Histórias das controvérsias na teologia cristã humanidade(1) pdf n pdfessa

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HISTC5RIA DAS CONTROVERSIAS NA

EOLOGIA CRIST -

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2 000 ANOS DE UNIDADE E DIVERS IDADE

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HUMANIDADE: essencialmente boa e existencialmente alienada

DESDE 0 ILUMINISMO (NOS SEC. xvii e

os pensadores ocidentais — tanto seculares como religiosos — enfocaram corn grande atencao a natureza da humanidade. 0 escritor britanico Alexander Pope expressou urn aspecto do espirito da Idade da Razdo em distico: "Conheca, pois, a si mesmo; nao tente esquadrinhar a Deus; o estudo adequado da humanidade é ser humano" (Essay on man) [Ensaio sobre o ser humano]. Antes da revolucao cultural conhecida por Iluminismo, a maioria das pessoas acreditava saber o que era a humanidade. Pelo menos havia uma concordancia geral de que a humanidade é uma criacdo especial de Deus feita a imagem e semelhanca dele, composta de corpo e alma, caida, mas redimivel. QUESTOES E DIVERGENCIAS DA FE CRISTA ACERCA DA HUMANIDADE

Corn o surgimento do Iluminismo, questionamentos serios foram suscitados contra o consenso cristao sobre a


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natureza da humanidade. 0 surgimento do naturalismo ao longo do seculo xix e no seculo xx parecia contrapor a ciencia moderna a fe na condicao transcendente da humanidade sobre a natureza. Filosofias idealistas e varias formas de misticismo tentaram resgatar a natureza humana especial em face das novas descobertas e teorias da ciencia evolutiva apontando para os poderes da consciencia e da autotranscendencia da humanidade. De modo geral, a questao acerca da natureza da humanidade tornou-se o assunto principal da filosofia, ciencia e teologia no seculo xx. Nao obstante, antigos pensadores cristaos e pais da igreja se debateram corn perguntas sobre a natureza e a condicao da humanidade na cultura pluralista greco-romana. Muitos pontos de vista diferentes acerca da humanidade pululavam a sua volta, e eles tiveram de desenvolver urn consenso rudimentar cristao em contraposicao a alguns desses conceitos, especialmente ao se infiltrarem nas igrejas. Os seres humanos sao refens dos deuses ou sao eles proprios pequenos deuses? Os gnOsticos representavam o desafio mais seri° ao cristianismo apostolic° por promoverem a crenca na divindade interior da humanidade (ou de alguns seres humanos). Diante de tais desafios antigos e modernos, os cristaos desenvolveram a partir da revelacao divina urn consenso rudimentar sobre a natureza e a existencia humanas. Esse consenso raramente ou jamais assumiu a condicao de dogma — doutrina essencial — da mesma maneira que o consenso cristao sobre Jesus Cristo e a Trindade. Poucos credos ou declaracoes confessionais formais de igrejas cristas incluem expressoes detalhadas do que deve ser crido sobre essa questao. No entanto, a leitura cuidadosa dos pais da igreja, dos pensadores cristaos medievais, dos reformadores protestantes e dos cristaos modernos revela urn surpreendente campo de concordancia no ponto que distingue o cristianismo de todas as filosofias seculares e pagas.


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Infelizmente, muitos cristaos contemporaneos nao estao totalmente familiarizados corn essa tradicao consensual cristã a respeito da humanidade, nao conhecendo mais que seu esqueleto. Talvez saibam que o cristianismo inclui a crenca tanto em aspectos fisicos quanto espirituais da humanidade (corpo, alma/espfrito) e talvez saibam que o cristianismo ensina que os seres humanos sao criados imagem e semelhanca de Deus e apesar disso estao caldos no pecado, contudo, muitas vezes, nao tern consciencia do que significam esses conceitos da humanidade e o que excluem. Por exemplo, muitos cristaos confundem a crenca no aspecto espiritual da humanidade corn a crenca do tipo gnostico da divindade interior. Tambern tendem muitas vezes a interpretar desse modo a "imagem de Deus" (imago Dei) ou pensam nela como semelhanca fisica entre os seres humanos e Deus. Por fim, o conceito inteiro de pecado original — condicao decaida — confunde a maioria dos cristaos contemporaneos e vem caindo rapidamente no esquecimento. E importante que os cristaos redescubram a fe crista autentica a respeito da natureza e da existencia humana em uma epoca em que muitas ideias nao-cristas sobre a humanidade estao se infiltrando nas igrejas. Quais sao as principais questOes que cercam a fe crista sobre a humanidade? Tres salientam-se como especialmente importantes: primeira, a natureza dual do ser humano como natural-fisico e transcendente-espiritual; segunda, a condicab dos seres humanos como criados a imagem e semelhanca de Deus; terceira, a condicao dos humanos como caldos, pecadores, alienados de Deus e de sua verdadeira existencia. Essas questoes podem ser expressas em perguntas que cobcam falsas opcoes; a resposta a todas elas é urn sim qualificado. Sera que os seres humanos sao parte da natureza ou estao acima da natureza? (Outro modo de apresentar essa mesma


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pergunta ĂŠ se os seres humanos sao mortais ou imortais?) Porventura os seres humanos sao essencialmente bons ou maus? Sera que os seres humanos sao pecadores porque pecam ou pecam porque sao pecadores? Essas nao sao perguntas capciosas. Apontam para divergencias acerca da natureza e existencia humanas que a fe crista busca preservar. De acordo corn o cristianismo, e em contraste corn a maioria das demais concepcoes sobre a humanidade, os seres humanos sao tanto animais (seres naturais, biologicos, mortais) quanto transcendentes a natureza (espirituais, possuindo uma qualidade supranatural, imortal). Os seres humanos sao essencialmente bons e existencialmente alienados. Sao pecadores porque pecam e pecam por serem pecadores por natureza. Nao obstante, essas conviccoes duais do cristianismo originaram muita confusao, conflito e controversia. Neste capitulo, analisaremos os fundamentos da fe crista sobre esses assuntos e, na seqiiencia, examinaremos nocaes alternativas a essa antropologia crista (visao da natureza e existencia h_umanas). Em seguida, prosseguiremos para uma descricao e avaliacao critica de algumas variacoes da fe sobre a humanidade no ambito cristao e concluiremos corn algumas observacoes sobre uma crenca crista unificada acerca da humanidade que seja fiel e pertinente a situacao cultural contemporanea. 0 CONSENSO CRISTAO SOBRE A HUMANIDADE

Ha tres perspectivas cristas essenciais sobre a natureza e existencia humanas que contrastam vigorosamente corn outros pontos de vista antropologicos. Primeiramente, os seres humanos sao animais (seres fisicos, parte da natureza) e espirituais (seres que transcendem a natureza e a existencia fisicas). Ern segundo lugar, os seres humanos sao criacao divina especial que possui o dom da propria imagem e semelhanca de Deus. Em terceiro lugar, os seres humanos nascem como


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"pecas danificadas" ao herdar corrupgio espiritual que permeia todo o seu ser e conduz, inevitavelmente, a atos pessoais de desobediencia a Deus (ou seja, todos sao pecadores mesmo antes de cometer "pecados"). Essa terceira conviccao e conhecida na teologia crista como "pecado original" e "depravacao herdada". Ern cada urn desses casos, como em muitos outros de conviccoes cristas discutidas neste livro, existe uma tendencia por parte de cristaos e nao-cristaos para identificar a conviccab corn uma interpretacao particular dela. Isso é algo que queremos evitar aqui. Por exemplo, os cristaos sempre creram que os seres humanos sao compostos tanto de corpo quanto de alma — natureza (originam-se da terra) e sobrenaturalidade (possuem urn dom acrescentado a natureza que os torna imortais e ineludivelmente relacionados corn Deus). Mas algumas pessoas confundem essa crenca crista universal acerca dos seres humanos corn sua interpretacao mais especifica como "tricotomia" (os humanos sao compostos por tres aspectos distintos e ate mesmo separAveis: corpo, alma e espinto). Nem todos os cristaos creem nisso. Deixar de crer nesse tipo de interpretacao nao significa que a pessoa negue a crenca crista que os humanos sao mais que animais. Precisamos distinguir entre os elementos basicos que unem os cristaos durante seculos em termos de suas conviccOes e perspectivas, e os detalhes que surgem quando certos cristaos especulam sobre o significado e as implicacoes dos fundamentos. Os cristaos sempre creram que os seres humanos possuem dignidade especial e valor acima das demais criaturas porque sao criados a imagem e sernelhanca de Deus. Alguns cristaos identificaram essa crenca corn certa interpretacao particular do significado da imago Dei (imagem de Deus). Isso é algo que deve ser evitado.


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Os cristaos sempre creram que os seres humanos sao pecadores e carecem da redencao pela graca de Deus em Cristo por intermedio do Espirito Santo. Alguns cristaos, infelizmente, identificaram essa conviccao basica, essencial, no pecado original e na depravacao total herdada corn um tipo particular de interpretacao teologica. Por exemplo, alguns cristaos simplesmente presumem que o "pecado original" significa que os humanos nascem culpados do pecado de Adao e Eva. Alguns desses cristaos presumem que se uma pessoa na- o cre na culpa herdada ou federal (unifida corn Adao), nega o pecado original. Isso simplesmente nao Ê verdade. Nosso projeto e propOsito sera expor da forma tao simples e breve, quanto possivel, o consenso cristao sobre essas questoes. Ao faze-lo somos confrontados corn uma dificuldade pelo fato de que esses conceitos cristaos sobre a natureza e a existencia humanas raramente foram articuladas em livros reconhecidos ou em declaracoes confessionais. Permaneceram, primordialmente, no nivel de suposicoes subjacentes. A igreja como urn todo raramente os elevou a condicao de artigos essenciais absolutos da fe crista da mesma maneira que destacou a fe na divindade de Cristo ou na Trindade. Nao obstante, quando lemos a Escritura, os pais da igreja, os reformadores e outras obras de cristaos influentes ao longo dos tempos, vemos que esses conceitos basicos sempre foram aceitos ate mesmo sem terem sido discutidos dogmaticamente. 0 cristianismo considera os seres humanos animais e algo mais. Ou seja, os seres humanos sao animais. Somos criaturas feitas do "1)6 da terra" (Gn 2.7). Somos seres finitos, limitados e fisicos, cujo destino Ê morrer fisicamente. A reveIna° biblica afirma que os seres humanos sao animais (seres biologicos corn heranca genetica) e reflete essa premissa em seu realismo extremo sobre suas limitacoes, doenca, enfermidade, fragilidade fisica e morte corporal. 0 AT contem


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especialmente muitas referencias aos seres humanos como — referindo-se a sua finitude, existencia material, fragilidade fisica e falecimento corporal. Alguns cristaos foram tentados a interpretar o "p6" e a "carne" como recipientes maus ou meros veiculos da verdadeira humanidade que, segundo eles, é essencialmente imaterial, espiritual e talvez ate mesmo divina. Isso esta mais proximo da teoria grega antiga sobre a humanidade que da antropologia hebraica, biblica. Para os judeus e os cristaos dos primeiros seculos, o aspecto fisico da humanidade é uma boa criacao divina — uma clacliva — mesmo que ela tenha caido na corrupcdo devido ao pecado. Afinal, declarou vigorosamente certo escritor cristao "Deus nao criou 0 Genesis proclama e toda a Escritura corrobora em outras passagens a verdade de que ate mesmo o corpo, embora feito de 1)6 (finito, delicado, agora caido) e criacao divina, sobre o qua! Deus declarou ser "born", como as demais que ele cria. 0 reverso dessa primeira afirmacao crista sobre a natureza e a existencia humana e que, embora sejamos pó, tambem somos espirito. Novamente, urn equivoco ronda essa perspectiva crista basica acerca da humanidade. Muitas pessoas presumem automaticamente que espirito é "substancia" ou centelha divina". "Deus é Espirito; espirito é Deus" constitui uma falsa equacao. A Escritura e a tradicao crista fazem uma nitida distincao entre o espirito de uma pessoa e Espirito de Deus. Os seres humanos sao almas (o termo alma é muitas vezes usado na Escritura e no pensamento cristao como sinonimo de pessoa). Almas sao compostas da uniao entre urn corpo e urn espirito. Obviamente isso é uma sintese muito breve do uso geral desses termos na Escritura. As vezes alma é usada para designar o aspecto espiritual da pessoa e o aspecto imaterial que sobrevive a morte corporal ate a ressurreicao. No entanto, para fins sistematicos de expressao, é melhor


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falar da alma como a identidade pessoal do ser humano e corpo e espirito como os dois lados ou aspectos da alma.' Assim, na revelacao biblica e na major parte da antropologia crista, os seres humanos sao "almas viventes" (pessoas inevitavel e ineludivelmente relacionadas corn Deus) compostas tanto de corpo (existencia natural) quanto de espirito (existencia sobrenatural). Ao contrario de certa teologia popular, esses nao sao equiparados corn naturezas inferiores e superiores dos seres humanos. Pelo contrario, a antropologia crista valoriza tanto o corpo quanto o espirito como dois lados da boa criacao de uma alma humana. 0 grande pai da igreja e defensor da fe na Trindade, Atanasio, em sua obra classica Sobre a Encarnacao, afirmou a natureza dual da humanidade como essencialmente mortal e transcendente a natureza e mortalidade. Nada disso é novidade. Atanasio simplesmente resumiu o consenso cristao antes dele em urn context° controvertido, e seu grande prestigio e autoridade ajudaram a selar o que escreveu corn valor especial. Nesse livro, o bispo e teologo egfpcio do seculo Iv declarou que os seres humanos — incluindo Jesus Cristo — sao por natureza mortais e "essencialmente impermanentes", mas tambem possuem dons adicionados por Deus como a imortalidade e a incorrupcao. 2 Os grandes pais da igreja ocidental, Tertuliano e Agostinho, tambem ensinaram a natureza dual da humanidade, como fizeram todos os principais pensadores cristaos desde entao. A discordancia principal nessa primeira area da antropologia crista — que apenas revela o acordo mais basic°, subjacente — residia entre os teologos Tara embasamento erudito desse uso dos termos v. Dale Moody, The Word of truth: a summary of Christian doctrine based on biblical revelation (Grand Rapids: Eerdmans, 1981), p. 170-87. 'Cf. H. D. McDonald, The Christian view of man (Westchester: Crossway, 1981), p. 54.


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da igreja que ensinavam a tricotomia (tres aspectos distintos ou componentes do ser humano — corpo, alma e espirito como tres substancias separaveis) e os que ensinavam a dicotomia (dois aspectos distintos). Raramente esse debate levou a anatemas ou condenacoes. Permaneceu para a maioria uma questao de acaloradas manifestacoes de opiniao. Os livros influentes do escritor cristao chines do seculo )0(, Watchman Nee, promoveram a tricotomia e levaram muitos cristaos e pastores a presumir que ela é a visa() 'Aka, mas a ampla maioria dos cristaos ao longo da historia — incluindo-se a maioria dos pais da igreja e reformadores, bem como os estudiosos evangelicos mais modernos — foi dicotomista. 3 A segunda doutrina essencial da antropologia crist5 é que os seres humanos sao essencialmente bons. Talvez a melhor maneira, menos enganosa de expressar esse humanismo cristao seja que a humanidade ou a natureza humana é essencialmente boa por ser a imagem e semelhanca de Deus. Pergunte a maioria dos cristaos se a natureza humana é essencialmente boa ou ma e a resposta afirmara corn freqiiencia a malignidade essencial da humanidade. No entanto, a revelacao de Deus em Jesus Cristo e o testemunho bIblico bem como a tradicab consensual crista afirmam a bondade essencial da natureza humana. Que é natureza nessa acepcao? A humanidade como Deus a criou e ainda a enxerga como sua criacao original especial. De acordo corn o testemunho biblico, Deus declarou que tudo o que ele criou é "born" (Gn 1.31). Em consonancia corn todos os pais da igreja antiga, nao havia macula alguma na criacao original de Deus. Agostinho, que muitas vezes é interpretado equivocadamente como alguem que considera a criacao — incluindo-se ,

'Para urn estudo proveitoso dessa controversia, v. ibid., parte 2, p. 47-100.


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a natureza humana — ma defendeu particularmente a bondade de todas as substdncias e da propria criacao. De acordo corn ele, o mal é apenas uma perversdo da bondade, e todas as coisas criadas sao essencialmente boas porque Deus as criou. De onde vem, entao, o mal? "A unica coisa ma é a vontade ma." Agostinho argumentou que o mal somente entra em cena quando a boa dadiva do livre-arbitrio sofre abuso pelos seres humanos. Nao foi uma semente ou urn germe já inerente a natureza humana que fez corn que o pecado e o mal aparecessem. Essa visa. ° da humanidade como essencialmente boa, mas existencialmente alienada devido ao abuso da liberdade, tornou-se o ponto de vista cristao basico ate mesmo durante o period° da Reforma protestante. Quando o teologo luterano Matias Flack) ensinou que a natureza humana e satdnica, sua opiniao foi condenada pelas igrejas luteranas do seculo XVI. Ao contrario do mal-entendido de muitos cristaos nos bancos de igreja e, infelizmente, ate mesmo nos pulpitos, o consenso cristdo sempre foi que a natureza humana é boa e no maligna. A bondade da natureza humana revela-se nitidamente em Jesus Cristo que, como creem os cristaos, foi verdadeiramente humano e, nao obstante, sem pecado. 0 pecado nao pode ser parte essencial da natureza humana se o Filho de Deus pela encarnacdo se tornou humano e, apesar disso, permaneceu sem pecado. Lucas nos diz que Jesus "ia crescendo em sabedoria, estatura e graca diante de Deus e dos homens" (Lc 2.52), e a segunda epistola de Joao condena toda pessoa (referindo-se provavelmente de modo especial aos que se chamam cristdos) que nega que Jesus Cristo veio em corpo (v. 7). Contudo, a epistola aos Hebreus deixa claro que Jesus Cristo foi tentado "porem, sem pecado" (Hb 4.15). De modo geral, a revelacdo de Jesus Cristo no NT aponta para sua verdadeira, autentica humanidade e para sua vida moral e espiritualmente perfeita. ,


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tnia EINLInL/VICIN I C tALILINnun

A bondade da natureza humana tambem é atestada nos Salmos (entre outras porcoes do AT). 0 salmo 8 é urn poema de louvor a Deus pela bondade humana como presente divino: "Tu o fizeste urn pouco menor que os seres celestiais e o coroaste de gloria e de honra" (v. 5). A Escritura faz mencao varias vezes a criacao da humanidade a imagem e semelhanca de Deus e nunca dá a entender que ela é uma dimensao completamente perdida da natureza humana. Pelo contrario, a epistola de Tiago prothe difamar qualquer ser humano por ser "feito a semelhanca de Deus" (Tg 3.9). Os relatos da criacao no Genesis mencionam que os humanos foram criados a imagem e semelhanca de Deus (homem e mulher de forma indentical). Pais da igreja como Ireneu de Liao recorreram a essa afirmacao sobre a humanidade contra os gnosticos depreciadores da natureza humana como oposta a alegada centelha divina dentro dela. Ireneu foi o primeiro pensador cristao a desenvolver uma explicacdo relativamente detalhada da imago Dei na humanidade, e todos os escritores cristaos depois dele, que escreveram acerca da natureza humana, acrescentaram suas pinceladas interpretativas no que ele comecou. Ireneu fez muito uso de dois termos de Genesis 1.26 — imagem e semelhanca. Muitos hebraistas modernos acreditarn que esse é meramente urn exemplo de paralelismo hebraico e nao aponta para duas dimensOes distintas da imago Dei, mas Ireneu e outros pais da igreja antiga adotaram a premissa de que a "imagem de Deus" se refere ao aspecto essencial da humanidade atingivel pelo pecado, mas que nao pode ser perdido, enquanto a "semelhanca de Deus" se refere ao destino da humanidade que, quando alcancado, cornpletaria nosso relacionamento corn Deus, mas que pode ser interrompido e temporariamente perdido, sem que os seres humanos se tornem menos que verdadeira e completamente

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humanos. 4 Essa distincao pode ser mais especulativa que enraizada na propria revelacao, mas o ponto principal é que Ireneu e outros pais da igreja, bem como os teologos medievais, os reformadores protestantes e os pensadores cristaos modernos consideraram — todos des— a humanidade especial na criacao por portarmos uma marca divina inigualavel. Em nosso ser, espelhamos urn icone de Deus. 0 que isso é, exatamente, foi assunto de muita discordancia e debate, bem como fonte de diversidade no cristianismo, mas a voz crista unanime sempre foi que a propria humanidade é boa porque tern — ainda que somente como resquicio — a propria imagem de Deus. Ate mesmo Joao Calvino, tantas vezes considerado urn dos maiores pessimistas quanto a natureza humana na hist& ria do cristianismo (por sua enfase na depravacao total), cantou louvores a natureza humana, ou melhor, a Deus por criar a humanidade boa. Nesse aspecto, Calvino — em consonancia corn toda a igreja antes e depois dele — foi urn "humanista cristao", talvez a despeito de si mesmo. Nas Institutas da religido cristã, o reformador de Genebra afirmou que a humanidade é essencialmente boa, mas existencialmente alienada, e vinculou a bondade essencial da natureza humana ineludivelmente corn a criacao original dos seres humanos imagem e semelhanca do proprio Deus (dois conceitos entre os quais nao fez distincao) e a sua restauracdo no ceu. De acordo corn Calvino:

A imagem de Deus e a excelencia perfeita da natureza humana que brilhou em Ada° antes de sua queda, mas que na seqiiencia foi tao deturpada e quase obliterada, de modo que nada Tara uma boa discussao das °pinkies de Ireneu e outros pais da igreja quanto a imagem e semelhanca de Deus, v. David Cairns, The image of God in man (London: Collins, 1973), p. 79-107.


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permanece depois da ruina exceto o que esta confuso, mutilado e acometido de doencas. Por isso, em alguma proporcao esta agora manifestada nos eleitos, a medida que renasceram no espirito; mas ha de atingir seu esplendor pleno no cell.' A extensao em que a imagem de Deus foi afetada pela queda no pecado é uma questa° de grande discussao no cristianismo e igualmente entre teologos cristaos, mas todos con-

cordam — incluindo-se Calvino — que a humanidade original, a humanidade verdadeira, a humanidade essencial e boa porque a humanidade foi criada a imagem e semelhanca do proprio Deus. 0 terceiro ponto principal da antropologia crista representa urn contraponto ao segundo: o cristianismo ensina que a exisrencia humana é alienada, caida, corrompida. Em outras palavras, embora a humanidade em si seja boa, todos os seres humanos, exceto Jesus Cristo, est5o vivendo de modo

alienado, distanciados de Deus e da imagem divina, segundo a qual foram criados. Essa é a doutrina do pecado original ou da depravacao herdada. Infelizmente, muitas pessoas pensam ser a negacao da bondade essencial da humanidade. Essa interpretacao equivocada foi promovida ate mesmo na literatura crista popular por certos teologos que parecem nao entender a perspectiva crista tradicional sobre a natureza e a existencia humanas. 0 major teOlogo protestante liberal do seculo XX, Paul Tillich, entendeu-a muito bem e cunhou a frase: "Essencialmente born, mas existencialmente alienado" para elucidar esse engano e expressar o paradoxo embutido na revelacao e na heranca da reflexao crista. Evidentemente, algumas interpretacoes da alienacao existencial — de pecado original e de depravacao herdada, total — realmente podem '1.15.4, p. 190.


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insinuar que a natureza humana e agora, desde a queda da humanidade, essencialmente corrupta e maligna. Mas isso de forma alguma e necessario no conceito basic° do pecado original. 0 consenso cristao sobre a condicao humana, em contraste corn a humanidade essencial, é que nossa vida cotidiana real é integralmente permeada desde o nascimento pelo pecado como tendencia ao orgulho (auto-idolatria), ao egoism°, a desobediencia a Deus. Nossa condicao é que estamos alienados espiritual, psicologica, emocional e fisicamente. Ou seja, de acordo corn o cristianismo classic°, todos sempre fomos pecadores ate mesmo antes de cometermos pecados conscientes, intencionais, pelos quais somos culpados. Nascemos depravados ou destituldos, mas isso nao é nossa real humanidade. E nossa humanidade doente. N'ao é nem sequer nossa verdadeira natureza, ainda que se tenha tornado nossa segunda natureza. Mas esta al no comeco de nossa vida, ate mesmo se for apenas como uma bomba-relogio herdada que faz tique-taque dentro da vida espiritual, conduzindonos inevitavelmente — a menos que amadurecamos para o despertar consciente, moral para o certo e o errado — a sermos rebeldes contra Deus, carentes de perdao pessoal e de reconciliacao corn Deus. A fe crist5 na pecaminosidade original, herdada, esta firmemente arraigada na revelacao divina. Sera que Jesus Cristo morreu por todas as pessoas — pelo mundo todo? Acaso todas as pessoas sao pecadoras sem excecao? As respostas para essas perguntas no NT e nos escritos dos pais da igreja sac, sim e sim. Os teologos medievais e reformadores protestantes concordaram. Corn isso nao se afirma que o ensinamento sobre o pecado original no NT ou a fe nele seja algo simples. Ha muita ambigiiidade e discordancia sobre os detalhes. Nao obstante, nao se pode ler 0 NT honestamente e ignorar sua


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enfase realista na depravacdo humana universal. A epistola aos Romanos destaca particularmente essa verdade, e os capitulos 1 e 5 a realcam. Paulo escreveu em Romanos 5.18: "assim como uma transgressdo resultou na condenacdo de todos os homens," e no versiculo seguinte: "assim como pela desobediencia de urn so homem muitos foram feitos pecadores (Rm 5.19). 0 estudo atento de qualquer livro do NT constatard a mesma premissa subjacente, ate mesmo quando nas entrelinhas. Esta é a razao por que Cristo veio: todos os seres humanos so caidos e carecem da redencdo. Todos nos "nascemos pecadores". Essa conviccao — pelo menos em seus tracos gerais — foi admitida por todos os pais da igreja antiga, e eles nao sentiram necessidade de articuld-la em termos dogrnaticos ou em detalhes ate que alguem influente a negasse. Isso ocorreu pela primeira vez entre cristaos em Roma no comeco do seculo V. Pelagio, monge ingles, chegou a Roma e comecou a ensinar que todas as pessoas nascem puras, intactas, incorruptas e completamente capazes de, se quiserem, viver de modo perfeitamente obediente a vontade revelada de Deus, sem jamais precisar da graca especial para o perddo e a restauracdo. Pelagio nao negou que muitos, e talvez a maioria das pessoas, caiam no pecado. Simplesmente asseverou que isso evitdvel e que todas as pessoas sao capazes de nao pecar, assim como Ada° e Eva, antes de call-ern, eram capazes de pecar ou nao pecar. Pelagio continuou alterando sua opiniao para escapar de problemas corn concilios episcopais, mas sob intensa pressdo por parte de Agostinho ele, em dado momento, fugiu de Roma a Jerusalem e a outras partes do Imp& rio Romano oriental, onde foi mais bem recebido por alguns bispos e teOlogos ortodoxos orientais. Contudo, quando sua heresia se tornou mais clara suas °pinkies foram condenadas pelo Concilio de Efeso em 431 d.C.


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Em oposicao a Pelagio, Agostinho escreveu varios tratados sobre o pecado original e o herdado, a depravacao total. Argumentou que antes da queda a condicao humana era posse non peccare (e possivel ndo pecar), mas depois da queda nossa condicao humana universal ĂŠ non posse non peccare (impossIvel nao pecar). Chegou ao extremo de afirmar que todos os bebes sao concebidos em pecado de modo que nascem culpados do pecado de Addo e Eva. Em momento algum a Escritura afirma isso clara ou inequivocamente, e todo o ramo ortodoxo oriental do cristianismo e muitos protestantes o negam. Felizmente, esse detalhe, embora amplamente crido em circulos catolicos romanos e em alguns protestantes, ndo constitui urn aspecto obrigatorio do consenso cristao sobre a condicao humana. Desde o Concilio de Efeso (431 d.C.), o consenso cristao foi que todos os seres humanos nascem corn e na condicao chamada pecaminosidade, de modo que o pecado como corrupcdo, se nao como culpa, e herdado universalmente, e todas as pessoas precisam se arrepender, ter fe e reconciliarse pela obra de Jesus Cristo na cruz. Em outras palavras, a graca constitui uma necessidade humana universal. A clemencia divina nao pode ser algo somente para alguns ou ate mesmo para muitos. E uma necessidade basica da humanidade devida a queda no comeco da historia. Seria possivel fazer citacoes desse tema a partir dos escritos de quase todos os maiores pensadores cristaos ao longo da historia da igreja. Todos afirmaram algum ponto de vista sobre o pecado original como incapacidade humana para corn a justica, exceto em Jesus Cristo, bem como a graca especial de Deus. Contudo, pelo fato de algumas pessoas crerem que John Wesley, fundador da tradicao metodista do seculo Xviii sendo ele proprio sacerdote da Igreja da Inglaterra, teria negado o pecado original, pode ser iitil fazer referencia e trazer citacoes ,


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dele. Se Wesley afirmou a crenca no pecado original, isso atestara sua universalidade no cristianismo. Wesley considerou a si proprio urn evangelico catolico — uma pessoa interessada em reformar o cristianismo permanecendo fiel aos ensinamentos universais dos pais cristaos antigos e dos reformadores do seculo xvi. Em 1756 e 1757, Wesley escreveu urn tratado intitulado The doctrine of the original sin [A doutrina do pecado original].6 Nele declarou como doutrina crista essencial: 0 pecado original [...] nao é urn jogo de imaginacao, mas um fato limpid° e claro. Diariamente constatamo-lo corn os olhos e ouvimo-lo corn os ouvidos. Gentios, turcos, judeus, cristaos, de qualquer nacao, assim as pessoas sac) descritas au. Assim s5o os temperamentos, assim as maneiras de senhores, cavalheiros, clerigos, na Inglaterra, bem como de comerciantes e do baixo vulgo. Nenhuma pessoa de s5 consciencia pode negalo; e ninguem consegue explica-lo a nao ser pela suposicao do

pecado original.' Nesse artigo e em suas homilias baseadas nele, o grande pregador e reformador do cristianismo protestante afirmou inequivocamente o que a igreja sempre ensinou: todo ser humano é corrupto pelo que aconteceu no comeco de nossa historia, e todos necessitam da graca especial para a salvacao. Wesley ate mesmo chegou a afirmar a culpa universal, embora ele a mitigasse afirmando igualmente a aplicacao universal da morte expiatoria de Cristo e de seus beneficios para pôr de lado a culpa do pecado. Em outras palavras, Wesley e muitos outros protestantes chegaram a crer que as criancas 'Um belo resumo desse artigo, incluindo-se corn citacoes dele, esta em Thomas Oden, John Wesley's scriptural christianty (Grand Rapids: Zondervan, 1994), p. 155-76. 'Ibid., p. 175.


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sao tanto culpadas quanto inocentes. Sao culpadas "em Addo" mas inocentes (ou redimidas) "em Cristo", ate que amadurecam ao ponto da rejeicao consciente, deliberada, de Deus e de seu Filho, para abracar desejos pecaminosos (o que hoje seria chamado acting out — extravasar-se). Por causa de Cristo, corn base em sua morte reconciliadora pela humanidade, Deus misericordiosamente deixa de imputar a culpa do pecado original As criancas. Seria a crenca no pecado original e na depravacao herdada resquicio antiquado do passado do cristianismo? De forma alguma. 0 seculo xx testemunhou urn surpreendente avivamento da crenca na doutrina crista classica do pecado original, ate mesmo entre os protestantes liberais. Urn dos maiores pensadores cristaos do seculo )0( foi Reinhold Niebuhr, cuja biografia engrandeceu a edicao de vigesimo quinto aniversario da revista Time. Em seus numerosos livros, Niebuhr — em geral considerado moderadamente liberal, da corrente protestante dominante — promoveu urn renascimento da doutrina do pecado original despida da crenca em uma queda literal, historica, de urn casal originario em urn paralso no comeco da historia humana. Niebuhr abracou e divulgou urn paradoxo que se tornou a essencia de seu "realism° cristao". o paradoxo da bondade humana e do mal radical e universal em forma de orgulho, que inevitavelmente suscita a guerra, a injustica, o egoism° e todas as formas de atrocidades grandes e pequenas. Suas Conferencias de Gifford, publicadas como The nature and the destiny of man [A natureza e o destino do homem] (New York: Charles Scribner's Sons, 1941 1949), talvez tenham sido recebidas por alguns pensadores liberais corn desprezo e desilusao, mas seu efeito global foi confirmar e convencer a maioria dos cristaos, ate mesmo dos liberais moderados, de que a velha doutrina crista do pecado original como depravacao embutida (ainda que nao -


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herdada) ainda é relevante para a igreja e a sociedade no mundo moderno. Essas tres conviccoes cristas gerais — os seres humanos constituidos de natureza dupla, a humanidade essencialmente boa por ter sido criada a imagem de Deus, os homens universalmente caidos no pecado — formam juntas o eixo central que poderia ser chamado humanismo cristao. E urn humanismo realista que combina verdades sobre a raca humana parcialmente captadas e ressaltadas de maneira unilateral por outras religioes e filosofias. E urn humanismo que considera o homem detentor de infinito valor e dignidade maiores que de qualquer outra criatura e, no obstante, ele é corrupto e desamparado sem a graca especial de Deus. Em decorrencia, é urn humanismo que promove esperanca e desconfianca: esperanca na elevacao da humanidade corn a ajuda de Deus, e desconfianca acerca da motivacao humana, incluindo a nossa. Esse humanismo posiciona-se sem contemporizar corn os tres principais pontos de vista alternativos da natureza e da existencia humanas. Examina-los ajudard a centrar o foco na fe crista e demonstrard como ela é diferente das antropologias que disputam a mente e o coracao das pessoas na sociedade moderna e pos-moderna. PONTOS DE VISTA ALTERNATIVOS SOBRE A HUMANIDADE

Os tres principais pontos de vista sobre a natureza e a existencia do homem contrastam totalmente corn o cristianismo e as vezes o desafiam ate mesmo dentro de grupos cristaos. Sao concepcoes que nao podem ser reconciliadas nem compatibilizadas corn o cristianismo. Elas nao sao cristas, algumas anticristas, e deveriam ser desmascaradas e rejeitadas sempre que aparecerem no ambito do pensamento da igreja. A primeira é uma concepcdo peculiarmente moderna,


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ocidental, enraizada e baseada no naturalismo. E comumente conhecida por humanism° secular, embora a maioria de suas manifestacoes nao utilize publicamente esse rotulo. A segunda é urn inimigo antigo do cristianismo, sua sombra durante dois mil anos. Baseia-se na cosmovisao emanatista do monismo e corn certa razdo pode ser chamada gnosticism°, ainda que esse termo raramente seja usado quando eta aparece e exerce influencia. A terceira alternativa foi ensinada por um monge britanico em Roma e em outras partes do Imperio Romano no tempo de Agostinho. Ela reaparece de vez em quando no cristianismo. Raramente é chamada por seu nome tecnico — pelagianismo — mas é uma visa() poderosa e persuasiva da natureza humana, provavelmente mais divulgada na devocao, teologia e espiritualidade populares que a antropologia crista classica. Humanismo secular é uma categoria e urn rotulo usados de modo exagerado — especialmente em alguns redutos fundamentalistas. Nas decadas de 1970 e 1980, alguns pregadores e escritores fundamentalistas lancaram uma campanha contra "a religiao do humanismo secular" ao constatar seu ensino na maioria das escolas ptiblicas. Muitos reagiram corn indignacao e desprezo contra esse ataque religioso educacao ptiblica (diversos pedagogos ressentidos reagiram dessa forma). Ate mesmo cristaos bem-intencionados sentiram-se tentados a contra-atacar corn violencia extrema, negando a propria existencia do humanismo secular como filosofia, porque certos extremistas estavam empregando corn exagero o termo e a categoria para propagar seus propositos politicoreligiosos. Nao paira nenhuma dtivida sobre a existencia de uma filosofia moderna, em cujo cerne se encontra a antropologia naturalista — e essa filosofia exerce uma influencia poderosa e penetrante e de que o rotulo "humanismo secular" é para eta tao born como qualquer outro. Ate mesmo


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seus principais proponentes aceitam e usam esse rotulo para designar sua filosofia.' Que é humanismo secular? Paul Kurtz o explica em termos de quatro "princlpios mil-limos": 1) anti-sobrenaturalismo [a saber, o fundamento naturalista]; 2) etica centrada no ser humano [ndo centrada em Deus]; 3) compromisso de usar a razdo crItica [em vez de fe na revelacao divina]; e 4) preocupacoes humanitarias [em contraposicao ao interesse em assuntos religiosos ou espirituais]. 9 Em formulacao negativa, o humanismo secular considera o ser humano, diz Kurtz, parte da natureza, embora o homem possua certas dimensoes inigualaveis, como a liberdade. N5o hA nenhuma discrepancia entre, por urn lado, a mente ou consciencia humana e, por outro, o corpo, nenhuma condicao especial da personalidade ou "alma", e sobretudo nenhum lugar privilegiado ou especial para a existencia humana no universo em geral. Em decorren-

cia, todas as afirmacoes da imortalidade humana ou teorias escatologicas da historia sao consideradas expressaes de cumprimento de desejo, uma leitura vã da esperanca e da fantasia humana sobre a natureza.i° No entanto, de acordo corn Kurtz e outros destacados humanistas seculares, o humanismo secular nao é uma filosofia meramente negativa (a saber, que nega algo crido tradicionalmente); o mais importante é que se trata de uma filosofia positiva da etica centrada no ser humano. Assim: 8 Paul

Kurtz, professor aposentado de filosofia na State University of New York, defende vigorosamente o humanismo secular e lancou sua propria campanha para defende-lo como a filosofia de major forca de conviccao e utilidade no mundo moderno, cientifico. Prometheus Press é a companhia editorial que ele fundou e que publica muitos livros que expressam urn ponto de vista humanista secular. 'In defense of secular humanism, Buffalo: Prometheus, 1983, p. 64. mIbid., p. 65.


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Os humanistas tern confianca nos seres humanos, e creem que as imicas bases para a moralidade sao a experiencia e as necessidades humanas. Os humanistas sao contrarios a todas as formas de religiao sobrenaturais e autoritarias. Muitos humanistas acreditam que a intelig'encia cientifica e a razao critica podem ajudar na reconstrucao de nossos valores morais." Para os humanistas seculares, todos os valores estao relacionados corn a humanidade. 0 homem ĂŠ a medida do bem e do mal, do certo e do errado. 0 que incrementa o bem comum promove a felicidade e a realizacao individual, motivo pelo qual a felicidade e auto-realizacao humanas em harmonia corn o seu bem comum constituem o summum bonum,

o bem supremo. Obviamente isso suscita muitas perguntas, como "a quem cabe decidir a major felicidade da humanidade"? Que sera quando o "bem supremo para o major numero de pessoas" vier a demandar a eliminacao da minoria? Os humanistas seculares sao otimistas acerca da benevolencia geral da sociedade humana libertada da supersticao e da ignorancia (associadas por eles a influencia da religido). 0 ponto em questa() ĂŠ como o humanismo secular avalia a humanidade. Ele considera a humanidade essencialmente boa, mas nao criada a imagem de Deus ou existencialmente alienada; fisica, mas nao espiritual; acometida de problemas como o egocentrismo biologico, mas nao degenerada. Os humanistas seculares nao sao necessariamente ateus, embora a ampla maioria provavelmente sej a agn6stica corn respeito ao conhecimento de Deus ou de qualquer coisa divina ou sobrenatural. 0 humanismo e reconhecido por muitos filosofos e ate mesmo pela Suprema Corte dos EUA como uma quasereligiao, medida que fornece a muitos de seus particlarios "Ibid., p. 33.


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uma cosmovisao alternativa e ate mesmo uma comunidade comprometida corn seus princIpios, talvez, ate adorada. A maioria dos cristaos reconhece prontamente o humanismo secular como radicalmente diferente do cristianismo. bastante facil rejeitg-lo quando aparece em forma aberta, organizada, publica como associacoes e organizacoes de adeptos do humanismo. Mas seria possivel que certa influencia de perspectivas humanistas seculares sobre a humanidade invada a mente e as congregacoes cristas? 0 boletim informativo de uma igreja alertava para a influencia do humanismo cristao, descrevendo-o como uma mistura de humanismo secular e cristianismo, no qual as pessoas deixam de ir a igreja e ficam em casa para assistir televangelistasl. Esse nao é exatamente o tipo de coisa que estamos perguntando aqui. E praticamente certo que a ameaca mais significativa para o cristianismo apresentado pelo humanismo secular é a tentacao de bifurcar a vida em compartimentos separados, quase blindados, vivendo de acordo corn a cosmovisao e a antropologia cristas em certas situacOes (casa, igreja, organizacoes religiosas), mas de acordo corn uma cosmovisdo e antropologia seculares em outras (contextos publicos, empresas, salas de aula). Outra possivel influencia do humanismo secular em cIrcubs cristaos é a adocao de urn tipo de etica totalmente utilitaria (centrada na produtividade ou na felicidade). A situacdo ironica é que muitos cristaos fundamentalistas, que cornbatem o humanismo secular, ligam o humanismo secular corn a evolucao teista e ate mesmo corn o criacionismo progressista, enquanto organizam suas instituicoes cristas segundo linhas secular-humanistas e utilitarias. Desse modo, o humanismo secular imiscuiu-se ampla e permanentemente em tantas areas da cultura e da sociedade que os cristaos nao podem evitar ser influenciados por ele. Somente urn renascimento


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de perspectivas centradas em Deus e na pessoa, sobre a natureza e existencia humanas, e que levam a seri° que o ser human° é caldo, poderA ajudar a proteger a mente e as comunidades cristas contra ele. A segunda alternativa principal para o consenso cristao acerca da humanidade é o neognosticismo. Corn o termo neo queremos dizer "nova forma de algo velho". 0 gnosticismo já foi descrito como uma cosmovisao enrianatista, em ültima analise monista, que evoluiu no cristianismo antigo e preconizava o dualism° da materia (maligna) e do espirito (born). Formas modernas e contemporaneas de gnosticism° aparecem em varias manifestacoes associadas direta ou livremente corn o movimento chamado Nova Era — urn apanhado de diversos ensinamentos e praticas espirituais esotericos, ocultistas que consideram a mente superior a materia. Infelizmente, muitos adeptos da Nova Era tambem se consideram cristaos e tentam combinar suas conviccoes e praticas neognosticas corn seu cristianismo. 0 neognosticismo, a filosofia da Nova Era, tende a negar todas as doutrinas principais do cristianismo historico-classico, ao reinterpreta-las radicalmente, tornando-o irreconhecivel. Por exemplo, a maioria dos seguidores da Nova Era afirma a criacao da humanidade a imagem de Deus e apregoa a bondade essencial da natureza humana, mas a interpreta em termos de uma "centelha divina" que constitui urn "eu superior" em cada pessoa. Muitas vezes misturam corn isso algum tipo de crenca na reencarnacao. 12 A antropologia da Nova Era reduz o pecado a ignorancia espiritual acerca da "divindade interior" ou da "conexao corn Deus", e interpreta a 'Tara uma excelente pesquisa e analise critica da filosofia da Nova Era, v. John P. Newport, The New Age movement and the biblical worldview (Grand Rapids: Eerdmans, 1998).


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alma ou o espirito como emanacao da substancia divina. De modo geral, o que torna tao insidiosos o neognosticismo e a filosofia e espiritualidade da Nova Era é que muitos cristaos e outras pessoas nao conseguem distinguir a doutrina crista da imagem divina e do homem interior como dimensdo espiritual do ser humano, e a crenca na "identidade divina no Intimo da pessoa". De forma andloga, muitos sdo incapazes de distinguir entre °rack) e magia. Em suma, a cosmovisdo da Nova Era é radicalmente oposta ao cristianismo, embora haja algumas areas comuns no que tange a abertura espiritual e a afirmacao da espiritualidade do genero humano. A terceira alternativa a antropologia crista é o pdagianismo, descrito no contexto das discussOes de Agostinho corn o monge britanico Pelagio. 0 pelagianismo ainda esta muito vivo e atuante — ate mesmo em comunidades cristas. Ele ocorre sempre que as pessoas creem que os seres humanos nascem sem macula ou falha e negam que o pecado seja a condicao na qual todas as pessoas nascem. Essa doutrina surge sempre que as pessoas afirmam que urn simples ato de vontade, sem a graca especial, sobrenatural, de Deus, é capaz de realizar algo verdadeiramente born em termos espirituais. Tambem ocorre toda vez que se propaga, ainda que sutilmente, a mensagem de que os humanos conseguem por si mesmos iniciar urn relacionamento correto corn Deus (e.g., "Deus ajuda a quem se ajuda"). Ate mesmo o modismo aparentemente tao inocente e positivo como usar fitas nos pulsos corn a iniciais WWJD (What would Jesus do?) [Que faria Jesus? OQFJ] pode evidenciar uma atitude pelagiana perante o cristianismo — como se as pessoas fossem capazes de fazer o que Jesus faria meramente pela possibilidade de agir de maneira semelhante a Cristo sem ser transformadas primeiro pela graca de Deus. 0 moralismo cristao aparece em muitos disfarces — alguns conservadores e alguns liberais — mas todos


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escondem a perspectiva basicamente pelagiana sobre a atuacao humana, atribuindo poder excessivo a humanidade e pouca dependencia da graca divina sobrenatural. DIFERENTES INTERPRETAcOES CRISTAS SOBRE A NATUREZA E EXISTENCIA HUMANAS

No ambito do consenso cristao sobre a natureza e existencia humanas, ha bastante espaco para interpretacoes discrepantes sobre detalhes. No entanto, na major parte, as denominacoes cristas evitam controversias agudas e divisoes sobre esses assuntos. A maioria das interpretacoes diferentes surge das especulacoes individuais de estudiosos e teologos cristaos. Algumas poucas questoes de interpretacao, porem, se tornaram testes de comunhao dentro de certas comunidades de tradicao crista. Aqui o espaco permite apenas urn tratamento mais breve e muito inadequado desses pontos de vista divergentes no consenso cristao. Apenas alguns deles serao mencionados; muitos sera() negligenciados. Serao explicados e examinados na seqiiencia das tres principais conviccroes cristas sobre humanidade descrita anteriormente neste capitulo. Embora todos os cristaos concordem que os seres humanos sao compostos das dimensoes natural/fisica e sobrenatural/espiritual, surgiu uma forte discordancia entre estudiosos cristaos sobre o ntimero e a relacao dessas partes da personalidade humana. 0 grande teologo escolastico medieval Tomas de Aquino argumentou a partir da Escritura e da Filosofia a favor de duas substancias distintas e ate mesmo separadas que compOem o ser humano inteiro: o corpo e a alma (para Tomas e muitos outros teologos cristaos, alma simplesmente ĂŠ urn termo para o aspecto espiritual de uma pessoa que sobrevive a morte corporal; da mesma maneira poderia ser chamado espirito). Tomas era dicotomista e dualista corn


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pesquisar acerca do holismo

teoria da dicotomi a

respeito a constituicao humana. A Igreja Catolica Romana geralmente segue os pontos de vista dele. Em decorrencia, a substancia imaterial da natureza humana é imortal e existe conscientemente apos a morte corporal, esperando a reunificacao corn o corpo na ressurreicao. Muitos protestantes concordam corn essa dicotomia e equiparam alma e espirito — dois termos que as vezes sao usados como sinonimos no NT para o aspecto imaterial, mas consciente, da pessoa, especialmente relacionada corn Deus e que sobrevive a morte ffsica. As alternativas ao dualismo dicotornico (ou dicotomia dualista) sao a tricotomia e o holismo. Alguns pais da igreja antiga, como Ireneu e os teologos alexandrinos, particularmente influenciados pela filosofia platonica, acreditavam em tres substancias distintas ou dimensoes da natureza humana — corpo, alma e espirito. Plata° e sua Escola de filosofia grega ensinaram urn tipo de psicologia tripartite muito parecido corn a tricotomia crista, e alguns estudiosos argumentam que a tricotomia se deriva mais da filosofia grega que da revelacao divina. De acordo corn a tricotomia, a alma é urn Orgao mediador do ser humano. E a forca vital animadora que ultrapassa o corpo meramente fisico mas nao sobrevive a morte corporal. Alguns tricotomistas equiparam a alma corn a consciencia e tambem corn a forca da vida. De acordo corn essa visa°, o espirito é a substancia ou dimensao superior da pessoa que radicalmente transcende as demais e é capaz de ter comunhao corn Deus tanto durante a permanencia no corpo quanto fora dele depois da morte. 0 holismo é urn ponto de vista relativamente recente de que os seres humanos sao entes unificados — indivisIveis e inseparaveis; alma e espirito sao somente termos para designar a totalidade da pessoa — que tambem é fisica, mas nao meramente materia1. 13 Os holistas afirmam que as pessoas


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sao corpos animados e almas corporificadas; nao podem ser divididas. A maioria dos holistas nega a existencia consciente intermediaria dos mortos e precisa afirmar em lugar dela uma transicao imediata apos a morte para a ressurreicao, ou entao o "sono da alma" no qual o morto esta verdadeiramente morto — inconsciente quando no inexistente — ate a ressurreicao. A opinido que parece levar em consideracao da forma mais adequada todos os materiais bIblicos e que tambem recebe o apoio da maioria dos pensadores cristaos ao longo dos seculos é a dicotomia. Entretanto, a dicotomia tradicional pode se beneficiar de certa influencia do holismo. 0 teologo cristdo John W. Cooper denomina uma dessas nocoes "dualismo holista", na qual qualquer separacao de alma/espirito imaterial do corpo fisico sempre é, no maxim°, apenas temporaria e nao ideal. Ate a ressurreicao os mortos podem estar conscientes, mas nao na condicao ideal. 0 corpo é parte da identidade humana, mas as pessoas podem estar, e estao, conscientes e "mantidas por Deus" no estado intermediario, naocorporal, depois da morte ate a ressurreicao. 0 significado especifico de imago Dei foi debatido muito entre teologos cristaos. Ireneu pressupos que a imagem divina se refere a capacidade de raciocinio dos seres humanos, bem como a sua alma ou espirito, ao passo que a semelhanca de Deus se refere a seu destino de ser semelhantes a Cristo na redencao. Durante os seculos do pensamento cristao desenvolveram-se muitos padroes e pontos de vista incluindo alguns que identificam a imagem divina corn os poderes da

'Um excelente estudo dessas e de outras interpretacOes cristas e filosoficas da constituicao dos seres humanos é o de John W. Cooper, Body, soul & life everlasting: biblical anthropology and the monism-dualism debate (Grand Rapids: Eerdmans, 1989). [


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razdo, imortalidade, consciencia, capacidade de responder a

palavra de Deus, liberdade, e dominio sobre a terra. Nenhum dos principais pensadores cristaos identificou a imago Dei corn semelhanca corporal ou fisionomica corn Deus. 0 problema dessas diversas definicoes é sua estreiteza e limitacao extremas. Por que identificar a imagem de Deus na humanidade corn urn aspecto ou uma funcao? Por que nao simplesmente considera-la personalidade — capacidade e funcao psicoespirituais que transcendem a simples natureza e a condicao ffsica pela capacidade de argumentar, pela necessidade e capacidade de comunhao e criatividade cultural, pelo desenvolvimento da linguagem e da comunicacdo, pela adoracao e autotranscendencia, pela liberdade e responsabilidade? Poucas denominacoes cristas fixaram o que seus membros (muito menos todos os cristaos) tern de crer sobre a identidade precisa da imago Dei. Foram teologos que muitas vezes desenvolveram e promoveram essas teorias, e ha um ntimero excessivo delas para ate mesmo menciona-las aqui. Nossa opiniao é que a maioria delas contern urn elemento de verdade, e o problema corn cada uma delas é a tentativa de monopolizar todo o significado da humanidade na imagem divina para uma faceta da natureza e da existencia humanas. Cremos ser melhor extrair a verdade de muitas delas, e se possivel de todas, em conjunto e considerar a imago Dei uma coletanea multifacetada, diversificada, de qualidades divinas na humanidade que juntas podem, corn as qualificacOes corretas, ser chamadas personalidade. Por fim, existe grande diversidade entre os cristaos sobre os detalhes do pecado original herdado, a depravacao total. Embora todos os cristaos creiam que a humanidade esta calda e carece de redencao, alguns cristaos creem e ensinam que cada crianca nasce culpada do pecado de Adao, e alguns negam expressamente isso, argumentando, ao inves, a favor


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da aquisicao da culpa na idade da responsabilidade. A culpa herdada e a depravacao total (e.g., como escravidao da vontade ao pecado) constituem a visa() mais forte e mais comum do pecado original na tradicao agostiniano-luteranoreformada da antropologia crista. Reagindo ao pelagianismo e semipelagianismo, Agostinho e seus seguidores afirmaram que em Adao toda a humanidade caiu conjuntamente. "Na queda de Adao todos nos pecamos" era a frase ensinada as criancas de escolas puritanas nos seculos xvii e Essa visdo diz que a humanidade é uma "massa de perdicao", e nenhum ser human° consegue escapar da condenacao sem a graca especial de Deus pelo batismo ou pela conversdo a Cristo. Isso entrega ate mesmo criancas ao inferno, a menos que estejam entre os eleitos (predestinados a salvacao), como se diz em grande parte da tradicional teologia luterana e reformada, ou sejam batizados, como se diz no pensamento catolico classico, ou cobertos pela expiacao de Jesus Cristo ate que alcancem a idade da responsabilidade, como se ensina na teologia de Wesley. Muitos protestantes de igrejas livres, como a maioria dos batistas e pentecostais, creem que Deus considera os bebes e as criancas inocentes apesar do pecado original ate que alcancem a idade da responsabilidade (o "despertar da consciencia") e cometam pecados intencionalmente. Durante a Reforma protestante, Zuinglio e seus seguidores que se separaram das igrejas reformadas magisteriais — os chamados anabatistas — negaram a culpa herdada e somente acreditavam na depravacao herdada como corrupcdo da natureza que conduz inevitavelmente a atos pessoais de transgressao quando atingida a idade da responsabilidade. Lideres como Baltasar Hubmaier e Menno Simons e todos os seus seguidores — incluindo-se a maioria dos batistas posteriormente — abracaram a visa° que Ulrico Zuinglio (ndo Calvino) ensinou: 1


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os bebes sao inocentes (por causa da concessao da graca de Cristo por sua morte), e o pecado original é uma propensao ao pecado em que todas as pessoas nascem sem culpa, porem todas as pessoas livres moralmente responsaveis e maduras pecam em dado momento de modo culposo e carecem de arrependimento e perdao.i 4 Menno Simons, urn dos principais autores anabatistas da Reforma, argumentou contra a fe na culpa herdada (ou pelo menos na culpa de bebes), razdo pela qual rejeitou o batismo infantil como desnecessario e Mas ele nao negou o pecado original como corrupcao herdada. De acordo corn Menno Simons: ,

Nos [anabatistas] tambem cremos e confessamos que nascemos da semente impura, que por meio do primeiro Adao terrestre fomos degradados completamente e nos tornamos filhos da morte e do inferno: corn esta compreensao, porem, de que ate mesmo quando calmos e nos tornamos pecadores em Ado, assim tambern cremos e confessamos que por Cristo, o segundo Adao divino, somos gratuitamente ajudados a nos levantar novamente e justificados [...] As criancas inocentes e menores o pecado nao é imputado por causa de Jesus. A vida é prometida, rid() por meio de alguma cerimonia, mas por pura graca, pelo sangue do Senhor, como ele proprio diz: "Deixem as pequenas criancas vir ate mim e nao as profbam; porque das tais é o reino dos ceus". ' 5 A visdo de Simons é defendida pela maioria dos batistas e por muitos outros teologos protestantes evangelicos. Obvia"Declaration of Huldreich Zwingli regarding original sin, adressed to urbanus rhegius, em On providence and other essays, Samuel Macauley Jackson (org.) por William John Hinke (Durham: Labyrinth, 1983), p. 32. ''Foundation of Christian doctrine, in: The complete writings of Menno Simons, trad. Leonard Verduin, J. C. Wenger, org., Scottsdale: Herald, 1984, p. 130-1.


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mente é crida por todos os anabatistas, incluindo-se os menonitas, bem como por todos os pentecostais e muitos nas tradicoes pietistas. Os diversos grupos metodistas tendem a sustentar essa visã° apesar da propria tendencia de John Wesley de abracar a fe na regeneracao batismal de bebes. No entanto, muitos teologos firmemente tradicionais e conservadores de denominacao catolica romana, luterana, episcopal/anglicana e reformada aceitam a visdo agostiniana de que toda a humanidade é culpada e condenada — incluindo-se bebes — por causa do primeiro pecado de Ada°. Sua unica esperanca de salvacao, portanto, se viessem a morrer antes da maturidade e do arrependimento e da fe conscientes, reside em estar entre os eleitos de Deus para estar entre seu povo aliado ou, como na teologia catolica, no sacramento do batismo. Praticamente nenhuma denominacao crista ensina que todas as pessoas nao-batizadas — especialmente os bebes nao-batizados — sao automaticamente condenadas. Ate mesmo a Igreja Catolica reconhece urn "batismo de desejo". A discussao gira em tomb da pergunta se todas as criancas sac) salvas, apesar do pecado original e da graca de Cristo, ou se apenas alguns bebes sao salvos pela graca de Cristo por intermedio de uma eleicao especial por Deus ou pelo sacrament° de batismo na agua!' 6

UMA PROPOSTA CRIST;' UNIFICADORA SOBRE A NATUREZA E A EXISTENCIA DO HOMEM

Urn dos pontos mais quentes de divergencia entre pessoas de cosmovisoes e sistemas de fe discrepantes esta na pergunta antiquissima: Que é o homem? (Hoje, obviamente, a linguagem i 6Muitos teologos cristaos e lideres da igreja simplesmente relegam o destino de bebes e criancas nao-batizadas ao misterio e apelam a misericordia e justica de Deus. Contudo, isso ajuda pouco para satisfazer as rnentes inquiridoras.


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inclusiva reformula a pergunta: Que Ê a humanidade? 0 problema Ê que humanidade representa o coletivo, de modo que a pergunta formulada desse modo sugere urn agregado e tende a deixar fora da perspectiva o individuo; o termo homem tinha a vantagem de se referir ao individuo e ao coletivo, ainda que obviamente seja visto agora como favorecendo o macho da especie). Teologos e filosofos de todas as religioes e os sem-religiao examinam a questao e tentam respondela. 0 universo fisico e cada vez mais compreendido e explicado pelas diversas ciencias, mas o misterio da natureza e da existencia humana permanece justamente assim — em grande parte urn misterio. A batalha contemporanea pela mente em andamento nas culturas pluralistas gira ao redor desse misterio. Sera que os seres humanos sao meros "macacos nus"? Ou os homens sao pequenos deuses? Urn cientista secular e filosofo propos que os seres humanos sao apenas "sistemas digestivos conscios de sua morte". Alguns espiritualistas da Nova Era proclamam que os seres humanos sao divinos e possuem todo o poder, inteligencia e sabedoria do Espirito universal ou Deus. Sera que o cristianismo tern uma mensagem distinta sobre a humanidade ou sera ele compativel corn todos esses pontos de vista? Na melhor das hipOteses, no todo e no principal, o cristianismo sempre considerou a humanidade detentora de dignidade infinita e valor acima do restante da natureza por ter sido criada a imagem divina, amada por Deus e resgatada ern Cristo. Ao mesmo tempo, o cristianismo sempre viu a humanidade como degradada, pior que animais, corrupta e condenada. A mensagem crista sobre a humanidade e paradoxal e, contudo, nao-contraditoria. 0 filosoto cristao trances do seculo XVII cientista, inventor e teOlogo laico, Blaise Pascal, escreveu o esboco de urn livro de apologetica crista.' intitulado Pensees [Pensamentos] corn base neste paradoxo: ,


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O ser humano é urn rei sentado sobre urn trono que esta ruindo, possuidor de grande glOria e . ao mesmo tempo degradado por causa do pecado. Outros escritores cristaos, como o teologo do seculo )0( Reinhold Niebuhr, tambem retrataram a humanidade como urn paradox° e argumentaram que essa descricao dual da natureza humana que se recusa a reduzir os homens a animais ou a eleva-los a seres divinos é a tinica explicacao adequada verdadeira condicao humana. Na cultura pos-moderna em que a humanidade encontrase precariamente situada nos limites da Filosofia, Psicologia e Ciencia, cada denominacao crista precisa propagar uma visa() unificada da humanidade que sustente os valores do respeito pela vida humana e pelos direitos humanos basicos enquanto reconhece as limitacoes humanas e suas tendencias malignas. Essa visa° unificada pode ser mais bem elaborada por meio da recuperacao criativa da grande tradicao da fe crista sobre a humanidade criada a imagem de Deus, constituida de corpo e alma/espirito, e calda no pecado. Essa recuperacao criativa da fe crista tradicional envolve dois passos ou fases. Primeiramente, a essencia da fe tern de ser redescoberta e recuperada das camadas de especulacao e interpretacao em que foi enleada. Em outras palavras, a fe precisa ser redescoberta em toda a sua simplicidade. Em segundo lugar, o cerne simples da fe tern de ser reafirmado corn relevancia na realidade contemporanea. Em outras palavras, o conceito cristao essencial deve ser traduzido para o linguajar contemporaneo que trata das necessidades peculiares e dos problemas do contexto social de hoje. A perspectiva crista basica, unificadora, sobre a humanidade, por exemplo, inclui a ideia relativamente simples (ndo simplista) de que todos os seres humanos sao tanto inigualaveis e possuem dignidade e valor especiais por terem sido criados a imagem de Deus quanto corrompidos desde o nascimento por uma


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enfermidade espiritual que os impede de chegar a plenitude separados da graca redentora de Deus. Essa verdade dual, quase unica no cristianismo, pode falar poderosamente as necessidades de pessoas modernas e posmodernas que estao perplexas diante da grande quantidade de perguntas que surgem da tecnologia, politica, economia e de formas de espiritualidade. E capaz de falar poderosamente acerca dos dilemas eticos desta cultura pluralista, em que a tecnologia corre a frente de todas as hipoteses sobre a natureza e a existencia humanas. Corn base em nossa fe na dignidade especial e no valor da humanidade, os cristaos podem aplaudir e apoiar os avancos da ciencia e da tecnologia que verdadeiramente incrementam a vida. Corn base em sua fe na condicao caida da humanidade e em sua propensao ao mai, cristaos podem e precisam icar sinais de advertencia diante da tendencia desses avancos, de correr mais que a reflexao sobre seus beneficios para o bem comum, assim como para o bem de individuos e minorias.


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