazia como herança conceitos fenomenológicos preexistentes, como, por exemplo, o de ―horizonte de expectativa‖, já utilizado por Gadamer, que havia sido professor de Jauss. Gadamer entendia o ―horizonte de expectativas‖ como a perspectiva que abrange e encerra o que pode ser visto a partir de um certo ponto de referência. Em Jauss, o ―horizonte de expectativa‖ é o horizonte que marca os limites dentro dos quais uma obra é compreendida em seu tempo, ou seja, como o leitor de uma determinada época pode percebê-la e compreendê-la, recuperando a perspectiva do consumidor no processo de comunicação. 1 2
ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989. Ibid. p.10.
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Logo, o que os diferencia é que para Gadamer, o ―horizonte de expectativas‖ é um princípio da situação hermenêutica, ou seja, de interpretação do texto, e se refere, principalmente, à nossa visão limitada de mundo e, necessariamente, de perspectiva, enquanto que, para Jauss, o termo está ligeiramente diferente, ou seja, o termo está considerando que cada leitor reage individual e particularmente a um texto, e que este fato limita a compreensão de uma obra em seu tempo, condicionando a ação do texto. Com isso, é possível entendermos o ―horizonte de expectativas‖ como os critérios que os leitores utilizam para julgar os textos literários num período determinado. A Estética da Recepção, ao reconstruí-lo, procura esclarecer qual é o relacionamento da obra com o público da mesma, ao mesmo tempo em que exige que o leitor se mantenha atento para perceber, compreender e interpretar lugares inesperados em um texto. Suplementarmente, Zilberman nos informa que a Estética da Recepção colabora com a literatura comparada, a crítica literária e o ensino da literatura, uma vez que Jauss promove a integração dessas disciplinas. Ainda em sua aula inaugural, Jauss, ao abordar textos seus, que privilegiavam o papel do leitor e do contexto histórico na literatura, os quais se tornaram conhecidos como textos de Estética da Recepção, tentava superar o que ele próprio via como limitação em duas importantes e renomadas teorias literárias opostas: o Formalismo e o Criticismo Marxista. Em geral o Marxismo representava para ele uma obsoleta abordagem da literatura, relacionada a um velho paradigma positivista. No entanto, Jauss também reconhece neste tipo de crítica, especialmente nos escritos menos dogmáticos de marxistas como Werner Krauss, Roger Garaudy e Karel Kosik, uma preocupação fundamentalmente correta com a história da literatura. Os formalistas, na outra mão, são considerados como introdutores da percepção estética como uma teorética ferramenta para explorar trabalhos literários. Contudo, Jauss também detecta, nos trabalhos dos formalistas, a tendência para isolar a arte de seu contexto histórico, uma estética da arte pela arte a qual, pretensamente, valoriza uma eterna organização formal acima da historicidade do trabalho literário. A tarefa de uma nova história literária, portanto, deveria unir as melhores qualidades do Marxismo e do formalismo. Isto podia ser talentoso para satisfazer a demanda marxista por mediação histórica, ao mesmo tempo que conservava os avanços formalistas na esfera da percepção estética. A Estética da Recepção propõe fazer isto através da alteração da perspectiva pela qual nós normalmente interpretamos textos literários. Uma vez que as Histórias Literárias tradicionais foram compostas da perspectiva dos produtores de textos, Jauss propõe que nós podemos compreender verdadeiramente a literatura como um processo de reconhecimento do papel do consumidor ou leitor. A interação entre autor e público devolve à biografia literária sua relevância na base da historiografia literária. Desta maneira, Jauss verifica nos marxistas a reivindicação de uma literatura que possa ser vista por uma determinada perspectiva histórica, ao mesmo tempo que conserva as realizações formalistas em busca da identificação dos elementos formais de um texto. Com isso, Jauss afirma que o significado histórico de um trabalho não é estabelecido somente pelas qualidades do trabalho ou pelo gênio de seu autor, mas, principalmente, pela corrente de recepções tidas por esta obra de geração para geração. Em termos de História Literária, Jauss prevê, desta maneira, uma historiografia que faça as vezes de uma consciência, mediando o papel entre passado e presente. A história de uma recepção literária é chamada para repensar continuamente os trabalhos de cânones à luz de como eles tem sido e são afetados por condições e eventos correntes. Neste caso, significados passados são compreendidos como parte da pré-história da experiência presente. Com isso, o conceito de leitor, para Jauss, fundamenta-se em duas categorias: a do ―horizonte de expectativas‖, entendido como os critérios que os leitores utilizam para julgar os textos literários num período determinado, valendo-se de códigos vigentes e de experiências sociais acumuladas, e do ―efeito‖ ocasionado pela arte, enquanto texto, no leitor.
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Quanto ao horizonte de expectativas, podemos dizer que a recepção do texto por vários leitores configura um movimento que revela o resultado da circulação inter-individual da obra, uma vez que o texto é visto como uma estrutura sócio-ideológica. Quanto à emancipação, Jauss entende que não há conhecimento sem prazer e nem prazer sem conhecimento. E, refletindo sobre o significado de uma obra de arte e entendendo que este só pode ser alcançado se for esteticamente vivenciado, formula os conceitos de fruição compreensiva e compreensão fruidora. Por fruição compreensiva entenda-se o ato de o leitor apropriar-se do texto, pela leitura, compreendendo-o e por compreensão fruidora entenda-se o ato de entendimento do lido que causa prazer no leitor. Na primeira, o mais importante é a compreensão, enquanto que, na segunda, o mais relevante é o prazer obtido da leitura efetuada. E esta experiência estética nos é apresentada como sendo composta por três atividades simultaneamente complementares: a ―Poiesis‖, a ―Aisthesis‖ e a ―Katharsis‖. A ―Poiesis‖ corresponde ao prazer estético de se sentir co-autor do texto, uma vez que o leitor se insere no texto, como encarregado de atualizar as possíveis combinações de diferentes discursos, polifonia de vozes, visões do narrador e das personagens. A ―Aisthesis‖ é a consciência receptora, o prazer de renovar sua percepção do mundo, a participação no jogo lúdico do texto. A ―Katharsis‖ é o prazer efetivo que liberta o leitor de seu cotidiano, levando-o, através da fruição de si no outro, à liberdade estética de sua capacidade de julgar e envolver-se. Após estabelecer o horizonte de expectativas, o crítico, enquanto leitor, pode então determinar o mérito de um dado trabalho pela mensuração da distância entre o trabalho e o seu horizonte de expectativas. Jauss acredita que o valor de uma obra decorre da percepção estética que a obra é capaz de suscitar. Basicamente, Jauss admite que só é boa a criação que contraria a percepção usual do sujeito, ou seja, se a leitura da obra revela ao leitor que a mesma traz elementos que superam suas expectativas, acrescentando-lhe conhecimento, trata-se a mesma de uma boa obra. Por outro lado, se a leitura da obra nada acrescenta ao que o leitor esperava da mesma, então o texto é de segunda categoria, pois traz a mesma informação que muitos outros. Entretanto, há a possibilidade de uma obra trazer elementos além da expectativa do leitor e, infelizmente, estes elementos não provocarem prazer estético no mesmo, ocasionando, com isso, que o leitor não reconheça o mérito dessa obra. Neste caso, para além do conhecimento a ser acrescentado, o que está provocando o descrédito do leitor é a falta do ―prazer‖ da leitura. No entanto, isto não é um problema para Jauss. Para ele, a primeira experiência de expectativas desfeitas evocará uma recepção negativa que poderá desaparecer para leitores posteriores. Em um tempo posterior, o horizonte de expectativas pode mudar e o trabalho não vai mais romper com as expectativas que se poderá ter em relação a si. Em vez disso, ele pode ser até reconhecido como um clássico, ou seja, como um trabalho que contribuiu para o estabelecimento de um novo horizonte de expectativas. Jauss1, contestando a visão tradicional de que as personagens se configuram pelas suas ações, acredita que os heróis ficcionais definem-se antes pelas respostas desencadeadas no público. Assim sendo, considera as seguintes modalidades de identificação: a)associativa: a representação torna-se uma espécie de jogo entre o leitor e o texto; b)admirativa: a corporificação de um ideal pelo herói dispõe o leitor na direção do reconhecimento e adoção de modelos; c)simpatética: o herói se confunde com o homem comum presentificado pelo receptor; d)catártica: o leitor é capaz de introjetar sua identificação, refletindo e analisando os fatos e ações que se encadeiam; 1
FLORY, Suely Fadul Villibor. O leitor e o labirinto. São Paulo: Arte & Ciência. 1997.
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e)irônica: uma possível identificação é apresentada ao destinatário para, logo a seguir, ser ironizada ou completamente refutada. Logo, enfatizando o ato de recepção e desejando incorporar a aplicação desta e da hermenêutica na compreensão da obra literária, Jauss propõe uma história da literatura fundada na interação mútua do texto e do leitor, sintetizando a recepção a partir de dois aspectos básicos, a saber, o caráter estético e o papel social da arte. Além disso, Jauss elabora sete teses, sendo as quatro primeiras premissas das três finais. A primeira tese apresenta o tema da concretização do texto pelo leitor, ou seja, que a obra de arte só existe quando é presentificada por um receptor. A segunda tese considera os complexos de controle da obra. Uma vez que é a obra que predetermina a recepção, oferecendo orientação ao seu receptor, é esta mesma obra que atualiza o ―horizonte de expectativas‖ e as regras lúdicas familiares ao leitor. A reação de cada um é individual, mas a recepção é um fato social, uma vez que o horizonte é coletivo e trans-subjetivo, ou seja, está além da experiência de cada indivíduo, uma vez que a experiência de leituras tida por um indivíduo varia em relação ao outro. A terceira tese considera que o valor da obra artística é diretamente proporcional tanto à sua negatividade, ou seja, à possibilidade de a mesma não trazer novidades ao leitor, quanto às expectativas de seus primeiros leitores, ou seja, dos horizontes de expectativas iniciais. Quanto maior a distância estética, ou seja, quanto mais além de seu tempo a obra estiver, maior será seu valor artístico, uma vez que a reconstituição do horizonte determina o caráter artístico da obra no modo e grau de sua ação sobre certo público, o qual ainda não se acha preparado para compreendê-la. A quarta tese desenvolve a noção da fusão de horizontes do autor, da obra e do leitor, ou seja, se o que foi pretendido dizer pelo autor foi, realmente, dito na obra e, uma vez dito, foi encontrado pelo leitor da mesma. Trata-se, portanto, de um processo configurado na recuperação da pergunta do público, através da análise da resposta que é o texto. Fundir horizontes, aparentemente díspares e independentes entre si, resulta na compreensão do texto, interiorizado pelo leitor através de suas projeções e de sua visão de mundo. Baseando-se nessas quatro teses, Jauss estabelece as outras três, que, na verdade, são três aspectos metodológicos através dos quais ele se propõe a investigar a literatura. São eles: a)o diacrônico: referente à recepção das obras literárias ao longo do tempo; b)o sincrônico: relativo ao sistema de relações da literatura numa determinada época, assim como a sucessão desses sistemas; c)a relação literatura / vida prática: no qual entende que a arte existe para contrariar expectativas e não para confirmá-las. Com estas teses, Jauss entende fundamentar, teoricamente, a necessidade de uma nova história da literatura baseada nas reconstruções da obra e sua recepção em épocas diversas. Desta forma, a noção de construção de significados pelo leitor configura-se através das repercussões de horizontes sociais do passado penetrando no horizonte do presente, providenciando a compreensão e apreensão de um ―determinado momento‖, atualizado pela leitura. No diálogo entre texto e leitor, Jauss vê a análise textual através da divisão do todo em partes, bem como da análise interpretativa, da identificação das estratégias discursivas e narrativas inseridas no contexto de produção e recepção, onde avultam os pré-juízos, os preconceitos e os pressupostos do autor e do leitor, constituindo, assim, uma constante autointerrogação originada pelas respostas que o texto fornece às perguntas do receptor. Considerando o que foi acima exposto, cumpre lembrar que, além das teses, Jauss também se ocupa, teoricamente, com o estudo da intertextualidade, uma vez que ressalta a questão do ―velho‖, como, por exemplo, as citações, as referências, as insinuações de outros autores, bem como de outras épocas na mesma época, encontrado na obra que se diz ―nova‖.
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Neste caso, a análise das estratégias textuais esclarece como o autor organiza, dialeticamente, as relações entre o individual e o coletivo, entre a literatura nacional e as estrangeiras, a partir de seu próprio contexto sócio-ideológico. Esta consciência da presença mútua de um autor em outro, de uma literatura em outra e a intensidade da função complementar do contexto estabelecem relações integrativas, como alusões, empréstimos e adaptações, e relações diferenciais, como a paródia e a ironia, configurando-se como inter-relações de unidade e alteridade, decorrentes dos próprios autores estudados, que devem estar na base de qualquer análise que se pretenda comparativa.
1.3.O enfoque de Iser A abordagem histórica de Jauss para compreender trabalhos literários foi complementada pelo exame que Wolfgang Iser fez da interação entre leitor e texto. Assim como Jauss, Iser atraiu atenção com sua aula inaugural, mas sua teoria é talvez melhor representada na obra O ato da leitura1, publicada, originalmente, em 1976. O que interessa a Iser é como e sob quais condições um texto tem significado para o leitor. Uma vez que a interpretação tradicional tinha visão para elucidar significados ocultos, Iser queria ver o significado como resultado de uma interação entre texto e leitor, como um efeito que é sentido pelo leitor e não uma mensagem que precisa ser encontrada no texto. Em outras palavras, para Iser, os textos, de um modo geral, trazem enunciados que podem ser compreendidos pelo leitor, mesclados com outros enunciados que exigem do leitor uma complementação de sentido, um preenchimento de seus ―vazios‖, ou seja, do que eles não relatam explicitamente. Essa complementação atuante do leitor faz com que este, a todo instante, se questione se a formulação de sentido que está fazendo é a adequada à leitura que está cumprindo. E é mediante esta condição que ocorre a interação do texto com o leitor, o que é bem diferente de ler o texto em busca de uma mensagem oculta, ou de uma interpretação única. Roman Ingarden forneceu uma útil explicação para esta investigação. De acordo com Ingarden o objeto estético é constituído apenas através do ato de cognição do leitor. Adotando este preceito de Ingarden, Iser assim troca o foco do texto como um objeto para o texto em potencial, nascido dos resultados do ato da leitura. Para examinar a interação entre o texto e o leitor, Iser olha aquelas qualidades no texto que o fazem legível, merecedor de ser lido ou que influenciam nossa leitura, e aquelas características do processo de leitura essenciais para a compreensão do texto. Particularmente, neste trabalho inicial, ele adota o termo ―leitor implícito‖ para abranger ambas as funções. Este está na estrutura do ato e na estrutura textual. Mais tarde, dependendo mais profundamente da terminologia de Ingarden, ele diferencia texto, concretização do texto e trabalho de arte. O primeiro diferenciador entre o texto e o trabalho de arte é o aspecto artístico, que é localizado ali pelo autor para nós o lermos, e ele precisa ser melhor concebido como uma potencial realização esperada. Por sua vez, a concretização do texto, por contraste, refere-se ao produto de nossa própria atividade produtiva; ela é a realização do texto no pensamento do leitor, alcançada pelo preenchimento do que está em branco ou aberto para eliminar o indeterminado. Finalmente, a obra de arte não é texto nem concretização, mas algo entre ambos. Ela ocorre no ponto de convergência entre o texto e o leitor, um ponto no qual nada nunca está completamente definido. A obra de arte é caracterizada pela sua natureza virtual e é constituída por vários procedimentos sobrepostos. Um destes envolve a dialética da protensão e retenção, dois 1
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996. 2 vols.
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termos emprestados da teoria fenomenológica de Husserl. Por protensão entenda-se o estado de expectativa que prepara a reprodução da lembrança, ou seja, é a pré-lembrança. Por retensão entenda-se a lembrança primária que o texto lido nos traz. É através de protenção e retensão que os textos se duplicam, deslocando-se dos textos originais para novas obras do presente. Iser os aplica para nossa atividade de ler sucessivas sentenças. Defrontando-nos com um texto, nós, continuamente, projetamos expectativas as quais podem ser satisfeitas ou desapontadas; ao mesmo tempo nossa leitura é condicionada pela renúncia de sentenças e concretizações. Pelo fato de nossa leitura estar determinada por esta dialética, a atividade básica do leitor, segundo Iser, reside na constituição de sentido, estimulada pelo texto. Com este sentido realizando-se através da conexão dos elementos constitutivos do texto, bem como de suas articulações e combinações responsáveis pela coerência e coesão do mesmo. Para Iser é através do preenchimento dos vazios e dos brancos de um texto que o leitor chega ao sentido do mesmo. Entenda-se por vazios e brancos tudo o que não foi dito explicitamente no texto e sim sugerido de modo tácito. Este envolvimento com o texto é visto como um tipo de emaranhado no qual o estranho é compreendido e assimilado. O ponto de vista de Iser é que a atividade do leitor é similar a uma experiência atual. De acordo com Iser, a leitura, portanto, elimina a tradicional dicotomia sujeito/objeto. Ao mesmo tempo, entretanto, o sujeito da leitura é obrigado a romper-se em duas partes, uma que se encarrega da concretização e outra que se funde com o autor ou, pelo menos, com a imagem construída de leitor. Pelo preenchimento dos ―vazios‖, ou seja, a partir dos sentidos que vamos atribuindo ao que lemos, nós, simultaneamente, nos reconstruímos a nós mesmos, desde que nosso encontro com a literatura seja parte de um processo de compreender o outro e nós mesmos mais completamente. Assim, Iser concentra seu interesse no efeito produzido pelo texto, ou seja, na ligação que se estabelece entre o texto e o leitor. Nesta ligação cabe ressaltar a ênfase na leitura paradigmática do intervalo, do não dito, das entrelinhas e do horizonte aberto do texto. De acordo com Iser, o texto, enquanto sistema, reserva um lugar para o leitor atualizar a mensagem ficcional. Este lugar é dados pelos ―vazios‖ que se oferecem para a ocupação pelo receptor: À medida que os vazios indicam uma relação potencial, liberam o espaço das posições denotadas pelo texto para os atos de projeção... do leitor. Assim, quando tal relação se realiza, os vazios desaparecem.1 O texto, portanto, é considerado por Iser como algo virtual, uma vez que tanto a sua constituição, quanto a sua presentificação, só podem ocorrer na consciência do leitor, estabelecendo-se, então, o emissor e o receptor da comunicação. Com isso, o texto de ficção deve ser considerado uma comunicação e o ato da leitura uma relação dialógica baseada na tensão, ou seja, no assunto que é proposto, e na argumentação, ou seja, na discussão dessa proposta. Contudo, Iser não descarta a possibilidade de fracasso na comunicação e no diálogo, ou seja, se o equilíbrio se torna possível com o preenchimento dos vazios pelas projeções do leitor, esta mesma interação pode fracassar se as projeções do leitor se impõem, independentemente do texto. Logo, para Iser, a atividade básica do leitor reside na 1
ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. IN: ISER, Wolfgang. A literatura e o leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 106.
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constituição de sentido, estimulada pelo texto, que advém da conexão dos seus elementos constitutivos, das articulações e da necessidade de combinação, responsável pela coesão do texto, através do preenchimento de seus vazios, e de seus brancos. Os vazios quebram ainda a ―good continuation‖, ou seja, continuação desejável, provocando o reforço da atividade de composição do leitor. É preciso que o leitor recorra à sua atividade imaginativa para estabelecer a coerência significativa do texto. Constituído deste modo, o horizonte de expectativas do leitor vai sofrendo acréscimos de novas expectativas de leitura através das interpretações que esse mesmo leitor vai fazendo do texto que está a ler. Porém, se esse leitor, baseado em posturas ideológicas que possa vir a ter, recusar tais interpretações textuais, terá dificuldades de identificar o que, em Estética da Recepção, se convencionou chamar de leitor implícito, ou seja, o destinatário que o texto tem por estratégia. Iser desenvolve, portanto, uma teoria do efeito estético, conduzindo, a partir dos processos de transformação, à constituição do sentido pelo leitor, descrevendo a ficção como estrutura de comunicação. O repertório ficcional, as estratégias textuais, as variantes da leitura, o leitor implícito e os vazios do texto são processos que completam a perspectiva do texto em si mesmo e sua recepção pelo leitor, cujo espaço é garantido nos estudos de seus sucessores críticos, como Stierle, por exemplo.
1.4. Sucessores Críticos O modelo de leitura de Iser foi produtivamente suplementado pelo trabalho de Karlheinz Stierle, o mais incisivo teórico da segunda geração da Escola de Konstance durante os anos 70. Stierle prossegue a idéia de Iser de que a formação de ilusões e imagens é essencial para o processo de leitura e rotula este nível de leitura ‗quase pragmático‘, uma designação que o distingue da recepção de textos não-ficcionais (‗recepção pragmática‘). Enquanto Iser parece sobreviver neste plano de seus estudos, Stierle sugere que a leitura quase pragmática precisa ser suplementada com elevadas formas de recepção capazes de fazer justiça às peculiaridades da ficção. Para Stierle, o que distingue a ficção narrativa é a pseudo-referencialidade, ou seja, a característica de não assumir, simplesmente, os dados extratextuais existentes no mundo real, mas, sim, produzi-los ficcionalmente dentro do próprio texto. Também para ele, ficção é auto-referência1, ou seja, é linguagem controlada pela rede de conceitos que elabora e/ou de que se alimenta, embora ela pareça ser referencial. Stierle criou o termo pseu-referencial para que sua proposta não fosse confundida com os termos referenciais propostos por Roman Jakobson. O que Stierle sugere, portanto, é um adicional nível reflexivo de compreensão em nosso encontro com os textos literários. Por sua vez, dando continuidade às proposições teóricas de Iser, Stierle enfoca a perspectiva do texto no contexto social, uma vez que constata que o texto incorpora sistemas de intervenção semiótica do contexto sócio-ideológico em que está inserido. Os críticos pertencentes à Escola de Konstance, da República Democrática Alemã, abordam as realizações da teoria da recepção de uma perspectiva um tanto diferente. Robert Weimann e Manfred Naumann não estão tão interessados no processo de leitura panoramizado por Iser e Stierle, como estão na historiografia literária desenvolvida por Jauss. Suas objeções para esta teoria são triplas. Primeiro, eles objetam que a teoria da recepção tinha sido demasiadamente rápida em enfatizar resposta. Em segundo, estes críticos marxistas detectaram um perigo na apreensão subjetiva da arte e a resultante relativização da 1
O discurso auto-referencial mais comum é o texto argumentativo. A ficção é o caso do uso pseudo-referencial da linguagem. Nela, a realidade se apresenta enquanto internalizada pelo texto.
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história literária. O problema é que se seguirem Jauss e Gadamer na renúncia a todas as noções objetivas da obra de arte, entendem que o acesso dos mesmos à história pareceria ser completamente arbitrário porque é continuamente mutativo, ou seja, estariam mudando de posição teórica a todo momento. Em terceiro, o modelo de Teoria da Recepção da Escola de Konstance proporciona escassos conhecimentos básicos para o leitor que supostamente se posiciona no centro destas preocupações. Estudiosos da República Democrática Alemã estabeleceram uma falha geral pensar a história literária com preocupações tão grandes, pois, para eles, o leitor na Teoria da Recepção de Jauss e Iser é concebido como um indivíduo ideal, assim como uma entidade social com dimensões políticas, ideológicas e estéticas. Jauss e Iser defenderam suas posições contra estas e outras objeções em polêmicos encontros durante a década de 70. Eles tinham também modificado e refinado suas posições teóricas com base nesta crítica. Mas o custo da correção tinha sido a perda da excitação circundante da emergência da Teoria da Recepção. Assim, tanto Jauss quanto Iser, tomaram direções que se afastaram de seus trabalhos mais influentes. Progressivamente, Iser se preocupou com as noções de imaginário na ficção e na antropologia literária, em Experiência Estética e Hermenêutica Literária, de 1977 a 1982. Este trabalho, no entanto, em comparação com seus trabalhos anteriores, tem tido um impacto menor em círculos críticos da Alemanha e sua recepção marcou uma diminuição da influência da Teoria da Recepção no início dos anos 80. A Escola de Konstance, por outro lado, tem sobrevivido ao falecimento de sua mais importante teoria, produto da virtude da personalidade de seus membros e do bianual colóquio de especialistas realizado lá. O encontro do grupo ―Poética e Hermenêutica‖, tão importante para o advento da recepção, continua a produzir excelentes contribuições literárias, culturais e de crítica filosófica na Alemanha.
1.5.A recepção na prática Considerando o que foi acima exposto, indagamos, então, como se deu, na prática, a recepção das obras ―Todos os nomes‖1 (Saramago, 1997) e ―O homem duplicado‖2 (Saramago, 2002) nas resenhas jornalísticas e na crítica acadêmica durante os seis primeiros meses que se passaram após a publicação das obras, para a crítica jornalística, e, para a crítica acadêmica, durante os doze primeiros meses após a publicação das obras. Com base no que dissemos até então, a Estética da Recepção pode ser entendida como uma manifestação da hermenêutica alemã e, ao contrário de Gadamer, não se concentra exclusivamente em obras do passado. É um procedimento interpretativo que examina o papel do leitor na literatura e entende o texto como um processo de significação que só se materializa na prática da leitura. Logo, para a Estética da Recepção, para que a literatura aconteça, o leitor é tão vital quanto o autor. Da leitura de O homem duplicado, a primeira informação fornecida pela narrativa refere-se ao desgosto que a personagem Tertuliano tem de seu próprio nome: ...o Tertuliano pesa-lhe como uma lousa desde o primeiro dia em que percebeu que o malfadado nome dava para ser pronunciado com uma ironia que podia ser ofensiva. (p.9)
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SARAMAGO, J. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SARAMAGO, J. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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Com a continuação da leitura, encontramos muitos outros problemas, que, na Estética da Recepção, são denominados ‗fatos‘, os quais só podem ser resolvidos com nossas suposições, as quais, deste modo, promovem a interação texto–leitor. Muitas vezes, enquanto leitores em processo hermenêutico, somos auxiliados pela narrador de O homem duplicado que, agindo às avessas, ou seja, contrariando o prosseguir da leitura para que se saiba os fatos vindouros, antecipa-os ao leitor. No entanto, com exceção deste narrador e de algumas digressões remissivas, nós, enquanto leitores, nos surpreendemos com o volume de trabalho inconsciente, raramente percebido, que nos ajudam a formular hipóteses construtivas sobre o significado do texto. Sobre isso, temos em Eagleton1 a seguinte explicação: O leitor estabelece conexões implícitas, preenche lacunas, faz deduções e comprova suposições e tudo isso significa o uso de um conhecimento tácito do mundo em geral e das convenções literárias em particular. O texto, em si, realmente não passa de uma série de ―dicas‖ para o leitor, convites para que ele dê sentido a um trecho de linguagem. Na terminologia da teoria da recepção, o leitor ―concretiza‖ a obra literária, que em si mesma não passa de uma cadeia de marcas negras organizadas numa página. Logo, pela Estética da Recepção, sem essa participação constantemente ativa do leitor, não haveria obra literária. Lida pelo viés da Estética da Recepção, a obra O homem duplicado reclama um leitor que preencha os vazios do texto. Uma vez preenchidos, esses vazios ganham efeito pela interpretação do leitor, podendo ser interpretados de formas diversas. Entretanto, há um paradoxo neste procedimento, ou seja, quanto mais informação a obra transmite, mais indeterminada ela se torna. Isto porque, ao se abrir para sugestões interpretativas, sua leitura provocará reações diferentes em diferentes leitores e, com isso, o texto também se tornará menos determinado. Desta forma, o leitor abordará a obra com certos ―pré-entendimentos‖, um vago contexto de idéias e expectativas dentro dos quais as várias características da obra serão avaliadas. Neste processo de pergunta e resposta, bem ao gosto de Jauss, o leitor passa da parte ao todo e retorna à parte, esforçando-se por estabelecer um senso de coerência a partir do texto, e, assim, ―concretizando‖ certos itens, e tentando manter relacionadas as diferentes perspectivas da obra. Ainda orientando-se por Jauss, o leitor poderia situar a obra literária num ―horizonte‖ histórico, buscando o contexto dos significados culturais dentro dos quais ela foi produzida e explorar as relações variáveis entre ela e os ―horizontes‖, também variáveis, dos seus leitores históricos. Uma vez que a leitura não é um movimento linear progressivo e cumulativo, à medida que ―concretizamos‖ o texto, deixamos de lado suposições, revemos crenças, elaboramos deduções e previsões mais complexas. Lemos, simultaneamente, para frente e para trás, ou seja, vamos adentrando os ―planos‖ do texto. Com isso, vamos nos familiarizando com as ―estratégias‖, ou seja, técnicas de construção textual, e com os ―repertórios‖, ou seja, os temas e alusões que o texto encerra. Entendidos os ―códigos‖ do texto, nos aproximamos mais do contexto social que a obra pretende abranger ou se referir. No entanto, algumas vezes, este entendimento não ocorre e, em Estética da Recepção, quando isso ocorre, Iser diz que a obra literária se mostra ser 1
EAGLETON, Terry. Fenomenologia. Hermenêutica, teoria da rcepção. IN: EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 105.
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mais eficiente, forçando o leitor a uma nova consciência crítica de seus códigos e expectativas habituais. Baseando-nos nesta premissa e relacionando-a à leitura de O homem duplicado, constatamos que, num primeiro momento, a recepção crítica, tanto acadêmica quanto jornalística, da obra, habituada aos códigos saramaguianos, buscou discutir a questão do duplo nos contextos literários e relacioná-la à obra estudada. No entanto, esta busca mostrou-se infrutífera, uma vez que o significado último da obra pareceu escapar aos críticos. Posteriormente, estudos acadêmicos, reconsiderando a consciência crítica e o horizonte de expectativa da obra, tornou a focar O homem duplicado no contexto de discussões existencialistas. Sob a óptica de Iser, o que ocorreu com os críticos acadêmicos foi que, ao modificarem suas ―suposições‖, atingiram uma autoconsciência mais profunda, catalisando uma visão mais crítica de suas suposições analíticas. No entanto, isso é condicionado pelo fato de o leitor construir o texto de modo a torná-lo ―coerente‖. No modelo de leitura de Iser, as partes devem ser capazes de se adaptar coerentemente ao todo. Com a ―abertura‖ da obra, o leitor passa a construir uma hipótese de trabalho capaz de explicar e tornar coerentes o maior número possível dos elementos dessa obra. Ao fazer isso, o leitor está ―normalizando‖ a obra, ou seja, estará sujeitando-a a uma firme estrutura de sentido. Outro questionamento feito pelos teóricos da literatura é a abordagem do ―texto em si‖ proposta por Iser. Considerando as várias possibilidades de leitura que um texto pode suscitar, como poderemos discutir essas possibilidades sem as ter concretizado? Levando em conta essa dificuldade, assim como a liberdade interpretativa que Iser confere ao leitor, Roman Ingarden esclarece que, apesar de ambas, o leitor não é livre para interpretar como quer. Logo, para que a interpretação tenha relação com um texto em específico, ela deve ser, num certo sentido, logicamente limitada pelo próprio texto. Aos olhos da Estética da Recepção, a ficção oferece a possibilidade de reformulação das coisas dentro do mundo. Com isso, o imaginário no texto literário se concretiza e se torna eficaz através do fictício, ou seja, da literatura. Tudo no texto, seja gramática, significados ou unidades formas, é produto de interpretação. Retomando nossa questão de como se deu a recepção crítica jornalística e acadêmica de O homem duplicado, é possível afirmar que as resenhas jornalísticas, muito próximas ao lançamento da obra, não atentaram para os sinais que o autor e a obra manifestavam. Lendoas, deveriam ter dado atenção aos indicadores de percurso revelados por Saramago em suas entrevistas, bem como, ao dialogismo que a obra mantinha com Plauto. No entanto, foi preciso que, fracassada a recepção inicial, e assim a chamamos uma vez que não conseguiu, através dela, identificar o mérito de criação da obra, a crítica acadêmica se propusesse a relêla à luz da intertextualidade com Plauto e dialogismo com a tragédia e identidade cultural na pós-modernidade para aclarar seu grau de importância criacional. Com isso, esperamos que este trabalho seja um adendo à recepção crítica que as obras Todos os nomes e O homem duplicado receberam até então e que, na medida do possível, e considerando suas limitações, seja uma contribuição aos Estudos Literários de Literatura Portuguesa.
REFERÊNCIAS EAGLETON, Terry. Fenomenologia. Hermenêutica, teoria da rcepção. IN: EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 105. FLORY, Suely Fadul Villibor. O leitor e o labirinto. São Paulo: Arte & Ciência. 1997.
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 249 ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. IN: ISER, Wolfgang. A literatura e o leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 106. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996. 2 vols. MAKARYK, Irena. Encyclopedia of Contemporary Literary Theory: Approaches, Scholars, Terms. Toronto: University of Toronto Press, 1993. SARAMAGO, J. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SARAMAGO, J. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.
LITER’ARTES Poesia
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A poesia é um raro momento de liberdade!
Alexandre Paulo Loro
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1. A calmaria que falta
Passam horas, Passam dias, Passam noites, Tudo passa! E o que permanece? Corremos. Corremos depressa demais! Pressa em conhecer o desconhecido. Com muita antecedência, vemos o que nem sempre agrada. Mas isso, ninguém quer! A correria da vida agita a morte. O agora é tarde demais? Sabemos que não há como frear o tempo. No espelho, a presença de alguém que não reconheço. Dia após dia, surgem surpresas assustadoramente inesperadas. Que susto! Mas sou eu mesmo! A rotina nem sempre foi assim. Ou era eu quem não percebia? Simplesmente, já não importa!
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2. Todo dia
O sol nasceu rasgando o céu. E uma forte onda de calor tomou conta de cada um de nós. Corpos reclamam a indisposição ao amanhecer, Corpos transpiram. A pele morena, suada, denunciava a tua presença. Ficou difícil sair de casa sem ser percebido. O mormaço da rua ajuda a recordar e a sentir. Preciso fugir! Corremos do grande astro como outrora corríamos das tempestades. Não há o que comparar: Calor igual a esse, só em Corumbá!
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3. Tempo de viver
Vida curta. Desejos imensos. Muitos dias de luta. Melhorar, tento.
Da incerteza do futuro, ninguém escapa. É como tatear no escuro. Não há qualquer forma de trapaça.
O que passou, passou. Costumamos chamar de experiência. É a soma de tudo de bom que temos. Momentos de alegre e triste vivência.
Os sonhos de outrora, creio que ainda vou realizar. Saio porta à fora, eles não podem me abandonar!
Mas onde eles estão? Sempre estiveram comigo! Miro ao longo da imensidão. Na vida, o meu melhor amigo.
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4. Foi assim
De todas as histórias que ouvi, e de todas àquelas que um dia pude sonhar, conto apenas uma que vivi, da qual não canso de lembrar.
Foram dez anos de espera O que justificaria tanta persistência? Tão jovem era, Quando viajava, quanta abstinência!
O tempo parou quando aquela linda menina de óculos avistei. No meio de tantas, se destacou. Logo, apaixonei!
Se fosse hoje, começaria novamente. Mesmo vivendo sempre tão longe, comigo sempre esteve presente.
Como pôde acontecer algo assim? Como não me sentir feliz? É o que importa pra mim: Tudo o que sempre quis!
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5. Rotina
Através da varanda da sala, posso ver mais um dia que se inicia. Crianças indo à escola: a pé, de bicicleta, de carro com seus pais. Pessoas indo ao trabalho depressa, ou nem tanto. Caminhões majestosos passam ocupando quase toda pista. Cães se coçam. É a rotina da vida. Ou, pelo menos, de minha rua. Aparenta não ser tão diferente de tantos outros lugares. Sempre contínua. E, nesse continuísmo, continuo a pensar, se alguma maneira há de sair desse ciclo, de “vida besta, meu Deus”! Melhor parar de reclamar. Minha varanda está juntando poeira. Hora de trabalhar.
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6. Saudade
De quem? Do que? De onde? Responde!?
É difícil de dizer. Pessoas vão e vem.
Tudo muda de lugar, contudo, permanece no mesmo endereço: o jardim, a escola, a faculdade, o antigo trabalho. Tantos acontecimentos, chegam a nos confundir.
Temos que partir! Mas pra onde? Responde!?
Não sei! Vou dormir. Saudade da minha cama.
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7. Pelo direito de me retirar
Cansei dos discursos prontos, autointitulados como “politicamente corretos”, e das pessoas que se julgam críticas e revolucionárias. Isto serve somente para que sejamos aceitos em determinados grupos.
Até quanto precisaremos ser hipócritas?
Quanta paciência! Quanto desgosto! Na fogueira das vaidades, queima também a minha fé!
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 259 8. Pra começo de conversa
Já li tanta porcaria, de todas as áreas: Religião, História, Filosofia.
Portanto, atrevo-me também a escrever! Por que não? Uma poesia! Isso! Uma poesia!
Nela, posso ser espontâneo. Dizer o que sinto, dizer o que penso!
Numa redação, arrisco expor minhas idéias no papel. Poderá incomodar crianças, jovens e anciãos!
Palavras flexíveis, para qualquer um. Sem a frieza da ciência, deslizo a caneta com toda a delicadeza, linha após linha.
E, olha, quem diria: Eis que surge a primeira poesia!
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 260 9. Já fui
Pior que o ódio, só a indiferença! Sensação de nulidade. Impressão de ter virado um super herói – o homem invisível. Ser abduzido ou estar presente, não muda nada. Retiro-me, para que possa ter o direito de não inexistir!
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 261 10. Em algum lugar
Longe, Longe, Longe... Mas não distante.
Na calmaria de um pantanal, Repousam sobre os ipês, não somente as garças, mas também as incertezas.
O rio, no seu leito, movimenta os camalotes. Consegue movimentar também as nossas esperanças.
Mas... esperar por quem se o futuro é duvidoso?
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 262 11. Vamos agradecer!
A vida não pode ser apenas um lamento! Então, vamos comemorar! Encontremos algo para regozijar de alegria!
Hoje não foi o dia em que ganhei na loteria ou fui promovido. Nem aquele elogio (muito merecido). Sequer um sorriso!
Mas podia ter sido bem pior do que foi, não é verdade?!
A vida é feita de perdas - mais perdas que ganhos. Perdemos a inocência, a paciência! Ganhamos peso, é verdade (a cada quilo a mais, um quilo a mais para ser amado)!
Nesta matemática sem lógica, resultam nossas amizades. Do trabalho, a dignidade. Da família, a mais pura felicidade!
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 263 12. Para pensar
Precisamos de política? O povo pede, pacientemente, aos políticos e aos seus partidos: proteção e programas para projetar o progresso! Uns “pintam” na “parada” como o “pai dos pobres” com pose paternal! Providencialmente? Pois é! Outros, com uma postura de profunda preocupação com aquilo que é público. Uns, são polidos e poéticos. Outros, provocativos. Predomina nesta paisagem, perfeitas performances dessas pessoas. Por precaução, de praxe, fiz uma prece, para que isso não perpetuasse, para que não padecesse, para não ser persuadido. Permito-me, portanto, palpitar! Ao pisar nesta ponte pênsil, com a perspicácia dos passos de um palhaço. De quem já viu de perto o profundo penhasco que vai da teoria à prática. De um projeto que parecia possível ir além de uma promessa. Pensei que seria o protagonista. Piada! Peço a palavra para protestar e pedir um novo panorama, pois perdi a postura, não tenho o perfil de pobre pacato. Quando percebi que fora perdido o pudor, pairou na platéia um pedido de pare! As pessoas são passivas! Talvez, o público poderá parar esta picaretagem, num porvir positivo. Parto do princípio que, ao não mais prevalecer a panóplia que aperta no peito, estaremos próximos, prestes a perturbar a ponta da pirâmide. Sem paixão, sem propósito, sem perspectiva ou pureza, sem o menor prazer, ficamos perdidos, perplexos, prostrados, paralisados. Prevalecem no poder, aos pares, os profetas da pátria, com palavras de tom pejorativo: pilantragem, peculato, propina, penumbra, podridão,... Que pena! Perpassa o pessimismo de que os primeiros serão sempre os puxa-sacos com os seus padrinhos. P. que pariu!!! Parti para a próxima!
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 264 13. Dê passagem
O dia passou. Ou passamos pelo dia? Tanto faz!?
O que restou, além do vento?
Das armadilhas, as menores. Aos frustrados, a esperança, Aos imprevistos resta-nos a criatividade.
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 265 14. A Práxis da Autorevolução
Ninguém tem o direito de protestar, sem apresentar os possíveis caminhos. Os falastrões quando aparecem, não se sustentam sozinhos!
Os melhores estudantes que conheci, passavam o dia todo pesquisando. Os melhores currículos que vi, nunca eram daqueles que ficavam só gritando!
Em meio às bandeiras e debaixo da boina, ideologias que rendem devoção. Na verdade, não escondem, doses de oportunismo e a autopromoção.
Não há lugar no mundo, onde isso tenha dado certo. O problema não é o sistema, Mas o homem, que sempre se acha esperto!
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 266 15. O mundo mudou
Branca de Neve deixou de gostar de maçã e começou a se bronzear. Rapunzel aderiu ao punk e vendeu o cabelo a preço de ouro. Cinderela, agora só usa botas. Aliás, as botas de um gato. A Bela adormecida cansou de esperar por um beijo e tem saído atacando todo mundo! A Fera e a sua excelentíssima passaram a ser um casal normal e a andam de mãos dadas pela cidade. Alice descobriu que o país das maravilhas era um efeito alucinógeno! O super-homem assumiu que é gay. O homem Invisível tornou-se o ladrão de bancos mais procurado pela polícia internacional. A mulher maravilha arrasta multidões com shows gospel. O homem Aranha é o mais novo magnata da indústria têxtil.
Moral da história: em nossa imaginação reside a idealização da perfeição, porém inatingível.
Dossiê: SINTAGMA VERBAL SIMPLES: VERBOS APRESENTACIONAIS EXISTENCIAIS
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SINTAGMA VERBAL SIMPLES: VERBOS APRESENTACIONAIS EXISTENCIAIS 1 Renan Bernardes Viani2 Christian Botelho Borges3 Ivo Santos Escobar4 Monise Martinez5 Olívia Bueno Silva Fortes6 Marcelo Módolo7 Resumo: Este artigo aborda os verbos ser, existir, ter e haver com foco existencial ou apresentacional existencial no Português. O trabalho mostra, igualmente, a síntese de uma pesquisa sintática quantitativa e qualitativa a partir de um corpus diacrônico do português, sob o recorte da sintaxe funcional. Dentre os principais fatores tratados destacam-se: frequência de uso dos verbos existenciais (e sua significativa variação diacrônica) a partir do levantamento realizado no corpus; presença ou ausência de constituintes espaço-temporais nas sentenças constituídas por verbos existenciais; concordância entre verbo e argumento, posição (à esquerda ou à direita) e tipo de argumento (interno ou externo) dos verbos existenciais; e breves considerações sobre características relacionadas ao grau de oralidade do texto. Boa parte dos resultados confirma tendências gerais já relatadas pela literatura, mas também se anunciam campos de investigação promissores, ainda pouco explorados, como o papel dos qualificadores sintaticamente ligados aos argumentos, sobretudo as orações adjetivas. Pois dados da pesquisa mostram que a ausência de um constituinte espaço-temporal parece ser compensada, muitas vezes, pela presença de uma oração adjetiva, que garante a informação ―nova‖, formando o Rema da sentença. Palavras-chave: verbos existenciais; verbos apresentacionais existenciais; ser, existir, ter e haver; gramaticalização. Abstract: This paper examines the verbs ser, existir, ter and haver (fairly equivalents in Portuguese to the English verbs to be, to exist and to have) in presentative or existencialpresentative constructions in the Portuguese language. This article shows also a synthesis of a quantitative and qualitative syntactic research into a diachronic corpus of Portuguese 1
Mantida a formatação do original (Nota do Editor). Graduando em Letras (português e inglês) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: viani@usp.br 3 Graduando em Letras (português e inglês) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: christian.b.borges@gmail.com 4 Graduando em Letras (português e inglês) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: ivoescobar@hotmail.com 5 Graduanda em Letras (português e espanhol) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: monisemartinez@yahoo.com.br 6 Graduanda em Letras (português e inglês) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail:oliviabsfortes@hotmail.com 7 Possui pós-doutorado (2006) em linguística histórica e semântica cognitiva pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, doutorado (2004) e mestrado (1998) em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor de Filologia e Língua Portuguesa no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: modolo@usp.br 2
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language, under the approach of functional syntax. Among the main issues discussed, some stand out, such as the frequency of use of the existential verbs (and their significant diachronic variation) from the survey conducted in the corpus; the presence or absence of spatiotemporal constituents in sentences consisting of existential verbs; the agreement between verb and argument, the position (on the left or on the right) and the argument type (internal or external) of existential verbs; as well as short considerations on characteristics related to the degree of orality of the text. A significant part of the results confirmed trends already reported in the literature, but promising fields of research, still scarcely explored, have also been outlined, such as the role of qualifiers syntactically linked to arguments, especially the adjective clauses. For survey data show that the absence of a spatiotemporal constituent appears to be many times offset by the presence of a relative clause, which guarantees the ―new‖ information, thus forming the rheme of the sentence. Keywords: existential verbs; existential-presentat ive verbs; ser, existir, ter and haver (to be, to exist and to have); grammaticalization.
INTRODUÇÃO Este trabalho configura-se como o produto de uma pesquisa sintática, sob o recorte teórico da Sintaxe Funcional, na qual refletimos sobre aspectos descritivos e históricos dos verbos apresentacionais existenciais ser, existir, ter e haver. Essa pesquisa tem, pois, como pontos de partida, tanto um panorama disponível pela literatura que já abordou o tema, quanto a perspectiva teórica referente aos processos de gramaticalização. É partindo de ambos que se dará o tratamento quantitativo e qualitativo do corpus. As sentenças existenciais e o foco apresentacional Quanto ao recorte temático, convém nos determos um pouco no conceito de verbo apresentacional. Trask (1995) define apresentacional como um adjetivo usado para designar as construções que servem para introduzir um novo elemento no discurso1. Franchi, Negrão e Viotti (1998, p.113), ao emprestar os termos função apresentacional e foco apresentacional de Bolinger (1971) e Hetzron (1975), destacam tal motivação discursiva: o foco apresentacional seria o processo sintático que estrutura a oração ―de modo a destacar um constituinte na memória imediata que, ou vai dominar o discurso subseqüente [...] situando o tema em outra perspectiva, ou vai introduzir um novo elemento no discurso precedente [...] que situe o interlocutor na mesma perspectiva do locutor‖. Exemplos de Franchi, Negrão e Viotti (1998): (1) Cem anos atrás não TInha [essa] histeria. (SP,343); (2) Chegou lá no escritório dele um camarada pedindo lá contribuições em dinheiro. (PoA.37);
As construções apresentacionais podem ser divididas em duas classes. A primeira se constitui de sentenças com verbos ergativos (ver exemplo 2 acima) — como acontecer, aparecer, 1
―presentative adj. Any of various constructions which serve to introduce a new element into a discourse, such as the American English pattern illustrated by There was this bus coming up the road.‖ (Trask, 1995, p. 216)
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chegar, existir, faltar, ir, correr, sobrar, surgir, e similares —, nas quais ocorre a posposição do sujeito ao verbo (Franchi; Negrão; Viotti, 1998, p. 114). O sujeito desses verbos é um argumento não controlador, de propriedades típicas do objeto direto dos verbos intransitivos. Outro fator interessante é que, no corpus de falantes cultos do Nurc, são raras as ocorrências em que não há a concordância verbal nas sentenças ergativas. A segunda classe de construções apresentacionais é a de sentenças existenciais (ver exemplo 1 acima), caracterizadas sobretudo (a) pela natureza impessoal do verbo, (b) por um sintagma nominal único e geralmente indefinido e (c) pela ocorrência explícita ou elíptica de expressões locativas e temporais. Quanto ao recorte teórico da Sintaxe Funcional, as propriedades desses verbos serão abaixo relacionadas com o fenômeno da gramaticalização. De acordo com Castilho (1997), os processos sequenciais de gramaticalização podem ser representados da seguinte forma: Verbo pleno > Verbo funcional > Verbo auxiliar > Clítico > Afixo
ou, agregando um componente semântico, segundo uma das fases de Hopper e Traugott (1993/2004 apud Castilho, 1997): sentidos mais concretos > sentidos mais abstratos Os verbos das sentenças apresentacionais existenciais devem ser classificados como funcionais, pois a interpretação da sentença em que estão inseridos depende do sentido dos sintagmas nominais e preposicionados que formam as expressões, i.e., esses verbos não devem ser tratados como predicadores, pois a seus argumentos não são atribuídos papéis temáticos. Devem ser tratados mais propriamente como instanciação de operadores funcionais (Franchi; Negrão; Viotti, 1998, p. 110), o que abriria caminho para uma explicação de sua peculiaridade em (a). A propriedade (b) é explicada pela definição das estruturas apresentacionais, i.e., sua função discursiva. Para se discutir a propriedade (c), deve-se destacar que tais verbos são esvaziados historicamente de significado, devido ao fenômeno da gramaticalização dos verbos locativos como existenciais; Lyons mostra que é natural raciocinar que o lugar é, cognitivamente falando, mais concreto que a existência (Lyons, 1968, p. 409-410 apud Castilho, 1997). Aponta, ainda, a presença do advérbio de lugar nas estruturas existenciais em línguas como a francesa (il y a), a italiana (ci sono), a espanhola (hay < habet ibi) e a inglesa (there is); em português, temos a forma arcaica hai. Passaremos agora a analisar, um a um, os verbos ser, existir, ter e haver, acerca dos quais a literatura tem apontado aspectos importantes.
O verbo ser Consultando o dicionário de Borba (1990), que considera a relação semântico-gramatical entre o verbo e seus argumentos, encontramos os seguintes empregos do verbo ser no que se refere ao seu significado existencial: (5) Em enunciados simples, com sujeito inativo expresso por nome, sem complemento ou com locativo, [...] significa existir, haver: Deus é; As forças de Simeão Liá cercaram o engenho e foi um fogo danado (CAN,
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 271 228); Eram ossadas de jumentos, de bois, de cavalos (CJ, 9); Aqui foi um cemitério (MA, 180) (7) Com sujeito inativo expresso por nome designativo de hora, indica hora precisa: São seis horas (CA, 228); São oito e meia, gente (SMF, 89); Não eram ainda onze horas (SA, 221). (8) Na forma impessoal, com complemento expresso por nome indicativo de período de tempo, indica período determinado de tempo: Era tempo estiado (CJ, 75); Já é dia (PP, 37); Era sexta-feira (CL, 176) // No registro coloquial [...], pode ser introduzido por de: Mas quando foi de madrugada, apontou na subida o primeiro homem de força (CAN, 203)
Tais empregos apontam a importância de se levar em conta, no processo de análise, a forma (pessoal ou impessoal) do verbo ser, assim como sua valência verbal e a co-ocorrência de expressões locativas e/ou temporais. Segundo Mattos e Silva (2001), no português arcaico, os predicados existenciais formados com ser coocorriam com as construções com haver, como se vê no exemplo: Na cidade de d’Anconha foi [houve] hũ bispo de gram santidade.
O verbo existir Segundo Franchi, Negrão e Viotti (1998), conforme já foi dito anteriormente, o verbo existir pertenceria à classe de verbos ergativos, os quais, quando realizados por um falante culto, raramente deixam de concordar com o verbo. Devido a essas características, é possível considerar que existir não tenha parentesco sintático com as construções existenciais formadas por ter e haver e que deva ser tratado como de construção mais semelhante à da classe de verbos apresentacionais ergativos. É possível, porém, aproximá-la à construção do português arcaico com o verbo ser de tipo Gram santidade era no homem (Mattos e Silva, 1989 apud Franchi; Negrão; Viotti, 1998). Quanto ao ponto de vista diacrônico, o verbo existir não está documentado no conjunto de textos representativos do português do século XIV para o XV (Mattos e Silva, 2001), o que nos leva a trabalhar com a hipótese de sua entrada no português ter sido posterior a esse período1.
Os verbos ter e haver Os dois verbos que encerram nossa lista, ter e haver, podem ser abordados em um só bloco, conforme aponta uma vasta literatura. Quanto às diferenças no uso, haver é considerado mais formal e tem mais prestígio. Said Ali (1957, p. 118) já afirmava que ―levará sempre a marca de êrro crasso a oração existencial na qual o discípulo, por ignorância ou inadvertência, puser tem por há.‖ No corpus do projeto Nurc, porém, os falantes cultos privilegiam as construções existenciais com ter (Franchi; 1
A datação do verbo no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa é século XVII.
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Negrão; Viotti, 1998, p. 106), o que revela a prototipicidade de tais construções, independentemente da escolaridade do falante. É interessante, por outro lado, levar em conta até que ponto a oralidade de um texto pode influenciar a concorrência entre ter e haver. Sob um ponto de vista diacrônico, as propriedades lexicais de tais verbos podem ser problematizadas ao longo de sua gramaticalização (verbos plenos > verbos funcionais). Segundo Mattoso Câmara Jr. (1975), a origem da frase impessoal com haver na língua portuguesa foi uma transposição do padrão pessoal da língua latina, na qual um nome de lugar era sujeito do verbo habere, com o sentido de posse. Em português, esse nome se transformou em um complemento circunstancial de lugar, ao se subordinar à preposição em (in no latim). Exemplos na língua latina são: in arca Noe habuit homines, em vez de arca Noe habuit homines. Essa mudança ocorreu também no português do Brasil, em estruturas equivalentes ao verbo ter: a partir de uma frase como O vaso tem flores, surge o padrão impessoal No vaso tem flores. Essa mudança pode ser mais bem entendida com um desenvolvimento mais profundo do sentido de posse atribuído a esses verbos, conforme suas propriedades semântico-lexicais. O sentido original de ter, do latim tenere, era manter, suster, reter. Na linguagem arcaica, haver e ter coocorrem em estruturas possessivas, provavelmente em distribuição complementar. Haver é usado quando a relação de posse se estende à expressão de qualidades intrínsecas / inerentes ao sujeito possuidor, enquanto ter é usado quando essa relação de posse se restringe à posse de objetos exteriores ao sujeito possuidor. Considerando, como já foi dito, que a gramaticalização é o trâmite dos sentidos mais concretos para os sentidos mais abstratos, entende-se a especialização de haver como núcleo funcional das orações existenciais, deixando de ser empregado em outros sentidos (Franchi; Negrão; Viotti, 1998, p. 108-109). Do mesmo modo, entende-se o emprego de ter como núcleo funcional das orações existenciais como um processo análogo ao que ocorreu com o verbo haver. Em outras palavras, o sentido concreto de posse desses verbos se estendeu diacronicamente ao sentido abstrato de posse; em seguida, esse sentido se torna tão simples a ponto de o verbo tornar-se funcional, sendo então usado em construções existenciais. Esse percurso foi totalmente percorrido por haver, de modo a não ser mais empregado em outros sentidos, e também foi percorrido, mais recentemente, pelo verbo ter, o qual não deixou de ser empregado em outros sentidos. Corpus O corpus deste trabalho se constitui de 250 ocorrências de construções existenciais formadas pelos verbos ter, haver, ser e existir, levantadas a partir do Corpus diacrônico do português, compilado por Fernando Tarallo,1 e do material do Projeto Nurc/SP (Castilho; Preti, 1987). O corpus diacrônico de Tarallo compreende textos escritos, agrupados por século, do séc. XIII ao XX. Para tornar a pesquisa exequível face à grande quantidade de material, restringimos o escopo a textos dos séculos XIV, XVIII, XIX e XX. Já o material do Projeto Nurc/SP consiste em textos orais, transcrições de diálogos entre informantes cultos da cidade de São Paulo, gravados na década de 1970. 1
As obras específicas que compõem o corpus estão discriminadas nas referências bibliográficas, em ―fontes primárias‖.
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O levantamento limitou-se a cinquenta ocorrências por século, salvo o levantamento de ocorrências do século XX, que totalizou cem ocorrências: cinquenta do corpus de língua escrita e cinquenta do corpus de língua falada.
OBJETIVOS De modo geral, portanto, o objetivo dessa pesquisa é a análise do corpus conforme os seguintes quesitos: (1) a análise quantitativa geral da frequência no uso dos verbos existenciais, a partir do levantamento do corpus acima descrito; (2) a presença ou ausência de constituintes espaço-temporais nas sentenças constituídas por verbos existenciais; (3) a análise quantitativa e qualitativa dos casos em que há a concordância entre verbo e argumento, assim como a análise da posição (à esquerda ou à direita) e do tipo dos argumentos dos verbos existenciais (internos ou externos); (4) o levantamento, a partir da análise do corpus, de características interessantes que merecem destaque no que se refere ao grau de oralidade do texto. Para cada um dos quatro quesitos, foi destinado um capítulo deste trabalho.
USO DOS VERBOS TER, HAVER, SER E EXISTIR EM CONSTRUÇÕES EXISTENCIAIS NO CORPUS ANALISADO (DADOS GERAIS) Tem-se abaixo o levantamento geral quantitativo da ocorrência dos quatro verbos ter, haver, ser e existir em construções existenciais, a cada século. Ter, Haver, Ser e Existir - Ocorrências ao longo do corpus Século Verbo XIV XVIII XIX XX XX (fala) Ter 0 2 0 7 16 Haver 26 48 49 39 14 Ser 24 3 0 3 11 Existir 0 1 2 1 9
Ter, Haver, Ser e Existir - Porcentagens das ocorrências Século Verbo XIV XVIII XIX XX XX (fala) Ter Haver Ser Existir
0,0% 52,0% 48,0% 0,0%
3,7% 88,9% 5,6% 1,9%
0,0% 96,1% 0,0% 3,9%
14,0% 78,0% 6,0% 2,0%
32,0% 28,0% 22,0% 18,0%
Total 25 176 41 13
Total 9,8% 69,0% 16,1% 5,1%
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Porcentagem de ocorrências
Ocorrências de ter , haver , ser e existir no corpus analisado 100% 80%
Ter
60%
Haver
40%
Ser
20%
Existir
0% XIV
XVIII
XIX
XX
XX (fala)
Total
Século
Os seguintes dados se destacam: (a) a não ocorrência do verbo existir no século XIV; (b) o aumento do uso de haver, entre os séculos XIV e XVIII, na medida em que este verbo passa a ser preferido em construções com predicados existenciais, em detrimento do verbo ser, até o século XIX, após o qual se observa redução em seu uso, ocorrendo em contrapartida; (c) o aumento do uso do ter, sob uma perspectiva diacrônica; (d) frequência maior de ocorrências com o verbo ter no corpus falado, comparando os dois registros no século XX; (e) distribuição bastante equitativa do uso dos quatro verbos no corpus falado do século XX, neutralizando-se a prevalência de haver.
a PREDICAÇÃO DOS VERBOS EXISTENCIAIS: os CONSTITUINTES ESPAÇO-TEMPORAIS Segundo Franchi, Negrão e Viotti (1998), a predicação dos verbos que são usados nas construções existenciais pode ser considerada de grande peculiaridade, pois, ―se ancora em um campo espaço-temporal. Essa ancoragem se faz ou mediante adjunções ou mediante sua inserção nos constituintes da coda (no SN-argumento ou no predicador)‖. Os casos prototípicos, portanto, seriam aqueles em que as sentenças seriam constituídas, ao menos, de um verbo funcional existencial, de um argumento desse verbo e de um sintagma adverbial de natureza espacial e/ou temporal — salvo os casos em que o próprio argumento possui traços espaciais e/ou temporais, dispensando o uso do sintagma adverbial. Conforme já abordado na introdução, o advérbio de lugar pode ser encontrado nas estruturas existenciais nas línguas francesa, italiana, espanhola, inglesa e no português arcaico, o que reforça a importância da análise desse tipo de constituinte. Seguindo tal raciocínio, foi feita a análise quantitativa da presença desse constituinte de valor espaço-temporal nas sentenças do corpus de nosso trabalho:
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XIV 12 38
Sem constituinte Com constituinte espaço-temporal
XVIII 16 34
Século XIX 28 23
XX 28 22
XX (fala) 26 23
Porcentagem de ocorrências
Constituintes espaço-temporais 80% 60%
Sem constituinte
40%
Com constituinte espaço-temporal
20% 0% XIV
XVIII
XIX
XX
XX (fala)
Século
O corpus pesquisado aponta uma redução, do ponto de vista diacrônico, no uso dos constituintes espaço-temporais em construções existenciais. Nos textos do século XIV, tais constituintes estão presentes em 74% das construções, percentual que se reduz a 46% no século XIX e mantém-se estabilizado nesse patamar no século seguinte, tanto para o registro falado (46%) quanto para o escrito (44%) – é curiosa a marcante similaridade de usos nos dois registros em relação a esse aspecto. Na tentativa de refinar um pouco mais a análise, investigamos a presença ou ausência de constituintes espaço-temporais em relação a cada um dos quatro verbos em questão, e verificamos que o padrão acima constatado se deve basicamente ao verbo haver, cujo comportamento ao longo do tempo mostra tendências bastante semelhantes, oferecendo também um número suficiente de ocorrências para supormos alguma representatividade e consistência em tais tendências. O verbo “haver” e os constituintes espaço-temporais - Número de ocorrências Século Verbo Haver XIV XVIII XIX XX XX (fala) Sem constituintes 1 15 28 21 6 Com constituintes 25 30 21 18 8
Porcentagem de ocorrências
O verbo "haver" e os constituintes espaço-temporais 100% 80% 60%
Sem constituintes
40%
Com constituintes
20% 0% XIV
XVIII
XIX Século
XX
XX (fala)
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Os outros verbos pouco influenciam nesse comportamento, ou porque apresentam um reduzido número de ocorrências ao longo dos séculos (caso de ter e existir, que só estão presentes em número um pouco mais significativo – mais de 3 ou 4 ocorrências – no corpus falado do século XX), ou porque, quando aparecem com maior frequência, o número de ocorrências ―com constituintes espaço-temporais‖ é relativamente próximo ao de ocorrências ―sem constituintes espaço-temporais‖ (caso do verbo ser no século XIV, como se pode ver na tabela abaixo), de modo que não alteram significativamente as curvas de tendência estabelecidas pelo verbo haver. O verbo “ser” e os constituintes espaço-temporais - Número de ocorrências Século Verbo Ser XIV XVIII XIX XX XX (fala) Sem constituintes 11 0 0 3 8 Com constituintes 13 2 0 0 3
Curiosamente, pode-se notar a mesma tendência geral analisando-se apenas o subconjunto dos verbos com foco apresentacional existencial: Constituintes espaço-temporais em verbos apresentacionais existenciais (número de ocorrências) Século Presença de constituintes XIV XVIII XIX XX XX (fala) Sem constituintes Com constituintes
4 17
14 29
24 20
19 16
23 18
Porcentagem de ocorrências
Constituintes espaço-temporais em verbos apresentacionais existenciais 100% 80% 60% 40% 20% 0%
Sem constituintes Com constituintes XIV
XVIII
XIX
XX
XX (fala)
Século
No caso dos verbos de foco puramente existencial, nota-se também um aumento, ao longo dos séculos, da presença de orações sem constituintes espaço-temporais, com uma consequente redução na presença de orações com tais constituintes, porém essas duas tendências não convergem para um equilíbrio. Ao contrário, as tendências se invertem e vemos que do século XIX em diante o corpus consultado mostra que em verbos sem o foco apresentacional, passam a ser até mais frequentes as orações sem constituintes espaçotemporais do que as orações com tais constituintes, como se vê na tabela e no gráfico abaixo: Constituintes espaço-temporais em verbos existenciais sem foco apresentacional (número de ocorrências) Século Presença de constituintes XIV XVIII XIX XX XX (fala) Sem constituintes 8 2 4 9 3 Com constituintes 17 4 3 3 2
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Porcentagem de ocorrências
Constituintes espaço -temporais em verbos existenciais 80% 60% 40% 20% 0%
Sem constituintes Com constituintes XIV
XVIII
XIX
XX
XX (fala)
Século
Vale dizer, ainda, que tanto entre os verbos com foco apresentacional quanto entre os de foco puramente existencial, foi raríssima a presença de constituinte espacial e temporal simultaneamente: não mais de 2 ocorrências por século (ou seja, no máximo 4% de ocorrências num universo de 50 elementos), quase sempre ligadas ao verbo haver, como se pode verificar nas tabelas abaixo. Verbos existenciais com constituinte espacial e temporal (número de ocorrências) Século Verbo XX XIV XVIII XIX XX (fala) Ter 0 0 0 1 0 Haver 1 0 1 0 0 Ser 1 0 0 0 0 Existir 0 0 0 0 0 Total 2 0 1 1 0
Verbos apresentacionais existenciais com constituinte espacial e temporal (ocorrências) Século Verbo XX XIV XVIII XIX XX (fala) Ter 0 0 0 0 1 Haver 0 2 1 2 1 Ser 1 0 0 0 0 Existir 0 0 0 0 0 Total 1 2 1 2 2
Seguem abaixo, a título de exemplo, algumas ocorrências encontradas no corpus, as quais foram organizadas em quatro blocos, levando-se em conta: a presença/ausência de foco apresentacional e a presença/ausência de constituinte espaço-temporal.
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Verbos funcionais com foco apresentacional Sem constituintes espaço-temporais Antre as outras cousas per onde se mostra a sua grãde võtade de fazer justiça, foy1 que, a hũu homẽ que dormira cõ hũa molher per força, a que chamavã Maria Roussada, sendo ja casado cõ ela, sabendo el rey o feito, o mãdou enforcar. (14CG/V4, p. 538)2 Estas pallavras e outras muytas de grande doo dizia el rei dom Rodrigo e, en todo esto, chorava assi doorosamente que quẽ ho visse averia delle piedade. Pero, con todo esto, nõ era nem hũũ que lhe ousasse dizer que se callasse, ca este era o homen do mundo de que mayor medo avyam. (14CG/V2, p. 330) Da origem da Senhora dos Remedios não há quem diga nada com certeza [...]. (18SM, p. 33) Há com abundância laranja, mangas, cajús, bananas (a que chamam figos) limas e goiabas (que também chamam peras). (18DV, p. 133) Houve coisa muito mais notável, ainda que menos falada [...]. (19CA, p. 43) [...] há mesmo uma ria – shorbroke – que se pode considerar como digna de uma melhor sorte [...] (19EQ, p. 14) E se tem verdades intelectuais, vive ao léu das irrupções sentimentais [...] (20MA, p. 319) Ha porém uma observação que me leva a explicar porquê o alfabetizado não usa em geral o ―o desespera‖. (20MA, p. 322)
agora de:: uniforme de escola era saia azul mari::nho blusa branca sapato preto... costume a gente andava costume... não é?3 (20SP D2 396, p. 18)4 mas::... existia aqui quem usasse sobrecasaca por exemplo que era o:: professor Vampré... (20SP D2 396, p. 35)
Notamos que nesses exemplos, devido à falta do constituinte espacial e/ou temporal, é comum a presença de adjetivos e/ou orações adjetivas (o que será comentado mais adiante): ―que lhe ousasse 1
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Para maior facilidade de visualização, destacamos com negrito, em todos os exemplos extraídos do corpus, os verbos de interesse para nossa análise. Nos exemplos extraídos do corpus, empregamos um sistema de referência abreviado, que contém três informações relevantes para este estudo: século no qual o texto foi escrito (neste caso, séc. XIV); iniciais do título do texto (no caso, CGC/V4, que remete à Crónica Geral de Espanha, volume 4, como se pode ver na bibliografia, fontes primárias), e número da página da qual foi extraída a citação. Tal sistema tem a finalidade não apenas de simplificar as remissões, mas sobretudo de evidenciar para o leitor a periodização dos textos, por séculos. Nas transcrições do projeto Nurc/SP, reticências (como em ―preto...‖) significam pausa na fala, dois pontos duplos (como em ―de::‖) indicam prolongamento de vogal (leia-se ―deee‖) ou de consoantes como r e s, barra inclinada (como em ―tod/‖, no exemplo mais abaixo) assinala truncamento de palavra. Não se empregam maiúsculas em início de frase, apenas em siglas (―USP, por exemplo) e em sílabas pronunciadas pelo informante com especial ênfase prosódica (como em ―reCAto‖, no exemplo mais abaixo). Vale notar que nem sempre essa ênfase recai sobre a sílaba tônica da palavra. As abreviaturas ―L1‖ e ―L2‖ indicam, de forma clara e sucinta, os turnos da fala, isto é, qual dos dois informantes está com a palavra, ao passo que ―Doc‖ assinala as eventuais intervenções do documentador que gravou o diálogo. No caso de textos orais do projeto Nurc/SP, a referência também se inicia com a datação (―20‖ se refere a século XX), mas contém alguns dados a mais: caracterização do local de onde provêm os informantes (SP), tipo de inquérito (no caso, D2, que significa diálogo entre dois informantes) e número do inquérito (396). Por fim, segue-se o número da página da transcrição do inquérito, de onde foi extraída a citação.
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 279 dizer‖; ―quem diga nada com certeza‖; ―muito mais notável‖; ―que se pode considerar como digna de uma melhor sorte‖; ―intelectuais‖; ―que me leva a explicar‖; ―azul mari::nho‖, ―branca‖ e ―preto‖; e ―quem usasse sobrecasaca‖.
Com constituintes espaço-temporais E avya hy1 muy boa cavallarya, taaes que se atreveron a lidar com Anybal, que era o mais arreceado homen do mundo [...]. (14CG/V2, p. 87) He dedicada ao Divino Espírito, & nella havia, & ha ainda hoje Hospital, se bem mais limitado. (18SM, p. 31) [...] mas há n‘elle espírito ainda bastante para alimentar um Paris de província durante uma semana. (19EQ, p. 4) Voltei do Rio num estado que não sei bem como é, num estado misturado. Tinha de tudo nele, e de muitas coisas dêsse tudo não terei tempo de lhe contar [...]. (20MA, p. 329) Há ainda como novidade as hortências. (20MB, p. 1384) do que nós ali chamaríamos hoje cano de bota cano das botinhas... não tinha:: aquele tempo não se usava botinhas... usavam as moças usavam sapatos... (20SP D2 396, p. 75) L1: e::... por vezes tod/ ... às vezes rendado mas sempre ... sempre tinha por baixo um::: L2: reCAto... não é? L1: existia sempre nunca nunca era transparente [...] (20SP D2 396, p. 366)
Verbos existenciais sem o foco apresentacional Sem constituintes espaço-temporais E esto he, segundo diz hũũ doutor, porque esta aruor ha en sy e[n]xertado, em leteras judengas escriptu, este nome Jhesu, e pella uirtude do glorioso nome nõ a pode queymar o fogo. (14OE, p. 13) E esto he por que he ja passado per penssamẽto e por que cata maneyra pera ffazelo e ãno [ao] conprido per feyto. (14PP, p. 123) [...] procuram favorecer os seus afilhados com mais modéstia, ao menos com um tal rebuliço que é necesário bastante cidade o sol.bastante cuidado para descobrir os seus afilhados particulares, porém ainda é certo que os há [...]. (18CB, p. 21) Não há bastardo que tenha mais pais do que se têm dado a estas pobres missivas [...]. (19CA, p. 43) [...] tantas têm sido as discussões sobre se há o direito de desvendar os escriptos íntimos d‘um artista [...]. (19EQ, p. viii) [...] ellas dispensam o revestimento sacramental da tal prosa como não há [...]. (19EQ, p. xiii) Falei agora com o Rodrigo que me disse haver vários poemas do ―Brejo‖ que já foram publicados. (20MB, p. 1405) Não há, pois, motivo para as lamurizainhas irônicas do sociólogo. (20MB, p. 1407) éh não era sutiã usava-se corpinho... as moças usavam corpinho (20SP D2 396, p. 381) através do rádio de pilha ... ele pôde se ligar ao resto do mundo saber que existem outros lugares outras pessoas que existe um governo que existem atos do governo (20SP D2 255, p. 715)
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Também para facilitar a visualização, destacamos com sublinhado os constituintes espaço-temporais, mantendo o negrito para os verbos.
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 280
Com constituintes espaço-temporais E este foy depois, a cabo de tres ãnos, ẽna outra batalha que seu padre ouve com Anybal [...] (14CG/V2, p. 87) – Dizee a meu filho, o iffante dõ Johã, que açerca da çisma que he na igreja, lhe rogo que aja sobre elo boo consselho, ca he hũu caso muy periigoso e muy duvidoso; e que senpre seja amygo da casa de França de que eu reçeby muytas ajudas; e que lhe mando que solte todollos presos cristãaos que em meus reynos som, assy ingreses como portugueses e doutras quaes quer naçõoes. (14CG/V4, p. 536) E fezeron vĩĩr todallas molheres que na villa avya, sem toucas, e fezerõnas sobyr ẽ cima do muro, assy como se fossem homẽẽs. E o senhor da villa chamou esses homẽẽs que hi avya e disselhes que fariam. (14CG/V2, p. 336) [...] perambulando as suas fazendas por marfim e escravos, e não olro, porque ou o não há nas suas terras ou não tiram. (18DV, p. 146) O céu, reconhecendo esta situação, mandou-me um verão, e particularmente um fevereiro, que nunca jamais aqui houve. (19MA, p. 1056) Para o crítico não sei se há matéria suficiente nos trabalhos de alguns anos [...]. (19MA, p. 1049) [...] quem recordará que o Brasil existe sobre a superfície do globo [...]. (19CA, p. 48) Não posso mais ir pra Pasárgada / Houve revolução lá. (20MB, p. 1400) [...] o beco das Camélias, o beco famoso, onde não há homem no Rio que não tivesse pago o tributo à Vênus Vulgívaga. (20MB:1405) L1: e:: nos no no no:: nos no assustados nos BAIles nos assustados não nos assustados não tinha qualquer toalete (20SP D2 396, p. 62) L1: jardineiras cheias de flores de frutas... L2: hoje ainda tem não é? (20SP D2 396, p. 159)
A posição do Sintagma Adverbial espacial e/ou temporal Aplicando a Teoria de Articulação Tema-Rema, deve-se dar a devida importância à posição dos constituintes das sentenças, no âmbito discursivo. De acordo com essa teoria, o Tema é informacionalmente velho e semanticamente não-específico, isto é, ele carreia uma informação já conhecida, representada por uma expressão cujo correlato semântico é indefinido, enquanto o Rema é informacionalmente novo, carreando informação ausente até então no discurso. Pode-se dizer, portanto, que os Verbos Apresentacionais tematizam a sentença, concentrando-se a declaração propriamente dita no sintagma que se segue, o qual será o Rema da sentença (Castilho, 2001, p. 101). Foram extraídos do corpus alguns exemplos de ocorrências em que os sintagmas adverbiais de natureza espacial e/ou temporal se realizam em diferentes posições. Essa inconstante posição na sentença se explica, portanto, pelo modo como os elementos do discurso são organizados pelo enunciador.
Exemplos de casos em que o Sintagma Adverbial “inicia” a sentença E, quando a Muça vyo, foi maravilhado da fremosura de tam grande pedra e dos lavores que em ella avya. (14CG/V2, p. 339) [...] já hoje não há disputas, e argumentos indecentes [...]. (18CB, p. 38)
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 281 Por aqui não há novidade importante. (19MA, p. 1033) Pode-se dizer que em Montreal não há ruas – mas alinhamentos de jardins. (19EQ, p. 14) Bem, na rua Quinze, diz-se que tinha havido outra encrenca, outra vaia que uns diziam prá Fôrça Publica, outros prá brasileira. (20MA, p. 313) mas lá em casa tinha hora para estar na janela (20SP D2 396, p. 281)
Exemplos de casos em que o Sintagma Adverbial não “inicia” a sentença – Dizee a meu filho, o iffante dõ Johã, que açerca da çisma que he na igreja, lhe rogo que aja sobre elo boo consselho, ca he hũu caso muy periigoso e muy duvidoso [...] (14CG/V4, p. 536) [...] perambulando as suas fazendas por marfim e escravos, e não olro, porque ou o não há nas suas terras ou não tiram. (18DV, p. 146) Há mais civilização n‘um beco de Paris do que em toda a vasta New-York.1 (19EQ, p. 17) Não posso mais ir pra Pasárgada / Houve revolução lá. (20MB, p. 1400) mas::... existia aqui quem usasse sobrecasaca por exemplo que era o:: professor Vampré... (20SP D2 396, p. 35)
Outros pontos importantes Argumentos com traços espaço-temporais Conforme já exposto no início deste capítulo, o campo espaço-temporal em que se ancora a predicação dos verbos existenciais pode se ancorar não apenas em um Sintagma Adverbial, mas também em seus argumentos. Um caso prototípico é aquele formado pelo verbo haver e por um argumento que indique tempo decorrido. A seguir, alguns exemplos: Roma avya quynhentos e vynte e cinquo ãnos que fora pobrada quando Anybal destroyo Segonça, assy como ja ouvystes, e avya duzentos e noventa e tres ãnos que começaron a fazer consules. (14CG/V2, p. 84) E dizem os portugueses que nũca taaes ãnos forõ em Portugal como estes dez que el rey reynou. (14CG/V4, p. 539) Da nossa Côrte estamos há muitos meses sem novidades [...] (18CB, p. 57) [...] que há três semanas se vendiam pelo preço fabuloso de 735$000 [...] (19CA, p. 45) Se tem havido dias de intenso calor, outros temos gozado deliciosíssimos. (19CA, p. 52) Estou naquela mesma sala onde você me visitou há quatro anos, lembra-se? (20MB, p. 1384) há dez anos atrás os aviões não tinham o conforto de hoje ... (20SP D2 255, p. 90) só que eu ... de certa forma me habituei a LER ... no ônibus ... então eu levava um livro um jornal e era uma hora de leitura né? (20SP D2 255, p. 211)
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Consideramos existirem duas ocorrências do verbo haver neste exemplo, ambas antepostas ao sintagma adverbial. A segunda ocorrência está elíptica por força da expressão correlativo ―mais... do que‖: ―Há mais civilização n‘um beco de Paris do que [há] em toda vasta New-York‖.
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 282
Orações adjetivas Um outro tipo de constituinte bastante comum no corpus foi a oração adjetiva. Devido à falta de espaço, não foi feita a análise quantitativa desse constituinte, restringindo-se a análise apenas à apresentação de algumas ocorrências, que seguem abaixo: E ainda sem esto ha outra cousa na peendẽça que he mui boa [...] (14PP, p. 122) Em [este] ha hũa fonte de que corrẽ rrios que [re]gam toda terra em redor [...] (14OE, p. 3) eu não há dia nenhum em que não conte os dias, os meses, as hora[s], os instantes, em que saí da minha casa [...]. (18CB, p. 73) [...] porem denem hú modo impedir os de Peraty que donde sempre se fizeraõ por q. aly há cazas ricas, q. engroçaraõ com estes tratos.‖ (18GR, p. 65) E, todavia, se já houve sociedade que reclamasse um artista vingador, é esta! (19EQ, p. 45) Há desses amigos, que um escritor tem a fortuna de ganhar sem conhecer, e são dos melhores. (19MA:1040) [...] não tem nada que me mortifique mais do que calar a boca quando sei que tenho razão [...]. (20MA, p. 342) Há ocasiões em que no cansaço cerebral só fica uma lírica aporrinhando com uma baita força emotival‖ (20MB, p. 1396) e há alunos que vêm ... dos pontos os MAIS distantes ... mas não chegam a constituir ... uma maioria (20SP D2 255, p. 1400) então tem carreiras que seriam brilhantíssimas para a mulher que seriam lindas... (20SP D2 360, p. 666)
O dêitico hi Com a análise especificamente do corpus do século XIV, alguns problemas de classificação se deram, sobretudo, pela imprecisão semântica de alguns itens lexicais, como, por exemplo, o advérbio hi. Voltemo-nos à seguinte ocorrência: E, por mostrar mayor amor aos Spanhooes, tomou todollos presos que tiinha delles e deuhos a seus parentes [...]. E, antre aquelles que tiinha d‘Espanha, avya hi hũa donzella muy fremosa e muy menyna e de grande linhagem; e era sposada. (14CG/V2, p. 93)
A classificação de uma relação de posse de traço abstrato se situaria a meio caminho no continuum entre o significado de posse — E, entre aqueles que (ele) tinha de Espanha, (ele) tinha uma donzela muito formosa — e o existencial apresentacional — E, entre aqueles que (ele) tinha de Espanha, havia aí (ou “dentre eles”) uma donzela muito formosa. Cada interpretação acarretaria uma classificação diferente: No primeiro caso, o verbo estaria em sua forma pessoal e o argumento interno seria elíptico; no segundo caso, o verbo estaria em sua forma impessoal, com seu único argumento se realizando à direita. Embora o dêitico hi pareça no exemplo estar mais próximo do caso existencial apresentacional, vale dizer que o hi tanto pode ser interpretado como variante de aí como deles, dentre eles (Costa, 2003)1, caso em que se teria uma reduplicação sintática (E, entre 1
Vale reproduzir o trecho em que a autora discorre sobre o assunto: ―Teyssier sugere que aí e hi são variantes, na obra de Gil Vicente. O corpus que analisamos só nos permite afirmar parcialmente essa variação entre aí e hi, a saber, quando são dêiticos de segunda pessoa ou quando
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aqueles que (ele) tinha de Espanha, havia entre eles uma donzela), o que é bastante comum em textos dessa época, como nos mostra Célia Maria Moraes de Castilho (Mattos e Silva, 2001).
Afirmação versus Negação Tendo em vista o função discursiva do foco apresentacional, foi feita a contagem de casos de sentenças que exibem o foco apresentacional construído em sua forma negativa. Com os dados levantados, percebemos que a maioria das ocorrências de negação se dá quando o produtor da sentença faz comparações entre faixas temporais diferentes, isto é, afirma que algo não existia no momento X, mas existia no momento Y, sendo a negação em X mais propriamente uma afirmação em Y, como no exemplo abaixo: corPInho como chamavam naquela ocasião... usava um corpinho ... não era este negócio que hoje tem (20SP D2 396, p. 366)
Percebe-se também a utilização da negação como uma estrutura de ênfase, sobretudo nos casos em que, além do advérbio negativo, tem-se um substantivo de ideia negativa, como nos exemplos a seguir: Da origem da Senhora dos Remedios não há quem diga nada com certeza [...] (18SM, p. 33) [...] não tem nada que me mortifique mais do que calar a boca quando sei que tenho razão [...]. (20MA, p. 342)
A seguir, a análise quantitativa, considerando como itens de análise a presença/ausência de foco apresentacional e a natureza afirmativa/negativa sentença. Orações afirmativas / negativas no conjunto de verbos pesquisados (número de ocorrências) Século Afirmação / negação XIV XVIII XIX XX Afirmação Negação
41 9
37 17
34 17
40 10
XX (fala) 41 9
ocorrem em alguns usos anafóricos, principalmente quando o elemento anaforizado tem referente extralingüístico (espaço concreto) ou é parte componente de texto (espaço-texto). Há, contudo, dois tipos de anáfora em que não se pode falar em variação. O primeiro é a anáfora que estamos chamando de ―causal‖, como se vê no exemplo: (14) ...e suas vergonhas tam nuas e com tamta jnocência descubertas que nõ avia hy nhuua vergonha. (CPVC, fl. 7, ls.11-13) O segundo tipo de anáfora, de que o português atual prescinde, é aquele que retoma elemento considerado como um conjunto, do qual vem-se a fazer referência a apenas uma parte. Nesse caso, o hi sempre acompanha o verbo haver. Percebemos nesse hi a possibilidade de ser interpretado como deles, dentre eles, tal como o en(de) do português arcaico ou o en do francês moderno.‖ (Costa, 2003).
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Porcentagem de ocorrências
Orações afirmativas / negativas no conjunto de verbos pesquisados 100% 80% 60%
Afirmação
40%
Negação
20% 0% XIV
XVIII
XIX
XX
XX (fala)
Século
Verbos sem foco apresentacional Orações afirmativas / negativas nos verbos existenciais (número de ocorrências) Século Afirmação / negação XIV XVIII XIX XX XX (fala) Afirmação Negação
24 5
5 2
5 2
7 6
6 1
Orações afirmativas / negativas em verbos existencias
Porcentagem de ocorrências
100% 80% 60%
Afirmação
40%
Negação
20% 0% XIV
XVIII
XIX
XX
XX (fala)
Século
Verbos com foco apresentacional Orações afirmativas / negativas nos verbos apresentacionais existenciais (número de ocorrências) Século Afirmação / negação XIV XVIII XIX XX XX (fala) Afirmação Negação
17 4
31 15
29 15
32 3
34 8
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 285 Orações afirmativas / negativas em verbos apresentacionais existenciais
Porcentagem de ocorrências
100% 80% 60%
Afirmação
40%
Negação
20% 0% XIV
XVIII
XIX
XX
XX (fala)
Século
Os gráficos acima mostram clara predominância de orações afirmativas, ao longo de todos os séculos. Quer analisemos o conjunto dos verbos, quer nos debrucemos sobre os subconjuntos (apresentacional existencial versus apenas existencial), os resultados são bastante semelhantes: cerca de 70% a 80% das orações são afirmativas.
VERBOS EXISTENCIAIS: ARGUMENTOS INTERNOS OU EXTERNOS? Do ponto de vista sintático, a análise da relação argumental pode ser assim aplicada ao português, segundo Castilho (2001, p. 95): identificamos o sujeito (argumento externo) se o termo adjacente subcategorizado pelo verbo for proporcional a um pronome de caso reto e concordar com o verbo; identificamos, por sua vez, o argumento interno, se esse termo adjacente for proporcional a um pronome do caso oblíquo ou se for preposicionado; além disso, os argumentos internos de ter e haver são classificados como Objetos Diretos, por serem proporcionais especificamente aos clíticos acusativos me / te / o. Numa indagaçãopiloto, baseada nos materiais do Projeto Nurc/SP, 60% das sentenças figuraram na ordem Sujeito-Verbo, e 40% na ordem Verbo-Sujeito (Castilho, 1986a apud Castilho, 2001). Partindo de tal ponto de vista, os argumentos dos verbos ter e haver, internos, se realizariam principalmente à direita, enquanto os argumentos dos verbos ser e existir, externos, se realizariam principalmente à esquerda. Do ponto de vista discursivo, insistindo na Teoria de Articulação Tema-Rema, o argumento dos verbos de foco apresentacional se realizaria favoravelmente à direita, o que é exposto por Castilho (2001, p. 91): Os Verbos Apresentacionais desempenham o papel discursivo de introduzir o Tópico Conversacional, seja ele uma pessoa, seja uma coisa. ―Note que tais verbos organizam sentenças do tipo ‗V+X‘, isto é, o verbo vem sempre fronteado, seguido de um sintagma cujo referente é o que se quer introduzir na conversa. Examinando a sentença do ponto de vista da articulação Tema-Rema, pode-se dizer que os Verbos Apresentacionais tematizam a sentença, concentrando-se a declaração propriamente dita no sintagma que se segue. Tal sintagma será, portanto, o Rema da sentença.‖ Desse modo, há motivos sintáticos e discursivos para a realização à direita dos argumentos dos verbos ter e haver. No caso dos verbos ser e existir, por outro lado, há razões para o
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argumento se realizar tanto à esquerda (por ser sujeito — fator sintático) como à direita (por ser o Rema da sentença — fator discursivo), o que nos permite dizer que a posição do argumento parece ser mais livre do que no caso do primeiro bloco de verbos. Outro fator aqui analisado foi a concordância entre argumento e verbo, que se dá quando o argumento é externo, ou seja, quando é sujeito da sentença. Tem-se como casos prototípicos, portanto, para os verbos ser e existir, uma forma verbal que concorda com o sujeito; com ter e haver, por outro lado, não se espera que haja a concordância, pelo fato de as formas serem impessoais. Vale ressaltar que há dificuldade quando se analisa a pessoalidade dos verbos em variantes não-padrão do português brasileiro, devido à variante de plural não redundante —em que apenas um constituinte da sentença apresenta a marca plural, sobretudo o(s) primeiro(s) elemento(s) do sintagma nominal que constitui o sujeito. Para o corpus de português falado, foi interessante a seleção do material recolhido pelo projeto Nurc, onde são raras as ocorrências em que não há a concordância verbal. Segue abaixo a análise quantitativa do corpus levando em conta os itens aqui expostos, assim como a seleção de exemplos.
Construções impessoais: ter e haver De fato, como se pode ver nos gráficos e tabelas abaixo, essas tendências se verificaram para os verbos ter e haver, no levantamento que fizemos. No caso do verbo ter, não houve uma única ocorrência de argumento à esquerda dentre os exemplos coletados do corpus. Posição do argumento - verbo Ter (número de ocorrências) Século Posição do argumento XIV XVIII XIX Argumento à direita 0 2 0 Argumento à esquerda 0 0 0 Argumento elíptico 0 0 0
XX 7 0 0
XX (fala) 14 0 2
Posição do argumento - verbo Ter
Porcentagem de ocorrências
100% 80% Argumento à direita
60%
Argumento à esquerda 40%
Argumento elíptico
20% 0% XIV
XVIII
XIX Século
XX
XX (fala)
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 287
Seguem alguns exemplos de ocorrências do verbo ter, extraídos do corpus:
Argumento à direita (no singular) Voltei do Rio num estado que não sei bem como é, num estado misturado. Tinha de tudo nele, e de muitas coisas dêsse tudo não terei tempo de lhe contar [...] (20MA, p. 329) quando era pra ir pra escola tinha uniforme... (20SP D2 396, p. 9)
Argumento à direita (no plural) Dista o rio Curicuaú deste pouco 5 léguas: e entrando por ele tem nas suas margens umas serras [...] (18DV, p. 15) Você não pode imaginar o que está se passando por aqui, tem momentos em que o espírito fica tão atrapalhado com o sabido, que tenho a impressão de que todos os brasileiros são ladrões (20MA, p. 319) L2: naquele tempo tinha já::: carteiras:: individuais não é?... cada (coisa na::) na escola normal principalmente tinha... (20SP D2 396, p. 419)
Já no caso do verbo haver, constatamos a presença de argumento à esquerda, entretanto as construções com argumento à direita continuaram a prevalecer claramente, perfazendo 70% a 90% do total de acordo com o século em questão:
Posição do argumento - verbo Haver (número de ocorrências) Século Posição do argumento XIV XVIII XIX
XX
XX (fala)
Argumento à direita Argumento à esquerda Argumento elíptico
33 6 0
13 1 0
19 8 0
38 10 0
42 6 1
Posição do argumento - verbo Haver
Porcentagem de ocorrências
100% 80% Argumento à direita
60%
Argumento à esquerda 40%
Argumento elíptico
20% 0% XIV
XVIII
XIX Século
XX
XX (fala)
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Exemplos extraídos do corpus:
Argumento à direita E ainda sem esto ha outra cousa na peendẽça que he mui boa [...] (14PP, p. 122) [...] emurrao pederneyras, emais miudezas declaradas na d.ª lista sem as quais senão pode fazer aguerra havendoa [...] (18GR, p. 66) Não há calor nem febre que tenham o poder de intimidar os seus cavalheiros e suas belas [...] (19CA, p. 51) Bem, na rua Quinze, diz-se que tinha havido outra encrenca, outra vaia que uns diziam prá Fôrça Publica, outros prá brasileira. (20MA, p. 313) L1: e:: as moças (quer dizer::)... havia muito mais::... diFIculda::de de um ra/ rapaz (era) diFIcilmente um rapaz saía com uma moça... a não ser quando havia muita intimidade... (20SP D2 396, p. 211) E, avydos antre elles estes fallamentos e outros muytos, ajuntaronsse todos e ouveron sobre esto sua falla. (14CG/V2, p. 156) [...] já hoje não há disputas [...] (18CB, p. 38) [...] há, porém, tais que não param nesse belo improviso de todos os anos [...] (19CA, p. 51) Há jongos (exemplares isolados) que parecem criar uma variedade característica de dança [...]. (20MA, p. 346) L1: e há alunos que vêm ... dos pontos os MAIS distantes ... mas não chegam a constituir ... uma maioria (20SP D2 255, p. 1400)
Argumento à esquerda [...] ca nẽ hũa outra [pẽa] que podesse auer eno corpo [...] (14PP, p. 124) [...] perambulando as suas fazendas por marfim e escravos, e não olro, porque ou o não há nas suas terras ou não tiram. (18DV, p. 146) Judeu medíocre é mesmo a coisa mais medíocre que ha. (20MA, p. 325) L2: eu acho que quando fazem esse tipo de propaganda que fizeram em torno do Exorcista ... aí o que está havendo aí é uma GRANde campanha publicitária para se vender um produto (20SP D2 255, p. 428) [...] sob as dificuldades aparentes, se me afigura que outras haverá, menos superáveis e mais sutis [...] (19MA, p. 1028) [...] e argumentos indecentes que haviam1 naquele lugar [...] (18CB, p. 38)
Construções pessoais: ser e existir Os verbos ser e existir, por sua vez, não apresentaram comportamento tão regular, conforme prevíramos. No caso do verbo ser, prevalecem as construções com argumento à esquerda (aproximadamente 60% das ocorrências) nos exemplos coletados no século XIV e XX-E 1
Considerando-se o verbo haver com sentido existencial, esta foi a única ocorrência na forma pessoal, mais especificamente pessoal-plural, encontrada no corpus analisado.
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(escrito). No registro oral (século XX-fala), porém, nota-se uma total inversão dessa tendência. Das 11 ocorrências do verbo ser, nada menos que 10 (90.9%) são de argumento à direita. Os dados do século XVIII apontam na mesma direção, porém as ocorrências são muito poucas (apenas 3) para inferirmos uma possível tendência acerca da posição do argumento.
Posição do argumento - verbo Ser (número de ocorrências) Século XIV XVIII XIX
Posição do argumento
Argumento à direita Argumento à esquerda Argumento elíptico
7 17 1
3 0 0
0 0 0
XX
XX (fala)
1 2 0
10 0 1
Posição do argumento - verbo Ser
Porcentagem de ocorrências
100% 80% Argumento à direita
60%
Argumento à esquerda 40%
Argumento elíptico
20% 0% XIV
XVIII
XIX
XX
XX (fala)
Século
Exemplos extraídos do corpus:
Argumento à direita [...] nõ pode seer que a uertude de Deus onde uẽ aquel entẽdimẽto nõ desça hy quando achar o logar aparalhado cõmo conuem [...] (14PP, p. 122) E, despois que o encalço mais nõ quiseron seguyr, tornaronsse ao logar onde fora a lide e apartaron todollos seus que accharon mortos e soterrarõnos. (14CG/V2, p. 328) Fizemo-nos à vela no dia 24 de Fevereiro, sendo um vento tão escasso que se não fosse a grandíssima força que tinha a corrente-d‘água, não seria possível o deitarmos nesse dia fora da barra. (18CB, p. 9) Foi um custo danado (de seu Guimarães, não meu) para receber dois vales seus e já tem mais três a haver. (20MB, p. 1401) Dr. J.B.: É uma idéia! Pardal: Não é? (20NR, p. 38)
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 290 corPInho como chamavam naquela ocasião... usava um corpinho ... não era este negócio [...] (20SP D2 396, p. 369) Eram 8 horas quando saímos deste destacamento [...] (18DV, p. 30) enfim eram meia dúzia de milionários (20SP D2 396, p. 542)
Argumento à esquerda Hũũ homẽ foy leuado ao jnferno pera ueer as penas que hi som, e antre aquelles que hy eram, vyo hũũ homẽ que era todo metido ẽ tormẽtos, afora a cabeça, que tijnha fora. (14OE, p. 9) E esto he, segundo diz hũũ doutor, porque esta aruor ha en sy e[n]xertado, em leteras judengas escriptu, este nome Jhesu, e pella uirtude do glorioso nome nõ a pode queymar o fogo. (14OE, p. 13) E despois tornousse pera as Franças, a mui grande pressa; e esto foy por que lhe trouxeron novas que o emperio de Roma estava todo torvado, por muytas guerras e discordias que avyam os Romããos antre sy. (14CG/V2, p. 153) – Dizee a meu filho, o iffante dõ Johã, que açerca da çisma que he na igreja, lhe rogo que aja sobre elo boo consselho, ca he hũu caso muy periigoso e muy duvidoso; [...] (14CG/V4, p. 536) [...] uma espécie de entidade pronomino-verbal fixa que funciona com a idéia dum verdadeiro substantivo, isto é, uma coisa que é. (20MA, p. 322)
Da mesma forma, é preciso bastante cautela para se avaliar a posição do argumento nas poucas ocorrências de existir. Se, por um lado, 100% dos argumentos situam-se à esquerda nas ocorrências dos séculos XVIII a XX-E (escrita), convém lembrar que o número dessas ocorrências (não mais de duas por século) não é representativo estatisticamente. Vale notar, também, que no registro falado do século XX o argumento se situa tanto à direita (5 ocorrências) quanto à esquerda (4 ocorrências), numa distribuição bastante equitativa que não demonstra preferência por uma ou outra posição.
Posição do argumento - verbo Existir (número de ocorrências) Século Posição do argumento XIV XVIII XIX XX Argumento à direita Argumento à esquerda Argumento elíptico
0 0 0
0 1 0
0 2 0
0 1 0
XX (fala) 5 4 0
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 291 Posição do argumento - verbo Existir
Porcentagem de ocorrências
100% 80% Argumento à direita
60%
Argumento à esquerda 40%
Argumento elíptico
20% 0% XIV
XVIII
XIX
XX
XX (fala)
Século
Exemplos extraídos do corpus:
Argumento à direita mas em termos assim de ... de assistir habitualmente não existe isso... até pelo contrário eu faço até uma certa campanha... que a televisão ... agente sirva dela e não ela se torna assim ... entende? (20SP D2 255, p. 449) através do rádio de pilha ... ele pôde se ligar ao resto do mundo saber que existem outros lugares outras pessoas que existe um governo que existem atos do governo (20SP D2 255, p. 715)
Argumento à esquerda Antigamente havia nas margens deste rio, em lugares mais altos, algumas povoações, que presentemente não existem [...] (18DV, p. 112) [...] quem recordará que o Brasil existe sobre a superfície do globo [...] (19CA, p. 48) [...] donde se vê que as belezas que achamos no livro existem de si mesmas [...] (19MA, p. 1047) O meu separatismo é a coisa mais alagada e mais angustiosa que existe. (20MA, p. 319) e o Washington criou a::... guarda civil... essa guarda civil que existiu até há pouco tempo... foi feita exclusivamente para recepções... e teatros... (20SP D2 396, p. 332) meu sogro foi imediatamente chamado para:: residir como como primeiro morador ainda que nós... ahn tivéssemos condições de pagar um caseiro que lá existia mas o sogro estava ... estabelecido num sítio (20SP D2 255, p. 336) acredito que:: a imprensa ... é apenas mais um meio de comunicação ... juntamente com os meios modernos que naturalmente existem ... (20SP D2 255, p. 955)
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Argumento elíptico
Conforme os dados levantados, chama atenção a baixa ocorrência de argumento do tipo elíptico. Nos casos levantados de argumento interno, o referente é esclarecido pelo contexto discursivo. Nos casos de argumento externo, pela flexão verbal. Abaixo, seguem os exemplos encontrados no corpus: Jrmããos, qualquer cousa que fezerdes, todo fazede ẽ nome do Senhor Jhesu Christo, ẽno qual uiuemos, e em elle nos mouemos e somos. (14OE, p. 5) [...] ellas dispensam o revestimento sacramental da tal prosa como não há [...] (19EQ, p. xiii) do que nós ali chamaríamos hoje cano de bota cano das botinhas... não tinha:: aquele tempo não se usava botinhas... usavam as moças usavam sapatos... (20SP D2 396, p. 75)1 L1: jardineiras cheias de flores de frutas... L2: hoje ainda tem não é? (20SP D2 396, p. 159) L1: e::... por vezes tod/ ... às vezes rendado mas sempre ... sempre tinha por baixo um::: L2: reCAto... não é? L1: existia sempre nunca nunca era transparente [...] (20SP D2 396, p. 366)2
Pronome o (a) O uso do pronome oblíquo o como argumento do verbo haver reforça a classificação de tal argumento como interno. Seguem abaixo algumas ocorrências: [...] é necesário bastante cuidado para descobrir os seus afilhados particulares, porém ainda é certo que os há [...] (18CB, p. 21) emurrao pederneyras, emais miudezas declaradas na d.ª lista sem as quais senão pode fazer aguerra havendoa [...] (18GR, p. 66) [...] perambulando as suas fazendas por marfim e escravos, e não olro, porque ou o não há nas suas terras ou não tiram. (18DV, p. 146)
1
2
Esse exemplo dá margem a mais de uma interpretação. Podemos supor que após ―não tinha::‖ houve truncamento e consequente reformulação da sentença – processo bastante recorrente em textos orais –, de modo que a ideia é expressa novamente logo a seguir, em forma de paráfrase: ―aquele tempo não se usava botinhas‖ (a respeito de procedimentos de reformulação, ver Hilgert, 2003). Ou podemos supor um núcleo de argumento elíptico, como fizemos. Explicitando esse núcleo [entre colchetes] e deslocando o argumento para a direita (apenas para evidenciar o sentido dessa hipótese interpretativa), teríamos: ―não tinha:: [nada] do que nós ali chamaríamos hoje cano de bota cano das botinhas...‖ Este trecho de diálogo é um exemplo interessante de interação conversacional, ou seja, de como um tópico pode ser construído na interação conversacional, pois temos aqui um turno inserido que contribui para o desenvolvimento do tópico (Galembeck, 2003, p. 82) ao fornecer o argumento da sentença, recato. Com isso, dispensa L1 de explicitar o argumento, pois deixa claro que o interlocutor L2 sabe do que se trata. A respeito da sintaxe interturnos, ver Moraes (2003). Abordaremos sucintamente, mais adiante, algumas características de textos orais a partir do exemplo anterior (das jardineiras), que também é um caso de interação conversacional.
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Outros casos Foram encontrados no corpus exemplos de argumentos que podem ser considerados como ―bipartidos‖, como: E que cousa he en ssy meesma a peendença. E a quẽ tẽ prol. E quantas maneyras ssom de pecados ssobre que á de seer feyta. (14PP, p. 120) Tres maneyras som de pecados sobre que estabeleçeu a Santa Jgreia que ffosse feita a pẽẽdença. (14PP, p. 123) E tam grande dulçura e prazer auia em elle e consolaçom, que tantas uezes o nomeou en sua escriptura, e na morte nõ lhe esqueeceu. (14OE, p. 8) Ora, direis, viúvas há muitas. (20NR, p. 23)
Um outro caso interessante, mas que foi excluído nas contagens feitas neste trabalho, é a estrutura em que o verbo ter seleciona um argumento externo, apesar de seu significado ser fortemente existencial, o que foi abordado por Franchi, Negrão e Viotti (1998): Como você não tem aí grandes divertimentos, venho te contar umas lérias. (20MB, p. 1387)
USO DOS VERBOS EXISTENCIAIS segundo O GRAU DE ORALIDADE DO TEXTO Considerações gerais sobre o texto oral e o texto escrito Moraes (2003, p. 212) afirma que o sistema gramatical mantém-se o mesmo, tanto na língua falada quanto na escrita, o que possibilita uma análise contrastiva dos dois registros. Aponta também que, ―se é correto afirmar que tudo que se encontra na língua escrita se acha também na falada, o certo é que a recíproca não é verdadeira: nem tudo que há na língua falada está também na escrita‖. Para ilustrar essa última afirmação, convém comentarmos brevemente um exemplo de construção típica do texto oral,1 já apresentado anteriormente: L1: jardineiras cheias de flores de frutas... L2: hoje ainda tem não é? (20SP D2 396, p. 159)
No exemplo acima, o argumento (jardineiras) de ter é omitido no turno de L2, o que é possível pelo processo de referência anafórica ao tópico introduzido por L1. Essa característica de uma construção de texto interturnos é típica da conversação2. A seguir, exemplos que contêm uma outra construção típica do texto oral, a reformulação: L1: nosso ponto ficava na rua Direita aLI al/ali na esquina da::... da:: da rua José Bonifácio... rua José Bonifácio que encaixa na rua Direita justamente... ali era o ali tinha um tinha tinha o::... a drogaria... drogaria Amarante... e ali o bo/ o bonde (segue) o bonde se/ ... era um ponto de bonde o bonde parava ali... (20SP D2 396, p. 197) 1 2
Para um panorama sobre os principais aspectos da análise de textos orais, ver Preti (2003). A esse respeito, ver Galembeck (2003).
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L1: que era uma espé/ era um chapéu de rendas... mais ou menos caídas charlotte... (20SP D2 396, p. 167)
L1: ah o:: voile não existe mais o voile de lã nem o voile de de étamine (20SP D2 396, p. 109)
Diferenças quanto ao uso das construções com ter e haver No que diz respeito aos verbos existenciais, é interessante considerar o uso sobretudo dos verbos ter e haver, tendo em vista a norma padrão, a qual se impõe de modo diferente conforme o grau de oralidade do texto; tal análise pôde ser feita com o corpus do século XX, por ser constituído tanto do registro escrito como do registro falado. Filólogos como Said Ali (1950) aconselhavam que o verbo ter deveria ser evitado, conforme comentamos. A explicação para tal recomendação está ligada ao fato de que a norma atual do português culto se baseia, de modo geral, na descrição de textos mais antigos, clássicos, nos quais, como foi demonstrado neste trabalho, não se encontram ocorrências do verbo ter com sentido existencial. Essa norma se reflete sobretudo no texto escrito, menos espontâneo, enquanto a ocorrência do verbo ter é comum nos textos falados, mesmo cultos (Franchi; Negrão; Viotti, 1998, p. 106, grifos dos autores): As construções existenciais com ter constituem uma singularidade do PB, pelo menos na extensão de seu emprego, em relação às construções existenciais com haver (predominante em outras línguas românicas) e com verbo copulativo, (possível no Português arcaico e predominante na maioria das línguas de que obtivemos descrições confiáveis). A distribuição dos verbos nas construções existenciais do PB mostra o privilégio às construções com ter sobre haver e existir, mesmo em um corpus datado e de falantes cultos como o do Projeto Nurc, de que nos servimos de um modo geral.
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 295 Ter e Haver no século XX - Registros falado e escrito Escrita Fala Verbo ocorrências porcentagem ocorrências porcentagem Ter 7 15,2% 16 53,3% Haver 39 84,8% 14 46,7%
Total 23 53
Ter e Haver no Século XX - registro da escrita e da fala
Porcentagem de ocorrências
100% 80% 60%
Ter
40%
Haver
20% 0% Escrita
Fala Registro
Exemplos de uso do verbo ter (século XX) E se tem verdades intelectuais, vive ao léu das irrupções sentimentais [...] (20MA, p. 319) Você não pode imaginar o que está se passando por aqui, tem momentos em que o espírito fica tão atrapalhado com o sabido, que tenho a impressão de que todos os brasileiros são ladrões. (20MA, p. 319) mas quando eu assisto televisão em casa é assim para ficar junto com o pessoal ... mas não é ... diário ... entende? é assim quando a gente sabe hoje vai ter um filme bom ... vai passar um filme que ... às vezes até filme que eu já assisti (20SP D2 255, p. 492) ele ouvia porque não tinha outra coisa para ouvir naquele horário (20SP D2 255, p. 692)
Exemplos de uso do verbo haver (século XX) Ha porém uma observação que me leva a explicar porquê o alfabetizado não usa em geral o ―o desespera‖. (20MA, p. 322) eu não sei exatamente qual é a estrutura jurídica mas o fato é que houve uma reformulação nos sistemas de correios e:: (20SP D2 255, p. 812) dizem até que vai haver um sistema agora de você ligar e ver a cara da pessoa então até é melhor porque você vê até a reação da pessoa não é? (20SP D2 255, p. 933)
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 296
CONCLUSÃO Partindo dos esquemas teóricos desenvolvidos pela literatura hoje disponível acerca dos verbos existenciais e do foco apresentacional, buscamos aplicar as principais diretrizes desses esquemas no corpus analisado, o que posteriormente abriu caminho para a avaliação de tais esquemas, assim como a problematização de alguns pontos de que a literatura parece ainda não dar conta. Contudo, o levantamento por nós realizado não é suficiente, sob um ponto de vista estatístico, para contrariar os aspectos gerais das teorias estudadas. É, antes disso, um trabalho o qual, com a localização de algumas ocorrências que questionam tais teorias, apresenta problemas que convidam a uma discussão mais profunda. Alguns dados gerais confirmam as principais diretrizes teóricas, como a frequência de uso dos verbos existenciais sob um ponto de vista diacrônico: como exemplo, tem-se o ―surgimento‖ do verbo ter e do verbo existir nas construções existenciais. Outras diretrizes são em parte confirmadas, como a relevância dos constituintes espaço-temporais nos estudos da predicação dos verbos existenciais — os constituintes espaço-temporais apresentaram variação de 30% em sua frequência através dos séculos, dado que abre caminho para o estudo da importância de outros tipos de constituintes das construções existenciais. Nesse sentido, a falta de uma abordagem mais detalhada dos qualificadores sintaticamente ligados aos argumentos — principalmente as orações adjetivas e outros tipos de qualificadores — foi percebida. Observamos que a ausência de um constituinte espacial e/ou temporal, muitas vezes, é compensada pela presença de uma oração adjetiva, a qual garantia a informação ―nova‖, formando o Rema da sentença. Outro ponto que merece destaque é a posição argumental nas construções existenciais. Confirmou-se a força que mantém os argumentos das construções impessoais (com ter e haver) à direita, assim como o fato de que essa força diminui nas construções pessoais (com ser e existir). Também foi abordada, sem aprofundamento, a sintaxe da língua falada, assim como a relevância de fatores extralinguísticos na análise desse registro de língua (como a escolaridade do informante e a formalidade da situação conversacional). De um modo geral, portanto, este trabalho é um convite aos pesquisadores que trabalham com a descrição da língua portuguesa a refletir, com base nas diretrizes teóricas correntes, sobre a adequação dos atuais modelos descritivos, tendo em mente a importância de um levantamento quantitativo e qualitativo de um banco diversificado e diacrônico de textos em português.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes primárias (e abreviaturas correspondentes) Século XIV1 14PP
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14OE
ORTO do Esposo. Texto inédito do fim do séc. XIV ou começo do XV. Edição crítica com introdução, anotações e glossário de Bertil Maler. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1956. V. 1, p. 1-13.
14LA
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14CG/V2
CRÓNICA Geral de Espanha de 1344. Edição Crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1954. V. 2, p. 83-94, 153-157.
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Século XVIII2 18SM
SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Santuario Mariano e história das images milagrosas de Nossa Senhora, e das milagrosamente apparecidas, em graça dos pregadores, & dos devotos da mesma Senhora. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galrão, 1707. Tomo 1, p. 20-31, 230-239.
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Século XIX3 19CA
1
2
3
PARANHOS, José Maria da Silva. Cartas ao amigo ausente. Organização e prefácio de José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco; Ministério das Relações Exteriores, 1953. pp. 42-52.
Os textos abaixo foram compilados em TARALLO, Fernando (Org.). Corpus diacrônico do português. Campinas, 1991. V. 2 – séc. XIV. Cópias xerox encadernadas. Material disponível na biblioteca da FFLCHUSP. Os textos abaixo foram compilados em TARALLO, Fernando (Org.). Corpus diacrônico do português. Campinas, 1991. V. 6 – séc. XVIII, partes 1 e 2. Cópias xerox encadernadas. Material disponível na biblioteca da FFLCH-USP. Os textos abaixo foram compilados em TARALLO, Fernando (Org.). Corpus diacrônico do português. Campinas, 1991. V. 7 – séc. XIX. Cópias xerox encadernadas. Material disponível na biblioteca da FFLCHUSP.
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 298 19MA
ASSIS, Machado de. Epistolário. In: Obra Completa. Organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962. V. 3, p. 1028-1059.
19EQ
QUEIROZ, Eça de. Correspondência. 6ª ed. Porto: Lello & Irmão, 1946. p. 1-54.
19CB
BRANCO, Camilo Castelo. Epistolário. In: Obra seleta. Organização, seleção, introdução e notas de Jacinto do Prado Coelho. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960. Vol. 1, p. 117-131
Século XX (Língua Escrita)1 20MB
BANDEIRA, Manuel. Epistolário. In: Poesia e prosa. Introdução geral por Sérgio Buarque de Holanda e Francisco de Assis Barbosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958. V. 2, p. 1384-1407.
20NR
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20MA
ANDRADE, Mário de. Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Prefácio e notas de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Organização Simões Ed., 1958. p. 309-353
Século XX (Língua Falada)2 20SP D2 255
PROJETO NURC/SP INQUÉRITO No. 255 – BOBINA No. 95 – INFS. 303 E 304 Tipo de inquérito: diálogo entre dois informantes (D2) Duração: 82 minutos Data do registro: 19/11/74 Tema: Transportes e viagens, cinema, televisão, rádio e teatro, os meios de comunicação e difusão, a cidade e o comércio Locutor 1: Homem, 37 anos, casado, professor, paulistano, pais paulistanos, 2ª. faixa etária. (Inf. no. 303) Locutor 2: Homem, 40 anos, casado, advogado e professor, paulistano, pais cariocas, 2ª. faixa etária. (informante n.° 304)
20SP D2 360
PROJETO NURC/SP INQUÉRITO No. 360 – BOBINA No. 137 – INFS. 472 E 473 Tipo de inquérito: diálogo entre dois informantes (D2) Duração: 66 minutos Data do registro: 23/08/76 Tema: Tempo cronológico, profissões e ofícios. Locutor 1: Mulher, 37 anos, casada, pedagoga, paulistana, pais paulistas, 2ª. faixa etária. (informante n.° 473) Locutor 2: Mulher, 36 anos, casada, advogada, paulistana, pais paulistas, 2ª. faixa etária. (informante n.° 472)
20SP D2 396
PROJETO NURC/SP INQUÉRITO No. 396 – BOBINA No. 145 – INFS. 502 E 503 Tipo de inquérito: diálogo entre dois informantes (D2) Duração: 75 minutos Data do registro: 19/11/76 Tema: Vestuários e diversões Locutor 1: Homem, 81 anos, viúvo, dentista, natural de Jundiaí – SP (veio para São Paulo com 3 anos), pai paulista, mãe paulistana, 3ª. faixa etária. (informante n.° 502) Locutor 2: Mulher, 82 anos, viúva, professora, natural de Sorocaba – SP (veio para São Paulo com 5 anos pai paulista, mãe paulistana, 3ª. faixa etária. (informante n.° 503)
1
Os textos abaixo foram compilados em TARALLO, Fernando (Org.). Corpus diacrônico do português. Campinas, 1991. V. 8 – séc. XX. Cópias xerox encadernadas. Material disponível na biblioteca da FFLCHUSP. 2 Os inquéritos abaixo foram extraídos de Castilho e Preti (1987).
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 299
Fontes secundárias BOLINGER, Dwight. A further note on the nominal in the progressive. Linguistic Inquiry, n. 2, p. 584-586, 1971. BORBA, Francisco da Silva et al. Dicionário gramatical de verbos do português contemporâneo do Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 1990. CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975. CASTILHO, Ataliba Teixeira de; PRETI, Dino. (Org.). Diálogo entre dois informantes. In: A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. São Paulo: TAQ; Fapesp, 1987. V. 2. CASTILHO, Ataliba Teixeira de. A gramaticalização. Estudos Linguísticos e Literários, Salvador, n. 19, p. 25-63, mar. 1997. CASTILHO, Ataliba Teixeira de. A língua falada no ensino de português. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2001. COSTA, Sônia Bastos Borba. Espacialização de base dêitica: adverbiais portugueses no século XVI. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador, n. 29-30, p. 163-176, 2003. FRANCHI, Carlos; NEGRÃO, Esmeralda Vailati; VIOTTI, Evani. Sobre a gramática das orações impessoais com Ter / Haver. DELTA, São Paulo, v. 14, n. especial, p. 105131, 1998. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244501998000300009&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 10 jun. 2009. doi: 10.1590/S0102-44501998000300009. GALEMBECK, Paulo de Tarso. O turno conversacional. In: PRETI, Dino (org.) Análise de textos orais. 6. ed. São Paulo: Humanitas, 2003. p. 65-92. (Projetos Paralelos – Nurc/SP, 1) HETZRON, Robert. The presentative movement or why the ideal word order is VSOP. In: LI, Charles N. (Ed.). Word order and word order change. Austin: University of Texas Press, 1975. p. 345-388. HILGERT, José Gaston. Processos de reformulação: a paráfrase. In: PRETI, Dino (org.) Análise de textos orais. 6. ed. São Paulo: Humanitas, 2003. p. 117-146. (Projetos Paralelos – Nurc/SP, 1) MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (Org.). Para a história do português brasileiro. São Paulo: Humanitas; FAPESP, 2001. 2 v., v. 2. MORAES, Lygia Corrêa Dias de. A sintaxe na língua falada. In: PRETI, Dino (org.) Análise de textos orais. 6. ed. São Paulo: Humanitas, 2003. p. 191-213. (Projetos Paralelos – Nurc/SP, 1) PRETI, Dino (Org.) Análise de textos orais. 6. ed. São Paulo: Humanitas, 2003. (Projetos Paralelos – Nurc/SP, 1) SAID ALI, Manoel. Dificuldades da língua portuguêsa: estudos e observações. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1957. (Biblioteca Brasileira de Filologia, 1) TRASK, Robert Lawrence. A dictionary of grammatical terms in linguistics. London: Routledge, 1995.
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 300
RESENHA
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 301
PALAVRA E SILÊNCIO EM LUIZ VILELA Wania de Sousa Majadas 1
A CABEÇA Luiz Vilela Cosac & Naify 132 p.
Não sei onde li ou ouvi a frase com que inicio mais essa leitura da obra de Luiz Vilela. Sei que é uma frase recente (e não está relacionada a texto dele; talvez nem esteja relacionada a um texto literário, pode ser a um autor musical, ou a um artista plástico), porque até há bem pouco tempo eu não a conhecia. Mas agora preciso dela. Ei-la: ―Um toque de recolher impõe-se à recepção de‖ um texto de Luiz Vilela. O ―toque de recolher‖ guarda em sua história o simulacro do silêncio; da presença que se torna ausência; da voz que se cala; dos olhos que se fecham; ou da vigília que mantém o espírito alerta e as palavras recolhidas. Em minha primeira leitura de cunho acadêmico da obra de Luiz Vilela, em 1992, quando movimentei os seus dez livros publicados de 1967 a 1989 em diálogo compassivo e apaixonado, já adiantava, logo na apresentação:
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Wania de Sousa Majadas é doutora em literatura, tendo publicado os livros O diálogo da compaixão na obra de Luiz Vilela (2000; 2. ed., 2011) e Silêncio em prosa e verso: minério na fratura das palavras (2007). Esta resenha, escrita em 2002, assim que a coletânea A cabeça foi lançada, permanecia inédita até o momento.
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Essa afirmação, aprenda a calar na linguagem lembra um recurso que Luiz Vilela elegeu desde sua primeira obra e que tem sido apurado de obra para obra, de forma cada vez mais consciente: o silêncio. Existe, neste silêncio, uma riqueza expressiva e, consequentemente, emocional, em grande potencialidade. (O diálogo da compaixão na obra de Luiz Vilela. Uberlândia, MG: Rauer Livros, 2000, p. 23).
Há caminhos e descaminhos infindáveis que servem de espaço para o essencial diálogo entre palavra e silêncio. É possível que as trincheiras e as fraturas construídas pelas palavras, ou pelo silêncio (?), surjam de vários formatos, de vários espaços, de elementos sólidos ou gasosos, de risos ou lágrimas, de ação progressiva ou regressiva, de posição estática ou de movimentos vários. Palavras, por vezes desmistificadoras, muitos diálogos, profusão de risos e até de gargalhadas, humorismo bem armado, malícia e ironia são eficazes componentes de construção da arquitetura do livro A cabeça, arranjo de dez contos incontestavelmente bem escritos. Augusto Massi reconhece, no que concordo com ele, que A cabeça enfrenta uma situação de risco, acredito que não só pela redução do horizonte ficcional (destaque que ele faz) que propicia a cumplicidade autor-obra-leitor, mas pela artilharia vocabular de determinados contos. Tal artilharia pode ser constatada em ―Luxo‖, conto cujo diálogo pode ser uma verdadeira bomba para os ouvidos e cabeças que não suportam esse tipo de arma lingüística, sentindo-se melindrados e ofendidos por escolhas de tão mal gosto: Eu falei que não concordava — que eu não podia concordar. ―Por quê?‖, ele falou. ―Qual é o problema?‖ Eu falei que não havia nenhum problema. ―Eu não posso concordar‖, falei, ―por uma questão de humanidade.‖ ―Humanidade?‖, ele falou, ―diminuir cinquenta centímetros num banheiro de empregada é falta de humanidade?‖ ―Dependendo do caso, é‖ , eu falei. ―Nesse caso‖, ele falou: ―é?‖ ―Eu acho que sim‖, eu falei. ―Não dá pra empregada cagar?‖, ele falou. ―Bom‖, eu falei, ―se ela cagar de lado, dá.‖ ―Então?‖, ele falou. ―O principal é dar pra cagar; se é de lado ou de frente, isso não importa.‖ (VILELA, 2002, p. 20-21)
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Pela mostra, torna-se perceptível o risco que o autor terá de enfrentar via signo linguístico. Um grande número de leitores, inclusive leitores mais íntimos de textos literários, como acadêmicos universitários, sairá com observações semelhantes a estas: ―Isto por acaso é literatura?‖; ―Se estamos lutando para que os alunos tenham mais respeito pelo idioma nacional, como fica a nossa situação diante de livros que usam linguagem tão deselegante, tão desnecessária?‖ Outro aspecto de grande risco, presente em A cabeça, é o que diz respeito a situações envolvidas com a sexualidade, trazendo à tona menina de quinze anos que dissimula suas reais intenções junto ao tio recém-operado, também com segundas intenções quanto à sobrinha, em leito de hospital, desenvolvendo os dois um diálogo malicioso e ambíguo: — E o corte, foi grande? — O corte? Uns... Alguns centímetros. Você quer ver? Você está pensando em ser médica... — É, eu estou pensando... Ela se levantou e se aproximou da cama. Ele, de peito nu, afastou o lençol; depois empurrou um pouco a cueca e... — Ôp! — cobriu rápido; — o passarinho querendo fugir... Ela riu. [...] — Fui mostrar uma coisa — ele disse, — e você acabou vendo outra... — Eu? — ela disse. — Eu não vi nada. — Não?... — Você cobriu! — Ah... — Por que você cobriu? (Vilela, 2002, p. 26-27).
Tio e sobrinha continuam conversando, um tipo de conversa e de fatos que ninguém quer que aconteça em seu meio familiar, mas que pode ser registrado em qualquer tipo de família, da mais simples e humilde à mais tradicional e bem posicionada socialmente. A recepção de leituras que trazem certos vocábulos ou expressões, como ―porra‖, ―puta merda‖, ―estamos fodidos‖, ― Claro que estamos: fodidíssimos!‖, ― Então fodeu tudo mesmo‖, não costuma ser uma recepção agradável, em muitos casos, até mesmo pela falta de convivência de determinados leitores com esse nível de linguagem,
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porque, por mais que seja explorado em programas televisivos, ainda há muita gente que não considera válidas tais saídas para as letras vernáculas, pois acreditam que tais procedimentos empobrecem o texto, sequer o considerando literário. Às vezes, a linguagem do texto chega a criar um clima lírico, delicado, sem violência ao leitor mais melindrado com certas palavras e expressões, mas as emoções que nele são desenvolvidas têm crueldade ímpar, como é o caso do conto intitulado ―Rua da amargura‖: Já punha a noite suas sombras nas paredes do pequeno quarto quando ele, depois de se levantar e mais uma vez contemplar detidamente o pai na cama — o pai imóvel, em silêncio e de olhos fechados —, foi caminhando para a sala, seguido do irmão. (Vilela, 2002, p. 111).
Assim tem início esta curta e primorosa narrativa: suave e lírica. Mas com o desenrolar da história, narrada quase que exclusivamente por meio do recurso do diálogo entre três irmãos (dois deles em grande aflição, pela falta de dinheiro para salvar a fonte de sobrevivência de suas famílias, e a irmã, que cuida do pai doente), desencadeia-se uma cruel e inusitada solução: vender os dentes de ouro que o pai, agora muito doente, sempre teve orgulho em trazê-los abundantes e cheios de brilho: — É como se o Pai tivesse feito uma poupança, uma poupança pra nós; uma poupança na própria boca. — E uma senhora poupança; porque o ouro do Pai não é qualquer porcaria: é ouro de Serra Pelada. — Serra Pelada; pois é. — Bom — ele disse, acendendo o cigarro e encarando a irmã: - então, Maria? O que você diz? — O que eu digo? O que eu digo é que vocês me dão nojo. (Vilela, 2002, p. 118).
Aí estão poucas, mas instigantes mostras de linguagem e situações criadas por Luiz Vilela neste seu livro ainda quente, de fornada recente e já contando uma re- edição. Mas voltemos ao diálogo entre palavra e silêncio a que me referi anteriormente. A trama que envolve esse diálogo pode servir-se de recursos múltiplos e inesperados, e não apenas em Luiz Vilela, porque linguagem e silêncio são inseparáveis e mantêm entre si um grande e mágico poder. Berta Waldman, em sua leitura sobre a obra
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de Dalton Trevisan, Do vampiro ao cafajeste, postula que das entranhas do discurso surge o silêncio como um outro em direção ao qual o primeiro caminha. Como é possível a presença de silêncio marcante onde há tanto diálogo, tanta conversa, risos e situações até hilariantes? O humor, a ironia, as vozes hilariantes de deboche, de piadas, de humor negro têm função de carrasco. Teríamos, então, o vínculo entre a linguagem dos contos de A cabeça e as personagens que neles estão pulsando com as suas ―vidinhas‖, uma relação carrasco-vítima. Esse ―comportamento‖ da criação vileliana já se desenvolve de forma magistral no romance Graça (1989); escorre nas veias das novelas, O choro no travesseiro (1979) e Te amo sobre todas as coisas (1994); nos romances, Os novos (1971), O inferno é aqui mesmo (1979) e Entre amigos (1983); em vários contos que compõem os livros Tremor de terra (1967), No bar (1968), Tarde da noite (1970), O fim de tudo (1973) e Lindas pernas (1979). Essa relação carrasco-vítima na obra de Luiz Vilela constrói clima dialético de ponto e contraponto entre cidadezinhas de telhados antigos e cidades mais urbanizadas, embora isso não esteja nas linhas, sequer nas entrelinhas, mas justamente no silêncio, um silêncio original, possivelmente anterior à palavra. Ver o mundo com olhos citadinos está, em Luiz Vilela, na versatilidade dos diálogos, no ritmo nervoso, na eficiência e no inacabado, nas impressões súbitas, agudas e efêmeras da vida urbana, na transformação da imagem de cinema ou fotografia em processo de existência e suas complicações, na duração em momento, na metáfora em metonímia, processo redutivo, um dos responsáveis pelo estilo que prima pela concisão. O discurso metonímico, no texto de Vilela, é desenvolvido principalmente na construção dos diálogos, justamente nos diálogos, construção trabalhosa, por que não dizer difícil, que leva muitos autores a resultados pouco convincentes, ou até desastrosos. Já Luiz Vilela é mestre do diálogo. Diálogo que vem à superfície de forma espontânea, natural, dinâmica, com entremeadas fraturas de silêncio, similar ao que acontece nos diálogos de nossa comunicação diária: ―Quer dizer então que isso aí é certo?...‖, o gordo provocou.
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 306 O barbicha empinou a barbicha — mas não respondeu. ―Se fosse assim‖, disse o de óculos, ―se deus fizesse tudo certo, ele não teria criado o homem.‖ ―O homem é a maior criação de Deus‖, disse o barbicha. (Vilela, 2002, p. 127).
Nesse conto, ―A cabeça‖, a estrutura metonímica é evidente já a partir do título, pois a ―cabeça‖ não é apenas uma cabeça, ela é a parte de um todo, de um universo, de vidas inteiras e fragmentadas, ela pode ser o ―eu‖ e o ―outro‖, o ser e o não-ser, o mundo da aparência e da essência. O que fazer com essa ―cabeça‖?, dar-lhe um belo chute e marcar um golaço? Ela está ali no chão, cercada de curiosos, mas sozinha, sem o corpo, solta, exposta e incômoda. As variadas vozes que emitem opiniões desencontradas, maldosas, cruéis e macabras são componentes de uma linguagem — a linguagem do carrasco que parece não ter a mínima inibição perante sua vítima, a cabeça. Essa é a coluna vertebral da anatomia de um texto criado por Luiz Vilela; e essa relação carrasco-vítima é a principal responsável por uma leitura que costuma ser feita sobre sua obra: que se trata de uma literatura cruel; que o olhar do criador voltado para suas criaturas é indisfarçavelmente impiedoso. Na minha leitura eu não vejo assim, conforme discorro em O diálogo da compaixão na obra de Luiz Vilela, onde recorri à seguinte epígrafe, extraída da novela O choro no travesseiro, onde a personagem Nicolau afirma:
Não sei, não sei definir compaixão; mas eu sei o que ela é: quando a gente chega a sentir compaixão até por uma barata, até por uma folha de árvore, até mesmo por um botão de camisa. (Vilela, O choro no travesseiro, 8. ed., São Paulo: Atual, 1994).
Esta compaixão que exploro nos textos vilelianos tem em sua base a dor pela infelicidade do outro e o movimento brusco de revolta diante da permanência dessa dor. Tal revolta pode ser a principal responsável pela relação linguagem-carrasco-vítima. É possível que seja esse o motivo da observação de Fábio Lucas, em ―Perspectivas estilísticas de Wania Majadas‖, prefácio a O diálogo da Compaixão na obra de Luiz Vilela:
CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 307 Alguns aspectos da narrativa de Luiz Vilela ficam evidentes: o pronunciado gosto pelo diálogo, uma das chaves-mestras do seu extraordinário talento de comunicação; a atração do ―tempo perdido‖, de tal modo que a todo momento sua narrativa se direciona para a infância ou para episódios retidos pela sensibilidade do narrador; a seguir, a permanente sensação que suas obras transmitem da incompletude da situação amorosa; por último, a exploração do apelo passional que nele produz a injustiça humana. Daí a ―compaixão‖, que Wania Majadas localiza nas falas dos narradores, em seu choque com as situações enfrentadas. (Lucas, in Majadas, 2000, p. 10)
Para concluir, amplio a afirmação de Fábio Lucas, pois entendo que a compaixão na obra de Luiz Vilela está mais no silêncio do que nas palavras, o que pode trazer certo conflito de recepção, solucionado se o leitor estiver disposto a procurar caminhos para escutar esse silêncio.
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