POÉTICAS NEGRAS, FORMAÇÃO E PRÁTICA DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ARTE E ESTÉTICA (EMPRE)TECIDAS

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO GREICE DUARTE DE BRITO SILVA

POÉTICAS NEGRAS, FORMAÇÃO E PRÁTICA DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ARTE E ESTÉTICA (EMPRE)TECIDAS

Niterói, RJ 2022

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GREICE DUARTE DE BRITO SILVA

POÉTICAS NEGRAS, FORMAÇÃO E PRÁTICA DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ARTE E ESTÉTICA (EMPRE)TECIDAS Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação Educação, da Universidade Federal Fluminense, para obtenção do título de Doutora em Educação. Linha de Pesquisa: Linguagem, Cultura e Processos Formativos. Grupo de pesquisa: FIAR- Círculo de estudo e pesquisa Formação de professores, Infância e Arte. Orientadora: Prof.a Dr.a Luciana Esmeralda Ostetto

Niterói, RJ 2022

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Projeto gráfico e diagramação por

Nathalia Serra 6


GREICE DUARTE DE BRITO SILVA

POÉTICAS NEGRAS, FORMAÇÃO E PRÁTICA DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ARTE E ESTÉTICA (EMPRE)TECIDAS BANCA EXAMINADORA Prof.a Dr.a Luciana Esmeralda Ostetto (orientadora) - UFF - Universidade Federal Fluminense Prof.a Dr.a Rôssi Alves Gonçalves - UFF - Universidade Federal Fluminense Prof.a Dr.a Marta Maia - UFF - Universidade Federal Fluminense Prof.a Dr.a Lucimar Rosa Dias - UFPR- Universidade Federal do Paraná Prof.a Dr.a Nelma Cristina S. B. de Mattos - IF Baiano - Instituto Federal Baiano

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INSPiRaÇãO 8


Figura 1 - Fotografia de acervo pessoal. Avós. Brito Silva, Greice (2017).

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AGRaDeCiMeNTOS À rainha dos rios, Senhora das águas que correm caladas Água que faz crescer as crianças Oxum das águas de todo som.

À intelectualidade negra da banca de qualificação. Às professoras doutoras Flávia Rios, Rôssi Gonçalves, Lucimar Dias e Nelma Barbosa.

À orientação poética e política, ética e estética da Professora Luciana Esmeralda Ostetto.

À luta pela Educação Infantil em Niterói e a valiosa contribuição da Professora Marta Maia na banca de defesa.

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À ancestralidade por Maria Augusta de Brito, Nely Duarte e Nelia Paula Duarte de Brito. À irmandade de Queli e Thaís Duarte de Brito. À saudade de Ive e Bem Duarte de Brito Silva. Ao amor, Ricardo Augusto de Sousa Silva. À amizade de Andrea Barros e Vanessa Coutinho.

Às narrativas de formação estética das professoras da Educação Infantil: Thayssa Menezes, Joana Oliveira, Grace Anne Gomes, Fabina Rego, Thamyres Aparecida, Cristina Santos, Camila Cordeiro, Carla Rodrigues, Eliete Marcelino e Maria Letícia Felintro.

À fiação entre Formação de Professores, Infância e Arte tecida no FIAR, círculo de pesquisa. Em especial à Xênia da Motta e Adriana Soares. Ao apoio de todos os colegas do COLUNI-UFF. Às contribuições teóricas e afetivas da comunidade acadêmica do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.

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ReSuMO BRITO-SILVA, Greice Duarte de. Poéticas Negras, Formação e Prática Docente na Educação Infantil: Arte e Estética (empre)tecidas. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. 281f. Niterói, RJ, 2022.

Histórias, bordadas pelas vivências da negritude, re-existem nesta tese, pelos sentidos da memória. Irrompem a partir da poética de mulheres-artistas negras, caracterizada pela beleza descolonizada, vívida e fértil, que vem de Oxum, orixá-símbolo do poder feminino. No coração da pesquisa, encontram-se as artes visuais de Rosana Paulino, as escrevivências de Conceição Evaristo, as cirandas de Lia de Itamaracá, dentre outras que incorporam culturas negras. Neste compasso, analisa a contribuição das poéticas de artistas negras para a formação docente, sob a perspectiva da relação entre estética, arte e vida, que pela opção decolonial endossa a construção de subjetividades desmascaradas (GOMEZ e MIGNOLO, 2012; ACHINTE, 2013; 2017). Processos de formação docente, compreendidos a partir das histórias de vida e de narrativas autobiográficas (JOSSO, 2010, entre outros), foram relacionados aos saberes ancestrais: como sankofa, símbolo traduzido pela volta ao passado em busca do que se esqueceu, e o poder da oralidade, na tradição viva (BÂ, 1982). Tecida pelas veredas de uma metodologia errante (OSTETTO, 2019) e sob o cenário pandêmico, a pesquisa utilizou ferramentas digitais para a produção de dados: a) formulário online, pelo qual uma consulta a professores e professoras da Educação Infantil da rede pública do município de Niterói/RJ permitiu delinear um mapa dos hábitos culturais, com o conhecimento de artistas, espaços e/ou manifestações culturais relacionadas às tradições africanas, afro-brasileiras e/ou cenários socioculturais do negro no Brasil; b) cinco encontros-ateliês narrativos, via comunicação por vídeo, com seis professoras autodeclaradas negras, que dentre as respondentes, aceitaram o convite à interlocução. Como um aquilombamento, a experiência de estar juntas, partilhando histórias e memórias, com suas dores e belezas, transversa ao encontro com a/na Arte e Cultura Negras, expandiu-se em um campo formativo. O ato de compartilhar poéticas negras, abriu um campo dialógico fértil com as professoras: o espaço para relatos de experiências de vida, provocados pelos saberes-fazeres de artistas negras, mostrou-se importante para um fazer/fazer-se libertário. As narrativas evidenciaram tempos, territórios, figuras de ligação, vivências culturais, objetos biográficos das docentes e princípios estruturantes de discursos pedagógicos. Revelaram, também, como uma escuta sensível, que considera princípios éticos, políticos e estéticos, pode conduzir a novas situações pedagógicas, ampliando o trabalho com ERER na Educação Infantil. Incluir manifestações artístico-culturais, dar a conhecer artistas e espaços culturais que inserem o indivíduo negrodescendente como profissional das Artes Visuais, Teatro, Dança e Música, são ações que podem desencadear outros gestos, imagens e linguagens, fortalecendo perspectivas participativas e antirracistas. Nessa direção, os encontros-ateliês narrativos, foram validados como proposta metodológica de formação docente: ampliam a experiência com as linguagens artísticas e, quando mediados pelo contato com poéticas de artistas negros e negras, intensificam o conhecimento acerca da arte e cultura negras, permitem apurar os significados de pertencimento étnico-racial e alargar repertórios estéticos docentes. Empre(tecer) a formação, com arte e estética vivas, ajuda a perceber os sentidos profundos de tornar-se mulher-professora negra, que vive e pensa a docência de crianças pequenas mesmo em condições críticas, com dignidade e confiança. Palavras-chave: ERER na Educação Infantil; Poéticas e Estéticas Decoloniais; Encontros-Ateliês Narrativos.

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ReSuMeN Relatos, bordados por las experiencias de la negrura, reviven en esta tesis, a través de los sentidos de la memoria. Rompemos con la poética de las mujeres-artistas negras, caracterizadas por una belleza descolonizada, viva y fértil, que vemos como Oxum, orixá-símbolo del poder femenino. En mi investigación encontramos las artes visuales de Rosana Paulino, los escritos de Conceição Evaristo, las cirandas de Lia de Itamaracá, entre otras que incorporan las culturas negras. En esta medida, analiza el aporte de las poéticas de los artistas negros a la formación docente, desde la perspectiva de la relación entre estética, arte y vida, que a través de la opción decolonial avala la construcción de subjetividades desenmascaradas (GOMEZ y MIGNOLO, 2012; ACHINTE , 2013 ; 2017). Los procesos de formación docente, entendidos a partir de relatos de vida y relatos autobiográficos (JOSSO, 2010, entre otros), se relacionaron con saberes ancestrales: como el sankofa, símbolo traducido del pasado en busca de lo que falta, y el poder de la oralidad, en la tradición viva (B, 1982). Instruida por los caminos de una metodología errante (OSTETTO, 2019) y bajo el escenario de la pandemia, la investigación utilizó herramientas digitales para la producción de datos: la red del municipio de Niterói/RJ permitió trazar un mapa de dos hábitos culturales, como el conocimiento de artistas, espacios y/o manifestaciones culturales relacionadas con las tradiciones africanas, afrobrasileñas y/o escenarios socioculturales de los negros en Brasil; b) cinco talleres-encuentros narrativos, vía videocomunicación, con seis docentes negros autodeclarados, quienes, entre los entrevistados, aceptaron o invitaron al diálogo. Como conjunto, la experiencia de estar juntos, compartiendo historias y memorias, con amantes y bellezas, transversales o encontradas con/en el Arte y la Cultura Negra, se expandió en un campo de formación. El acto de compartir poéticas negras abrió un campo fértil de diálogo con los docentes: o espacio para relatos de experiencias de vida, provocados por el saber hacer de los artistas negros, se mostró importante para un hacer/hacer libertario. Las narrativas mostraron tiempos, territorios, figuras de ligacion, experiencias culturales, objetos biográficos de los docentes y principios estructurantes de los discursos pedagógicos. También revelaron cómo la escucha sensible, que considera principios éticos, políticos y estéticos, puede conducir a nuevas situaciones pedagógicas, ampliando el trabajo con ERER en Educación Infantil. Incluir manifestaciones artístico-culturales, dar a conocer artistas y espacios culturales que incluyan al afrodescendiente como profesional de las Artes Visuales, el Teatro, la Danza y la Música, son acciones que pueden desencadenar otros gestos, imágenes y lenguajes, fortaleciendo espacios participativos y antirracistas. perspectivas En esa dirección, los encuentros-taller narrativos fueron validados como propuesta metodológica para la formación docente: amplían la experiencia con los lenguajes artísticos y, al ser mediados por el contacto con las poéticas de los artistas negros y negros, intensifican el conocimiento sobre el arte negro. y la cultura, permiten indagar los significados de pertenencia étnico-racial y ampliar los repertorios estéticos didácticos. La formación empre (tejiendo), con arte y estética viva, ayuda a comprender los significados profundos de convertirse en una mujer negra-maestra, que experimenta y piensa en enseñar a niños pequeños incluso en condiciones críticas, con dignidad y confianza. Palabras llave: Educación Infantil; Poéticas e Estéticas Decoloniais; Reuniones de Taller De Narrativa.

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SuMáRiO

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I. NO FIAR DAS LEMBRANÇAS 1.1 Imagens da arte falam de mim 1.2 Só a palavra não basta: as artes como formas de dizer

TEXTO,TECIDO,TEXTURA

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34 53

86

III. COMO UM MOVIMENTO SANKOFA 3.1 Educação, Formação Docente e Abordagem (Auto) Biográfica 3.2 Narrativas De Si: Alma, Olho, Mão Vibrando Forças Vitais

II. A POÉTICA DE NEGRAS E NEGROS 2.1 Para aprender a ser o que se é: construir subjetividades desmascaradas 63 2.2 Experiências sensíveis da/na Arte e Cultura Negras 72 2.3 Do Rio Osun, na Nigéria: Beleza, Fertilidade e Poética Negra 81

90 97


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V. ARTESANIAS DA PESQUISA-FORMAÇÃO 5.1 A metodologia errante transformada em fio 5.2 Fio a fio, entrelaçando a pesquisa 5.3 A fortuna da cor nos hábitos culturais de professoras da Educação Infantil da Cidade de Niterói/RJ 5.4 Processos criativos (con)fiados em encontros-ateliês narrativos

100

IV. TRAMAS DA QUESTÃO RACIAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL 4.1 Na cidade de Araribóia, a Educação Infantil na Rede Pública 102 4.2 Relações Étnico-raciais na Educação Infantil 109 4.3 Outras imagens, gestos e diferentes linguagens para educar crianças 118

176

137 139

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COM A POÉTICA DE MULHERES-ARTISTAS NEGRAS: VER E PERCEBER, VIVER E PENSAR

143 156

VI. LEITURAS E INTERPRETAÇÕES A PARTIR DE FORMAS VISUAIS 6.1 Em estado de invenção: histórias em forma de artes 180 6.2 A escuta dá o tom ao bordado narrativo: tempos, territórios, figuras de ligação, vivências culturais e objetos biográficos 240

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ÍNDICE

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IMaGeNs Figura 1 - Fotografia de acervo pessoal. Avós. Brito Silva, Greice (2017). Figura 2 - Fotografia de acervo pessoal. Postais do processo. Brito Silva, Greice (2020). Figura 3 - Sonia Gomes. Magia (2014). Costura, amarrações e tecidos diversos. 240 × 215 cm. https://www.premiopipa.com/pag/sonia-gomes/ Figura 4 - Rosana Paulino. Parede da Memória (1994-2015). Aquarela, manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Figura 5 - Robinho Santana. Ibeji (2020). acrílica sobre tela, 110x130 cm. Acervo do Museu afro-Brasil. Figura 6 - Heitor dos Prazeres (1898-1966). Morro da Mangueira (1960). óleo sobre tela - 100.00 cm x 120.00 cm. Acervo da Coleção Roberto Marinho. Figura 7 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977). “Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros (1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo Instituto Moreira Salles. Figura 8 - Fotografia de acervo pessoal. Negros Postais. Brito Silva, Greice (2020). Figura 9 - Grada kilomba. Table of Goods (2017). Making of da instalação. https://pinacoteca.org.br/programacao/grada-kilomba-desobedienciaspoeticas/ Figura 10 - Grada kilomba. Table of Goods (2017). Terra vegetal, cacau em pó, chocolate, café moído, e em grão, açúcar e velas de cera. http:// pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/AF06_gradakilomba_ miolo_baixa.pdf Figura 11 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Instalação: impressão digital sobre tecido, desenho, linóleo, costura, bordado. Tecidos: 180 x 68

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cm cada. Coleção particular. Figura 12 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Detalhes da obra. Coleção particular. Figura 13 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Detalhes da obra. Coleção particular. Figura 14 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Detalhes da obra. Coleção particular. Figura 15 - Estátua de Araribóia, na praça do mesmo nome, em frente à estação das Barcas, em Niterói. Imagem retirada da internet. Figura 16 - Painel de abertura da exposição “Histórias da infância" (2016). https://masp.org.br/exposicoes/historias-da-infancia Figura 17 - Pedro Peres. Fascinação (1909). Óleo sobre madeira, 35,7 X 31,2 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Figura 18 - Pierre-Auguste Renoir. As Meninas Cahen d'Anvers - Rosa e Azul (1881). óleo sobre tela, 119x74cm. Acervo do Museu de Arte de São Paulo. Figura 19 - Bárbara Wagner, Sem título da série Brasília Teimosa (2005). Jato de tinta, Coleção Pirelli MASP. Figura 20 - Nigéria, tribo de Yoruba, região de Oyo. Exu (sem data). Madeira e outros materiais, 56 x 16,5 x 29,5 cm. Doação Cecil Chow Robilotta e Manoel Roberto Robilotta, em memória de Ruth Arouca e Domingos Robilotta (2012). Figura 21 - Foto-ensaio. Partilhas. Composto por fotografias compartilhadas pelas professoras durante a realização do projeto-piloto. Brito Silva, Greice (2020). Figura 22 - Renata Felinto. Nos braços da mãe Nanã o amanhã está seguro (2020). Tamanho: 29,7 x 42 cm. https://projetoafro.com/ Figura 23 - Miniatura de diagramas sobre os hábitos culturais de professoras de Educação Infantil da cidade de Niterói/RJ. Brito Silva, Greice (2021). Figura 24 - Diagrama 1: leituras. Brito Silva, Greice (2021) Figura 25 - Diagrama 2: peças teatrais. Brito Silva, Greice (2021) Figura 26 - Diagrama 3: sons e músicas. Brito Silva, Greice (2021) Figura 27 - Diagrama 4: danças. Brito Silva, Greice (2021)


Figura 28 - Diagrama 5: filmes e séries. Brito Silva, Greice (2021) Figura 29 - Diagrama 6: exposições artísticas. Brito Silva, Greice (2021) Figura 30 - Síntese-visual Lia de Itamaracá. Colagem digital composta por imagens e narrativas sobre a artista. Brito Silva, Greice (2021). Figura 31 - Síntese-visual Rosana Paulino. Colagem digital composta por imagens e narrativas sobre a artista. Brito Silva, Greice (2021). Figura 32 - Síntese-visual Conceição Evaristo. Colagem digital composta por imagens e narrativas sobre a artista. Brito Silva, Greice (2021). Figura 33 - Bailarina Ingrid Silva. http://www.ingridsilvaballet.com/home-1 Figura 34 - Síntese-visual: Cristina, além da palavra. Composta com elementos gráficos e fotografia digital de trecho da poesia escrita por Cristina (2021). Brito Silva, Greice (2022) Figura 35 - Cristina: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Cristina Nascimento (2021). Figura 36 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977). “Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros (1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo Instituto Moreira Salles. Figura 37 - Síntese-visual: Letícia, além da palavra. Composta com elementos gráficos e quatro fotografias enviadas por Letícia: da criança, das cartas de sua avó, do bloco de anotações dos encontros e de seus registros. Brito Silva, Greice (2022) Figura 38 - Letícia: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Maria Letícia Felintro (2021). Figura 39 - Rosana Paulino. Parede da Memória (1994-2015). Aquarela, manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Figura 40 - Síntese-visual: Caroline, além da palavra. Composta com elementos gráficos e quatro fotografias enviadas por Caroline: do seu

patuá, do seu cartão “Pretinhosidades”, da sua tia Zete e do bilhete escrito para ela. Brito Silva, Greice (2022). Figura 41 - Caroline: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Caroline Nascimento (2021). Figura 42 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977). “Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros (1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo Instituto Moreira Salles. Figura 43 - Síntese-visual: Eliete, além da palavra. Composta com elementos gráficos e quatro fotografias enviadas por Eliete: da sua mãe Lígia, da sua avó Sebastiana, do bilhete escrito para ela e de uma boneca confeccionada com materiais da caixa-convite. Brito Silva, Greice (2022). Figura 44 - Eliete: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Eliete Marcelino (2021). Figura 45 - Rosana Paulino. Parede da Memória, 1994-2015. Aquarela, manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Figura 46 - Síntese-visual: Carla, além da palavra. Composta com elementos gráficos e cinco fotografias enviadas por Carla: de seus registros durante os encontros, duas de sua avó com ela no colo, de seu patuá e do livro “Crianças Negras”. Brito Silva, Greice (2022). Figura 47 - Carla: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Carla Rodrigues (2021). Figura 48 - Robinho Santana. Ibeji, 2020. acrílica sobre tela, 2020, 110x130 cm. Acervo do Museu Afro-Brasil. Figura 49 - Síntese-visual: Camila, além da palavra. Composição com fotografia enviada pela professora, de seu patuá sob sua mão. Brito Silva, Greice (2022).

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ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil CEB – Câmara de Educação Básica CNE – Conselho Nacional de Educação DCNEI - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil DCNERER - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana EDI – Espaço de Desenvolvimento Infantil ERER - Educação das Relações Étnico-Raciais FME - Fundação Municipal de Educação de Niterói-RJ IESK – Instituto de Educação Sarah Kubitschek IMS - Instituto Moreira Salles IPN - Instituto Pretos Novos MAC - Museu de Arte Contemporânea Niterói-RJ MAR – Museu de Arte do Rio MASP - Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand MnBA – Museu Nacional de Belas Artes MUHCAB - Museu da História e Cultura Afro-Brasileira NEST/FME - Núcleo de Estágios da Fundação Municipal de Educação de Niterói-RJ PIBID - Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência SEEDUC-RJ – Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro SME- Rio – Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro UFPR - Universidade Federal do Paraná UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UMEI - Unidade Municipal de Educação Infantil UNIARP - Universidade Alto Vale do Rio do Peixe UNIR - Universidade Federal de Rondônia

SIGLAS E ABREVIATURAS 18


ANEXOS Anexo 1 - Quadro de resultados da base de dades scielo (2017-2021) - “Crianças”; “Educação Infantil”; “Relações Étnico-Raciais”, a partir do índice “Resumos”. Anexo 2 - Termo de compromisso da pesquisa - NEST/FME Níterói-RJ Anexo 3 - Termo de consentimento livre e esclarecido Anexo 4 - Índice de centros culturais destacados na consulta aos professores da cidade de Niterói-RJ atuantes na educação infantil

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TEXTO, TECIDO, TEXTURA 21


Abro a caixa-convite. Admiro as materialidades que estão dentro dela. São miudezas que chamam à artesania. Entre botões, agulhas, retalhos de tecidos, linhas coloridas, alinhavo as primeiras palavras para apresentar a pesquisa que foi construída pelas bases criativas e sensíveis de uma professora das infâncias que se faz pesquisadora, sonhando e tecendo seu próprio texto-tecido. Uma professora-pesquisadora que admite a dúvida, desvia-se, comete erros e acertos ao fazer pesquisa em Educação. É também uma mulher negra que viveu os dramas inéditos de uma crise sanitária mundial provocada pela pandemia de Covid-19, mergulhada nas telas, acompanhando a repercussão midiática a favor dos direitos da população negra. Tudo isso é demasiado relevante, uma vez que se passa durante a produção desta tese. Texturas mais suaves, como o feltro colorido e o anis estrelado, com sua forma e seu aroma delicados, também estão na caixa-convite que eu abro. Da miscelânea que visualizo e sinto, saltam aos olhos as estampas africanas da tricoline, como a apontar que há outras dimensões, bordadas pelas vivências da negritude, a se considerar. Outras histórias, re-existentes pelos sentidos da memória. Simbolicamente, esses elementos delineiam a tese, intitulada “Poéticas Negras, Formação e Prática Docente na Educação Infantil: Arte e Estética (empre)tecidas”, fruto da pesquisa de doutorado que pretendeu analisar a contribuição da poética de artistas negras para a formação docente, sob a perspectiva da relação entre estética, arte e vida, propondo encontros-ateliês

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narrativos como dispositivo de produção de dados. Configura-

através de narrativas autobiográficas; 3) Promover encontros

da como pesquisa-formação, já marca um diferencial: a pro-

com a poética de artistas negras e negros e analisar sua vali-

dução não é apenas de dados, pois ao compartilhar poéticas

dade como forma de incorporar referências estéticas e ampliar

de artistas negras com um grupo de professoras, abre-se um

repertórios artístico-culturais docentes; 4) Analisar a utilização

campo dialógico para suscitar narrativas autobiográficas e, ao

de múltiplas linguagens e a experimentação de diferentes ma-

mesmo tempo, um campo formativo, seja na reflexão sobre

terialidades como canais para a rememoração e para falar de

os repertórios artístico-culturais constituídos ao longo da vida,

si; 5) Discutir a realização de encontros-ateliês narrativos como

seja na ampliação deles.

metodologia de formação continuada e suas implicações a fa-

Algumas questões iniciais são como alfinetes na marca-

vor da ERER na educação infantil.

ção do desenho deste estudo: A formação docente pode con-

Botões coloridos, flores artesanais, folhas e flores secas,

tribuir para a educação das relações étnico-raciais (ERER) na

retalhos, papéis, cartões, fios, linhas e fitas, materiais e objetos

educação infantil, considerando a dimensão estética? O que

diversos que formam uma espécie de mini-ateliê portátil, aju-

dizem docentes da Educação Infantil sobre hábitos culturais, a

dam a reunir sentido e inspiram o fazer à mão nesta pesquisa.

presença de artistas negros e negras e o acesso espaços e/ou

No fiar das lembranças, o primeiro capítulo, teço me-

manifestações culturais que representem as tradições africa-

mórias, provocadas por imagens e encontros com as artes de

nas, afro-brasileiras e/ou os cenários socioculturais do negro?

maneira ampla e com as culturas negras. Detive-me no en-

É possível, aos professores e às professoras, incorporar refe-

velope com os cartões postais, que estavam dentro da caixa

rências estéticas e ampliar repertórios artístico-culturais consi-

mini-ateliê, para escrever a seção Imagens da Arte falam de

derando a interlocução com poéticas negras?

mim, considerando a seleção de seis imagens da arte que, no

Conduzida pelos fios de curiosidade e provocações in-

exercício de imaginação e articulação de sentidos, compõem

vestigativas, a partir de tais perguntas, tracei alguns objetivos:

meu retrato. Essas reproduções carregam elementos das artes

1) Mapear informações sobre hábitos culturais e presença de

visuais que, de maneira poético-figurativa, acionam fios con-

artistas, espaços e/ou manifestações culturais que represen-

dutores às histórias da minha vida e que, por conexões sub-

tem as tradições africanas, afro-brasileiras e/ou os cenários

jetivas, narram minhas experiências sensíveis como mulher,

socioculturais do negro; 2) Identificar experiências da forma-

educadora, pesquisadora e negra, que toma para si a tarefa

ção estética de professoras que atuam na educação infantil,

de se pensar para então pensar com outras mulheres suas exis-

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tências e trajetórias de vida e formação. Em outra seção, Só a

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artístico-cultural de artistas negras contemporâneas.

Palavra Não Basta: As Artes Como Formas De Dizer, continuo a

Na companhia de um chá, sem perder de vista os detalhes,

abordar sobre o encontro com as artes no entrelaçamento com

sigo atenta aos processos formativos que envolvem a pessoa

as culturas negrodescentes, validando a conexão com outras

na pessoa do professor, traço, no terceiro capítulo, como seu

linguagens, na busca de uma narrativa sobre o povo negro

título indica, um Como um movimento Sankofa, onde en-

que implique uma desobediência poética.

carnam-se os saberes ancestrais que ensinam a possibilidade

A poética de negras e negros, o segundo capítulo,

de voltar atrás de si mesmo e de nós. Apresento inicialmente

afirma que a arte também é parte do modo africano de viver.

as concepções que envolvem a Educação, Formação Docente

Por incorporar-se aos modos de ser e estar de gentes cariocas,

e Abordagem (auto)biográfica, abordando sobre a educação

baianas, e de outras regiões do país, influencia grandemente

como prática indispensável aos seres humanos, onde os sujeitos

a formação artística e cultural no território brasileiro. Pelo reco-

dialógicos aprendem e crescem na diferença. Detenho o olhar

nhecimento e valorização de outras existências, principalmente

para os processos formativos, considerando uma Abordagem

uma afirmação das gentes negras, a sessão de abertura traz

Biográfica Da Formação, vislumbrando diálogos com os estu-

o tema Aprender A Ser O Que Se É: construir subjetividades

dos das histórias de vida em formação a partir das abordagens

desmascaradas. Coloca em perspectiva a relação entre estética

(auto)biográficas. Neste contexto, Narrativas De Si: Alma, Olho,

e vida, a autonomia da arte e a legitimidade das diferentes ati-

Mão Vibrando Forças Vitais valoriza o exercício de narrar nas

vidades artísticas desenvolvidas pelas diversas culturas, a partir

bases da tradição africana, no poder da oralidade e da pala-

da produção teórica que questiona a relação entre coloniali-

vra pela tradição viva. Considerando uma estratégia discursiva,

dade/modernidade; considerando Experiências Sensíveis Da/

onde cada fala/narrativa entendida como um fio, revela em sua

Na Arte e Cultura Negras, que, na segunda seção, dá destaque

trama uma atividade que é estética. É preciso um coração forte

para o caráter plural do termo cultura, que envolve elementos

e imaginativo para caminhar para si e desvelar suas próprias

que compõem a matriz africana, reverberando no compromis-

histórias. O chá aquece e favorece nesse sentido!

so da escola com as culturas dos povos originários. Do Rio

Separar por cor as linhas tipo meada. Elas lembram que

Osun Na Nigéria: Beleza, Fertilidade e Poética Negra abor-

a costura é atravessada pela coloração e suas bases. No caso

da a presença do orixá-símbolo do poder feminino da beleza,

das linhas, é simplesmente uma questão de cor. Na Educação,

fecundação e continuidade da vida, valorizando a produção

representa um complexo tecido entrelaçado pela diversidade


étnico-racial de um país multiétnico e pluricultural como o Bra-

-piloto realizado (que fora apresentado por ocasião do exame

sil. Assim, o quarto capítulo, Tramas da questão racial na

de qualificação e fundamentou a continuidade da pesquisa), a

Educação Infantil, é composto por três seções. Na cidade de

fim de experimentar os dispositivos escolhidos e analisar seus

Araribóia, a educação das crianças, oferece um quadro geral

limites e possibilidades, em Fio a fio, entrelaçando a pesqui-

da cidade em que foi realizada a pesquisa, Niterói-RJ, traz o

sa. A pesquisa realizou-se durante o contexto pandêmico, e

contexto da sua rede pública de ensino, a partir de um breve

utilizou ferramentas digitais para a produção de dados. Ini-

histórico e de atos normativos que a regulamentam. Seguida-

cialmente, um convênio, firmado com o município de Niterói-

mente, o tema das Relações étnico-raciais na Educação Infantil

-RJ, tornou possível a realização de consulta (via aplicativo de

considera desafios e possibilidades para a reestruturação das

gerenciamento de pesquisas do Google) aos professores da

relações étnico-raciais e sociais na educação infantil, garantin-

Educação Infantil sobre hábitos culturais e presença de artis-

do as conquistas dos movimentos sociais e de intelectuais ne-

tas, espaços e/ou manifestações culturais relacionadas às tra-

gras que destacam-se na implementação de ações afirmativas,

dições africanas, afro-brasileiras e/ou cenários socioculturais

na direção do conhecimento e valorização da História e Cultu-

do negro no Brasil. As informações compuseram um mapa co-

ra Africana e Afro-Brasileira. No que tange o fortalecimento do

letivo, ajudando a perceber quais referências negras resistem

trabalho com ERER, uma escuta sensível, que considera princí-

nos processos formativos e apresentam-se como referências às

pios éticos, políticos e estéticos no cotidiano e viabiliza a expe-

escolhas pedagógicas dos professores, como podemos acom-

riência com artes e suas linguagens, revela-se como estratégia

panhar em A fortuna da cor nos Hábitos Culturais De Professo-

acertada na Educação Infantil, de acordo com a seção Outras

ras Da Educação Infantil De Niterói. Pela oportunidade de fiar

imagens, gestos e diferentes linguagens para educar crianças.

histórias e alinhavar passado e presente, a última seção intitu-

Um fazer artesanal mobilizou os movimentos da pesquisa.

la-se Processos criativos (con)fiados em encontros-ateliês nar-

Nas artesanias da pesquisa-formação é um capítulo que

rativos. Detalha a continuidade da pesquisa, que contou com

assegura a sensibilidade e a criatividade como indispensáveis

seis professoras, autodeclaradas negras, dentre as responden-

neste “fazimento” de professora-pesquisadora. Dispositivos te-

tes do referido formulário que se dispuseram a participar como

órico-metodológicos da investigação ocupam o quinto capítu-

interlocutoras-narradoras-colaboradoras em cinco encontros,

lo, onde exponho A metodologia errante transformada em fio

realizados entre os meses de agosto e setembro de 2021, sus-

apresentando processos da pesquisa. Explico sobre o estudo-

tentados e gravados pelo serviço de comunicação por vídeo

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desenvolvido pelo Google. Com a proposição de encontrar-se

car as trajetórias de formação e suas implicações, identificar o

com a poética de três artistas negras: Lia de Itamaracá, Rosana

quê nutriu esteticamente cada uma, quando, onde, como, com

Paulino e Conceição Evaristo, da caixa-convite à provocação

quem alimentaram sua sensibilidade.

com diferentes linguagens para narrar-se, a pesquisa (con)fiou

Como quem alinhava pontos, cheios e vazios, dou visibi-

na ideia de ateliê como lugar que acolhe processos criativos e

lidade às marcas do sensível nas considerações finais Com A

incita a profusão de narrativas.

Poética De Mulheres-Artistas Negras: Ver E Perceber,

Leituras E Interpretações A Partir De Formas Visu-

Viver E Pensar repercute como essa interlocução abriu um

ais, sexto capítulo, abre-se ao diálogo com o campo da Arte,

campo dialógico fértil com as professoras: o espaço para rela-

valorizando a dimensão artística na pesquisa em Educação.

tos de experiências de vida, provocados pelo encontro com a

O contato com a arte traz inúmeras possibilidades e compre-

arte e os saberes-fazeres de artistas negras, mostrou-se impor-

ensões sobre nós mesmos. Seguindo seu traçado, Em estado

tante para um fazer/fazer-se libertário.

de invenção: histórias em formas de artes, aponta-se uma di-

No tecido, na tese, imagens e palavras são incorporadas.

versidade de elementos simbólicos e materiais suscitados nos

Ora independentes, ora compostas e ensaiadas com outras.

encontros com as três artistas negras referidas. No exercício

Apresentam uma ideia, um pensamento visual, representando

de voltar-se para si, foi fecunda a utilização de múltiplas lin-

a multiplicidade que caracteriza a diversidade. Não pretende

guagens e a experimentação de diferentes materialidades. A

ser uma ilustração do tema. Caminha no diálogo com a pes-

partir dos sentidos reunidos nos materiais biográficos, apre-

quisa científica que é também artística. Toda produção visu-

sento nesta seção: Energia de Cristina Santos, Vozes de Maria

al foi realizada especificamente para essa pesquisa a fim de

Letícia Felinto, Sementes de Caroline Nascimento, Encantos de

apurar os sentidos da pesquisadora que investiga a dimensão

Eliete Marcelino, Vôos de Camila Cordeiro, Heranças de Carla

estética, tarefa nada fácil que demanda olhar, escutar e sentir

Rodrigues. Na seção Análise interpretativa de material biográ-

no pensar e no fazer em relação.

fico em três tempos, tendo a escuta como princípio, apresento

As páginas finais apresentam as referências bibliográficas

o trabalho co-interpretativo sobre os processos de formação

utilizadas na formulação desta pesquisa. Apresento os anexos

anunciados nas narrativas, evidenciados entre tempos, territó-

com quadros elaborados a partir da pesquisa e um índice dos

rios, figuras de ligação, vivências culturais e objetos biográfi-

centros culturais em destaque no levantamento realizado junto

cos. Uma análise em três tempos permitiu entender e signifi-

às professoras de Educação Infantil da Cidade de Niterói/RJ.


Antes de fechar a caixa-convite, observo um código. Ele encaminha para a lista de músicas CIRANDAR, disponível no aplicativo spotify. Fácil de ser escaneado pela câmera do celular, mesmo sem ter o aplicativo instalado. Antes ou depois da leitura da tese, vale a pena conhecer as músicas que fizeram parte da pesquisa. Fica aqui o convite para acessar o código disponível ao lado, entrar na roda e deixar o corpo embalar-se pelo ritmo, conduzir-se pela voz de Lia de Itamaracá, Clementina de Jesus, Mariene de Castro, Juçara Marçal, dentre outros. Música, poesia e arte para apreciar, unir e curar. Para dançar ciranda é preciso mais gente! Anuncia uma das professoras, na pesquisa. Imaginemos então a educação como uma ciranda sem fim.

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NO FIAR DAS LEMBRANÇAS

I 29


Desfiar, esgarçar, afastar. Se você reparar o tecido, a ausência de um viés é logo sentida. Fixado nas extremidades, aquele aparato tem a função de evitar desgastes. É um item importante para a boa costureira. Ao mesmo tempo, pode ser um recurso alternativo. É contínuo, compõe o tão sonhado acabamento da peça. Assim, na trama da educação infantil, não é ousadia dizer que, às bordas, estão seus profissionais com fios de histórias de vida e suas experiências, nem sempre notadas. Há quem acredite ainda que a professora negra é apenas um detalhe, como um viés decorativo. Indico a todos que reparem bem na sua trajetória firme. É por este fio, que a presente tese tece a costura, o fazimento, a união e aproximação de estética, arte e vida, na pretensa análise da contribuição da poética de artistas negras para a formação de professoras da Educação Infantil. Contrário ao esgarçamento, fiar é a atividade de fazer tecido. Ou, ter fé e confiar. Para mim, é dar forma à rememoração da vida. Como quem costura o passado, alinhava experiências que fizeram/fazem a vida pulsar com pontos de estesia. É nessa tessitura, com o frenesi de uma aprendiz, intensa e agitada, que faço costuras e rupturas. Uso a narrativa para, através de minha voz, dar visibilidade aos sentidos de meu pertencimento étnico-racial, dando continuidade a um processo iniciado anos atrás: foi trazendo o passado ao presente, na produção do memorial de formação durante o mestrado (SILVA, 2017), pela via da sensibilidade, encontrei minha avó Maria, sua casa-museu, meu quintal de brincadeiras; na cidade do Rio de Janeiro, tracei meu mapa das artes, que passava pela Casa Daros; construí meu itinerário de formação da sensibilidade, de percepção estética, no curso dessas experiências.

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Atenta aos detalhes, no processo de perceber meu perten-

a proposição de encontros-ateliês narrativos, buscando oferecer

cimento étnico-racial, encontrei narrativas e poemas de Concei-

às participantes materiais e canais expressivos, que contribuís-

ção Evaristo de Brito. Aquelas histórias com enredos fortes pare-

sem para rememorar e para falar de si, que abrissem possibili-

ciam-me familiares. Contribuíram na ampliação do meu olhar

dades de experimentação com diferentes materialidades e o uso

para a atividade de escreviver iniciada no mestrado. A escritora

de diferentes linguagens. Iniciei este movimento por mim: para

assume que toda sua escrita é fruto de suas experiências de vida.

compor este primeiro capítulo, abri uma das caixas-convite à

Na abertura de sua dissertação de mestrado (BRITO, 1996), afirma que “A literatura negra é um lugar de memória”. Escreve as lembranças dos sofrimentos da escravidão, a luta cotidiana de mulheres negras e a esperança de novos tempos. Eu me encontrei ali. Fui levada a pensar em minhas experiências. Sempre tive prazer em estudar. Menina, passava tempo escrevendo histórias de personagens imaginários. E, toda vez que “desperdiçava” papel com essas escritas que não

criação, que preparei para enviar às professoras-participantes. Reparei nos materiais e objetos, detive-me no envelope com os quinze cartões postais – uma série criada por mim. Ao abrir o envelope, meu olhar buscava por linhas e cores, traços e técnicas, elementos das artes visuais, formas e conteúdo, que de maneira poético-figurativa acionaram fios condutores às histórias da minha vida e que, por conexões subjetivas, suscita-

eram da escola, minha avó Maria repetia: _ Seu pai não ganha

ram narrativas. As mãos selecionaram imagens que falam: seis

dinheiro sentado, menina! Para não gastar folhas de caderno,

imagens da arte que compõem um retrato de mim.

ela me entregava papel de pão. Aquele papel grosso, pardo,

A proposta de utilizar postais com imagens de obras de

mostrava-me a realidade difícil de nossa condição. Uma fa-

arte foi inspirada no dispositivo utilizado por Ostetto (2021), a

mília de trabalhadores negros, que tinha a educação como

que a autora chamou de “Como se fora meu retrato: a imagem

herança e esperança, não podia brincar com a sorte. Honran-

da arte fala de mim”. Utilizado em suas aulas com estudantes

do essa herança, segui em frente. Fiz-me professora-pesquisa-

de Pedagogia, a proposta sustentava-se no ato de oferecer ao

dora. Hoje, no processo de doutoramento, o que mais faço é

grupo postais com reproduções de obras de arte, de diferentes

procurar formas de dizer, de falar, de escrever – para mim e

artistas – dispostos em uma pequena caixa, que passava de

para os outros, comigo e com os outros.

mão em mão –, convidar a apanharem, aleatoriamente, um

Como já anunciei na abertura da tese, e vou detalhar mais adiante, o percurso metodológico deste trabalho foi traçado com

postal para, a partir dele, cada um falar de si “como se” a imagem estampada fosse uma retrato de si.

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A mesma proposta foi utilizada na pesquisa de Ostetto e

Levando em conta meus objetivos e a temática explícita, eu

Folque (2021), com o objetivo de aproximação a um grupo de

mesma selecionei imagens de obras de artistas negros e negras,

professoras em formação, como um modo de apresentação

compus cartões postais, encaminhei à gráfica para, depois, se-

pessoal e visando às primeiras narrativas de si. Nesse contexto,

rem utilizados nesta pesquisa, nos encontros-ateliês a serem

depois de convidarem as participantes a pegarem um postal,

desenvolvidos com professoras (dos quais falarei adiante). Foi

dentre vários disponibilizados, as pesquisadoras propuseram

olhando para o conjunto de imagens impressas nos postais que

a cada uma:

teci as narrativas que se seguem, nas quais vou articulando, [...] olhar a imagem que lhe coube, convocar a imaginação e, em um exercício de reflexão sobre características e modos pessoais de ser, falar de si “como se”. E então, no diálogo com as cores, as formas e os temas estampados no cartão que tinham em mãos, as participantes, uma a uma, apresentavam-se ao grupo como se, ali, naquela imagem/obra, estivesse estampado o seu retrato. Além de ser uma provocação para ampliar olhares sobre si mesmas e se imaginar, estabelecendo conexões subjetivas, pertencentes a cada uma em particular, era um convite para que reavivassem histórias e tecessem narrativas, enunciando ao grupo um retrato de si, pela palavra falada. (OSTETTO; FOLQUE, 2021, p.7).

também, conceitos-chave que dão sustentação à tese.

Segundo as autoras, o dispositivo referido permitiu ativar a imaginação das participantes, abrindo possibilidade para a rememoração, puxando fios que conduzissem, de maneira poético-figurativa, às histórias constitutivas de suas existências. Considerei um caminho fecundo, utilizar postais para suscitar narrativas, na minha pesquisa.

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Figura 2 - Fotografia de acervo pessoal. Postais do processo. Brito Silva, Greice (2020).


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1.1 IMAGENS DA ARTE FALAM DE MIM Minha avó Maria Augusta é reconhecida como uma figura forte na minha história de vida e formação. Esta ancestral negra é minha inspiração. Ainda criança, minha avó, teve que trabalhar como lavadeira nos riachos do morro da Pedra Branca. Ela servia às famílias de proprietários da fábrica de Tecidos Bangu. uma importante indústria de tecidos nacionais, localizada no bairro de Bangu, no Rio de Janeiro, que operou entre 1889 e 2004. Foi na casa de uma dessas famílias que minha avó, quando moça, aprendeu a escrever o primeiro nome. Mais tarde, teve registro civil e sobrenome somente ao casar-se com meu avô. Sofreu abusos e violência no casamento. Criou meu pai e mais seis filhos homens. Perdeu sua única filha. Educou ainda netos e bisnetos. A relação com meus avós paternos e maternos foi fundamental para minha formação. Foi com eles que descobri, ainda criança, minha paixão por museus. E foi através da minha avó Maria que passei a apreciar obras de arte. Não aquelas criadas por renomados artistas, ela nunca me explicou sobre Arte. Mas levou meu olhar a contemplar suas artes, aquelas “coisas” que ela tecia ou torcia, com amarrações e costuras, utilizando panos coloridos, plásticos e fios, pelo quintal. Ela passava seu tempo cuidando da casa e das plantas, ao mesmo tempo que criava crianças e tornava mais agradável o espaço em que eu e minhas irmãs brincávamos, onde a família se reunia e convivia. Vez ou outra, alguém dizia “Vai lá no museu da sua avó vê se encontra algo para brincar”. E eu fui tantas e tantas vezes! Minha avó guardava objetos antigos e para tudo que entrava em desuso ela encontrava um uso. Aquele era meu paraíso. Podia mexer e brincar; a regra era só depois colocar de volta no lugar. Bolsas de casamentos, vestidos de festa, manta de nascimento, cada objeto que desenterrávamos tinha uma memória e uma história que minha avó contava. (SILVA, 2017, p. 27)

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Figura 3 - Sonia Gomes. Magia (2014). Costura, amarrações e tecidos diversos. 240 × 215 cm. https://www.premiopipa.com/pag/sonia-gomes/


Com A Magia De Sonia Gomes, Reencontro A Ancestralidade Criadora Também fala de mim a obra Magia (2014), de Sonia Gomes. A artista mineira, reconhecida como "mãos de ouro", tece sua produção por meio da costura, torções, confluências e união de arame, rendas, tecidos, papel, linhas, papelão, bordados. Na sua obra, diz, há uma fusão de muitas lembranças: traz a influência forte da avó, parteira, benzedeira e useira de rodilhas na cabeça; da família, herdou a ruminação dos guardados, das fotos, dos retalhos de tecidos, diz. Contemplar a magia de Sonia Gomes é reencontrar as criações de minha avó Maria. Vejo sua lata de biscoito transformada em estojo de costura e suas bolsas com malhas e tiras de chita. E ainda sinto o cheiro das roupas molhadas e sempre remendadas. Tecidos e linhas lembram também a outra avó, que me ensinou as primeiras tramas de crochê e do bordado. Recordam as peças de artesanato do nordeste brasileiro, como o bumba meu boi que ficava na sala da casa da minha avó maranhense, dona Nely. Bem como suas organzas, redes, mantas e rolos de linhas coloridas. Esta obra fala de mim e reúne os guardados das minhas ancestrais, os afetos fragmentados de minhas duas avós. Essas memórias dão provas de minha ligação com meus ancestrais, com as culturas de arkhé. O termo grego arkhée é usado por Muniz Sodré (1988) para caracterizar as culturas que, tais como a negra, se fundam na vivência e no reconhecimento da ancestralidade. A arkhé refere-se aos princípios inaugurais que imprimem sentido e força. A arkhé está no passado e no futuro, é tanto origem como destino (SODRÉ, 1988, p.153). É corpo, é alma, é inteireza. Trata-se de uma dimensão que não dissocia a natureza e a cultura. E também se integra à comunidade e a comunidade é considerada um só corpo. Reverencio meus ancestrais. Muito obrigada! Axé!

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Na Parede Da Memória De Rosana Paulino, Vejo Marcas E Rastros Que Animam A Vida Outra imagem de arte na qual me vejo representada é "Parede da memória” (1994-2015), da artista visual Rosana Paulino, obra que materializa uma investigação de sua própria identidade a partir de seus ancestrais. Na apreciação: onze retratos que se multiplicam e disparam memórias ancestrais. É composta pela costura de 1500 “patuás”, pequenas peças usadas como amuletos de proteção por religiões de matriz africana. Fotos de família da artista, saídas de uma caixa, contam uma narrativa que poderia ser a minha.

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A memória é um cabedal infinito do qual só registramos

pura (o espírito) e a pura exterioridade (a matéria). À primeira

um fragmento, diz Ecléa Bosi (1994). Lembrança puxa lem-

filia-se a memória; à segunda, a percepção. Dotada de um es-

brança, diz a autora em sua tese sobre memórias de velhos,

paço profundo e cumulativo, está a memória e no espaço raso

complementando que seria preciso um escutador infinito para

e pontual da percepção imediata, a lembrança neste sentido,

ouvir vivas recordações que afloraram mesmo depois das en-

como o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas, a me-

trevistas. No referido trabalho, a autora alcança uma memória

mória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda

pessoal que é também grupal, familiar e social, tecida entre os

e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 1994).

modos de ser do indivíduo e sua cultura.

Conforme os estudos da autora, Bergson procede a uma análi-

Na esteira da fenomenologia das lembranças de Berg-

se interna da memória, para explicar a existência de duas me-

son, a autora ainda nos leva a pensar na etimologia do verbo

mórias: a memória-hábito, memória dos mecanismos motores,

"lembrar-se", em francês se souvenir, que significaria um mo-

e a lembrança pura, ou imagem-lembrança, que ocorre de

vimento de "vir" "de baixo": sous-venir, vir à tona o que estava

forma isolada, singular, independente de quaisquer hábitos e

submerso. Esse afloramento do passado combina-se com o

constituem autênticas ressurreições do passado. Em síntese: “A

processo corporal e presente da percepção. Diz ela:

imagem-lembrança tem data certa e refere-se a uma situação

Aos dados imediatos e presentes dos nossos sentidos nós misturamos milhares de pormenores da nossa experiência passada. Quase sempre essas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais retemos então apenas algumas indicações, meros 'signos' destinados a evocar antigas imagens. (BOSI, 1994, p. 183-184).

definida, individualizada, ao passo que a memória-hábito já se incorporou às práticas do dia a dia.” (BOSI, 1994, p.11). No contexto da formulação de uma teoria psicossocial, no diálogo com Halbwachs (1993), Bosi irá na direção de uma realidade interpessoal das instituições sociais, valorizando diferentes instituições formadoras do sujeito e reconhecendo que

Ao ler Ecléa Bosi, tomo conhecimento de que os estudos

a memória depende “[...] do seu relacionamento com a fa-

bergsonianos detém-se ao mundo da pessoa, e que nas rela-

mília, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com

ções entre o corpo e o espírito defrontam-se a subjetividade

a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo.” (BOSI, 1994, p.17).

Figura 4 - Rosana Paulino. Parede da Memória (1994-2015). Aquarela, manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Em interlocução com o sociólogo francês, argumenta que a memória não é sonho, é trabalho, esclarecendo que “lembrar

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não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado.” E complementa, Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. (BOSI, 1994, p.55).

No quadro teórico traçado por Halbwachs (1993) e discutido por Bosi (1994), a memória da pessoa está amarrada à memória do grupo, aos seus quadros sociais que, por sua vez, está ligada à esfera maior da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade. Tudo isso se faz através da linguagem, instrumento socializador da memória (BOSI, 1994). Essas ideias evocam os sentidos das memórias de Conceição Evaristo (2017) em seus “Poemas da recordação”, que ligam sua avó a sua filha, e também a outras mulheres negras que compartilham desses afetos. Pela poesia, Evaristo unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual.

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A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância O eco da vida-liberdade. (EVARISTO, 2017, p. 10-11).


Ultrapasso os estudos clássicos que chegam até nós sobre a memória, e vou além: à tradição viva que está ligada à me-

partilhar experiências, pela marca do descartável, instantâneo, que escorre diluído no fazer habituado.

mória coletiva da sociedade africana, conservada a partir das

Em minha narrativa, evidências do passado estão guar-

narrativas históricas que, segundo Hampaté Bâ (1982), continu-

dadas em uma casa. Aquela de número 198, registrado no

am vivas e preservadas com fidelidade pelos chamados doma

muro, e que tinha até pouco tempo atrás, a inscrição 1929

ou tradicionalistas. Integrante da primeira geração do Mali com

na fachada. De lá vem as lembranças, pessoas, sentimentos e

educação ocidental, o filósofo nos ensina como, nas tradições

afetos que constituem fortemente minha identidade.

africanas, tudo é história e como, a partir delas, os tradiciona-

O meu cenário da infância é um quintal repleto de na-

listas mantêm viva a memória coletiva. Conhecidos como guar-

tureza e objetos que contam a história da família Brito. Pelas

diões dos segredos das ciências da vida, são dotados de uma

paredes, fotos e quadros de Seu Agnaldo, Dona Maria e seus

memória prodigiosa, como arquivistas de fatos passados trans-

meninos - Agnaldo Filho, José Carlos, Sidnei, João Carlos,

mitidos pela tradição, ou de fatos contemporâneos.

Paulo Roberto, Wanderlei e Wilson - e a menina, Maria Sônia.

De acordo com Bá (1982), uma das peculiaridades da

Lembro bem de dois daqueles quadros com sete carinhas que

memória africana está em reconstituir o acontecimento ou a

traziam os filhos ainda pequenos. Eu, que fui bebê, criança,

narrativa em sua totalidade, registrando toda a cena: cenário,

moça e jovem nesta casa, apreciava com orgulho a pele negra

personagens, palavras e mínimos detalhes, como as roupas.

retinta da minha família através dessas fotografias. Cresci me

Todos os detalhes animam a narrativa, diz. E contribuem para

identificando enquanto negra a partir dessas imagens e dos

dar vida à cena.

significados compartilhados no quintal da rua Carnaúba, que

A memória nas sociedades antigas arraigou-se nos valores ligados à práxis coletiva, à família extensa, no apego aos

ainda guarda vestígios do passado, no bairro Senador Camará, na cidade do Rio de Janeiro.

objetos biográficos, que constituíam paisagens de uma vida

Originalmente, essa casa pertencia à minha bisavó Batis-

inteira. Há de se criticar justamente a sociedade capitalista em

tina, da qual só ouvi histórias. Entre meus antepassados, ela

que vivemos nos dias atuais, que pode ter bloqueado os cami-

exerce um papel fundamental. É quem reúne a família, aproxi-

nhos da lembrança, arrancando seus marcos, apagando seus

ma dezenas de tios e primos e educa firmemente as crianças.

rastros – seja pelo tempo acelerado, pela rapidez das informa-

Na sala de sua casa havia a foto de uma moça negra que, me

ções ou ainda pelas poucas oportunidades de convivência, de

parecia, sofria com uma mordaça no rosto. Reconheço Anas-

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tácia, a mulher escravizada, como protetora. Essa imagem observou a mudança dos tempos na família, do matriarcado de Vó Batistina ao de Vó Maria. Protegia a todos nós, como também fazia a “santinha preta” Nossa Senhora de Aparecida. Neste humilde lugar, estão os valores que aprendi. Tornou-se espaço de afirmação e de restauração da dignidade negra, pela força e união de várias gerações de mulheres da família – bisavós e tias, avós e netas, mãe e filhas. Na agregação e no sentido de comunidade, tornou-se meu quilombo. A casa da família Brito foi e ainda é meu território de liberdade, nos sentidos anunciados por Beatriz Nascimento (1989, s/p): “A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.”

Nada Em Mim Se Separa: Os Ibejis De Robinho Santana Religam O Espiritual Ao Material Observando os cartões-postais, sou capturada por outra imagem da arte que fala de mim e é bastante representativa da cultura e religião afro-brasileira: a obra “Ibejis” de Robinho Santana.

Figura 5 - Robinho Santana. Ibeji (2020). acrílica sobre tela, 110x130 cm. Acervo do Museu afro-Brasil.

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Esses dois meninos poderiam ser meus dois sobrinhos. Mas, lembram mesmo do altar para São Cosme e São Da-

para esse trabalho de pesquisa alteraram fortemente minha compreensão acerca disso.

mião que havia no meu quarto e de minhas irmãs. Oferecía-

Racismo religioso é um tema tão sério, um termo que aca-

mos balas e doces no pratinho àqueles que nos abençoavam.

ba sendo usado para reforçar as estruturas discriminatórias no

Lembro que eu criança me divertia achando que os santinhos

Brasil. É preciso estar informado e atento, visto que cada vez

comiam as ofertas de doces. Em nossa casa havia ainda uma

mais crescem as violações da liberdade de crença e religião no

pedra de Xangô e um banquinho de Preto Velho, represen-

Brasil1. A narrativa de Makota Celinha, que é Coordenadora

tando símbolos religiosos. Lembro das festas religiosas onde

do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasi-

o quintal transformava-se em terreiro. Um festejo para os ori-

leira, para o jornal Nexo, reflete o contexto que eu e minha

xás-crianças, Ibejis e Erês. Eram festas alegres e bem cheias,

família enfrentamos e muitas outras ainda enfrentam.

organizadas em setembro por minha mãe, que professava sua fé na umbanda. Nossa casa era cheia de roupas de santo, havia uma pedra de xangô, velas, o cachimbo e banquinho dos pretos velhos, toda uma cenografia religiosa afro-brasileira. Descobri há pouco tempo a relação da família do meu avô com uma casa de Candomblé, cuidada por uma prima da família Brito. Essa e outras histórias foram silenciadas pelos inúmeros preconceitos sofridos. Lembro que meu pai foi demitido de uma empresa de grande porte nos anos 80 por conta de um resguardo espiritual. Minha mãe sofria perseguições por colegas professoras em uma escola sob rótulo de macumbeira. E, ainda tínhamos vizinhos pastores neopentecostais que entravam no meio da realização de eventos em nosso quintal. Até que essa relação espiritual foi desfeita por meus pais. E, na juventude acabei fazendo parte de algumas igrejas evangélicas, o que me fez negar esse passado muitas vezes. Hoje isso me dói! Apagar a história da minha família, renegar a nossa fé por conta de um fundamentalismo religioso é brutal. As leituras

Ninguém se incomoda da mãe levar o filho para batizar no cristianismo quando é bebê. É uma cerimônia bonita, celebrada, lembrada. Agora, todo mundo incomoda com a iniciação das crianças no Candomblé e na Umbanda. Mesmo estando acompanhada de seus pais. Isso é o quê? Se não o racismo religioso?

A recordação da casa, das festas, das manifestações culturais e religiosas e do acervo de elementos da família Brito mostra como imagens e representações tiveram e têm importância na construção do sentimento de pertencimento à população negra e suas culturas. Reconhecer-se negro é um processo atravessado por dimensões subjetivas, simbólicas e políticas, que entende sua construção nem sempre como positiva, mas também pela consciência da exclusão de negros e negras da participação na sociedade. 1 Na reportagem veiculada, o jornal Nexo explica o que configura o racismo religioso, mostra o que a legislação prevê sobre o tema e traz relatos, que vão do preconceito no ambiente escolar a decisões judiciais que fazem com que filhos sejam separados dos pais. Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/01/21/O-que-%C3%A9-racismo-religioso.-E-qual-seu-efeito-nas-crian%C3%A7as

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Neste contexto, torna-se urgente aprofundar e ampliar o co-

Outras práticas culturais de tradição africana e afro-bra-

nhecimento sobre a história e cultura africana e afro-brasileira, a

sileira eram realizadas no quintal da família Brito. Tínhamos

fim de compreendê-las no contexto da história geral da humani-

uma plantação de ervas, que eram usadas para fins medici-

dade. Compreender a vida social a partir do reconhecimento e

nais e espirituais. Aroeira, carqueja, camomila, picão: para

valorização da riqueza cultural do povo brasileiro, especialmente

cada dor havia um chá. Serviam também para o defumador

dos indígenas e dos afro-brasileiros, também contribui para sen-

de guiné às sextas-feiras, para purificação e como proteção no

tirmo-nos orgulhosos de nosso pertencimento étnico-racial.

banho com folhas de colônia. Integravam as garrafadas e ben-

Dentro da tradição oral africana, nada se separa. O material e o espiritual não se encontram dissociados: conhecimento,

zedeiras contra espinhela caída e mau-olhado. Havia consulta na medicina tradicional e na alternativa.

religião, iniciação à arte, ciência natural, entretenimento, toda

O senso de pertencimento foi construído também nas

parte constitui a unidade primordial. A tradição viva, segundo

referências musicais do povo preto. Escuto soul music desde

Bá (1982), funda-se na experiência e conduz o homem à tota-

criança. Meu pai e tios formaram uma banda na juventude,

lidade. Envolve uma visão particular do mundo, onde tudo está

tipo Jackson Five. Havia identificação com a música e o ritmo

interligado e interage. Neste contexto situa-se o respeito pela

afro-brasileiro - seja na voz de Emílio Santiago, Tim Maia, San-

palavra, principal agente ativo da vida humana e dos espíritos,

dra de Sá ou tantos outros. Passando por diferentes gerações.

transmitida e herdada de ancestrais ou de pessoas idosas das

Minha irmã me influenciou com o Ritmo & Blues norte-ameri-

próximas gerações. A herança ancestral é o que mais se preza

cano com Lauryn Hill e Alicia Keys. E por influência da maioria

na África tradicional.

da família e de minha mãe especialmente, aprecio o samba.

No quintal da casa da minha família havia também outras

Samba de roda, no terreiro ou na Sapucaí. Na palma da

celebrações tradicionais: como roda de samba, passos de dan-

mão ou na ponta do pé. O som do batuque conduz meu corpo

ça ao som de soul music. Ainda posso ouvir o som do tambor e

ao gingado. É a pulsação do coração a reverberar. Poesia mu-

da vitrola do meu pai. Também era comum celebrar a vitória do

sicada por Cartola, Martinho da Vila, Toninho Geraes. Samba

samba enredo na quadra da escola de samba e festas à Zumbi

é uma paixão! Em 2018 até encontrei samba no museu: a

dos Palmares no bairro. Um pouco pela cidade, mas fortemente

exposição “O Rio do samba: resistência e reinvenção”2, esteve

no seio familiar, foi onde o valor das festas e das celebrações se

por um ano no Museu de Arte do Rio, uma das minhas institui-

fortaleceram em mim. Pelas lembranças, vou reconhecendo que cresci em um contexto de afirmação da identidade negra. Dentro do meu quilombo, era prazeroso e seguro ter cor na pele.

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2 Catálogo da Exposição “O Rio do Samba - Resistência e Reinvenção” Museu de Arte do Rio (MAR) -28/abr/2018 https://issuu.com/marcelooreilly/docs/cat_logo-oriodosamba-resistenciaere


ções culturais preferidas da cidade. A exposição trouxe aspec-

Em direção contrária, a percepção de mundo dos povos

tos sociais, culturais e políticos da história do samba carioca desde o século XIX até os dias de hoje. Com curadoria de Nei

africanos, segundo Oyèrónké. Oyěwùmí (2018), considera o corpo e uma combinação de sentidos. A autora destaca que

Lopes, Clarissa Diniz, Evandro Salles e Marcelo Campos, “O

a apreensão da realidade envolve, mais do que a percepção

Rio do Samba” contou a história social do samba carioca por

visual, os muitos mundos que os seres humanos habitam, sem

meio de 800 itens, entre obras de arte, documentos, objetos e

perder outros níveis e as nuances da existência, sem privilegiar

peças de vestuário. Dizem que

a visão mais do que outros sentidos.

A ancestralidade do samba, fincada em suas raízes africanas, se atualiza nos corpos, nas palmas, nos pés, nas rodas. Nos terreiros, nas quadras das escolas, nos quintais e nos muitos palcos. Junto à música e à poesia, o que o samba inventa são formas de convivência, de alegria, de memória, de desejo e de luta cuja complexidade não se esgota na unidade de um gênero musical, e que tampouco podem ser circunscritas a uma classe social. (LOPES et al, 2018, p.14)

Identifico, neste percurso, outras formas de pensar-sentir o mundo: cosmopercepções, referenciadas nas culturas africanas. O termo “cosmopercepção” valoriza o pensamento dos povos iorubás e de outras culturas que privilegiam sentidos que não sejam o visual, indo além da “cosmovisão”, um conceito contemplado na história das sociedades ocidentais que, sustentadas pela documentação do pensamento racional, privilegia a visão sobre os outros sentidos na concepção de realidade e conhecimento. Onde valoriza-se a visão como ato do conhecimento, entende-se o conhecimento como ver e a verdade

O termo “visão de mundo” (worldview), que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, captura o privilégio da visão ocidental. É eurocêntrico usar isso para descrever as culturas que podem privilegiar outros sentidos. O termo “sentido de mundo” (world-sense) é uma forma mais inclusiva de descrever os conceitos de mundo, pelos diferentes grupos culturais. (OYĚWÙMÍ, p. 309, 2018)

Nesse estudo, os corpos aparecem. E, a partir deles, tudo se liga e tudo repercute em tudo, pois a relação do indivíduo com o corpo e com o mundo é uma relação viva de participação. Na iniciação como grande mestre, de acordo com a tradição viva (Bá, 1982), pouco a pouco, o homem descobria a sua relação com a palavra falada e seu caráter sagrado. Era conduzido para o autodomínio, o que o tornaria um homem completo. Os conhecimentos relacionados à iniciação, estariam ligados à experiência integrativa dos sentidos e formaria um tipo de pessoa em particular. Onde, a tradição oral seria a grande escalada da

como luz, fecha-se à possibilidade de outras compreensões e

vida, que dela recupera e relaciona todos os aspectos, integran-

leituras do mundo.

do o comportamento cotidiano à comunidade.

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Distintos Modos De Ser Afro-Brasileira: Pela Cena Carioca, Morro Da Mangueira Com Heitor Dos Prazeres A produção cuidadosamente detalhada da exposição “Rio do Samba”, comentada anteriormente, fez disparar meu coração. Os detalhes contavam a história do povo preto carioca. Todo o trabalho curatorial dialogava comigo, com a minha história. Assim, também a obra “Morro da Mangueira” produzida por Heitor dos Prazeres (1965). Essa imagem da obra de arte também fala sobre minha origem favelada: exibe a voz e a vez do morro e da comunidade, traduz o samba que, no passado e presente, agrega e reúne minha família, como escrevi na dissertação de mestrado: O batuque do samba que me alegra, lembra o passado com a história dos meus ascendentes africanos e, nos dias de hoje, a luta e resistência do povo negro favelado, do qual faço parte. (...) tenho orgulho de narrar esta parte da minha história – minha história e de minha família (SILVA, 2017, p.30)

Samba que, com seu batuque, afirma minhas referências afro-brasileiras: a diversidade de artistas, espaços e manifestações culturais que representam a mulher negra carioca que eu Figura 6 - Heitor dos Prazeres (1898-1966). Morro da Mangueira (1960). óleo sobre tela - 100.00 cm x 120.00 cm. Acervo da Coleção Roberto Marinho.

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sou. E talvez por este reconhecimento afirmativo, considero-me aberta a experimentar e formar outros hábitos culturais, ainda mais, motivada por livros, espetáculos, exposições, filmes,


cenários socioculturais onde homens e mulheres negras têm alcançado destaque. Viver e crescer na favela horizontal, nas comunidades da zona oeste da cidade, significa viver à margem da beleza propagandeada da Cidade Maravilhosa. É viver o caos, conviver com a desigualdade social, com a pobreza, desemprego, violência policial e o poder paralelo. E, ainda, conviver com a desinformação imposta à população. É ter nos direitos sociais e políticas públicas, a esperança por uma vida melhor. Contudo, foi crescendo neste lugar, tendo as primeiras vivências sociais ali, que me fiz estudante e professora. A maior herança que recebi da minha família foi insistir na educação. Recordo que, desde cedo, levaram-me à escola repetindo que era importante. Pelas lembranças, tomo consciência que educar para a justiça social é, para a negritude, um movimento ancestral, histórico, cultural e político. Reconhecer a história, cultura e direito dos negros é crucial para a formação cidadã, assim como é a valorização das peculiaridades da identidade e história de cada pessoa brasileira, particularmente dos negros e povos indígenas, mantidos à margem da sociedade desde o séc. XVI. Aprendo com a intelectual negra, Petronilha Silva (2016), que o reconhecimento da diversidade fortalece expectativas de que brasileiras e brasileiros vivam bem. De modo a fortalecer nossos distintos modos de ser brasileiros. Sem esquecer que, [...] tem de atentar para os desdobramentos advindos de preconceitos, opiniões equivocadas a respeito da participação dos povos indígenas,

dos africanos escravizados, dos europeus, asiáticos e de seus descendentes, na constituição da sociedade brasileira. Esse é compromisso a ser assumido por todos/as brasileiros/as, independentemente de suas raízes étnico-raciais. (SILVA, 2016, p.21)

É, sobretudo, desafiador reconhecer-se negro e “construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo” (GOMES, 2003, p.171). É um processo contínuo, significado pelos negros e negras nos vários espaços, institucionais ou não, nos quais circulam, seja na família, na escola, na igreja, ao longo da vida. Essa construção envolve o negro na sua totalidade, refere-se ao seu pertencimento étnico, à sua condição socioeconômica, à sua cultura, ao seu grupo geracional, aos valores de gênero, dentre outros. De maneira consciente e inconsciente, implica a negociação durante a vida toda por meio de relações dialógicas com os outros. Passando por experiências individuais e coletivas, que envolvem processos sociais, políticos e culturais vivenciados historicamente pelo negro na sociedade brasileira, esse processo requer a reeducação do olhar pedagógico sobre o negro. Recordo dos diferentes jovens que participaram do pro-

jeto interdisciplinar PIBID/FEUC3, que tinha por objetivo a im3 O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) foi disponibilizado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior (CAPES), através do Ministério da Educação (MEC), prevendo a valorização da docência no processo de formação de licenciandos. Como professora da rede estadual do Rio de Janeiro, atuei como professora supervisora dos estudantes da Fundação Educacional Unificada Campograndense (FEUC), que desenvolvia ações do Projeto PIBIC. Minha função era fazer a mediação dos licenciandos com os discentes do ensino médio no Instituto de Educação Sarah Kubitschek.

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plementação das orientações e ações para a Educação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2006). Atuava como professora de disciplinas pedagógicas na rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, no Curso Normal Instituto de Educação Sarah

cola deverá problematizar a questão racial. Essa problematização implica descobrir, conhecer e socializar referências africanas recriadas no Brasil e expressas na linguagem, nos costumes, na religião, na arte, na história e nos saberes da nossa sociedade. (GOMES, 2002, p.43)

Kubitschek (IESK) e a convite das professoras de Pedagogia da Fundação Educacional Unificada Campograndense (FEUC),

Outro desdobramento interessante foi a apresentação das

Janice e Glória, ingressei no projeto em 2015. Eu e mais qua-

histórias com personagens negros no quintal do EDI Samira

tro professoras do IESK atuamos como supervisoras dos estu-

Pires Ribeiro, unidade de educação infantil da rede municipal

dantes das licenciaturas. Puxando na memória, lembro ter sido

do Rio de Janeiro, da qual eu era diretora na época. A favor

uma experiência que rendeu significativas articulações.

da educação das relações étnico-raciais, reuni estudantes do

Foi marcante o trabalho com literatura infantil a partir do

ensino superior e médio às crianças da creche e da pré-esco-

protagonismo dos negros em uma das praças de Paraty/RJ,

la. Lembro da contação de “O tesouro de Monifa”, da autora

durante a FLIP- Feira Literária Internacional de Paraty (2015).

Sonia Rosa (2009). A história narra o encontro de uma meni-

A cidade colonial que se desenvolveu durante o ciclo do ouro

na brasileira afrodescendente com sua tataravó, Monifa, que

no século XVIII na força e na dor de negros escravizados, pode

chegou ao país em um navio negreiro. Mesmo na condição de

ser palco de uma ocupação negra com outros papéis. Os es-

escravizada, por meio das letras que aprendeu, Monifa deixou

tudantes engajaram-se nas leituras, dramatizações e rodas de

um tesouro: passado de geração em geração, chega às mãos

conversa. Eram homens e mulheres, com diferentes corpos,

da garotinha, que descobre a vida da sua tataravó e suas pró-

abordando e expressando impressões e representações sobre

prias raízes. Nessa vivência, jovens e crianças e ainda os adul-

esse corpo, especificamente sobre seus cabelos. No diálogo

tos, profissionais e professores da escola, conversaram sobre o

com crianças e adultos que participam da FLIP, puderam res-

pertencimento racial, oriundo de uma ancestralidade africana.

significar experiências de discriminação racial e ainda empre-

Neste trabalho com estudantes de licenciaturas e do cur-

ender ações de superação do racismo. Afinal, Mais do que simplesmente apresentar aos alunos e às alunas dados sobre a situação de discriminação racial e sobre a realidade social, política eeconômica da população negra, a es-

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so normal, aparece Chimamanda Adichie, uma das primeiras intelectuais negras que me recordo, uma autora nigeriana da atualidade. Sua palestra “O perigo da história única” (ADICHIE, 2009) marcou minha trajetória como professora na


formação de professores no ensino médio. No vídeo, a escri-

plantação: episódios de racismo cotidiano” (KILOMBA, 2019)

tora ressalta como uma história única pode ser fonte de este-

dispararam uma profunda conversa, entre nós e dentro de mim.

reótipos. Entende como perigosa a redução a um só aspecto,

Rapidamente, neste bate-papo, discorremos sobre feminismo,

de toda a complexidade de uma pessoa e de seu contexto, e

racismo, interseccionalidade, colonialismo, trauma, silêncio, ca-

narra como vivenciou isso com frequência, enquanto estudante

belo, cultura. Pronunciei esses temas silenciados em voz alta,

nigeriana em uma universidade nos Estados Unidos.

com mulheres brancas que eu admirava e demonstravam em-

Depois do vídeo, conheci as obras literárias de Chimaman-

patia e consciência de seus privilégios. Um saboroso café e a

da Adichie. Comprei o ebook de “Americanah”, livro apontado

leveza da literatura, abriram espaço para que minha voz fizesse

como uma das dez melhores obras de 2013. Um romance

ecoar os temas que marcam minha subjetividade, abordados

sensível e necessário, que levanta questões raciais, de imigra-

por autoras negras em suas ficções e autobiografias.

ção e de aceitação das próprias raízes. Histórias têm o poder

Desfrutar do café foi saboroso, mas tem sido dura a vida

de humanizar, diz a escritora africana. Na leitura, a trajetória

fora do meu quilombo. Sair da minha casa, da comunidade,

de Ifemelu tocou-me profundamente. Fez surgir a identificação

trouxe à tona os recorrentes episódios de discriminação e injú-

em diversas situações vividas por ela, quando adolescente na

ria racial. Essa é uma violência cruel e de gosto amargo. Logo

Nigéria. Ou mesmo, na idade adulta, ao sentir-se negra quan-

que cheguei à universidade para trabalhar como professora,

do pisa na América. Esse sentimento chega para nós em algum

ouvi “Vou mostrar qual é o seu lugar!”. Era meu primeiro mês

momento. Ainda estou a aprender sobre racismo e as discus-

de trabalho, ainda não me conheciam. Após esse enquadra-

sões étnicas e raciais levantadas por autoras negras, além de

mento, chorei muito! Constatei que não adianta ser competen-

Chimamanda Adichie, Toni Morrison, Maya Angelou, dentre

te. Ser professora, em um corpo negro volumoso oriundo da

outras. Mas, já sei que reduzir a um só aspecto a complexidade

periferia, incomoda. Ocupar uma vaga conquistada em con-

de uma pessoa e de seu contexto é extremamente perigoso.

curso público em uma instituição federal de ensino, para mim

A nutrição deste repertório cultural, pela narrativa de mu-

é conquista e para outros é afronta. Na sutileza das relações

lheres intelectuais negras, tem sido cultivada nas relações mais

cotidianas, percebo atitudes e armadilhas. Mas, já decidi: mi-

improváveis. Certa tarde, em um café na padaria, com Luciana

nha presença negra vai ocupar o lugar que eu quiser!

e Marta, professoras da universidade, foi que esta tese começou

Aprendo com Neusa Sousa (1983) que saber-se negro é

a enegrecer. As impressões de uma delas, sobre “Memórias da

viver a experiência de ser violentado de forma constante, con-

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tínua e cruel. É um processo doloroso, marcado por afetos e

Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascêndencia étnica que se lhes atribui ou reconhece." (NOGUEIRA, 1985, p. 79).

sentimentos de inferioridade, sentimento de culpa, defesa fóbica e depressão. Devido à complexidade do ser negro em uma sociedade em que essa condição aparece associada à pobreza, inferioridade, incompetência, feiura e atraso cultural, tudo isso dói, endurece e emudece. Leva-nos a esconder certas histórias e não nomear alguns sentimentos. Mas, é preciso falar – contra o racismo, o preconceito, a discriminação racial! De acordo com o professor Kabengele Munanga, [...] o racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. O racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais, lingüísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo a qual ele pertence. De outro modo, o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo, são conseqüências diretas de suas características físicas ou biológicas. (MUNANGA, 2003, p. 12).

O preconceito tem por base estereótipos, o julgamento de pessoas sobre outras. Trata-se de um fenômeno psicológico, que atua nas relações interpessoais, na esfera da consciência e afetividade dos indivíduos. Por si só não fere direitos, contudo,

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Um ponto crucial desta reflexão está na permanência, no desenvolvimento e na especificidade do preconceito racial no Brasil, que de acordo com Oracy Nogueira (1985), pode ser chamado de "preconceito de cor", ou "preconceito de marca", que se transforma em um tipo especial de preconceito racial, que facilita a integração e a ascensão social dos imigrantes europeus e retarda e impede a ascensão dos negros ao longo da história. Já a discriminação racial, segundo conceito estabelecido pela Convenção da ONU/1966, sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, [...] significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferências baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha como objeto ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou exercício, em condições de igualdade, os direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, social ou cultural, ou em qualquer outro domínio da vida pública (PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, 1998, p. 12)

adverte-se que preconceitos podem tornar-se posicionamentos

Altamente prejudiciais nas relações sociais, o racismo, o

ao longo da vida. De acordo com estudos de relações raciais,

preconceito e a discriminação racial estão presentes na socie-


dade brasileira e são praticados contra pessoas desde muito cedo. No que tange à afirmação de identidades, a escola cumpre um papel importante, é reconhecida como o lócus de relações sociais que estruturam e marcam o processo de socialização. Neste sentido é fundamental articular “a educação vista como um processo de formação humana que extrapola os muros da escola, e a identidade negra como processo histórico, social e cultural” (GOMES, 2002, p. 46). E, assim, oferecer respostas à demanda da população afrodescendente, no sentido de promover ações afirmativas na educação e criar estratégias pedagógicas na escola, tendo em vista reparações, reconhecimento e valorização de sua história, cultura e identidade, como apregoa o Parecer introdutório das Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira (BRASIL, 2004).

Entre Vida E Arte, Sonho E Liberdade, Amplio Olhares Com Carolina De Jesus Reconheço na minha história de vida a diversidade de cores que vi na cidade de Salvador, os sonhos de paz tecidos pelo coletivo de mulheres de Mampujan, que apreciei na Colômbia, e a beleza dos vitrais criados por Gaudí, máximo expoente da arquitetura modernista, que admirei em Barcelona. Esses elementos estão também incorporados às minhas experiências e histórias de jovem negra que ousa viajar além de sua comunidade, descobrindo e tecendo todo um universo singular, que faz parte de minha formação estética. Mas... Os caminhos sensíveis que atravessamos, nem sempre são de prazer e paz. Enquanto “esfarrapados do mundo”, muitas vezes, temos caminhos de dor e caos. Eis mais uma imagem da arte que pode representar a dimensão estética na minha formação ao longo da vida: o “Prólogo”, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), neta de pessoas escravizadas, beneficiadas pela Lei do Ventre Livre. Desde a infância, sua trajetória foi marcada por exclusões e dificuldades oriundas de sua origem social, visto que sua família sempre morou na área mais pobre de Sacramento - MG. A questão racial era uma marca que carregava consigo, pois demarcava as hierarquias sociais da sociedade brasileira (AZEREDO, 2018). Em sua obra mais famosa, "Quarto de Despejo” (2004), a autora faz um exercício autobiográfico, reconhecido como “escrita de si”.

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Figura 7 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977). “Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros (1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo Instituto Moreira Salles.

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Na imagem do "Prólogo", com palavras escritas à mão,

A paleta-leque de cores da minha professora também

a construção de uma narrativa que imprime um olhar sobre

lembrava a cartela de cores das tintas do meu pai, que era pin-

sua vida, seu cotidiano, é apresentada. Carolina Maria de Je-

tor. Desenhista industrial por profissão, trabalhou na empresa

sus, além de notável escritora, é uma multiartista: cronista, in-

de construção civil do meu avô como pintor de paredes. No

telectual, poeta, compositora e letrista. Fez crônicas, contos,

tempo da infância, eu brincava de escolher cores preferidas,

poesias, peças de teatro e letras de música. Muita diversidade

aprendendo que amarelo, azul, vermelho não eram uma cor

artística para além da representação de uma mulher negra, da

só! Afinal, tinha ao meu dispor matizes e nuances nas cartelas

favela do Canindé, mãe solteira com um lenço na cabeça. Ve-

de cores da Suvinil.

mos no “Prólogo” a revelação dessa revolução que é Carolina,

Homem negro da classe popular, meu pai, hoje, ainda é

mulher que ensina mulheres negras – criança, jovem, velha –

pintor de ambientes, reconhecido como um profissional dife-

sobre sonho e liberdade conquistados através da arte.

renciado, com seu gosto em criar formas, estudar texturas e to-

Também eu vou me revelando, também eu vou apren-

nalidades. Eu, menina que brincava com latas de tintas, colas,

dendo a liberdade, também eu vou construindo sentidos com

misturas, assim fui multi colorindo a vida: nos retalhos de lycra

a arte. Minha avó e meu pai trabalhador não estudaram arte,

para as roupas de boneca, nas artes visuais na docência com

nem tampouco fruíram da produção cultural, mas influencia-

as crianças, nos projetos gráficos que tanto me atraem, dando

ram meus caminhos de sensibilidade. Das lembranças da in-

atenção aos detalhes, às percepções de cores que se tornam

fância, recordo que meu olhar para as cores do mundo foi

possibilidades de criação e comunicação.

aguçado por minha professora na educação infantil. Na sala,

Minha capacidade de sentir e perceber tem se ampliado:

antes da pintura de um desenho, ela abriu uma paleta com

pela inclusão no caminho de pesquisa, que venho trilhando

cores, que parecia um leque. Aquele colorido todo ainda apa-

desde o mestrado, dos múltiplos aspectos da vida e de minhas

rece tão nítido na minha memória! Sua pretensão era nomear

histórias de formação, como adulta e como criança, assim

as cores e mostrar possibilidades de matizes para a pintura. Eu

como o contato com música, artes visuais, dança, literatura

menina, entretanto, fiquei fascinada com aquele efeito, singu-

que vou experienciando. Nesse percurso, sinto que são am-

lar, de todas as cores juntas. Era mesmo um espetáculo novo,

pliados e refinados meus olhares, levando-me a desenhar ou-

nunca havia visto aquela composição multicor (SILVA, 2017).

tros sonhos e experiências.

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Ao ler a multiartista Carolina de Jesus, sinto-me desafiada a ocupar lugares que não foram pensados para nós: sua palavra nos encoraja à ousadia e nos ajuda a ressignificar afetos individuais e coletivos, incentiva a expressão por outras linguagens, nos motivam a também contar nossas histórias. Sua obra certamente contribui para incentivar professoras de educação infantil negras, no refinar da sensibilidade, no encontro e expressão de suas múltiplas linguagens. É como se Carolina dissesse: vocês podem narrar – falar, escrever, registrar – sobre como são afetadas nas relações interpessoais, contar sobre sua presença no mundo e suas experiências com a Arte.

Figura 8 - Fotografia de acervo pessoal. Negros Postais. Brito Silva, Greice (2020).

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1.2 SÓ A PALAVRA NÃO BASTA: AS ARTES COMO FORMAS DE DIZER Na escrita memorialística que tracei e nos caminhos da pesquisa já anunciados em alguns conceitos esboçados, é nítida a escolha pelo diálogo com artistas e as linguagens da arte. O diálogo entre Educação e Arte pode ressignificar afetos individuais e coletivos. Acredito que linguagens expressivas podem ajudar a contar as histórias de negros e negras, no refinar da sensibilidade e, dessa forma, como numa “desobediência poética”, representada também por outras figuras, nuances, para dizer quem somos. Pois, como diz a artista e escritora afro-portuguesa Grada Kilomba (2019), só a palavra, usada na linguagem tradicionalmente colonial, não basta para contar a história negra que foi aniquilada. A exposição “Grada Kilomba: Desobediências Poéticas” esteve na Pinacoteca de São Paulo4 no ano de 2019. A instalação Table of Goods, de 2017, exibiu uma instalação composta de um monte de terra, posicionado no centro da sala, que emerge do chão com pequenas porções de mercadorias coloniais, como açúcar, café, cacau e chocolate. Como eixo principal, relembra séculos de mortes de trabalhadores africanos escravizados em plantações para produzir os bens e os prazeres (the goods) das elites. Neste contexto, Kilomba se utiliza do termo “indizível” como metáfora do trauma causado pelo colonialismo que, tal como uma doença, nunca foi devidamente tratado na sociedade. Gosto de criar instalações em que a audiência vem e não sabe o que é nem como é. Esse momento de confusão é descolonização. É quando começamos a questionar o que é o conhecimento, o que eu sei e o que eu não sei, e por que eu não sei e que relação isso tem com o ato de silenciar e invisibilizar. Na arte, todas as peças são capazes de levantar essas questões. (KILOMBA, 2019)

4 A Pinacoteca de São Paulo é um Museu da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. No ano de 2019, recebeu a exposição “Grada Kilomba: desobediências Poéticas” (2019), que teve por intenção de justapor, questionar e provocar novas interpretações sobre a coleção de arte dos séculos XIX e XX do museu, a história da arte que ela pretende contar e as histórias que permaneceram invisíveis. Foi a primeira exposição individual no Brasil da artista portuguesa, com curadoria de Jochen Volz e Valéria Piccoli, diretor geral e curadora-chefe do museu. Ver mais em: http://pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/AF06_gradakilomba_miolo_baixa.pdf

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Figura 9 - Grada kilomba. Table of Goods (2017). Making of da instalação. https://pinacoteca.org.br/programacao/grada-kilomba-desobedienciaspoeticas/

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Figura 10 - Grada kilomba. Table of Goods (2017). Terra vegetal, cacau em pó, chocolate, café moído, e em grão, açúcar e velas de cera. http://pinacoteca.org.br/ wp-content/uploads/2019/07/AF06_gradakilomba_miolo_baixa.pdf

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A denúncia da omissão, do apagamento e da invisibilidade com a negritude pode ser identificada na experiência histórica brasileira: recordo o Teatro Experimental do Negro (TEN), que teve por objetivo a valorização social do negro e da cultura afro-

Por tudo o que fez no seu retorno ao país, Abdias segue

-brasileira. Criado por Abdias Nascimento (1914-2011), funda-

contribuindo para a reconstrução da história da população ne-

do a partir de 1944, no Rio de Janeiro. Intelectual que não se

gra, como é possível acompanhar na maior exposição dedi-

contentava com a reprodução de lugares-comuns destinados à

cada ao trabalho visual do artista, exibida esse ano no MASP.5

população negra. Por isso, trabalhou pela valorização social do

É na interlocução com Abdias Nascimento que a artista

negro no Brasil, através da educação, da arte e da cultura.

plástica e pesquisadora Renata Felinto dos Santos (2019) criti-

Nas artes, Abdias teve ainda a valorização de sua carreira

ca a palidez do sistema de arte no Brasil. Anuncia que Abdias

durante um período difícil. No período da ditadura no Brasil,

Nascimento foi um dos primeiros ativistas do movimento ne-

enquanto esteve autoexilado em Nova York, iniciou seu proces-

gro a pontuar assertivamente sobre as formas de eliminação

so de descobrimento e amadurecimento com a pintura, dando

do povo negrodescendente, afrodescendente, afro-brasileiro,

ênfase à importância da cultura e da religião afro-brasileira.

como queiram, a partir de sua obra O genocídio do negro bra-

Em diversas regiões dos Estados Unidos fez várias exposições

sileiro, publicada em 1978 e reeditada em 2016. Nesta obra

em galerias, museus e universidades. Sobre sua descoberta

que reúne uma coletânea de ensaios, ele aponta que “a eli-

pessoal como artista plástico, conta que

minação do corpo físico do homem negro é a culminância de

O I Congresso do Negro Brasileiro votou uma resolução sobre a necessidade de haver um museu de arte negra para estudar e mostrar a nítida, porém ocultada, ligação entre a arte negra e a arte moderna ocidental expressa na arte contemporânea no Brasil. O TEN assumiu o projeto e eu me tornei curador dessa coleção. Junto com Guerreiro Ramos, Ironides Rodrigues e outros do TEN realizamos um trabalho extenso com as artes plásticas, em que tiveram e ainda têm destaque o escultor José Heitor e o pintor Sebastião Januário. A coleção hoje encontra- se

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sob a guarda do Ipeafro, Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, que fundei ao voltar do exílio. (NASCIMENTO, 2009, p. 12)

um extenso e agressivo processo de invisibilização, omissão, subordinação e humilhação dessa parcela da população”. E aprofunda sobre a urgência de revermos o currículo escolar e a ausência de disciplinas que contemplem as populações africanas e afro-brasileiras e suas inestimáveis contribuições para a construção e sedimentação da história e cultura brasileira.

5 De 25 de fevereiro a 05 de junho de 2022: “Abdias Nascimento: um artista panamefricano”. Saiba mais em https://masp.org.br/exposicoes/abdias-nascimento


Uma vez inseridos em uma sociedade plurirracial, a pes-

Uno-me a essas referências negras - políticas, sociais, ar-

quisadora questiona: onde estavam e estão pessoas não-bran-

tísticas, culturais - pela urgência de uma mudança profunda a

cas que atuaram no que chamamos de sistema da arte e que,

favor da reeducação de atitudes, posturas e valores que edu-

como desdobramento e extensão, também diz respeito às

quem cidadãos quanto à pluralidade. A fim de que ela seja

pessoas que educam a partir das Artes Visuais independente-

transformadora no sentido de provocar adoção de estratégias

mente de sua origem étnico-racial. Considera a urgência, de

pedagógicas de valorização da diversidade étnico-racial desde

fato, que os conteúdos que compõem os currículos escolares

a Educação Infantil. O que nos faz questionar qual é a arte e

da Educação Infantil à Superior contemplem as participações e

as linguagens que professores apresentam no dia a dia das

contribuições de todos os povos que historicamente constituem

creches e escolas.

o povo brasileiro.

Eu, professora das infâncias, tive os sentidos envolvidos

É no sentido de movimentar-se ao encontro das inteligên-

em matizes mais escuras, voltados para a fortuna da cor ao

cias, inventividades e estéticas, que são nada ou pouco re-

invés da palidez tão encontrada nas manifestações artísticas e

presentadas como histórias que discutem a nossa sociedade,

culturais. Essas existências e suas estéticas fizeram emergir as

que pretendo seguir. A partir da criação artística oriunda do

questões que me conduzem a esta investigação. O samba nas

segmento negrodescendente, como menciona Renata. Vou ao

ruas cariocas, o ritmo do ijexá nas danças populares, as vozes

encontro das artes e das culturas negras, validando a conexão

negras das literaturas, trazem o desejo de saber o que outras

com outras linguagens, buscando possibilidades de desobe-

professoras guardam em seus repertórios, quem são suas re-

decermos poeticamente a narrativa sobre nós, como incentiva

ferências negras.

Grada, que aponta para a urgência de se inscreverem conhe-

Assim, sob perspectiva da relação entre estética, arte e

cimentos pensados por pessoas provenientes de outros corpos,

vida, a pesquisa pretende analisar a contribuição de poéticas

mulheres negras. Através da experimentação de outras formas

negras para a formação docente. Entendo que essa relação

criativas e expressivas para dizer-se e dar formas plurais à exis-

constitui a formação em outras bases, considerando atravessa-

tência, a partir do reconhecimento da negritude que nos consti-

mentos sensíveis, que de certa forma contribuem para tessitu-

tui. Devolver liberdade, prazer e contemplação, sensações não

ras de identidades, para ampliação dos sentidos, constituição

permitidas às mulheres negras no Brasil, um país que segue

de repertórios artístico-culturais em diferentes temporalidades,

estabelecendo suas opressões cotidianas.

que possibilitam alargamento e/ou refinamento da leitura do

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mundo, oferecendo também outras formas de nele atuar, criti-

de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a

cando-o e transformando-o.

ação política feminista e antirracista (CARNEIRO, 2003), assim

Neste quadro, uma outra escolha foi se anunciar: fazer

conhecer histórias de professoras negras da educação infan-

pesquisa com mulheres negras. Pelo desejo de me aproximar

til, no âmbito da formação de suas sensibilidades, coloca-se

e ouvir mulheres que muitas vezes passam despercebidas nas

como desafio e necessidade, haja vista que as dimensões ética,

escolas, que sustentam econômica, afetiva e moralmente suas

política e estética atravessam nossas existências.

famílias, e desempenham o papel mais importante, como repetidamente afirmou Lélia Gonzalez. [...] sobretudo a mulher negra anônima, sustentáculo econômico, afetivo e moral de sua família, é quem, a nosso ver, desempenha o papel mais importante. Exatamente porque com sua força e corajosa capacidade de luta pela sobrevivência nos transmite a nós, suas irmãs mais afortunadas, o ímpeto de não nos recusarmos à luta pelo nosso povo. Mais ainda porque, como na dialética do senhor e do escravo de Hegel, apesar da pobreza, da solidão quanto a um companheiro, da aparente submissão, é ela a portadora da chama da libertação, justamente porque não tem nada a perder (GONZALEZ, 2018, p.51).

Escolhi fazer pesquisa com mulheres negras pela constatação das inúmeras dificuldades estruturais existentes para seu reconhecimento e valorização. Por acreditar que relatos biográficos destas mulheres podem provocar a discussão sobre formação de professores, trazendo especial contribuição da poética de artistas negras, sob a perspectiva da formação estética. Uma vez que a luta das mulheres negras contra a opressão

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Inclusive, do meu lugar de mulher negra, demonstrar interesse na relação entre estética, arte e vida, para algumas pessoas é motivo de espanto, devem pensar: uma mulher negra periférica, formada em pedagogia, como pode interessar-se por arte e cultura? Até nisso o preconceito racial perscruta-me! É mais uma forma de desumanização, como se todos os pretos não tivessem interesses e só pudessem fazer pesquisa para denunciar a violência sofrida. Nossos antepassados foram violentados e silenciados pelas marcas da escravização. Neste tempo de discursos de ódio, mulheres negras soltam as suas vozes, brigam por espaço e representação e se fazem presentes em todos os espaços de importância para o avanço da questão da mulher brasileira. Hoje, com elas, quero liberdade para dizer e desejar, ver e viver educação pela arte e com arte. Mulheres ativistas, como Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Jurema Werneck e Vilma Reis, me incentivam. Na mesma direção em que os anseios de hooks, a partir da relação entre raça, gênero e políticas culturais, também me contemplam:


Quero produzir uma obra que compartilhe com o público, particularmente com grupos oprimidos e marginalizados, o sentido de agência e empoderamento que a criação artística proporciona. Quero compartilhar a herança estética que me foi transmitida por minha avó e por gerações de ancestrais negros, cujos modos de pensar sobre esse assunto se desenvolveram na escala global na diáspora africana, informados pela experiência do exílio e da dominação. Quero reiterar a mensagem de que “precisamos aprender a ver”. Ver significa aqui, em termos metafísicos, uma intensificação da capacidade de experimentar a realidade por meio do domínio dos sentidos. (hooks, 2019, p 119)

Uma força ancestral me conduz na trama desta pesquisa, tenho certeza. Inicialmente, nutriram meus sentidos e a inspiração nas águas, a divindade do marinheiro de minha mãe e das pedrinhas da criança que brincava no terreiro de umbanda. Ao longo desses quatro anos, outros acontecimentos trouxeram-me de volta ao meu fundamento, ao axé que me fortalece. A energia vital que cuida de mim e está no encanto da natureza, na delicadeza das mãos, no sagrado do solo. É quem me guia para educar outros sujeitos, para escutar suas histórias, seus desejos e medos. E, assim, produzir uma teoria em Educação a partir das subjetividades que constituem

Mais uma vez, foi importante reconhecer meu itinerário de

mulheres-negras professoras.

formação estética, acionar a dimensão sensível, refazendo caminhos que constituem minha pessoa na pessoa da educadora que sou. Enquanto me constituo como pesquisadora, a reflexão, acompanhada do movimento de puxar memórias, dizer sobre histórias, escolher acontecimentos marcantes, constituiu caminhos que me fizeram compreender quem sou, e ajudaram-me a compreender o processo de ser e estar no mundo, diante de violências e resistências. Confirmo o que escrevi em minha dissertação de mestrado: O conhecimento de si, das relações, dos encontros, dos saberes, tem potencial de libertação e ruptura, à medida que o sujeito amplia, forma e transforma sua visão do mundo. Uma vez que se permita ser influenciado, tocado ou marcado por um saber, pode então, consciente disso, reconhecer os caminhos que foram formativos no passado e no presente. (SILVA, 2017, p. 23-24)

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A POÉTICA DE NEGRAS E NEGROS

II 61


A canção de Nei Lopes e Wilson Moreira conta que o quilombo pesquisou os momentos mais felizes, as raízes, de uma raça singular. E, na ocasião precisa, veio mostrar sua pesquisa: ao povo, em forma de arte! Esse é o título da bela composição desta dupla tão marcante, que inspira outras gerações no

Em toda cultura nacional Na arte e até mesmo na ciência O modo africano de viver Exerceu grande influência E o negro brasileiro Apesar de tempos infelizes Lutou, viveu, morreu e se integrou Sem abandonar suas raízes Por isto o quilombo desfila Devolvendo em seu estandarte A história de suas origens Ao povo em forma de arte

samba e na música brasileira. A letra dos autores encoraja-me a afirmar neste trabalho que arte também é parte do modo africano de viver. Expressões artísticas do povo negro, historicamente, foram reconhecidas como primitivas pelo mundo ocidental e assim desvalorizadas. Contudo, nossas manifestações, tal como o samba, as rodas de jongo, as ferrarias, mesmo desprestigiadas, encarnaram-se nas ruas, nas gentes, influenciando grandemente a formação artística e cultural do povo brasileiro. As reflexões iniciais deste segundo capítulo abordam a necessidade de valorização de outras existências. Aprofunda-se em tons mais escuros, nos quais o protagonismo negro é destacado, uma vez que carece de ser assumido por quem reconhece a Educação como prática humanizadora. Assim, poéticas negras atravessam e contribuem na discussão sobre educação estética,

(Nei Lopes & Wilson Moreira)

na acolhida ao corpo, à sensibilidade e aos sentidos, que alimentam conexões e desejos. A defesa da educação estética legitima processos formativos mobilizadores de saberes sensíveis na ação docente e no curso da vida. Uma educação/formação que aciona a imaginação e a criatividade, assim como convoca à participação de todos os povos e suas expressões

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Em Aprender a ser o que se é: construir subjetivida-

aponto a necessidade ontológica e epistemológica da beleza

des desmascaradas, trago possibilidades de apropriação sig-

na investigação sobre formação estética. Reverenciando poéti-

nificativa de conhecimentos através da educação de si mesmo,

cas negras, a partir do trabalho de artistas negras contempo-

das relações com os outros e o mundo em sua abrangência e

râneas, nesse ponto trago a presença de Oxum, que na mito-

infinitude. A relação entre estética e vida, a autonomia da arte

logia iorubá é o símbolo do poder feminino da fecundação e

e a legitimidade das diferentes atividades artísticas desenvolvi-

da continuidade da vida.

das pelas diversas culturas são discutidas a partir da produção teórica do grupo de pesquisadores latino-americanos que nos últimos anos questionam a relação entre colonialidade/modernidade e propõe a liberação da estética e a libertação dos seres

2.1 APRENDER A SER QUE SE É: CONSTRUIR SUBJETIVIDADES DESMASCARADAS

humanos das verdades universais em torno da arte e da beleza. A fim de construir um lugar concreto de enunciação de

No caminho da pesquisa que abriu espaço para a escu-

vidas negras, as Experiências sensíveis da/na arte e cul-

ta e acolhimento das memórias e narrativas de professoras,

tura negras são reconhecidas como capacidades criativa e

trilhado ainda no mestrado (SILVA, 2017), foram incluídos os

expressiva dos indivíduos e coletivos humanos que constroem

múltiplos aspectos das histórias de vida e formação no proces-

regimes de representação, como estéticas re-existentes. Cul-

so de fazer-se docente. Neste sentido, foi dada visibilidade aos

tivadas através do tempo, nas relações e diferentes contextos

itinerários de formação estética, pelos quais cada professora

em que nos situamos, como culturas negras, de caráter plural,

individualmente significa e transforma a partir de seus modos

vivo e dinâmico. Na dinâmica social brasileira, elementos de

próprios de vida, na relação com os outros. Esses itinerários re-

matriz africana são incorporados na linguagem, na cultura,

velaram experiências sensíveis consideradas significativas pe-

na arte, contribuindo para a constituição do que é conhecido

las narradoras. Acompanhar tais movimentos, contribuiu para

como cultura afro-brasileira.

se (re)pensar a formação docente no contexto da Educação

Como um espaço de formação, a escola tem um papel

Infantil contemporânea, a qual está a exigir professores e pro-

importante no reconhecimento, na valorização e no respeito às

fessoras que, a partir da relação pedagógica estabelecida com

histórias e culturas africanas e afro-brasileiras. Do rio Osun

as crianças, reparem seus modos próprios e singulares de ser

na Nigéria: beleza, fertilidade e poética negra é onde

no mundo e de expressar o mundo (SILVA, 2017).

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Advém dos resultados daquela pesquisa, a necessidade

importância de levar o professor a ver arte, frequentar museus

de se pensar propostas de formação que provoquem todos os

e espaços culturais, no estudo de Simone Bibian (2017); de de-

sentidos, o corpo inteiro, uma vez que, em tais itinerários, per-

sopilar lugares escondidos, acolher e celebrar o encontro com

cebe-se que a formação do gosto, a apreciação da arte e do

a criança interior e acessar nossos próprios saberes corporais

fazer artístico não foram propiciadas pela escola, mas fertiliza-

sensíveis e intuitivos, como apontam os resultados da pesquisa

das na natureza, marcadamente na infância, com a família, e

de Marina Duvidovich (2018); E, ainda, ampliar experiências

no olhar que foi passear no museu e instituições culturais, na

estéticas, dentro e fora da escola, alimentando olhares, escutas

experimentação de tempos-espaços de formação continuada e

e movimentos, nas possibilidades formativas apresentadas pelo

na relação profissional. Rememorar e promover vivências que

estudo de Carla Correa (2018), em diálogo com a arte, entrela-

ajudem a mobilizar saberes sensíveis, potencializando a ima-

çando formação de professores e infância.

ginação e o poder de criação de professoras é uma possibili-

Podemos observar, através desses trabalhos, que as nar-

dade que vem sendo fertilizada pelo grupo de pesquisa FIAR ,

rativas e histórias de vida falam dos processos de constituição

do qual faço parte. No diálogo com professores em exercício

das subjetividades. Seguindo as perspectivas (auto)biográficas,

na Educação Básica, segue promovendo ações de formação

é possível conhecer tempos, lugares e acontecimentos que

e pesquisa, problematizando a formação de professores com

marcam possibilidades e limites da experimentação sensível de

foco na dimensão estética.

professoras/es. Visto que

6

Dentre os estudos do grupo, algumas produções marcam a importância de valorizar a percepção nas histórias de formação docente, dos quais destaco: o questionamento sobre outros espaços de formação, como professores têm se relacionado com as crianças, pensando na criança simbólica e arquetípica que carrega em si a liberdade, a ludicidade e a inteireza, discutido na pesquisa de Cristiana Seixas (2018). A discussão sobre a

[...] por meio da rememoração e da escrita de si, no exercício autobiográfico, os professores podem (re)encontrar elementos constituintes de sua sensibilidade, localizar e articular fatos, acontecimentos, relações, experiências; enfim, que os ajudaram a serem quem são, percebendo o mundo e capturando seus sentidos, em texturas, formas, tons, sabores que emanam beleza. (OSTETTO, 2019, p. 59).

No âmbito dos estudos do FIAR, a estética é considerada 6 Círculo de Estudos e Pesquisa Formação de professores, Infância e Arte FIAR, cadastrado no diretório de grupos de pesquisa do CNPq. Para saber mais: http://fiar.sites.uff.br/

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como atitude sensível e necessidade vital, um fio que conecta o ser por inteiro e amplia suas relações com o outro. Tendo em


vista que “a estética não pode ser confinada em um conceito,

jeta [...]” (GALEFFI, 2007, p.110), reconhecida como funda-

mas requer um contexto, ou circunstancialização histórica, em

mento primeiro para todo e qualquer aprendizado, qualquer

que pode tornar-se operatória, fazendo algo emergir, cultivan-

atividade, qualquer tarefa.

do algo, gerando cultura” (CARVALHO, 2010, p.79), em nosso

Educar-se esteticamente teria relação com o cuidado sen-

grupo de pesquisa, o termo “formação estética” é cunhado no

sível e a aprendizagem de si, como o sentido do corpo, onde

contexto da formação de professores em relação ao campo da

toda sensibilidade é corpo vivente, marcada por acontecimen-

arte, da cultura e da infância.

tos que deixam vestígios, como caminhos de sensibilidade. A

Falar em formação estética docente, pois, conduz-nos a problematizar tempos, lugares e acontecimentos que possibilitam a experiência (do corpo) sensível, implicada em processos de percepção, de imaginação, de interpretação, no mundo e com o mundo, por meio dos quais a sensibilidade é alargada; experiências que contribuem para “acender coisas por dentro”. (OSTETTO, 2019, p.10). Os preceitos de uma educação que envolve a sensibilidade são anunciados pelo pesquisador Dante Galeffi (2007), ajudam-nos a fundamentar o conceito como processo de

educação estética ocupar-se-ia do ato de conhecer ou das dúvidas que nos rodeiam, a começar por nós mesmos. De acordo com Galeffi (2008), aprender de si tem a ver com a sensibilidade, uma vez que tudo o que vive é sensível de múltiplas maneiras. E como poderíamos definir sensibilidade? Com o referido autor, entende-se que a sensibilidade [...] é definitivamente uma primeira linguagem: uma origem comum. Sensível é o que é afetado em seu modo de ser e aparecer. Sensível é tudo o que pode ser tocado e modificado em sua gênese primordial. Sensível é tudo aquilo que é tocado pelo acontecimento da linguagem: uma invenção muito antiga, um acontecimento muito recente. (GALEFFI, 2008, p.98).

aprender a ser o que se é propriamente. Para o autor, educa-se esteticamente à medida em que fazemos uma apropriação sig-

Nesta direção, os processos pelos quais vai se dando a

nificativa de conhecimentos através da educação de si mesmo,

formação estética, dizem respeito aos atravessamentos, às

das relações com os outros e o mundo em sua abrangência e

múltiplas formas como somos afetados e como podemos afetar

infinitude. Nesta direção, a dimensão sensível torna-se “a ga-

nas relações com o mundo, aos modos como vamos tecendo

rantia de que podemos nos tornar inteligentes quando aquilo

e compartilhando experiências e saberes, cultivados nas rela-

nos toca nos ensina e nos transforma, potencializa e nos pro-

ções e contextos em que nos situamos. Como pondera Ostetto

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(2019, p. 10), esses processos, tempos e lugares engendram “modos singulares de apropriação cultural, fundando modos de pensar, de sentir e de elaborar significados sobre o mundo''. Ou seja, nos percursos, marcado por relações de estranhamentos e reconhecimento de similaridades, formamo-nos estéticamente. No grupo FIAR, temos tecido um caminho de compreensão da formação estética que rompe as fronteiras do conhecimento artístico ou da fruição da arte, pois tal formação, como temos dialogado com Hermann (2014, p. 124): “[pode] ocorrer também em situações cotidianas, assistindo a um jogo, vendo uma tapeçaria, diante de cenas da natureza, ouvindo música, lendo uma poesia etc. A estética se relaciona com a nossa capacidade de aprender a realidade pelos canais da sensibilidade”. Assim, buscamos diferentes formas de pesquisar, tecendo outros espaços para propostas de aprendizagem, suscitando a interação com professores e outros interlocutores a fim de ativar a percepção de pontos de vista divergentes. Tomo, como exemplo, a proposta “Fiar com o FIAR na quarentena”, desenvolvida enquanto ação de ocupação/formação virtual no contexto imposto pela reclusão pandêmica. Realizada entre os meses de maio a setembro de 2020 na página do grupo de pesquisa no Facebook7, essa ação durou cerca de vinte semanas e, como analisamos em artigo publicado a respeito:

[...] tornou-se um lugar para pensar (e decolonizar-se), sentir, olhar para si e para o outro e agir: um espaço de relação, de cuidado, de criação e de (re)invenção. Reinvenção! A palavra que talvez sintetize esse movimento construiu, no encontro, o desafio de continuar a vida e o desejo de manter a conexão com o outro por meio da arte, do compromisso formativo que nos habita e constitui nossos fazeres. (OSTETTO et al., 2021, p.173-174)

As propostas encaminhadas versavam sobre Museus, Educação e Arte, Literatura, Sons e Canções. Dedicaram-se, também, a abrir janelas virtuais com elementos artísticos e culturais que pudessem criar possibilidades de formação e ampliação de repertórios no enfrentamento ao racismo. Nesta ação, integrei-me com a proposição “FIAR com propostas de educação antirracista”, tecida a partir das discussões no subgrupo composto com mais duas fiandeiras-pesquisadoras, que também são professoras da educação básica e realizam estudos de mestrado em Educação. Considerando formação e pesquisa na virtualidade imposta durante o distanciamento, as propostas divulgadas às sextas-feiras poderiam inspirar a criação de outras estratégias na direção de uma educação antirracista. No conteúdo publicado, foram articulados texto, imagem e indicações de páginas virtuais destinadas ao público em geral. A proposta foi uma das ações mais acessadas na página do Facebook do grupo e, da fiação de propostas em trama antirracista na

7 https://www.facebook.com/fiaruff

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virtualidade, produzimos um artigo no qual tecemos algumas

acontecimentos e espaços que destacavam positivamente as

considerações, das quais destaco:

culturas negras. Valorizar histórias de vida e a presença de

A arte trouxe para nós a oportunidade de cuidado e curadoria da forma e do conteúdo, provocadora de diálogos na pandemia; ajudou-nos a ressignificar afetos individuais e coletivos, tão importantes no caminho da consciência do racismo; permitiu-nos perceber o outro pelas lentes da sensibilidade; contribuiu no reconhecimento da negritude que constitui a população brasileira; e, ainda, trouxe possibilidades de identificação enquanto negros na declaração política e/ou nos modos de ver e viver. A partir das publicações do FIAR e seu alcance, vimos o corpo negro no centro do interesse. O cabelo, principal alvo das atitudes discriminatórias, foi abordado em suas múltiplas formas, sentidos e saberes, desde a cultura ancestral até os nossos dias. (MELLO; SILVA; NEVES, 2021, p.582)

Para este diálogo, foram escolhidos artistas negros e negras. Na maioria, artistas contemporâneos, pela diversidade e pluralidade de materiais, linguagens e dimensões estéticas colocadas em discussão em seus trabalhos. Principalmente pela visibilidade de suas produções, seus espaços, acontecimentos pessoais e profissionais que, nos diálogos/provocações tramados, afetam pessoas negras e não negras. Considerando o entrelaçamento entre Arte, Formação de Professores e Infância, linhas que se apresentam nas tramas do nosso grupo de pesquisa, fizemos a aposta em reunir Educação e Arte para compor narrativas antirracistas, que viabilizassem trajetórias,

artistas, das artes e da cultura afrodescendente, pode bem ser um modo a educar a favor das relações étnico-raciais. Então, pelas experiências e análises produzidas, fica evidente que formação estética não significa apenas trabalhar “com as diferentes linguagens, ouvir uma música, pintar uma tela, representar um papel em uma peça teatral, ou mesmo apreciar a produção artística na cidade” (OSTETTO, 2019, p.10). Antes, como discute a autora, relaciona-se ao modo como nossos sentidos vão sendo acionados e refinados nas interações e experiências que vivemos na sociedade, além da arte, com as produções e manifestações culturais, com o meio natural, que se apresentam como oportunidades de aguçar a sensibilidade atuando no/com o mundo. Nesta perspectiva, valoriza-se a atividade da percepção e da sensação, ou seja, de todos os sentidos mobilizados com o/pelo/no corpo. O vocábulo “estética” remete à raiz grega aisthesis, que na tradição filosófica clássica significa sensopercepção, percepção e/ou conhecimento pelos sentidos; o termo ramifica-se em aistheton (sensação, sensível), que significa também "absorver", "inspirar", conduzir o mundo para dentro (HILLMAN, 2010). A criação da estética como disciplina, acabou por ditar normas para a crítica e criação artísticas na Europa no século XVIII. No Ocidente, a Estética é a área da Filosofia que pensa a arte. O termo empregado neste trabalho, dis-

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tancia-se daquele cunhado na perspectiva filosófica moderna, fundado por Alexander Baumgarten (apresentado em sua obra Aesthetica, em 1750). Para esta investigação foi necessário ampliar os estudos acerca do conceito de estética e de arte. Buscava-se um significado para além do que consagra a produção intelectual europeia-ocidental de séculos, que para além de um processo civilizatório, deixou-nos um rastro de subordinação, exclusão e morte por mais de quinhentos anos. Faz todo sentido rever os referenciais conceituais, tendo em vista a produção de uma teoria que valoriza a existência de negras e negros e da vida em diversidade. Por isso, outras perspectivas foram consideradas, menos opressivas e imperiais, mais humanizadoras e plurais, a fim de responder às diversificadas manifestações artísticas e culturais produzidas pelas gentes do Brasil, da América Latina, tão pouco visibilizadas. Buscou-se, assim, valorizar a arte e a estética que inclui afrodescendentes. Em seu artigo “Aiesthesis Decolonial”, Walter Mignolo (2010), contextualiza a adoção do vocábulo aisthesis , do berço grego, mais amplo, a sua restrição. Cito o autor diretamente: La palabra aesthesis, que se origina en el griego antiguo, es aceptada sin modificaciones en las lenguas modernas europeas. Los significados de la palabra giran en torno a vocablos como “sensación”, “proceso de percepción”, “sensación visual”, “sensación gustativa” o “sensación auditiva”. De ahí que el vocablo synaesthesia se refiere al entrecruzamiento de sentidos y sen-

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saciones, y que fuera aprovechado como figura retórica en el modernismo poético/literario. A partir del siglo XVII, el concepto aesthesis se restringe, y de ahí en adelante pasará a significar “sensación de lo bello”. Nace así la estética como teoría, y el concepto de arte como práctica. (MIGNOLO, 2010, p. 13)

Sua crítica da estética ocidental-europeia é feita através de um quadro de referência da modernidade/colonialidade, que considera a Europa o ponto de origem da modernidade, responsável por uma narrativa complexa que constrói a civilização ocidental e celebra as suas conquistas, ao mesmo tempo em que esconde o seu lado mais sombrio (MIGNOLO, 2017). Não há modernidade sem colonialidade, diz o autor, visto que por detrás do relato de salvação, heroísmo, justifica-se a violência colonial. O autor integra, com outros pesquisadores, o grupo que coloca em xeque visões predominantemente eurocêntricas, questiona e critica o sistema estabelecido impregnado nos conceitos e no imaginário social. Como resposta, propõe a decolonidade, a desconexão do poder que surge entre o Renascimento e o Iluminismo durante a colonização das Américas, que opera, dentre outros, no controle do conhecimento e da subjetividade. Complementando a crítica de Tlostanova (2011) segundo o qual a estética européia teria colonizado aesthesis, com o objetivo de reprimir as subjetividades locais, Mignolo (2010) argumenta que aesthesis é um fenômeno comum a todos os organismos vivos, já a estética é uma versão ou teoria particu-


lar de tais sensações relacionadas à beleza. Para ele, o termo estética, utilizado largamente nos campos da arte, da filosofia e também da educação, relacionado com o belo e com a concepção europeia de arte e de história da arte, ocupou lugar de destaque entre as elites e contribuiu no processo civilizatório entre as colônias.

las emociones y el intelecto” no son considerados artísticos, y tal consideración se legitima en el discurso filosófico que define la estética como la disciplina que se ocupa de investigar el sentido del arte. (GOMEZ, MIGNOLO, 2012, p. 9)

Na perspectiva de investigar o significado da arte a fim de libertar subjetividades, a estética decolonial apresenta-se

Segundo Gomez e Mignolo (2012), pode-se dizer que a

como opção, como uma amostra de “operações com elemen-

estética e a arte moderna são constituídas e constituintes do

tos simbólicos” que buscam desmantelar o mito ocidental es-

problema da modernidade, expressam seu poder em seus mo-

tabelecido para liberar as subjetividades que devem orientar

dos de representação, em seus corpos discursivos, em suas ins-

suas ações, atendendo aos critérios da arte e estética. Seja pela

tituições e em seus modos de distinção e produção de sujeitos.

operação com elementos simbólicos (instalações, sons, corpos,

Os termos classificam e desqualificam tudo o que pode ser arte

cores, linhas, desenhos etc.) ou pela conceituação decolonial,

ou estética, e excluem o que não se enquadra nem cumpre a

uma estética decolonial propõe expandir os processos de des-

universalidade pretendida da definição. Na tentativa de cons-

colonização de saber, sentir, pensar e ser.

truir alternativas, os autores [...] buscan descolonizar los conceptos cómplices de arte y estética para liberar la subjetividad. Si una de las funciones explícitas del arte es influenciar y afectar los sentidos, las emociones y el intelecto, y de la filosofía estética entender el sentido del arte, entonces las estéticas decoloniales, en los procesos del hacer y en sus productos tanto como en su entendimiento, comienzan por aquello que el arte y las estéticas occidentales implícitamente ocultan: la herida colonial. La herida colonial influencia los sentidos, las emociones y el intelecto. En el caso del arte y de la estética, la herida es sentida y sufrida (en las emociones y en el intelecto) por aquellas personas cuyo hacer operando con “elementos simbólicos que afecten los sentidos,

Importante considerar que a estética decolonial não é uma nova forma de colonização da estética. Nesta lógica, libera-se aiesthesis, abrindo-se a uma perspectiva que promove a formação de subjetividades desobedientes aos princípios do discurso filosófico-estético. Las estéticas decoloniales, en su doble trayectoria, tienen una importancia fundamental en los procesos de transformación y formación de subjetividades y sujetos decoloniales. Descolonizar la estética para liberar la aesthesis no es ya un hacer que busca la catarsis ni el refinamiento del gusto, sino la liberación de los seres humanos de los diseños imperiales en sus variados rostros. La decolonialidad, recordemos, es una opción que, al presentarse como tal, revela

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las verdades universales en opciones. Y es una opción que promueve la dignidad y la soberanía de las personas y las comunidades por sobre el simple bienestar económico. (GOMEZ; MIGNOLO, 2012, p.15)

Esta posição está também presente no pensamento de Adolfo Albán Achinte (2017), artista, professor e ativista colombiano, que em busca de uma práxis decolonial, apresenta uma forma de vida alternativa ao projeto hegemônico eurocêntrico. Argumenta: a produção da não existência, a partir da nova entidade geográfica chamada Índias Ocidentais, que levou su-

liberdade decolonial, de acordo com o autor colombiano, é preciso construir subjetividades desmascaradas, com sujeitos capazes de reconhecer as marcas coloniais de negação, subestimação, dentre outras. A re-existência, como práxis, enfrenta as formas de dominação, exploração e discriminação. Constrói a consciência de ser, de sentir, de ter, de pensar, desde um lugar concreto de enunciação da vida, através de fazeres que conduzem a “descolonizar, su imaginario, su imaginación, su capacidad creadora para reconstruirse ontológicamente, para insistir en construir u ocupar un lugar en la sociedad con

jeitos que tiveram sua humanidade negada para exploração a

su derecho a ocupar un lugar en la sociedad con su lenguaje”

encontrar seu espaço de existência, produziu a re-existência,

(ALBÁN ACHINTE, 2017, p.21). Sua capacidade criativa deve

como forma de levar ao fracasso a tentativa eurocêntrica de

ser decolonizada, deve estar livre para reconstruir-se ontolo-

homogeneizar para controlar, dominar e explorar. Os povos

gicamente, para insistir em construir ou ocupar um lugar na

originários não só fazem resistência, mas criam formas de en-

sociedade com seu direito, ocupando com sua própria lingua-

frentamento, inventando a existência. Em suas palavras:

gem. Assim, entendo a práxis decolonial da re-existência como

Es importante considerar que tanto los pueblos indígenas como los pueblos africanos esclavizados, no solamente resistieron al poder dominante, sino, que por el contrario desarrollaron formas altamente creativas para continuar inventandose la existencia incluso por fuera de los marcos legales, pero también jugando con el sistema establecido. Tanto en el pasado como en el presente estos pueblos y comunidades mantienen y desarrollan esas formas de existencia cotidianamente, a este acto lo he denominado re-existencia. (ALBÁN ACHINTE, 2017, p. 20)

70

Para a viabilidade de uma re-existência como práxis de

uma decisão consciente de construir a vida, mesmo nas condições mais críticas, como uma fazer libertário. A busca por outra forma de existir tem clara relação com a Aisthesis. Continuando uma leitura proposta por Albán Achinte (2017), vemos que o evento de colonização das Américas trouxe implicações ontológicas, epistêmicas e estéticas. Implicações que operam na ordem das representações através de imagens construídas e, de forma preponderante, na concepção de beleza, de puro e de dignamente possível, tornando a brancura como fundamental à existência. Assim,


El arte como acto de reflexión permanente - y no solamente como el hecho de realizar objetos artísticos - debe contribuir a ensanchar los escenarios de discusión en torno a la exclusión social, la racionalización, la violencia genocida, la reafirmación de los estereotipos y el autoritarismo. De lo contrário - y quizá sea válido también - el arte se convierte en un ejercicio narcisista que nos lleva a producir objetos para la auto-satisfacción del campo del arte y todas las contingencias que lo acompañan. (ALBÁN ACHINTE, 2017, p. 23)

re-existência, segundo o autor, enfrentando o padrão hegemônico estético ocidental imposto. Concordo que a arte deva ser um ato de reflexão permanente. Neste sentido, compreendo que aprender a ser o que se é relaciona-se com um pensar-sentir, no movimento de se perceber e reexistir. Diz respeito ao autoconhecimento e à autoafirmação, atravessando processos de libertação e emancipação. A arte, incluída nesta transformação, traz possibilidades de representar, imaginar e compreender o mundo, interrogando projetos de poder. Amplia capacidades criativas e expressivas de modo crítico, contribuindo para produzir inovações, fortalecimento e pertencimento entre comunidades ét-

A defesa da relação entre estética e vida, da autonomia da arte e da legitimidade das diferentes atividades artísticas desenvolvidas pelas diversas culturas em nosso planeta, são contribuições importantes do autor referido para fundamentar o que pretendo afirmar como estética nesta tese: para além da manifestação do belo, a conceituação de estética é tecida como capacidade criativa e expressiva dos indivíduos e coletivos humanos que constroem regimes de representação (ALBÁN ACHINTE, 2017, p.29). O que inclui o potencial de criação e expressão de afrodescendentes, de modo a romper com a cromática de poder estabelecida, que se transforma e sofistica ao longo do tempo em um sistema de exclusão. Neste sentido, a arte como um sistema que interpreta, simboliza e problematiza o mundo, deve atuar como uma pedagogia decolonial e de

nicas, para além das representações modernas que estigmatizam, folclorizam e exotizam sujeitos. Nessa dinâmica, vai se fundamentando a perspectiva de formação estética a qual tenho defendido, como um mergulho de dentro para fora e de fora para dentro, que envolve percepção com todos os sentidos, ou seja, de corpo inteiro. Onde não se separa cabeça do corpo, nem visão de sensopercepção. Que inclui a experiência de ser, saber e sentir de comunidades e sujeitos étnicos. E, aposta na re-existência, enquanto prática reflexiva do sentido de ser humano, permitindo que “la imaginación habla a favor de nuestra propia subjetividad” (ALBÁN ACHINTE, 2017). A formação estética como um ato que interpela as narrativas de exclusão, decoloniza mentes e, pela arte, imagina outras formas de narrar-se e re-existir.

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Da discussão tecida, a partir da opção por estéticas decoloniais (GOMEZ, MIGNOLO, 2012) e práticas de resistir, re-existir e reviver (ALBÁN ACHINTE, 2013), pergunto: Como a Arte pode visibilizar e pôr em evidência a pluralidade de existências que se encontram e desencontram no cenário pluriétnico da contemporaneidade?

2.2 EXPERIÊNCIAS SENSÍVEIS DA/NA ARTE E CULTURA NEGRAS

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Entre 1525 e 1851, período do tráfico escravagista do continente africano para o Brasil, cerca de 4.800.000 (quatro milhões e oitocentos mil) seres humanos foram transportados e escravizados. Não se inclui nesse cálculo a quantidade de pessoas que pereceram em captura ou durante a longa e insalubre travessia marítima. Era grande o número de crianças entre os cativos. Os homens e mulheres trazidos para o Brasil eram originários de diferentes regiões da África, e de países tão diversos como os atuais Benin, Nigéria e Togo. Vieram também etnias de países como Gana, Senegal e Serra Leoa e ainda, em grande quantidade, os oriundos de territórios da África Central, Oriental e Meridional, configuração atual de Angola, Namíbia, República Democrática do Congo, Zâmbia, Uganda e Moçambique. A contribuição desses escravizados e escravizadas impactou diferentes elementos da cultura brasileira. (PAULINO, 2013, p..5)

Figura 11 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Instalação: impressão digital sobre tecido, desenho, linóleo, costura, bordado. Tecidos: 180 x 68 cm cada. Coleção particular.

Figura 12 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Detalhes da obra. Coleção particular.

Figura 13 - Rosana Paulino. Assentamento (2013). Detalhes da obra. Coleção particular.

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Possibilidades de enunciação de afro brasileiros não é uma ação simples. Envolve a experiência de ser negro no Brasil, que circunda uma grande ferida aberta e exposta. Desde a travessia dolorosa pelo Atlântico até a discriminação e exploração de sua força de trabalho, a população negra é atormentada. Contudo, no cenário contemporâneo, com as dificuldades sociais, economicas, educacionais enfrentadas, é possível encontrar uma pluralidade de existências sendo representadas por artistas negros e negras. Rosana Paulino8 promove a enunciação de uma Poética e Estética Decolonial. Expõe feridas coloniais, que continuam

Uma das imagens exibe a representação de uma mulher

abertas e sangrando, através das Artes Visuais. Descentraliza

negra. A fotografia é de autoria de Augusto Stahl (1828-1877)

lógicas, evidencia o corpo negro feminino e denuncia a violên-

e foi encomendada pelo zoólogo e geógrafo Louis Agassiz,

cia colonial com ténicas e materiais reveladores. Através de um

em 1865, com o objetivo de comprovação sua tese referente

ato político, marca um importante posicionamento com sua

à superioridade da raça branca em detrimento das demais. A

potência negra criadora. Como uma intelectual negra, urbana

mulher em questão é registrada em três posições, de frente, de

e periférica assumida, ela afronta o mundo moderno/colonial/

costas e de lado, revelando o “caráter científico” da aborda-

interseccionado. E, de acordo com a pesquisadora Lucy Cristi-

gem. Não há informações sobre o seu nome.

na Ostetto (2020), com sua poética, ela evidencia vidas, contra-discursos e histórias que foram silenciadas e matizadas por relações de poder, produzindo uma estética negra libertadora. Assim, as imagens que abrem esta seção fazem parte do trabalho artístico de Rosana Paulino. O título da obra: Assentamento (2013), remete, inevitavelmente, aos sinônimos do verbo assentar. 8 https://rosanapaulino.com.br/

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Assentar, como nos mostra o dicionário Aurélio, é também o ato de xar-se ou de estabelecer residência em algum lugar. Transplantados à força, os africanos e africanas que aqui chegaram trouxeram seus saberes e práticas. Assentaram aqui sua força, seu axé. A última definição para assentamento encontrada no dicionário Aurélio diz respeito a:“Bras. Rel. Ser, ou objeto onde assenta a energia sagrada de qualquer entidade religiosa afro-brasileira; assento.” Assentaram, portanto, elementos que permearam nossa fala, culinária, comportamento e, principalmente, boa parte de nossa religiosidade. (PAULINO, 2013, p.4)

Imagine você estar ali entre os seus, e ser sequestrada, levada para outro país, tendo que se refazer, porque não há saída para isso: ou você se refaz ou morre. Esse não é um refazimento sem trauma, e é a questão do trauma que estou trabalhando ali. A costura em Assentamento é extremamente violenta até no material: a superfície em que escrevo a imagem é uma lona usada para banner, que imprimi pelo avesso, para ficar com a qualidade de impressão que eu queria, e machucava a minha mão para cos-


turar, é pesado, aquilo é uma lona grossa, que tem uma camada plastificada nela, que serve para o tecido não enganchar na máquina. Costurar aquilo era difícil, tinha que fazer força. Ali é uma sutura, porque essa sutura mostra que não é possível avançarmos, enquanto país, sem tratarmos dessas questões. Faço ali uma sutura política, estou lidando com um trauma da escravidão. (PAULINO, 2019, p.21)

Ainda, o trabalho artístico desenvolvido para a exposição Assentamento (2013) foi apresentado como material educativo, sustentado em três eixos: a obra, o texto e as práticas interdisciplinares, agregando discussões e questões propostas pela lei 10.639/039. Sob o estigma da escravidão, a colaboração afrodescendente não se destaca nas contribuições para a construção do

Rosana Paulino apropria-se dessas fotografias para ressignificá-las. Com a imagem ampliada em tamanho natural, a artista recorta e remonta com uma sutura grossa, feita com linha preta, salientando uma costura agressiva. Ela amplia, desmonta e remonta as imagens do corpo através de linhas de costura. Nota-se uma gradação acentuada no uso da técnica da costura. Expõe, assim, a violência da colonização e da escravidão. Sua poética visual impactou-me a partir da imagem daquele coração suturado com linha vermelha, na costura desencontrada que marca o corpo da mulher negra nua. É uma representação de corpo inteiro e encontra-se fragmentada, com tonalidades em preto e branco onde apenas o coração da personagem feminina, destaca-se em cores. As raízes estão em negro e sangue. A artista recupera seu coração, devolve-lhe vida e dignidade: ela diz que esse corpo é síntese e retrato da cultura brasileira, reconhece a contribuição de mulheres que trouxeram riqueza e vitalidade, gerando uma cultura pulsante graças à heterogeneidade daqueles que a compõem. O detalhe da obra envolve mesmo metamorfose, reconstrução, devir-mulher, como pretende a artista.

país, por isso foi regulamentada [...] a obrigatoriedade do estudo sobre História da África e dos africanos, a luta dos afro-brasileiros, a pluralidade da cultura negra e sua influência na formação da sociedade, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas: social, econômica e política pertinente à História do Brasil (BRASIL, 2003).

O estudo, indicado pela legislação, favorece a criação de identidade e de autoimagem positiva, a partir das relações entre África e Brasil, pois apesar da ferida colonial, permanece em nós a relação ancestral com aqueles que chegaram na América há séculos atrás. Contribui para desvelar que mulheres e homens africanos e seus descendentes, juntamente com indígenas escravizados, movimentaram a economia brasileira por séculos. Sujeitos oriundos de África, berço dos antepassados do homem, que produziram riquezas com seu trabalho 9 Educativo - Possibilidades de trabalho para a ação educativa estão baseadas nos três eixos que sustentam a exposição Assentamento (PAULINO, 2013). Saiba mais em https://pdfslide.tips/documents/assentamento-rosana-paulino-pdf-educativo.html

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escravizado não remunerado, também produziram riquezas

versidade cultural, diante da distribuição geográfica do Brasil e

culturais que penetraram na história nacional.

de sua realidade etnográfica, considerando nossas diferenças

África, continente que tem grande contribuição para a humanidade, especialmente pela cultura, um termo plural, de cará-

nária, da dança, das artes visuais, dentre outros.

ter vivo e dinâmico, que implica a uma infinidade de sociedades,

Acerca da Arte torna-se importante destacar que não há

constituídas por diferentes práticas, costumes, linguagens, modos

uma definição que seja comum a todas as sociedades. Para

de viver. Cultura diz respeito “ [...] às vivências concretas dos sujei-

Silva e Calaça (2006), o conteúdo e a forma da arte refletem

tos, à variabilidade de formas de conceber o mundo, às particula-

as aspirações de uma dada sociedade e seus valores. Sabe-se

ridades e semelhanças construídas pelos seres humanos ao longo

que, durante séculos, os povos africanos tradicionais produzi-

do processo histórico e social.” (GOMES, 2003, p.75).

ram objetos, formas consideradas as mais instigantes expres-

No Brasil, em uma sociedade que tende a discriminar e

sões da humanidade, pinturas rupestres, máscaras, esculturas

tratar desigualmente as diferenças, adjetivar o termo cultura é

em pedras e madeiras, figuras em argila, bronze, ouro e prata.

uma construção social, política, ideológica e cultural, que

Sem a pretensão de produzir obras de arte, na acepção euro-

[...] possibilita aos negros a construção de um “nós”, de uma história e de uma identidade. Diz respeito à consciência cultural, à estética, à corporeidade, à musicalidade, à religiosidade, à vivência da negritude, marcadas por um processo de africanidade e recriação cultural. Esse “nós” possibilita o posicionamento de negro diante do outro e destaca aspectos relevantes da sua história e de sua ancestralidade. (GOMES, 2003, p. 78-79)

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regionais, seja no campo da religiosidade, da música, da culi-

peia, produziam Arte Africana: Música, Dança, Teatro e Artes Visuais, conectadas ao sagrado, cumprindo sua função religiosa, para transmitir conceitos e valores civilizatórios africanos (SILVA; CALAÇA, 2006). Os estudos sobre história da arte foram realizados no Ocidente, assim deve-se atentar aos perigos na generalização do que seria arte africana, considerando a dimensão do continente e sua maior diversidade de povos e culturas que

Chamam de “cultura negra”, no singular, as culturas que

outros. No Brasil, como resultado da diáspora e das condições

fazem parte do pluralismo cultural do Brasil, segundo o pro-

de escravização ocorridas entre os séculos XVI e XIX, muitos

fessor Kabengele Munanga (2020). Diferentes culturas foram

elementos de origem africana tornaram-se parte da dinâmica

partilhadas e consumidas pelos brasileiros, independentemen-

social brasileira e tem contribuído para a constituição do que

te de sua origem étnica. Com isso, percebe-se uma ampla di-

é conhecido como cultura afro-brasileira (CONDURU, 2020).


Apesar da descontinuidade dos processos, essas experiên-

relevante contribuição do artista, curador e pesquisador bra-

cias e as reflexões que elas exercem sobre nós, influenciaram

sileiro Emanoel Araújo (ARAÚJO, 1988). Acompanhando este

também o mundo artístico, estabelecendo, mais do que uma

movimento, as designações de arte “afro-brasileira” e “afro”

renovação das linguagens artísticas, diferentes modos de in-

alternavam-se com “negra”, “preta” e suas derivações. Neste

corporação dos afrodescendentes com os atributos sociocultu-

estudo, aderi aos termos “Arte Afro-Brasileira” e “Arte Negra”,

rais afro-brasileiros. Entendendo a africanidade e brasilidade

considerando a influencia da cultura, religião e arte africana

como questões culturais resultantes da dinâmica histórica, o

nas obras juntamente a autoria de profissionais negros e ne-

pesquisador Roberto Conduru, considera que

gras. Destacando que, na sociedade brasileira, a cor da pele

O processo de representação de pessoas de ascendência africana no Brasil variou ao longo do tempo e do espaço. A partir do séc XVII, a figuração iconográfica foi dominante. Durante os anos de 1960 e 1970, as Áfricas brasileiras continuaram sendo representadas por meio de ícones. No entanto, naquele período, novos caminhos foram abertos na Bahia por Rubem Valentim e por Deoscóredes Maximiliano dos Santos, conhecido como Mestre Didi. (CONDURU, 2020, p. 144)

Em 1969, no início de seu auto exílio nos Estados Unidos durante a ditadura civil-militar no Brasil, Abdias Nascimento referiu-se à sua produção artística como “Afro-Brazilian art” (arte afro-brasileira). Ao invés de arte negra, que considerava a marcação étnica a partir de um fenótipo, as cores de pele dos autores das obras, deu ênfase na ascendência africana dos autores e/ou no africanismo dos temas das obras. Ao longo das décadas, os modos de relacionar África, Brasil e Arte se adensaram, mobilizados principalmente pela

e os traços fenotípicos ainda são decisivos nos processos de exclusão social e discriminação de afrodescendentes. Assim, considero “qualquer manifestação plástica e visual que retome, de um lado, a estética e a religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os cenários socioculturais do negro no Brasil” (SALUM, 2000, p.113) como Arte Afro-Brasileira. E, também, as conexões entre as subjetividades forjadas nas relações raciais brasileiras, envolvendo diálogos entre matrizes indígenas, negras e africanas (MATTOS, 2014). A ideia de arte afro-brasileira que temos hoje nos permite entender que é uma arte produzida no âmbito das religiões de matriz africana; é elaborada por quem experimenta as culturas negras no Brasil ou feita a partir do uso da temática negro-brasileira. Seus limites com a identidade nacional são tênues. Por isso, a discussão sobre o conceito de arte afro-brasileira consolida-se como um palco de múltiplas ideias e de abordagens interdisciplinares. (MATTOS, 2014, p. 129)

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A compreensão de que ser artista afro-brasileiro envolve trajetórias e processos criativos próprios e a necessidade de estudo e registro para se reconhecer sua produção artística como afro, implica também enfrentar o racismo, visto que a abordagem racista impacta em todo o sistema oficial da arte, legitimando o que é ou não arte. Ampliando o conceito de arte afro-brasileira para outras linguagens, incluo produções redefinidas a partir da matriz africana. Por exemplo, a música, que se transforma em identidade negra nos blocos afro-baianos (LACORTE DA SILVA, 2018); as danças negras criadas e recriadas em território brasileiro, especialmente a dança cênica, criada por Mercedes Baptista (DIAS, 2021); e, ainda, o teatro negro e o conjunto de manifestações originadas na Diáspora (LIMA, 2011). Abordam como artes, artistas e linguagens atuam como meio de expressão, recuperação, resistência e afirmação da subjetividade negra, expressões legítimas neste tempo de luta pela igualdade racial. Na cena contemporânea, acompanho com a pesquisadora Rôssi Gonçalves (2015 ), a expressão poética que advém das rimas das ruas. Marcada por coloquialismos, gírias, pronúncias incompletas, informalidades, envolta em uma comunicação, onde é compreendida como uma estética resistente. Entendam-se as rimas das ruas como performance. E para isso é preciso buscar outra perspectiva de análise, libertar-se de uma tradição excludente que reconhece por literatura apenas o texto escrito. Mais que isso: é permitir-se

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pensar e respeitar uma expressão literária que emerge de fora dos centros acadêmicos, que independe da elite letrada e não anseia por uma legitimação das instâncias nobres, porque elabora outros meios de visibilidade. Essa poética das ruas evidencia o quão potentes são os novos lugares de fala de minorias subalternizadas, uma vez que as rimas insurgem-se como discursos de resistência a um projeto hegemônico. (GONÇALVES, 2015, p.57)

Neste movimento, destaca-se que adultos, jovens e crianças, ocupam o espaço público com arte e ativismo e desenvolvem seus processos criativos. A poesia urbana constrói um movimento plural, protagonizado por cantores, poetas, músicos, grafiteiros e artistas plásticos. Envolvidos por essa manifestação cultural complexa e criativa, que propicia a formação de uma rede de poetas das ruas e complexifica o fazer poético, que segundo a pesquisadora, provoca um debate acerca das possibilidades que a literatura tem atualmente. Expressões culturais como as rimas, o rap, as modalidades do hip hop, marginalizadas pela sociedade, destacam a negritude. Esses MCs que estão em evidência, rimando na cena cultural contemporânea, são nossos estudantes ou pertencem ao seu grupo social. Pelas contribuições de Gonçalves (2015) tomo consciência de que essa estética apropria-se de cidades e acaba por elaborar um campo literário que tensiona lugares de fala. Acredito que, essas vozes emergentes, de maioria negra, podem reverberar na educação e incorporar-se às práticas pedagógicas.


Incluindo a performance, o corpo, e demonstrando como os

de manifestações, expressões e percepções variadas, quer seja

estudos literários não precisam estar limitados e dependentes

nos museus, nos teatros, nas bibliotecas, nos espaços culturais.

dos cânones.

Onde, aproximar crianças e artistas, que são negros e indíge-

Assim, desejo que escolas e creches aprendam mais com

nas, pode ampliar a fruição e a curiosidade de quem indaga

os saraus, que aceitam essa demanda da literatura da periferia

e aprende com um mundo pluriétnico. Visitar espaços e intera-

e produzem um ambiente favorável para os novos narradores.

gir com obras, espetáculos, performances, plurais e inclusivas,

Apesar de utilizar, por vezes, ferramentas de discriminação e

pode provocar outros sentidos e aprendizagens.

exclusão, espaços escolares podem acolher expressões poéti-

Neste sentido, educadores devem superar os padrões

cas, ancestrais e atuais, portadoras de estéticas resistentes e

hegemônicos e avançar no reconhecimento e valorização da

re-existentes feitas de arte e cultura negras. Por meio de uma

arte e cultura negras. Libertar-se de um padrão universal, pela

educação estética pelos diferentes segmentos da Educação Bá-

atenção aos detalhes e inclusão daquilo que está às margens,

sica, em especial na articulação com a Arte, Literatura e Histó-

entre princípios e conceitos não-ocidentais. Deve-se atuar de

ria do Brasil, como preveem as DCN- ERER:

forma engajada, a partir de ferramentas plurais e distintas das

3° O ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, nos termos da Lei 10639/2003, refere-se, em especial, aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do Brasil.

canônicas com poesia e literatura e também com música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro. Como antes anunciado, é possível construir uma pedagogia que incorpore outras lógicas, pela oferta de possibilidades aos estudantes de vivenciarem situações criativas, quando se entende

§ 4° Os sistemas de ensino incentivarão pesquisas sobre processos educativos orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasileiros, ao lado de pesquisas de mesma natureza junto aos povos indígenas, com o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação brasileira. (BRASIL, 2004)

Em cooperação, outros espaços, como centros culturais e museus, podem seguir fortalecendo seu papel social e educativo, sob ótica multicultural. Contemplando a co-existência

que a criação é um ato consciente onde articulam-se a condição do sujeito em interagir com seu meio sociocultural (ALBÁN ACHINTE, 2017). Na direção de uma pedagogia decolonial, resistente e criativa, encontramos um grande desafio: É de acordo com o que professores conhecem que as escolhas pedagógicas são feitas, e estas escolhas favorecem ou não a interação com contra-discursos e histórias silenciadas pelas relações de poder.

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Como pesquisadora-professora que recentemente tem amplia-

negra. Dificilmente a escola reconhece, e compartilha, obras e

do suas referências, provoco: Os ritmos e rimas das ruas ocu-

artistas além dos modelos hegemônicos, pautados no padrão

pam as experiências vividas em creches e escolas? As imagens

branco-europeu. Por isso, é importante se colocar em posição

de Rosana Paulino e outros artistas contemporâneos são reco-

de escuta dos professores e professoras: o que pensam e di-

nhecidas pelas professoras? Entre as artes, qual é selecionada

zem sobre hábitos culturais e a presença, em sua trajetória de

para compor as propostas? Têm origem africana ou afro-bra-

vida e formação, de artistas, espaços e/ou manifestações cul-

sileira as obras que aparecem em ações educativas curricula-

turais que representem as tradições africanas, afro-brasileiras

res? Estes questionamentos são pertinentes, uma vez que

e/ou os cenários socioculturais do negro?

[...] nosso país conforma uma rica geografia de identidades étnico-raciais, culturais e religiosas de sorte que segundo o último recenseamento geral a população negra representa mais da metade dos brasileiros, há cerca de 250 etnias indígenas, sem olvidarmos do pluralismo religioso, dos cidadãos que não professam crença religiosa, das crianças e adolescentes portadoras de deficiências e daquelas que provêm de famílias cujo núcleo difere do antigo padrão homem/mulher. (HEDIO JR, 2012, p.72)

Como apontam algumas pesquisas (MARTINS; LOMBARDI, 2015; OSTETTO; SILVA, 2018), no percurso formativo docente, em cursos regulares, o contato com a arte é raro, ou mesmo ausente, e, de modo geral, há poucas oportunidades para a ampliação de seus repertórios estéticos para as experiências de fruição e de produção artístico-culturais. Se há essa lacuna relacionada à arte de forma geral, no contexto da formação docente, pergunto-me qual seria a situação com relação ao conhecimento acerca da produção artístico-cultural

80

As experiências sensíveis de uma pesquisadora negra, que ansiava pelo cultivo dos sentidos na educação das crianças, trouxeram a conscientização de que a educação em todos os níveis é desafiada pela diversidade. Anseio e desafio deram o impulso para, na pesquisa, escutar professoras como um ponto de partida, como possibilidade de identificar como a negritude ocupa, ou não, sua história de formação. Acredito que mapear os hábitos culturais dos professores pode contribuir para conhecermos as referências negras que resistem em seus processos formativos e apresentam-se como referências às suas escolhas pedagógicas. Além de preceito legal, é nosso compromisso enquanto pesquisadores e educadores imersos em uma sociedade plurirracial e multiétnica, empretecer as políticas e ações educativas na Educação Infantil e nos cursos de Pedagogia, na Educação Básica e na Formação de Professores. A fim de educar com base em outra cor torna-se imprescindível conhecer a presença negra nos diferentes


campos da expressão artística e cultural no Brasil. Foi através

éticas negras, no contexto deste estudo. Nas tradições, encontro

da pesquisa que encontrei o dossiê “Outros tons para o

os mitos – denominados itans11 – que os povos africanos funda-

debate afro-diaspórico na arte e a fortuna da cor”10. Nessa

ram e se basearam para construir sua cultura e suas histórias.

encruzilhada, o debate proposto acabou por acentuar meu desejo de perseguir as tantas potencialidades negras que traduzem-se em fortuna da cor. Pelas diferentes técnicas, detalhes, abordagens da produção negra, descortinadas neste tempo, que são verdadeiras riquezas. Constato que muitas dessas artes fundam-se na dimensão espiritual e vem fertilizando outras reflexões e novos pensamentos. Reforçam assim a ideia de que o sagrado afro-brasileiro não deve ficar de fora desta pesquisa.

2.3. DO RIO OSUN NA NIGÉRIA: BELEZA, FERTILIDADE E POÉTICA NEGRA

Houve um tempo em que os orixás masculinos se reuniam para discutir sobre a vida dos mortais e não deixavam as deusas participarem das decisões. Aborrecida com isso, Oxum fez com que as mulheres ficassem estéreis e então tudo deu errado na terra. Os orixás foram consultar Olorum e ele explicou que sem a presença de Oxum com seu poder sobre a maternidade, nada poderia dar certo. Os orixás, então, convidaram Oxum para participar das reuniões: as mulheres voltaram a ser fecundas e todos os projetos dos orixás tiveram bom resultado.12

Na mitologia iorubá, Oxum é o símbolo do poder feminino da fecundação e da continuidade da vida. Espelha a beleza. Orixá do ouro, do mel, da beleza, do amor e da gestação. Sem Oxum, não há fertilidade, não há prosperidade, não há

Das sociedades africanas com concepções próprias de seu

vida. Representa um arquétipo predominantemente feminino,

tempo, dos fatos acontecidos e da vida, busco conhecimentos

segundo o professor José Zacharias (1998), que aborda a

que fundamentam os conceitos de beleza e fertilidade. Considerando a herança africana, acredito que aspectos das religiões afro-brasileiras podem ajudar no entendimento acerca das po10 Volume 7, número 1, ano 7, Abril de 2021. Organizado pela Profa. Dra.Renata Felinto; Prof. Dr. Alexandre Araujo Bispo; Profa. Ma. Fabiana Lopes. A Revista APOTHEKE é uma publicação eletrônica de caráter acadêmico-científico, editada pelo Grupo de Estudos Estúdio de Pintura Apotheke, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGAV/UDESC). Saiba mais em: https:// www.revistas.udesc.br/index.php/apotheke/issue/view/832/312

representação arquetípica composta pelos Orixás. Trago sua presença para abordar sobre a necessidade ontológica e epistemológica da beleza na investigação sobre formação estética. E, ainda, para reverenciar poéticas negras, a partir do trabalho de mulheres, artistas negras contemporâneas. 11 Itã (em iorubá: Ìtan) são os relatos míticos (lendas) da cultura iorubá. 12 https://mensageirosdearuanda.org/oxum/

81


82

A alma é nossa base poética, segundo o analista junguiano

mesmo arquétipo, porque estão consteladas em culturas especí-

James Hillman (1993), e sua forma visível é a beleza. Revelado-

ficas, a grega e a africana. Fiquemos, portanto, com a imagem

ra da essência das coisas, alma e beleza são inerentes, uma vez

feminina da deusa da fertilidade e da beleza como necessidade

que a alma nasce na beleza e alimenta-se de beleza. Na teoria

existencial, ressaltando, para o tema em discussão nesta tese, a

que propõe, reporta-se ao belo como no pensamento neopla-

presença de Oxum como guia.

tônico, como um cosmo afrodítico. Debruça-se na imagem da

Essa discussão liga-se, também, ao entendimento de esté-

deusa Afrodite, a Deusa do Amor e da Beleza para os gregos:

tica como sinônimo de poética, em sua percepção sensorial, da

ela, enquanto uma figura arquetípica no interior da anima da

sedução, do prazer, da atração. Como bem propõe a italiana

beleza, significa a forma como as coisas são apresentadas. As-

Vea Vecchi (2018), ao falar de educação infantil, uma estética/

sim, diz o autor, sem Afrodite o mundo e as coisas particulares

poética se faz necessária para colocar em relação o sujeito com

tornam-se partículas atômicas sem sentido (HILLMAN, 1993).

as coisas e as coisas entre si. Como possibilidades de agregar

Para mim, a beleza recorda Oxum e sua presença nas

qualidade e alimentar conexões, estética e poética expressam

águas doces: a beleza é negra e corporifica-se na deusa africa-

juntas um desejo de significado, de sentido, de maravilhamento:

na do amor, que nos faz reconhecer sua presença e poder sobre

caminham em sentido contrário à indiferença e à negligência,

a fecundidade. Reconhecidamente, esses arquétipos constela-

contrariam a falta de ação e de emoção (VECCHI, 2018).

dos em Oxum e Afrodite possuem também seus lados sombrios,

Na interlocução com essas referências, do campo da

como a fúria de Afrodite por Psique, no mito grego, e a inveja de

psicologia analítica e das práticas pedagógicas da Educação

Oxum que mata Iansã por competitividade, como conta o ítan

Infantil, entendo que a concepção de estética apontada se

iorubano. Essas simbologias, presentes em culturas tão distintas,

articula à crítica do ponto de vista decolonial, discutida ante-

portam saberes que nos fazem compreender a luz e a sombra

riormente: ela não está sustentada em um modelo, em regras

que constituem nossas vidas, assim como reconhecer a beleza

disciplinares, mas na relação com os atos da vida, nas relações

e o amor como forças propulsoras, que fecundam a existên-

com o mundo, os objetos, as pessoas, as culturas.

cia, tensionando os pares de opostos: há alma em todas as coi-

Dada a complexidade do ser negro em uma sociedade

sas, a qual é ativada a partir da estética, aquele sopro, aquele

em que essa condição aparece associada à pobreza, inferiori-

inspirar, que nos faz trazer o mundo para dentro, animando-o

dade, incompetência, feiura e atraso cultural, torna-se impres-

(HILLMAN, 2010). Eu diria que são nomeações diferentes para o

cindível reafirmar e agregar qualidade à existência de homens


e mulheres, crianças e jovens, produtos e produções, do povo

De que poéticas negras estou falando? Daquela que exala

preto. É considerando a humanização do outro, como sujeito

a Beleza Negra que desfila na noite do Ilê Aylé, como recorda-

de si mesmo, e afirmando positivamente a presença negra,

-se Lélia Gonzalez (2020). Em suas palavras, é Beleza Negra

que indico, para a educação e a formação docente, a neces-

ou Ora-yê-yê-ô! que transmite “a dignidade, a elegância, a

sidade de uma estética/poética negra, dando um tratamento

articulação harmoniosa do trançado do cabelo com o traje, o

digno às contribuições histórico-culturais dos povos africanos.

dengo, a leveza, o jeito de olhar ou de sorrir, a graça do gesto,

Poéticas, na literatura, são recursos expressivos contidos

na quebrada do ombro sensual, o modo doce e altaneiro de

nos versos. Poética negra, neste trabalho, diz respeito às co-

ser” (GONZALEZ, 2020, p.216). É poética de mulheres ne-

nexões entre linguagens expressivas contidas em cada corpo

gras: saberes, fazeres, modos de ser e dizer, formas de criar e

negro que carrega em si parte do território africano. Levam

expressar sentidos, de anunciar e de denunciar condições vivi-

consigo culturas, atitudes no mundo, de uma região ou de um

das, de tecer re-existências com as marcas culturais da ances-

lugar a outro. É o corpo, que poeticamente se expressa e con-

tralidade negra, que tem tudo (ou pelo menos um pouco) des-

tribui para a reconstrução da população negra, para o perten-

sa beleza descolonizada, vida e fertilidade que vem de Oxum.

cimento que deve ser construído na coletividade étnico-racial,

Não por simples representação, mas por re-existência.

a partir das conexões com nossas experiências pessoais.

Entre tantas, está a poética visual de Rosana Paulino, refle-

Passa pelo sujeito poético, o desejo de construção de uma

tida no peito da mulher desconhecida com as linhas do cora-

identidade afro-brasileira, segundo Conceição Evaristo de Bri-

ção em cores. A beleza da visualidade desta artista mulher ne-

to (2011). A escritora põe fé que

gra, também reside nos detalhes de seu processo criativo, que

A poesia é uma viagem regressiva que o poeta exercita no tempo, mas também a conjugação do presente, a fala do cotidiano, a marcação do aqui e do agora, lugar de sonhar, de planejar o futuro. É a sua ferramenta para soldar o elo da corrente rompida. É o exercício rememorativo que leva o poeta a querer retornar ao útero materno, lugar de necessário regresso, para que ele possa ser, ter-se, ver-se, dizer-se por inteiro. (BRITO, 2011, p.23)

estão profundamente ligados à memória, às raízes, à condição no mundo e ao trauma da escravidão. E, ainda, à criação de mecanismos visuais que expressam a importância da mulher negra na sociedade brasileira: Mães de santo, benzedeiras, parteiras, comerciantes, depois professoras, atrizes, doutoras, pesquisadoras etc. Com diversos materiais e o uso de outras técnicas, juntamente com a gravura, é impossível apreciar suas imagens sem ser capturada por elas.

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Poética negra é também a poética literária de Maria da Conceição Evaristo de Brito, que me atravessou pela primeira vez na leitura de seus poemas. Entre as suas importantes obras, destaco “Poemas da recordação e outros movimentos” (EVARISTO, 2017), uma antologia poética em que a autora mineira traz memória, feminilidade e resistência negra, a partir de suas “escrevivências”, termo cunhado por ela para dizer que toda sua escrita é fruto de suas experiências de vida. Marcaram-me as escrevivências registradas em “Becos da Memória” (2006), especialmente pela figura de Vó Rita, pela forte imagem do matriarcado negro. Vó Rita entrou devagarinho no quarto. De repente. Calada. Ela que não tinha a voz calada nunca, pois, se não estava falando, cantando estava; que nunca chegava de repente, pois se sabia de longe que Vó Rita estava chegando. E eis que ela chegou pé ante pé. Grandona, gorda, desajeitada. Abriu a blusa e através do negro luzidio e transparente de sua pele, via-se lá dentro um coração enorme. E a cada batida do coração de Vó Rita nasciam os homens. Todos os homens: negros, brancos, azuis, amarelos, cor de rosa, descoloridos... Do coração enorme, grande de Vó Rita, nascia a humanidade inteira. (EVARISTO, 2006, p. 131)

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Figura 12 - Rosana Paulino. Assentamento (2014). Detalhes da obra. Coleção particular.


Conceição Evaristo, romancista, contista e poeta, nascida

As poéticas destas artistas negras ajudam-me no sonhar

na cidade de Belo Horizonte, em 1946, no Estado de Minas

e no compor uma teoria em Educação em que Oxum está

Gerais, pontua sua ancestralidade de maneira crítica em sua

presente, para trazer fertilidade ao pensamento na criação de

poesia. Toma partido da cultura negra de forma lírica e política.

processos formativos nutridos com beleza. Ajudam-me a tecer

A poética feita na ciranda, na cantiga de roda, também

elementos de uma filosofia enegrecida, que considera a beleza

se constitui uma poética negra. Na beleza do timbre forte de

na matriz africana, alimentadora de sentidos e percepções pre-

Maria Madalena Correia do Nascimento, ecoa a ciranda, para

sentes na base poética de mulheres-artistas negras. Essa estéti-

além dos mares de Pernambuco:

ca/poética negra é forjada pelo ouro de Oxum, a grande mãe

Eu sou Lia da beira do mar​ Morena queimada do sal e do Sol Da Ilha de Itamaracá. (Ciranda de Lia, 2000)

Cantou-me e encantou-me na Praia Vermelha, na cidade do Rio de Janeiro. Quem seria aquela mulher que mora na Ilha de Itamaracá? Perguntava-me a cada dança de ciranda, junto ao grupo de professores e estudantes, embalados pelo cortejo da Companhia Folclórica do Rio (UFRJ). Essa ciranda quem me deu foi Lia Que mora na Ilha De Itamaracá. (Domínio público)

entre os orixás, aquela que recebe o título de Ialodê: Yalodê, Ìyálodè, ìalodê ou Yalodé, uma palavra de origem iorubana que significa aquela que lidera as mulheres na cidade e/ou a dona do grande poder feminino. Representa a elegância, a beleza, a estética e a poética que carregam artistas negras. Rosana. Conceição. Lia. Mulheres que em suas produções artístico-culturais, musicais, literárias ou visuais, revelam mais do que obras, geram vida e expressam a poesia de ser. Artistas negras que dizem de seus temores, coragens, alegrias e dores, corporificados em produções artísticas e culturais que dignificam sua existência e materializam sua importância. Entre tantas mulheres brasileiras contemporâneas que, pela arte, afirmam sua existên-

Lia de Itamaracá é dançarina, compositora e cantora de ci-

cia no mundo, são referências de meu repertório artístico-cultural,

randa brasileira. Nascida na Ilha de Itamaracá em Pernambuco

conforme já sinalizei. Essas três mulheres – Rosana Paulino, Con-

no ano de 1944. Ainda criança começou a participar de rodas

ceição Evaristo e Lia de Itamaracá – e suas obras são importantes

de ciranda. Trabalhou como merendeira em escola pública. De-

nas culturas negras, constituem a cultura brasileira, em suas his-

dicou-se a cantar e compor cocos de roda e maracatu. É a mais

tórias singulares e diversas, expressas nas diferentes obras e lin-

célebre cirandeira do Brasil, patrimônio vivo de Pernambuco.

guagens artísticas produzidas. Tomei as três por companhia para a pesquisa empreendida. Adiante voltarei a falar delas/com elas.

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86


III COMO UM MOVIMENTO SANKOFA 87


As cosmopercepções do povo da antiga Costa do Ouro servem como referência para a trama desta investigação.

O conceito de Sankofa (Sanko = voltar

Acompanho o movimento do pássaro, tal como em Sankofa

fa = buscar, trazer) origina-se de um

(Sanko = voltar; fa = buscar, trazer), de acordo com os signifi-

provérbio tradicional entre os povos de língua Akan da África Ocidental em Gana, Togo e Costa do Marfim. Em Akan “se wo were fi na wosan kofa a yenki” que pode ser traduzido como “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Como símbolo Adinkra, Sankofa pode ser representado como um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás carregando no seu bico um ovo, o futuro. Também se representa como um desenho similar ao coração ocidental. Os Ashantes em Gana usam os símbolos Adrinkra para representar provérbios ou ideias filosóficas. Sankofa ensinaria a possibilidade de voltar atrás, às nossas raízes, para poder realizar nosso potencial e avançar (NASCIMENTO, 2008, p. 31)

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cados apregoados pela pesquisadora Elisa Larkin Nascimento (2008), citado inicialmente. Observar a imagem-conceito desse adinkra13 denominado Sankofa, faz imaginá-lo em deslocamento. Sua imagem: [...] denota um estado de presença e consciência, pois tanto nos expressa um movimento de caminhar e ao mesmo tempo de flexibilidade de se voltar e buscar intencionalmente algo que está atrás dela. Assim, o que passou e é retomado por seu movimento de volta não é ela mesmo em si, mas apenas o que Sankofa decide buscar para seguir em movimento. (MORAES, 2021, p.24)

Na articulação com uma abordagem biográfica da formação, considero Sankofa um caminhar para si, que traz sentidos para pensar e refletir a respeito da formação profissional: retornar ao encontro de histórias pessoais vivenciadas em outros tempos, na infância e juventude; nas relações com o outro, com a arte, a natureza e a cultura; em tantos espaços 13 Sistema filosófico, cultural e de escrita ideográfica de origem da África Ocidental, através do qual se associa um conjunto de símbolos gráficos e provérbios tradicionais para a orientação da vida das pessoas e seus povos. Constitui uma arte nacional em Gana. São mais de 80 símbolos e cada um traz um conteúdo epistemológico simbólico”, de acordo com Elisa Nascimento (2008, p.31).


e instituições em que forjamos a identidade profissional, enquanto professora e professor na escola, em instituições outras e ainda nos deslocamentos geográficos realizados. Voltar atrás para conhecer também a história dos povos originários do Brasil, assim como de nossos ancestrais africanos e indígenas e/ou refugiados e imigrantes. Retornar aos saberes das raízes afro-brasileiras. E, então, conectados com a totalidade de si, definir escolhas e seguir em frente. Deste modo, o terceiro capítulo deste estudo é integrado por três partes. Em Educação, Formação Docente e Abordagem (Auto) Biográfica discute-se a educação como possibilidade de ampliação da percepção do mundo e de organização para atuação nele de forma crítica e humanizadora. Com o olhar para os processos formativos, vislumbra-se diálogos com as contribuições das abordagens (auto)biográficas, onde uma abordagem biográfica da formação colabora com uma teoria da formação de adultos em uma abordagem experiencial. Neste sentido, Narrativas De Si são utilizadas como estratégia discursiva, considerando a importância da oralidade e da palavra nas bases da tradição africana e pelo caráter artesanal de comunicação. No âmbito da formação, o uso das narrativas configura-se como estratégia formadora de consciência numa perspectiva emancipadora, uma vez que o ato de narrar torna possível desvendar modelos e princípios que estruturam discursos pedagógicos.

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3.1 EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO DOCENTE E ABORDAGEM AUTOBIOGRÁFICA Nas bases desse estudo está a Educação como prática social, uma vez que somos seres históricos e culturais, capazes de produzir e partilhar conhecimentos em rede de relações. É pela educação que podemos ampliar nossa percepção do mundo e nos organizar para atuar nele de forma crítica e humanizadora. A educação é aqui entendida nos termos freireanos: “Como processo de conhecimento, formação política, manifestação ética, procura da boniteza, capacitação científica e técnica, a educação é prática indispensável aos seres humanos e deles específica na História como movimento, como luta”. (FREIRE, 2001, p. 10) Educação é prática necessária ao enfrentamento da violência e discriminação racista, e também classista, sexista, transfóbica, espalhada na sociedade; a ética é inseparável da prática educativa, compondo princípios que balizam o combate a toda manifestação discriminatória, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou adultos. É pela educação, no quadro dos princípios éticos, políticos e estéticos, que podemos inspirar a criação de outros gestos, palavras e vivências a favor da diversidade nas escolas. No que diz respeito à formação de educandos e educadores, Paulo Freire segue como referência: formação docente ao lado da reflexão sobre a prática educativo-progressiva, em

90

favor da autonomia da prática, estimulando uma pedagogia fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando (FREIRE, 1996). Autonomia que vai se constituindo na experiência de várias decisões tomadas, em que vamos nos assumindo eticamente responsáveis; impregnada de nossa curiosidade, nosso gosto estético, nossa identidade em processo, onde destaca-se a dialogicidade como via. É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. Trata-se de fundamentos imprescindíveis neste período de tantas informações e mudanças, em que avança a barbárie, onde o respeito à autonomia de cada um e à vida com dignidade deve ser um imperativo ético, como ele dizia, e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros (FREIRE, 1996). Considera ainda que uma rigorosa formação ética se dá ao lado sempre da estética. De mãos dadas com a decência e com a seriedade deve se achar a boniteza, de modo a evitar que processos formativos ocorram indiferentes à beleza e à dignidade: estar no mundo, com o mundo e com os outros, exige de nós uma estética e uma ética. Este é o posicionamento coerente com o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador, onde educar seria substantivamente formar. Ao priorizar os sujeitos sociais, me situo no campo da pes-


quisa sobre formação docente no diálogo com as abordagens

A abordagem biográfica reforça a ideia de que é sempre a

(auto)biográficas. Na direção inaugurada pelas chamadas

própria pessoa que se forma, e forma-se à medida que elabo-

abordagens (auto)biográficas da pesquisa, busca-se uma ra-

ra e compreende seu percurso de vida. De acordo com Nóvoa

cionalidade pedagógica que acolha as múltiplas dimensões,

(2014), as histórias de vida e o método biográfico integram-se

que envolvem a construção dos saberes e da própria vida dos

na ideia de que "ninguém forma ninguém" e que “a formação

sujeitos. Com o olhar para os processos formativos, o interesse

é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos

está na pessoa, com suas perspectivas plurais de existência,

da vida” (NÓVOA, 2014, p.153). Nesta direção, o adulto é

adultos profissionais, sujeitos da experiência, que vivenciam

capaz de (re)construir sua formação com base num balanço da

aprendizagens e conhecimento de si ao longo da vida. Con-

vida, através do que se tem chamado de reflexividade crítica,

sidero significativas, porém não únicas, as contribuições dos

assumindo o comando de sua formação, por meio da consci-

estudos das histórias de vida em formação, a partir de Gaston

ência contextualizada, que implica sua ação no presente. Para

Pineau (2005), Pierre Dominicé (2014), Marie-Christine Josso

o autor, a consideração do processo de formação por essas

(2010) e António Nóvoa (1992; 1995).

vias é responsável por desencadear também uma reflexão teó-

Os estudos com as histórias de vida em formação e as narrativas autobiográficas, situam-se numa perspectiva epistemopolítica, como afirmam Pineau e Le Grand (2012), pois propõem um novo tipo de conhecimento e um novo posicionamento político em ciência. Possuem um caráter descolonizador, visto que consideram a experiência narrada e as múltiplas formas de histórias íntimas como legítimas, mergulham nas práticas da vida cultural, de onde trazem novidades no que se refere à capacidade humana de saber e de poder em relação à vida. Um outro aspecto a ser destacado sobre as histórias de vida em formação e as narrativas autobiográficas, refere-se à potencialidade de produzir dispositivos de intervenção social e

rica sobre o processo de investigação dos adultos, colaborando na criação de uma nova epistemologia da formação. Ao falarmos em processos de formação, pretendemos sublinhar que os adultos se formam por meio das experiências, dos contextos e dos acontecimentos que acompanham a sua existência. Pensamos, em função da nossa própria experiência no domínio da formação (e da autoformação), que a ação educativa só adquire capacidades formadoras quando consegue interagir com uma certa lógica da evolução pessoal de cada um. A formação contínua deve ser entendida como uma contribuição exterior que pode modificar certas trajetórias de vida pelas quais os adultos se constroem pouco a pouco. (NÓVOA, 2014, p. 159).

de autoformação (PINEAU; LE GRAND, 2012).

91


No campo da Educação, especificamente na educação de

surge uma variedade de temas que entrecruzam memórias,

adultos, como é o caso da formação de professores, a biogra-

percursos de formação, questões de gênero, trajetórias de

fia torna-se um instrumento de investigação tanto quanto um

aprendizagens que articulam a formação para a docência. Em

instrumento metodológico (DOMINICÉ, 2014). Seu uso depen-

suas palavras:

de de alguns elementos, como um contexto educativo favorável: para o trabalho com percursos biográficos, segundo o autor, o contexto da formação contínua torna-se mais adequado, considerando a maior idade e riqueza das experiências sociais e profissionais vividas pelos adultos participantes. No Brasil, o uso das autobiografias e histórias de vida em investigações sobre formação de professores e profissão docente esteve em crescimento nos anos de 1990 (BUENO et al, 2006). Ao colocar as histórias de vida e trajetórias profissionais no centro dos debates, atendendo ao clamor das reformas que propunham a redefinição do perfil e da formação do professor, a intensificação de tais metodologias permitiu renovar a pes-

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O princípio ético orientador das pesquisas com histórias de vida é que as narrativas da experiência, longe de comunicar o que já se sabe, constituem-se verdadeiros processos de descoberta e reinvenção de si. A dimensão heurística e autopoiética dessa reflexão permitiria transformar saberes implícitos em conhecimentos. E no processo permanente de interpretação e reinterpretação dos acontecimentos, para dar sentido às experiências, a pessoa que narra reelabora o processo histórico de suas aprendizagens e se reinventa. É nesse sentido que se pode conceber o uso das histórias de vida, ou de narrativas autobiográficas, como processos de formação docente. (PASSEGGI; SOUZA, 2017, p. 14)

quisa educacional. As primeiras publicações defendiam o ca-

Os paradigmas da pesquisa-formação aparecem nos

ráter formador das histórias de vida, entendidas também como

anos 2000, nas propostas dos pioneiros das histórias de vida,

fontes para a compreensão das peculiaridades da formação e

sobretudo Gaston Pineau (2005), que indaga: Quem faz a

especificidades das situações educativas formais e informais.

história de vida de quem? Por quê? Para quê? Com o quê?

Os trabalhos que foram sendo desenvolvidos aqui no Bra-

Quando? Até onde? Em função de que regras e de quais sa-

sil, voltam-se para a formação docente e situam-se na vertente

beres? Envolvendo uma aposta biopolítica da reapropriação,

da pesquisa (auto)biográfica que recorre às histórias de vida

pelos sujeitos sociais, da legitimidade de seu poder de refletir

e às narrativas autobiográficas como fonte e método de in-

sobre a construção de sua vida, aposta-se na superação da

vestigação qualitativa. Segundo Souza e Passeggi (2017), das

visão aplicacionista da Educação, marcada pela dicotomia te-

narrativas de professores, em formação inicial ou continuada,

oria-prática. O texto de Maria da Conceição Passeggi e Elizeu


Souza (2017) deixa claro a diferenciação da perspectiva de pesquisa-formação de outros modelos de pesquisa. Se no modelo clássico, o objetivo é depreender leis e princípios aplicáveis à ação educativa, na pesquisa-formação, destacam-se como objetivos a compreensão da historicidade do sujeito e de suas aprendizagens, o percurso de formação e, sobretudo, de emancipação, promovida pela reflexividade autobiográfica que, superando a curiosidade ingênua, cede lugar à curiosidade epistemológica e a constituição da consciência crítica. A pesquisa passa a fazer parte integrante da formação e não alheia a ela. (PASSEGGI; SOUZA, 2017, p. 14)

Na perspectiva da pesquisa-formação, a capacidade do sujeito – pesquisado e pesquisador – em pensar seu processo de formação e descobrir possibilidades e limites do narrar é potencializada. E ainda, evidencia-se nela a oportunidade de fomentar a criação de uma conexão entre saberes e identidade, entre experiências vividas e realidade, revelando relações constituídas do saber viver: consigo mesmo, com os outros, com o mundo (FORMENTI, 2008). No trabalho de acompanhamento autobiográfico, a pesquisadora italiana Laura Formenti, coloca em questão a dimensão da existência e indaga o modo como as competências de cuidado são aprendidas. Aponta que saber cuidar nasce da história vivida, da experiência de cuidados recebidos e dados. Reconhece que o zelo faz parte do cotidiano, do familiar, que são as dimensões mais invisíveis na vida de uma pessoa. Deste modo, diz,

[...] a vida pode ser vista como uma espiral, que prossegue para um futuro aberto: enquanto se vive, tudo pode acontecer… fatos que hoje podem ser doloridos e cheios de sofrimentos deixam sinais e cicatrizes, mas podem se transformar em recursos para enfrentar acontecimentos sucessivos. Nos cuidados, isso parece ser uma regra: o desejo de acudir alguém nasce de uma ferida […] (FORMENTI, 2008, p.61)

É com os sentidos para com os cuidados experimentados em primeira pessoa, que a presente tese avança. Analisar a contribuição da poética de artistas negras para a formação de professores, propondo encontros-ateliês como dispositivo de pesquisa-formação, dá-se a partir de linguagens diversas que ajudam a ir além dos limites da palavra. Neste percurso, busca-se por sujeitos em total entrega, disponíveis com o corpo, com os sentimentos e com as emoções para exercitá-las e senti-las, zelosos pelo encontro, gerando e recebendo cuidado. É também, e sobretudo, o corpo que está em questão e relação nos percursos formativos. No seio de uma pesquisaformação, Jeanne-Marie Rugira (2008) defende a ideia de que a relação com o corpo é um pilar dos processos de formação e de criação coletiva do sentido, assim como do conhecimento e da saúde. A pesquisadora dos eixos biográfico e somático, dialógicos e interculturais na formação, oriunda da cidade de Ruanda, na África Ocidental, defende que um procedimento biográfico demanda por uma “pedagogia corporificada”. A relação com o corpo sensível e a atualização das capacidades

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de atenção, percepção e reflexão constituem condições prévias

citar narrativas autobiográficas. E, ao mesmo tempo, configu-

para a enunciação biográfica. Cito sua argumentação:

ra-se como um campo formativo pela abertura dos sentidos,

A relação com o corpo e com o movimento interno é assim, para mim o suporte primeiro de meu próprio processo de transformação e de minha prática biográfica na formação, na pesquisa e na intervenção. A relação com meu corpo não me dá somente acesso a um movimento, mas, sobretudo, a uma consciência de um movimento. Graças ao corpo sensível, tenho consciência não apenas de uma presença para mim, mas, acima de tudo, de uma presença em mim. Uma consciência que traz em si um potencial de percepção, de ação de qualidade de presença e de expressão que pede apenas para se manifestar, bastando que uma atenção treinada se detenha sobre ela. (RUGIRA, 2008, p. 84)

reção é a de uma abordagem integradora, cuidadosa, criativa e formadora, com os aportes conceituais da abordagem experiencial, no âmbito de um projeto de formação de adultos e, em específico, de formação continuada de professores. Em uma abordagem experiencial, a centralidade no sujeito aprendente, em interações com outras subjetividades, está presente na teoria da formação, como a formulada pela especialista neste campo, a pesquisadora Marie-Christine Josso (2010). Ela discute o lugar que ocupam as experiências pelas quais se formam e transformam nossas identidades e subjeti-

Nesta pesquisa com professores, reconheço a importância

vidades e propõe que um processo de investigação-formação

de uma educação da atenção, compreendida nas condições

implica a pessoa na sua globalidade de ser, abarca dimensões

extracotidianas (RUGIRA, 2008), pela relação com o silêncio e

sensíveis, afetivas e lógicas.

a conversão do olhar para a interioridade do corpo, de modo a permitir uma articulação entre o sentir e o pensar, com a percepção e o pensamento no centro da relação. Na experiência de si, como diz a autora referida, na atenção do sujeito que aprende a deixar-se refletir sobre estar no mundo, para então, narrar, vislumbrando uma abertura de caminhos de transformação interior, ao mesmo tempo, de projeção nas relações que queremos tecer com o mundo. A proposta de compartilhar poéticas de artistas negras lança-se como aposta em um campo dialógico capaz de sus-

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através do corpo, que concentra nossa forma de desejo. A di-

A formação pode ser descrita por meio de gêneros de aprendizagem e de conhecimento tais como as aprendizagens psicossomáticas, as aprendizagens relacionais e técnicas, as aprendizagens reflexivas e os conhecimentos correspondentes. Esses gêneros designam outras tantas tomadas de consciência de nosso modo de ser em relação a nós mesmos e ao nosso ambiente natural e humano. Essa descrição seria incompleta se não lhe juntassem os diferente registros e referências, como o psicológico, o psicossociológico, o sociológico, o econômico, o político, o cultural e o espiritual, que exprimem também outras tantas tomadas de consci-


ência dos discursos possíveis sobre nosso estar no mundo. (JOSSO, 2010, p.314)

Neste quadro teórico, descrever a formação implica ter o foco nos processos, que em quaisquer ritmos e temporalidades, constituem a trama da vida e as simbologias elaboradas. A autora explica que pode ocorrer uma tomada de consciência

Sem um trabalho especificamente centrado nas tomadas de consciência de nossas ideias, nossas crenças, nossas convicções etc., para as quais o trabalho biográfico sobre as histórias narradas de formação é uma das vias possíveis, nós continuaremos profundamente prisioneiros de nossos destinos socioculturais e sócio-históricos. (JOSSO, 2002, p. 436)

pela narrativa de situações e acontecimentos vividos: as expe-

Nesta concepção está a ideia de que a tomada de cons-

riências trazidas à tona são tão variadas, que a melhor forma

ciência individual daquilo que constitui nossa subjetividade,

de as descrever consiste em narrar acontecimentos, atividades,

pelos processos de formação ou pelos temas dinamizadores,

situações ou encontros que servem de contextos para determi-

seja capaz de introduzir uma mudança qualitativa na relação

nadas aprendizagens. Deste modo, centrar-se nas narrativas,

consigo mesmo e com seu meio ambiente, que permite proje-

permite estabelecer marcos importantes no estudo dos proces-

tar-se e guiar transformações. Considerando uma perspectiva

sos de formação.

de formação como autoformação, a pesquisadora introduz a

As experiências que evocamos em nossa vida são consi-

ideia de uma progressão na ampliação e no aprofundamento

deradas inesgotáveis. Como a pesquisadora afirma, ao longo

da consciência. Partindo desta premissa, traz sentidos impor-

da vida algumas vivências têm intensidade particular, que se

tantes a partir da ideia de “caminhar para si” (JOSSO, 2010),

impõem à nossa consciência e nos são úteis nas relações co-

como perspectiva de formação de adultos e de professores.

nosco e com os outros. Essas são reconhecidas experiências

Com foco na atividade do sujeito, traz uma significativa repre-

formadoras, enquanto processo de conhecimento. Trata-se de

sentação do processo de conhecimento da existência: como

vivências que atingem o status de experiências a partir de um

uma viagem, ao longo do caminho o viajante pode reconsti-

certo trabalho reflexivo sobre o que nos passou, o que foi ob-

tuir o itinerário e os diferentes cruzamentos com caminhos de

servado, percebido e sentido. Assim, tomo o conceito de expe-

outros – as paradas longas, os encontros, desencontros, acon-

riência formadora (JOSSO, 2002), na compreensão de que os

tecimentos, explorações e atividades –permitindo-lhe compre-

relatos de uma narrativa de formação podem vir a ser trans-

ender o que o orientou. Como viajante, também pode fazer o

formadores, já que

inventário de sua bagagem: recordar sonhos, contar cicatrizes, descrever atitudes e comportamentos. Enfim, na bela síntese

95


da autora: “Ir ao encontro de si visa a descoberta e a compreensão de que viagem e viajante são apenas um.” (JOSSO, 2010, p.53). Importante destacar que no processo de conhecimento de si está em jogo não apenas os processos formativos ao longo da vida. Tem-se em vista a tomada de consciência de que reconhecer a si mesmo como sujeito, permite encarar o itinerário da vida, articular de forma mais consciente suas experiências formadoras, seus desejos e seu imaginário nas oportunidades socioculturais que soube aproveitar, criar e explorar. A fim de que haja transformação da vida sociocultural, com uma maior lucidez, diz a autora:

O processo de caminhar para si apresenta-se, assim, como um projeto a ser construído no decorrer de uma vida, cuja atualização consciente passa em primeiro lugar, pelo projeto de conhecimento daquilo que somos, pensamos, fazemos, valorizamos e desejamos na nossa relação conosco, com os outros e com o ambiente humano e natural. (JOSSO, 2010, p. 59) Tais proposições também ganham acordo com Nóvoa (2021), para o qual o lugar das experiências de vida na formação de professores reside na compreensão de que tornar-se professor implica integrar dimensões pessoais e profissionais, e ainda o desenvolvimento de uma vida cultural e científica própria, em espaços e tempos que permitam um trabalho de autoconhecimento, de autoconstrução. O professor António Nóvoa afirma que há uma ligação forte entre aquilo que somos e a maneira como ensinamos, justificando que [...] os professores, como pessoas, devem ter um contacto regular com a ciência, com a literatura, com a arte. É necessário ter uma espessura, uma densidade cultural, para que o diálogo com os alunos tenha riqueza formativa. Facilmente se compreende que quem não lê, muito, dificilmente poderá inspirar nas crianças o gosto pela leitura. E o mesmo se diga da Matemática, ou da História, ou das Artes… (NÓVOA, 2021, p.1122)

96


Em suas considerações, o pesquisador rei-

maior a capacidade de acolher as múltiplas dimensões da vida

tera que a formação é fundamental para cons-

dos sujeitos. Entremeia-se pelo campo da formação docente

truir a profissionalidade docente, não servindo

como movimento, dando valor à consciência e um estado de

apenas para preparar os professores do ponto

presença, imprescindíveis para o conhecimento e a prática de si.

de vista técnico, científico ou pedagógico. Afirma

É a expressão da caminhada, ao mesmo tempo da flexibilidade,

que não pode haver boa formação de professo-

com que se pode voltar e buscar intencionalmente algo que está

res se a profissão estiver enfraquecida, mas tam-

atrás dela para projetar o futuro. É movimento, é diálogo, é co-

bém insiste que não pode haver uma profissão

nhecimento. É a percepção de um passado-presente-futuro, um

forte se a formação de professores for desvalori-

tempo-lugar da formação.

zada e reduzida apenas ao domínio das disciplinas a ensinar ou das técnicas pedagógicas. Deste modo, as abordagens biográficas em pesquisa e em educação apresentam-se como uma via de conhecimento que enriquece o repertório epistemológico e metodológico de educadores. Lembrando que não há construção de uma identidade pessoal sem ancoragens coletivas – vivências e relações na família, pertenças a grupos diversos –, uma vez que o atravessamento com cada um guarda uma marca e uma possível história. À procura da inteireza, Sankofa contribui

3.2 NARRATIVAS DE SI: ALMA, OLHO, MÃO VIBRANDO FORÇAS VITAIS Se a narrativa é um pressuposto nas abordagens (auto) biográficas da pesquisa, reconheço também o exercício de narrar nas bases da tradição africana, no poder da oralidade e da palavra pela tradição viva. O vínculo com a tradição oral do povo fula – nação de pastores nômades que conduz seu rebanho pela África savânica –, levou o pesquisador Hampaté Bá a buscar o reconhecimento da oralidade africana como fonte legítima de conhecimento histórico. Com este escritor malinense, aprendo sobre a amplitude da fala e da escuta,

para uma abordagem biográfica da formação,

um conhecimento total, que envolve a totalidade do ser: “[...]

ampliando suas bases, a partir de uma perspecti-

sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda

va cuidadosa, criativa e, sobretudo, ancestral. As-

manifestação de uma só força, seja qual for a forma que as-

sim, amplifica a ideia de caminhar para si. Torna

suma, deve ser considerada como sua fala. É por isso que no

97


universo tudo fala: tudo é fala que ganhou forma e corpo”.

na referência de Walter Benjamin (1993, p. 221). A narração

(BÂ, 1982, p. 185)

envolve a alma, o olho e a mão, “em seu aspecto sensível,

Sinônimo da fala, a narrativa é reconhecida como uma

não são de modo algum o produto exclusivo da voz” (BENJA-

forma artesanal de comunicação pelo filósofo Walter Benjamin

MIN, 1993, p.222), pois toda ação faz vibrar forças vitais e,

(1993). Ele diz que narrativas contam os fios de nossa história

segundo a tradição viva, pode-se dizer que todo ofício manual

e aponta que a construção da experiência é possível através da

esculpe o ser do homem.

narratividade. Considera sua capacidade transformadora, ao

Pela sua vitalidade, defendo que narrativas de si precisam

mencionar que a verdadeira narrativa não se esgota, conserva

ser amplificadas, ser percebidas em suas tramas. E por isso,

suas forças mesmo depois de muito tempo e ainda é capaz de

devemos torná-las visíveis, transformar vozes em palavra/cor-

desdobramentos.

po, a fim de exaltar a qualidade das experiências, destacar a

A tradição viva percebe e qualifica o processo de falar

dimensão da existência, elevando assim a constituição de sua

como sagrado, que está ligada aos ofícios tradicionais artesa-

humanidade. Deste modo vislumbrei a pesquisa: com profes-

nais, junto aos ferreiros, tecelões e artesãos. O pensador ale-

soras de Educação Infantil, no tempo-espaço de encontros-a-

mão, por sua vez, refere-se ao tempo passado, aos artesãos,

teliês biográficos, a fertilização de narrativas – orais e escritas,

no meio dos quais o narrador revive e expressa suas histórias

bem como musicais, fílmicas, visuais e imagéticas –, geradoras

com o sentido de comunicar. Ambas as filosofias relacionam

de movimento e ritmo, vida e ação de acordo com o poder

as formas artesanais à atividade narradora. Falam do ato de

criador da fala humana.

narrar como uma relação viva de participação, que vem da

O uso das narrativas, no âmbito da formação, configu-

reunião de saberes e fazeres, e não apenas de passiva utiliza-

ra-se como estratégias formadoras de consciência numa pers-

ção de bens produzidos. Afirmam como o conhecimento pode

pectiva emancipadora, como já me referi em outro momento.

incorporar-se aos gestos e ações e à totalidade da vida através

E aqui trago outra contribuição:

da oralidade, de uma história contada-ouvida. Cada fala/narrativa entendida como um fio, revela em sua trama uma atividade que é estética, onde, traçar, matizar, carrega em si uma dimensão própria de quem enuncia, que deixa uma marca, “Como a mão do oleiro na argila do vaso”,

98

O professor constrói sua performance a partir de inúmeras referências. Entre elas estão sua história familiar, sua trajetória escolar e acadêmica, sua convivência com o ambiente de trabalho, sua inserção cultural no tempo e no espaço. Provocar que ele organize narrativas


destas referências é fazê-lo viver um processo profundamente pedagógico, onde sua condição existencial é o ponto de partida para a construção de seu desempenho na vida e na profissão. Através da narrativa ele vai descobrindo os significados que tem atribuído aos fatos que viveu e, assim, vai reconstruindo a compreensão que tem de si mesmo. (CUNHA, 1997, p. 2)

Através das narrativas de si, ou narrativas (auto)biográficas, é possível desvendar modelos e princípios que estruturam discursos pedagógicos. Souza (2008) reitera que o ato de lembrar e narrar possibilita ao sujeito-professor reconstruir experiências e criar espaço para refletir sobre sua prática. O pesquisador destaca ainda a perspectiva colaborativa da pesquisa com narrativas de formação, onde pesquisador e colaborador questionam suas ideias e práticas à medida que escutam e leem a narrativa do outro, instalando um efeito formador que possibilita apreender conhecimentos específicos sobre as traje-

seja na entrada pessoal, a partir de relatos e diários, ou temporal, considerando memórias e lembranças. Trata-se da vida singular e plural, privada e pública. A vida, compreendida em sua polissemia, a partir do interesse, da dificuldade e da pluralidade de formas da existência, para além do eu, nos laços com o outro e o mundo. O cheiro da morte ainda nos ronda e permanecemos afogados, devastados. Até hoje seguimos sem conseguir respirar. E, por isso, na pesquisa, é preciso ultrapassar limites, derramar-se em busca de ar, por outros caminhos, como propor a um grupo de professoras buscar, em si mesmas, a beleza das experiências sensíveis. Isto seja: chamar a participação em vivências que (re)conduzam a encontros com as histórias e culturas negras que acendem nossa humanidade, que fazem sair das bordas a sensibilidade para manifestar a vida. Desse modo, poderemos re-existir, além de resistir e sobreviver.

tórias individual e coletiva. Na prática de quem pesquisa, apresenta-se como desafio a comunicação das narrativas (auto)biográficas, de modo a tornar visível a construção da experiência do sujeito na dinâmica da vida, a partir de histórias pessoais, em interações com outras subjetividades, percebendo, no centro das narrativas de vida, como a formação se anuncia. Narrar histórias de vida significa construir um novo espaço-tempo para a busca do sentido da vida, de acordo com Pineau e Le Grand (2012),

99


100


IV

TRAMAS DA QUESTÃO RACIAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

101


A costura da Educação Infantil segue como um com-

de Niterói/RJ, com base em atos normativos. Em seguida, des-

plexo tecido entrelaçado pela diversidade étnico-racial.

taca marcos e concepções que envolvem a educação em Re-

Os sofrimentos que assolaram, e ainda assolam, o Brasil

lações étnicorraciais na Educação Infantil, considerando

no sombrio período entre 2018 e 2022, tempo do meu

a relevante atuação do Movimento Negro e a participação de

doutoramento, exigem de mim e de nós, mais do que

pesquisadores na implementação de políticas que envolvem as

nunca, um olhar cuidadoso à vida pregada nas margens.

crianças de zero a cinco anos; articula, ainda, as contribuições

Reivindicam atenção à presença daqueles e daquelas

de estudos recentes sobre Crianças, Educação Infantil e Relações

que asseguram a educação das infâncias, que apontam

Étnico-raciais. Levando em conta a prática de ERER, o capítulo é

a continuidade e viabilidade de seguir por entre os defei-

finalizado com a discussão e proposição de Outras imagens,

tos da tela e desafios da vida. A Educação Infantil, que

gestos e diferentes linguagens para educar crianças.

move esta teia, é a primeira etapa da Educação Básica, de acordo com a legislação nacional LDBEN/1996, e refere-se ao atendimento de crianças de zero a cinco anos, em instituições do tipo creches e pré-escolas. Assim,

4.1 NA CIDADE DE ARARIBÓIA, A EDUCAÇÃO INFANTIL DA REDE PÚBLICA

ao refletir sobre lembranças das creches em que atuei,

102

dos profissionais e familiares que conheci, pude perceber

Em cada canto do Brasil há uma história de luta dos povos

que as crianças me trazem o sentido do fio. São elas que

negros e indígenas, apesar de quase sempre serem focados

orientam meu posicionamento, na direção das escolhas e

no passado, e de forma secundária, nos livros. Por isso, como

cortes necessários, no tecido da vida.

dispõe a lei 11.645/08, torna-se importante abordar o tema

Tramado junto aos fios desta peça, a Educação Infan-

da diversidade étnico-racial afirmando traços históricos e cul-

til, este capítulo aborda questões conceituais e históricas

turais considerados significativos na formação da sociedade

em três partes que integram o âmbito da pesquisa. Ini-

nacional, resgatando as contribuições de negros e indígenas

cia pelo contexto em que a investigação foi realizada: Na

nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do

cidade de Araribóia, a educação Infantil na Rede

Brasil. Neste sentido, ao pensar na cidade que é cenário para

Pública apresenta breve histórico e organização curricular

esta investigação (haja vista que as professoras participantes

da Educação Infantil da rede pública de ensino da cidade

atuam nas unidades de educação infantil da rede pública de


Niterói), chama atenção o protagonismo de Araribóia na única cidade do Brasil fundada por um indígena. A primeira lembrança que tenho de Niterói é da estátua de Araribóia na praça no Centro da cidade. Eu tinha por volta de sete anos e atravessei a baía de barca com meu pai para passear em Jurujuba, bairro localizado em uma enseada da Baía da Guanabara, que abriga uma antiga colônia de pescadores. Lembro que na saída da estação das barcas do centro da cidade, encontrei a estátua do indígena. Ele está nu? Pensei, ao olhar a escultura. Até hoje, lá ele segue, como costumam dizer pela cidade: com os olhos voltados para a baía de Guanabara e protegendo a cidade de Niterói as suas costas.

Figura 15 - Estátua de Araribóia, na praça do mesmo nome, em frente à estação das Barcas, em Niterói. Imagem retirada da internet.

103


O cacique Araribóia foi um chefe da tribo dos temiminós,

de vida do estado. É um dos principais centros financeiros e

grupo indígena tupi que habitava o litoral brasileiro no Século

comerciais do estado do Rio de Janeiro. Por exemplo, no setor

XVI. Seu nome em tupi-guarani significa "Cobra da Tempesta-

de petróleo, a região responde por 70% do parque do setor,

de". Araribóia ajudou os portugueses na conquista da baía de

instalado no estado, concentrando desde empresas de offshore

Guanabara frente aos tamoios e franceses, em 1567. Como

a estaleiros. Tem a renda e a educação como responsáveis pela

recompensa, os portugueses lhe cederam uma região. Dizem

melhoria nas condições de vida da cidade.

que o cacique tupi apontou para o outro lado da baía e disse

Niterói é também a cidade brasileira que desponta no

que queria aquela região de "águas escondidas", que viria a

ranking como campeã em segregação racial, de acordo com

dar origem à atual cidade de Niterói, da qual é considerado

o mapa da segregação racial15 de 2015. O ranking mostra a

o fundador. O local era conhecido como "Band’Além". E foi

distribuição da população no país, onde brancos e negros não

para lá que Araribóia levou sua tribo, fundando a vila de São

ocupam os mesmos espaços. Revelando dificuldades para a

Lourenço dos Índios. Ele foi um personagem importante para

mobilidade social, acesso a serviços básicos e oportunidades

a história de Niterói e também da colonização portuguesa no

para o trabalho, o que faz, por exemplo, o niteroiense negro

Brasil. Tornou-se um personagem controverso, tido por alguns

pobre segregado do Morro do Caramujo continuar sendo um

como herói e por outros como traidor, como ressalta a pesqui-

negro pobre segregado. Na cidade, é possível identificar vá-

sadora Lia Bastos (2018), no livro “Niterói, terra de índio”.

rias contradições, apesar do cenário suntuoso. Inclusive, certo

Esta investigação foi delimitada à cidade de Araribóia, município de Niterói , que integra a região metropolitana do esta14

afastamento, invisibilidade e negação das referências indígenas ancestrais.

do do Rio de Janeiro, no Brasil. Foi capital estadual fluminense

No tocante ao fomento da produção cultural, a cidade de

até a fusão entre os estados do Rio de Janeiro e da Guanabara

Niterói conta com as ações da Secretaria Municipal das Cultu-

em 1974. Banhada pelas águas da Baía de Guanabara, ostenta um dos mais elevados índices de desenvolvimento humano do país e se destaca como o primeiro município em qualidade 14 Niterói é um município brasileiro da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro. Ver mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Niter%C3%B3i

104

15 A análise da segregação espacial tomou como base o indicador de raça e cor (colhido pelo IBGE, que classifica as respostas de acordo com a autodeclaração dos entrevistados); em conjunto com outros indicadores se tornou um modo eficiente de demonstrar que para entender as dinâmicas sociais no Brasil, levar em conta sua constituição de raça e cor é fundamental. Fonte: https://www. nexojornal.com.br/especial/2015/12/16/O-que-o-mapa-racial-do-Brasil-revela-sobre-a-segrega%C3%A7%C3%A3o-no-pa%C3%ADs


ras (SMC)16, órgão que planeja, coordena e executa políticas

do de Carvalho (na sede da Fundação), a Companhia de Ballet

públicas culturais, estimulando o resgate e o reconhecimento

da Cidade de Niterói e a Biblioteca Parque de Niterói. Vale res-

das expressões artísticas e identitárias, na sua diversidade, em

saltar que as instituições e equipamentos de cultura estão con-

diálogo com a sociedade civil e os movimentos artísticos dos

centrados no eixo Centro e Zona Sul da cidade.

territórios da cidade. O “Programa Cultura é um Direito” en-

Da cena cultural da cidade, também faz parte o Centro de

globa diversas ações estruturantes da SMC, que perpassam

Artes da UFF18, mantido pela Universidade Federal Fluminense19

vários projetos de políticas públicas culturais da cidade. Em no-

e localizado no prédio de sua reitoria, no bairro de Icaraí. Em

vembro de 2021, criou-se uma Carta de Direitos Culturais, um

sua estrutura, com um teatro, um cinema e uma galeria de arte,

pacto social para consolidar os direitos, promover, valorizar e

que abrigam exposições, shows, concertos, ciclos cinematográ-

estimular a democratização da cultura em uma época propícia

ficos, peças teatrais e apresentações diversas, promove uma

para avaliar o acúmulo dos últimos anos e as urgências real-

verdadeira e produtiva interação artístico-cultural com a comu-

çadas pela pandemia de Covid-19.

nidade. Os vários campi da UFF confundem-se com a geografia

A Fundação de Arte de Niterói (FAN) é uma instituição vin-

da cidade, localizados em vários bairros - Centro, São Domin-

culada à Secretaria Municipal das Culturas, que tem a finalida-

gos, Ingá, Santa Rosa, Vital Brasil - e incorporados à rotina dos

de de estimular e promover manifestações de caráter artístico

moradores. Costuma-se dizer que a universidade está para a

e cultural de interesse do município. São unidades da FAN, de

cidade assim como a cidade está para a Baía de Guanabara.

acordo com seu portal17, na categoria museus: o Museu de Arte

Pode-se dizer que a UFF e a cidade de Niterói formaram

Contemporânea (MAC) e o Museu Janete Costa de Arte Popular

ao longo dos anos uma parceria bem-sucedida. Em Niterói,

(MJCAP). Em teatros: o Teatro Municipal João Caetano, o Tea-

por exemplo, ficam situados o Hospital Universitário Antônio

tro Popular Oscar Niemeyer e a Sala Nelson Pereira dos San-

Pedro, a Reitoria, o Núcleo de Documentação, a Editora Uni-

tos. Com relação aos espaços Culturais: a Sala Carlos Couto, o

versitária, dentre outros. A maioria dos cursos de graduação,

Centro Cultural Paschoal Carlos Magno e o Solar do Jambeiro.

especialização, mestrado e doutorado são ministrados no mu-

E ainda: a Igreja de São Lourenço dos Índios, a Sala José Cândi16 https://www.culturaniteroi.com.br/cultura 17 https://culturaeumdireito.niteroi.rj.gov.br/fundacao-de-arte-de-niteroi

18 Para saber mais: https://www.facebook.com/centrodeartesuff/ http://www.centrodeartes.uff.br/?fbclid=IwAR2HL8QNGASRRnkslESA9PX_y47r7_0fS65b1moeEkUCNG9nV3EpJ8aGvac 19 https://www.uff.br/

105


nicípio. A universidade marca não apenas a cena urbana de

cunho comunitário ou filantrópico e jardins de infância ligados à

Niterói, mas também influencia a trajetória de formação de

Secretaria de Educação do Estado. Nesse contexto:

seus profissionais. Muitos estudantes, egressos dos cursos da universidade, trabalham nos serviços públicos da cidade. Em especial, os professores da Educação Básica são formados, em grande parte, pelos cursos de licenciatura da UFF. Retomando o destaque ao escopo desta reflexão, a Educação Infantil na cidade de Niterói, vale dizer que o atendimento educacional em creches e pré-escolas acompanhou de

106

O movimento de encarar crianças de zero a seis anos como cidadãs de direitos e de garantir sua educação começa a ser discutido efetivamente em Niterói a partir de 1994, quando se inicia processo de responsabilizar e transferir para a Secretaria e a Fundação Municipal de Educação o trabalho nas creches e pré-escolas, que antes eram administradas pela Secretaria de Bem-Estar Social. (NITERÓI, 2010, p.13).

certa forma a mobilização nacional pela conquista do direito

Em decorrência, no ano de 1994 foi criado o Programa

social das crianças de zero a seis anos à educação, a partir dos

Criança na Creche (Decreto Legislativo Nº 287/94), que marca

movimentos de mulheres e comunitários, bem como das lu-

o início da municipalização de creches e pré-escolas e a inser-

tas dos próprios profissionais da educação. O reconhecimento

ção das creches comunitárias conveniadas à rede de educa-

da Educação Infantil como dever do Estado, de acordo com a

ção pública. O ano de 1996 traz a elaboração do documen-

Constituição de 1988, possibilitou a construção de uma nova

to “Construindo a Educação Infantil do Município de Niterói”,

identidade às instituições que cuidam e educam das crianças

por meio de parceria da antiga Divisão Materno-Infantil, das

pequenas, sejam creches ou pré-escolas, apoiando a busca

equipes técnicas das Unidades de Educação Infantil com a UFF

contínua da superação de perspectivas de educação assisten-

(através do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa, Extensão e Es-

cialista e preparatória para o ensino fundamental.

tudo da criança de 0 a 6 anos). Destaco este documento por

No documento Referenciais Curriculares para a Rede Muni-

considerá-lo à frente do tempo, pela reunião de pressupostos

cipal de Ensino de Niterói: Educação Infantil – Uma construção

que orientam o trabalho na Educação Infantil, antes mesmo das

coletiva (NITERÓI, 2010), localizamos alguns acontecimentos

orientações nacionais, como o Referencial Curricular Nacional

que marcam a história da Educação Infantil na cidade. Segundo

para a Educação Infantil - RCNEI (1998) e as Diretrizes Curricu-

o documento, até a regulamentação nacional, que reconhece as

lares Nacionais para a Educação Infantil - DCNEI (1999; 2009).

crianças pequenas como cidadãs e com direito à educação, o

Observa-se que o município de Niterói acompanha os mo-

atendimento a essa população era realizado por instituições de

vimentos históricos e legais da Educação Infantil no país e os


órgãos competentes tomam a tarefa de aprofundar a discussão

tos constitucionais, reafirmados na legislação educacional

sobre concepções e práticas para a Educação Infantil, dentre

LDBEN/1996. Na direção de uma Educação Infantil compro-

as quais, inclusive, está a renomeação dos estabelecimentos

metida com os direitos das crianças, diz respeito ao reconhe-

públicos de educação infantil: no ano de 2000, os “Jardins de

cimento da constituição plural das crianças brasileiras, pois as

Infância ou Casas da Crianças passaram a se chamar Unidades

orientações reconhecem e indicam a necessidade de as pro-

Municipais de Educação Infantil (UMEIs)” (NITERÓI, 2010, p.13)

postas reconhecerem e respeitarem as especificidades indivi-

, responsáveis pelo atendimento do ciclo infantil, que passou a

duais e coletivas de todas as crianças.

atender crianças de 4 meses a 5 anos e 11 meses.

Tais determinações e orientações legais atravessam a luta

De 1998 a 2009 houve amplo debate entre profissionais

coletiva de profissionais na defesa de uma educação de quali-

para a instituição do Plano Municipal de Educação de Niterói,

dade como direito dos pequenos niteroienses. A produção de

para a definição de rumos e elaboração de proposta peda-

documentos para a educação da primeira infância no municí-

gógica visando especificamente a educação infantil. Nesse

pio é marcada pela participação coletiva e, mobilizadas pelas

percurso, percebe-se a articulação com as determinações e

ações da Coordenação de educação Infantil, refletiram-se em

orientações nacionais como, por exemplo, as DCNEI, cujo tex-

avanços legais.

to estabelece de forma clara que as propostas pedagógicas

A fim de garantir os conhecimentos indispensáveis à inser-

nesta etapa da Educação Básica devem respeitar as diferentes

ção social e cultural das crianças, foram estabelecidas apren-

identidades e proteger a dignidade da criança como pessoa

dizagens esperadas na Educação Infantil, a partir da Portaria

humana, o que passa por apoiar as crianças, desde cedo e ao

FME N˚ 085/2011, que institui na Rede Municipal de Ensino,

longo de todas as suas experiências educacionais, no seu inte-

as Diretrizes e os Referenciais Curriculares e Didáticos. No dis-

resse e curiosidade pelo conhecimento do mundo, possibilitar

posto para a Educação Infantil, o documento esclarece que

o acesso a diferentes linguagens e, sobretudo, contribuir para

não se deve pautar em conteúdos compartimentalizados, mas

o fortalecimento de sua autoestima e também a aceitação e

basear-se em conceitos que constituem pressupostos de todo

acolhimento das diferenças entre as pessoas.

o trabalho com as crianças: os eixos temáticos de estudo e

O documento sustenta uma concepção de infância como

pesquisa - Linguagens, Tempo e Espaço, Ciências e Desenvol-

sujeito de direitos, como não poderia deixar de ser, haja vis-

vimento Sustentável -, devem ser atravessados pelos pressu-

ta que a legislação deve guardar coerência com os precei-

postos transversais - brincar, cuidar/educar, relação espaço/

107


tempo, múltiplas linguagens, letramento, coletividade e singu-

O referido documento esclarece ainda que os profissionais

laridade, autonomia, sensibilidade e afetividade, diversidade

que atuam nas UMEI têm a formação mínima em Magistério,

cultural e cidadania -, que perpassam, conectam e comple-

modalidade Normal, ainda que grande parte tenha formação

mentam os eixos curriculares com o propósito de alinhavar as

em nível superior. As unidades também dispõem de pedagogos,

práticas cotidianas.

merendeiros, profissionais de apoio e auxiliares administrativos.

O documento que venho apresentando para compor um

Existe grande preocupação com a formação continuada e em

traçado geral da história da Educação Infantil pública de Ni-

serviço dos profissionais, no sentido de produção do conheci-

terói (NITERÓI, 2010), exibe uma proposta curricular voltada

mento no campo teórico de atuação e ainda na qualificação das

para a cidadania e para a diversidade cultural, tendo por pres-

ações pedagógicas em creches e pré-escolas. Nessa direção, de

suposto que as crianças são sujeitos múltiplos e diversos e a

acordo com o documento citado, semanalmente nas UMEI, às

infância é reconhecida como tempo de direitos e deveres. Nes-

quartas-feiras, por 2 horas, acontecem as reuniões de planeja-

sa direção, o trabalho pedagógico realizado com grupos de

mento que tem caráter informativo, organizacional, avaliativo e

crianças organizados exclusivamente por idade, deve levar à “[...] constituição de sujeitos ativos, formuladores de hipóteses, criativos, reflexivos e transformadores.” (NITERÓI, 2010, p.22). A cidadania é entendida como um pressuposto fundamental das práticas educativas emancipatórias: segundo as orientações, a partir da reflexão de suas práticas cotidianas, educadores das infâncias precisam romper com padrões dominantes recriando uma nova visão de homem e das relações sociais. Salienta a importância de preocupar-se com os saberes das populações do campo, das florestas, indígenas, quilombolas e afrodescendentes, contemplando a diversidade cultural constitutiva da sociedade. Entende que a Educação Inclusiva será possível, a partir de oportunidades de aprendizagens sensíveis ao que é próprio de cada grupo.

108

formativo, constituindo-se, também, como espaço para a Formação Continuada dos seus profissionais. Em contato com profissionais da rede, tive conhecimento que desde o ano de 2019 os Referenciais Curriculares da Educação Infantil da Rede Municipal de Niterói estão sendo revistos e atualizados. Considerando a chegada de novos profissionais, a criação de novas unidades e as mudanças da dinâmica social, as Unidades de Educação Infantil foram convidadas pela Diretoria de Educação Infantil - FME/Niterói-RJ a compartilharem suas leituras e reflexões sobre os referenciais anteriores, suas percepções sobre as orientações do Ministério da Educação de 2017 (Base Nacional Comum Curricular – BNCC), a pertinência de potencializar temas já presentes no documento de 2010 e a possibilidade de abordar questões atuais que envolvem a Educação Infantil.


Nota-se, pelos movimentos implementados e pelos do-

tema “Racismo/Relações Étnico-Raciais” desde 2011, segundo

cumentos produzidos, que na rede municipal de Niterói há

a análise de micro dados do SAEB. Considerando uma radio-

preocupação para que o atendimento às crianças guarde a

grafia do município de Niterói, sob um olhar qualitativo, a pes-

qualidade necessária. Nota-se, também, que nos últimos anos

quisadora aponta algumas ausências.

houve um crescimento na rede física vinculada à expansão da

No âmbito da Educação Infantil, revela a generalidade

educação infantil na cidade. No ano de 2020, a Rede Mu-

dos temas entre os projetos temáticos que circulam na muni-

nicipal de Educação Infantil de Niterói contava com um total

cipalidade. Nota-se que as propostas oferecidas, entre brin-

de 78 instituições, distribuídas em 42 Unidades Municipais de

cadeiras, oficinas, contações de histórias, não apresentam o

Educação Infantil (UMEI), 03 Núcleos Avançados de Educação

devido destaque para as questões étnico-raciais. Segundo a

Infantil (NAEI), 20 Creches Comunitárias conveniadas e 13 Es-

pesquisadora, pode se dizer que houve crescimento de pro-

colas de Ensino Fundamental com Educação Infantil. 69 unida-

jetos temáticos, mas ainda há ausência de comprometimento

des funcionam em horário integral, 12 das quais atendem às

com a valorização da identidade, da cultura e da história de

crianças a partir de quatro meses de idade.

negros e indígenas (RIOS, 2021). Há propostas direcionadas às crianças de zero a seis anos, contudo não há identifica-

4.2. RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

ção com a cultura popular ou para com as culturas negras e indígenas, tampouco aparecem aprofundamentos acerca da diversidade étnico-racial. Contudo, sabe-se que o sucesso das políticas públicas de

Um levantamento realizado e apresentado pela pesqui-

Estado, institucionais e pedagógicas, depende necessariamen-

sadora Flávia Rios (2021) , aponta que as escolas da Educa-

te de condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas favorá-

ção Básica da rede municipal de Niterói vêm aumentando de

veis para o ensino e para as aprendizagens. Avançar depende

modo expressivo a realização de projetos específicos com o

também da reeducação das relações entre negros e brancos,

20

conforme postulam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Informações obtidas por meio de palestra da Prof. Drª. Flávia Rios (UFF) no Ciclo de conversas do FIAR/2021: Tramas afro-Brasileiras, na pauta: "A aplicação das leis 10.639/03 e 11.645/08 na cidade de Niterói". Disponível em https://www.facebook.com/fiar. pesquisa/videos/317536950067089 20

Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2004). Assim, é importante salientar que creches e escolas têm um papel importante a cumprir: educar para as relações étnicorra-

109


110

ciais positivas no compromisso em promover a igualdade racial

LDBEN/96, a partir da lei n. 10.639/2003, que estabelece o

na educação das crianças. O que implica não silenciar diante

ensino da História da África e da Cultura afro-brasileira nos sis-

dos preconceitos e discriminações raciais e ainda promover prá-

temas de ensino, e da Lei 11.645/2008, que dá a mesma orien-

ticas e estratégias de promoção da igualdade racial no cotidiano

tação quanto à temática indígena. Ambas, são reconhecidas

das escolas e creches. Professores e educadores devem assumir

como instrumentos de orientação no combate à discriminação e

verdadeiramente esse compromisso. A escola tem a responsa-

reconhecem que indígenas e negros convivem com problemas

bilidade social e educativa de compreender a complexidade da

de mesma natureza, embora em diferentes proporções.

identidade negra, respeitá-la e lidar positivamente com a mes-

Para firmar o compromisso com a educação de relações

ma, o que demanda saber mais sobre as histórias e as culturas

étnico-raciais positivas e com intenção de regulamentar a

africana e afro-brasileira. Para romper com a ideia de “paraíso

alteração trazida ao art. 26-A e 78-B da LDBEN/96, institui-

racial” e implementar ações afirmativas, a escola pode e deve

-se as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das

contar com as contribuições do Movimento Negro.

Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultu-

O Movimento Negro reivindica condições dignas de vida

ra Afro-Brasileira e Africana - DCN-ERER, através do Parecer

e oportunidades iguais para toda a sociedade, principalmente

03/2004, de 10 de março, aprovado pelo Conselho Pleno do

para os grupos sociais e étnico-raciais que vivem um históri-

Conselho Nacional de Educação (CNE). Vale lembrar que as

co comprovado de discriminação e exclusão. Desde os anos

diretrizes são reconhecidas como dimensões normativas, regu-

1980, luta pela implementação de políticas sociais específi-

ladoras de caminhos que devem ser pavimentados na garan-

cas que contemplam políticas de igualdade racial. Um marco

tia, no reconhecimento e na valorização das histórias e culturas

de sua organização foi a Marcha de Zumbi dos Palmares em

plurais que compõem a nação brasileira.

1992. Desde lá, foram produzidos conhecimentos importantes

Neste contexto, a presente tese utiliza o termo diversida-

a favor da valorização da cultura, da história e dos saberes

de étnico-racial considerando o conceito de etnia empregado

construídos pela comunidade negra, da interpretação crítica

por intelectuais como Cashmore (2000, p.196), que o defi-

sobre a realidade racial brasileira e das lutas da população

ne como “Um grupo possuidor de algum grau de coerência e

negra em prol da superação das desigualdades.

solidariedade, composto por pessoas conscientes, pelo menos

Entre as conquistas a partir de mobilizações coletivas,

em forma latente, de terem origens e interesses comuns”. Na

no âmbito das políticas públicas, destaca-se a alteração da

abordagem sobre diversidade étnico-racial, refere-se ao per-


tencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros grupos em nossa sociedade.

A educação das relações étnico-raciais na Educação Infantil foi objeto de discussão, ainda nos anos 2000, a partir da

O termo Educação das Relações Étnico-raciais aparece

articulação de diferentes órgãos na produção de um Plano Na-

pela primeira vez no texto do parecer que aprova as DCN-E-

cional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais

RER, e faz referência ao objetivo de:

para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de

[...] divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. (BRASIL, 2004, p. 1)

Educar crianças, negras e não-negras, para que se reconheçam na cultura nacional exige professores qualificados e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnico-raciais. Para isso, é fundamental que estejam comprometidos com a educação de negros e brancos, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes e palavras que impliquem desrespeito e discriminação. Essas são medidas que devem ser compartilhadas pelos sistemas de ensino, estabelecimentos, processos de formação de professores, comunidade, professores, alunos e seus pais. Desde a Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, as Diretrizes ERER trazem orientações, princípios e fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da Educação, a serem observadas pelas Instituições de ensino, em todos os níveis e modalidades da Educação Brasileira.

História e Cultura Afrobrasileira e Africana (2009). Acerca do papel da Educação Infantil, afirma-se que Os espaços coletivos educacionais, nos primeiros anos de vida, são espaços privilegiados para promover a eliminação de qualquer forma de preconceito, racismo e discriminação, fazendo com que as crianças, desde muito pequenas, compreendam e se envolvam conscientemente em ações que conheçam, reconheçam e valorizem a importância dos diferentes grupos etnico-raciais para a história e a cultura brasileiras. (BRASIL, 2009, p. 47-48)

O documento destaca ainda a importância dos professores que atuam na educação infantil, reconhecendo que estes devem desenvolver atividades que possibilitem e favoreçam as relações entre as crianças na sua diversidade. No eixo “Principais Ações para a Educação Infantil”, recomenda-se “Assegurar formação inicial e continuada aos professores e profissionais desse nível de ensino para a incorporação dos conteúdos da cultura Afrobrasileira e indígena e o desenvolvimento de uma educação para as relações etnico-raciais”. (2009, p.48) Em outra ação, recomenda-se: “explicitar nas Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Infantil a importância da

111


implementação de práticas que valorizem a diversidade étnica, religiosa, de gênero e de pessoas com deficiências nas redes de ensino”. Este ponto resultou em enfrentamento de desafios e importantes conquistas, como discorrem as pesquisadoras Lucimar Dias e Maria Aparecida Bento (2007), ao abordarem sobre as conquistas entre os desafios, acerca da relação entre Educação Infantil e Relações Raciais. As autoras contam que nos debates sobre a revisão

Art. 7.º V - construindo novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de dominação etária, socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa. (BRASIL, 2009)

e atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil21, articularam-se a Coordenação Geral de Educação Infantil (COEDI), o Centro de Estudos

Importante trazer o discurso que atravessa o Parecer CNE/

das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e o

CEB nº 20/2009, que aprovou as referidas DCNEI, pela sua cla-

Grupo de Trabalho 21 – Afro-brasileiros e educação, da

reza e força de enunciação sobre questões ainda não superadas

Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em

e, por isso mesmo, regulamentadas em lei. O parecer destaca:

Educação (ANPEd). Este movimento resultou em uma articulação nacional com vistas a defender que as DCNEI contemplassem a diversidade étnico-racial, até que na discussão do novo texto, indicou-se de forma explícita que as propostas pedagógicas da educação infantil devem considerar, dentre outros, o seguinte princípio:

As audiências aconteceram em São Luís (MA), Brasília (DF) e São Paulo (SP), entre julho e outubro e as Diretrizes foram aprovadas pela resolução RESOLUÇÃO Nº 5, DE 17 DE DEZEMBRO DE 2009. 21

112

A valorização da diversidade das culturas das diferentes crianças e de suas famílias, por meio de brinquedos, imagens e narrativas que promovam a construção por elas de uma relação positiva com seus grupos de pertencimento, deve orientar as práticas criadas na Educação Infantil ampliando o olhar das crianças desde cedo para a contribuição de diferentes povos e culturas. Na formação de pequenos cidadãos compromissada com uma visão plural de mundo, é necessário criar condições para o estabelecimento de uma relação positiva e uma apropriação das contribuições histórico-culturais dos povos indígenas, afrodescendentes, asiáticos, europeus e de outros países da América, reconhecendo, valorizando, respeitando e possibili-


tando o contato das crianças com as histórias e as culturas desses povos. (BRASIL, 2009, p.10)

contrados trabalhos dos anos 2017, 2020 e 2021. Foram en-

A partir de mobilizações coletivas, vários documentos ofi-

os anos de 2018 e 2019, publicados no idioma português em

ciais foram instituídos, sendo estes fundamentais para construir

três revistas científicas: (2) Educação & Sociedade; (1) Educar

no dia a dia das creches, pré-escolas e escolas, atitudes efeti-

em Revista; (1) Revista Portuguesa de Educação. As informa-

vas e intencionais que podem demonstrar o compromisso com

ções dos artigos estão disponíveis no anexo 01, por ordem de

a questão racial. Contudo, sabe-se que a garantia legal dos

publicação, a partir do ano, título, autoria e palavras-chave.

direitos não promove sua concretização.

Aqui, faço um apanhado geral dos conteúdos identificados nas

Das conquistas realizadas desde a alteração na LDBEN/96,

contrados quatro artigos em coleções do Brasil e Portugal entre

produções levantadas.

com a Lei n.º 10.639/03 e a lei n.º 11.645/08, e da imple-

“O mito da ausência de preconceito racial na educação

mentação de documentos norteadores das políticas educacio-

infantil no Brasil” (MARQUES; DORNELLES, 2019), é resultado

nais nacionais, com as DCN-ERER (Parecer CNE/CP nº. 03 de

de estudo que teve o propósito de investigar o modo como

10 de março de 2004) e as DCNEI (Parecer CNE/CEB nº. 20

as culturas africanas são apresentadas às crianças de zero a

de 09 de dezembro de 2009), temos evidenciado a impor-

três anos, no sentido da implementação do Art. 7º, inciso V,

tância da educação das relações étnico-raciais na Educação

das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil

Infantil e a relevância do aprofundamento do tema em estudos

(DCNEI). A investigação foi realizada em 11 escolas de Educa-

e pesquisas. De tal modo, considerei importante, a partir de

ção Infantil que atendem crianças de zero a três anos, sendo

sugestões da banca de qualificação, fazer um levantamento

três públicas (EMEI) e oito de iniciativa privada (EEI) da cidade

de trabalhos recentes sobre a temática, no sentido de analisar

de Porto Alegre. O trabalho mostrou que a maioria dos profis-

contribuições e ressonâncias das deliberações legais, na pes-

sionais desconhece as DCNEI, após dez anos de promulgação

quisa e na prática pedagógica.

das DCNEI, como vemos na seguinte formulação:

Fui à base de dados SciELO - Scientific Electronic Library On-line e, para a busca, utilizei os descritores “Crianças”; “Educação Infantil”; “Relações Étnico-raciais”, a partir do índice “Resumos”, em busca de publicações dos últimos cinco anos (2017-2021). Nos resultados da busca, não foram en-

Ainda com relação às DCNEI, documento elaborado pelo MEC, que deveria orientar a construção dos PPP, somente três gestoras entrevistadas afirmaram conhecer e já terem trabalhado com esse material em reuniões pedagógicas (GE1, GE4 e GE5). As demais não conhecem ou não souberam responder. Uma das gesto-

113


ras, que é graduada em Psicologia (GE7), afirmou não ver necessidade de trabalhar as DCNEI com seu grupo de professoras. (MARQUES; DORNELLES, 2019, p. 100).

Sobre este ponto, problematizam as autoras: Conhecer esse e outros documentos, tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), é, ou deveria ser, um mote para a problematização das questões raciais que atravessam as rotinas e os espaços da Educação Infantil no país. (MARQUES; DORNELLES, 2019, p. 101)

nadas ao tema em questão. (MARQUES; DORNELLES, 2019, p. 102)

As experiências de crianças pretas em pesquisas acadêmicas e na literatura infantil são evidenciadas no artigo “Vozes de crianças pretas em pesquisas e na Literatura: esperançar é o verbo” (ARAÚJO; DIAS, 2019). Considerando a criança como um ser integral, que elabora, refuta e reconstrói hipóteses acerca de si e do mundo à sua volta, referencia-se nas vozes de crianças pretas que acionam novos sentidos acerca de suas trajetórias, a partir da literatura infantil selecionada. Isso instigou a identificar em algumas pesquisas o que as crianças

Os profissionais afirmaram que não ocorrem problemas raciais na Educação Infantil, justificando que as crianças nesta

com suas visões acerca do mundo e de seus pares.

idade são pequenas e não percebem tais diferenças. O estudo

Segundo as autoras, elementos acerca das curiosidades e

também identificou que praticamente não há materiais didá-

indagações das crianças sobre a cultura africana e afro-brasi-

ticos e imagens de pessoas negras nos espaços das escolas

leira foram captados em algumas das pesquisas levantadas, o

pesquisadas.

que as leva a ponderar sobre a necessidade de ouvir as crian-

O cenário torna-se ainda mais agravante, visto que No que se refere a ações antirracistas no dia a dia das escolas, as gestoras entrevistadas afirmaram que promovem essas ações e apontaram os dias 13 de maio [2] e 20 de novembro [3] como os momentos em que elas acontecem. Somente uma dessas gestoras (GE3) afirmou que tais ações ocorrem no cotidiano. Ao serem indagadas sobre quais documentos orientam essas ações, nenhum dos referidos foi elencado por elas. Entre as professoras, apenas P6 e P8 afirmaram já ter desenvolvido práticas relacio-

114

pensam sobre a questão racial e suas identidades, em diálogo

ças para a criação de pedagogias de combate ao racismo e a discriminações. Como apontaram, em diálogo com as pesquisas analisadas, [...] é parte da construção de uma pedagogia antirracista ouvir os sujeitos sobre o que querem aprender pois, como foi possível constatar [em uma das pesquisas], as crianças pautaram questões muito significativas e que abrem caminhos frutíferos para um efetivo trabalho com a cultura africana e afro-brasileira sob perspectivas distintas do que comumente tem sido oferecido a elas:


parte de crianças maiores, é um dos aportes culturais mais acessíveis e acessados no espaço escolar. Assim, ela pode contribuir efetivamente para a proposta de ampliação dos repertórios culturais, de interpretações sobre o mundo e sobre si mesmas. (ARAÚJO; DIAS, 2019, p. 10).

um olhar histórico e cultural com foco na escravização. (ARAÚJO; DIAS, 2019, p. 5)

Ao se pensar a escola e a educação das relações étnico-raciais, outro aspecto importante a ser considerado diz respeito à própria formação de professores. Não há dúvidas de que a presença adulta entre as crianças, ratificada pela condição de autoridade docente, dizendo como elas devem se dirigir às outras, impacta de modo crucial suas identidades, incidindo na direta valorização de pessoas brancas, que teriam cor de pele, e subalternizando as demais, sobretudo pretas. Tal contexto, que deveria ser uma exceção à regra, considerando os anos já passados desde a aprovação da lei 10.639/2003, revela-se mais comum do que se espera. (ARAÚJO; DIAS, 2019, p. 7)

Portanto, aspectos da formação docente são apontados, com destaque especial à necessidade de uma educação literária que contemple a diversidade étnico-racial, uma vez que “no tocante aos processos formativos de professoras e professores, elas [as crianças] denunciam, alertam e constrangem, evidenciando o quanto, acerca da educação das relações étnico-raciais, não é mais possível improvisar” (ARAÚJO; DIAS; 2019, p.18). Neste sentido, as autoras reafirmam ser necessário e urgente trabalhar na direção do que defende as DCN-ERER:

As autoras assinalam que as crianças pretas falam e, a

"[...] desfazer mentalidade racista e discriminadora secular,

partir da escuta dessas vozes, somos instigados a pensar sobre

superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações

suas experiências.

étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos" [..] a predominância das falas ressalta um quadro negativo que aciona para a necessidade de uma escuta ativa sobre o que nos dizem as crianças acerca da violência simbólica que permeia suas experiências e lhes provocam dor. E quando pensamos principalmente nas crianças pequenas, as imagens, as brincadeiras e o lúdico ganham maior importância pois é por meio desses aportes culturais que elas interagem com o mundo e constroem seus repertórios, suas histórias de vida e suas possibilidades de existência. Entendemos que a literatura, ainda que a despeito de uma suposta desvalorização por

(BRASIL, 2004, p. 6). O artigo “Questões Raciais para Crianças: resistência e denúncia do não dito” (MOTTA; DE PAULA, 2019) resulta da pesquisa desenvolvida entre 2014 e 2016 numa creche vinculada a uma instituição federal do Rio de Janeiro, que versou sobre os efeitos de uma educação antirracista para a subjetividade das crianças. Teve por objetivo identificar os aspectos decorrentes do Parecer CNE/CP 003/2004, da Lei 10.639/2003 nas práticas educacionais da educação infantil e discutir como

115


as questões raciais influenciam a vivência das práticas peda-

tinha o brinquedo retirado de sua mão por outras crianças. (MOTTA; DE PAULA, 2019, p.11).

gógicas nos espaços educativos voltados à primeira infância. Sobre a existência ou não de uma educação antirracis-

O estudo concluiu que, embora a creche analisada se

ta na creche, os autores apontam que foi necessário tratar as

adeque à legislação ao inserir a temática das relações étni-

questões relativas à raça e ao racismo a fim de desvelar o não

co-raciais como tática para a educação, é necessário ainda a

dito, ou seja, o sentimento racista presente na sociedade, que

presença de um corpo técnico consciente da temática antirra-

pode ser tomado como algo que se enuncia, sem palavras e

cista. “Há que se mobilizar todos(as) envolvidos(as) no proces-

sem a assinatura responsável daquele que o formula.

so. Construir um projeto de dizer antirracista que se materialize

Nessa tensão de construção identitária, foi possível encontrar o não dito em vários textos: nas fichas de matrícula que não solicitavam a informação cor/raça, nas interações entre pares, nas ações pedagógicas que, embora tratando em vários momentos de diversidade, não traziam explicitamente as questões relativas ao racismo, e nos projetos de trabalho, que seguiam caminho semelhante. (MOTTA; DE PAULA, 2019, p.9)

Entre as crianças, foi possível observar a ação da cultura de pares e a forma como se apropriaram do racismo. Digno de nota é a oferta de bonecas negras presentes nos brinquedos da escola. Para educação antirracista, é fundamental a presença delas como opção de reconhecimento e valorização das crianças negras. Deixadas à disposição, entretanto, sem uma ação que afirme seu valor e sua beleza, perdem o sentido antirracista desejado. Isso ficou comprovado ao ser verificado que a única aluna negra da sala não era plenamente aceita pelas outras crianças. Ela tentava se enturmar, porém era constantemente excluída ou

116

no fazer cotidiano.” (MOTTA; DE PAULA, 2019, p. 16) O artigo “As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil” (ARAÚJO, 2018) reúne a síntese dos resultados de pesquisas sobre a produção literária infantil e juvenil na dimensão das relações étnico-raciais. Trata-se de um breve panorama, complexo e dicotômico, traçado a partir da análise de 13 trabalhos acadêmicos (teses e dissertações) do campo da Educação, desenvolvidas entre os anos 2003 a 2014, que investiram o olhar sobre a Literatura Infantil e Juvenil na dimensão das relações étnico-raciais. A partir dos dados quantitativos, foi possível identificar os locais predominantes de produção acadêmica com tais temáticas, bem como os anos mais produtivos no campo. As regiões brasileiras de onde provieram as teses e dissertações foram: Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste, com três trabalhos cada, e Sul, com quatro. O ano predominante da produção foi 2012, com cinco pesquisas.


Os estudos indicaram um consenso sobre mudanças, ain-

No âmbito da educação de crianças de zero a cinco anos,

da que diminutas, na representação de personagens negras a

os estudos apontam alguns desafios para a Educação das Re-

partir de publicações literárias mais recentes, embora negras

lações étnico-raciais. Apesar das reivindicações contínuas do

e negros ainda sejam minoria como personagens no universo

campo, alguns temas ainda se apresentam como pautas neces-

literário infantil e juvenil de modo geral. Segundo a autora:

sárias. No que tange às políticas públicas, a implementação de

[...] no universo geral dos acervos, ainda se pode categorizar as personagens negras em condições de sub-representação, além de uma reiteração da branquidade normativa (VENÂNCIO, 2009; OLIVEIRA, V.C., 2010) operando tanto na melhor elaboração de personagens brancas, como na pressuposição de leitoras e leitores brancos. Também foi possível observar, pelos resultados das pesquisas, que quanto mais antiga seja a obra, maiores são as chances de conter estereótipos negativos e racismo implícito ou explícito. (ARAÚJO, 2019, p. 73)

ações a favor da ERER, principalmente para a formação continuada de professores, envolvendo a ampla divulgação de documentos norteadores, estudos e pesquisas de modo a promoverem o debate acerca da pauta racial nas instituições escolares públicas e privadas de Educação Infantil. Nas discussões sobre currículo, a construção coletiva do Projeto Político Pedagógico das unidades, com a participação de professores e profissionais, considerando princípios éticos, políticos e estéticos, bem como a inclusão da diversidade étnico-racial nas propostas pedagógi-

E entre as lacunas identificadas por este levantamento,

cas, como orientam as DCNEI. Com relação à prática pedagó-

está o pouco investimento de estudos na recepção da leitura

gica, a conscientização e valorização de ações promotoras da

literária, em especial com crianças pequenas.

igualdade racial em creches e escolas, no dia a dia, para além

Mais do que evidenciar o racismo, o estereótipo, estigmatização ou a valorização da cultura africana e afro-brasileira ou, ainda, a beleza estética e literária nos enredos e nas ilustrações, o que os resultados dessas poucas pesquisas demonstraram é a necessidade de investigação de como o público leitor, principalmente em formação, interpreta tais obras e quais as possibilidades de ampliação dos referenciais de mundo. Acrescenta-se o caso da educação infantil que pouco foi considerada, tanto nas análises sobre o livro como, de modo algum, na recepção por parte das crianças. (ARAÚJO, 2019, p. 74)

da data de 20 de novembro instituída por lei. Sobre a concepção de criança, a compreensão da criança negra como um ser integral, que elabora, refuta e reconstrói hipóteses acerca de si e do mundo à sua volta, inclusive de sua identidade nas relações que estabelece com seus pares. Na construção de pedagogias, acolher as vozes dos sujeitos e seus interesses sobre o que querem saber acerca da história e cultura dos povos originários, assumindo perspectivas participativas e antirracistas.

117


De modo específico, no interesse desta investigação, apre-

presente tese, que se compromete com a valorização

senta-se o papel de professores da Educação Infantil, no que

da identidade, da cultura e da história da população

tange à sensibilidade, visto a necessidade de uma escuta ativa

negra e apresenta como contribuição para se pen-

das experiências das crianças acerca da violência simbólica

sar/fazer formação docente em íntima relação com

que permeia suas experiências e lhes provoca dor. A atuação

os princípios éticos, políticos e estéticos referenciados

da professora está na organização de tempos, espaços e brin-

em poéticas negras.

cadeiras que incluam a diversidade étnico racial e promovam a educação das relações étnico-raciais; no zelo e cuidado na seleção de imagens, personagens, brinquedos, materiais e livros de literatura infantil, para que no cotidiano, possibilitem o

4.3. OUTRAS IMAGENS, GESTOS E DIFERENTES LINGUAGENS PARA EDUCAR CRIANÇAS

acesso das crianças ao acervo e à circulação de obras literárias com temática africana ou afro-brasileira. E, ainda, o acréscimo

Primeiro andar do Museu de Arte de São Paulo

de outros aportes culturais, considerando o papel da escola no

Assis Chateaubriand - MASP, no painel de abertu-

alargamento dos repertórios culturais de crianças e adultos, de

ra da exposição “Histórias da infância"22, realizada

interpretações sobre o mundo e sobre si mesmas.

em julho de 2016, mostrava três obras de arte. No

A conscientização de que a educação em todos os níveis é

conjunto, víamos a exibição de representações da

desafiada pela diversidade provoca-nos a compor uma teoria

infância de diferentes maneiras, a partir de pinturas

educacional que destaque aquilo que nos une sem perder de

e fotografias. Fascinação (1909), uma pintura de

vista o que nos diferencia. O debate acerca das questões raciais

Pedro Peres; Rosa e azul - As meninas Cahen d’ An-

e a análise da realidade desafiam-nos a uma discussão criadora

vers (1881), pintura de Pierre-Auguste Renoir; a fo-

capaz de produzir pedagogias da diversidade (GOMES, 2017),

tografia sem título da série Brasília Teimosa (2005),

pois tensiona, desse modo, a pedagogia tradicional.

de Bárbara Wagner.

Esses elementos identificados, pelas pesquisas e publicações consultadas, como desafios e possibilidades para a reestruturação das relações étnico-raciais e sociais na educação infantil, garantindo os preceitos legais, corroboram a relevância da

118

22 Na equipe da exposição: organização e curadoria de Adriano Pedrosa, diretor artístico; Fernando Oliva, curador; Lilia Schwarcz, curadora-adjunta de história do MASP. Confira: https://masp.org.br/exposicoes/historias-da-infancia


Figura 16 - Painel de abertura da exposição “Histórias da infância” (2016). https://masp. org.br/exposicoes/historias-da-infancia

119


Figura 17 - Pedro Peres. Fascinação (1909). Óleo sobre madeira, 35,7 X 31,2 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Figura 18 - Pierre-Auguste Renoir. As Meninas Cahen d'Anvers - Rosa e Azul (1881). óleo sobre tela, 119x74cm. Acervo do Museu de Arte de São Paulo. Figura 19 - Bárbara Wagner, Sem título da série Brasília Teimosa (2005).Jato de tinta, Coleção Pirelli MASP.

120


121


O contraste entre as imagens impressiona: um quadro ex-

rebaixada em até 30 cm em relação à convenção do eixo de

põe duas meninas brancas e europeias, vestindo roupas ricas

visão do espectador nos museus. A mostra incluiu histórias das

e elaboradas com laços de cetim azul e rosa, obra reconheci-

próprias crianças, considerando que há o que aprender com

da como ícone do acervo do MASP. Ao seu lado direito, uma

essas trocas. Assim, em pé de igualdade com os demais tra-

fotografia apresenta uma dupla de crianças negras sob o sol,

balhos, foram expostos desenhos feitos por crianças nos anos

vestindo sungas vermelha e azul, no despojamento e ao ar

1970, anos 2000 e mais recentemente em 2016, todos do

livre do Brasil. No seu lado esquerdo, uma pintura de peque-

acervo do museu.

nas dimensões mostra uma criança negra vestida de maneira

É muito significativo, sem dúvida, um museu reconhecer a

simples, um vestidinho leve, em tom rosa, que parece se as-

infância como um conceito plural. Na educação, esforçamo-

sustar com uma boneca branca ricamente vestida de azul, em

-nos contra a universalização do conceito, a favor das muitas

posição sentada numa cadeira. Basta olhar a justaposição das

infâncias existentes. Seguimos em luta pelo processo de reco-

obras e artistas para identificarmos um viés político, questio-

nhecimento de subjetividades e direitos das crianças. Pela par-

nando o assentamento de narrativas da história da arte e pro-

ticipação ativa, pelo protagonismo na prática pedagógica, tal

movendo novas visibilidades de sujeitos e personagens, como

como preconizado nos documentos legais. Nos estudos reno-

argumenta o curador da exposição, Adriano Pedrosa (2016).

vados de diferentes áreas, história, antropologia, psicologia,

Nesta perspectiva, aproxima a excepcional coleção de arte eu-

filosofia, sociologia e também pedagogia, a criança é carac-

ropeia do museu à realidade brasileira.

terizada como ativa, capaz, produtora de cultura, que porta

Segundo o catálogo da mostra “Histórias da infância" (PEDROSA et al, 2016), a proposta teve a pretensão de integrar

122

saberes e fazeres próprios, construídos em suas múltiplas relações na cultura em que está inserida.

um programa mais amplo de exposições sobre diferentes his-

A cena principal da exposição evidencia ser possível

tórias, múltiplas, diversas e plurais, para além das narrativas

pensar a infância e a criança tendo como mote a diferença,

tradicionais. Incluiu grupos, vozes e imagens que foram re-

como sugerem Abramowicz e Oliveira (2012). As autoras nos

primidas ou marginalizadas, nas quais se inserem as crian-

ajudam a aprofundar a discussão, afirmando que meninos e

ças e sua maneira de ver o mundo. Por exemplo, durante a

meninas constroem imagens de si e são construídos em suas

exposição em busca de uma relação mais próxima do olhar

infâncias, marcados pelas questões racial e de classe. Sugerem

e do corpo da criança, a altura média das obras expostas foi

que tais questões devem ser pensadas como linhas que atra-


vessam a pesquisa com crianças, dado os impactos do racismo

gras infantis podem (e devem!) ressoar no âmbito da docência

e da desigualdade social na realidade brasileira, justificando

e da formação docente. Assim, é decisivo escutar e acolher as

que a socialização é “um processo social de exercício de po-

vozes e histórias de crianças, como já vem sendo amplamente

der e saber que se impõe sobre a criança, para produzi-las”

discutido no campo dos estudos da criança. Sim, concorda-

(ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2012, p.50). Deste modo, reiteram

mos, é fundamental

a importância de se considerar

[...] produzir escutas ativas que observem como as crianças, em especial as crianças pretas, têm enfrentado dramas e conflitos que as condicionam muitas vezes a categorias raciais inferiorizantes e excludentes. Mas também, sobretudo por meio da literatura e da educação literária, que as vozes ecoem indicando caminhos para a construção, no espaço escolar, de um ambiente propício para a produção de subjetividades e identidades positivas, fortalecidas por laços de alteridade, respeito e reconhecimento. (ARAUJO; DIAS, 2019, p.3)

[...] criança e infância a partir daquilo que as diferencia. Isso quer dizer que, nos processos e práticas sociais que incidem e constituem as crianças, desde o início, há o recorte de gênero/sexualidade, etnia, raça e classe social produzindo diferenças. (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2012, p.52).

As concepções de infância e de crianças destacam-se também nas reflexões de Araújo e Gomes (2016), quando discutem a relação entre infância, Educação Infantil e relações étnico-raciais. As pesquisadoras consideram a importância de

Deste modo, professores e professoras devem ter compro-

se trabalhar as questões étnico-raciais na escola de maneira

misso na produção de novas formas de sociabilidade e de sub-

mais geral, de problematizar as concepções de criança e in-

jetividades a favor da participação da criança negra. Devem

fância orientadoras das práticas pedagógicas e políticas edu-

zelar pela democracia e cidadania, pela dignidade da pessoa

cacionais da educação infantil, aprofundando o conhecimen-

humana, uma vez que o ato normativo firmado com a revisão

to acerca das condições de vida das crianças existentes nas

das DCNEI, indica especificamente o rompimento de relações

escolas e creches conforme sua origem étnico-racial. Assim,

de dominação étnico-racial, dentre outras, que ainda marcam

estudar e pesquisar crianças negras pode ajudar a entendê-las

nossa sociedade.

como diversas em suas constituições históricas e culturais, nas identidades étnico-raciais, bem como de gênero.

O conteúdo deste documento reafirma a necessidade de se elaborar novas ações pedagógicas para o combate ao ra-

Pensar e ouvir crianças negras pode nos ajudar a perceber

cismo e as discriminações na sociedade brasileira e, ainda,

o tempo da infância na Educação Infantil brasileira. Vozes ne-

para educar as relações étnico-raciais na escola, já estabeleci-

123


das nas Diretrizes ERER (BRASIL, 2004). A busca por criar situa-

“o reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das

ções educativas para o reconhecimento, valorização e respeito

crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasi-

da diversidade étnico-racial está posta, então, desde o âmbito

leiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação”

da Educação Infantil, cujas propostas pedagógicas devem ter

(BRASIL, 2010, p.21). O respeito à dignidade da criança como

por objetivo segundo vemos no artigo oitavo das DCNEI: “ga-

pessoa humana e o zelo por sua proteção contra qualquer for-

rantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação

ma de violência são formas de garantir tais preceitos.

e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes

Contudo, sabe-se que as condições objetivas e subjetivas

linguagens [...]” (BRASIL, 2009). No cumprimento da função

da criança negra se dão de forma desigual no processo edu-

sociopolítica e pedagógica, creches e pré-escolas devem:

cativo, e a escola através de práticas sutis, quiçá inconscientes,

[..] assumir a responsabilidade de torná-las espaços privilegiados de convivência, de construção de identidades coletivas e de ampliação de saberes e conhecimentos de diferentes naturezas, por meio de práticas que atuam como recursos de promoção da equidade de oportunidades educacionais entre as crianças de diferentes classes sociais no que se refere ao acesso a bens culturais e às possibilidades de vivência da infância. oferecer as melhores condições e recursos construídos histórica e culturalmente para que as crianças usufruam de seus direitos civis, humanos e sociais e possam se manifestar e ver essas manifestações acolhidas, na condição de sujeito de direitos e de desejos. (BRASIL, 2009, p.6)

por vezes oferece à criança negra e à branca oportunidades diferentes de desenvolvimento, como denuncia, dentre outros, o estudo de Neri Silva (2002). Há 20 anos a autora afirmava que nem sempre a comunidade escolar está consciente e preparada para compreender e enfrentar os problemas gerados pelos preconceitos vividos pela criança negra. Também Oliveira e Abramowicz (2010) ao analisarem as práticas educativas que ocorrem na creche, verificaram que havia uma comparação/classificação entre as crianças, com situações de discriminação, onde crianças negras eram "excluídas" do "carinho" das professoras. O estudo, além de apresentar denúncias, incentiva o enfrentamento de práticas pedagógicas de homogeneidade e racismo ao apontar, por exemplo, que “[...]

124

Na observância das Diretrizes, propostas pedagógicas

professores necessitam escapar da ordem hegemônica pro-

devem integrar o tema da diversidade, de modo que as insti-

dutora de desejos, estéticas, prisioneiros para realizar práticas

tuições prevejam condições para o trabalho coletivo e para a

educativas que acolham e produzam diferença, como estratégia

organização de materiais, espaços e tempos que assegurem

pedagógica.” (OLIVEIRA; ABRAMOWICZ, 2010, p.224)


Em que pese as determinações legais, as pesquisas re-

que participaram de processos de formação na área de rela-

velam que ainda há, nas práticas docentes, o apagamento/

ções raciais. A autora constata que os participantes consegui-

apaziguamento das diferenças no discurso da igualdade: atra-

ram desenvolver práticas eficazes na promoção da igualdade

vés de um fazer acrítico, professores e professoras interferem

racial e, com os elementos identificados em tais práticas, ela-

negativamente na constituição da autoestima das crianças ne-

borou cinco pressupostos pedagógicos para o trabalho

gras. Essas considerações impõem um complexo desafio aos

de ERER na Educação infantil, que apresento a seguir.

profissionais que atuam na Educação Infantil e nas escolas, no que concerne à construção de novas formas de sociabilidade e de subjetividade já que, entre políticas e práticas, organizar o trabalho pedagógico está nas mãos de professores e professoras. Por isso, o papel docente na abordagem das diferenças, atribuídas ao pertencimento racial, é muito importante para educar as relações na educação Infantil que passa pela composição dos currículos e dos projetos pedagógicos com temática racial e por outros componentes, como planejamento escolar; materiais didáticos; espaços e imagens, brinquedos e vocabulário (CAVALLEIRO, 2010). Essas escolhas têm relação direta com as referências das professoras, advindas de suas experiências sociais e culturais, assim como das reflexões da formação inicial e, ainda, dos questionamentos sobre a prática que elaboram.

1. o trabalho com o tema deve ser contínuo e fazer parte do dia a dia; 2. o trabalho com a Educação das Relações Étnico-raciais exige coragem do educador e essa deve ser estimulada; 3. o trabalho no contexto da Educação das Relações Étnico-raciais com crianças pequenas deve pautar-se pela ludicidade; 4. o trabalho deve procurar construir a ideia de diferença como algo positivo; 5. O trabalho deve oferecer às crianças elementos que colaborem na construção de sua identidade racial de modo positivo, já que essa identidade é construída por ela, não podendo ser imposta. (DIAS, 2007, p.287)

Sobre a educação das relações étnico raciais no trabalho pedagógico com crianças pequenas, o importante estudo da

No atendimento à criança e à sua capacidade criadora, é

professora e pesquisadora Lucimar Dias (2007) oferece contri-

necessário a construção de outras atitudes, a partir da aprendi-

buições significativas para ampliar a discussão e traçar possibi-

zagem do olhar e da escuta do professor. Em diálogo com os

lidades, sobretudo porque parte da observação de professores

pressupostos elencados por Dias (2007), o princípio da escuta já

125


vem sendo anunciado como essencial, pois de modo geral, não ouvimos o que o outro fala. Por vezes, vemos e ouvimos apenas o que nos agrada. Damos pouca atenção ao outro, até mesmo à criança e aos grupos com os quais convivemos. Então, referendo que, para educar, considerando a diferença étnica, é preciso ter práticas que se conectam ao outro e esboçam ações pedagógicas que contemplem os princípios éticos, políticos e estéticos, desencadeando outras atitudes com as crianças na escola, fundadas na escuta sensível. Chamo atenção, também, para o trabalho com artes e diferentes linguagens, com outras imagens, pela possibilidade que oferecem ao desenvolvimento da dimensão expressiva e humana, ao produzir subjetividades que afirmam a diferença, acolhem o estranho e não tenham medo do incomum. Além da literatura, sobretudo a infanto-juvenil, que sendo muito utilizada nas propostas pedagógicas na Educação Infantil, dispondo-se de um acervo crescente de títulos que abarcam não apenas as temáticas, mas a presença de protagonistas negros e negras, com qualidade e representatividades, as artes visuais oportunizam apresentar imagens, homens e mulheres, negros e negras, como artistas – sujeitos sensíveis e poéticos. Neste caso, é fundamental pensar e garantir a aproximação de creches e escolas aos espaços culturais e à produção artística negra, para que se possa promover vivências de identificação positiva entre crianças pretas e pardas, que podem seguir além, no desenvolvimento de suas múltiplas linguagens. Tudo isto é benéfico entre crianças produtoras de cultura, que vivem, apreendem e expressam o mundo com todos os sentidos. Neste ponto, volto à mostra “Histórias da Infância" (PEDROSA et al, 2016). Na ocasião da exposição, estudantes de 8 a 10 anos, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima e do Colégio São Domingos, conversaram sobre algumas obras presentes nas exposições e no acervo em transformação. Diante da obra Exu (sem data), três estudantes de nove anos, em momentos distintos, teceram considerações acerca da escultura africana.

Para ouvir a íntegra do relato produzido pela equipe do MASP em parceria com as professoras, escaneie o código com a câmera do celular. Você será encaminhado para a página MASP áudios: Histórias da infância, no SoundCloud.

126


Figura 20 - Nigéria, tribo de Yoruba, região de Oyo. Exu (sem data). Madeira e outros materiais, 56 x 16,5 x 29,5 cm. Doação Cecil Chow Robilotta e Manoel Roberto Robilotta, em memória de Ruth Arouca e Domingos Robilotta (2012).

O primeiro dos três áudios, apresenta a conversa sobre a obra, com a estudante Rosa Magalhães Ribeiro, de nove anos. Ela conta que na convivência com sua avó paterna, conheceu Exu, esse deus/pessoa. Relata que sua família tem religiões diferentes, mas que aprendeu com sua avó a gostar dos orixás. Envolvida na apreciação da obra, ela descreve detalhes e seus saberes a respeito dos orixás. Encontrar a obra Exu no acervo do MASP trouxe à tona a identificação de Rosa com as práticas religiosas vivenciadas na família. Seus saberes demonstram a importância das interações entre crianças e produções artísticas plurais e diversas, principalmente as vivências promovidas pelos espaços culturais que valorizam as matrizes africanas e afro-brasileiras.

Outros dois estudantes, João Iadu Vieira de Souza e Matheus Neves Husek, de nove anos, apresentam no segundo áudio (2/3), informações acerca do orixá representado na escultura africana.

Em conversa sobre a obra, os meninos explicam os motivos que os levaram a escolher falar sobre a obra. No caso de um dos meninos, os estudos da mãe sobre o Candomblé, influenciam sua escolha. Eles falam do interesse em conhecer mais sobre os orixás. Detalham as características desse deus da terra, segundo eles. Contam sobre os búzios e outros materiais identificados na peça em exposição e seus sentidos.

127


Seja no catálogo, seja na página do museu, no material elaborado e disponibilizado, notamos que o setor educativo do

cidade pedagógica.” (FREIRE-WEFFORT, 1996, p.3).

MASP acredita que temos muito a aprender com as histórias e

Na ausência da cumplicidade pedagógica, se não ou-

as trocas entre as crianças. É dada a devida atenção aos diá-

vimos o que o outro fala, como elaborar propostas lúdicas,

logos e interações entre as crianças com as obras, os espaços

participativas e reveladoras de múltiplas linguagens, aquelas

e a exposição.

desenhadas nas políticas e desejadas no trabalho educativo?

Diante de tal confiança, pergunto-me: Será que a profes-

Para tal, é preciso ver e olhar não a partir do que pensamos

sora teria mediado essa aproximação entre crianças e Exu, na

sobre o outro, sobre o grupo, mas, a partir de um olhar e uma

escola? Dificilmente, penso eu, cá com meus botões… Como

escuta conectados à realidade de crianças, educadores e famí-

disse Madalena Freire Weffort (1996) nosso olhar cristalizado

lias. Nos episódios cotidianos, tanto feiuras, quanto belezas,

em estereótipos, produziu em nós cegueira, paralisia e ponde-

requerem de nós respostas. Se escutamos a nós mesmos, o ou-

ra: “Só podemos olhar o outro e sua história se temos conosco

tro, o grupo e a realidade, a ação docente muda. Pode, ainda,

mesmo uma abertura de aprendiz que se observa (se estuda)

completar-se com as vozes e expressões de crianças negras, de

em sua própria história.” (FREIRE-WEFFORT, 1996, p.2). As

protagonistas negros não canônicos da literatura, do cinema,

crianças possuem essa abertura de aprendiz, têm um olhar

das artes visuais, da dança, acolhendo e abrindo espaço para

curioso e atento para o mundo.

conhecimentos não hegemônicos, saberes que estão à mar-

Os adultos devem aprender mais acerca da aprendiza-

128

por ela, na cumplicidade da construção do projeto, na cumpli-

gem do que é reconhecido como central.

gem do olhar, uma vez que não fomos educados para olhar

Nesta trama, quais gestos conectam-nos ao outro e po-

pensando o mundo, a realidade e nós mesmos, por isso a

dem inspirar novas situações pedagógicas? Implicados na en-

observação é apontada por Freire-Weffort (1996) como ferra-

trega ao outro, tarefas isoladas ou projetos temáticos apenas

menta básica no aprendizado de escutar o outro. É considera-

no novembro negro, já não bastam. As práticas que dialogam

da como ferramenta básica no aprendizado da construção de

com a arte e a cultura da diversidade, que adotam o exercício

um olhar que sente e pensa; um olhar que envolve atenção e

da observação, da escuta e da participação, trazem a possi-

presença, que abarca a exigência de entrega ao outro. Deste

bilidade de educar as relações a partir de outras atitudes na

modo, “Observar uma situação pedagógica não é vigiá-la mas

escola, cumprindo o que já temos nas DCNEI, de caráter man-

sim, fazer vigília por ela, isto é, estar e permanecer acordado

datório, que estabelecem princípios éticos, políticos e estéticos


como base para as propostas e ações pedagógicas, com vistas a garantir à criança, conforme apontado, acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens (BRASIL, 2009). Princípios éticos estão relacionados à valorização da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito

A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza ou puritanismo. A ética de que falo é que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inseparável da prática educativa., não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou adultos que devemos lutar.

ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades; os políticos, dizem respeito aos

Dizem respeito ao princípio político, direitos e deveres de

direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito

cidadania e participação: a criança tem direito a expressar-se

à ordem democrática; e os princípios estéticos evidenciam a

com liberdade, a dizer-se de diferentes formas e ainda questio-

valorização da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e

nar a realidade que a cerca. Implica, no interior das creches, o

da diversidade de manifestações artísticas e culturais. No co-

reconhecimento da criança negra enquanto sujeito dos mesmos

tidiano da Educação Infantil, não basta apenas ler o que está

direitos, como cidadã. Aquela que é ativa e competente, e deve

escrito na lei; é essencial traduzir os princípios e relacioná-los

ser acolhida na manifestação de suas necessidades, interesses e

ao vivido (OSTETTO, 2017).

desejos. Aquela que diz que o pertencimento étnico-racial per-

Corresponde ao princípio ético a visão da criança como

passa suas experiências escolares (ARAÚJO, DIAS; 2019). E, por

um sujeito histórico e cultural, de direitos; um sujeito que se

isso, exige participar, tomar parte e compartilhar de modo po-

faz criança no seu tempo e, na atualidade, num tempo em

sitivo das vivências na creche. Sendo encorajada por adultos,

que reivindicamos um Brasil multiétnico e plural. Reconhece os

na compreensão de que escutar crianças torna-se um modo de

direitos humanos, afirma suas diferenças sem reproduzir desi-

pensar as subjetividades, os corpos e modos de existir das crian-

gualdades. Guiar-se pelo princípio ético é garantir a dignidade

ças negras, como ressaltam as referidas autoras.

das crianças e reconhecer aliados contra o preconceito e a

Princípios estéticos correspondem à valorização da sen-

discriminação racial. Esta dimensão coloca-nos a favor de uma

sibilidade, da criatividade, da ludicidade e da diversidade de

ética inseparável da prática educativa, como nos falava Paulo

manifestações artísticas e culturais. Referem-se à dimensão da

Freire (1997, p.16-17):

percepção, da experimentação e refinamento dos sentidos, que pode enriquecer a construção de novas formas de socia-

129


bilidade e de subjetividade. Próximos do campo da arte e da cultura, os princípios estéticos evidenciam a diversidade das manifestações simbólicas dos diferentes grupos sociais e, por isso, é uma direção que pode contribuir para a ampliação da

rança que pode nos oferecer a rota conhecida (como aquela pasta com moldes de “trabalhinhos” para passar para as crianças, ainda tão comum entre os educadores!), caminha passo a passo com a impossibilidade da criação. (OSTETTO, 2008, p. 5)

leitura do mundo e o desenvolvimento das capacidades expressivas das crianças negras e não-negras. Neste sentido, podemos falar, com Ostetto (2008), de

de arte que vai além do fazer e reproduzir um modelo, mas

uma educação estética, constituída pelo enriquecimento de ex-

é território de imaginação, criação, experiência. Ela lembra,

periências, pela ampliação de repertórios artístico-culturais e

em diálogo com Albano (2002), que a arte para as crianças

possibilidades de expressão pelas crianças. A autora diz que

não interessa enquanto produto, mas como processo vivido e

o trabalho pedagógico na educação infantil deve articular as

marcado na experiência, à qual se entrega com o corpo intei-

experiências e saberes sensíveis que as crianças já possuem,

ro. Por meio de interações e brincadeiras, dando atenção aos

com a ampliação de referências artístico-culturais, promoven-

detalhes, as crianças desenham, pintam, constroem, produzem

do encontros com a arte, a natureza e a produção cultural dis-

marcas, contam histórias que carregam possibilidades de lan-

ponível, de modo que construam a confiança em seu processo

çá-las para frente, de projetar-se além do imediato.

criativo-autoral e possam fazer escolhas, para que possam ir além. Para um trabalho nesta perspectiva, chama atenção a autora, é preciso enfrentar, e romper, os limites nos tempos, espaços e propostas assumidos nas instituições educativas, com relação à arte. Em suas palavras: É evidente a dificuldade da escola (creches e pré-escolas também!) em lidar com a arte, com a poética da vida – que pressupõe espaço para a imaginação, a experimentação, a criação e, como parte do processo, espaço para a dúvida e para o erro. Mas, a tranquilidade que pode nos trazer o domínio do já estabelecido (um modelo, um manual, uma técnica) e a segu-

130

Há, na ponderação da referida autora, uma concepção

Tendo um instrumento que deixe uma marca: a varinha na areia, a pedra na terra, o caco de tijolo no cimento, o carvão nos muros e nas calçadas, o lápis, o pincel com a tinta no papel, a criança brincando vai deixando sua marca, criando jogos, contando histórias. (ALBANO, 2002, p. 15)

É preciso, pois, atentar para essas marcas, que é também uma forma de escuta. As propostas com linguagens artísticas podem ser um meio privilegiado para o reconhecimento da própria identidade e para a abertura ao conhecimento do outro, afirma a mesma autora em outro trabalho publicado (AL-


BANO, 2018), do qual seleciono o belo (e provocante) relato, que corrobora sua afirmação: Recordo-me, ainda hoje, da frase que ouvi de uma criança, no início da minha carreira docente, quando trabalhava com crianças bem pequenas. A cena que minha memória gravou, aconteceu entre duas crianças de 4, 5 anos, trabalhando no meu ateliê. O menino, que devia ter uns 5 anos de idade, olhou o desenho da colega e disse: “Eu acho que o que você está fazendo é horrível, mas gosto é gosto, e você pode estar achando lindo!” [...] esta criança, de uma forma bem direta e simples, disse o que discutimos com tantas palavras e tantas teorias: o outro é diferente de mim e é no reconhecimento desta diferença que se constrói a alteridade. (ALBANO, 2018, p.15)

ções e descobertas cotidianas. É imprescindível acolher e documentar o que elas dizem, sentem, pensam e fazem com todos os seus sentidos, de corpo inteiro. ( BERNARDES; OSTETTO, 2016, p.45)

Professores e professoras têm a necessidade de olhar a criança, observá-la e revelá-la, na sua singularidade. Porém, dirigir esse olhar para a criança real e concreta não é tarefa fácil, visto que o docente está acostumado a ver as imagens idealizadas e universais das crianças que aparecem nos manuais (OSTETTO; BERNARDES, 2019). Representações que ocultam crianças reais, que camuflam a existência da criança negra, indígena, quilombola ou com deficiência. E, assim, bloqueiam a percepção da diferença, das diversidades.

Contudo, as linguagens das crianças não costumam ser

Na experiência lúdica, que se faz ampliação de ações

validadas pela sociedade, pela cultura e pela escola. Para legi-

no mundo, cabe ao adulto estar presente, observar, dar visi-

timar suas expressões, experiências e hipóteses, e ainda contri-

bilidade às linguagens da criança, acolher e responder dia-

buir para seu cultivo e ampliação, Bernardes e Ostetto (2016)

logicamente às questões que se apresentam. Sem dúvida, a

afirmam ser fundamental, na escola, reparar nos meninos e

promoção de experiências expressivas a meninos e meninas,

nas meninas reais e concretos que estão atrás do produto final.

a mediação artístico cultural, passam, entre outros aspectos,

As autoras ressaltam um aspecto comumente negligenciado:

pelas ações docentes, pelas possibilidades (e sensibilidades, e

na infância, o produto é o processo!

conteúdo vivencial, e repertórios) que professores e professoras

Para seguir com as crianças, ajudando-as a construírem o seu discurso e a darem forma às suas ideias, é essencial observar seus modos próprios de ser, conhecer, se relacionar e falar sobre o mundo; é fundamental ouvi-las, acompanhar suas buscas, testemunhar experimenta-

oferecem. Uma vez que, por meio de ações culturais podem ampliar os horizontes de experiências de vida no cotidiano da Educação Infantil, professoras são responsáveis pela organização de vivências que garantam experiências e interação das crianças com diversificadas manifestações de música, artes

131


plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura produzida por homens e mulheres negros. A inserção nas propostas pedagógicas de artistas negros e negras, de forma contextualizada, além de fundamental como oportunidades para a constituição da autoestima positiva das crianças negras, contribui para uma ruptura na palidez do sistema da arte, para utilizar as palavras certeiras da artista plastica Renata Felinto dos Santos (2019). A pálida história das Artes Visuais no Brasil, repercute no embranquecimento do ensino de artes na escola e na educação das crianças, que apreciam mais o Abaporu de Tarsila do Amaral (1886-1976) do que o cotidiano revelado nas pinturas de Maria Auxiliadora da Silva (1935-1974). Em meio a essas disputas e supressões, aposta-se na inserção do indivíduo negrodescendente como profissional das Artes Visuais, Teatro, Dança e Música (SANTOS, 2019). Considerando na Educação, a multiplicidade de cores que transbordam de suas obras de artes. Com o olhar para o trabalho com artes na Educação Infantil, pergunto: como garantir os princípios determinados pelas DCNEI? Como fazer valer, nos projetos pedagógicos da Educação Infantil, o acesso aos patrimônios histórico-culturais e às práticas que caminhem para o rompimento de relações de dominação étnico-racial? As escolhas pedagógicas são feitas de acordo com o que pro-

132


fessores conhecem e valorizam; assim sendo, com relação à garantia de acesso aos bens e aos patrimônios culturais e artísticos, será fundamental o reconhecimento, a valorização e o respeito às histórias e às culturas africanas e afro-brasileiras. Os professores precisam, então, conhecer tais bens e patrimônios, para que escolhas pedagógicas sejam pautadas a favor da diversidade. Pelo rumo da discussão que venho tecendo, podemos enfrentar a questão afirmando que a Educação Infantil demanda profissionais que incorporem as questões artísticas, culturais, éticas e estéticas na prática pedagógica; um interlocutor atento e responsável, que assegure o direito de meninas e meninos às múltiplas formas de expressão, ao acesso a bens artísticos e patrimônios simbólicos para a ampliação de seus repertórios culturais. Da mesma forma, um enfrentamento é assumir ações pedagógicas com aprofundamentos acerca da diversidade étnico-racial, baseadas em princípios éticos, políticos e estéticos, cumprindo o compromisso de valorização da identidade, da cultura e da história de negros e indígenas. A construção de outros gestos, partindo de práticas que conectam as crianças e o grupo à produção artística e cultural, de ontem e de hoje, de diferentes origens étnicas, encontra possibilidades férteis na educação do olhar da professora, do cultivo de sua sensibilidade e ampliação do repertório: o papel de professoras e professores a favor das relações étnicorraciais na educação das infâncias é estratégico. Cá está uma forte razão que justifica a pesquisa.

133


134


ARTESANIAS DA PESQUISA - FORMAÇÃO

v 135


Um fazer artesanal mobilizou os movimentos da pesquisa, ativando a imaginação para a criação de outros espaços formativos, nos quais mulheres negras se reconheçam no campo da Educação na proposição de pedagogias da diversidade, decoloniais e de re-existência. De tal modo, a pesquisa se fez no encontro, para provocar memórias, encorajar a narrativa e, por isso, exigiu o oferecimento/planejamento de um território discursivo digno, coerente e empático. Por tratar-se da reunião de mulheres negras, considerei a criação desse espaço na pesquisa como um ato de aquilombamento – lugar para circular histórias e forças na conexão com territórios negrodescentes, em uma busca de um tempo/espaço de paz. Na partida, estavam as seguintes questões: A formação docente pode contribuir para a educação das relações étnico-raciais (ERER) na educação infantil, considerando a dimensão estética? O que dizem professores e professoras sobre hábitos culturais, a presença de artistas negros e negras e o acesso aos espaços e/ou manifestações culturais que representem as tradições africanas, afro-brasileiras e/ou os cenários socioculturais do negro? Aos professores e professoras, é possível incorporar referências estéticas e ampliar repertórios artístico-culturais considerando a interlocução com poéticas negras? Conforme já anunciado, a presente investigação tem como interlocutoras professoras de educação infantil e, como foco, os caminhos sensíveis percorridos por elas, ao longo de suas trajetórias de vida e formação. Sob a perspectiva da relação entre estética, arte e vida, pretendeu, como objetivo geral, analisar a contribuição da poética de artistas negras para a formação docente. Assim, alguns objetivos específicos foram traçados: 1) Mapear informações sobre hábitos culturais e presença de artistas, espaços e/ou manifestações culturais que representem as tradições africanas, afro-brasileiras e/ou os cenários socioculturais do negro; 2) Identificar experiências da formação estética de professoras que atuam na educação infantil, através de narrativas autobiográficas; 3) Promover encontros com a poética de artistas negras e analisar sua validade como forma de incorporar referências estéticas e ampliar repertórios artístico-culturais; 4) Analisar a utilização de múltiplas linguagens e a experimentação de diferentes materialidades como canais para a rememoração e para falar de si; 5) Discutir a realização de encontros-ateliês narrativos como metodologia de formação continuada de professores e suas implicações a favor da ERER na educação infantil.

136


5.1 A METODOLOGIA ERRANTE TRANSFORMADA EM FIO

arriscando olhares renovados. Neste sentido, não há o método correto, único, pois não depende tanto do caminho, mas

Tecer começa com um fio se tornando tecido. Inúmeras

dos modos de caminhar” (OSTETTO, 2019b, p.61). Para tan-

são as variedades e as escolhas que devem estar relacionadas

to, continua a autora, é essencial cultivar atitudes de abertura

com a funcionalidade, a qualidade e a estética do produto fi-

e receptividade, “[...] marcadas pela escuta, pela espera e pela

nal. Assim, desenvolver uma coleção tem nesta decisão uma

utilização de outras linguagens, envolto em busca e mistério,

tarefa de grande importância. O mesmo cuidado e zelo foi

justamente características da experiência estética.” (OSTETTO,

dedicado às escolhas metodológicas desta pesquisa, de modo

2019b, p.61).

que a “metodologia errante” foi aprovada como fibra resisten-

Como já fora anunciado, o movimento biográfico no Brasil

te, que ao movimento exigido no processo de pesquisa, trans-

tem mobilizado a pesquisa e a reflexão sobre a formação de

formou-se em fio.

professores, o ofício profissional e suas relações com aspectos

A ideia de errância, “do latim errantiae, desvio, afasta-

concernentes às narrativas da história de vida e do trabalho do-

mento; derivação do verbo errare, vagar, andar sem destino,

cente. Parte da importância de narrativas enunciadas pelas pes-

perder-se ou desviar do caminho” (HOUAISS, 2015 citado por

soas sobre como vivem, compreendem e enfrentam os desafios

OSTETTO, 2019b), dialoga com um movimento resiliente da

sociais de produzir a existência, e busca apreender a constitui-

fibra, que permite seguir sem arrebentar. Considerando ain-

ção de um espaço que é, a um tempo, espaço de contar o vivido

da sua capacidade elástica, que recupera a forma após sofrer

e também possibilidade de compreender os sentidos do vivido.

estiramentos, afinal “[...] Não basta saber. É preciso vivê-lo. E

As histórias, que alguém conta a alguém, inauguram um tempo

aprender a vivê-lo” (GAILLARD, 2010, p. 139-141).

de descobrir, uma afirmação com possibilidades de reconheci-

Nas pesquisas do grupo FIAR, temos experimentado tecer

mento e interpretação de percursos próprios.

metodologias errantes, nas quais o elemento “deixar acontecer”

Deste modo, pelo traçado de um percurso teórico-meto-

pode nos conduzir ao acesso e/ou à descoberta de elementos

dológico errante, aberto à exploração de novos territórios de

não previstos, de conteúdos preciosos que só se deixam revelar

saberes, disponível à escuta de narrativas e à articulação de

fora do campo já esquadrinhado. Assumir a errância no percur-

movimentos internos e externos à pesquisadora, esta investiga-

so de realização de uma pesquisa, requer “[...] disponibilidade

ção articula a tradição oral africana (BÁ, 1982) às abordagens

para explorar novos territórios, dentro de nós e ao nosso redor,

(auto)biográficas (FORMENTI, 2008; RUGIRA, 2008; JOSSO,

137


2002; NÓVOA, 2021) na proposição de encontros-ateliês nar-

educativa forjada pela e na práxis vivida social e historicamen-

rativos, como espaço estruturado para o encontro com pro-

te, em busca de sua transformação. Destaco um dos sentidos

fessoras de educação infantil, para a escuta e o diálogo, para

da práxis: “ação e reflexão dos homens sobre o mundo para

fertilização de narrativas e, também, como dispositivo de pro-

transformá-lo” (FREIRE, 2001, p. 52), sendo imprescindível o

dução de dados biográficos.

compromisso com a formação humana voltada para a certifi-

Segundo Hampaté Bá (1982), a tradição bambara do Komo ensina que a palavra, kuma, é uma força fundamen-

der para de criar e tecer mudanças.

tal, ela é o instrumento da criação. Na tradição, os gestos de

Assumindo esses elementos, a pesquisa se fez no contexto

cada ofício reproduzem o mistério da criação. Diz-se que: “O

de encontros-ateliês narrativos, realizados com mulheres ne-

ferreiro forja a Palavra; O tecelão a tece; O sapateiro amacia-

gras, que atuavam ou atuaram, nos últimos dez anos, como

-a curtindo-a” (BÁ, 1982, p.185). Enquanto falamos, criamos

professoras na educação infantil na rede pública municipal de

uma ligação de vai-e-vem e, assim, uma fala criativa em ação

Niterói-RJ. O dado temporal (2010-2020) configura um perío-

é simbolizada pelo ofício do tecelão, que com pés que sobem e

do subsequente à implementação das diretrizes que norteiam

descem, produzem movimento e ritmo no tear, portanto geram

o currículo na educação infantil.

força, criação e vida. O diálogo é pressuposto de uma narração enquanto ato

Os encontros-ateliês narrativos, que serão detalhados adiante, configuraram-se como território de encontro para

criativo, e recorro ao conceito de práxis, presente na Peda-

conversas-reflexões-rememorações-narrativas,

gogia do Oprimido (FREIRE, 2001), fundada no diálogo, na

pela articulação entre fruição artística e processos expressivos.

reflexão, na conscientização e em ações dos homens sobre a

Para suscitar reminiscências, na realização dos encontros-ateli-

realidade visando a sua transformação. As ideias debatidas

ês foram projetados movimentos que conduziram ao encontro

por Paulo Freire denotam o respeito pelas diferentes culturas,

da poética de artistas negras, considerando a expressão por

pelo contexto em que se está inserido e a crítica à invasão

múltiplas linguagens e a experimentação de diferentes mate-

cultural; suas ideias dão forma a uma pedagogia que se faz

rialidades como canais para a rememoração e para falar de si.

num “esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que é em que se acham” (FREIRE, 2001, p. 100), uma proposta

138

cação da liberdade, da humanidade, da capacidade de enten-

mobilizadas


5.2 FIO A FIO, ENTRELAÇANDO A PESQUISA

éticas e sanitárias pelo devido distanciamento social, que nos fez abrir janelas à (re)invenção – dos modos de viver, de edu-

Dado o caráter experimental, artesanal e errante da pes-

car, de pesquisar. No percurso da pesquisa, a cada uma das

quisa, nos termos já descritos, consideramos prudente, eu e

experiências que me aconteciam, uma janela era aberta, uma

minha orientadora, realizar um projeto-piloto, com cinco pro-

nova paisagem podia ser visibilizada, um jeito diferente de ser

fessoras de educação infantil autorreferenciadas negras. As-

pesquisadora era praticado. Recolhi muitas histórias, pude en-

sim, entre os meses de julho e agosto de 2020, foram realiza-

tão sentir o que movimentava meu olhar-pensar-sentir.

dos cinco encontros-ateliês, pelo serviço de comunicação por

Os encontros-ateliês narrativos realizados no âmbito do

vídeo do Google, com duração de uma a duas horas cada um.

projeto-piloto, como um ensaio para uma viagem mais pro-

Entre tantas mulheres brasileiras contemporâneas que, pela

funda, indicaram preciosas lições: 1) Mais do que os conteúdos

arte, afirmam sua existência no mundo, os encontros-ateliês

que poderiam ser identificados nas narrativas orais, escritas e

do projeto-piloto trouxeram as poéticas de Conceição Evaristo,

plástico-expressivas, mais do que os dados configurados para

Rosana Paulino e Lia de Itamaracá, três mulheres importantes

possíveis análises, revelou-se a importância do espaço criado

para a arte e cultura afro-brasileiras, que possuem histórias

para a interação, para a partilha de histórias e para o reconhe-

singulares e diversas, expressas nas produções e linguagens

cimento de questões comuns; 2) Os traços de uma pesquisa

artísticas e que fazem parte do meu repertório e de minhas

errante foram evidenciados: ir lá onde não se conhece, com

afinidades eletivas.

abertura, disposição, atitude de escuta, permite a criação, a

O estudo-piloto realizado, apresentado como parte do

experimentação e o acolhimento de outros modos de ver (OS-

texto de qualificação da tese, mostrou-se pertinente e neces-

TETTO, 2019b). Essas atitudes possibilitaram viver a surpresa e

sário, pois a partir dele, percorrendo os desafios da errância

o espanto, desalojando posições confortáveis de pesquisadora

e da constituição do campo de pesquisa com as participantes,

e das participantes, forjando bons elementos para se pensar

pude exercitar o olhar e todos os sentidos de uma pesquisa-

a continuidade da pesquisa; 3) As narrativas orais das partici-

-formação, pude experimentar os dispositivos escolhidos para

pantes sobre o modo como vivem, compreendem e resolvem

a investigação e analisar seus limites e possibilidades.

seus problemas sociais, incluindo a discriminação e o racismo,

Sua pertinência se mostrou, também, em vista do cenário

revelavam uma densa carga emocional e, neste sentido, a ati-

pandêmico, que nos impôs o cumprimento de recomendações

vidade biográfica, realizada por meio do diálogo e da elabo-

139


ração de narrativas no grupo, foi validada em seu aspecto de partilha, acolhimento e identificação. Contar sobre si, dores e alegrias, foi reafirmada como uma das formas privilegiadas de atividade reflexiva, pela qual a pessoa pode representar e compreender a si mesma, implicada no seu ambiente social e histórico; 4) As produções artístico-culturais de artistas negras compartilhadas na dinâmica dos encontros-ateliês foram confirmadas como oportunidades de amplificar a rememoração e narrativas de si.

Figura 21 - Foto-ensaio. Partilhas. Composto por fotografias compartilhadas pelas professoras durante a realização do projeto-piloto. Brito Silva, Greice (2020).

140


Essas lições apreendidas com a realização do projeto-piloto, somadas às contribuições das professoras que compuseram a banca de qualificação de tese, foram essenciais para revisar o percurso, os dispositivos e os conteúdos viabilizados e proceder a alguns ajustes nos movimentos subsequentes da pesquisa, sobretudo considerando que “a espera, o acolhimento e o cultivo da beleza, são qualidades da errância da pesquisa” (OSTETTO, 2019b, p.62). Enfim, o projeto-piloto permitiu que o desenho metodológico da pesquisa, implicado na dinâmica virtual, fosse ressignificado com a colaboração das participantes. Na pesquisa de base narrativa e autobiográfica, é importante detalhar os percursos, as idas e vindas, as mudanças de rumo, os recuos, os avanços. E aqui aponto algumas mudanças. O projeto de pesquisa levado ao exame de qualificação pretendia ter como grupo de participantes-colaboradoras, 10 (dez) professoras, oriundas de diferentes regiões do Brasil. O convite seria feito através de redes virtuais, a partir de grupos de professores e/ou de pesquisas ligadas à Educação. A recomendação das professoras participantes da banca, realizada em dezembro de 2020, foi delimitar com outros critérios o campo, para melhor aproveitamento do trabalho e contribuição direcionada às secretarias municipais de Educação, suscitando a ampliação de estudos, fortalecimento de debates e implementação de ações afirmativas e políticas públicas no que diz respeito à formação de professores, à educação infantil e às relações étnico-raciais. Acolhi a recomendação e, assim, a investigação foi delimitada aos professores atuantes na Educação Infantil da Rede Pública Municipal de Niterói-RJ, haja vista a possibilidade de acesso, considerando projetos e parcerias para o desenvolvimento da cidade realizados entre a prefeitura e a Universidade Federal Fluminense, que incluem ações desenvolvidas na Faculdade de Educação (FEUFF). Destaque-se que o FIAR, grupo de pesquisa do Programa de Pós-graduação em Educação, já referenciado anteriormente, realiza de forma sistemática atividades de ensino, pesquisa e extensão, contribuindo para a formação inicial e continuada de professores da Educação Básica nas redes de ensino de Niterói e outras cidades próximas. Outro ajuste diz respeito à forma de localização, dentre o grupo já delimitado (professoras de Educação Infantil da rede pública de Niterói), de possíveis participantes dos encontros-ateliês narrativos. A busca se fez por meio de consulta, via formulário digital com questões sobre autodeclaração racial e produção cultural afro-brasileira. Nesta consulta, também foram inseridas questões que contribuiriam para mapear informações sobre hábitos culturais e presença de artistas, espaços e/ou manifestações culturais relacionadas às tradições africanas, afro-brasileiras e/ou cenários socioculturais do negro no Brasil.

141


Assim, com vistas à continuidade da investigação, no ano de 2021, foi firmado acordo através de termo de compromisso e cumprimento às normas regimentais do Núcleo de Estágio, da Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia (SMECT) e da Fundação Municipal de Educação (FME) do município de Niterói-RJ. Em parceria com a Diretoria de Educação Infantil, que por mudança organizacional na atual gestão passou a chamar-se Coordenadoria de Educação Infantil, houve o devido encaminhamento para realização do trabalho. O interesse detinha-se na participação voluntária de ocupantes do cargo de Professor I de Educação Infantil, que de acordo com a Lei Nº 3067/201323, são os professores da FME que exercem atividades profissionais, especificamente, na educação infantil e pertencem ao Grupo Magistério, constituído por servidores de nível médio (NM) e de nível superior (NS) ocupantes de cargo de provimento efetivo e nomeados, mediante concurso público. Com o apoio da Coordenadoria de Educação Infantil - Niterói/RJ, que possibilitou o contato com as Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEI), através do e-mail institucional, o formulário digital foi enviado em formato de link para o e-mail de cada UMEI, e ficou disponível por 36 dias, entre 06/04 a 12/05/2021. Produzido no aplicativo de pesquisas do Google, estava composto por quatro seções: 1) Convite à participação: antes de decidir sobre a participação, torna-se importante entender a importância e o que envolvia o estudo; 2) Informações Pessoais: comunica que dados pessoais e outras informações pessoais serão mantidos em sigilo; 3) Cultura Afro-brasileira Nas Rotas De Formação: remete à busca por tempos, territórios, figuras de ligação, vivências culturais e objetos biográficos, a presença ou não de elementos de matriz africana e/ou afro-brasileira; 4) Próxima Etapa Da Pesquisa: marca o desejo de continuar participando da pesquisa. Trinta e sete professoras responderam ao formulário. Pela relevância dos dados reunidos, optei por apresentá-los no item a seguir, como uma primeira leitura sobre o grupo que se dispôs a responder às questões.

23 LEI Nº 3067, DE 12/12/2013 - Institui O Novo Plano Unificado De Cargos, Carreira E Vencimentos Dos Servidores Da Fundação Municipal De Educação De Niterói https://leismunicipais.com.br/a/rj/n/niteroi/lei-ordinaria/2013/306/3067/lei-ordinaria-n-3067-2013-institui-o-novo-plano-unificado-de-cargos-carreira-e-vencimentos-dos-servidores-da-fundacao-municipal-de-educacao-de-niteroi

142


5.3 A FORTUNA DA COR NOS HÁBITOS CULTURAIS DE PROFESSORAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL DE NITERÓI/RJ O que quer que chamemos de obra de arte é imaginado e materializado por gentes, diz a pesquisadora Renata Felinto dos Santos (2019). Objetos de arte, desenhos, pinturas, gravuras, esculturas, modelagens, fotografias, performances, vídeos, instalações, construções são criadas por uma infinidade de pessoas. Literatura, cinema, dança, teatro e música, são obras de pessoas. Em sua crítica à palidez do sistema de arte, a pesquisadora reivindica que todas as gentes que têm se inscrito na história com suas existências e suas artes, espalhadas pelo território brasileiro sejam representadas em sua multiplicidade de cores (SANTOS, 2019). Inspirada nos escritos e reivindicações da referida autora, no traçado de um mapa sobre os hábitos culturais, a partir das respostas de professoras de Educação Infantil da cidade de Niterói, interessou-me perceber outros tons que preenchem os gráficos. Neste sentido, busquei informações sobre hábitos culturais e presença de artistas, espaços e/ou manifestações culturais relacionadas às tradições africanas, afro-brasileiras e/ou cenários socioculturais do negro no Brasil. Valorizo as nuances mais escuras que expressam a produção artístico-cultural correspondente ao legado da população negra. Outros tons que remetem à fortuna da cor preta, como diz Santos (2019). Considerando o levantamento realizado, é importante compartilhar informações gerais a partir dos dados fornecidos ao formulário digital. A totalidade de respondentes foi de 37 representantes do gênero feminino, com idade entre 27 e 61 anos. Sobre a localização geográfica, é conFigura 22 - Renata Felinto. Nos braços da mãe Nanã o amanhã está seguro (2020). Tamanho: 29,7 x 42 cm.

siderável dizer que 88,2% nasceram no Estado do Rio de Janeiro e 47,2% residem na cidade de

https://projetoafro.com/

143


Niterói. As participantes representam 20 entre as 43 Unidades Municipais de Educação Infantil da Rede Pública de Niterói. Do total, 28,9% atuam como professoras há mais de 20 anos, tendo 65,8% atuado com todas as faixas etárias de crianças, de zero a cinco anos. Seis perguntas principais geraram respostas, com as quais compus desenhos a partir da proposta de gráficos em funil. Ao observar as formas, seja na imagem em miniatura ou nos gráficos, podemos analisar a frequência de acesso e consumo dos serviços culturais. Quanto maior a parte superior do desenho, mais frequente e comum, o produto ou serviço está incluído como habitual. É possível também perceber tonalidades mais escuras quando há um maior consumo/acesso dos objetos e manifestações artístico-culturais. Do mesmo modo, quanto mais claro o desenho, menor ou nula é a participação de bens e serviços culturais. Na sequência abaixo, as formas em miniatura possibilitam ainda uma comparação entre os resultados a partir dos desenhos. Na ordem, dizem respeito às práticas culturais relacionadas: 1) aos livros; 2) às peças teatrais; 3) aos sons e músicas; 4) às danças; 5) aos filmes e séries; 6) às artes visuais em exposições.

Figura 23 Miniatura de diagramas sobre os hábitos culturais de professoras de Educação Infantil da cidade de Niterói/RJ. Brito Silva, Greice (2021).

144


Figura 24 - Diagrama 1: leituras.Brito Silva, Greice (2021).

Figura 25 - Diagrama 2: peças teatrais. Brito Silva, Greice (2021)

145


Figura 26 - Diagrama 3: sons e músicas. Brito Silva, Greice (2021)

146

Figura 27 - Diagrama 4: danças. Brito Silva, Greice (2021)


Figura 28 - Diagrama 5: filmes e séries. Brito Silva, Greice (2021)

Figura 29 - Diagrama 6: exposições artísticas. Brito Silva, Greice (2021)

147


É possível afirmar, pelas respostas, que os livros são bens

Chama atenção que, entre os nove livros mais citados,

culturais de maior acesso/consumo na abordagem sobre cultu-

apenas um seja direcionado ao público adulto. O título é um

ra africana e afro-brasileira. Expressiva maioria de participan-

dos livros mais vendidos do ano de 202024. Nos últimos anos

tes diz ter lido vários ou poucos livros com protagonistas ne-

nota-se um crescimento considerável das publicações de au-

gros. Das leituras realizadas, mais de trinta autores e quarenta

tores negros e negras no Brasil e dos livros com temática étni-

títulos foram citados. Entre os títulos, dez são direcionados

co-racial, puxados pela explosão de vendas do livro “Peque-

ao público adulto e trinta e sete são direcionados ao público

no manual antirracista”, da filósofa, pesquisadora e ativista

infantil. Importante considerar que, de acordo com a pesqui-

Djamila Ribeiro. Temos acompanhado mudanças no mercado

sadora Eliane Debus (2013), a partir da primeira década do

editorial, na curadoria de importantes eventos literários e no

novo milênio tivemos um mercado editorial em expansão no

reconhecimento de editoras especializadas em obras de cunho

que diz respeito à diversidade. Para a autora, a ampliação da

afrodescendente, essas ações contribuem para uma educação

temática étnico-racial nos livros infantis deve-se à demanda

literária plural, diversa e também antirracista.

promovida pela Lei 10639/03, que coloca a literatura compromissada com outras representações sociais. Dos títulos dos livros, os mais citados: 1. Menina bonita do laço de fita (1986); 2. Obax (2010); 3.Amoras (2018); 4. O Cabelo De Lelê (2007); 5. Bruna e a galinha da Angola (2000); 6. Meu Crespo é de rainha (2018); 7. Pequeno manual antirracista (2019); 8. Pretinha de Neve e os sete gigantes (2013); 9. Omo-Oba: histórias de princesas (2009). Nem sempre as obras trazem a autoria, mas, pesquisando as referências dos livros, encontrei: Ana Maria Machado, André Neves, Emicida, Valéria Belém, Gercilga de Almeida, bell hooks, Djamila Ribei-

Em contrapartida, as peças teatrais, apresentam um considerável número de pessoas que nunca acessou este serviço com roteiros sobre a cultura africana ou afro-brasileira. Nas respostas positivas, aparecem a escola, o teatro e os equipamentos SESC como espaços frequentados. As cidades de Niterói, Rio de Janeiro e São Gonçalo aparecem como lugares de acesso. Aquelas que assistiram em formato digital, citam a Internet, a TV (canal fechado) e o Youtube como canais de comunicação de peças teatrais. Entre os locais, aparecem: Teatro Municipal de Niterói, Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-Rio), Sesc Copacabana, Cidade das Artes; Armazém

ro, Rubem Filho, Kiusam de Oliveira, cujas obras aparecem como mais citadas.

148

24 Livro de Djamila Ribeiro é o mais vendido do ano no Brasil em 2020 Leia mais em: https://vejario.abril.com.br/programe-se/livros-mais-vendidos-brasil-2020/


da Utopia; Teatro da UFF; Teatro Popular Oscar Niemeyer. Entre os espetáculos, são citados: "Luiz Gama: Uma Voz Pela Liberdade" (2020); o Musical “Império” (2006); “Otelo” (2020); “Ananse e o baú de histórias” (2017). Compartilho alguns comentários (a)colhidos que revelam sentidos e significados sobre o que viram, ouviram, sentiram em interação com artefatos e manifestações artístico-cultural.

Ter protagonismo de pessoas pretas atuando, dirigindo.

A peça do Luiz Gama foi significativa pela história de vida e perseverança pela luta pela liberdade dos seus irmãos negros durante o período do Império Brasileiro.

Foi importante conhecer um novo conto africano que não sabia que existia. Como foi o caso do teatro de sombras O baú de histórias com Ananse.

Conhecer personagens do folclore africano e suas histórias, a

abordagem das peças, cujo protagonismo evidenciava que falar

sobre a cultura africana ou afro-brasileira não se restringe ao tema escravidao. Revelava a riqueza de manifestações culturais. Estar em contato com a nossa ancestralidade.

149


Sobre o modo de assistir filmes e escutar músicas na con-

expressão de emoções, conhecimento do corpo, entretenimen-

temporaneidade, vale dizer, com Barbosa et al (2020), que as

to e educação, de acordo com Garcia e Hass (2003). É uma

tecnologias da informação e comunicação ampliaram as prá-

das manifestações corporais mais antigas, que tem relação di-

ticas culturais, permitindo uma maior disponibilidade de bens

reta com a cultura. Sobre danças afro-brasileiras, as autoras

culturais. Uma vez que os serviços de streaming vêm modi-

dizem ser uma

ficando os modos e hábitos das pessoas em assistir filmes e

[...] dança gerada a partir da fusão das danças da cultura africana com as da cultura brasileira. Apresenta característica especial nas movimentações dos braços e das mãos, da cabeça, do tronco (ondulação e contração), dos quadris (acentuada movimentação pélvica) e molejo, na expressão facial e vestuário adequado a sua intenção de manifestação”. (GARCIA; HASS; 2003, p. 174)

ouvir músicas por meio da internet. Essas foram as atividades mais comuns no período da pandemia, de acordo com estudo do Itaú Cultural e Datafolha25. Atualmente, o usuário tem sua independência e pode escolher o que vai consumir. Isto se mostra nas respostas à questão sobre a frequência de acesso a sons e músicas de origem africana e/ou afro-brasileira. Estas, estão incluídas na rotina de forma expressiva diária ou semanalmente. Sobre cantores, compositores e/ou canções conhecidas, citam muitos artistas nacionais, referências da Música Popular Brasileira e também do samba/pagode. Mesmo com a facilidade de transmissão online de conteúdo de vídeo, filmes e séries que abordam temas das culturas africana, afro-brasileira e/ou que tenham protagonistas negros, a frequência de acesso mensal é maioria. Há um número expressivo de produções internacionais entre os citados. Dançar é movimentar-se pelo espaço, é sentir o corpo livre, é comunicar-se consigo mesmo. Está relacionada com a 25 https://revistamuseu.com.br/site/br/noticias/nacionais/ 11852-22-07-2021-consumo-virtual-de-atividades-culturais-cresce-na-pandemia-aponta-pesquisa-itau-cultural-datafolha.html

150

Nas respostas de que estou tratando, chama atenção que o hábito de dançar ritmos africanos e afro-brasileiros, em sua maioria, aconteça de forma rara, visto que frequentemente as participantes dizem escutar sons e músicas. Pergunto: seria uma indisponibilidade de conexão com o corpo pela falta de tempo? Um desconhecimento sobre batucadas, sambas, capoeira, jongo, maracatu, dentre outros? Ou, aspectos religiosos influenciam a prática de dançar ritmos afros? São aspectos que merecem investigação, mas fogem ao propósito da presente pesquisa. Voltando às respostas, entre os citados, aparecem nomeados diferentes grupos de danças e ritmos: Samba de raiz, Carimbó, Jongo, tambor de crioula, Axé, forró, capoeira, maracatu, funk, rap nacional. Artistas pouco conhecidos, tais como:


Ballet Afro, Grupo Musical Ilê Ayê, Olodum, Lia de

Pintura, desenho, gravura, fotografia,

Itamaracá, D. Nicinha do Coco, Grupo Mariocas.

escultura, dentre outros, caracterizam ma-

No formulário, havia a possibilidade de respos-

nifestações ou obras reconhecidas como ar-

tas acompanhadas de comentários. Nem sempre

tes visuais. Elementos que são parte de um

comentavam, mas, nesse caso, dois comentários

conjunto de arte, produzidas para serem,

chamaram minha atenção:

especialmente, agradáveis aos olhos. Dos espaços de arte em que podem ser apreciadas, o acesso a museus e centros culturais foram destacados no questionário. Importante considerar suas diferenças: museus são

Não aprecio danças, infelizmente algumas coisas nos são ensinadas, e na minha família não temos a cultura de dançar. Depois de adulta, não busquei…

Mamãe dançava jongo.

Essas narrativas, ainda que breves, me conduzem a refletir sobre as manifestações culturais na infância, a influência da família nas experiências com a arte e a cultura, e como a adultez deixa de lado as expressões artísticas, sobretudo as que envolvem o corpo, como é o caso da dança.

instituições sem fins lucrativos que conservam e pesquisam, além de expor, conjuntos e coleções de valor cultural. Já os centros culturais têm caráter expositivo e, por não possuir coleção própria, não se preocupam com manutenção e documentação de acervo. A respeito da visitação a museus, Bibian (2017) argumenta que as ideias, concepções e práticas envolvidas revelam questões ainda não resolvidas. Por tratar-se de lugares historicamente elitistas, muitos visitantes acabam por se sentir excluídos pelo espaço físico intimidador, pelos textos pouco esclarecedores, pelas obras e objetos incompreensíveis, diz a pesquisadora. Contudo, afirma que o museu é algo vivo, que pode estar a serviço dos

151


interesses ideológicos de determinados grupos sociais, econô-

ção das histórias e culturas africana e afro-brasileira. Contudo,

micos, étnicos, religiosos, e por isso, pode também libertar. Em

é preciso destacar que o Estado do Rio de Janeiro possui um

suas palavras:

grande número de equipamentos culturais com exposições so[...] os museus podem ser considerados não apenas depósitos de um patrimônio ou memória que coletam, preservam, pesquisam e expõem. São também espaços de experiência, onde os sujeitos e as coisas ganham sentido porque são postos em relação. Mas, como isso pode ocorrer, se não há espaço e tempo para ouvir este sujeito, suas inquietações, perguntas, medos, observações, descobertas? (BIBIAN, 2017, p.62)

culturais da Região Metropolitana. Como forma de valorização e incentivo de trabalhos que abordam sobre culturas africana e afro-brasileira, vale registrar os espaços de arte que foram mencionados. Das cidades de Niterói e Rio de Janeiro, destacam-se: CCBB (Rio de Janeiro-RJ), Museu de Arte Popular Janete Costa (Niterói-RJ), MAC (Niterói-RJ); Espaço Cultural Correios de Niterói (Niterói-RJ);

A visitação aos museus e centros culturais, bem como a

MAR (Rio de Janeiro-RJ); IPN (Rio de Janeiro-RJ). E ainda ou-

apreciação de artes visuais, não se configura como hábito para

tros, como o Quilombo Agbara Dudu (Oswaldo Cruz, Rio de

as participantes da pesquisa que responderam ao formulário.

Janeiro/RJ), a Casa Cultural do Jongo (Madureira, Rio de Ja-

A expressiva maioria considera ser raro o acesso aos espaços

neiro/RJ) e o MUHCAB (Gamboa, Rio de Janeiro/RJ).

de arte e exposições que retratam culturas negras. As respostas

Nas exposições citadas pelas participantes, aparecem:

de quem nunca frequentou exposições sobre a temática africa-

Exposição 'Egito Antigo' (2020) no CCBB, na cidade do Rio de

na ou afro-brasileira, fazem pensar sobre os repertórios ima-

Janeiro; Tudo Nosso (2019), exposição individual do artista Mu-

géticos das professoras da Educação Infantil, suas experiências

lambo, no Museu de Arte do Rio; exposição “O Rio do samba:

com o desconhecido, participação em atividades criativas fora

resistência e reinvenção” (2018) também no MAR. Mais de dez

do espaço escolar, o diálogo com as ações desenvolvidas por

artistas negros foram lembrados, entre os mais conhecidos estão

espaços culturais. E, principalmente, faz refletir sobre o conhe-

Heitor dos Prazeres (1898-1966) e Aleijadinho (1738-1814).

cimento dos educadores a respeito do patrimônio material e imaterial da humanidade. Importante dizer que não temos a totalidade de diretores e produtores culturais promovendo de forma devida a valoriza-

152

bre a multietnicidade do povo brasileiro em museus e centros


Ao contar sobre experiências formativas ligadas à arte (desenho, pintura, escultura, música, canto, artesanato etc.), alguns comentários destacaram-se:

Fiz curso de teatro, dancei em alguns grupos de dança e atualmente canto num coral.

Já dancei no palco do teatro Municipal. Foi uma

experiência única, foi um ato de coragem porque nao

Artesanato e capoeira. No artesanato desenvolvi uma técnica de criação de cordões com pingente de bonecas negras, representando orixás. Pratico capoeira há 27 anos e nela aprendi a tocar berimbau, pandeiro e atabaque.

tenho ritmo, mas superei a timidez.

Perguntadas se gostariam de deixar registrado algo em relação a sua trajetória e atividades desenvolvidas relacionada à produção

cultural afro-brasileira, comentaram sobre a importância do tema para a prática docente:

Fiz algumas oficinas, participei de seminários e assisti palestras sobre o assunto. Gosto de buscar mais

A minha vontade em, de fato, aprender sobre como trabalhar essas questões, fundamentais, na Ed. Infantil. Não se trata apenas de ler, apresentar etc, mas refletir com conhecimento teórico e vivências.

informações sobre o assunto. Minha geração não obteve nenhuma informação sobre esse assunto na escola ou no meio social. Se não buscarmos essas informações ficaremos ignorantes culturais.

153


Aproveitaram a oportunidade para contar de suas experiências.

Meu maior mergulho dentro da produção cultural afro-brasileira foi na capoeira angola, que me atravessou e atravessa todo meu entendimento deste corpo de mulher preta, vivendo um cotidiano repleto de violências físicas e simbólicas produzidas pela branquitude e pelo patriarcado. Vivo a capoeira intensamente. Fundei meu grupo a 10 anos, dou aulas regulares e fui reconhecida como mestra de capoeira a 4 anos.

E revelaram desejo em aprofundar seus conhecimentos.

É algo a ser aprofundado. E assim farei: estudar mais sobre cultura afro-brasileira e africana. Com essa pesquisa, percebi que posso me empenhar e tentar introduzir mais elementos da cultura afro-brasileira na minha rotina.

154

Desenvolvi vários projetos interdisciplinares relacionados à cultura afro-brasileira com minhas turmas, o que me impulsionou a pesquisar com maior profundidade sobre o tema. Nunca tive nenhuma formação ou matéria na faculdade sobre esse assunto.

Sou contadora de histórias e sempre conto muitas histórias africanas. Esse tema perpassa por toda minha jornada como professora há 30 anos.

Sou umbandista,e essa religião me aproxima muito da cultura afro-brasileira. Quero conhecer mais.


É importante ressaltar que, antes de aprofundar nos cami-

gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação

nhos individuais de professoras, eu buscava desenhar um qua-

política feminista e antirracista e, por isso, relatos biográficos de

dro coletivo a partir das informações sobre hábitos culturais e

mulheres negras podem provocar a discussão sobre formação

a presença ou não de elementos de matriz africana e/ou afro-

de professores, especialmente no processo de reeducação das

-brasileira. A procura de participantes por meio virtual, trouxe

relações étnico-raciais para toda a nação brasileira. Assim, para

a possibilidade de consulta aos docentes da Educação Infantil,

a continuidade na participação da pesquisa (nos encontros-ate-

via formulário digital. A intenção distanciava-se da formulação

liês narrativos), busquei por colaboradoras negras.

de um modelo de consumo de serviços culturais ou de queixas

No questionário, fez-se o uso da autoatribuição como mé-

sobre o refinamento do gosto das professoras. Entretanto, o

todo de identificação racial, no qual o próprio sujeito da clas-

mapeamento sobre hábitos culturais de professoras ajudou a

sificação escolhe seu grupo. A identificação do pertencimento

perceber o que tem resistido em seus processos formativos. O

das pessoas às categorias raciais envolve um processo reflexivo

que persiste sob a violência colonial e a homogeneização do

sobre a autoclassificação étnico-racial baseado em suas ca-

sentir em países latinos? O que perdura diante do controle

racterísticas. Os problemas, neste caso, são ocasionados pelas

de imagens e de produções culturais na sociedade brasileira?

particularidades da ideologia racial brasileira. Entende-se que

Mesmo não sendo objetivo principal da pesquisa, foi possível

as percepções que levam alguém a escolher determinada cor/

visualizar um esboço das vivências de professoras da Educa-

etnia variam no tempo e no espaço. Visto que estas funcionam

ção Infantil da cidade de Niterói com serviços e equipamentos

para a exclusão social e para o pertencimento de classe.

culturais que abordam sobre culturas negras e que podem fa-

Ao questionamento aberto sobre seu pertencimento ét-

vorecer a promoção da igualdade racial nas UMEI e escolas.

nico-racial, tendo em vista sua autoidentificação, as trinta e

Contudo, interessava-me saber onde, professoras negras, en-

sete respondentes representaram-se: 7 (sete) pardas, 5 (cinco)

contram seu espaço de existência.

pretas, 5 (cinco) negras, 1 (uma) multirracial e 19 (dezenove)

A escolha por mulheres negras como interlocutoras-narra-

brancas. Sendo: 48,6% não-brancas e 51,4% brancas. Con-

doras-colaboradoras se deu pela compreensão das inúmeras

siderando a prática de pesquisadores e do movimento social,

dificuldades estruturais existentes para seu reconhecimento e va-

neste trabalho, a categoria negra contemplou o agregado das

lorização. Conforme já argumentei, seguindo as pistas de Car-

pessoas que responderam às cores preta e parda, e às cate-

neiro (2003), a luta das mulheres negras contra a opressão de

gorias negra e multirracial. Com o número de dezesseis parti-

155


cipantes pertencentes à categoria negra e que se dispunham a prosseguir na investigação, foi necessário definir o grupo para, então, organizar os convites para os encontros-ateliês. Seguindo a lista das dezesseis possíveis colaboradoras, realizei contato individual via ligação telefônica, respeitando a diversidade de local de atuação, ou seja, das UMEI. A intenção primeira era realizar dois grupos de oito professoras, acolhendo todas as que se disponibilizaram. Todavia, considerando o contexto pandêmico e a volta das atividades presenciais na rede municipal à época dos encontros-ateliês, optei por continuar a pesquisa com as seis primeiras professoras com quem fiz contato. Assim, compuseram o grupo dos encontros-ateliês narrativos, seis professoras que atuam na Educação Infantil da Rede Pública Municipal da Cidade de Niterói e estão lotadas nas unidades: UMEI Hilka De Araújo Peçanha; UMEI Hermógenes Reis; UMEI Antônio Vieira Da Rocha; UMEI Alberto De Oliveira; UMEI Marilza Da Conceição Rocha Medina; UMEI Regina Leite Garcia. Com o grupo definido, segui organizando e viabilizando os encontros.

5.4 PROCESSOS CRIATIVOS (CON) FIADOS EM ENCONTROS-ATELIÊS NARRATIVOS Os encontros da pesquisa remontam a ideia de ateliê como lugar que acolhe processos criativos. A escolha se deu pela necessidade de ativar a dimensão estética, bem acionada quando estamos em contato com quem somos, como já falado anteriormente. A conexão com a sensibilidade, levou-me a realizar encontros-ateliês, que tinham como intenção a profusão de narrativas. Reconhecendo não ser simples o ato de elaborar e dizer sobre si e tampouco, em público, assumir desconhecimentos, enfrentamentos pessoais. Neste sentido, ateliês narrativos ligaram-se à sensibilidade, abrindo-se às narrativas fiadas e tecidas sem resistência, por quem escolhe doar-se inteiramente como quem confia, ainda que desconfiado, de seu potencial criativo. Podendo ser múltiplas, em formatos orais, escritos, imagéticos, fotográficos, dentre outros. No encontro com poéticas negras, narrar-se através de diferentes linguagens seria o ponto fundamental. Na escola é comum utilizarmos a palavra escrita. Na vida, a palavra falada. Ao encontrar poéticas negras, a partir da vida e obra de Lia de Itamaracá, Rosana Paulino e Conceição Evaristo, pretendia-se a apropriação de outras formas de expressão, que a arte e a cultura nos oferecem. Para além do que conhecemos, considerando a formação do gosto, o desenvolvimento de linguagens e ampliação das referências estéticas dentro das inú-

156


meras criações que compõem o patrimônio artístico e cultural

que, na intenção, poderiam desencadear e apoiar movimentos

da humanidade. Uma boa aposta a favor da diversidade.

para falar de si.

Foram cinco encontros-ateliês narrativos, realizados cole-

A caixa-convite é composta por uma caixa retangular de

tivamente com as seis professoras, entre os meses de agosto e

madeira que abriga, ao modo de um mini-ateliê portátil de

setembro de 2021. Todos foram sustentados e gravados pelo

criação, materiais e objetos diversos: cartões de papel colo-

serviço de comunicação por vídeo do Google. A ideia inicial

rido; cartão retangular de papel mágico; lápis de cor; cola

era deixar as datas agendadas previamente. Porém, percebi

gel; bloco sem pauta; caneta esferográfica preta; linhas tipo

que o tempo é um ponto fundamental para a colaboração das

meada em duas cores; recortes de tecido padrão liso e afri-

professoras. Rotineiramente, elas sentem-se pressionadas pela

cano; moldes de coração em feltro colorido; fibra siliconada

falta de tempo e o excesso de compromissos. As participantes

para enchimento; agulha de tapeçaria; alfinetes; botões colo-

disseram que entre o trabalho com as crianças, que à época

rido e liso; flores artesanais; folhas e flores secas; cartão com

estava retornando ao presencial, havia ainda quem cursasse

QR CODE para playlist “Cirandar” no spotify; sachê de chá

pós-graduação, cursos complementares e tarefas pessoais. A

de maçã; anis estrelado; envelope amarelo com três cartões

fim de favorecer a reunião de todas, valorizar a adesão pelas

retangulares em branco; envelope com quinze cartões postais

propostas e criar um bom clima, combinamos de sincronizar

produzidos especialmente para esta pesquisa.

uma próxima data ao final de cada encontro.

Os quinze postais fazem parte de uma série criada por

Durante o projeto piloto, uma das participantes disse, em

mim, a partir da reprodução de obras artísticas produzidas por

tom de confissão, nunca ter recebido um cartão postal. No

homens e mulheres negras, que integraram as publicações

desenho do projeto, registrei a importância de possibilitar a ex-

da ação “FIAR com... propostas de Educação Antirracista”26

periência de recebimento de um postal a todas as participan-

. Impressos exclusivamente para a pesquisa, entre os artistas

tes. Com o desafio de realizar encontros-ateliês à distância,

estampados nos postais estão: Rosana Paulino, Ingrid Silva,

pensamos ainda, eu e minha orientadora, em outras estraté-

Priscila Rezende, No Martins, Robinho Santana, Mestre Didi,

gias para inspirar as colaboradoras na narração por rumos de

Sonia Gomes, Carolina de Jesus, Dona Ivone Lara, Maria Au-

sensibilidade. Deste modo, projetamos a elaboração de uma

xiliadora, Wilson Tibério, Heitor dos Prazeres e Abdias Nasci-

caixa-convite à criação, como um convite à experimentação de diferentes materialidades e utilização de diferentes linguagens

26 Veja mais na página do FIAR no Facebook https://www. facebook.com/fiar.pesquisa

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mento, do Brasil; e Maya Angelou e Basquiat, artistas nascidos nos Estados Unidos. Com cuidado aos detalhes, as caixas foram montadas, em-

Primeiro

movimento

a poética de artistas

negros e negras como ponto de partida

baladas e entregues pessoalmente na residência de cada uma das seis professoras27, Cristina Santos, Maria Letícia Felinto, Caroline Nascimento, Eliete Marcelino, Camila Cordeiro e Carla Rodrigues. Movimentos da pesquisa foram inaugurados por caminhos terrestres, entre as cidades de Niterói, São Gonçalo, Maricá e Rio Bonito. O cruzamento de vias conhecidas e desconhecidas no interior do Estado do Rio de Janeiro, conectou um grupo de seis professoras negras, colaboradoras desta investigação. Preciso registrar minha emoção em encontrar professoras dispostas à pesquisa por meio remoto, que prontamente colocaram-se disponíveis, mesmo com a dinâmica exaustiva de trabalho e comunicação em telas neste cenário pandêmico. E, ainda, a esperança trazida pela viagem e encontro até suas casas, que contrastam com os momentos de solidão vividos nos meses de isolamento social. Mesmo com a máscara, olhando nos olhos das professoras, deu-se a partida para a jornada dos ateliês, cujos movimentos narro a seguir, em breve contextualização.

O primeiro encontro-ateliê-narrativo aconteceu a partir do convite à abertura da caixa-ateliê portátil, e uma xícara de chá de maçã (o convite foi enviado por e-mail). No primeiro momento, após a saudação, apresentei o contexto da pesquisa, esclarecendo um pouco mais sobre a dimensão estética na formação de professores e professoras da educação infantil a favor da diversidade étnico-racial. Tratamos de alguns pontos

Lembrando de Lélia Gonzaléz, "negro tem que ter nome e sobrenome", apresento quem são as professoras-narradoras-interlocuras com seus nomes próprios. Nesse ponto, também considerei a centralidade do sujeito da narrativa afirmar-se, igualmente em sua nomeação, como indicam princípios das abordagens (auto)biográficas. Importante esclarecer que as professoras concordaram que assim o fizesse. 27

158

principais do Termo de consentimento livre e esclarecido (TCL), que foi assinado. Para finalizar este momento, apresentei duas narrativas de professoras que participaram da primeira etapa da pesquisa, respondendo ao formulário sobre Cultura Afro-brasileira Nas Rotas De Formação.


Como professora antirracista que venho me tornando sinto a urgência de tratar deste tema diariamente com meus alunos e o material a qual temos acesso não dá conta de toda complexidade e riqueza cultural. Nos falta ainda formação inicial. Obviamente que cada professor é capaz de aprender e buscar informações corretas e formação, mas é preciso que a nossa formação desde a Educação Infantil trate corretamente de assuntos ligados à nossa formação como povo.

Com essa pesquisa, percebi que posso me empenhar e tentar introduzir mais elementos da cultura afro-brasileira na minha rotina.

O contexto do estudo fora apresentado a partir de seus objetivos e metodologia, tinha por intenção evidenciar a importância da participação das professoras. Era preciso narrar! Deste modo, suas percepções e histórias de vida importavam, seriam o núcleo dos encontros-ateliês narrativos. Assim, era preciso mobilizar a palavra e convidar o corpo. Ao encontrar as respostas do questionário apresentadas na tela, uma das participantes sentindo-se encorajada, logo identificou seu comentário e ampliou suas considerações.

159


Um destaque da fala que Greice fez, a respeito da fase um da pesquisa, fui eu que coloquei. É realmente, assim, o trabalho nos consome tanto, a vida, o cotidiano, a pandemia, que faz com que a gente, às vezes, se coloque num lugar que nem sempre é o lugar que a gente tem lutado, sempre lutou pra estar e para que todos nós possamos chegar. Mas, tudo isso tem a ver com a caixa, porque os detalhes, desde a cola, que ela colocou o tecido pra não aparecer a marca, enfim, ficou decorado. Pequenas coisas assim, são detalhes marcantes mesmo.

Camila mostrou-se contente por ter um momento para si. No encontro, continuou dizendo como os ele-

Uma outra coisa que marcou foram os postais. Eu, especialmente, gostei bastante disso (cartão-postal “Ibjeis”, de Robinho Santana), por conta da dimensão da religião. Que me parece uma releitura de Cosme e Damião. Os meninos com doce na mão. O que mais me chamou a atenção, foi esse postal.

mentos da caixa e os postais a deixaram ansiosa para participar do encontro, tanto que ela foi a primeira a entrar na sala virtual. Outras participantes também comentaram a respeito da caixa e do convite à experimentação que se anunciava, sem regras explícitas inicialmente, apenas com a presença dos materiais e da pesquisadora.

Eu fiquei apaixonada pelos postais. Apesar de não ser nova, meu pai tinha coleção de cartão telefônico, me lembrou isso. Então, as pessoas colecionavam postais, ele tinha cartão telefônico, que também tinham várias imagens e obras de arte bem interessantes. Aí me remeteu ao meu pai, que também não tá mais nesse plano. Enfim, me remeteu a muitas coisas. Então foi uma experiência nostálgica. Camila Cordeiro

160


Foi preciso explicar que a caixa

Eu fiquei muito feliz em receber o convite para participar da pesquisa. (...) Adorei a caixa, adorei tudo, mas especificamente os tecidos. Principalmente os dois tecidos africanos, que eu adoro, amo. Lembrou da luta do povo negro no Brasil, na África.

e todos os materiais eram das participantes. Tudo o que elas fizessem seria delas e apenas o registro em fotografia seria entregue para mim.

Carla Rodrigues

Na segunda parte do encontro, fiz um pedido para que olhassem de

Eu gostei muito...o capricho, o cuidado. Eu só fiquei um pouco assustada, porque eu não tenho tanta habilidade com agulha, linha. Minha mãe me ensinou muitas coisas, mas essa habilidade eu ainda não peguei direito. Quando a Greice chegou no meu portão aqui em Rio Bonito, eu falei: “Meu Deus do Céu, foi ela que veio.”. Eu estava pensando que ia vir o Correio. Daqui a pouco é ela aqui. Eu falei:“Meu Deus.” Caroline do Nascimento

novo para os quinze postais, e buscassem naquelas cores, imagens, palavras e formas, um autorretrato. Aproveitei o momento de reflexão e contei a história de um postal que, para mim, seria como meu retrato. Narrei sobre a criatividade e simplicidade da minha avó em conexão com a técnica de uma das artistas. Paira-

[...] quando eu cheguei lá no portão e vi você, eu fiquei extremamente emocionada. Não sei se você percebeu. Mas eu fiquei muito emocionada. Sabe? Foi uma emoção grande te conhecer pessoalmente. Eu falei assim: “Gente, é um trabalho tão bonito, é um trabalho tão potente, tão forte, tão profundo e que a própria presença, a sua presença, a sua disponibilidade e disposição de organizar com tanto carinho.”. Porque a gente vê o carinho aqui. A gente vê o carinho que você teve de organizar isso tudo. Para poder nos convidar, para nos envolver na sua pesquisa. E eu acho que isso faz a gente se sentir acolhido. Me senti amada. ((Risos)). Tô até emocionada aqui de novo. Me senti amada. Eu falei: “Ai, meu Deus. Será que a Greice vai querer que eu devolva essa caixa? Porque eu não quero devolver não.

va um clima de emoção e intimidade, após o meu relato. Apesar de estarmos reunidas em um primeiro encontro, as participantes demonstraram desejo em partilhar publicamente seus retratos e histórias. Algumas escolheram apenas um cartão postal, outras ficaram indecisas e escolheram três. Alguns postais se repetiram. Todos foram notados.

Eliete Marcelino

161


Os cartões postais produzidos e enviados às participantes, foram utilizados como um dispositivo para fiar memórias, um convite à imaginação e narrativa de si. Como já citado ante-

Segundo

movimento

a poética musical

– Primeiro encontro: de Lia de Itamaracá

riormente, cartões postais com obras de arte foram utilizados em pesquisas (OSTETTO et al, 2020; OSTETTO e FOLQUE, 2021), em uma dinâmica chamada pelas pesquisadoras de “Como se fora meu retrato: a imagem da arte fala de mim”. Esta vivência corrobora com o que as pesquisadoras indicam no que diz respeito à aproximação do grupo de professoras, neste caso das participantes da pesquisa-formação que desenvolvi. Além da oportunidade de apresentação pessoal, possibilitou a ativação das primeiras narrativas de si. A poética de artistas negros e negras foi como ponto de partida para este primeiro movimento de pesquisa. A dinâmica do encontro foi combinada previamente, em vários momentos quis deixar claro que as participantes estivessem à vontade para falar, pois tratava-se de uma conversa e não de uma entrevista. Como introdução ao diálogo e oferecimento de um panorama, ao final apresentei de forma geral as três artistas

Como Segundo movimento, foram realizados três en-

escolhidas para a interlocução na pesquisa, chamando aten-

contros com três artistas negras. A pergunta inicial partia do

ção para a necessária articulação entre Educação e Arte nas

conhecimento prévio a respeito das figuras públicas, conside-

questões raciais, que se desdobram nos caminhos da pesquisa

rando o reconhecimento nacional e até internacional que as

e da pesquisadora.

três artistas possuem pela produção de seus trabalhos. Contudo, as conversas tecidas no início dos encontros revelaram que nem todas as artistas e suas produções eram conhecidas pelas participantes. É bom frisar que a pergunta inicial não se tratava

162


Camila: Pensei mesmo nos tecidos.

de uma mera verificação sobre o que as participantes sabiam ou não, mas sim de uma procura por conexões. Buscava-se

Eliete: Estampados. Coisas lindas.

por gatilhos, lembranças ou sentidos que aquelas mulheres, com suas obras e trajetórias singulares, poderiam despertar. No primeiro encontro desse segundo movimento, a po-

Camila: As saias pra dançar ciranda, rodar.

ética musical de Lia de Itamaracá esteve no centro. Reunidas na sala virtual, fiz a pergunta inicial às participantes: O que

Cristina: As flores.

vocês conhecem a respeito da artista Lia de Itamaracá? Após algumas breves respostas, assistimos a Lia em seu clipe. Vimos a praia e a Ilha de Itamaracá. Depois de conhecer um pouco

Maria Leticia: Esse aqui, oh. Gostei do (tecido) que envolve a caixa. Caroline: Eu pensei nessa flor, pensando na flor do cabelo.

sobre a mais célebre cirandeira do Brasil, patrimônio vivo de Pernambuco, as participantes lembraram-se de encontros com Carla: Os tecidos.

Lia ou com sua ciranda. O vídeo provocou nostalgia, conectou distâncias e compôs um diálogo sensível.

Camila lembrou-se também de já ter dançado em uma

Eliete: Não acredito que ela é de Pernambuco. Tô indo pra lá.

roda na UFF, aproveitei e perguntei quais histórias elas tinham para contar com cirandas e danças. Maria Leticia: Pernambuco é terra da minha mãe.

Enquanto as colaboradoras narravam, eu buscava oportunidade para introduzir outras perguntas. Cristina lembrou-se de assistir Lia de Itamaracá em um show na Lapa, e pegando este fio, perguntei o que poderíamos tirar da caixa-ateliê portátil para esse encontro com a poética de uma artista cirandeira.

A minha lembrança de contato com a ciranda, essa manifestação cultural, foi a partir da idade adulta. Eu comecei a ter mais contato com a cultura popular, depois que eu entrei pra capoeira. Eu comecei a fazer capoeira e comecei a circular por vários espaços de cultura popular. A capoeira foi a porta de entrada pra isso.

Ciranda eu adoro. Gosto muito. Na escola usava bastante com as minhas crianças. Agora não posso, ainda estou no remoto. E, minhas melhores lembranças com ciranda são da época de infância.

Cristina Santos

Carla Rodrigues

163


Caroline contou sua história com os instrumentos musicais e sua fa-

Caroline havia dito que ela não dançava

mília de musicistas. Quem tinha vivência com instrumentos musicais?

ciranda na infância porque não tinha companhia.

Minha relação com a música, é mais pro canto e o instrumento. Eu tocava piano, parei, agora eu tô voltando. Voltei a estudar música com a minha filha, a gente é membro de uma Igreja Batista aqui em Rio Bonito. Eu canto na igreja desde sempre. Caroline do Nascimento

Eu me realizo na escola com as crianças. Porque eu tiro um dia da semana para fazer a roda musical. A gente toca, apresenta agogô, pandeiro, um tambor também lá da escola. Eu gosto muito de tambor. Adoro. Eu não sei se é tambor, né? Aquele compridinho. É tambor que fala? Eu troco os nomes dos instrumentos todos, mas eu gosto de mexer. Maria Letícia Felinto

Eu estava aqui me lembrando, porque eu não brinquei tanto de ciranda, porque eu sou filha única e eu fui criada afastada dos meus primos. Eu não tive uma infância com meus primos que têm a mesma idade que eu. Eles moram em outro município. Então, a relação que eu tive foi com meus primos mais velhos. Que viveram uma outra época. Então, eu não vivi essa época da ciranda Caroline do Nascimento

Pensando juntas sobre isso, retomei a letra da música28 de domínio público: “Pra se dançar ciranda, juntamos mão com mão/ Fazemos uma roda e cantamos uma canção.” Finalizamos refletindo sobre a importância do coletivo. De ter mais gente inclusive, para poder dançar ciranda. Que, se estivéssemos presencialmente juntas, já estaríamos dançando, com certeza. Alguns sentidos vividos no encontro com Lia de Itamara-

Ao final da conversa, percebemos que falamos muito

cá, pela palavra das participantes, são apresentados abaixo

da memória, do passado. Maria Letícia, inclusive, escreveu

a partir de uma síntese-visual. O conjunto ajuda a pensar a

no chat: “Estou me sentindo tão bem com esse bate-papo,

validade de poéticas negras na incorporação de referências

minhas memórias estão vindo à mente.” Muitas coisas do

estéticas e ampliação de repertórios artístico-culturais de pro-

passado foram trazidas, o que ajuda a pensar o presente e

fessoras da educação infantil.

o futuro, constatamos. Para concluir, perguntei o que ficava mais forte para elas da poética da Lia.

164

A música se chama “Minha Ciranda", e está disponível na playlist disponibilizada através do QR Code na caixa, esta foi citada durante a conversa como fonte de consulta para as cirandas. 28


Figura 30 - Síntese-visual Lia de Itamaracá. Colagem digital composta por imagens e narrativas sobre a artista. Brito Silva, Greice (2021).

165


Segundo

– Segundo encontro: de Rosana Paulino

movimento

a poética visual

São tecidos costurados. Como se fossem fotos costuradas em tecido. Camila Cordeiro

Parecem pequenas almofadinhas com aquele ponto de bordado. Com muita delicadeza. Eu sinto muita delicadeza nesse trabalho. Me vem à mente, o costume de pessoas de roça. De Pernambuco, Ceará, que tem o costume de colocar fotos dos seus parentes na parede, com aquelas molduras que parecem madeira. Eliete Marcelino

Eliete continuou contando sobre uma pesquisa pessoal que está

166

O terceiro encontro-ateliê narrativo, que foi o segundo encontro

fazendo a partir das memórias de sua família. Já Camila contou

do Segundo movimento, aconteceu tendo as artes visuais de Rosana

um pouco sobre perceber que não tinha tantos registros de família.

Paulino na trama. Na abertura desse encontro, apresentei uma ima-

Como a obra ''Parede da Memória'' faz parte de uma investigação

gem conhecida dos cartões postais. Continuei com a observação da

também da própria identidade da artista Rosana Paulino, contei so-

imagem produzida pela artista. Indaguei sobre o olhar: O que viam

bre sua inspiração artística, que vem das memórias de infância, de

ao observar o postal?

outros fazeres manuais, com a argila e o bordado.


No desenrolar do encontro, continuei buscando oportunidade para introduzir novas perguntas: o que poderia ser trazido da caixa para um encontro com a poética visual da artista?

Caroline: Ah, o momento que eu mais temia: costurar. ((Risos)). Carla: É verdade.

Camila: Eu ia falar: “Esse era o momento que Caroline mais queria.”.

Eliete: Agulha, linha, tecidos.

Maria Leticia: Linha. Camila: A própria cola também, né?

Maria Leticia: Parece acrilon

Eliete: Essa espuminha, que eu não sei o nome.

Conversamos um pouco sobre a biografia de Rosana Paulino e citei exposições importantes em que suas obras circularam entre museus nacionais e internacionais. Aproveitei a conexão e perguntei quais lembranças tinham sobre a visita mais importante ou a última visita que haviam feito a museus ou instituições culturais. A conversa foi longa, passando por diferentes tempos, lugares e momentos da história de vida das participantes.

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Minha avó chama-se Sebastiana Muniz de Oliveira. Ela é parteira, é ela que tá na minha foto de perfil. A lembrança que eu tenho dela é de uma mulher muito forte, muito feliz, muito brincalhona, contadora de história. Eliete Marcelino

A visita mais marcante foi em 2016, quando eu fui com meu esposo e o filho dele ao Museu Afro Brasil. Caroline do Nascimento

Na verdade, minhas primeiras oportunidades de visitar museu, espaços de produções culturais e artísticas, foi ao entrar na universidade.

Falar de ancestralidade pra mim, de uma pessoa só, é muito difícil. Porque, o fato de eu estar aqui hoje, é fruto de um monte de mulher, que me levantou em algum momento da minha vida. Caroline do Nascimento

Camila Cordeiro Em 2018 foi o aniversário de 130 anos da abolição da escravatura no Brasil. Na Fundação Getúlio Vargas houve um seminário para historiadores, sobre o tema. Uma das atividades que nós fizemos, foi visitar o Instituto dos Pretos Novos, na Gamboa. Foi uma experiência muito impactante. Carla Rodrigues

Contei que a artista visual Rosana Paulino tem seu trabalho muito ligado às questões de raça e também sociais, étnicas e de gênero. Na sequência, pude apresentar

uma

Enquanto uma participante narrava sobre suas ancestrais, convidei as demais a confeccionar um patuá, inspirados na obra da Rosana Paulino. Um patuá é um amuleto de proteção, tem relação com as

vídeo-instala-

religiões de matriz africana, como o candomblé. Em geral, um pa-

ção chamada “Das Avós”, que foi

tuá tem relação com seu orixá, para que seja protegido e abençoado

apresentada na 21ª Bienal de Arte

por ele. No contexto do encontro-ateliê narrativo, pudemos escolher

Contemporânea do SESC, no ano de

uma cor, forma, a partir dos elementos da caixa-convite, materiais que

2019. Essa produção visual, nos provo-

tivessem sentido e significado da ligação com a ancestralidade. Tam-

ca a pensar: quem seriam as nossas an-

bém foi proposta a escrita de um bilhete, para dobrar bem pequenini-

cestrais em um pais marcado pela escravidão?

nho e guardar dentro do patuá. Todas as participantes narraram suas

Após a exibição do vídeo, instiguei-as a

histórias, produziram seus amuletos, que guardavam seus bilhetes.

puxarem na memória e a contarem qual ancestral marca sua história de vida: Quem estaria, nessa costura, ligado ao próprio corpo e a sua história?

168

Minha avó materna e a minha mãe, que eu tenho como referência de ancestralidade para seguir como exemplo. Maria Letícia Felinto

Ao final, refletimos sobre o que ficou em nós da poética da Rosana Paulino. Das significações experimentadas no encontro com a artista, apresento a seguir outra síntese-visual, constituída pela vez e voz das participantes.


Figura 31 - Síntesevisual Rosana Paulino. Colagem digital composta por imagens e narrativas sobre a artista. Brito Silva, Greice (2021).

169


a

Segundo movimento – Terceiro encontro: poética-escrevivência de Conceição Evaristo

Na sequência do encontro, comentei que ser, viver e escrever sobre essas vivências, vai dar o sentido de escrevivência, evidenciando assim essa poética e essa inspiração resistente, produzida por Conceição Evaristo. Em um encontro permeado de palavras e registro escrito, perguntei novamente o que poderíamos tirar da caixa.

Eliete: Com certeza nosso caderninho, nossa caneta. Nossos papeizinhos coloridos. Maria Leticia: Eu encontrei um papel preto, diferente. (...) É um Papel mágico. Para escrever nele é só usar um palito. Papéis coloridos são ótimos.

Eliete: Lápis de cor.

As escrevivências de Conceição Evaristo marcaram o quarto encontro-ateliê-narrativo, ou o terceiro encontro do Segundo movimento, ajudando a despertar a vida que pulsa em nós. Na abertura, fiz a leitura de um dos poemas do livro da escritora: “Poemas da Recordação”.

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Utilizando a transcrição das nossas primeiras conversas, apresentei para as participantes alguns trechos sobre escrevivências. Eram trechos de narrativas delas, selecionados e transcritos dos encontros anteriores. Exibi na tela um trecho de cada uma. Será que ficariam à vontade para comentar ou gostariam de complementar?

Camila: Não, não quero não. Tô satisfeita com o registro.

Eliete: É, o que eu falei tá falado, é isso aí. ((Risos)).

Cristina: Lembro direitinho dessa fala. É engraçado que hoje ela sai muito mais leve. Maria Leticia: Engraçado que quando começaram os encontros, a forma como você fez, foi trazendo essas memórias que estavam adormecidas, na verdade.

Caroline: É engraçado que falar é uma coisa, mas quando você vê escrito o que você falou, realmente tem outro impacto. É outra coisa, dá aquele engasgo.

Na sequência, indaguei se haviam registrado algo no bloco, também parte da caixa-ateliê portátil: teriam algo que não contaram oralmente, que gostariam de destacar? Elas comentaram um pouco e mostraram suas anotações pela tela. No encaminhamento final, compartilhamos os poemas e poesias que cada uma trouxe de seus repertórios. Solicitei que apresentassem também o cartão produzido com os materiais retirados da caixa, preparado durante a conversa, no desenrolar deste encontro.

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“O QUE FICA EM VOCÊS DO ENCONTRO COM CADA ARTISTA?” essa uma pergunta-encerramento foi feita ao final dos três encontros com poéticas negras. Esses sentidos anunciados e as narrativas das participantes trouxeram possibilidades de reconstrução das experiências, como acompanhamos nesta última síntese-visual, construída a partir do encontro com Conceição Evaristo.

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Figura 32 - Síntesevisual Conceição Evaristo. Colagem digital composta por imagens e narrativas sobre a artista. Brito Silva, Greice (2021).

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Terceiro

movimento:

escrevivências em

Encontro com imagens e postais-retratos do processo

Na abertura deste encontro-extra, voltamos à apreciação dos cartões-postais que estavam na caixa-ateliê portátil. Fiz uma leitura dinâmica dos títulos, artistas, técnicas e informações sobre as produções. Pudemos olhar de novo, com calma. A partir desse movimento mais tranquilo, convidei-as a escolherem outro cartão após a experiência passada: com qual daqueles cartões identificavam-se atualmente? Meses depois de terem feito escolhas, das relações e reflexões produzidas naquele coletivo, interessava-me saber como elas se viam. Após uma longa conversa que envolveu perspectivas familiares, religiosas e profissionais na escolha de novos cartões-postais, lhes fiz outra proposição: em diálogo com artistas e elementos artísticos, produzir uma série de três postais, de modo a representar passado, presente e futuro, em processos que marcam a constituição de suas subjetividades. Nesta ação, houve também um desafio: Como fazer à mão seus próprios cartões? Quais palavras, imagens, técnicas, recursos da caixa-ateliê portátil, poderiam materializar uma representação sobre si? Para a tarefa, foi importante utilizar os ma-

Na dinâmica partilhada, houve a necessidade de irmos além dos quatro encontros-ateliê que integraram os dois movimentos planejados e realizados. Um último encontro, quase como um movimento-síntese das direções percorridas da Rosa dos Ventos imaginada. Projetamos, então, um Terceiro movimento: Imagens e escrevivências em postais-retratos do processo, para pensar e partilhar as sutilezas do vivido que poderiam reverberar na criação de outros postais.

174

teriais disponíveis no repertório e espaço pessoal - marcadores, retalhos, fotografias, objetos de pertencimento -, o uso da criatividade e imaginação entrou em jogo para dizer do processo. Mesmo tratando-se de uma ação com professoras de crianças pequenas, houve receio e insegurança para os trabalhos manuais e artísticos. A fim de encorajá-las e apoiar sua criação, utilizei como estratégia a projeção de si a partir de um rascunho, por meio da ativação da imaginação em conexão com as poéticas negras. O que a poética de Rosana Paulino fez retornar da memória do passado? Como a


poética musical e brincante de Lia de Itamaracá torna viva a relação com as crianças que estão no presente de suas profissões? De que modo, a poética-escrevivência de Conceição Evaristo, toca nas histórias vividas que ajudam a projetar seus futuros? A partir dessas conexões, as participantes narraram como seria a produção dos três cartões, que seriam confeccionados ao longo da semana, no tempo disponível a cada uma, no momento oportuno de cada uma. As poéticas em relação, projetadas nas produções visuais das participantes, serão apresentadas no próximo capítulo, compondo mapas de experiências estéticas, revelando rotas de formação sensível.

175


176


vI

LEITURAS E INTERPRETAÇÕES A PARTIR DE FORMAS VISUAIS

177


Para dar visibilidade às rotas de formação esté-

2018). Por isso, neste estudo, o diálogo com o campo

tica – caminhos, processos, experiências, encontros e

da Arte, anunciado desde o início, inclusive fazendo par-

desencontros considerados formativos da sensibilida-

te da proposta dos encontros-ateliês narrativos, continua

de, da ativação dos sentidos, da ampliação ou refi-

no tratamento dos dados biográficos, tendo por intenção

namento de sentidos –, identificadas na partilha de

valorizar a dimensão artística na pesquisa em Educação,

narrativas das professoras colaboradoras, coloco-me

possibilitando novas interpretações e perguntas a partir de

a delicada tarefa de traçar um mapa. Mapear implica

uma forma visual.

um ato de cuidado para com os materiais biográfi-

Como uma espécie de curadoria educativa fiz o exer-

cos produzidos no contexto da pesquisa, pois não são

cício de revelar a potência artística do material reunido

apenas palavras e imagens, depoimentos e testemu-

na pesquisa, a fim de promover um alcance ampliado,

nhos, mas são a vida vivida, são as próprias professo-

provocador de um processo de conscientização e identifi-

ras reveladas-presentificadas nas narrativas.

cação cultural entre as produções narrativas oral, escrita

Nesta empreitada, associo-me à arte, tendo

e visual das professoras. Luiz Guilherme Vergara (1996)

em vista suas qualidades simbólicas de provocar/

afirma que o objetivo de uma curadoria é o de “explorar

construir/revelar um campo de conhecimentos de

a potência da arte como veículo de ação cultural” (VER-

natureza distinta dos saberes científicos tradicionais,

GARA, 1996, p. 4). O autor traz-nos a seguinte reflexão:

conforme diz Egas (2018). O contato com a arte traz inúmeras possibilidades e compreensões outras sobre nós mesmos e o mundo, com ela podemos apostar na liberdade e na multiplicidade de fazer e fazer-se, seja no ensino ou na pesquisa. Com a autora, reitero que a arte oferece elementos para tecer diálogos internos que ajudam a ampliar, inquietar e estabelecer novas relações, através da sensibilida-

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A Ação Cultural da Arte implica em dinamização da relação arte/indivíduo/ sociedade - isto é, formação de consciência e olhar. [...] ao se propor a exibição de arte como ação cultural - se tem como objetivo criar uma perspectiva de alcance para a arte ampliada como multiplicadora e catalisadora dentro de um processo de conscientização e identificação cultural (VERGARA, 1996, p. 4, grifos do autor).

de, da delicadeza e da disponibilidade para tocar o

No contexto da pesquisa, a ação curatorial se fez no

outro e fazê-lo desaprender o já conhecido (EGAS,

tratamento, seleção e organização dos dados biográficos


para veicular, da melhor forma, as direções anunciadas e identifica-

aparecem aqui e ali, em momentos oportunos, articuladas aos senti-

das, considerando os interlocutores, que não são apenas os leitores

dos que estava pretendendo tecer.

desta tese, mas principalmente as próprias participantes.

Neste capítulo, o desafio foi compor uma síntese-integrativa

Em artigo produzido com companheiras do grupo de pesquisa,

dos movimentos da pesquisa, apresentando o material biográfico

sobre o qual comentei anteriormente (MELLO; SILVA; NEVES, 2021),

evidenciado nos encontros-ateliês narrativos, considerando elementos

traçamos pontes da curadoria, que se pretende educativa, a partir de

ainda não apresentados. Trago os conteúdos significativos que

considerações apontadas por Gisa Picosque e Mirian Celeste Mar-

permitem uma visão do itinerário de cada professora-colaboradora, ao

tins (2003) para o material educativo da Quarta Bienal do Mercosul

que chamei de Em estado de invenção: narrativas em forma de artes,

em Porto Alegre/2003. As pesquisadoras destacam a necessidade de

apresentando uma diversidade de elementos simbólicos e materiais

um olhar escavador de sentidos, um olhar de um professor que se

suscitados nos encontros com três artistas negras. Um conjunto de

faz pesquisador, considerado um leitor de imagens que elege o que

fazeres criativos e expressivos utilizados para dizerem sobre si.

será exibido para investigação e/ou fruição dos interlocutores. Assim,

Considerando a escuta como princípio, na seção Análise

imagens que serão compartilhadas com outros, precisam passar por

interpretativa de material biográfico em três tempos apresento

um processo de seleção, combinação, recorte e interpretação, se

o trabalho co-interpretativo sobre os processos de formação

pretende instigar leitores para novas e futuras escavações de sentido.

evidenciados entre tempos, territórios, figuras de ligação, vivências

Sob tais orientações de curadoria, os materiais gerados nesses en-

culturais e objetos biográficos, anunciados nas narrativas. Uma

contros são apresentados a seguir. Neste contexto, palavras e imagens

análise em três tempos permitiu entender e significar as trajetórias de

produzidas e/ou evocadas pelas participantes, que se fizeram colabo-

formação e suas implicações, identificar o quê nutriu esteticamente

radoras e narradoras, portam aspectos múltiplos que podem apresen-

cada uma, quando, onde, como, com quem alimentaram sua

tar-se, ou constituírem, importantes linhas de processos formativos que

sensibilidade.

teceram/tecem/tecerão histórias de sujeitos-narradores, a depender da forma veiculada. A leitura temática do material biográfico perpassa conteúdos de experiências vividas em diferentes tempos e lugares que formaram a sensibilidade das participantes, relacionando-as. O leitor e a leitora atenta, devem ter percebido: as vozes, os movimentos, as narrativas das professoras ressoam ao longo da tese,

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6.1. EM ESTADO DE INVENÇÃO: HISTÓRIAS EM FORMA DE ARTES

cruzamentos com caminhos de outros, seja nas paradas longas ou por outros enfrentamentos. Por sua vez, as narrativas visuais foram inspiradas na proposição de Egas e Demarchi (2019): um discurso visual apresenta o conhe-

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Na tarefa de pesquisar a Educação, aprendo com meus ances-

cimento selecionado que se quer destacar, por meio de informações

trais a possibilidade de devolver ao povo conhecimentos em forma

estéticas que concedem outras formas de compreender a realidade,

de arte. A ideia de que culturas negras interpenetram na formação

prescindindo da dimensão artística. Na criação ou produção de ima-

da sociedade brasileira, marca esse estudo, que tem em vista a for-

gens, digitais ou não, na seleção, no seu refinamento e composições,

mação docente implicada em outros gestos, imagens e múltiplas lin-

o pesquisador deve experimentar um estado de invenção, dizem as

guagens para educar crianças pequenas. Assim, interessa evidenciar

autoras, em busca de elaborar um discurso visual com imagens que

o modo afro-brasileiro de viver, de narrar, de dançar, de cantar, de

permitam pensar, sentir e viver.

criar e se expressar artisticamente. Exibir expressões artísticas de pro-

Para a abertura das seções, escolhi uma palavra-força. Um agen-

fessoras, que se autodeclaram negras, faz-me sentir compartilhando

te ativo que atua na vida de cada uma das professoras e reúne os

beleza, riqueza e fortuna de nossas raízes.

sentidos caracterizados em suas histórias. Assim, identifiquei os mate-

As histórias e narrativas anunciadas oralmente nos encontros

riais biográficos, como: Energia, de Cristina Santos; Vozes, de Maria

– que foram ouvidas, gravadas, transcritas, textualizadas, conforme

Letícia Felinto; Sementes, de Caroline Nascimento; Encantos, de Eliete

já descrito quando discuti a metodologia –, receberam tratamento e

Marcelino; Vôos, de Camila Cordeiro e Heranças, de Carla Rodrigues.

edição, no formato de um texto que preservou ao máximo a autoria

Cada seção é composta pelo cartão postal escolhido no primeiro

das palavras; as histórias e narrativas veiculadas por meio de mate-

encontro-ateliê, no contexto da proposta “A obra de arte fala de mim”,

riais produzidos e rememorados em outras linguagens, a partir das

com a respectiva narrativa, transcrita literalmente. Servem como uma

dinâmicas realizadas nos encontros-ateliês, receberam tratamento

apresentação pessoal, que costura elementos na vida: um retrato de

curatorial para composição de narrativas visuais.

si, no campo da imaginação suscitada pelo encontro com a imagem

Preservando o tom das conversas que cultivamos nos encontros-

do postal. Esta apresentação, inicialmente, segue com um texto nar-

-ateliês, com a marca da descontração e sem formalismos, trago os

rativo, que oferece outros elementos da história de vida que foi sendo

conteúdos que falam de alguns acontecimentos que permitem uma

contada ao longo dos encontros e que contribuem para ampliar a

visão do itinerário de cada uma das seis professoras, pelos diferentes

visão do retrato traçado quando da escolha do postal-imagem de si.


Também se encontram poemas ou prosas poéticas, trazidas pelas professoras para partilharem num dos encontros. Outras palavras também falam de si, de poetas ou pessoas de seus repertórios, de sentidos talvez, que reverberam do processo, no encontro com as poéticas de artistas negras. Na diversidade de elementos simbólicos e materiais, entre lembranças e produções criativas suscitadas nos encontros com três artistas negras, outros retratos são feitos, que representam a construção da experiência, a partir de histórias pessoais, em interações com outras subjetividades, no movimento em direção às imagens e escrevivências. Além das palavras apresenta essa visibilidade. A partir da produção autoral, apresento a série de três cartões-postais, compartilhados através de fotografias das participantes, que representam passado, presente e futuro. Essa série foi elaborada por meio da ativação da dimensão estética, em conexão com as poéticas negras, ao final dos encontros-ateliês narrativos. É preciso reiterar que a curadoria deste material biográfico envolveu atenção às pessoas e cuidado aos detalhes, pois evidencia a dimensão artística/ estética no trabalho da pesquisadora. Destaco que as narrativas das professoras estão no centro da pesquisa e merecem o corpo do texto, não apenas a inclusão como anexo da tese. Narrativas não são simples dados de pesquisa, mas vida, histórias de formação de mulheres negras professoras, que também são mães, filhas, netas, companheiras e amigas.

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ENERGIA CristiNa NascimeNtO Esse

aqui...

Da

bailarina, da Ingrid.

Maravilhosa, esplendorosa. Eu acho que conta um pouquinho da minha história. Eu sempre fui muito corporal, sempre gostei muito de dançar. A minha vó dizia que a panela caía no chão, eu dançava. E teve um período da minha vida, que eu queria ser bailarina. Quando eu era muito criança, era muito nova ainda. E eu fui desestimulada. Principalmente naquela época, há muitos anos atrás, era ainda mais raro você ver bailarinas negras. Eu queria fazer balé clássico. Era muito difícil. Até tinha uma falácia, que hoje algumas pessoas ainda sustentam, que nosso corpo não era apropriado pro balé por conta da estrutura óssea, a bacia muito grande. Essas coisas todas. E a Ingrid, ela prova o contrário. Enfim, ela conquistou o espaço dela. É muito bacana a história dela, muito bonita. Eu, depois de adulta, fui ingressar em artes corporais, mas num outro viés, fui fazer capoeira.

[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim. Seis de agosto de 2021] Figura 33 - Bailarina Ingrid Silva. http://www.ingridsilvaballet.com/home-1

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“A coisa do corpo é muito forte pra mim. A expressão através da movimentação corporal, é uma coisa que me fala muito.” Cristina Nascimento Dias dos Santos Mulher preta, 56 anos

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Adoro dançar! Adoro sair pra dançar. Adoro uma roda de samba. Na minha formação, na minha vida, a sensibilidade passa pela experiência com todos os sentidos. Mas, principalmente, pelo corporal. A coisa do corpo é muito forte pra mim. A expressão através da movimentação corporal, é uma coisa que me fala muito. E foi um caminho para interagir, para estar junto com as pessoas, porque eu sou bastante tímida... Sou capoeirista e professora de capoeira. Sou instrutora de yoga também. A capoeira é parte importante da minha vida: sou capoeirista há mais de 20 anos! Depois que entrei na capoeira, comecei a circular por vários espaços de cultura popular. Pensando bem, a capoeira foi a minha porta de entrada para um contato maior com a cultura popular. Por exemplo, a ciranda, conheci e dancei na idade adulta. Mas, essa coisa de brincar de roda, isso fez parte da minha infância também. Eu brinquei muito na rua. Eu morava, da minha infância até minha adolescência, numa rua muito tranquila de brincar. Então a gurizada ia toda pra rua, passava o dia todo brincando de várias coisas. E roda, em algum momento a gente brincava. Fazia aquele rodão enorme, porque tinha muita criança. E a gente cantava várias músicas. Mas a ciranda, em si, essa manifestação cultural, foi depois da vida adulta mesmo, por meio da capoeira. Falei que gosto de dançar: dança e capoeira são tudo misturado, junto. Não tem muito como separar: a capoeira é uma manifestação que abarca muitos elementos ao mesmo tempo. As pessoas perguntam: - É jogo ou é luta? Respondo: - É tudo. É jogo, é luta, é dança, é teatralização. Na capoeira tem também música, tem instrumentos.

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E tem uma coisa: o espaço da senzala, onde no passado aconteciam as manifestações culturais, religiosas, aconteciam ali porque era o único espaço que tinham, realmente, pra se expressar. O grande terreiro era o espaço destinado, onde os nossos ancestrais podiam desenvolver a sua cultura. E ali, traziam a África viva. Ali, praquele território, onde tudo acontecia, junto. As manifestações culturais, que davam sentido à vida, estavam todas ali, muito juntas. Então, não tem muito como separar. E ainda tem também aquela coisa da mandinga na capoeira, fingir que tá fazendo uma coisa e não tá. Isso é teatralização, é exercício físico, é tudo junto, tem tudo a ver. Tá tudo ali coladinho. Por isso digo que comecei a conhecer diversas manifestações populares depois que entrei na capoeira. E uma coisa vai puxando a outra. Ah, os instrumentos, a música... Posso dizer que toco um pouquinho de atabaque. Berimbau também. Quer dizer, só toco naquele um, dois, três básico, da capoeira. Pandeiro é muito difícil. Até tenho vontade de aprender a tocar samba, mas nunca fui pra uma aula de pandeiro, acho que tocar samba é muito difícil, por causa do molejo. O toque é fácil de pegar. Mas, o molejo com o pandeiro e o toque junto? Supercomplicado! Sou apaixonada por literatura. Minha avó Joana era contadora de história. Ela, uma senhora semianalfabeta, vinda do interior da Bahia, tinha o dom de contar histórias. Gostava de reunir os netos em roda e contar histórias. A lembrança me faz rir: ela gostava de contar histórias de terror! Assim... Não propriamente terror, mas contos de mistério, de terror lá do interior de onde vinha. Vó Joana morou um tempo na nossa casa. Juntas, vivemos momentos de muita aproximação. Acho que minha vó foi a pessoa que me fez apaixonar por literatura. Sim, o hábito da leitura, o gosto pela literatura, veio da prática de ouvir e ver minha vó contando histórias. Aprendi outra coisa com minha avó: rezar. Aquelas rezas mais tradicionais do catolicismo: Pai Nosso, Ave Maria, Salve Rainha. Ela tinha aquela coisa do católico praticante, gostava de ir à missa todo domingo. Quando ela começou a ficar bem velhinha, precisava de companhia. E quem ia com ela na missa? Acertou: era eu. Não me esqueço: minha avó rezava pelas almas. Toda segunda-feira minha avó acendia vela e rezava pras almas. Tempos depois, quando fui pra

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umbanda, pensava nas rezas da minha avó para as lamas. A umbanda também reza muito pras almas! Vó Joana tinha um lencinho. E usava trança. Como lembro da trança! Lembro bem: a trança que ela fazia com a ajuda da latinha de sebo de carneiro (naquela época não tinha os cremes e tal que hoje temos para os cabelos). Penteando os cabelos e passando o creme, da latinha de metal, para soltar e pentear os cabelos: imagem tão nítida na minha lembrança. Fazendo aqueles trançados, todos os dias. E depois colocando um lenço. Seu lenço de seda azul, que usava muito nos cabelos. Falando de cabeços, durante muito tempo usei dreads. Usei tranças e dreads durante oito anos. Onde eu morava, era a única assim, com cabelos trançados, com dreads. Lembro da sensação de estranhamento das pessoas com o meu cabelo. É, nos lugares que passava, estranhavam. Algumas pessoas, às vezes, perguntavam: - Lava o cabelo? - Como é pra lavar? - Por que decidiu não pentear mais o cabelo? Lançavam esse tipo de pergunta. Perguntas inconvenientes. Difícil ser diferente... Pensando aqui, agora, sou uma pessoa muito visual também. Gosto de ir a exposições de arte, de fotografia. Quando tinha por volta de cinco anos, morei numa casa no Lins, que tinha um canteirinho na frente. Nesse canteiro tinha uma roseira de rosa branca. Toda vez que saia com minha mãe, a gente passava por uma casa, próxima da nossa, que tinha uma menina. A menina sempre falava comigo. A menina era muito carinhosa, sempre fazia algum elogio: “Cê tá bonita hoje”. Chamava minha atenção e conversava. Então, toda vez que sabia que ia passar pelo portão da menina, queria levar uma rosa. Tirava uma rosa do canteiro e entregava pra menina. Olha, que lembrança me veio da infância! Eu, caminhando com a rosa branca na mão, pra levar pra menina, que falava comigo durante o caminho.

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“Eu ouvi recentemente que

eu sou uma geração tombamento.

Preta, pobre, consciente. Que carrega esteticamente a cura pro próprio tormento. Meu tormento não nasceu comigo, eu me lembro me sentindo bem no colégio. me revelavam que

Os meninos que

amor-próprio era privilégio. Meu amor próprio foi

construído, demorei, mas aprendi.

E aos 18 concluído.

Meu padrão não é

daqui. E quis lançar aos quatro ventos, pendurar uma faixa amarela. Quando eu via uma pretinha triste, eu escrevia ou dizia pra ela,

que tudo nela é de se amar.

Tudo. O modo como os músculos dos braços protuberam, a pele que contorna a carne do rosto, iluminando e escurecendo onde quer que esteja.

Tudo Compartilhado

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nela é de se amar, de por

Cristina,

Tudo.”

Luciene Nascimento.

no ateliê do dia

31

de agosto/2021


Figura 34 - Síntese-visual: Cristina, além da palavra. Composição com fotografia enviada pela professora do cartão produzido. Brito Silva, Greice (2022)

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VOzes Maria Letícia FeliNtrO Eu escolhi esse aqui… A carta. Assim que eu bati os olhos, eu lembrei muito da minha mãe lendo cartas da minha vó. A minha mãe veio pra cá pra Niterói, pro Rio de Janeiro, na década de 70. Minha família toda é de Pernambuco. Tanto meu pai quanto a minha mãe. E a forma de se comunicar com a minha avó, era com carta. Então, me veio logo na mente, a minha mãe lendo as cartas de Pernambuco que a minha avó mandava notícias. Como se fosse uma lembrança mesmo. [...] Meu retrato seriam palavras, desde a infância. Tanto no chão da escola, quando eu entrei no jardim, eu comecei a escrever meu nome no chão mesmo da escola com giz. E aí, sempre me vem na mente as cartas, a minha mãe escrevendo e minha mãe recebendo cartas e lendo pra gente ouvir.

Até a letrinha é parecida com a da minha vó.

[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim. Seis de agosto de 2021] Figura 35 - Cristina: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Cristina Nascimento (2021).

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Figura 36 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977). “Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros (1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo Instituto Moreira Salles.

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“Minha memória é muito visual… às vezes eu posso ver algo que vai me remeter àquilo.” Maria Letícia Felintro Mulher Negra, 46 anos

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Eu me realizo na escola com as crianças! Estou sempre disposta a oferecer boas oportunidades para elas. Cada assunto discutido nos encontros, foi me lembrando momentos que vivi com crianças e enquanto criança, no meu tempo da infância. Os tecidos, que logo vi na caixa, lembraram a escola e os detalhes desse cotidiano. São materiais que compro para colocar no parquinho da UMEI, para fazer o tapete da ciranda da turma. Preocupo-me em oferecer uma variedade de coisas para os momentos de colagens, inclusive. Gosto muito de trabalhar com sucatas também. E, seja na brincadeira com sucata ou na colagem com as crianças, tem sempre um pedacinho de tecido envolvido. Uma vez ou duas por semana, faço uma roda musical com as crianças para tocar tambor e os instrumentos que tem por lá. É um barato! Apresento agogô, pandeiro, tambor e todos tocam. Gosto muito de tambor. Apesar de não saber direito os nomes dos instrumentos musicais, gosto de mexer. Levo pra essa roda de música aquilo que tem na escola. E lá tem agogô, tem triângulo, tem pandeiro, tambor. Inclusive, já tive alunos, que quando pegavam o instrumento, tocavam direitinho. Sobre uma saudade… Lembrei do jardim do meu jardim de infância. Quando eu era criança, fiquei por um ano estudando em um jardim de infância em Icaraí. Também frequentei outro colégio ao lado. Lembro que entre esses dois colégios, logo na entrada do portão principal, havia uma igrejinha católica e um jardim todo verde com rosas vermelhas e uma gruta. Nessa gruta havia a imagem da Virgem Maria. Tinha costume de fazer esse caminho por dentro, pas-

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sar por esse jardim de rosas e sair no portão do outro colégio. Ou então visitar a gruta durante o recreio. Haviam muitos pés de rosas bem vermelhas e a grama era bem verdinha. Mas, a lembrança mais forte que guardo, era do jardineiro. Um senhor bem velhinho, que gostava que as crianças fossem lá para mostrar as rosas. Não pode arrancar as rosas! Ele dizia. Lembro que havia uma senhora também que cuidava da entrada dessa escola. O nome dela era Rosa. E ela tinha um cabelo curtinho, cacheado, que sempre enfeitava com uma flor. Não era rosa, mas era uma flor bem vermelha. Eu tenho esses detalhes guardados na memória e me emociono ao lembrar das flores. Desde que eu me entendo por gente, me vejo com flores. Seja no meu quintal, seja na minha escola, infância, e agora como professora. Deu até saudade do tempo em que eu brincava sem preocupação com o tempo! Tenho recordações de danças e cirandas, no lugar onde morei. Brincava com meus amigos na mesma rua que tinha um campo e um pé de castanhola, onde o chão era de barro. Brincava de várias coisas: pique bandeira, pique alto. E lá também, junto com outras crianças, fazia cirandas. Dava as mãos e cantava aquelas cantigas de roda. Nossos pés voltavam pra casa cheio de poeira. Lembro que no pé de castanhola, ainda tinha um balanço de corda nos galhos. O dia era feito para brincar. À noite, o campo se transformava em um espaço para cultos evangélicos, que todos ouviam de casa. Lembro do meu pai, que uma hora estava indo para o evangelho, outra hora estava indo para o centro de candomblé. Ele ficava nessas idas e vindas, nunca se decidia por uma religião. No final da vida, escolheu ficar no evangelho. Havia um retrato do meu pai na minha antiga casa. Era daqueles que pareciam pintados com o fundo, na grande maioria, azul. Havia outros nas casas da vizinhança também. Quando chegava na casa dos amigos, era costume encontrar uma imagem do avô, da avó ou de uma tia numa moldura. Imagens que, na verdade, eram aquelas fotografias de lambe-lambe aumentada. Não sei bem se eram desenhadas, ou se eram apenas fotografias. Só lembro do estilo: preto e branco o rosto e uma cor forte em volta.

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Lembrei com muito afeto da minha avó, que ainda vive em Pernambuco e fez 96 anos, no ano passado. Eu conheço pouco dela, pessoalmente. Nasci e me criei em Niterói. Devido às condições de vida dos meus pais, fomos poucas vezes para Pernambuco. Eu conheço mais da minha avó pelas histórias que a minha mãe conta. Foi assim que ela se tornou uma referência de mulher forte pra mim. Ela ficou viúva nova. Com seis filhos, teve que ir pra roça trabalhar para sustentá-los. Vendia o que plantava na feira, conta minha mãe, que tem o mesmo jeito. Separou-se do meu pai e também foi o esteio da casa. Começou a trabalhar quando eu e minhas duas irmãs já éramos maiores. Ela sempre nos conta as histórias da minha vó, de sua força para trabalhar e sustentar os filhos, sem depender de homem. Antigamente, naquela década de 60, 70, a mulher ficava em casa e o homem trabalhava. Mas, não minha vó! Ela sempre trabalhou e continuou trabalhando para manter os filhos. Assim como fez minha mãe. Por isso, minha referência vem dessas duas mulheres. Minha avó materna e a minha mãe, são referências de ancestralidade que eu tenho para seguir como exemplo. Sobre os encontros: achei curiosa a forma como foram feitos! Aos poucos, foram trazendo essas memórias que estavam adormecidas. Parece que eu vinha guardando o que vivi e tenho vivido ao longo da vida - coisas pontuais, acontecimentos diários do cotidiano - e que vão fazendo memórias. Se pedirem: “Faça um memorial sobre a sua vida", é certo que muita coisa não virá à tona. Mas, com uma música ou uma palavra. Ou algo que eu vi - como quando visualizei aquela carta naquele postal e na mesma hora me fez lembrar das cartas que minha mãe recebia e escrevia. Foi a partir da letra parecidíssima com a de minha avó, que veio tudo.

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“Nossa voz assassina de todos.

ergueu-se consciente e bárbara.

Sob o branco egoísmo dos homens. Sobre a indiferença

Nossa voz molhada das cacimbas do sertão, nossa voz ardente como o sol das malangas,

nossa voz atabaque chamando, nossa voz lança de (maguiguana).

Nossa voz, irmão. Nossa voz ultrapassou

a atmosfera conformista da cidade e revolucionou-a, arrastou-a, como um ciclone de conhecimento. remorsos de olhos amarelos de hiena.

esperança,

seculares.

E fez escorrer suores frios de condenados. E assim deu luzes de

em almas sombrias de desesperados.

cheia em noite escura de desesperança.

E acordou

Nossa voz, irmão, nossa voz atabaque chamando. Nossa voz lua

Nossa voz farol em mar de tempestade. Nossa voz limando grades, grades

Nossa voz irmão, nossa voz milhares. Nossa voz milhões de vozes clamando. Nossa

voz gemendo, sacudindo sacas imundas. voz nostálgica de impes.

Nossa voz gorda de miséria. Nossa voz arrastando grilhetas. Nossa

Nossa voz África. Nossa voz cansada da masturbação dos batuques de guerra.

Nossa voz negra gritando, gritando, gritando. Nossa voz que descobriu até o fundo, lá onde coaxam as rãs, a amargura imensa, inexprimível, enorme como o mundo, da simples palavra escravidão.

sem cessar. Nossa

voz apontando caminhos.

irmão. Nossa

Nossa voz (xipalapa). Nossa voz ataque chamando. Nossa voz,

voz milhões de vozes clamando, clamando, clamando.”

Nossa Voz, Compartilhado

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Nossa voz gritando

por

de

Maria Letícia,

Noémia

de

Sousa.

no ateliê do dia

31

de agosto/2021


Figura 37 - Síntese-visual: Letícia, além da palavra. Composição de fotografias enviadas pela professora: do bloco de anotações dos encontros, do tempo de criança, de seu patuá, das cartas de sua avó e de seus registros e cartões. Brito Silva, Greice (2022)

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SEMENTES CaROLiNe DO NasciMeNtO Eu

tenho uma dificuldade imensa de definir uma coisa só, porque são vários momentos

da história, que a gente acaba lembrando.

“Paredes da Memória”. Patuás em marca acrílica e tecidos costurados.” Por que eu lembrei disso? Por causa da minha família que registra muitas fotos. E minha mãe também sempre trabalhou nisso, porque ela só tem duas fotos da infância dela. Então, todo mês ela tirava uma foto minha e revelava. Então eu tenho um álbum todo, aí depois eu fiz isso com Ana também, com a minha filha, que hoje tem 12 anos. Então a gente vai fazendo isso, porque é tão importante o registro da foto pra nossa família. Outro dia, no aniversário de 90 anos da minha vó, ano passado, mesmo nessa situação de covid, a gente conseguiu se reunir ali, rapidamente, com todas as distâncias e tal, por causa da minha vó, e aí a gente pôde pegar as fotos que ficaram com a minha vó, porque ela é a irmã mais velha dos 17 e aí ela mostrou as fotos da família do esposo dela, meu avô. Enfim, foi falando, a gente foi fazendo a árvore genealógica, o nome dos irmãos. Figura 38 - Letícia: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartõespostais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Maria Letícia Felintro (2021).

aqui é o

[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim. Seis de agosto de 2021]

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Esse

202

Figura 39 - Rosana Paulino. Parede da Memória (1994-2015). Aquarela, manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo


"O fato de eu estar aqui hoje, é fruto de um monte de mulher, que me levantou em algum momento da minha vida.” Caroline de Souza do Nascimento Mulher Preta, 31 anos

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203


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Tenho uma dificuldade imensa de definir uma coisa só! Porque são vários momentos da história, que acabo lembrando ao remexer nas memórias. Estava aqui pensando por quê eu não brinquei tanto de ciranda. Sou filha única e fui criada afastada dos meus primos. Tive relação apenas com primos mais velhos, que viveram uma outra época. Não vivi essa brincadeira de ciranda. O que me deixou encucada é: “Então, como eu sei um monte de cirandas e canto para as crianças?” Só pode ter sido na escola. Só que essa memória se apagou, eu não me lembro. Estou tentando buscar e ainda não encontrei. Com a dança, minha relação não foi tão forte. Com a música é mais para o canto e o instrumento. Tocava piano, parei, agora estou voltando. Voltei a estudar música com a minha filha. Canto na igreja desde sempre. E escuto muita música desde muito cedo. Meu pai colocava os vinis lá em casa, de samba, de tudo. Desde sempre a música está muito ligada na minha vida, mas não na parte da dança. É mais voltada para essa questão vocal e instrumental. Frequentamos uma Igreja Batista aqui em Rio Bonito, onde, recentemente, assumiu um Ministro de Música que é produtor, foi por dez anos professor de música em escola pública. Ele tem uma relação completamente diferente do que aconteceu antes na igreja. Uma cabeça mais aberta, que incentiva a gente, inclusive, a ouvir outras coisas. Outro dia ele estava mostrando uma playlist dele, falava de Fela Kuti, por exemplo, e de outras referências africanas e caribenhas. Isso me deixou extremamente empolgada: “Poxa vida. É outra parada!”. E aí, eu falei: “Vou estudar música com ele pra ver.”. Então, estamos fazendo percepção e teoria musical.

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Inclusive, minha mãe, que tem 64 anos, começou a estudar comigo e minha filha. Na família, eu tenho primos que tocam violão, baixo, teclado. Minha filha toca ukulele, toca teclado também. E minha mãe canta também, sempre foi corista, meu pai sempre também. O pai da minha filha é músico e na família dele também tem muitos musicistas. Enfim, eu tenho muita gente ligada com isso, né? Fiquei pensando na relação com a música, com o corpo e até a música popular brasileira… e talvez, na minha geração, - eu sou do finalzinho da década de 80 - houve um momento de deixar de brincar na rua. É uma coisa triste mesmo. Parece que se perdeu o encanto de brincar na rua, brincar em terra, subir em árvore, de pular muro. E fiquei pensando sobre como ensinam a gente a ser fragmentado. Vejo que tem coisas que faltam na nossa formação. Brincar de roda, na rua, a ciranda, acrescentaria no meu futuro… sabe? A visita mais marcante a um museu aconteceu em 2016, quando fui ao Museu Afro Brasil, em São Paulo, com meu esposo e o filho dele. Já havia ido ao Museu Afro Brasil, por duas vezes, antes daquele momento. Mas, essa foi uma visita muito diferente. Antes, tive a sensação de que o Museu Afro Brasil era para pessoas que já tem uma certa inserção na temática racial. Entendi pouco ou quase nada do que estava vendo. Em 2016, por já ter certa vivência na área, essa ida fez mais sentido. A parte sobre religiões foi o que mais me marcou, na segunda visita ao Museu Afro-Brasil. Embora eu seja batista, aprendo muito com os princípios e valores presentes nas religiões de matriz africana. De certa forma, eu até me envergonho. Ainda precisamos avançar muito nos aspectos da convivência com o ser humano, principalmente por conta dos conflitos trazidos pelo fundamentalismo religioso, que é muito forte. Na igreja que participo, não é tão intenso, pois a juventude negra tem se levantado contra. Falar de ancestralidade é difícil. Estou aqui hoje, fruto de um monte de mulheres, que me levantaram em algum momento da vida. Por isso, é muito difícil identificar uma pessoa só. A primeira pessoa que veio à lembrança foi minha mãe. Outra pessoa que lembrei foi minha tia, uma das irmãs da minha avó, que logo assim que minha mãe se divorciou do meu pai, ofereceu uma oportunidade de emprego no mesmo prédio onde ela morava, no Grajaú. Lá nós moramos por dois, quase três anos. Foi muito difícil! À época, minha mãe não tinha roupas, por exemplo, para ir à igreja. Ela usava a

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mesma roupa todos os domingos. Eu ganhava roupas sempre muito boas. E lembro de ter sido bem acolhida pelas pessoas. Às vezes, vejo as pessoas falando sobre memória de vó, mas não tenho essa lembrança. Minha família não tem muito essa coisa do afetivo presente, acho que por conta da vida difícil. Sempre fomos: eu, minha mãe, minha avó e depois minha filha. Acho que a vida não me deu oportunidade para ser afetuosa. A professora que sou tem como atravessamento a maternidade. Antes de fazer Pedagogia, eu fiz vestibular para química, na UERJ. Já tinha sido aprovada na prova discursiva quando descobri que estava grávida. E, tudo mudou de ponta cabeça! Em nenhum momento passou pela minha cabeça estar nesse lugar que eu estou hoje: o lugar de ser professora e com crianças pequenas. Nunca brinquei de ser professora, não fiz normal no ensino médio. Enfim, nunca me imaginei nessa situação. Meu cabelo é parte do meu corpo! Uma fala da minha terapeuta capilar, me marca. Ela diz que existe uma relação forte entre cabelo e corpo e que precisamos pensar como o cabelo reflete nosso corpo, a nossa saúde, a nossa alimentação. Ter essa consciência faz muita diferença, porque às vezes fazemos um monte de coisa com cabelo por causa estética ou por causa do racismo, e acabamos nos maltratando. Esquecemos um pouco, perdemos essa conexão de vista. Eu mesma já perdi essa conexão. Meu encontro com essa profissional foi como se tivesse me ligado na tomada. Conectei uma coisa à outra: cabelo e corpo. Por que pretinhosidade, né? Porque me representa. É um termo do Mombaça, que escreveu uma música e que ficou conhecida na voz da Mart’nália. Uma vez, no dia 15 de agosto de 2012, fui chamada de pretinhosidade pela primeira vez e desde então minha vida nunca mais foi a mesma. A pessoa que me chamou desse jeito, foi meu esposo. Ele, inclusive, fez uma poesia sobre pretinhosidades. Diz assim: “Se somos um comum de amor e um amor que faz como um, somos vários produzindo um, espinhos com aroma de flor. Se somos feitos de muito, somos samba, beleza e axé. Somos corpo de mulher. Subjetividade. Se somos rizoma-liberdade, somos devoração ativa, somos ações afirmativas, somos negras perspectivas, somos pretinhosidade.”. É... então é... somos pretinhosidades.

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“Eu, mulher preta, escrevo a despeito da força esmagadora do racismo, que rasga as páginas da minha própria história, eu traço com fortes traços desenhos em compassos, letras em descompasso, dores e mordaças, própria dor.

eu escrevo pra me libertar

da minha

Eu, mulher preta, existo, a despeito da invisibilização midiática, das propagandas monocromáticas da TV, das capas de revista

que dizem, ainda que sem dizer palavra alguma, que meu nariz não serve, que me cabelo não serve, que minha beleza não é bela, que na selva das vaidades, o lugar da rainha do baile não é meu, é dela.

Eu, mulher preta, insisto a despeito da normatização da tragédia.

Eu me nego a aceitar o assassinato de jovens pretos favelados, a banalizar as balas que se acham nos corpos da minha comunidade, a vulgarizar o sangue que lava os becos e vielas do meu território.

eu luto contra o pecado do racismo,

Eu, mulher preta, milito a despeito do silenciamento imposto,

pela reconstrução da autoestima, e da agência preta dentro dos espaços, pela efetiva

libertação do corpo preto, intensamente subalternizado, pela visibilização da negritude afirmativa.

Eu, mulher preta, sinto a despeito

da insensibilização dos meus sentidos, eu exerço meu direito ao afeto, ressignifico esse corpo bestializado, esse resistência ancestral violentamente animalizada

e imprimo nesse corpo preto,

o movimento sutil, as frágeis nuances, os leves contornos desse leve

corpo que antes de carga pesada da escravização, carrega em si culturas e sabores e odores e amores.

Eu, mulher preta, oro a despeito

da desesperança, peço socorro constante do santo espírito, clamo pela renovação das boas memórias, desejo todos os dias que o sol da justiça brilhe em meu coração e dissipe essa densa nuvem da apatia que nos encobre. estrangulamento das minhas emoções, eu me entrego ao amor.

Esse mais que utopia é escolha, esse que mais que quimera é realidade,

esse mais que destino é trajetória, que ano é o fim, é meio. de

Compartilhado

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por

Eu, mulher preta, respiro a despeito do

Eu, mulher preta, vivo a despeito das estatísticas.”

Fabíola Oliveira.

Caroline,no

ateliê do dia

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de agosto/2021


Figura 40 - Síntese-visual: Caroline, além da palavra. Composição de fotografias enviadas pela professora: do seu patuá, da sua tia Zete, do bilhete escrito para ela e do seu cartão “Pretinhosidades”. Brito Silva, Greice (2022).

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ENCANTOS ELiete MarceLiNO Esse daqui, da Carolina Maria de Jesus, eu não tinha lido. Eu fui ler isso agora. Só o fato de ser uma folha de caderno envelhecida e a letrinha toda redondinha, bem ajeitadinha, é como se a minha mãe tivesse escrito. É a letra da minha mãe, essa letrinha. Essa primeira palavra ali, idêntica a letra da minha mãe. E a folha do caderninho por quê? Eu tô num processo de resgate da memória e da história da minha família. Eu escolhi esse tema pra poder escrever como trabalho final da minha pós-graduação. A minha vó era parteira. Mulher negra, parteira, analfabeta e ela tinha um caderninho que está comigo. Minha mãe guardou com muito carinho e eu, na minha adolescência, querendo folha pra desenhar, achei aquele caderno e a minha mãe falou que não podia rasgar. Que era pra poder guardar. Porque era o caderno da minha vó, que gostava de ser chamada de dindinha. E ali tem registrado um parto que a minha vó fez. Só que a minha vó era analfabeta. A minha vó não sabia escrever. Então, ela pedia pras pessoas letradas, pra poder registrar. Então ela ia falando, a pessoa ia escrevendo ali. Então, por isso me constitui. É uma imagem que fala de mim, é o meu retrato.

Figura 41 - Caroline: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartõespostais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Caroline Nascimento (2021).

[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim. Seis de agosto de 2021]

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Figura 42 - Carolina Maria de Jesus (1914 -1977). “Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros (1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus. Acervo Instituto Moreira Salles.


“Eu sou apaixonada pelas memórias, pelas histórias das coisas, pelas cartas, pelas fotografias. Isso me encanta demais.” Eliete Marcelino Mulher Parda, 43 anos

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Desses encontros, eu quero tudo! Eu quero ficar aqui, oh... a noite inteira batendo-papo, falando, lembrando. Eu quero tudo! Quando peguei a caixa, junto com ela, veio minha sobrinha. Eu estava empolgadona abrindo a caixa e ela, ao meu lado, estava mais empolgada ainda. Escolheu, já ficou encantada com os paninhos e disse: “Ih, tia, mas isso aqui combina comigo.”. Pedia: “Faz um lacinho pra mim.”. Eu fui, peguei o paninho, dobrei, peguei os alfinetes que vieram aqui. Prendi, fiz o laço e coloquei no cabelo dela. Foi empolgante e maravilhoso receber a caixa. Eu fiquei apaixonada por tudo! Minha avó chama-se Sebastiana Muniz de Oliveira. Ela é parteira. A lembrança que eu tenho dela é de uma mulher muito forte, muito feliz, muito brincalhona, contadora de história. Quanto mais eu pesquiso sobre ela, mais eu descubro que eu tenho muito dela. Isso, para mim, é maravilhoso. Eu não era muito próxima da minha mãe. Quanto mais eu descubro sobre a minha vó, mais eu percebo que sou muito parecida com ela. Sinto muito orgulho de quem ela foi e de tudo que ela representou para as pessoas que a conheceram. Ela morreu na semana em que eu fiz cinco anos de idade. Foi enterrada no dia do meu aniversário. Quando eu era pequenininha, minha avó morava ao lado da casa da minha mãe, nos fundos da casa do meu tio. Todas as tardes a gente ia pra casa da dindinha, que é como ela gostava de ser chamada. Ali, ela contava histórias pra gente, juntava os filhos da minha tia, mais os filhos da minha mãe, mais os filhos da vizinhança toda e ficava todo mundo ali aos pés

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da minha avó, ouvindo suas histórias e brincando. A gente brincava muito. Às vezes, ficava no quintal da minha tia, debaixo de uma amendoeira. Ficava ali fazendo as danças, cirandas. E tinha a Bastiana, que era a tia que morava ali ao lado e era a que mais se envolvia. Que nos ensinava a cantar, a dançar. Ela também lia livros pra gente. Com a ciranda, vivi outra situação na universidade, durante um encontro com estudantes de Pedagogia na Bahia. Ficamos alocados em uma escola onde tinha um grupo de pesquisa de cirandas. Eles tinham instrumentos, que começaram a tocar e ensinar pra gente. Eu quase chorei de emoção! Percebi que eu não sabia dançar ciranda. A ciranda que eu dançava na minha infância, era brincadeira de roda. E ali, eles tinham toda uma técnica, mas eu fiquei toda atrapalhada. Fui cheia de gás para poder brincar de ciranda e eles: “Não, porque tem que dançar assim, tem que dançar assado.”. Até saí da roda, porque não conseguia pegar o passo. Acho que quando a gente vai no coração, na intuição, no embalo, de repente…está dançando. Mas, quando me disseram: “Não, porque é assim, tem que contar”, a cabeça entrou no meio... e degringolou tudo. Lá na minha casa, a gente fazia faxina, trabalhava, brincava, fazia tudo com música. Só ouvia rádio. Tentei aprender a tocar violão. Até tenho um violão e sei tocar algumas coisinhas. Com certeza, três músicas eu aprendi. É. Porque para aprender, tem que se dedicar. Só se aprende a tocar, tocando. Eu não me dedico, na verdade. Meu pai pegava o violão também, arranhava um pouquinho. Ele morreu com 86 anos de idade. Estava aprendendo a tocar sanfona e viola. Eu ouvia muito e papai cantava pra mim: ‘Oh, coisinha, tão bonitinha do pai’. Aprendi a andar com meu pai cantando essa música pra mim. Viva Beth Carvalho, Jorge Aragão! Estou em processo de pesquisa também, fazendo o resgate da história da minha família, dos meus antepassados. Catando fotos antigas. Aqui, tenho muita fotografia.

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A foto que eu botei no meu perfil do WhatsApp é um dos resgates desse garimpo. É uma foto minha com a minha avó. Ela, que se tornou a personagem principal da minha pesquisa pessoal e da minha pesquisa para o trabalho final da pós-graduação que estou fazendo. É muita emoção envolvida, viu? Dentro desse patuá vão algumas lágrimas para minha avó. Jamais teria essa ideia brilhante de escrever um bilhetinho. Vou escrever uma carta pra ela. Quando eu entrei na UFF e fomos para o ENEP [Encontro Nacional de Estudantes de Pedagogia] lá na Bahia, visitamos o Mercado Modelo. Foi marcante! Havia uma exposição no subsolo. Quando entrei ali, passei mal, fiquei trêmula. Fiquei gelada e quente. Eu sentia... e ouvia as vozes das pessoas ali dentro. Estou toda arrepiada agora. Parece que eu sentia toda aquela energia, daquelas pessoas que morreram, que sofreram e estavam ali. O chão era todo de água, tinha apenas um caminho pequeno feito de cimento para você passar e ver. Havia uma marca da maré quando estava alta. Nossa! Aquilo foi terrível pra mim. Foi uma experiência muito ruim, eu diria assim. Lembro de um pedaço triste da minha infância. Sou a filha número sete de oito filhos vivos dos meus pais. Sempre ouvi do meu pai: “Você é quadrada.”. “Você é burra.”. Não só dele! Também de outras pessoas próximas. Isso machuca, marca a gente. Não me afeta mais, mas faz parte da minha história. Por ironia do destino ou por muita força de vontade, sou a primeira filha dos meus pais a me formar na faculdade. Fiz faculdade pública, estudei na pós-graduação. E isso abriu caminhos para outras meninas, filhas das minhas irmãs.

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“Pombinha, quando tu fores, escreve pelo caminho. Se não achares papel, nas asas do passarinho.

Da boca faz um tinteiro, da língua pena dourada,

dos dentes letra miúda, dos olhos carta fechada.

A pombinha voou, voou, voou.

Ela foi-se embora e me deixou.”

Poesia, de Vovó Dindinha. Compartilhado

por

Eliete,no

ateliê do dia

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de agosto/2021

Figura 43 - Síntese-visual: Eliete, além da palavra. Composição de fotografias enviadas pela professora: o patuá confeccionado sob sua mão; o encontro com a obra de Priscila Rezende; a sua experiência com os materiais; a boneca confeccionada, a imagem de sua avó Sebastiana, o cartão com lembranças de seu pai e a imagem da sua mãe Lígia. Brito Silva, Greice (2022).

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HERANÇAS CarLa ROdrigues “…o [cartão-postal]

“Parede da Memória”, que me faz lembrar da história da família do meu pai e da minha mãe, que são de ex-escravizados. Uma parte da história da família, não conheço, pelos registros terem sido destruídos. Mas tanto o meu pai, como a minha mãe, relata, do pouco que eles lembram da infância deles, que meus avós trabalhavam em plantação de cana-de-açúcar e café. A viagem de trem, no caso do meu pai, pro Carmo, da minha mãe pra Nova Friburgo. Chegou até ter quando era criança, uma onça parda. Até passou uma reportagem na televisão e minha mãe lembrou: “Ih, minha onça parda, quando eu era criança no trem, quando eu tinha cinco anos, que fugiu.”. Aí quando eu vi isso daqui, nossa, lembrei logo da história da família. E as poucas fotos que a gente tem aqui em casa, algumas já bem já velhinhas, esfareladinhas. Até minha irmã comentou comigo: “A gente pode tentar restituir, né? Mas vai ser difícil, porque tão bem amareladinhas.” Mas, tem algumas fotos dos meus avós. Aí quando eu vi isso daqui, eu lembrei logo dessa história toda. Essa daqui é a que mais me representa. É a busca da história da família. Essa imagem me representa mesmo.” Figura 44 - Eliete: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Eliete Marcelino (2021).

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que mais me tocou foi o

[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim. Seis de agosto de 2021]

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Figura 45 - Rosana Paulino. Parede da Memória, 1994-2015. Aquarela, manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.


“Eu, particularmente, adoro turbante, sempre gostei de botar um lenço na cabeça. Estou usando bastante, as pessoas olham com uma cara meio assim, espantada e eu nem ligo, tô nem aí pra hora do Brasil.” Carla Fernanda Leal Rodrigues Mulher Preta, 40 anos

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Muito feliz em receber o convite para participar da pesquisa! Adorei a caixa, adorei tudo, mas especificamente os tecidos. Principalmente os dois tecidos africanos. Lembram da luta do povo negro no Brasil, na África. As pessoas falam que é moda. Moda de roupa africana, tecido africano, cabelo africano, trança, apropriação cultural, esse papo todo que tá rolando agora, que eu fico extremamente irritada com as respostas que as pessoas dão pra cada um desses temas. Adoro turbante! Sempre gostei de botar um lenço na cabeça. Laço nem tanto, mais turbante mesmo. Lenço amarrado ou fechado, eu adoro. Uso bastante e as pessoas olham com uma cara meio espantada, mas eu não ligo. Tô nem aí pra hora do Brasil! Uso mesmo, nem ligo. Inclusive, na escola, quando eu comecei a usar lá em 2015, percebi que as pessoas ficaram meio assim. Uma professora até perguntou se ela poderia usar. Ela se sentia amedrontada, pois na época, houve uma discussão com uma atriz ou ator de fora, louro ou loura, que estava usando turbante e, na internet, começaram a comentar que eles não poderiam usar as tranças porque era apropriação cultural. Às vezes, fico irritada com os comentários de algumas pessoas. Eu explico, a pessoa não quer entender, então já encerro a conversa para não piorar a situação. Tem hora que cansa de explicar a mesma coisa toda hora. Quando a pessoa não se sente afetada sobre o tema, não vai querer aprender, não vai querer estudar mesmo. Se não faz parte de um grupo que é oprimido desde que o mundo é mundo, que tem que matar um leão por dia pra sobreviver, se não correr atrás, fica inteiramente no limbo. Pergunta:.“Ah, o que eu posso ler?”. Indico: “Lê isso, lê isso, lê isso.”. A pessoa, se é que leu, mesmo assim ainda não absorveu: ah, oh, eu perco a

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paciência! Desculpa dizer isso, mas eu perco a paciência. Não dá! A gente não tá falando de coisas tão distantes assim ou de fora do nosso convívio social. Eu adoro ciranda! Gosto muito. Na escola usava bastante com as minhas crianças. Agora não posso, ainda estou no modo remoto. As melhores lembranças com ciranda são da época da infância. Eu e meus irmãos brincávamos na rua, de manhã, de tarde, de noite, nas férias, na volta da escola. E era seguro. Às vezes ficava sem nenhum adulto olhando, no máximo um irmão mais velho. E não havia perigo. Eu adorava! Embaixo do pé de amendoeira, pé de manga. Perto de casa, havia uma quadra com chão de barro. Ih, quando chovia, era uma delícia! A gente brincava na chuva. Não tinha estresse. No máximo, uma mãe ou outra reclamava, mas era tranquilo. Brinquei bastante! Ciranda, pique alto, pique baixo, pique se esconde, queimado. Tudo aqui na rua. Hoje, as crianças, infelizmente, não têm essa oportunidade de brincar, devido a violência. Tá todo mundo no eletrônico. Eu adorava! Gostava muito de brincar na rua. Gosto de dançar também. Quando eu era pequena, na escola, cheguei a fazer um ano de jazz. Depois saí. Adulta, às vezes, quando dá um tempinho, vejo uns vídeos de dança no YouTube e pratico em casa. Assim que puder, eu vou me matricular numa aula de dança. Ah, gosto de salsa! Gosto de samba também. Não danço muito bem samba não, arranho. Gosto de samba de gafieira também. Não sei ainda, mas gostaria de aprender. Já a salsa, eu adoro!. Lembrei das fotos dos meus avós, por parte de pai e parte de mãe, com fundo preto ou branco. Inclusive algumas imagens tem até um formato circular em cima que continuava com eles. Estão lá em Friburgo. Quando eu era criança também havia essas câmeras antigas de foto. A foto era pequenininha, você tinha que ver pelo buraquinho, como se fosse um binóculo e a foto ampliava. Esqueci o nome daquilo... monóculo! Com essa dinâmica, eu lembrei deles. Aqui em casa tinha aqueles azuis com a bordinha branca. Participei, em 2018, durante o aniversário de 130 anos da abolição da escravatura no Brasil, de um seminário para historiadores na Fundação Getúlio Vargas. Uma das atividades foi visitar o Instituto dos Pretos Novos, na Gamboa. Foi uma experiência muito impactante! Vi onde os africanos chegaram. Conheci mais do Instituto Pretos Novos. Uma casa particular, que quando foram fazer a obra, descobriram um

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cemitério, até que chamaram o pessoal da arqueologia e conseguiram provar que haviam restos mortais de africanos escravizados. Acharam diversas cerâmicas indígenas e africanas também. Foi muito impactante! Uma coisa, assim, de chorar. No mesmo dia, fomos à Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, que tem um mini museu com objetos da escravidão. Também de chorar! Inclusive agora foi restaurada a igreja, está aberta para visitação e está tendo missas novamente. Fica na rua Uruguaiana. No mesmo ano, em 2018, teve uma exposição no Arquivo Nacional, com a Lei Áurea, que também foi bem impactante. Junto da lei, havia diversos tipos de jornais da época, de senhores de fazenda procurando os escravos fugidos. Havia diversos arquivos, inclusive sobre a Revolta dos Malês. Muito interessante! Lembro do que estudei na escola. Muita coisa que fiquei sabendo na vida adulta, não tem nada a ver com o que aprendi. Quando fui buscar para ensinar às crianças, desde as pequenas, não é nada daquilo. Eu cheguei a trabalhar com ensino fundamental I. Agora, há 12 anos, eu tô com os pequenos. E vejo como o racismo sistêmico, científico, religioso e etc, está tão enraizado. Lembrei das minhas avós: Maria Judite e Maria Geralda. Elas eram irmãs, meus pais são primos de primeiro grau. Imagina a situação! As duas trabalharam na roça, em Sumidouro-RJ. Meus avôs também. Parte da família da minha mãe foi para Friburgo. As duas trabalhavam muito com ervas, a preferida era arruda. Amo o cheirinho de arruda! Aqui em casa, nunca vinga. Compro, planto e logo morre. Lembro do que minha avó falava: “Se morrer é porque tem alguma coisa estranha”, algum mau olhado, alguma coisa assim. E sempre morre e eu compro de novo. Comigo-ninguém-pode, até que resiste bem. Mas, com a arruda, não sei o que acontece. Parece que ela suga tudo e falece, tadinha! Minhas duas avós também faziam muito fuxico. Faziam colcha, almofada, capa de almofada. Não consigo fazer isso não! Pensei em usar o tecido de flores; e a cor amarela, tem a ver com conhecimento, né? Elas não tinham conhecimento acadêmico, mas tinham um conhecimento ancestral com ervas. Faziam um xarope com guaco e mel, quando a gente era criança. Mas, a lembrança mais marcante mesmo é da benzedura com a arruda. Quando íamos lá visitar... As duas, vovó Judite ou vovó Geralda, usavam arruda, tanto pra rezar, quanto para banho também.

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“[...] A voz de minha mãe ecoou

baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela

A minha voz ainda ecoa

versos perplexos

com rimas de sangue e fome.”

Vozes Mulheres, de Conceição Evaristo. Compartilhado

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por

Carla,no

ateliê do dia

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de agosto/2021


Figura 46 - Síntese-visual: Carla, além da palavra. Composição de fotografias enviadas pela professora: de seu patuá e de sua avó com ela no colo. Brito Silva, Greice (2022).

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VÔOS CaMiLa COrdeirO Eu já tinha falado desse postal, que é de Robinho Santana. Ibejis, 2020. Nossa história é marcada muito pela solidão. Quando a gente consegue encontrar pessoas que caminhem com a gente, isso nas relações de amizade, nas relações de trabalho, nas relações afetivas, no caso, nas relações românticas, né, casal, isso é muito importante. E pra gente é uma marca encerrar ciclos de solidão. Que nossas mães, que as nossas tias, que nossas avós viveram e criaram a gente. Mulheres que desde pequena ouviram: “Você vai morrer sozinha.”. Porque você é difícil, porque você é escandalosa, porque você reclama de tudo. E essa relação com essa imagem, remete a minha relação com o meu companheiro, eu consegui encontrar caminhos na minha vida que antes estavam fechados. Uma pessoa que caminhou comigo na minha vida espiritual também. Desde quando eu era da igreja evangélica, os erês já estavam ali comigo e eu não entendia qual eram as relações que eu tinha. E depois, não caminhando sozinha, mas com alguém comigo, consegui romper as barreiras, não só da solidão, mas também aprofundar na minha espiritualidade. [...]

Figura 47 - Carla: entre passado, presente e futuro. Série de três fotografias dos cartões-postais produzidos no último encontro-ateliê narrativo. Carla Rodrigues (2021).

[Narrativa em interação com a proposta: A obra de arte fala de mim. Seis de agosto de 2021]

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Figura 48 - Robinho Santana. Ibeji, 2020. acrílica sobre tela, 2020, 110x130 cm. Acervo do Museu Afro-Brasil.


“Eu já voei muito alto em vista do que a história achou que eu poderia.” Camila Coutinho Cordeiro Mulher Negra, 31 anos

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Quando você disse: “Ah, vai vir um material”, pensei logo: “Será que vai vir texto? Vai vir cheio de texto? Vai ter que fazer leitura prévia?”. Lancei aquele olhar sobre as pesquisas da academia de forma mais padrão. Sendo bem sincera, há bastante tempo eu não consigo participar de momentos assim... Sentar, pegar o chá... Chego do trabalho correndo. Quando abri a caixa, fiquei emocionada. Logo imaginei que seria um encontro gostoso com os elementos que tinha ali. Os tecidos e suas estampas, me levaram a lugares, a outros pensamentos. Penso que o trabalho nos consome tanto - a vida, o cotidiano, a pandemia -, que faz com que, às vezes, a gente se coloque num lugar que nem sempre é o que sempre lutou para estar. Tudo isso tem a ver com a caixa, porque os detalhes, pequenas coisas assim, detalhes mesmo, importam. Eu mostrei pro meu esposo e ele disse: “Nossa, tanto tempo que eu não vejo um envelope!”. Deu uma nostalgia também. Ouvir a voz da Lia, me remeteu a voz da minha vó cantando. Tem um jeito, não sei explicar, mas é uma entonação, que coloca uma impostação de voz e a pronúncia das palavras, que parece muito minha avó cantando. Ela cantava músicas de ninar, pra gente dormir. E ela dormia e a gente ficava acordada, e dizia:“Vó, acorda que a gente não dormiu ainda não. Continua cantando!”. Até que eu e meus primos dormíamos. Outra coisa, foi sobre o espaço da brincadeira de roda. Dancei muita ciranda em encontros da igreja evangélica. Fazia parte de uma organização dentro da Igreja Batista, que era Os Mensageiros do Rei. Participava de encontros e, num momento cultural, brincava de roda. Esse momento da roda era o mais esperado. Em uma recordação, lembro que fui num encontro lá

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em Cachoeiras de Macacu-RJ e a igreja tinha um espaço ao lado, grande, onde brincamos de roda. Ali, eu tinha entre nove e doze anos de idade. Já o maracatu, o jongo e o coco, conheci quando adulta na universidade. Para mim, são danças circulares, pois se entrelaçam. Tenho dificuldade em diferenciar o que é coco e o que é cada dança. Só sei que a gente tá dançando em roda. Com o jongo da folha de amendoeira, que acontece na Praça da Cantareira, em Niterói-RJ, conheci algumas pessoas. Eu matava aula pra ir pra lá, terça-feira. Morei na moradia estudantil da UFF. Tinha um pessoal da Casa do Estudante, que era do jongo. Essas danças, na verdade, foram aparecendo quando entrei na universidade. Quando entro na roda, olho e danço ali, meio envergonhada. Nunca participei de nenhum grupo específico (de jongo) não. Só de passagem mesmo. Faço relação entre essa ciranda que eu dançava entre meus 9, 12 anos, nos espaços de encontro da igreja, com esse outro momento e essa valorização das manifestações culturais, no contato da universidade. Não sei tocar nenhum instrumento musical. Nunca toquei nada. Como falei: minha infância e minha adolescência, eu passei na igreja. Meus primos eram músicos, minhas primas cantavam e eu era do grupo de dança da igreja. Tenho vários amigos músicos, amigos próximos. Adulta, frequentava roda de samba. A relação com a música está relacionada ao entretenimento e ao lazer. Não faz parte de mim. Não toco, não canto, não faço nada disso. Na casa da minha avó materna tinha uma foto da minha avó e do meu avô (que não conheci, pois ele faleceu antes de eu nascer), na sala, bem nesse estilo do postal mesmo. Era uma foto que parecia esfumaçada. O entorno parecia pintado a mão. Na casa da minha vó tinha muito monóculo. No dia 12 de agosto fez 18 anos que minha avó materna faleceu. Nossa! Percebo como voou o tempo. Parece que foi nesses dias, que minha tia foi morar na casa dela. Não fizemos aquele momento, que geralmente as famílias fazem, de mexer nas coisas, desfazer. Pensei aqui: “Gente, pra onde que foram aquelas fotos? Os monóculos que tinham lá?”. Fiquei pensando agora. “Pra quem foi?”. Não tenho muito registro fotográfico da infância. Uma vez, no curso normal, uma professora propôs que nós fizéssemos um memorial, como se fosse um livro da nossa história, uma linha do tempo e fui percebendo que não tinha foto. Fui catando na casa de uma tia ou outra, em que eu aparecia como coadjuvante em alguma festa. Quase não tenho fotos. Aquela caixa que a família tem de fotografias, memórias, eu não tenho isso. Comecei a tirar

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foto, acho que a partir do meu aniversário de 15 anos, que também não tem um grande álbum. Tem algumas fotos reveladas, mas também foi se perdendo. Isso é algo que hoje tento priorizar: registrar os momentos! Sinto muita falta desse registro fotográfico. Não tenho da minha infância, imagina da infância da minha mãe, da minha vó! Quase nada, assim! É uma memória somente oral. Porque o registro escrito e fotográfico, quase não tem. As primeiras oportunidades de visitar museus, espaços de produções culturais e artísticas, se deu quando entrei na universidade. Na verdade, na época do ensino médio, cheguei a ir no Museu Imperial, em Petrópolis. Fui de novo no final de semana. Falamos assim: “Ah, quero ver. Que agora é outra mente, outra cabeça.” E, foi bem interessante, a postura diante do que é luxuoso da monarquia. Uma sala para a imperatriz, uma roupa para aquilo, uma roupa para aquilo outro. Na minha mente, o tempo todo, dizia assim: “É agora? É agora que a gente vai expropriar tudo isso? Que a gente vai tomar tudo que é nosso? Botar a coroa na cabeça do povo preto?”. Fiz alguns passeios com a UFF. Fui a Ouro Preto, na Casa de Cultura. Consegui ir ao Maranhão também, onde visitei um dos espaços que retratava a cultura local. Lembro de um museu do maracatu. A última exposição com artistas e obras do povo preto, que fui, foi uma exposição individual do artista Mulambo, no Museu de Arte do Rio. É bem interessante, porque ele é um artista, que eu tive oportunidade de tomar cerveja junto lá na Cantareira. Ele é estudante de arte da UFF! Para mim, foi a exposição mais marcante. Minha família é de Itaboraí-RJ. Minha avó morava nas plantações de laranja, que é um símbolo tão forte que está na bandeira da cidade. E ela tem um sobrenome, que dá nome a um bairro: Posse dos Coutinhos. Uma amiga estava fazendo uma pesquisa sobre os barões de café em Itaboraí e a relação com a escravidão e veio falar comigo. Primeiro, ela brincou comigo assim: “Nossa, sua família é dos barões de Coutinhos.”. E eu respondi: “Tem certeza?”. Minha tataravó, na verdade, herdou o nome dos seus donos, os Coutinhos. Ela não era dona de alguma coisa. Não tenho muita história pra contar sobre a minha família. E, essa relação ancestral, infelizmente tem a ver com a escravidão. Fiz o bilhete pra minha vó. Escolhi o tecido amarelo, linha amarela. Pensei em fazer numa forma como se fosse uma almofada, porque minha avó era costureira e ela fazia bastante almofada. Ela se chamava Neir. Ah, uma coisa interessante é que eu sonho com ela até hoje.

237


“Relatando o nosso íntimo, pra lembrar daquela noite, inspirado nos fugimos, nos livrando do açoite. Tão marcados, pele e alma. Muita gente nem quis crer. Ficamos bem, separados. Esperando anoitecer. Noite veio, segue praste, atenção ao tal senhor. Enquanto tu preparavas pra sinhá, banho de flor. Madrugou e não foi fácil. Entre as matas um cavalo. Nos levando pra outras bandas pro encontro dos chegados. Entocados, desarmados, só com a fé nos orixás. O senhor de liberdade, nós não perdemos jamais. Conseguimos, sim, vencer. Suspirando alegremente nos lembramos dos malês, povo sábio e inteligente. Sem feitor, caixa pra mão. Sem berlinda e cepo. Sem cinto de contenção, sem tronco que nos fez presos.

Ferro de marcar, marcou. Vira-mundo nos quebrou. Mas me dê um beijo, preta. No quilombo nós chegou.”

Hashtag Poetas de Quarta, de Leandro Tadeu Gomes. Compartilhado

238

por

Camila,no

ateliê do dia

31

de agosto/2021


Figura 49 - Síntese-visual: Camila, além da palavra. Composição com fotografia enviada pela professora, de seu patuá sob sua mão. Brito Silva, Greice (2022).

239


6.2 A ESCUTA DÁ O TOM AO BORDADO NARRATIVO: TEMPOS, TERRITÓRIOS, FIGURAS DE LIGAÇÃO, VIVÊNCIAS CULTURAIS E OBJETOS BIOGRÁFICOS Tendo em mãos os mapas de rotas de experiências que marcaram a sensibilidade estética nas histórias de vida das professoras, avanço para dialogar com os elementos identificados, conforme traçado nos objetivos da pesquisa. Aqui me aproximo do conceito de “recordações-referências” (JOSSO, 2002), evidenciado como recordações [...] simbólicas do que o autor compreende como elementos constitutivos da sua formação. [...] significa, ao mesmo tempo, uma dimensão concreta ou visível que apela para as nossas percepções ou para as imagens sociais, e uma dimensão invisível, que apela para emoções, sentimentos, sentido ou valores. (JOSSO, 2002, p. 29)

A pesquisa sustentada no aporte teórico-metodológico das abordagens (auto) biográficas não prevê a análise da história do outro, nem

240

Conforme já exposto, o material biográfico advindo das gravações dos encontros-ateliês narrativos foi transcrito e textualizado. Seguindo o princípio de pensar e problematizar as narrativas não como meros dados informativos, mas como acontecimentos da vida e formação das professoras, utilizei a ideia de uma leitura em três tempos, baseada em Souza (2004), gerando um campo para a análise interpretativa do material. O referido autor, apoiado em Ricoeur (2007), considera os tempos de lembrar, narrar e refletir sobre o vivido, num processo que, reconhecendo o valor heurístico das narrativas, permite tecer uma análise interpretativa-compreensiva. Em suas palavras: [...] a análise interpretativa das narrativas (auto) biográficas buscará evidenciar a relação entre o objeto de estudo, seus objetivos e o processo de investigação-formação, tendo em vista entender as regularidades e irregularidades do/no conjunto de escritas de si, partindo sempre da singularidade das histórias e das experiências relatadas por cada sujeito. (SOUZA, 2004, p. 122)

tampouco busca encontrar uma verdade nas suas biografias. Conside-

Assim, de acordo com o pesquisador, uma análise em três tem-

rando a escuta como princípio, após a produção dos dados biográficos

pos permite entender e significar as trajetórias de formação e suas

segue-se com um trabalho co-interpretativo sobre os processos de for-

implicações, também numa perspectiva do modelo dialógico pro-

mação evidenciados, o que exige refinamento do diálogo. De tal modo,

posto por Pineau e Le Grand (2012), buscando evidenciar os per-

guiada pela busca das recordações-referências das narradoras, fui te-

cursos formativas e os sentidos que cada sujeito atribui a sua vida,

cendo a relação entre as narrativas de formação da sensibilidade das

mantendo reciprocidade e dialogicidade entre si. A leitura em três

professoras-participantes, os objetivos da pesquisa e o processo de inves-

tempos do material biográfico, como sugerido por Souza (2004),

tigação-formação, partindo da singularidade das histórias e experiências

considera o Tempo I: Pré-leitura/ Leitura Articulada; Tempo II: Leitura

relatadas, de modo a preservar a autoria da palavra e/ou imagem.

Temática; Tempo III: Leitura Interpretativa.


No caso da minha pesquisa, no Tempo I, como uma pré-leitura,

de cada participante. Após o trabalho de pré-leitura/leitura articula-

percorri todo o material transcrito, em uma leitura fluída e flutuante,

da do Tempo I, algumas histórias poderiam estar/parecer inconclu-

me aproximando das narrativas (ou reaproximando, haja vista que

sas ou dar indícios que poderiam ser aprofundadas, de modo que

estive presente no ato de sua enunciação), reconhecendo a densi-

foi importante devolver às participantes suas narrativas transcritas e

dade dos percursos e histórias textualizadas, mapeando o território

articuladas para que pudessem completar, alterar ou recontar suas

no qual eu precisaria mergulhar para tecer significados ou, no dizer

histórias. Esse procedimento, uma recomendação metodológica do

dos autores que tomo por referência, proceder à análise interpre-

trabalho com narrativas de vida e formação, garantiu que a autoria,

tativa-compreensiva das histórias que tinha (re)colhido, (re)unido.

a qualidade das histórias e sua profundidade não se perdessem.

Seis interlocutoras, muitos tempos vividos, muitas experiências re-

No Tempo II, foi realizada uma Leitura Temática do material bio-

memoradas, muitas histórias contadas: me dei conta que guardava

gráfico, buscando perceber questões e temas que anunciam significa-

um volume imenso de preciosas narrativas. Voltei aos arquivos das

ções do percurso vivido, possibilitando uma organização das narrati-

transcrições, lendo e relendo, cabeça fervendo, ideias borbulhando,

vas de modo ampliado, relacionando dimensões micro (cada tópico)

desafio crescendo. Continuei com recomendação teórica: já havia

e macro (o contexto) em agrupamentos temáticos. De acordo com

construído uma intimidade considerável com as narrativas textualiza-

Souza (2004), é na leitura temática que se pode evidenciar regularida-

das, então comecei a imaginar fios que pudessem ser puxados para

des, irregularidades, particularidades e subjetividades no percurso de

articular pontos identificados na pré-leitura, nas narrativas de cada

cada narrador e, com base no agrupamento temático, esboçar o exer-

uma das seis professoras.

cício compreensivo dos textos narrativos. Ao realizar o agrupamento

Assim, completando o Tempo I, organizei os dados biográficos:

temático das narrativas, também compus um quadro, sem pretensão

nome, idade, local de nascimento e moradia, formação e tempo

de sistematização e socialização de conteúdo, mas apenas para me

de atuação na educação infantil, autodeclaração quanto à raça, de

situar e tentar não me perder na complexidade e volume do material

modo a compor a identificação pessoal e um perfil biográfico. Or-

biográfico. Os temas identificados remetem a tempos, territórios, figu-

ganizei as conversas, na ordem de realização dos encontros-ateliês

ras de ligação, vivências culturais e objetos biográficos.

narrativos e, em cada um, ordenei os acontecimentos e as narrati-

No Tempo III, que diz respeito à leitura Interpretativa, me debru-

vas decorrentes. Neste momento, para minha organização e melhor

cei sobre a organização temática já produzida e dediquei atenção

visualização, coloquei acontecimentos e narrativas em uma espécie

aos temas anunciados nas narrativas, considerados por mim como

de tabela, e, depois, organizei conjuntos de narrativas e materiais

temas evidenciados. Na tentativa de tematizar os trechos, por mais

241


que se tente apreender apenas um sentido, deve-se reconhecer que as narrativas possuem sentidos múltiplos. Neste ponto, é precioso o esclarecimento de Pierre Dominicé (2014, p. 81)): “o estudo biográfico, porque apela à reflexão e resulta de uma tomada de consciência, dá origem a um material de investigação que já é o resultado de uma análise. A diversidade dos dados deve assim ser recebida como uma pluralidade de compreensão biográfica”. Tendo em mente a pluralidade, tanto dos enunciados, como das possibilidades compreensivas, reafirmo um princípio que atravessou toda a pesquisa: o diálogo. Seria melhor dizer que dei continuação ao diálogo, ou que aprofundei o diálogo com as histórias das professoras que estiveram comigo, numa jornada de rememoração e narratividade. Histórias que compõem o conjunto de material biográfico reunido, repletas de recordações-referências (JOSSO, 2002) dos processos e experiências ao longo da vida e também os processos vividos ao longo dos encontros-ateliês narrativos, foram agora articuladas pela observação atenta dos elementos que ajudam a compor, e dar visibilidade, à trajetória de formação estética de cada participante. Uma leitura interpretativa das histórias transcritas e co-construídas permitiu analisar a validade dos encontros com a poética de artistas negras, percebendo sua influência na composição de referências e repertórios artístico-culturais. Foi possível acompanhar os processos formativos e identificar o quê nutriu esteticamente cada uma, quando, onde, como, com quem nutriram seus repertórios artístico-culturais. E, também, conhecer fazeres criativos e expressivos que utilizam para dizerem sobre si.

Figura 50: Lembranças da infância de Maria Letícia, na foto com sua irmã. Maria Letícia Felinto (2021)

242


TEMPOS

Se lembramos, é porque outros nos fazem lembrar (BOSI, 1994). A lembrança vem quando outras pessoas e fatos a provo-

A partir das narrativas é possível perceber o de-

cam. Na metodologia utilizada nos encontros ateliês-narrativos, as

senrolar dos fatos na história, marcados pelo tempo

obras de arte, música e dança, imagens e poesia, acionaram as

cronológico, por décadas e anos, ou pelo tempo sim-

lembranças. Neste sentido, além do meu trabalho de interlocução

bólico, através das lembranças das colaboradoras. De

como pesquisadora, as manifestações e produções artísticas confi-

modo geral, os encontros ateliês-narrativos evocaram

guraram-se como um “outro” a provocar rememorações. Enquanto

reflexões do presente, acontecimentos ocorridos du-

expressões das necessidades humanas, suas crenças, desejos e so-

rante a crise sanitária da COVID 19 e dos encontros

nhos, contribuem com maior força para o caráter livre e espontâneo

da pesquisa; Momentos do passado, de diferentes pe-

dos guardados da memória.

ríodos da vida, como infância, juventude e idade adul-

Deste modo, a imagem do cartão postal impulsionou Cristina a

ta, transformados em experiência visível pelas vozes

contar sobre seu desejo de ser bailarina. Também pela imagem esco-

em palavra/corpo.

lhida no cartão postal, Caroline lembrou-se da separação de seus pais

No presente, memórias foram despertadas. Entre os

quando tinha três anos de idade. Aqui, considera-se a memória en-

modos de ser do indivíduo e sua cultura, veio à tona o

quanto trabalho, como postula Halbwachs (1993), onde lembrar con-

que estava submerso. Reconheço que aspectos dos nos-

siste em refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as

sos sentidos são entrelaçados a nossa experiência pas-

experiências do passado. Lembrar desses episódios não é mero sonho,

sada. E, esse afloramento do passado é um combinado

é refazer o passado, nos atravessamentos de juízos de realidade e de

entre processo corporal e presente da percepção, como

valor que foram alterados ao longo tempo da nossa existência.

afirma Ecléa Bosi (1994). Maria Letícia comentou que

Entendendo que lembrança puxa lembrança, como diz Ecléa

as propostas dos encontros trouxeram à tona memórias

Bosi (1994), o vídeo musical de Lia de Itamaracá despertou e puxou

que estavam adormecidas. Para ela, vamos guardando

várias recordações da infância, do tempo de criança das participan-

o que vivemos ao longo das nossas vidas, que são coisas

tes. Maria Letícia lembrou-se do lugar onde morou e de quando fi-

pontuais, acontecimentos diários do nosso cotidiano. E,

cava debaixo da amendoeira. Brincavam de roda, de pique, contava

por vezes, a depender de uma música ou palavra, pode

charadas e ouvia piadas que crianças não podiam ouvir. Eliete se

evocar memórias. E é aí que vem tudo, ela disse.

recordou de ouvir histórias e brincar bastante no quintal de sua tia,

243


também debaixo de uma amendoeira enorme. Carla também cita

quando tinha quatro, cinco meses, em que está em pé no sofá. Diz

que são da época de infância, suas melhores lembranças com ciran-

se lembrar do que aconteceu neste dia. Esclarece que hoje tem a

das, justifica que ela e seus irmãos brincavam na rua e era seguro, às

explicação, que são as memórias coletivas, as quais foi ouvindo ao

vezes ficavam sem supervisão de adultos e não tinha perigo. Lembra

longo do tempo. Camila diz que registros históricos são importantes.

que quando chovia, era uma delícia brincar no chão de barro.

Lembra que teve pouca oportunidade de registro, começou a tirar

No trabalho de reencontrar o passado, por vezes, acessamos apenas fragmentos da memória. No encontro com a poética mu-

fotos a partir de seu aniversário de 15 anos de idade, por condições financeiras mesmo.

sical, Caroline ficou intrigada, pois queria saber onde conheceu as

De fato, a memória depende do relacionamento com a família,

cantigas de ciranda que sabe cantar. Acredita terem vindo de seu

com a classe social, com a escola e com diferentes instituições. Pelas

tempo de criança na escola, mas ela não se lembra. Disse que essa

escrevivências reunidas no encontro com Conceição Evaristo, Eliete

memória se apagou. Bosi (1994) ajuda a entender a expectativa que

também se lembrou de um pedaço doloroso da infância, em que

temos de reviver uma experiência na reconstrução de fatos, neste

ouvira palavras duras de seu pai e de outras pessoas próximas. Esses

caso de uma experiência infantil. Esperamos as mesmas emoções,

atravessamentos ocorridos na família, que podem também aconte-

contudo a primeira leitura de nossas lembranças é frágil, quase

cer na escola, na igreja, são marcas na formação dos sujeitos.

como um esboço de um primeiro desenho.

Importante considerar que na luta por re-existir a memória não

Em outras circunstâncias, houve uma profusão de lembranças

é mera recordação. A re-existência significa construir a vida mesmo

despertadas, de lembranças que inclusive conectam as participan-

em condições críticas; assim, a memória também tem o sentido da

tes. Na obra “Parede da memória” de Rosana Paulino, Carla viu

existência (ACHINTE, 2017). Mesmo nas dificuldades relacionadas à

fotografias e lembrou-se da experiência com os monóculos azuis de

auto-imagem ou à auto-estima, enfrentadas pelas narradoras, a cada

bordinha branca da sua casa, que como se fosse um binóculo, mos-

tempo e a cada lugar, elas decidem formas de construir seus sentidos,

trava a foto ampliava. Eliete conta a história de uma fotografia de

de reconhecer-se como sujeitos na história, de re-existir no cotidiano.

Figura 51: Memórias de papai. Cartão criado durante os ateliês. Eliete Marcelino (2021)

244


TERRITÓRIOS No trabalho de voltar ao passado em busca do que se esqueceu, as professoras-narradoras buscaram por palavras vivas. Através da rememoração, cenários, personagens e detalhes tentam ser desenhados para tornar atenta a memória. Nas narrativas, formas de saber-ser caracterizam espaços, retratam paisagens. Escolas, igrejas, universidades, praças, instituições culturais e museus de arte, deslocamentos por cidades e estados brasileiros. Cada um desses lugares traz a oportunidade do evento, tornam-se espaço, a partir das características que recebem. É neste sentido que o espaço é entendido como produto e condição da dinâmica sócio-espacial. Contudo, na geografia, acredita-se que o território antecede o espaço (SANTOS, 1978), uma vez que o espaço é criado pelo povo na utilização do território, que é delimitado, construído e desconstruído por relações de poder. A ideia de território, que abrange processos de construção e transformação do espaço geográfico, é ainda ampliada e tensionada pela questão da identidade, como discute Muniz Sodré (1988). Perceber as dinâmicas sociais na caracterização de territórios ajuda na interpretação das narrativas. Contribui com a ideia de que experiências estéticas, além de serem influenciadas pelas relações sociais no espaço, também traçam limites, especificam lugares e criam características que dão corpo à ação do sujeito (SODRÉ, 1988). Entre os espaços percebidos, as participantes têm histórias comuns sobre um espaço-lugar que pode ser chamado de território de

245


existência: o lugar em que viveram a infância ou a juventude, onde

fessoras contam sobre a relação com a espiritualidade e a partici-

iniciaram a relação entre estética e vida. Como a casa da avó ma-

pação em espaços religiosos. Hoje, praticante de religião de matriz

terna de Camila que guarda a lembrança de uma foto da avó e do

africana, Camila se lembra de ter frequentado uma igreja evangé-

avô na parede; a casa da avó Dindinha, onde Eliete lembra-se de

lica na sua infância e adolescência. Já Caroline identifica-se como

ouvir histórias, ou o quintal de sua tia, onde brincavam debaixo de

evangélica e pertence à uma congregação batista da cidade de Rio

uma amendoeira. O campo com chão de barro, que tinha o tal pé

Bonito. Contudo, ela diz que aprende bastante com os princípios e os

de castanhola com balanço de corda nos galhos, em que Maria Le-

valores presentes nas religiões de matriz africana, pois tem relação

tícia brincava; espaços que traziam possibilidades de brincar na rua,

com a vida e com práticas comunitárias.

brincar em terra, subir em árvore, como cita Caroline. Espaços que

Sabe-se que nesta sociedade o racismo também repercute atra-

afetam os sentidos, emoções e intelecto, impactaram a formação

vés de atos de intolerância religiosa, assim não é simples se identifi-

das subjetividades, as quais desejamos que sejam livres e possam

car e manifestar-se como praticante de religiões de matriz africana.

expandir-se nas formas de saber, sentir, pensar e ser.

Em todos os encontros, Cristina declarou-se atuante em uma casa

A ocupação do primeiro espaço, a casa de família, reúne signifi-

de umbanda, explicou por vezes que sua conexão espiritual agrega

cados ligados aos grupos de convívio. Na lembrança de Eliete, há uma

muitos elementos das culturas africanas e indígenas. Foi ela quem

fotografia de quando ela tinha cinco meses em que aparece de pé no

nos ensinou sobre o espaço da senzala, um assunto que surge nas

sofá e consegue se imaginar na cena, pois o acontecimento retratado

conversas com seus alunos da capoeira. Cristina reconta que a sen-

persiste como memória coletiva de seu grupo parental. Aquilo que um

zala era o local onde aconteciam as festas e manifestações culturais

foi contando pro outro, foi contando pro outro, e ela foi ouvindo. De

negras no tempo da escravidão. Menciona um grande terreiro, um

tanto ouvir, agregou isso à memória. Interessante pensar que desse

espaço onde nossos ancestrais podiam desenvolver a sua cultura. E

modo, ao contar as histórias de geração em geração, os tradicionalis-

traziam a África viva ali pra esse território, onde tudo acontecia junto.

tas africanos mantêm viva a memória coletiva. Apegados aos valores

Sua narrativa me remete aos estudos que apontam:

ligados à família extensa e aos objetos biográficos, são reconhecidos como guardiões dos segredos das ciências da vida. Da preservação dos valores civilizatórios africanos, chega até nós a conexão com o sagrado, que assegura o fortalecimento da vida. Assim, alguns territórios recuperados nas lembranças das pro-

246

O terreiro (de candomblè) afigura-se como a forma social negro-brasileira por excelencia, porque além da diversidade e existencial e cultural que engendra, é um lugar originário de força ou potencia social para uma etnia que experimenta a cidadania em condições desiguais. (SODRÉ, 1988, p. 21)


O que Cristina conta, é sobre formas de ser negro no mundo, por onde se há de concordar com Muniz Sodré

na escola. Cristina lembra do trabalho de uma professora a partir da

a capoeira fez mais

obra de Heitor dos Prazeres. Carla diz que na escola dança bastante

para cultura nacional, do que os adidos culturais nas embaixadas

com as crianças, assim como Caroline que diz cantar cirandas para

brasileiras. Reconhecer isso é valorizar a capoeira como expressão

as crianças. Narrativas docentes apresentam saberes e princípios es-

cultural, esporte, luta, dança, desenvolvida pelos negros africanos

truturantes de discursos pedagógicos. Esses relatos validam que o

que foram escravizados em território brasileiro.

território escolar pode contribuir efetivamente no alargamento dos

29:

É com esse olhar para alternativas não hegemônicas, entre ideias e formas culturais afro-brasileiras, que este estudo anuncia a

padrões de referência das crianças e de identidades no diálogo e reconhecimento da diversidade étnico-racial.

relevância de considerar outras imagens, gestos e linguagens para

A escuta de uma lembrança vivenciada na escola, atraiu a aten-

educar crianças. No território escolar, onde passam grande parte de

ção para o espaço relacional construído neste território: as rosas, o

suas infâncias, meninos e meninas constroem imagens de si, mar-

jardim e o afeto das pessoas, na narrativa de Maria Letícia, refor-

cados pelas questões racial e de classe. Em função disso, promover

çam a importância de outras atitudes para educar as crianças. Ela

possibilidades de interação entre crianças e a diferença torna-se um

lembrou-se com saudades do jardim que havia no seu jardim de

dever, que pode estar refletido em seu ambiente físico, nas paredes,

infância, das rosas bem vermelhas e da grama que era verdinha,

nos murais, nos brinquedos, nas imagens e cenários deste espaço-

das pessoas que a recebiam com prazer em seus ofícios. Envolvida

-lugar. Depende de condições físicas, materiais, intelectuais e afeti-

na profundeza deste relato na constituição desta professora, é que

vas, como já sinalizado. E, ainda, de propostas pedagógicas que de

reafirmo o princípio da escuta para sustentar o trabalho de ERER na

fato oportunizem vivências éticas e estéticas com outras crianças e

Educação infantil. Acredito que para dedicarmos atenção ao outro,

grupos culturais, como postulam as DCNEI (BRASIL, 2009), um im-

principalmente à criança negra e aos seus grupos de pertencimento,

portante papel que instituições de educação infantil e escolas ainda

é preciso ter em vista a diferença étnica, ocupar-se de práticas de es-

têm a cumprir, mesmo sendo evidente o esforço das professoras.

cuta que esboçam ações pedagógicas baseadas em princípios éticos,

Maria Letícia recorda-se da roda musical, onde crianças demonstram boa habilidade no uso de alguns instrumentos disponíveis

políticos e estéticos. O território da escola revela ainda aspectos da identidade docente. Caroline conta que não imaginava ser professora de crianças

Ver mais em “Muniz Sodré relembra a história da capoeira no Brasil”: https://tvbrasil.ebc.com.br/estudiomovel/episodio/muniz-sodre-relembra-a-historia-da-capoeira-no-brasil 29

pequenas, embora soubesse que era importante para sua trajetória profissional, estar na sala de aula. Maria Letícia comenta de suas

247


parceiras curiosas, professoras que compartilham a docência e que ficaram animadas com os materiais da caixa. Com elas, disse partilhar livros e leituras de poesias de autores negros. A escola é um território formativo, onde ideias e práticas são ressignificadas à medida que a professora narra, escuta e lê a narrativa do outro, constituindo esse efeito formador (SOUZA, 2008) que possibilita apreender conhecimentos específicos sobre as trajetórias individual e coletiva. Ainda sobre territórios formativos, a UFF, Universidade Federal Fluminense, foi identificada na maioria dos relatos. Ressalto que as primeiras oportunidades de Camila em visitar museus, espaços de produções culturais e artísticas, deu-se na entrada na universidade. Eliete também relatou esta oportunidade. A aproximação de diferentes manifestações culturais, como o maracatu, o jongo e o coco, também se deu a partir deste território e se expandiu. Foi o espaço de formação no ensino superior de Eliete, Camila, Caroline e Maria Letícia, que de forma integrada, promoveu a produção e difusão do conhecimento científico, tecnológico, artístico e cultural.

Figura 52: Composição de monóculos e fotografias antigas. Eliete Marcelino (2021)

248


FIGURAS DE LIGAÇÃO

mesmo instante, somos dependentes deles.” (JOSSO, 2006, p.20). Assim, busca-se pelas formas culturais apresentadas a partir de elos

Considero que a cultura negra, de modo geral, funda-se

biográficos: algumas figuras colocam-nos na vida, em ligação, po-

no reconhecimento da ancestralidade, na ligação que está no

dendo ser figuras-referências dos laços de parentescos, quer sejam

passado e no futuro. Finca suas bases numa relação que se in-

herdados por nascimento, quer sejam por aliança.

tegra à comunidade e com ela forma um só corpo, tece uma só

Na vida de Maria Letícia, duas mulheres: sua avó, que ficou viúva

trama ligada a muitos pontos. Princípios inaugurais imprimem

nova, com seis filhos e teve que ir pra roça trabalhar e sustentar os filhos,

sentido e força e integram assim os fundamentos das culturas de

e sua mãe, que foi o esteio da casa após a separação. Para Caroline, a

arkhé (SODRÉ, 1988), que nos aproximam de um pensamento

mãe, a qual nunca havia visto chorar, até perderem sua tia. Esses par-

filosófico que evoca um sistema de memórias e ancestralidade

ticipantes são importantes na reconstrução das histórias de formação

da cultura negra. Neste sentido, busco apontar as ligações entre

das professoras-narradoras, uma vez que não há ser humano que não

figuras - pessoas e personalidades relevantes - a partir das lem-

seja religado, que não esteja ligado e integrado à criação de ligações

branças e narrativas, que fazem parte das histórias de vida das

consigo mesmo e com outros participantes, segundo Josso (2006).

professoras-narradoras.

Das avós, surgem muitas lembranças. A voz de Lia logo lembrou

Importante dizer que este estudo teve foco na viagem bio-

a voz de dona Neir, avó de Camila, com quem ela sonha até hoje. A

gráfica do sujeito, já que, a partir de suas bases teóricas, o tra-

avó Dindinha que está na foto whatsapp com a Eliete, é Sebastiana

balho biográfico considera o processo de conhecimento da exis-

Muniz de Oliveira, que era parteira. Maria Letícia conta de sua avó,

tência como uma viagem, permitindo que ao longo do caminho

aquela das cartas de Pernambuco. As avós da Carla, que eram irmãs,

diferentes ligações com outros caminhos de outros caminhan-

faziam muito fuxico, colcha e tinham um conhecimento ancestral com

tes sejam apontadas (JOSSO, 2002). Percorrendo essas bases,

ervas. A tia Zete, uma das irmãs da avó de Caroline, era uma pessoa

em outro estudo da autora Marie-Christine Josso (2006), vemos

muito forte e protetora. Vó Joana, a pessoa que fez a Cristina se apai-

apontada a importância da temática da ligação na compreen-

xonar por literatura. Nos encontros ateliês-narrativos acontece o fenô-

são de nosso processo de formação e de conhecimento. Diz a

meno relatado por Josso (2006), onde os avós ocupam um lugar bem

pesquisadora: “Nós estamos na vida porque existimos mediante

particular na quase totalidade dos relatos. A pesquisadora diz ser raro

uma multiplicidade de laços simples ou complexos. Esses laços

que uma avó ou um avô não tenham desempenhado um papel de-

são o nosso fundamento e, como tal, eles nos sustentam e, nesse

terminante na formação dos narradores de acordo com seus estudos.

249


Os relatos de formação podem apresentar ligações formadoras, deformadoras e transformadoras. Como no caso das figuras de ligação que aparecem tendo provocado mal em algum momento. Camila cita mães, tias, avós, aquelas que viveram e nos criaram. Mulheres que desde pequena ouviram: “Você vai morrer sozinha” e reproduzem esta atitude. Eliete fala de seu pai, que tocava sanfona, viola e cantava: “Oh, coisinha, tão bonitinha do pai.” O mesmo pai a magoava com palavras duras. Ele e outras pessoas de sua família. No limiar dessas relações, entende-se que ao mesmo tempo que a ligação dá uma sustentação, que prende e mantém uma relativa estabilidade, também pode ficar machucando, impedindo-nos de encontrarmos a liberdade de movimento. Pode-se afirmar que não há história sem constituição de ligações entre acontecimentos materiais e psíquicos de nossas vidas em dimensões individuais e coletivas. Entre as narrativas, aparecem personalidades negras representadas pelos laços simbólicos, pessoas de referência (anônimas ou midiáticas) que, por seu engajamento na vida ou sua atitude face às dificuldades da vida, são exemplos que guiam o narrador durante toda ou parte de sua existência. Entre as figuras públicas, Abdias Nascimento e Heitor dos Prazeres são identificações importantes para Cristina, que falou deles enquanto ela analisava os postais, bem como Maya Angelou e sua poesia. Noémia de Souza, Conceição Evaristo e Kabengele Munanga, encorajaram o interesse de Maria Letícia pela literatura africana. Lia de Itamaracá, para Eliete, presentifica seu nome, sua origem e história. O artista Mulambo, admirado por Camila, e o legado e produção do artista Carybé, mencionado por Caroline, também compõem os laços simbólicos que ajudam a dar forma e adesão a ideias e práticas antirracistas nos percursos das narradoras. Até mesmo um tipo de paisagem, como a região da Pequena África no Rio de Janeiro, percorrida por Carla, opera como ligação para afirmar o pertencimento e o reconhecimento de si.

Figura 53: Encontro com a obra “Bombril”. Fotografia de Eliete Marcelino (2021)

250


VIVÊNCIAS CULTURAIS Neste ponto, ressalto particularidades reveladas pelas participantes dos encontros ateliês-narrativos, considerando vivências reais, apresentadas em formas plurais de conceber o mundo. Apresento uma leitura interpretativa das vivências culturais consideradas pelas professoras como significativas, que podem ter contribuído para processos de transformação e formação de suas subjetividades e educação estética. Entendo por educação, a partir de Paulo Freire (2001), os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino, pesquisa e extensão, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas relações criativas entre natureza e cultura. Neste sentido, Cristina conta que aprendeu a jogar depois de adulta e tornou-se mestre de capoeira. Frequentando rodas de cultura popular, ela reconheceu ainda a ciranda como manifestação cultural. Ao dançar ciranda, Eliete aprendeu que quando a gente segue o coração, a intuição, seguimos no embalo, de repente já estamos dançando. Danças populares e circulares atravessaram também a vida estudantil de Camila,

251


252

que inclusive conheceu pessoas do Grupo de jongo Folha de Amen-

nar para as crianças desde pequenas. Ela diz que muitas coisas só

doeira. As experiências narradas contam de processos formativos es-

ficou sabendo na vida adulta, e que não tinha nada a ver com o que

téticos ocorridos à margem da educação formal e sistemática, que só

estudou na escola. Maria Letícia diz que estudou literatura africa-

puderam ser destacados pois foram considerados importantes para

na em uma das disciplinas do curso de literatura, foi assim que ela

a formação profissional docente neste estudo. Tratam-se de conheci-

aprendeu mais para a prática antirracista que desenvolve no cotidia-

mentos necessários à prática, no combate a toda manifestação dis-

no educativo. Aprendemos, a partir de Paulo Freire (2001), que estar

criminatória, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou

no mundo, com o mundo e com os outros, exige de nós uma estética

adultos, como convoca Paulo Freire (2001).

e uma ética. A ética de que falo aqui é a que respeita a autonomia e

Ao longo dos encontros ateliês-narrativos pude conhecer par-

a dignidade de cada homem e mulher preta, produtores de saberes

te da história de vida e formação das participantes desta pesquisa.

e conhecimentos legítimos, estejam no ambiente acadêmico ou nos

Mulheres que se reconhecem enquanto negras, que cresceram em

setores culturais de nosso país. Já a estética é capacidade criativa e

cidades do interior, em regiões menos abastadas do estado do Rio

expressiva do povo negro, aquela que envolve arte afrodescendente,

de Janeiro, que fazem parte de famílias numerosas e tiveram acesso

que expressa nossa memória, cultura, história, religião, para contar

limitado a serviços culturais na infância e juventude. A vida não foi

da formação do povo brasileiro. Enquanto seres históricos e culturais

fácil para essas mulheres, que hoje são mães, professoras, profissio-

que somos, temos a capacidade de produzir e partilhar conhecimen-

nais e servidoras públicas. Elas viveram suas experiências estéticas

tos em rede de relações, fomentando uma ética e estética enegreci-

nas brechas que a vida lhes ofereceu. Já foi dito que a universidade

da, a partir da máxima de que arte e cultura negras são importantes

abriu caminhos importantes para a formação cultural. A partir da

na formação docente e na educação de crianças.

idade adulta, elas tiveram a oportunidade de vivenciar experiências

Sobre o acesso e as vivências nos espaços culturais, Caroline

de fruição com produções artístico-culturais. No cotidiano de suas

relatou sobre uma visita feita em 2016 ao Museu Afro-Brasil.

vivências, algumas expressões culturais não-hegemônicas, como a

Confessou que tem a sensação de que o Museu Afro- Brasil é para

capoeira e a ciranda, cumpriram essa função. Manifestações cultu-

pessoas que já tem uma certa inserção na temática racial. Camila

rais populares, da rua, dos negros, pertencem ao repertório original

compara sua visita ao Museu Imperial, da época em que era estudante

das professoras.

do ensino médio e recentemente. Hoje, compreende que tem outra

Carla conta que foi buscar em outros espaços, fora da escola,

mente. Na visita ao Centro Cultural Banco do Brasil, no centro do

saberes sobre história e cultura africana e afro-brasileira para ensi-

Rio de Janeiro, Camila disse ter percebido uma abordagem da


história do povo negro em outra perspectiva. Esses relatos demonstram como museus e espaços culturais são também espaços de experiência, onde professoras captam outros sentidos quando mergulham na relação com exposições e artistas que, entre outros temas e simbolismos, oportunizam o (re)encontro com histórias que dizem de si e provocam (re) significados, (re)afirmam pertencimento e identidades .

Figura 54: Boneca Luzia. Eliete Marcelino (2021)

253


OBJETOS BIOGRÁFICOS

va materiais e objetos, atraiu a percepção sensorial das participantes,

Na abertura dos caminhos das lembranças, alguns materiais

agregando qualidade em uma experiência sedutora, sensível. A caixa-

vivificam seus rastros. São objetos impregnados de sentidos, que

-convite demonstrou capacidade de tornar-se um fértil instrumento para

contam das relações e experiências vividas pelas professoras-narra-

o campo da pesquisa (auto)biográfica e da formação docente, capaz

doras e seus apegos a certas coisas e certos objetos. Considero que

de convocar pensamento, sentimento, intuição e sensação mobilizados

toda essa relação se faz através da linguagem, reconhecida por Bosi

pelas materialidades, suas cores, estampas e texturas.

(1994) como um instrumento socializador da memória.

Neste sentido, materiais expressivos e diferentes linguagens

Almofadas, monóculos, ervas e outros objetos biográficos men-

foram utilizadas, como meios de potencializar processos de reme-

cionados, ligam a memória da pessoa à memória coletiva. Repre-

moração, tendo contribuído com o fluir da expressão, fecundando

sentam a lembrança de avós e de familiares que atravessam sua

narrativas de si, como indica Ostetto (2016). No exercício de fazer a

jornada. São objetos que demonstram afeto, apego e saudades.

mão para falar de si, as participantes da pesquisa puderam refletir

Demonstram a anima mundi, a alma, que existe em todas as coisas

sobre caminhos e repertórios estéticos vividos. Na confecção do pa-

(HILLMAN, 2010). Fazem parte das ancoragens individuais e cole-

tuá, Eliete disse que iriam também algumas lágrimas A cor amarela

tivas, que contribuem na formação da identidade pessoal. E, como

foi escolhida para o patuá de Camila, cor que remete ao seu orixá

não podemos dissociar, reverberam ainda na formação profissional

no Candomblé. Tecido amarelo, linha amarela e uma forma como

docente, compreendendo a dimensão humana do professor, neces-

se fosse uma almofada formavam o patuá que guardava o bilhete de

sária para agregar qualidade e alimentar conexões, no desejo de

sua avó. Assim, alinharam pontos e deram visibilidades às marcas

significado, de sentido, de maravilhamento.

do sensível, mesmo com medo, como confessou Caroline. Cultiva-

Nos encontros ateliês-narrativos materializou-se o desejo de colocar em relação o sujeito com as coisas e as coisas entre si, como na proposta da caixa-convite. Uma caixinha com aquele paninho segurando, chamou a atenção de Cristina. Os tecidos de padrão africano que fizeram Carla recordar-se da luta do povo negro no Brasil e na África. Os tecidos tão estimados por Maria Letícia lembravam-na de seu trabalho com as crianças. Esses relatos revelam uma curadoria de

254

detalhes como aposta estética, onde um mini-ateliê portátil, que abriga-

vam a beleza, mesmo por janelas virtuais, quando pela mão e pelo corpo, acolheram e se inscreveram na experiência.


255


256


COM A POÉTICA DE MULHERES-ARTISTAS NEGRAS: VER E PERCEBER, VIVER E PENSAR 257


258

Costurando à mão este texto, chega a hora de fazer

para além da visão, admitindo outras compreensões e leituras do

um laço no último ponto. É no arremate final que indico

mundo. Ativadas pelas poéticas femininas que falam com a alma:

as contribuições das poéticas negras à formação estética

pelas artes visuais de Rosana Paulino, pelas escrevivências de Con-

de professores da educação infantil. Chegou o momen-

ceição Evaristo, pelas cirandas de Lia de Itamaracá, e ainda com

to de fazer o acabamento, mesmo após um longo tem-

outras que incorporam as culturas negras.

po com as mãos apreciando este tecido, olhos diligentes

São elas, que este estudo, aponta como resposta à necessidade

atentos às formas que se sobressaem, corpo vivo atraído

ontológica e epistemológica na formação estética de professoras.

por uma espécie de textura. Aceitei o convite à criação

Pela capacidade de conectar uma estética/poética, em que criativi-

feito pela pesquisa, estive imersa num estado de aprendi-

dade e rigor científico colocam em relação o sujeito com outras for-

zagem e invenção nos últimos anos. Vou sentir saudades

mas de pensar-sentir o mundo, desenvolvendo o pensamento cria-

das manhãs em que alinhavei cada uma dessas palavras.

tivo na procura por tempos, territórios, figuras de ligação, vivências

Revirando a caixa, aquele ateliê portátil, encontro no

culturais e objetos biográficos. Uma estética que expressa um desejo

tecido estampado amarelo um anúncio simbólico de que

de significado, de sentido, e que pela opção decolonial, liberta ver-

a beleza que recorda Oxum e sua presença nas águas

dadeiras subjetividades através da consciência de ser, de sentir, de

doces é negra! As poéticas em interlocução na pesquisa

ter, de pensar. Foi entre referências negra, considerando o corpo e

também são negras. Belezas negras como aquelas que

uma combinação de sentidos, que professoras enunciaram a vida,

desfilam na noite do Ylê sim. Belezas negras, que são

dedicaram atenção e encontraram um espaço de existência, que

o coração desta tese e evidenciam a poética de mulhe-

pode repercurtir na produção de sua re-existência, que como práxis,

res-artistas negras como estratégia de ressignificação da

enfrentará as formas de dominação, exploração e discriminação.

vida em condições de dignidade. Pela ocupação e pelo

Na relação intensa promovida por esta pesquisa-formação,

protagonismo de mulheres negras em lugares que não

também foi notável o alargamento da experiência e conhecimento

foram pensados para nós. Como inspirações, incentiva-

das participantes acerca das referências negras localizadas e des-

ram professoras de educação infantil a encontrarem e

cobertas. A pesquisa trouxe sugestões das artes, tanto do passado

expressarem seu pensamento através de diferentes lin-

quanto contemporâneas. Essas sugestões se concretizaram em no-

guagens. Valorizando o pensamento dos povos iorubás e

vos tipos de relação, abarcando o movimento Sankofa - caminhar e

de outras populações africanas que privilegiam sentidos,

ao mesmo tempo voltar e buscar intencionalmente algo que está lá


atrás. Permitiram olhar a bagagem que levam – saberes, valores e

competentes comprometam-se com a Educação das Relações Étnico-

energias, que dão forma à identidade num diálogo com seus contex-

-raciais, suprindo condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas

tos. Contudo, se é de acordo com o que professores conhecem que

favoráveis para o ensino e para as aprendizagens. Na implemen-

as escolhas pedagógicas são feitas, a pesquisa indica ser necessário

tação de ações a favor da ERER, envolvendo a ampla divulgação

empreender mais esforços na ampliação e diversificação das refe-

de documentos norteadores, estudos e pesquisas de modo a pro-

rências que compõem negros repertórios docentes.

moverem o debate acerca da pauta racial nas instituições escolares

A consulta sobre os hábitos culturais de professoras da cidade

públicas e privadas de Educação Infantil. Formação continuada de

de Niterói/RJ permitiu identificar as referências negras que resistem

professores da Educação Infantil para o reconhecimento da História

em seus processos formativos e apresentam-se como referências às

e Cultura Africana e Afro-Brasileira.

suas escolhas pedagógicas. No quadro coletivo esboçado inicial-

Importante considerar que o trabalho pelo fim da desigualdade

mente, há pouca presença de artistas, espaços e/ou manifestações

social e racial não é tarefa exclusiva da Educação ou da escola. Con-

culturais que representam as tradições africanas, afro-brasileiras e/

siderando formas de valorização étnica e cultural, os resultados da

ou os cenários socioculturais do negro. O efeito formador da narra-

pesquisa indicam possibilidades para implementação de ações em

tiva trouxe conhecimentos específicos sobre as trajetórias individual

outros setores, tais como Cultura, Esporte e Lazer, dentre outros de

e coletiva. As participantes mergulharam em experiências conside-

iniciativa pública ou privada. Promover a aproximação de instituições

radas marcantes, que envolvem sensações e sentimentos, catalisa-

de Educação Infantil, de escolas e de seus profissionais aos espaços

das por um forte sistema simbólico. Anunciaram marcas da relação

da cidade, culturais ou de lazer, de modo a valorizar o patrimônio e

ancestral, artística, cultural, africana, popular e negra. Apontaram

a produção negra, é uma estratégia válida para que se possa pro-

acontecimentos e personalidades afro-brasileiras influentes, denun-

mover vivências de identificação positiva.

ciaram certas ausências no debate acerca do tema e demonstraram

Lembrando que a estética se nutre de empatia, da relação in-

suas fragilidades em torno do conhecimento sobre Cultura Africana

tensa com as coisas, é oportuno aproximar a população de todas

e Afro-Brasileira. Tudo isso, como quem costura destinos, por ca-

as faixas etárias ao caráter plural, vivo e dinâmico do termo cultura

minhos que resistem e re-existem em passagens que acrescentam

através de experiências sensíveis da/na Arte e Cultura Negras, inclu-

valores particulares ao pertencimento étnico racial.

sive com alusões ao sagrado afro-brasileiro. No território de Niterói,

Espera-se que a educação de Niterói continue a acompanhar

com suas várias contradições sociais e as tensões políticas envol-

os movimentos legais da Educação Infantil no país e que os órgãos

vendo discursos discriminatórios, torna-se ainda mais importante a

259


promoção dos direitos civis, a emancipação material e a valorização do patrimônio cultural a partir de ações afirmativas.

Deste modo, a formação docente contribui para a educação das relações étnico-raciais (ERER), uma vez que é indispensável promover

No entanto, é a escola que tem papel preponderante na eman-

a formação de posturas e valores que respondam à demanda da po-

cipação dos grupos discriminados. Professores e profissionais da

pulação afrodescendente. Seja na adoção de estratégias pedagógicas

Educação precisam, a partir de seus processos pedagógicos, supe-

de valorização da diversidade étnico-racial ou na promoção de atitude

rar a ideia preconceituosa sobre os demais povos. Principalmente,

empática comprometida com a criação de uma identidade e de uma

a noção de que os padrões culturais do continente europeu são su-

autoimagem positiva desde a educação infantil. Na perspectiva de

periores. Construir a educação das crianças a partir de referências

uma educação estética oferecem qualidade e profundidade às ações

ancestrais negras (e também de todos os segmentos étnico-raciais),

afirmativas, aliando uma pedagogia sensível e de linguagens poéticas

considerando sua descendência africana, sua cultura e história, é

às iniciativas de reconhecimento das artes e culturas negras.

ato democrático, zela pela igualdade de direitos e a cidadania plena

O trabalho com ERER na Educação infantil deve considerar

para todos, e não apenas alguns. E, ainda, nos torna sensíveis ao

a escuta sensível e conectada à realidade de crianças e famílias.

sofrimento causado por tantas formas de desqualificação.

No cotidiano, ver e olhar as diferenças da criança e de seu grupo,

Nesta agência, torna-se importante engajar-se no desenvolvi-

considerando princípios éticos, políticos e estéticos, pode conduzir

mento de novas conexões, de uma consciência negra cotidiana, que

o educador para novas situações pedagógicas, envolvendo propos-

está para além do marco de 20 de novembro instituído por lei . Prá-

tas lúdicas, participativas e reveladoras de múltiplas linguagens, de

ticas significativas voltadas para a diversidade podem ser geradas,

modo a alterar o contexto educativo. Nesta direção, saberes e fa-

a partir de uma forma particular de observação e de documentação

zeres oriundos da vida, experimentados na cidade, envolvidos por

dos processos pedagógicos, em que caiba outras formas de pensar

referências artístico-culturais não-hegemônicas, estão a favor da ar-

a infância. Pelo aprofundamento do conhecimento acerca das con-

ticulação pedagógica comprometida com perspectivas participativas

dições de vida conforme sua origem étnico-racial e pelas reflexões

e antirracistas. Pela inclusão de manifestações artísticas, artistas e

sobre a criança negra, considerando as marcas das questões racial

espaços culturais que inserem o indivíduo negrodescendente como

e de classe na construção da imagem de si. Por esses meninos e me-

profissional das Artes Visuais, Teatro, Dança e Música. Expressões

ninas: é urgente empretecer a Educação Infantil!

de negros e negras, apresentados então como sujeitos sensíveis e

30

poéticos pelas formas individuais e coletivas de sua resistência negra http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/ l12519.htm 30

260

- historicamente tão marginalizada, não canônica da literatura, do


cinema, das artes visuais e da dança, mas que exala a fortuna da cor

a dimensão estética foi valorizada em seu desenvolvimento. Como

preta! A pesquisa reitera a tese de que essas múltiplas experiências

proposta metodológica de formação: ampliam a experiência com as

com arte e suas linguagens no cotidiano das crianças nas cidades,

linguagens artísticas e, quando mediados pelo contato com poéticas

nas creches e escolas, podem desencadear outros gestos, imagens e

de artistas negros e negras, intensificam o conhecimento acerca da

linguagens, que devem ser assumidas coletivamente na construção

arte e cultura negras, apuram os sentidos de pertencimento étnico-

de pedagogias da diversidade. A poética negra é propulsora da cria-

-racial e alargam repertórios estéticos docentes. Acredito que esses

ção de novos pensamentos, inspiradora da educação das crianças

efeitos repercutem positivamente na Educação das Relações Étnico-

tendo em vista a construção de uma sociedade justa e equânime.

-Raciais na Educação Infantil.

Nessas últimas palavras, que fecham um percurso mas não fin-

É aqui, no arremate final, que passo a agulha e prendo este

dam a caminhada, considero que a pesquisa incitou a força da pala-

ponto. Não quero que se perca a ideia de que confiar na poética

vra-viva, como na tradição oral africana, pela profusão de narrativas

de mulheres-artistas negras, como guia de um processo de pesqui-

autobiográficas. Uniu esse fazer artesanal à ideia de ateliê como

sa-formação, reafirmou a experiência estética como processo coti-

lugar que acolhe processos criativos. Ao compartilhar poéticas ne-

diano, que ajuda a ver com qualidade e perceber com atenção os

gras, abriu um campo dialógico fértil com as professoras: o espaço

sentidos profundos de tornar-se mulher-professora negra, que vive e

para relatos de experiências de vida, provocados pelo encontro com

pensa a docência de crianças pequenas mesmo em condições críti-

a arte e os saberes-fazeres de artistas negras, foi importante para

cas, com dignidade e confiança.

um fazer/fazer-se libertário. A experiência de estar juntas, como um aquilombamento, partilhando histórias e memórias, com suas dores e belezas, transversa ao encontro com a/na Arte e Cultura Negras, expandiu-se em um campo formativo, a partir da abordagem (auto) biográfica assumida no desenho teórico-metodológico. Essas rupturas foram demasiadamente importantes, no que tange à formação e prática docente na Educação Infantil. Na interlocução com poéticas negras, os encontros-ateliês narrativos foram legitimados como espaço-tempo de formação, na medida em que convidam participantes ao reencontro de si, de suas linguagens e expressões. Onde,

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273


ANEXO 1 - QUADRO DE RESULTADOS DA BASE DE DADOS SCIELO (2017-2021) - “CRIANÇAS”; “EDUCAÇÃO INFANTIL”; “RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS”, A PARTIR DO ÍNDICE “RESUMOS”.

ANO 2019

2019

2019

2018

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TÍTULO O mito da ausência de preconceito racial na educação infantil no Brasil Vozes de Crianças Pretas em Pesquisas e na Literatura: esperançar é o verbo Questões Raciais para Crianças: resistência e denúncia do não dito

AUTORAS Circe Mara Marques (UNIARP/ SC) Leni Vieira Dornelles (UFRGS)

PALAVRAS-CHAVE Educação Infantil; Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil; Preconceito racial

Débora Cristina de Araújo (UFES) Lucimar Rosa Dias (UFPR)

Crianças Pretas; Literatura Infantil; Educação das Relações Étnico-Raciais

Flavia Motta (UFRRJ) Claudemir de Paula (UNIR)

Infância; Raça; Resistência; Lei 10.639; Educação Infantil Literatura Infantil e Juvenil; Personagens negras; Teses e dissertações; Escolarização da literatura.

As relações étnico-raciais Débora Cristina de Araújo na Literatura Infantil e (UFES) Juvenil


ANEXO 2 - TERMO DE COMPROMISSO DA PESQUISA - NEST/FME NITERÓI-RJ

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ANEXO 3 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA PARTICIPAÇÃO NA PESQUISA

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ANEXO 4 - ÍNDICE DE CENTROS CULTURAIS DESTACADOS

Teatro Popular Oscar Niemeyer

NA CONSULTA AOS PROFESSORES DA CIDADE DE

É um teatro localizado no Centro de Niterói, no Rio de Janeiro, no

NITERÓI-RJ ATUANTES NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Brasil. Foi inaugurado no dia 5 de abril de 2007. Recebeu o nome de seu idealizador em outubro de 2013. (Fonte: wikipedia) Mantenedora: Prefeitura da Cidade de Niterói- RJ

Niterói - RJ Teatro Municipal de Niterói-RJ O Teatro João Caetano, ou Teatro Municipal João Caetano, mais conhecido como Teatro Municipal de Niterói, foi construído no século XIX, e passou por inúmeras reformas e melhorias ao longo dos anos, sendo, em 1995, reinaugurado após restauração. (fonte: wikipedia) Endereço: Rua Quinze de Novembro, 35 - Centro, Niterói - RJ, 24020-125. Telefone: (21) 3628-6908 Teatro da UFF O Teatro da UFF foi inaugurado em 1982, no lugar em que, 35 anos antes, funcionava o Cassino Icarahy. Foi devolvido ao público flu-

Endereço: R. Jorn. Rogério Coelho Neto, s/n - Centro, Niterói - RJ, 24020-011 Localizado em Caminho Niemeyer Museu de Arte Popular Janete Costa de Niterói-RJ O Museu Janete Costa de Arte Popular é um museu sediado num casarão datado de 1892 no bairro do Ingá, em Niterói, no Rio de Janeiro, no Brasil. Ocupa uma área total de 1 400 metros quadrados, incluindo seu anexo. É dedicado à arte popular brasileira. Tem, como patronesse, a curadora de arte Janete Costa. (Fonte: wikipedia) Mantenedora: Prefeitura da Cidade de Niterói- RJ Endereço: R. Pres. Domiciano, 178 - Ingá, Niterói - RJ, 24210-271 Telefone: (21) 3617-7736

minense com o objetivo de oferecer o que há de mais expressivo no

Museu de Arte Contemporânea (MAC-Niterói-RJ)

teatro brasileiro e na música popular contemporânea. (Fonte: Centro

O Museu de Arte Contemporânea de Niterói é um museu de arte

de Artes UFF)

contemporânea brasileira localizado na cidade de Niterói, no Rio de

Mantenedora: Universidade Federal Fluminense.

Janeiro, no Brasil. Inaugurado em 2 de setembro de 1996, é o atual

Endereço: R. Miguel de Frias, 9 - Icaraí, Niterói - RJ, 24220-008

símbolo da cidade de Niterói. A forma futurista criada por Niemeyer tornou-se um marco da arquitetura moderna mundial, sendo considerada uma das sete maravilhas do Mundo em museus pela mídia

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especializada. (Fonte: wikipedia/ NELTUR)

Mantenedora: Companhia Ensaio Aberto.

Mantenedora: Prefeitura da Cidade de Niterói- RJ

Endereço: Avenida Rodrigues Alves, s/n Armazém 6 - Santo Cristo,

Endereço: Mirante da Boa Viagem, s/nº - Boa Viagem, Niterói - RJ,

Rio de Janeiro - RJ, 20220-364 Telefone: (21) 2516-4893

24210-390 Telefone: (21) 2620-2400

Casa do Jongo

Espaço Cultural Correios de Niterói-RJ

Há cinquenta anos, o Grupo Cultural Jongo da Serrinha difunde e

O Espaço Cultural foi criado no dia 14 de novembro de 2014, data do centenário do Palácio dos Correios. No primeiro pavimento do prédio o Espaço Cultural dispõe de duas salas de exposição e uma sala para oficinas. No segundo pavimento há mais quatro salas de exposição, a sala histórica e um auditório que possibilita a realização de eventos de música, humanidades, audiovisual e seminários. Mantenedora: Correios Endereço: Av. Visconde do Rio Branco, 481 - Centro, Niterói - RJ, 24020-005 Telefone: (21) 2503-8550

Rio

de

Janeiro - RJ:

Armazém da Utopia O Armazém da Utopia é um centro cultural situado no bairro da Gamboa, na Zona Central da cidade do Rio de Janeiro. Está instalado no Armazém 6 do Cais da Gamboa, em frente à Praça Muhammad Ali. O galpão centenário de 5 mil metros quadrados é um espaço múltiplo e dinâmico que sedia eventos culturais. (Fonte: wikipedia/ Armazém da utopia)

perpetua o jongo no bairro de Madureira, onde inaugurou recentemente sua nova sede, a Casa do Jongo. O novo Centro de Cultura tem cerca de dois mil metros quadrados, localizado no pé do Morro da Serrinha, e tem o objetivo de criar uma atmosfera familiar, que preserve a memória do jongo e propague a arte e o desenvolvimento humano. A casa possui salão para danças, estúdio musical, salas para cursos profissionalizantes, auditório, espaço para exposições permanentes, lojas, cine-clube, escola de artes multi-linguagem, ambiente para rezas e terreiro para jongo e capoeira. Endereço: Rua Silas de Oliveira, 101 - Madureira Rio de Janeiro - RJ, 21360-340 Telefone: (21) 3457-4176 Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-Rio) É um centro cultural situado no bairro do Centro, na Zona Central da cidade do Rio de Janeiro. Faz parte de uma rede de espaços culturais, denominada Centro Cultural Banco do Brasil. Oferece ao público carioca uma programação plural, regular, acessível e de qualidade. (fonte: wikipedia/CCBB) Mantenedora: Banco do Brasil

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Endereço: R. Primeiro de Março, 66 - Centro, Rio de Janeiro - RJ, 20010-000 Cidade das Artes Bibi Ferreira A Cidade das Artes é um complexo cultural localizado na cidade do Rio de Janeiro, no coração da Barra da Tijuca. Inaugurada em 2013, tem uma das maiores salas de concertos existentes no Brasil. É considerada um dos principais centros de espetáculos musicais do estado do Rio de Janeiro. (Fonte: wikipedia) Mantenedora: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro Endereço: Av. das Américas, 5300 - Barra da Tijuca, Rio de Janeiro - RJ, 22793-080 Telefone: (21) 3325-0102

Está localizado na Praça Mauá, em dois prédios de perfis heterogêneos interligados por uma ponte sob uma bela laje sustentada por pilotis. Inaugurado em 1º de março de 2013, promove uma leitura transversal da história da cidade, seu tecido social, sua vida simbólica, conflitos, contradições, desafios e expectativas sociais. Suas exposições unem dimensões históricas e contemporâneas da arte por meio de mostras de longa e curta duração, de âmbito local e nacional. O museu surge também com a missão de inscrever a arte no ensino público, por meio de sua Escola do Olhar. Mantenedora: parceria dos órgãos públicos da cidade com a iniciativa privada. Endereço: Praça Mauá, 5 - Centro, Rio de Janeiro - RJ, 20081-240

Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN)

Telefone: (21) 3031-2741

Foi criado em 13 de maio de 2005, com a missão de pesquisar, estu-

MUHCAB - Museu da História e Cultura Afro-Brasileira

dar, investigar e preservar o patrimônio material e imaterial africano e afro-brasileiro, cuja conservação e proteção seja de interesse público, com ênfase ao sítio histórico e arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos, sobretudo com a finalidade de valorizar a memória e identidade cultural brasileira em Diáspora.

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Museu de Arte do Rio, MAR

Vizinho ao Cais do Valongo, na Gamboa, o espaço é um dos 15 pontos de memória que compõem a Pequena África, na Região Portuária, e fica localizado no Centro Cultural José Bonifácio. Em sua visita, será possível conferir algumas das obras do acervo, que guarda aproximadamente 2,5 mil itens entre pinturas, esculturas e foto-

Mantenedora: Pelas doações que recebe, pois não tem investimentos

grafias, além de trabalhos de artistas plásticos contemporâneos, que

do poder público.

dialogam com o espaço. Por ser um museu de território, as edifica-

Endereço: R. Pedro Ernesto, 32-34 - Gamboa, Rio de Janeiro - RJ,

ções e os elementos urbanos também são catalogados como acervo

20220-350 Telefones: (21) 2516-7089 / (21) 96465-9983

territorial. (Fonte: MUHCAB)


Endereço: R. Pedro Ernesto, 80 - Gamboa, Rio de Janeiro - RJ, 20220350 Telefone: (21) 2233-7754

Petrópolis - RJ Museu Imperial

Quilombo Urbano Cultural Agbara Dudu/Movimento Negro

Popularmente conhecido como Palácio Imperial, é um museu históri-

Unificado

co-temático localizado no centro histórico da cidade de Petrópolis, no

O nome Agbara Dudu significa em yorubá “Força negra”. Considerado o primeiro bloco afro do Rio de Janeiro, foi fundado em 04 de Abril de 1982. Tem em sua trajetória 36 anos de existência com inúmeros trabalhos Afro Culturais e musicais. Endereço: R. Sérgio de Oliveira, 4 - Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro RJ, 21351-200 Telefone: (21) 99878-9209 Sesc Copacabana O Sesc – Serviço Social do Comércio – é uma entidade privada sem fins lucrativos com responsabilidade social na sua essência. O Sesc RJ entende que a Cultura é um importante instrumento de transformação do indivíduo e da sociedade. Oferece atividades como shows, peças, exposições, cinema, ações de Literatura e muito mais. (fonte: SESC)

estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Possui o principal acervo do país relativo ao império brasileiro, em especial o chamado Segundo Reinado, período governado por d. Pedro II. (Fonte: wikipedia/ Museu Imperial) Endereço: R. da Imperatriz, 220 - Centro, Petrópolis - RJ, 25610-320 Telefone: (24) 2233-0300

São Paulo - RJ Museu Afro-Brasil O Museu Afro Brasil é um museu histórico, artístico e etnológico, voltado à pesquisa, conservação e exposição de objetos relacionados ao universo cultural do negro no Brasil.Localizado no Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega, dentro do Parque Ibirapuera, o Museu conserva, em 11 mil m2 um acervo com mais de 8 mil obras, entre pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, documentos e peças etnológicas, de autores brasileiros e estrangeiros, produzidos entre o

Mantenedora: Sesc RJ

século XVIII e os dias de hoje. (Fonte: wikipedia/ Museu Afro-Brasil)

Endereço: R. Domingos Ferreira, 160 - Copacabana, Rio de Janeiro

Mantenedora: Associação Museu Afro Brasil - Organização Social de Cultura.

- RJ, 22050-012 Telefone: (21) 4020-2101

Endereço: Portão 10, Av. Pedro Álvares Cabral, s/n - Vila Mariana, São Paulo - SP, Telefone: (11) 3320-8900

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