Livro 3 Ressignificar - Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

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LIVRO 3

P r át i cas C o rp o r ais , C ul tur a e D ive rs i da de

Marta Genú Soares Meriane Conceição Paiva Abreu Carla Loyana Dias Teixeira

Organizadoras

CCSE / UEPA Belém - PA / 2018


© Todos os direitos reservados ao Grupo de Pesquisa RessignificaЯ. Este livro ou parte dele pode ser reproduzido por qualquer meio mantida a fonte de origem. A responsabilidade pelas opiniões expressas nos capítulos é exclusivamente incumbida aos autores assinantes.

C oleção For mação e Pro dução e m Educação Diretora da Coleção: Marta Genú Soares Coordenação Acadêmica do Livro 3: Marta Genú Soares Organizadoras do Livro 3: Marta Genú Soares, Meriane Conceição Paiva Abreu e Carla Loyana Dias Teixeira Ilustração e Editoração: Emerson Duarte Monte Revisão do Inglês: Carla Loyana Dias Teixeira Comitê Científico: Prof. Dr. Allyson Carvalho de Araújo (UFRN) Prof. Dr. André Rodrigues Guimarães (UNIFAP) Prof.ª Dr.ª Eugenia Trigo Aza (IISABER/ES) Prof.ª Dr.ª Ilma Pastana Ferreira (UEPA) Prof.ª Ma. Ivana Lúcia Silva (IFRN) Prof.ª Dr.ª Joelma Cristina Parente Monteiro Alencar (UEPA) Prof.ª Dr.ª Mirleide Chaar Bahia (UFPA) Dad os In ternaciona is de C atalo gação -na- Pu blicação (C IP) Sis te ma de Bibl ioteca s da U EPA / SIB IUE PA P 912 Práticas corporais, cultura e diversidade / Marta Genú, Meriane Paiva Abreu e Carla Loyana Teixeira (Organizadores). Belém, PA: Centro de Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará, 2018. 238 p.: Formato Digital. (Coleção Formação e Produção em Educação, dirigida por Marta Genú; n. 3). Vários autores ISBN Digital: 978-85-98249-32-2 1. EDUCAÇÃO FÍSICA – pesquisa. 2. EDUCAÇÃO FÍSICA – estudo e ensino. 3. SEXUALIDADE. 4. DANÇA. 5. BALÉ. 6. SEXO – diferenças (educação). I. Genú, Marta. II. Abreu, Meriane Paiva. III. Teixeira, Carla Loyana. IV. Série. CDD 22. ed. 613.7072 Contato: Universidade do Estado do Pará | Campus III Avenida João Paulo II, 817, Sala NUPEP | RessignificaЯ Bairro: Marco | CEP: 66.095-049 | Belém - Pará E-mail: gressignificar@gmail.com | martagenu@gmail.com | emerson@uepa.br


SUMÁRIO Apresentação

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Marta Genú, Meriane Paiva Abreu e Carla Loyana Teixeira 1

A feminilidade como “problema” na Educação Física Escolar: notas a partir da separação de meninos e meninas

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Priscila Gomes Dornelles 2 A Pedagogia Histórico-Crítica e o trato do gênero na Educação Física

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Escolar

Carla Loyana Teixeira Giselle dos Santos Ribeiro Meriane Paiva Abreu 3 A prática artística do Ballet Clássico como construção do gênero nas aulas de Baby Class

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Alana de Moura Roberta Costa 4 Corpo, dança e etnia: vivência das danças tradicionais brasileiras na Comunidade Indígena Jenipapo-Kanindé

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Klertianny do Carmo Marcos Antônio Campos Arliene Stephanie Pereira 5 Corpos negros nos aplicativos de relacionamentos gays: entre discursos, dinâmicas e subjetivações

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Delton Felipe Samilo Takara 6 Danças e doenças psicológicas: um olhar para a diversidade cultural em uma ala psiquiátrica em Belém do Pará

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Rayanne Estumano Luciane de Aguiar Stefanie Franco Vera Solange Souza 7 Diálogos sobre identidades de gênero e sexualidades: narrativas de sujeitos descentrados e suas relações com a Educação Física Escolar

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Sergio Cunha Allyson Carvalho

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8 Gênero, sexualidade e currículo na formação de professores de Educação Física em instituições federais de ensino superior na Região Amazônica

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Ângelo Pegorett Antonio Hugo de Brito Júnior 9 Mostra de Ginástica Geral e Folclore: uma experiência de valorização da diversidade cultural na formação de professores do Curso de Educação Física da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC)

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Natalia do Espírito Santo da Silva 10 O imaginário amazônico e a musicalidade do Maestro Waldemar Henrique: uma proposta do ensino da dança na escola de acordo com a Abordagem Crítico-Superadora

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Giovelângela de Paula Rayanne Estumano Bruno Santa Brígida 11 Para além de desculpas: fatores que limitam o trabalho com a questão étnico racial na Educação Física da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre

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Gabriela Bins Vicente Molina Neto 12 Relações de gênero nas aulas de Educação Física: a visão das professoras e dos professoras da Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA)

Daniella Bittencourt Emerson Duarte

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APRESENTAÇÃO

Eu não tive escolha. Eu amei. Eu andei nisso. Eu falei isso. Eu sonhei isso. Ivey Hayes (2000)

O Grupo de Pesquisa RessignificaЯ inaugurou, em 2017, a Coleção Formação e Produção em Educação com temáticas que expressam os estudos e as investigações realizadas na Grande Área da Educação e que articulam o conhecimento especifico da Educação Física nos diferentes campos do conhecimento e intervenção profissional. O intuito é refletir sobre a produção e socializar com a comunidade acadêmico-científica. Nesse sentido, apresentamos a produção do conhecimento sobre práticas corporais imersas em cultura com expressão da diversidade, quer seja de identidade, gênero e sexualidade, quer seja de códigos de crenças e saberes sistematizados com princípios educativos. Ao usar como ícone desse Livro 3 a obra Dancers of Black Skin do artista Ivey Hayes, estadunidense da Carolina do Norte, negro e amante da pintura e do jazz, tratamos, como o artista tratou, do cotidiano da vida simples, e nem por isso forte, e em cores vibrantes, e expressamos nossa ocupação com o dia a dia e a preocupação com o direito à singularidade em meio a sociedade. A negritude, a mulher, o popular e a sonoridade cultural são expressões de Hayes em cores quentes, que dançam nas tonalidades do arco-íris e transmitem a força e a presença do diferente, do diverso na multidão de etnias, de juventudes, de gênero e de formas de organização social que revelam a complexidade do humano e da humanidade em sua essência, e que nenhuma forma de opressão é capaz de calar.

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Falecido em 2012, Ivey Hayes deixa registrada a complexidade da vida em sociedade, na simplicidade de cores, formas e sons que se misturam, de forma singular e única, para falar em linguagem clara e direta da diversidade humana.

Obra: Dancers of Black Skin. Autor: Ivey Hayes (1948-2012). Local: https://iveyhayesartworks.com. Ano: 2000. Técnica: Óleo sobre tela. Tamanho: 80 x 100cm.

E é dessa forma singular, que reunimos nesse Livro 3 temas sobre cultura e diversidade, que são investigados nas práticas corporais em diferentes contextos. Do Norte ao Sul desse continente Brasil, podemos apreciar nesse conjunto de produções ora apresentado, os estudos e reflexões que versam sobre as cores, modos e formas de viver como tão bem registrou Hayes em suas obras. O primeiro capítulo de autoria de Priscila Gomes Dorneles (BA) analisa a feminilidade como “problema” na Educação Física Escolar. A autora trata o tema a partir da perspectiva pós-estruturalista, particularmente tomando os Estudos Culturais, e finaliza o texto instigando a comunidade a exercitar o olhar, suspeitar e duvidar de práticas comuns ao cotidiano da escola. Carla Loyana Teixeira, Gisele dos Santos Ribeiro e Meriane Paiva Abreu (PA) discutem o trato com o gênero na Educação Física Escolar e admitem que

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a escola é base formadora da sociedade, e apostam na Pedagogia HistóricoCrítica como ferramenta que possibilita superar a desigualdade social e transformar a sociedade. Com arte também se discute gênero e formação humana desde a escola, e dessa forma Alana de Moura e Roberta da Costa (CE) escrevem sobre o assunto, no capítulo sobre a prática artística do Ballet Clássico e a construção do gênero nas aulas de Baby Class. Em corpo, dança e etnia, Klertianny do Carmo, Marcos Antônio Campos e Arliene Stephanie Pereira (CE) analisam a vivência das danças tradicionais brasileiras na Comunidade Indígena Jenipapo-Kanindé. No quinto capítulo, refletimos com Delton Felipe e Samilo Takara (PR) sobre as formas de relacionamento humano em redes sociais, em que os autores usam a ousadia e de forma verdadeira e realista analisam como os corpos dos homens negros são apresentados nos aplicativos – apps – de relacionamentos gays. Em grupo, as autoras Rayanne Estumano, Luciane de Aguiar, Stefanie Franco e Vera Solange Souza (PA) traçam um olhar para as doenças psiquiátricas a partir da dança e da cultura, com sujeitos de um hospital psiquiátrico e anunciam que a proposta da dança na perspectiva da cultura corporal, pode nortear os aspectos sociais, afetivos e cognitivos dos pacientes com problemas psicológicos. Sergio Cunha e Allyson Carvalho (RN) pesquisaram sobre a auto percepção de sujeitos descentrados sobre a própria trajetória para perceber as implicações de suas experiências no processo de educação escolarizada e debatem os vínculos afetivos desenvolvidos no âmbito escolar. Para falar de gênero, sexualidade e currículo na formação de professores de educação física Ângelo Pegorett e Antonio Hugo de Brito Júnior (PA) apresentam o resultado de discussões sobre a temática a partir da intervenção docente nas aulas de Educação Física em instituições federais de ensino superior na região amazônica. Enquanto que Natalia do Espírito Santo da Silva (PA) nos apresenta a valorização da diversidade cultural tratada numa mostra de ginástica e folclore por acadêmicos da graduação. Da mesma forma que a música sempre foi valorizada pelo americano Hayes, e na forma do lamento do Jazz, o Maestro paraense Waldemar Henrique é estudado por Giovelângela de Paula, Rayanne Estumano e Bruno Santa Brígida

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(PA), como possibilidade para o trato do conteúdo dança na perspectiva Crítico-Superadora, nas aulas de Educação Física. Sem desculpas para o trabalho com a questão etnicorracial, Gabriela Bins e Vicente Molina Neto (RS) analisam os fatores limitantes para o ensino e a superação das diferenças no trato com a temática na escola e concluem sobre a necessidade de se materializar as políticas voltadas para o tema estudado. O Livro 3 se despede com uma fotografia das relações de gênero, reveladas por Daniella Bittencourt e Emerson Duarte (PA), produzida no processo formativo e na prática pedagógica de professoras e professores de Educação Física que atuam na Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA). É com essa rota, que cruza nossos Brasis, que convidamos você leitor para refletir e analisar os temas e conclusões apresentados pelos autores, admitindo-se que o olhar do outro enriquece e valoriza o diferente, que perpassa pela alteridade em angulações que vão do político ao estético pela diversidade, na vida forte, singular e vibrante que denúncia para anunciar possibilidades societárias outras, num mundo furta-cor que tem sua tonalidade alterada de acordo com nossas projeções. No entanto, essas projeções devem alcançar o respeito ao outro, a diversidade com a qual somos seguindo no mundo.

Belém - Cidade das Mangueiras, Pará, Amazônia, Brasil / 2018 Marta Genú, Meriane Paiva Abreu e Carla Loyana Teixeira

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A feminilidade como “problema” na Educação Física Escolar: notas a partir da separação de meninos e meninas Priscila Gomes Dornelles (UFRB) 1 Resumo: Este artigo analisa aspectos da produção discursiva na Educação Física escolar atravessados e constituídos pelo enunciado “feminilidade problema” nas aulas desta disciplina. A partir de perspectivas pós-críticas e dos Estudos de Gênero, aciono o conceito de gênero e trago elementos de uma pesquisa realizada com professores/as que atuavam na disciplina de Educação Física, contudo esta pesquisa se articula com outras produções apresentadas ao longo do texto, as quais movimentam o lugar do masculino como referente e da feminilidade como problemática nos processos educativos relacionados ao trato com as práticas corporais na escola. Palavras-chave: Educação Física escolar. Gênero. Feminilidade problema. Separação de meninos e meninas.

INTRODUÇÃO A análise empreendida neste trabalho se constitui a partir da perspectiva pós-estruturalista, particularmente tomando os Estudos Culturais, Feministas e de Gênero. Dediquei-me a problematizar a separação de meninos e meninas na Educação Física escolar na tentativa de compreender quais argumentos e justificativas eram rearranjados, mobilizados e engendrados na sustentação dessa prática, especialmente aqueles ligados a corpo e gênero – ver Dornelles (2007). Dito de outra forma, como corpo e gênero atravessam os discursos que constituem a separação como um recurso necessário e importante nas aulas de Educação Física na escola. Interessa-me visibilizar e discutir, neste artigo, como gênero atravessa e constitui a Educação Física escolar conformando a feminilidade como um “problema” ao ser significada como apática, lenta, lerda e que tem menos habilidade. Desta forma, assumimos a posição de demarcar gênero como conceito teórico e utilizá-lo como ferramenta analítica e filosófica para visibilizar a separação como uma fabricação. Uma produção fundamental para as aulas desta disciplina escolar mais por organizar, localizar e distribuir os sujeitos em função de uma concepção de masculino e de feminino, e, menos, por ser esta uma estratégia imprescindível para o trato pedagógico dos elementos da cultura corporal – objeto de ensino da Educação Física escolar. Por último, 1

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URFGS). Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). E-mail: prisciladornelles@gmail.com

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importa destacar que, ao ser esta uma produção engendrada por determinadas formas de conhecer os gêneros, sua atuação cotidiana na escola, efetivamente, também as produz. RASTROS GENERIFICADOS DA SEPARAÇÃO E DA ESCOLA Na humanidade, como entre os animais superiores, as qualidades mais essenciais são como que distribuídas entre os dois sexos. [...] É impossível desconhecer e não seria lícita na educação pôr de lado a constituição ou o sexo e submeter a juventude, como em Esparta, e agora na Escócia, aos mesmos exercícios [...] Fernando de Azevedo (1960, p. 82)

O bojo argumentativo desta seção não se refere a descoberta de uma origem, uma nascente ou um centro de erupção da separação na história da Educação Física. Ao problematizar que a separação não é o “destino natural” de meninos e meninas nas aulas desta disciplina, é possível tensionar o tom naturalizado desta prática como consequência de uma produção discursiva que constitui, configura e atualiza a separação na escola. Num sentido foucaultiano, procuro extrair visibilidades e fazer aparecer as “engrenagens”, ou seja, o(s) processo(s) de constituição da separação em outro tempo para tratar de uma análise generificada da sua produção nos dias de hoje – proposição que será tratada no decorrer deste texto. Nesta seção, então, importa compreender como a separação, por diversos argumentos e justificativas, atravessa a constituição histórica e disciplinar das práticas corporais na escola em diferentes momentos. Interessa, então, retomar a epígrafe acima para argumentar que, como diz Fernando de Azevedo (1960), as diferenças “naturais” entre homens e mulheres se apresentam como um quesito de fundamental importância na educação e, principalmente, na Educação Física. Historicamente, o enunciado das diferenças “naturais” entre homens e mulheres esteve (e está) constituindo diferentes discursos no plano social de forma a explicar as relações entre os sujeitos no âmbito da cultura. Discursos religiosos, biológicos e científicos2 têm constituído este enunciado e sendo por 2

É possível compreender de forma mais consistente, por exemplo, a ciência como uma produção generificada a partir do artigo de Marina Fischer Nucci (2010) premiado no

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ele constituídos. No âmbito das discussões sobre o corpo e as práticas corporais, os discursos da biologia têm força na definição sobre o que é um corpo, seus limites e suas possibilidades. Ou seja, em função daquilo que se constitui como características biológicas dos corpos e, de forma ímpar, em função da definição de sexo, há uma articulação discursiva que configura uma rede de limites e possibilidades dos sujeitos, especialmente com relação às práticas corporais, constituindo “destinos” diferenciados para os corpos de homens e de mulheres. Esta “amarra discursiva” definidora do corpo atravessa os muros da escola e as áreas que, historicamente, compuseram e compõem o currículo escolar. Portanto, é elegível o argumento de intelectuais e educadores defensores da inclusão dos exercícios físicos nas escolas - ainda no final do século XIX e início do século XX – que aponta e orienta: há de se respeitar a natureza dos corpos nesse processo. Esta seria uma premissa política e pedagógica condicionante dos benefícios e das vantagens das práticas corporais na constituição física, moral e intelectual de homens e mulheres. “Se a educação física não pode criar o que a natureza não lhe ofereceu, pode, certamente, desenvolver, apurar e dirigir o que a natureza criou. O exercício tem, pois, de contar com a natureza do indivíduo sobre o qual opera” (AZEVEDO, 1960, p. 38). O respeito aos discursivamente construídos limites “naturais” de homens e de mulheres é um elemento condicionante do grau de benefício das práticas corporais. E, como assume Fernando de Azevedo, a entrada das práticas corporais e esportivas no ambiente escolar se dá entrelaçada a esse critério. Separar meninos e meninas para as aulas de Educação Física, nesse momento histórico, é parte de um aparato na composição e demarcação de fronteiras entre as funções sociais diferenciadas e legitimadas como próprias e/ou “naturais” desses sujeitos. A disciplina responsável por lidar com o corpo na escola contribuía, assim, para preparar os sujeitos e seus corpos na assunção de seus “distintos destinos”. Com base nestas discussões, ao fim e ao cabo, é possível pensar na Educação Física como mais uma “peça de uma engrenagem social” que, através de vários processos pedagógicos, ensinava meninos e 6º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero - promovido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal.

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meninas a se constituírem como homens e mulheres de acordo com representações hegemônicas de corpo, gênero e sexualidade, dentre outras categorias. Para adensar esta linha argumentativa sobre os processos pedagógicos diferenciados de meninos e meninas e sua consequente separação nos momentos de práticas corporais, acrescentamos as produções de alguns/algumas autores/as. Tarcísio Mauro Vago (1999), ao analisar a instituição de um novo modelo escolar associado com objetivos de produção – produção de ‘novos brasileiros’, produção de cidadãos republicanos - na cidade de Belo Horizonte (MG) no período de 1897 a 1920, discute sobre a importante participação da disciplina de Exercícios Physicos3 nesse processo de educação intelectual, moral e física. Sua organização se dava através da separação meninos e meninas, diferenciando pátios e recreios, conteúdos e roupas, condutas e professores/as. Para os meninos: roupas escuras, exercícios gymnasticos e militares, de preferência, com professores homens e um objetivo específico - formação de um corpo masculino forte e viril. Para as meninas: roupas brancas, exercícios

gymnasticos envolvendo movimentos de respiração, flexão, extensão e exercícios rítmicos, professoras lecionando e visando a um corpo feminino delicado e gracioso. Ao analisar as relações de gênero na história do ensino da Educação Física em Belo Horizonte entre 1897 e 1994, Eustáquia Salvadora de Sousa (1994) discute sobre o ensino primário em parte do seu texto, percebendo diferenças na proposta4 de Exercícios Físicos para meninos e meninas. Segundo a autora, recomendavam-se exercícios à sombra, basicamente envolvendo movimentos de flexão e extensão “por possibilitarem um desenvolvimento muscular simétrico” (SOUSA, 1994, p. 28) para as meninas. Já para os meninos, a proposta de exercícios se constituía a partir de um atravessamento militar, pois eram ministradas, prioritariamente, atividades como marchas, posições, evoluções, passos e movimentos militares. 3

Emprego as expressões exercícios physicos e gymnasticos preservando a forma utilizada pelo autor em suas publicações. 4 Segundo Eustáquia de Sousa (1994), essa proposta de Exercícios Físicos foi apresentada no Decreto do estado de Minas Gerais nº 1.947, de 30 de setembro de 1906. Nesse decreto, encontram-se elementos importantes para a organização educacional, como conteúdos das disciplinas, normas, horários, etc.

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A proposta diferenciada de práticas corporais para meninos e meninas estava atrelada a um modelo educacional (e social) implantado com objetivos higiênicos e eugênicos, cívicos e patrióticos, de regeneração e formação de um “novo povo brasileiro”. A inserção dos Exercícios Físicos na escola tem a função de contribuir nesse processo, desenvolvendo de formas diferenciadas alunos e alunas. De acordo com Eustáquia de Sousa, [...] se imaginava que os Exercícios Físicos fossem capazes de higienizar a sociedade, formando homens de corpo e caráter fortes para que servissem à Pátria e à família [...]. Além disso, os Exercícios estavam encarregados de dar aos corpos frágeis das mulheres, saúde para cumprir a “missão” da maternidade e graciosidade e beleza para exercerem, a contento, seus papéis de esposa [...]. (SOUSA, 1994, p. 28-29).

A separação de meninos e meninas, nos momentos destinados aos Exercícios Físicos na escola, se dava em função de objetivos sociais diferenciados para esses sujeitos, para esses corpos. Ou seja, “proposições absolutamente naturalizadas e definitivas do que é ser homem e do que é ser mulher” (GOELLNER; FRAGA, 2004, p. determinando práticas corporais diferenciadas.

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consequentemente,

Silvana Goellner e Alex Fraga (2004) analisam algumas obras de Fernando de Azevedo para problematizar como intelectuais do início do século XX defendem a prática de exercícios físicos pelas mulheres. Estes autores apontam que, nessa acentuada convocação ao exercício (em atividades como natação e dança clássica, por exemplo), encontra-se também uma intensa regulação das possibilidades corporais dos corpos femininos. Esse processo de incitação-controle, de prescrição de limites e de exaltação às possibilidades torna-se evidente pelo destaque dado ao tema do “exercício feminino” nas falas de educadores e intelectuais em livros e capítulos de livros, assim como nos guias e regulamentos de práticas sistematizadas para espaços militares e/ou civis, como o Método Francês, por exemplo. Fernando de Azevedo (1960) dedica o capítulo intitulado “A educação física da mulher: ginástica, natação e dança” para defender o exercício físico pelas mulheres e, nesse propósito, ressaltar um aspecto superior nessa discussão, como comenta o próprio autor da seguinte forma: “A questão, pois, está deslocada; já não se tem a discutir a importância da educação física para a mulher; na tela do debate só

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figura o problema sobre quais são os exercícios, que mais lhe convenham [...]” (AZEVEDO, 1960, p. 82). Contextualizando mais algumas produções que se dedicam, também, a propor uma educação do corpo feminino, a publicação norteadora do ingresso e da aplicação do Método Francês nas escolas de Educação Física do exército, o Regulamento nº 7 – Regulamento de Educação Física (1934), apresenta uma seção nomeada de “Educação Física Feminina. Esse manual orienta: “[...] evitarse-á a aplicar-lhe [à mulher], sem as devidas precauções, os processos da educação física reservada aos rapazes” (1934, p. 16). Também prescreve as seguintes atividades para as mulheres: A marcha, os exercícios rítmicos e de suspensão de curta duração com tempos de impulsão, o salto na corda, o lançamento de disco, dardo e pesos (menores que os dos homens), os jogos de raquete (pela e tênis), o transporte de pesos leves em equilíbrio na cabeça, a esgrima dos dois braços, que exigem em definitivo apenas um trabalho moderado e que põem em ação, sobretudo os músculos da bacia, serão, em princípio, os exercícios próprios à mulher. Qualquer exercício que seja acompanhado de pancadas, de choques e de golpes, é perigoso para o órgão uterino. A higiene condena sua prática pela mulher. (REGULAMENTO Nº 7, 1934, p. 16).

Nesse sentido, o binômio regulação-produção dos corpos femininos, de certa forma, ganha centralidade nas discussões sobre as práticas corporais e as suas possibilidades no universo escolar e esportivo. A mulher, protagonista que, ao ser localizada como principal responsável pela saúde e regeneração da raça, adquire centralidade nas discussões sobre a importância dos exercícios físicos para o corpo individual e social, torna-se, consequentemente, “ponto imprescindível” nos manuais, livros e propostas sistematizadas de ensino das práticas corporais e esportivas. Ao mesmo tempo, existem produções que demarcam atividades próprias para os meninos. Carlos Cunha Júnior (2001) fala em Jogos Gymnasticos

Privativos do Sexo Masculino ao analisar uma seção do manual de gymnastica publicado por Arthur Higgins em 1909 e 1934. Segundo o autor, havia uma seção intitulada Jogos Gymnasticos que era subdividida em Jogos Gymnasticos

Communs aos Dois Sexos e Jogos Gymnasticos Privativos do Sexo Masculino . Ao analisar esta última parte, o autor acentua que:

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[...] o privativo dos Jogos Gymnasticos Privativos do Sexo Masculino era um conjunto de valores relacionados ao masculino, destacando-se entre estes o exercício da autoridade, o respeito à hierarquia, o estímulo à recompensa, a distinção, o ato de desafiar, atacar e defender, a resistência, o espírito militar, a violência e o autocontrole. (CUNHA JÚNIOR, 2001, p. 122, grifo do autor).

Ao entender e trabalhar com gênero como uma norma, uma heteronorma, efetivamente, compreendemos e analisamos essas produções de forma a demarcar que o que se diz e o que se ensina sobre os limites e as possibilidades das mulheres no universo das práticas corporais e esportivas produz mutuamente fronteiras e demarcações sociais do que é possível para os homens no campo dos exercícios físicos. A heteronormatividade funciona produzindo o gênero como binário e com polos opostos e complementares. Deste modo, este movimento relacional entre masculino e feminino é acionado cotidianamente. Tomando a citação acima como exemplo a ser problematizado, entendemos que o que se diz sobre Jogos Privativos do Sexo Masculino é produzido a partir dos discursos da época sobre masculinidade, sobre o mundo masculino, sobre as (im)possibilidades de meninos, produzindo, assim, o que se espera de meninas, isto é, passividade, delicadeza e certa fragilidade, por exemplo. Os exemplos apresentados anteriormente, de uma “Educação Física feminina” ou “Jogos Privativos do Sexo Masculino”, referem-se à construção de práticas corporais próprias para homens e para mulheres – produto de uma construção discursiva atravessada por compreensões de corpo e gênero que, com base em características ditas “naturais”, significam os “destinos” sociais desses sujeitos. Com objetivos diferenciados, as práticas corporais destinadas aos homens e às mulheres não se aproximam em proposições e características; suas fronteiras devem ser muito bem preservadas, inclusive e especialmente, no universo escolar – palco eleito para o “nascimento” de uma “nova” sociedade. Dessa forma, a separação de meninos e meninas na disciplina destinada às práticas corporais era um recurso coerente com as propostas diferenciadas de educação e de formação de homens e mulheres. Após este “rasgo histórico” focando a relação entre as práticas corporais e sua legitimidade na escola de forma atravessa pelas normas de gênero, importa

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problematizar como a feminilidade é discursivamente construída como um “problema” para a Educação Física escolar. “DE FORMA RECREATIVA, ELES FUNCIONAM MUITO BEM COM AS GURIAS”5 Professores/as entrevistados/as mobilizam a ideia de que as relações de gênero são construções culturais. Entretanto, estas falas são enunciadas para localizar que é fora da escola que os/as estudantes aprendem a se tornar meninos e meninas. Ou melhor, que é fora da escola que as construções culturais supostamente atuam sobre esses sujeitos, marcando-os como distintos. Ao apresentar as razões da sua preferência pelo trabalho separado – pois este professor trabalha apenas com os meninos de duas turmas –, o entrevistado Sérgio explica que: Eu prefiro trabalhar separado. [...] Não tem interferência. Porque os meninos, eles já têm um certo adiantamento. Eles já estão fisicamente mais preparados. A motricidade deles já está mais adiantada por uma questão de formação, de educação de casa, isso já vem... Os meninos estão soltos na rua há muito tempo. As meninas estão sendo soltas agora, estão indo para a rua agora. [...] Eu acho que homens e mulheres tem a mesma condição de se desenvolver, só que, infelizmente, as gurias são guardadinhas em casa, né, porque são femininas, são meninas e tem que ter um outro tipo de tratamento. E tem uma educação que provavelmente tem que fazer faxina em casa, lavar louça, cozinhar, ainda, infelizmente, é assim. Isso está acabando. Eu acho que por aí tu vais conseguir muito mais resultado se tu trabalhares separado. (Sérgio, 09/11/2006, p. 5).

No contexto dessa fala, é possível analisar que, apesar de atribuir à cultura função importante na formação diferenciada de meninos e meninas, rachando com possibilidades explicativas de ordem biológica sobre a motricidade adiantada dos meninos, se configura uma concepção de gênero que se refere ao aprendizado de papéis/funções sexuais iniciados e constituídos fora 5

Os títulos das seções deste artigo que recorrem ao uso das aspas estão assim dispostos por serem fragmentos das falas dos/das professores/as de Educação Física da Rede Municipal de Porto Alegre, colaboradores/as de uma pesquisa sobre a separação de meninos e meninas na escola (DORNELLES, 2007). Esta pesquisa utilizou-se de diferentes estratégias metodológicas, dentre as quais se destacaram o uso de questionários e a realização de entrevistas com docentes da referida disciplina que separavam meninos e meninas nas suas aulas.

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da instituição escolar. O trecho apresentado introduz muito bem um argumento acionado: a escola está isenta ou não repercute no processo de identificação e constituição das identidades de gênero dos/das estudantes. De forma distinta, operamos com gênero em sua articulação com educação. Essa relação, segundo Dagmar Meyer (2003), [...] amplia a noção de educativo para além dos processos familiares e/ou escolares, ao enfatizar que educar engloba um complexo de forças e de processos [...] no interior dos quais indivíduos são transformados em – e aprendem a se reconhecer como – homens e mulheres, no âmbito das sociedades e grupos a que pertencem. (MEYER, 2003, p. 17).

Há, aqui, uma ruptura com as análises de papéis e/ou funções sexuais que se remetem ao nível da individualização das diferenças de gênero para problematizar como a Educação Física escolar fabrica diferenças e desigualdades entre meninos e meninas. E, nesse processo, como constitui a “feminilidade problema” para esta instituição formal de ensino. Na Educação Física escolar brasileira, são criadas representações de feminilidade e de masculinidade, fazendo com que meninos e meninas possam achar se eles/elas são adequados/as ou não para a pratica de determinadas práticas corporais (DORNELLES; TEIXEIRA, 2014). As meninas são construídas como a diferença, como o outro, como quem está fora do padrão de normalidade presumido para as aulas de Educação Física, como quem está fora da medida e/ou não alcança os níveis de movimento necessários para os jogos, para o esporte, para o futebol, para a disciplina escolar e, consequentemente, para a escola. (DORNELLES; TEIXEIRA, 2014, p. 100).

Ao operarmos com gênero como um elemento organizador da cultura, como propõe Dagmar Meyer (2003), há um paradoxo interessante de ser analisado no âmbito das falas dos/das professores/as. É ao atravessar nos conteúdos as concepções de gênero que constituem a Educação Física escolar enunciadas nas falas que sinalizamos pistas das posições de poder ocupadas por meninos e meninas. Isto é, ao mesmo tempo em que os/as professores/as significam que as aprendizagens de gênero responsáveis por feminilidades passivas e masculinidades ativas se concentram do lado de fora dos muros

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escolares, longe da disciplina de Educação Física, há relatos generificados dimensionando os conteúdos selecionados na disciplina para um determinado grupo. O entrevistado Josué explica quais critérios utiliza na seleção dos conteúdos a serem trabalhados com seu grupo de alunas: Então, eu gosto de fazer assim, uma coisa atrativa, que seja do interesse delas. No caso, porque eu trabalho com elas, é, hoje em dia, o handebol. Elas têm uma facilidade maior em treinar o handebol do que para outros esportes. E tem a competição, porque isso motiva muito elas; motiva muito. E quando chega no início do ano, elas já perguntam: “Vai ter competição esse ano, professor”. (Josué, 29/03/2007, p. 5).

Para pensar na produtividade desse excerto questiono: o que se entende por meninas, seus corpos e feminilidades que torna possível afirmar que elas têm mais condições e/ou facilidades com determinadas práticas do que com outras? Se considerarmos o esporte como um dos elementos da cultura corporal, objeto de ensino da Educação Física, como se fabrica esta relação entre meninas e handebol? Enumerando os conteúdos trabalhados durante o ano e explicando a distribuição e/ou organização de suas aulas, a entrevistada Bruna enfatiza as negociações que estabelece com os/as alunos/as. “Então, eu tenho dois períodos

semanais. Então, eu sempre tenho uma combinação com eles. Um período é o futebol, que eles adoram, e o outro período é o trabalho que eu vou desenvolver” (Bruna, 10/08/2006, p. 2). Neste e em outros excertos, o futebol é localizado como conteúdo que ocupa um lugar privilegiado na disciplina de Educação Física, pois, nas entrevistas, se percebe que a maioria dos/das docentes confere ao futebol parte significativa das suas aulas – seja em forma de aula dirigida ou não. Entretanto, que grupo ocupa o lugar de “eles” (e/ou de “outros”) no trecho acima e nas várias entrevistas realizadas? Se, em nossa sociedade, “gostar de futebol é quase uma obrigação para qualquer garoto ‘normal’ e ‘sadio’” (p. 75), como comenta Guacira Louro (2004), provavelmente, tenhamos uma resposta para essa pergunta. Mesmo que, em vários momentos, os/as docentes não tenham identificado a quem se referiam ao utilizar o pronome “eles”, é possível pensar nas relações de poder entre os gêneros no universo escolar, as quais tornam estas falas possíveis.

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Os meninos representam os/as estudantes; as meninas são construídas como a diferença, como o outro, como quem está fora do padrão de normalidade presumido para as aulas de Educação Física, como quem está fora da medida, quem não alcança os níveis de movimento necessários para os jogos, para o esporte, para a disciplina escolar e, consequentemente, para a escola. Ou seja, a Educação Física não tensiona suas próprias medidas, suas formas de conhecer, representar, classificar, categorizar meninos e meninas. Atribui-se à separação uma necessidade a partir do atravessamento de concepções de corpo e gênero que comparam meninos e meninas; nessa comparação, estabelecem-se juízos de valor, sentidos que circulam naquele contexto e que dimensionam os “distintos destinos” dos/das estudantes nas aulas dessa disciplina durante a vida escolar. Tais “destinos”, por vezes, são rompidos, mas, na lógica da medida comum, ocupam o lugar das exceções. A fala de Josué relata, como consequência do trabalho misto, uma suposta distância do que o entrevistado considera como principal aspecto da Educação Física: Só que aí o trabalho, a Educação Física, que é movimento, pra mim, é isso, é importante, Educação Física é movimento. Eu acho que o movimento é o mais importante. Eu, pra mim, dentro da área de Educação Física, o movimento é o mais importante. A gente tem que levar o movimento como o carro chefe, essa é a regra, porque, se não precisa trabalhar o movimento, então, vamos trabalhar outra coisa, vamos trabalhar em sala de aula, aí, qualquer professor pode trabalhar, não precisa um especialista em Educação Física. (Josué, 29/03/2007, p. 3).

Numa perspectiva que enfatiza o caráter constitutivo da linguagem no social, o ato de separar meninos e meninas está longe de ser apenas uma ação corriqueira, ingênua e associada a aspectos como a falta de espaços nas escolas. Interessa-nos, então, discutir a separação como processo de significação constituído discursivamente. Segundo Guacira Louro, “a demarcação de fronteira tem importantes efeitos simbólicos, sociais e materiais. É preciso demarcar o lugar do outro – simbolicamente, indicando o que significa estar lá; social e materialmente, excluindo e separando o sujeito que o ocupa” (LOURO, 2000, p. 70). A partir da análise das entrevistas, afirmamos que, em geral, os

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conteúdos trabalhados pelos/as docentes se voltam para as práticas corporais esportivas. E é ao trabalhar o esporte que a necessidade de separar “aparece”. Esportes como futebol, futsal, handebol, basquete e outras práticas corporais que, de forma especial, envolvam contato físico são enumerados como definidores de situações em que há dificuldade ou impossibilidade para o trabalho misto. Isso se dá pela suposta natureza distinta dos corpos de meninos e meninas e/ou pelos graus diferenciados de competitividade, movimentação, interesse em determinadas práticas e habilidades a elas associadas. Produz-se e é produzido, nesse contexto discursivo, o mito da fragilidade, apatia e lerdeza feminina e dos meninos forçudos, agressivos e competitivos. “PELA AGRESSIVIDADE DOS MENINOS, PELA POUCA ENERGIA DAS MENINAS” Apresentamos alguns trechos das entrevistas para problematizar como representações de gênero significam os argumentos utilizados pelos/as docentes para separar meninos e meninas. No primeiro trecho, o entrevistado Josué explica as suas justificativas para o trabalho separado, entrelaçando concepções de masculinidade e feminilidade ao “princípio ativo da Educação Física” – o movimento. Eu acho muito mais vantajoso trabalhar com turmas separadas. O rendimento é melhor, o entendimento é mais fácil. [...] O que acontece: os guris têm muita mobilidade, se movimentam com muita facilidade, com muito mais rapidez, e as gurias são muito lentas, muito lerdas, então, elas não acompanham eles. Então, fica um desequilíbrio muito grande, dá problemas de harmonia, dá uma desarmonia nas aulas de Educação Física. Tudo em função disso. Sim, aí, tu podes dizer: “É, mas tu poderias trabalhar outra coisa?” É, poderia. Mas, no momento em que tu trabalhas uma coisa que tem bastante movimento nos jogos, dá problema, sempre dá problema. Aí, tem que estar equilibrando toda hora. [...] E os interesses, também, dos guris é bem diferente dos das gurias. Então, pra mim, é muito mais fácil trabalhar separado. (Josué, 29/03/2007, p. 3).

O trecho acima sinaliza como os enunciados da feminilidade passiva e da masculinidade ativa atravessam as justificativas para a separação, assim como em outras dimensões do social e em diferentes formações discursivas. A produção de Emily Martin (1996) sobre representações da reprodução humana pode contribuir para compreendermos como estes significados são partilhados

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no âmbito da cultura. A autora sinaliza que os sentidos atribuídos à fisiologia reprodutiva masculina e feminina estão relacionados às representações culturais do senso comum sobre o par binário macho/fêmea, em que o óvulo é descrito como grande, passivo e imóvel. Já para o espermatozoide, utilizam-se as expressões hidrodinâmico, ativo, veloz e com cauda forte. Maria Cláudia Dal’Igna (2005), ao analisar como gênero é incorporado e mobilizado no discurso pedagógico para definir o que se entende por desempenho escolar, dá pistas de como fragmentar a noção de feminilidade passiva como norma. Segundo esta pesquisadora, que analisou as falas de professores/as dos anos iniciais de escolarização em sua dissertação, o termo “agitado” era utilizado para descrever meninos e meninas. Entretanto, a utilização desse adjetivo, no caso das meninas, permitia romper com uma representação de feminilidade passiva, comedida e obediente. Ao mesmo tempo, reiterava-se e repetia-se uma noção de feminino essencializada – quando as meninas se agitavam, era porque elas fofocavam, gritavam ou se agarravam pelos cabelos. A agitação, no caso das meninas, produzia comportamentos inadequados no espaço escolar, enquanto que, para os meninos, significava um elemento importante para o processo de aprendizagem. Com relação às análises das entrevistas, em diversas situações, os/as professores/as utilizam as seguintes expressões para descrever os meninos: potência, força, velocidade, ação, energia, movimento, agressividade, ‘cavalões’, mobilidade, se movimentam com mais facilidade, rapidez, mais duros e diretos, raiva, agressividade, competitivos. Já para as meninas, as expressões incluem: tem menos habilidade, são lentas, lerdas, não acompanham, tem que ter paciência, meigas, calmas, delicadas, comedidas, menos energia e força. Essas descrições sinalizam como gênero é mobilizado para definir a capacidade de meninos e meninas como adequado/as ou não para determinados conteúdos, para atividades mistas e/ou para as aulas de Educação Física. A pesquisa de Adrian de Souza (2018) realizada na cidade de Amargosa (BA), corroboram na apresentação de argumentos que explicam como “a feminilidade problema” da Educação Física escolar funciona. Ao acionar as narrativas de mulheres jogadoras de futsal e futebol da cidade de Amargosa sobre as suas memórias com relação à Educação Física escolar, os relatos abaixo indicam a força de alguns discursos e posições do feminino na escola e nesta

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disciplina escolar. as entrevistadas Joana e Maria alegam que “[...] quando eu pedia ao professor pra poder jogar, ele falava que os meninos iriam me bater, que os meninos não iriam querer que eu jogasse, que eu iria me machucar” (Joana, 20 de dezembro de 2017, p. 5). Considero então que por serem mulheres, os seus professores agiam como sujeito auto protetores, os relatos das mesmas me faz entender, e também me questionar, por que essa proteção somente com elas, meninas? Exatamente o que foi tratado a cima, por serem caracterizadas como pessoas menos capazes, delicadas e frágeis. Quando Maria diz “[...] o professor não queria que eu descesse porque eu era menina, ele achava que eu iria me machucar (risos), ele achava que isso não era coisa de menina [...]” (Maria, 9 de fevereiro de 2018, p. 5) é evidente que é determinado pelo professor funções para cada gênero, produzindo e demarcando a diferença de gênero nas vidas de meninos e meninas. (SOUZA, 2018, p. 40).

Aciono, aqui, um contexto de posições docentes a partir das falas de diferentes colaboradores/as e a partir de distintos contextos regionais para problematizar a “feminilidade problema” como constitutiva das aulas de Educação Física. As tramas escolares e discursivas que acionam este enunciado de uma feminilidade problema afirmam que as meninas constituem-se como o grupo no qual há maiores dificuldades de participação, aprendizagem, interesse e mobilidade. Nesse sentido, essa feminilidade pouco enérgica, passiva e estática, representativa das meninas na Educação Física escolar, posiciona-as como o problema, o outro, a diferença da escola. Segundo Louro (2001, p. 36), “ninguém é essencialmente diferente, ninguém é essencialmente o outro; a diferença é sempre constituída de um dado lugar que se toma como centro”. Isto é, a diferença tem sua materialidade, mas esta é uma produção da cultura. Dessa forma, é em relação aos sentidos atribuídos à masculinidade que a feminilidade passiva é constituída como “o outro” da Educação Física escolar. Trata-se de uma diferença que impossibilita o trabalho misto com meninos, que tem potência, se movimentam com facilidade e são velozes - características valoradas como positivas para as atividades esportivas. Entretanto, ao operarem

com

naturalizações

de

características,

comportamentos

e

desempenhos de meninos e de meninas, os/as professores/as deixam de contextualizar os sentidos atribuídos ao corpo e às práticas corporais como construções culturais.

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Ao considerar a problemática das relações de gênero na Educação Física escolar, entendemos que o processo de hierarquização acerca do masculino e do feminino estão presentes nas aulas de Educação Física, e se estabelecem a partir das relações de poder presentes nesse ambiente; estas hierarquizações permeiam diferentes momentos das aulas como as formas de organização e o tratamento dos conteúdos, considerando-se sobretudo, as relações entre alunos e alunas e professores(as) e alunos(as). Neste sentido, partimos da hipótese de que durante as aulas de Educação Física são desenvolvidos mecanismos que operam a favor das diferenças de hierarquizadas (CORSINO; AUAD, 2012, p. 21-22).

O entrevistado Sérgio, professor de meninos de duas turmas, relata o caso de um menino que foi direcionado para que fizesse aula com as meninas de duas turmas – alunas de outro professor. Segundo ele, o menino não demonstrava interesse pelas aulas de Educação Física e era muito infrequente, mas se adequou ao grupo das meninas. É, foi interessante, porque ele tinha que fazer aula comigo, porque ele é homem, né. Mas ele sempre se excluía, porque ele não conseguia se encaixar com aquela violência, né. E ele não tinha aquela mesma habilidade dos guris, ele realmente era um guri sensível. Era um menino que não tinha habilidade motora para participar das atividades que eu oferecia, então, ele sempre saía fora. Ele evitava ou ele não vinha na minha aula e estava se prejudicando. [...] Está lá, as gurias até reclamam porque ele é homem. Está se desviando, mas é homem, tem força. Então, as gurias reclamam muito dele, porque ele, às vezes, vai e dá aquela lançada de bola muito forte e pega nas gurias. Elas reclamam que é muito forte. (Sérgio, 09/11/2006, p. 11). Então, está lá, o menino se desenvolvendo com as meninas, dentro da condição dele. Vai se igualar às meninas, está entendendo? Por isso que dá para colocar meninos e meninas junto, está entendendo? (Sérgio, 09/11/2006, p. 13).

Meninos mais sensíveis fazendo aula com as meninas ou a possibilidade de meninas junto com os meninos “encarando porrada” são constituídos nas entrevistas como exceções. Reitera-se, aqui, mais uma vez, a lógica de uma masculinidade forçuda e enérgica em detrimento de uma feminilidade lerda e apática. Estes seriam, apenas, desvios de uma norma sexo-gênero-sexualidade em que, na produção discursiva até agora analisada, o sexo (macho/fêmea) determinaria, respectivamente, uma identidade de gênero naturalizada (masculinidade ativa/ feminilidade passiva) e, consequentemente, o desejo pelo sexo oposto (mulheres/homens). No caso citado, as explicações para a ruptura

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da sequência localizam-se “na condição do aluno”, isto é, no seu desvio da norma heterossexual. Desta forma, de forma concomitante à garantia de uma suposta homossexualidade do aluno a partir de descrições com relação às formas diferenciadas deste aluno viver a sua masculinidade - em relação ao que se produz como próprio do masculino neste contexto discursivo -, o desvio da heterossexualidade é significado como “causa” do seu jeito sensível e sem tantas habilidades. Seu deslocamento para o grupo das meninas é considerado uma readequação e, como tal, significa realocar o aluno a um contexto mais adequado. Sua orientação homossexual se associa ao espaço feminino próprio de sensibilidades, menos habilidoso e mais lento na Educação Física escolar. Aqui, gênero e sexualidade se sobrepõem de forma perigosa, como se ao se definir como homossexual, o aluno deixasse de ser homem. Nessa lógica, a distinção entre gênero e sexualidade nem sempre é demarcada. E, apesar de nos constituirmos a partir da articulação e da conflitualidade de diversas categorias sociais como raça/etnia, idade e classe social, entendemos que, na Educação Física escolar, o marcador gênero dimensiona de forma decisiva os discursos que constituem a separação como uma prática pedagógica imprescindível neste contexto. CONSIDERAÇÕES FINAIS Proponho uma análise que incorpora o conceito de gênero e o utiliza para problematizar as potencialidades do trabalho misto ou separado na Educação Física escolar, priorizando tensionar a produção cotidiana de um “feminilidade problema” nesta disciplina e na escola.

Isto significa que a

separação foi apenas um mote para compreendermos e “lançarmos luz” às questões de como o gênero constitui o espaço escolar. Ao finalizar este texto, o interessante é instigar a possibilidade de fazermos outras perguntas sobre gênero com relação à educação escolar. É exercitar o olhar, suspeitar, duvidar de práticas comuns ao cotidiano da escola. O que define a positividade desta produção é a possibilidade de fissurarmos o sujeito escolar supostamente neutro e evidenciarmos como gênero é mobilizado na produção de posições diferenciadas de sujeito neste espaço de educativo. Esse movimento nos leva a atentarmos ao e questionarmos o que se constitui

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como natural e in-corpo-rado para a educação e para a Educação Física escolarizada. Com esse propósito, essencializar as marcas corporais atribuindo-lhes a determinação de como viver e ser masculino e feminino é significar que os destinos de meninos e meninas não são culturais, sociais e históricos, e, sim, definições naturais. A cristalização de representações de gênero, atribuindo à feminilidade o lugar social de “problemático” para a escola, coloca em suspensão o acesso, a permanência e o direito a uma educação, efetivamente, de qualidade baseada na igualdade de condições. Portanto, deve ser um ponto de reflexão sobre a atuação docente na Educação Física escolar no trato com a diferentes práticas corporais. The femininity as a "problem" in School Physical Education: notes from the separation of boys and girls Abstract: This article analyses the aspects of the discursive production in School Physical Education crossed and constituted by the "femininity problem" in physical education classes. From pos-critical perspectives and Gender Studies, it discusses the concept of gender and brings elements of a research carried out with physical education teachers. However, this research articulates itself with other productions presented along with the paper, in which moves the place of masculine as the reference and of femininity as problematic in the educative processes related to the corporal practices in the school. Keywords: School physical education. Gender. Femininity problem. Separation of boys and girls.

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(Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. DORNELLES, Priscila G.; TEIXEIRA, D. O ensino do Futebol na Educação Física escolar: uma “feminilidade problema” entra em campo. In: KESSLER, C. S. Mulheres na área: gênero, diversidade e inserções no futebol. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016. GOELLNER, Silvana V.; FRAGA, Alex B. O espetáculo do corpo: mulheres e exercitação física no início do século XX. In: CARVALHO, Marie J. S.; ROCHA, Cristianne, M. F. Produzindo Gênero. Porto Alegre: Sulina, 2004. p. 161-171. LOURO, Guacira L. Corpo, escola e identidade. In: Educação & Realidade, v. 25, n. 2, p. 59-76, jul./dez., 2000. _______. Segredos e mentiras do currículo: sexualidade e gênero nas práticas escolares. In: SILVA, Luiz Heron da (Org.). A escola cidadã no contexto da globalização. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 33-37. _______. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. MARTIN, Emily. A mulher no corpo. Rio de Janeiro: Garamond, 1996. MEYER, Dagmar E. E. Gênero e educação: teoria e política. In: GOELLNER, Silvana V.; NECKEL, Jane; LOURO, Guacira L. (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 9-27. NUCCI, Marina Fischer. “O Sexo do Cérebro”: uma análise sobre gênero e ciência. In: BRASIL. 6º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero. Redações, artigos científicos e projetos pedagógicos vencedores – 2010. Brasília: Presidência da República, Secretaria de Políticas para as Mulheres, p. 31-56, 2010. REGULAMENTO Nº 7. Regulamento de Educação Física. 1ª parte. Edição Provisória autorizada pelo Estado-maior do Exército, 1934. SOUSA, Eustáquia Salvadora de. Meninos, à marcha! Meninas, à sombra! A história do ensino da Educação Física em Belo Horizonte (1897-1994). 1994. 265 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994. SOUZA, Adrian Pedra de. Conflitos de gênero durante a trajetória escolar de mulheres que jogam futsal/futebol em times amadores da cidade de Amargosa/BA. 2018. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação em Educação Física) – Centro de Formação de Professores, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Amargosa, 2018. VAGO, Tarcísio Mauro. Cultura escolar, cultivo de corpos: educação physica e

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A Pedagogia Histórico-Crítica e o trato do gênero na Educação Física Escolar Carla Loyana Teixeira (UEPA) 6 Giselle dos Santos Ribeiro (FAM) 7 Meriane Paiva Abreu (SEDUC/PA) 8 Resumo: O presente artigo discute como a Pedagogia Histórico Crítica (PHC) dialoga com as questões de gênero nas aulas de educação física. Como teoria do conhecimento, adota o materialismo histórico-dialético. Realiza uma pesquisa bibliográfica, seguida de uma análise de conteúdo para pautar as discussões. Compreende as diferenças entre os gêneros como pontos de discussão para a proposição de respeito e tolerância diante das diversidades. Conclui que a PHC contribui para a reflexão acerca do debate sobre gênero nas aulas de educação física, de forma a recuperar as discussões e experiências que favoreçam homens e mulheres, conscientes de classe trabalhadora, para superação de quaisquer discriminações, para além de um capitalismo que utiliza as diferenças para desigualar e estratificar o indivíduo, mascarando nesse processo, a sua condição de classe. Palavras-chave: Pedagogia Histórico-Crítica. Gênero. Educação Física Escolar.

INTRODUÇÃO A realidade brasileira se encontra marcada por valores excludentes, balizados em justificativas refutáveis – no que se refere às questões de gênero –, que resultam em discursos de ódio, negação de oportunidades e perpetuação do modelo decadente de estruturação social. As relações de gênero se inserem nesse contexto, haja vista a discriminação baseada no sexo, que se concretiza em papéis sociais pré-definidos e na divisão sexual do trabalho, além das diferenças de tratamentos e salários entre homens e mulheres. Diante disso, reflete-se a importância da escola como base formadora da sociedade, a qual termina por servir aos interesses da classe dominante, ao manter de forma mascarada a realidade, complexa e contraditória, corroborando para reforçar as relações de poder também entre os sexos. A Educação Física, como um ramo pedagógico da educação, compactua com essas 6

Licenciada em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Especializanda em Pedagogia da Cultura Corporal na Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: loyanateixeira@gmail.com 7 Mestra em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da Faculdade de Educação e Tecnologia da Amazônia (FAM). E-mail: giribeiroef@hotmail.com 8 Mestra em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professora da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA). E-mail: meri_black@hotmail.com

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práticas discriminatórias, ao reforçar padrões de comportamento e discursos. Assim, elucida-se a relevância de introduzir efetivamente e motivar a discussão de gênero na Educação Física escolar, a partir de uma leitura crítica da realidade social e suas características históricas. Portanto, questiona-se: Como a Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) dialoga com as questões de gênero nas aulas de educação física escolar? Neste sentido, esse trabalho visa discutir as questões de gênero nas aulas de educação física escolar, a partir da Pedagogia Histórico-Crítica, para pensar práticas crítico-superadoras possíveis, na intenção de combater os princípios excludentes de gênero e contribuir com a superação da segregação sexual. Portanto, essa investigação adota como teoria do conhecimento, o materialismo histórico dialético, pois segundo Triviños (1987), caracteriza-se por situar o problema em nível mais amplo dentro de um contexto, estabelecendo contradições possíveis de existir, entre os fenômenos que o caracterizam. O estudo é resultado de uma pesquisa bibliográfica, na qual houve contato direto com um acervo de materiais previamente publicados sobre a temática em questão (MARCONI; LAKATOS, 2003). Para analisar os dados, elegeu-se a análise de conteúdo que é composta por um conjunto de técnicas, que visam sistematizar os conteúdos das mensagens, para obter respostas que permitam inferir sobre conhecimentos relativos à temática (TRIVIÑOS, 1987). Desse modo, o artigo está organizado em duas seções: na primeira, ocorre uma discussão sobre os fundamentos da PHC; e na segunda, uma análise sobre as questões de gênero nas aulas de Educação Física, a partir de uma perspectiva histórico crítica; além das conclusões correspondentes. PARA UMA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA A Pedagogia Histórico-Crítica não atribui à escola o papel de redentora da sociedade, nem a desacredita, mas sim confere a esta a qualidade de mediadora, em função de seu caráter sócio histórico. Esta peculiaridade coloca a PHC em um patamar diferenciado, instigando conhecer suas concepções e proposições. Saviani (2012) indica que para determinar uma compreensão de educação a partir desta teoria, antecede consolidar um entendimento da

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natureza humana. Para ele, partindo da compreensão marxiana da realidade, o ser humano se diferencia dos demais animais pela capacidade de produzir a sua própria existência, afinal esta não é dada de forma natural. O ser humano precisa, para se adaptar à natureza, ajustar os elementos disponibilizados, às suas necessidades de utilização, ou seja, é preciso transformá-los conforme suas necessidades. Assim, observa a natureza e enxerga nela as possibilidades de uso, e, desta forma, inicia o desenvolvimento do que, segundo a teoria marxista, caracteriza a natureza humana: a possibilidade de desenvolver trabalho. Dito isto, entende-se que a forma como se compõe o trabalho conduz à maneira de como se organizam as demais características de um grupo social. Quanto à educação – a qual ontologicamente não se separa do processo de trabalho – apresenta modificações históricas, que a separou do processo de trabalho, pelo qual se criou uma educação formal em espaço próprio, denominado escolar. Ao determinar a natureza da educação, Saviani (2012) explicita sua relação fundamental com o trabalho, identificando-a como trabalho imaterial. Na relação com a natureza e sua transformação para garantia da sobrevivência, o homem além de produzir ferramentas para utilizar na caça, pesca, abrigo, entre outros elementos, produz conhecimento. Conhecimento este que vem sendo acumulado e sistematizado por todo conjunto da humanidade, mas que no desenvolvimento histórico desta, de sociedades divididas em classes, vem sendo usurpado, distorcido e transmitido para atender aos interesses de uma classe social parasita chamada de burguesia. Não é nessa concepção de sociedade que a Pedagogia Histórico-Crítica se assenta, mas reconhece que é sobre essa sociedade que deve atuar, pois é nela que se coloca a problemática da negação do conhecimento, conferindo outras contradições que a sociedade capitalista acumula. Por isso, a PHC se motiva a ser: [...] uma teoria que procura compreender os limites da educação vigente e, ao mesmo tempo, superá-los por meio da formulação dos princípios, métodos e procedimentos práticos ligados tanto à organização do sistema de ensino quanto ao desenvolvimento dos processos pedagógicos que põem em movimento a relação professoralunos no interior das escolas. (SAVIANI, 2012, p. 101).

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Saviani (2012) expõe que é imprescindível para a teoria HistóricoCrítica conhecer os fatos da realidade histórico-social e do contexto no qual a escola está inserida. É necessário o desenvolvimento da consciência, em relação aos problemas expostos; a própria teoria caminha, no sentido de reconhecer os limites impostos para si e sua implementação prática, não com intuito exclusivo de explicar as condições postas, mas de compreender como é possível combater, confrontar e solucionar as problemáticas, buscando criar as condições necessárias para a investida qualitativa no trato com o conhecimento. A partir disso, Gasparin (2007) elabora os momentos pedagógicos do método didático, dividindo-os em:

1.1 Prática social inicial: O momento de contato inicial com o tema é onde se faz uma leitura prévia da realidade do aluno para identificar seu conhecimento sobre objeto em questão. O professor deve partir dos próprios conceitos empíricos trazidos pelos alunos e contextualizar quanto à totalidade social. Captar a prática que os alunos têm sobre determinado objeto, significa extrair como este se apresenta para eles e de que forma eles se relacionam com o objeto. Portanto, cabe a este momento: estimular e desafiar os alunos de forma a estes manifestarem tudo o que já sabem acerca da temática a ser tratada, além de anotar, registrar as diversas percepções ali existentes, bem como possibilitar o uso de materiais motivadores. A socialização das percepções sincréticas dos diversos alunos por eles próprios já amplia suas visões sobre o objeto. Nesse sentido, sobre os elementos importantes que não apareceram neste momento, cabe problematizar.

1.2 Problematização: Segundo Gasparin (2007, p. 35), a “problematização é um desafio, ou seja, é a criação de uma necessidade para que o educando, através de sua ação, busque o conhecimento”. Ora, se está posto o conhecimento e ali se identificam lacunas do pensamento sincrético exposto, cabe ao professor interrogar e colocar um problema sobre o qual o educando não havia pensado e/ou exposto no procedimento anterior. Este momento consiste no questionamento da realidade e do conteúdo e, portanto, colocados os problemas, estes precisam ser

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resolvidos na prática social, seja no âmbito da escola ou da sociedade. Assim, Gasparin (2007) diz que neste momento as problemáticas são levantadas da prática social inicial e do conteúdo escolar, de maneira a explorar as diversas dimensões (conceitual, científica, histórica e social) do conteúdo, explicitando que estes aspectos compreendem a totalidade do conhecimento sobre o conteúdo. Isto é feito por meio de elaboração de perguntas ou afirmações, as quais devem ser anotadas e mantidas durante toda a fase do estudo, fazendo sempre relação com a prática social inicial dos alunos.

1.3 Instrumentalização: Passado por todo o processo inicial de processamento do conteúdo é necessário, de acordo com Gasparin (2007), colocar o aluno para se confrontar com o próprio conteúdo, visto que ele já foi colocado para falar sua compreensão sobre tal. A "instrumentalização é o caminho pelo qual o conteúdo é posto à disposição dos alunos para que o assimilem e o recriem, e ao incorporá-lo, transformem-no em instrumento de construção pessoal e profissional" (GASPARIN, 2007, p. 57). Nesse instante, o aluno faz a comparação dos elementos cotidianos da prática social inicial com os conhecimentos científicos trazidos pelo professor.

1.4 Catarse: A catarse se caracteriza pelo momento no qual o educando expressa a síntese do conhecimento, a sistematização do que foi assimilado. Portanto, é significativo por representar o processo de abstração do sujeito, a capacidade de compreensão sobre determinado tema, uma operação mental que, segundo Vygotsky (1989, apud GASPARIN, 2007), está casada com a formação dos conceitos, com o processo de análise anteriormente feita na instrumentalização. Para o professor, a catarse pode ser entendida como um momento propício à ação avaliativa, de verificação da compreensão, no plano teórico, por parte dos alunos.

1.5 Prática social final: Finalmente, este ponto é, indubitavelmente, uma recorrência à práxis do marxismo que se busca construir numa pedagogia com perspectiva de classe,

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pois, após todo o processo de apreensão do conhecimento, cabe ao aluno transpor a aprendizagem teórica para o campo prático, pois “é mister, ainda que em pequena escala, possibilitar ao educando condições para que a compreensão teórica se traduza em atos, uma vez que a prática transformadora é a melhor evidencia da compreensão da teoria”. (GASPARIN, 2007, p. 145146). Ainda, conforme o autor, se o aluno não for desafiado a colocar em prática suas ações, em uma determinada direção política, esse método não dará um passo além da sala de aula. Para isso, o professor pode instigar o aluno a discorrer sobre suas intenções e propostas de ação. Dito isto sobre a síntese dos momentos pedagógicos, sabe-se que o conhecimento escolar, historicamente construído e sistematizado, bem como a realidade, apresenta lacunas que se exibem aos olhos humanos de forma sincrética, apontando as contradições do saber fragmentado que é organizado para a transmissão, via a instituição regulada pelo estado capitalista, a escola. Sendo assim, movido e sustentado pelas contradições, o conhecimento escolar pode ser entendido como uma qualidade, formada por um conjunto de saberes (propriedades) que, em determinadas, possibilitam consolidar a compreensão de um conteúdo e uma concepção sobre o mesmo. Assim, percebe-se a PHC, vide Saviani (2011), como defensora de uma educação escolar compreendida como um mecanismo de luta contrahegemônica, ou seja, correspondente a um movimento que conduza à desarticulação dos elementos que não são inerentes à lógica dominante, mas estão a ela relacionados, para a articulação destes aos interesses populares. O GÊNERO NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: PARA UMA APRECIAÇÃO CRÍTICA DA REALIDADE

As condições que engendraram a desigualdade e violência de gênero são históricas e ainda condicionam as relações sociais, sendo reproduzidas e consolidadas em diferentes espaços e instituições, especialmente através da educação, seja na família ou na escola. (BONFIM, 2018, p. 6)

Diante do exposto e assumindo a visão de mundo e de sociedade da Pedagogia Histórico-Crítica, percebe-se a materialidade real da proposição

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metodológica desta, como um elemento importante para a elevação da capacidade de pensamento, apropriação do conhecimento real e o despertar para o antagonismo sobre o qual se encontra a sociedade. Sendo assim, deve-se compreender que os estudos sobre gênero perpassam pela necessidade de apreensão das demandas históricas, as quais homens e mulheres estiveram e estão sujeitos. É a partir da condição submissa vivenciada pelo sexo feminino ao longo dos séculos que será travado o diálogo, analisando-a. Apesar de homens e mulheres apresentarem suas especificidades fisiológicas, as diferenças entre ambos não podem ser analisadas de forma simplista, considerando apenas fatores orgânicos e genéticos. Na realidade, tais diferenças são primeiramente forjadas nas relações estabelecidas no dia-a-dia, isto é, elas se manifestam em virtude de homens e mulheres viverem experiências

e

processos

de

socialização

diferenciados ou

de

serem

condicionados ou persuadidos a agir de maneiras diferentes. No entanto, para compreender o desenvolvimento do antagonismo entre os sexos, é importante refletir sobre a economia, pois os papéis sexuais e identidades sociais construídos em cada momento histórico obedecem aos modos de produzir a vida, ou seja, as relações homem-mulher sempre existiram de maneira a atender aos interesses da existência em sociedade daquele determinado grupo e período. Sendo assim, conforme aponta Engels (2012) em estudos sobre a evolução das formas de organização familiar, a subordinação feminina é um ocorrido simultâneo à instauração da propriedade privada, portanto, os marcos iniciais nas lutas de classes. Percebe-se que com a progressão temporal, as relações perdiam o caráter primitivo por causa do desenvolvimento econômico, e, desta forma, mais opressivas essas relações se tornavam para as mulheres, que foram conduzidas ao matrimônio com um só homem – ou seja, renegando-se qualquer resquício das relações entre grupos. Com a monogamia, reforça-se a figura do verdadeiro pai, proprietário das forças de trabalho, dos meios de produção e de escravos. Cada vez mais, sua importância crescia devido ao aumento de riquezas, influenciando na ordem de heranças e hereditariedades, e direcionando os direitos maternos ao esquecimento.

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Como Marx e Engels (2007, p. 36) pontuam, A divisão do trabalho repousa sobre a divisão natural do trabalho na família e sobre a separação da sociedade em famílias isoladas e opostas umas às outras, e esta divisão do trabalho implica ao mesmo tempo na repartição do trabalho e de seus produtos; distribuição desigual, na verdade, tanto em quantidade como em qualidade; ela implica, pois, a propriedade; assim, a primeira forma, o germe reside na família, onde a mulher e as crianças são escravas do homem. A escravidão, ainda latente e muito rudimentar na família, é a primeira propriedade privada.

Nessa perspectiva, tanto homens quanto mulheres se tornam “produtos e vítimas da sociedade exploradora que os educou” (MACHEL, 1980, p. 26 apud BONFIM, 2018, p. 18). Por este motivo, o real combate é contra esse sistema que transforma homens em agentes opressores. E é dentro dessa concepção que se intenciona discutir a opressão às mulheres, trazendo para os momentos áulicos reflexões sobre a superioridade masculina construída histórica e culturalmente, multiplicadas pelas diferentes formas de educar o feminino e o masculino, conferindo determinadas competências e habilidades para cada sexo. A Pedagogia Histórico Crítica não compreenderia uma teoria de cunho marxista se não levasse em consideração a educação em sua totalidade e advertisse sobre contradições notáveis do sistema capitalista que acaba por despejar na educação escolar um dos caminhos estratégicos para a reprodução e manutenção das formas de opressão, dentre elas, a de gênero. Na Educação Física, também houve uma procura por alternativas às pedagogias acríticas ou crítico-reprodutivistas consideradas hegemônicas. Desse modo, Soares et al. (2012) conseguiu articular a prática pedagógica dentro da área pautada na PHC. Uma tematização dos conteúdos de forma crítico-superadora, conforme aponta Reis et al. (2013, p. 57), “abrange a compreensão das relações de interdependência que os diferentes conteúdos da cultura corporal têm com os grandes problemas sócio-políticos atuais”. Para isso, a finalidade que os momentos pedagógicos irão conduzir deve levar em consideração a composição materialista, histórica e dialética do real. Além disso, conforme Goellner (2007), é preciso buscar as importantes participações femininas na constituição de culturas e sociedades, rompendo com uma história que considera e relata apenas sob uma ótica masculina, para

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que se perceba que homens e mulheres não precisam seguir um determinado roteiro de vida e obedecer a determinados papéis na sociedade. Como o sexo feminino é constantemente alvo de preocupações, a partir dos discursos das supostas fragilidades emocionais, físicas e sua capacidade reprodutiva, sofrendo discriminação em todo o âmbito social, algumas vezes as próprias mulheres acabam internalizando tais visões negativas, deixando de questionar as condições que são submetidas. Nesse contexto, a escola não pode reproduzir saberes supostamente científicos e politicamente “neutros”, mas sim refletir sobre a realidade socioeconômica, e nesse sentido, avaliar as barreiras culturais promovidas socialmente em relação à representatividade que os corpos femininos e masculinos adquiriram ao longo da história. Nas aulas de Educação Física, as diferenças sexuais se tornam ainda mais evidentes, pois é um espaço de vivência das práticas corporais, no qual os educandos têm a oportunidade de descobrir movimentos e desenvolver a criatividade, porém também é um ambiente de suposta superioridade masculina. Tal concepção é reforçada com ações docentes ao, por exemplo, dividir a turma por sexo, para o desenvolvimento de atividades específicas e diferentes, algumas vezes negando a técnica e o conhecimento para um dos grupos, e favorecendo o desenvolvimento motor dos meninos em detrimento das meninas, consequência de distintas atividades realizada por eles. De acordo com o Soares et al. (2012), os conteúdos da cultura corporal devem buscar uma nova compreensão da realidade social, ampliando as referências e favorecendo a formação de um cidadão consciente e crítico, que possa intervir na direção dos seus interesses de classe e, nesse caso, de grupo excluído socialmente. Sendo assim, as aulas de Educação Física não deveriam ser um espaço propício para a manutenção de estereótipos, mas sim um ambiente facilitador da reflexão pedagógica sobre as representações do mundo materializadas pela expressão do corpo, construídas historicamente. (SOARES et al., 2012) Por isso, considera-se de grande importância a ocorrência de aulas mistas, que problematizem todas as formas de opressão, interdisciplinares e que facilitem a associação dos educandos com a realidade em que se encontram

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inseridos para favorecer meninos e meninas a aprenderem a ser mais solidários e a respeitar as diferenças, além de proporcionar as mesmas condições de desenvolvimento, combatendo a reprodução da estereotipia sexual. Portanto, o professor deve garantir o acesso aos diversos conteúdos, considerando a relevância social e a contemporaneidade dos mesmos, além de proporcionar a participação de todos, na busca da assunção de posturas críticas perante os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres na sociedade atual. Assim, a PHC pode contribuir para pensar as construções históricas, logo, não naturais (mas, naturalizadas) sobre gênero, na educação física escolar, a partir das condições, contradições e nexos, das práticas corporais, em uma sociedade dividida em classes, com a realidade da qual são produzidas e produzem. No desenvolvimento dessas práticas, no interior das aulas de educação física, pensar a quem e para que interessa a confusão conceitual entre gênero e sexo, na sociedade capitalista, e a partir delas, a construção de uma gama de sentidos estereotipados, segregacionistas e preconceituosos, que limitam o ser humano em suas potencialidades crítico-corporais. CONSIDERAÇÕES FINAIS O caminho enviesado por este estudo, inicialmente buscou os pressupostos provenientes da pedagogia histórico-crítica para relacionar com a discussão sobre gênero, no interior da escola e da Educação Física escolar. Assim, os eixos selecionados durante a leitura e análise, restringiram-se à apresentação das concepções construídas e às imbricações próprias entre o materialismo histórico dialético – fundamentador da PHC – e as questões de opressão à mulher. A Pedagogia Histórico-Crítica é uma proposta que não pode ser ignorada pelos intelectuais orgânicos da esquerda marxista, pois o maior de seus esforços para as questões de avanço na luta dos trabalhadores e possível superação do modelo capitalista de produção, está na educação, que tem relação com a reprodução da força de trabalho nesse sistema, com o machismo, além do racismo e a LGBTfobia. Todas estas expressões devem ser combatidas cotidianamente, bem como a reprodução passiva da educação classistaburguesa, que estão indistintamente relacionadas.

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Diante do exposto, reflete-se sobre o processo de transmissão dos papéis de cada gênero que se fundamentam, em sua maioria, em argumentos de cunho biológico e desencadeia uma acentuada diferença de experiências vividas por meninos e meninas, interferindo no seu desenvolvimento físico e social. Portanto, a práxis nas aulas de Educação Física escolar se resume a uma prática discriminatória, a qual tem historicamente contribuído para a perpetuação de valores excludentes de gênero, podendo influenciar na relação entre educandos e educandas, não só durante as aulas de Educação Física, como também nas relações sociais. Isto significa uma distorção do sentido de práxis, que exprime um movimento dialético do real nas ações e reflexões humanas, no caso das práticas corporais produzidas para a emancipação, distantes, portanto da segregação do homem e da mulher para práticas condizentes a seus gêneros, sob o discurso do sexo. Desse modo, durante os momentos áulicos, as diferenças entre os sexos devem ser compreendidas e respeitadas, não sendo consideradas obstáculos no desenvolvimento de quaisquer atividades, mas sim pontos de discussão para a proposição de igualdade de oportunidade a todos, respeito e tolerância diante das diferenças, como indica a abordagem crítico superadora, ao visar uma prática social final, que favoreça a reflexão pedagógica e promova transformações na realidade da sociedade desigual e discriminatória. Portanto, a PHC contribui para pensar as questões de gênero, nas aulas de educação física, de forma a recuperar as discussões e experiências que favoreçam homens e mulheres, conscientes de classe trabalhadora, para superação de quaisquer discriminações, que sofrem pela burguesia. O interesse não é eliminar as diferenças entre homens e mulheres, mas apresentar a riqueza dessas diferenças, na busca de outro mundo possível, para além de um capitalismo que utiliza as diferenças para desigualar e estratificar o indivíduo, mascarando nesse processo, a sua condição de classe. The Historical-Critical Pedagogy and the gender discussion in School Physical Education Abstract: The article discusses how the Historical-Critical Pedagogy (PHC) dialogues with the gender questions in physical education classes. It adopts the historicaldialectical materialism as the theory of knowledge, and it carries out a bibliographic research, followed by content analysis to substantiate the discussion. It comprehends the differences between genders as points of discussions for proposing respect and tolerance

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in front of diversities. It concludes PHC contributes for the reflections about the gender debate in physical education classes, in order to recover the discussions and experiences favoring men and women, aware as working class, for overcoming of any discrimination, to beyond the capitalism which uses the differences to unequal and stratify the individual, masking on this process, its class condition. Keywords: Historical-Critical Pedagogy. Gender. School Physical Education.

REFERÊNCIAS BONFIM, Cláudia. A condição histórica da mulher: contribuição da pedagogia histórico-crítica na promoção da educação sexual emancipatória. Uberlândia: Navegando Publicações, 2018. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Expressão Popular, 2012. GASPARIN, J. C. Uma didática para pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2007. GOELLNER, Silvana Vilodre. Feminismos, mulheres e esportes: questões epistemológicas sobre o fazer historiográfico. Movimento, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 174 -196, 2007. MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2003. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. REIS, Adriano de Paiva et al. Pedagogia Histórico-Crítica e Educação Física. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2013. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2012. SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 2012. TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

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A prática artística do Ballet Clássico como construção do gênero nas aulas de Baby Class Alana Maria Alencar de Moura (FAMETRO) 9 Roberta Oliveira da Costa (FAMETRO) 10 Resumo: A dança está relacionada aos processos de linguagem que participam na construção cultural do corpo, atuando como uma pedagogia cultural de gêneros, por meio da qual as diferenças sociais de gênero são reproduzidas e através da afiguração de diversas maneiras de utilizar o corpo masculino e feminino. O ballet infantil é relativamente novo, o que justifica ainda não haver uma institucionalização com regras e normas semelhantes aos outros níveis do ensino do ballet. Deste modo a presente pesquisa objetiva investigar a influência do ballet clássico nas aulas de baby class como construção do gênero dos praticantes. O cenário da pesquisa concedeu em uma academia de dança, em um colégio privado no município de Fortaleza (CE). Trata-se de um estudo de campo observacional descritivo, de modo longitudinal, com uma abordagem qualitativa e quantitativa. Participaram da pesquisa 6 professores de baby class, e 11 bailarinas efetivamente matriculadas na turma de baby class. Como instrumento de coleta foi utilizado um diário de campo das aulas e um questionário semiestruturado com cinco questões objetivas e descritivas. Os resultados apontam que a maioria das professoras não reconhecem o ballet clássico como influência na definição do gênero. Contudo, observou-se que as aulas de baby class, pode levar ao aprendizado coexistente da técnica, assim como também fazendo parte na construção do gênero das bailarinas. Palavras-chave: Ballet clássico. Gênero. Baby class.

INTRODUÇÃO A dança é uma área de conhecimento que compõe diversas manifestações da cultura classificadas como modalidades. Está relacionada aos processos de linguagem que participam na construção cultural do corpo. Atua como uma pedagogia cultural de gêneros, por meio da qual as diferenças sociais de gênero são reproduzidas e através da afiguração de diversas maneiras de utilizar o corpo masculino e feminino. O interesse por esse assunto em vincular o ballet clássico ao gênero surge a partir das observações das aulas de baby class em uma academia de dança. Assim tornam-se indispensáveis alguns questionamentos: Como o ballet clássico influência no gênero dos praticantes? Sendo o ballet um estilo tradicionalista, como são lidadas as situações que possa não se encaixar? Que padrões podem 9

Licenciada em Educação Física pela Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza (FAMETRO). E-mail: alanamarialencardemoura@gmail.com 10 Mestra em Ciências Morfofuncionais pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora da Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza (FAMETRO). E-mail: rcosta.dance@hotmail.com

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ser observados e retratados nas aulas? É sabido que as aulas de ballet clássico nas turmas de baby class, se utiliza de metodologia como articulação de gênero, são as técnicas de forma lúdica, fazendo o uso de imagens e contos de fadas, por isso ainda hoje as aulas dos níveis iniciais são quase que unicamente frequentados por meninas. Deste modo a presente pesquisa objetiva investigar a influência do ballet clássico nas aulas de baby class como construção do gênero dos praticantes. Inicialmente foi realizado um estudo bibliográfico fundamentaram e estabeleceram bases sólidas para a temática suscitadas. Necessitou-se então de uma subdivisão representada: Histórico da dança e do ballet: do clássico ao contemporâneo; Conceito de gênero: implicações na dança; Baby class e a articulação de gênero. Trata-se de um estudo de campo observacional descritivo, de modo longitudinal, com uma abordagem qualitativa e quantitativa, através de observação não participante, utilizando com instrumento um diário de campo para descrição das observações. A opção desta investigação configura-se devido à carência de estudos relacionados à temática proposta. Aspiramos com este, colaborar com conhecimento para compreensão do baby class e sua relação na construção do gênero, despertando o interesse, colaborar com conhecimento e compreensão da metodologia através de diferentes estratégias e abordagens, legitimar as ferramentas para a articulação de gênero nas aulas de baby class. HISTÓRICO DA DANÇA E DO BALLET: DO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO Na história da humanidade a dança sempre se manifestou, na sua forma mais antiga eram sagradas, foram praticadas em diversos rituais, por meio de cerimônias para consagrar deuses e suplicar por sucesso nas caçadas e lutas. No decorrer da evolução humana a dança foi transformando seu formato e destinações (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Para Portinari (1989) a dança teve seu primeiro tratado em Milão entre 1435 e 1436. Além de ter sido escrito para a nobreza, esse código criava diversas minúcias que só eram acessíveis ao entendimento dos mestres de dança. (ASSUMPÇÃO, 2003) Apesar de ter sofrido influências do renascentismo italiano, foi na França que surgiu o ancestral do ballet clássico, o ballet da corte. Com o contexto europeu, de sucessões políticas e guerras, na segunda metade do século XVI (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Para Pereira (2008) Antes da

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década de 1980, o que se encontrava de consistente dos achados da histórica da Dança (mundial) no Brasil era produzida em por personagens e autores estrangeiras, exatamente como a inserção das práticas da dança clássica francesa e russa, em um país ainda dando seus primeiros passos. Os primeiros escritos chegados aqui são livros estrangeiros, assim como determinadas traduções. Na dança, as modalidades mais encontradas na atualidade, pela à facilidade despadronização do clássico e moderno, jazz, sapateado, entre outros. Incluindo também, as danças folclóricas, que são vivenciadas nas escolas, ou em determinadas comunidades, com objetivo de conservar as culturas (SILVA; SCHWARTZ 1999). Deste modo as modalidades da dança são uma extensão rica para investigar a transferência da cultura para mais adiante do campo da cultura verbal ou escrita, já que nelas existe toda uma corporeidade que se expressa diante dos modos de expressão, das gestualidades e das técnicas corpóreas. (VALLE, 2017) Segundo Caminada (1999), as expressões ballet, balet ou balleto, significam pequeno baile. O ballet cortesão surgiu de uma dança coral, como uma maneira de entreter a corte, foi introduzida em salões, revivia os mistérios antigos da evolução e da vida das danças e máscaras. Neste contexto o ballet clássico ou dança clássica tornou-se, no decorrer da história, o primeiro estilo de dança a alcançar reconhecimento popular, como forma de arte internacional. (SOUZA, 2010) No século XVI na Itália o ballet clássico tem seu surgimento, mas em 1581 foi conduzido até a França e consolidado como categoria da dança, apesar de ter suas origens à cultura camponesa, foi afirmado como hábito da nobreza, acreditava-se que através dos padrões de gestos e etiquetas do ballet, ajudaria na educação do corpo. (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016) No Renascimento o ballet assumiu uma característica de espetáculo dançante, sendo apresentado em um teatro com uma plateia que habitualmente pagava por seu ingresso; foi quando nasceu o ballet tal como o conhecemos hoje (OSSONA, 1988). Inspirados nas posições dos pés na esgrima, voltados os dedos para fora, chamado de “en dehors”, Pierre Beauchamps, no século XVII estabeleceu as cinco posições básicas dos pés, com a intenção de permitir que os bailarinos movimentassem rapidamente,

em qualquer direção sem que

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perdessem o equilíbrio. (AMARAL, 2009) Para Amaral (2009) apud Stevens (1997) em meados do século XVIII, o dançarino e coreógrafo Noverre, inaugurou o ballet de ação, fundamental para a história da dança, uma arte teatral que busca a naturalidade, no conceito de imitar a natureza. Depois surge o coreodrama, com Viganó, destacando o ballet com maior expressão à emotividade e à plasticidade. Contrariando as duas tendências naturalistas do ballet, surge o romantismo, com a coreografia de Phillippe Taglione, estreada por sua filha Maria Taglione em La Silphide, proporcionando enaltecimento a mulher. (ASSUMPÇÃO, 2003) Com Marius Pepita (1822-1910), ballets conhecidos como clássicos de repertório, como por exemplo, Copélia, Bela Adormecida e Lago dos Cisnes, os quais chegam até nós, nos dias de hoje, exatamente como foram criados (ASSUMPÇÃO, 2003). Ossona (1988) descreve nesse período as bailarinas perderam-se, esquecendo-se da arte em si. Então logo, surgem Diaglev, Nijinsky e Fokine, apresentando o ballet modernista, reforçando o ballet masculino, com o objetivo de obter outras formas de dança e um público mais ansioso, interessados em música, teatro e dança. CONCEITO DE GÊNERO: IMPLICAÇÕES NA DANÇA Na sociedade, as diferenças entre homens e mulheres são relacionadas exclusivamente às distinções de sexo, com perceptíveis conotações biológicas. Contudo, sexo refere-se à heterogeneidade física entre mulheres e homens, nascemos com algumas características que são singularidades masculinas e femininas (AQUINO, 1998). Assim a sociedade em que vivemos define o ser humano ao nascer em menino ou menina, através dos órgãos genitais. No entanto, a idealização da nossa identidade como homem ou como mulher não é um fator biológico, mas sim social. Em razão que, a biologia não define a conduta do homem ou da mulher, no entanto, a cultura que é responsável por essa definição, e isso mudam de acordo com a civilização de que falamos. (JESUS, 2012) Para Scott (1995), gênero é o processo pelo qual as diferenças sexuais dos corpos de homens e mulheres são trazidas para dentro das práticas sociais, de forma a adquirirem significados culturais. Aponta para a implicação de pensar a cultura e a sociedade como sendo constituídas e atravessadas por

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representações de feminino e masculino, ao mesmo tempo em que produzem e/ou ressignificam essas representações. (MEYER, 2004) Por meio das relações com os outros, a identidade pessoal, a história e o projeto de vida vai se configurando. Neste modo, o fato de se pertencer a um gênero ou outro, também condizem com as referências iniciais no mundo, tornando a identidade como consequência e condição da relação interpessoal (ANDRADE, 2001). Segundo Louro (1995) a abordagem de gênero tem a importante função de agir como uma ferramenta teórica para os avanços nos estudos das ciências sociais, como também para análise crítica na história, especificamente na história da educação. Portanto, a dança por seus diversos estilos, pode ser definida como uma ferramenta que faz uso do corpo marcado pelo gênero, analisando como mecanismos de padronização, de aplicação das normas de gênero, que investem na produção de determinados tipos de corpos masculinos ou femininos. No entanto, a dança tem uma tarefa complexa, uma vez ocorre em cenários culturais diversos, e é praticada por pessoas com histórias de vida distintas e específicas. (ANDREOLI, 2010) Em algumas escolas, a dança é uma das atividades exclusivamente praticadas por meninas, enquanto os esportes são privilégios dos meninos. Provavelmente está padronização ocorreu pela evolução do corpo durante a Revolução Industrial, na qual a sociedade tinha a definição de masculinidade, ligadas a produtividade, eficiência, aquisição de bens, provedor da família (BARBOZA, 2016). Segundo Kleinubing apud Saraiva (2009) acredita-se que o preconceito se associa à ideia de que a criatividade e a sensibilidade são “habilidades” ligadas ao universo feminino, pensamento disseminado pela sociedade moderna e, por tanto, a referência ou o imaginário da figura do homem na dança é uma construção histórico-social na qual a lógica difundida de que o homem que dança é homossexual, ainda que infundada, infelizmente, flui no universo masculino.

BABY CLASS E A ARTICULAÇÃO DE GÊNERO Denominada também de “turmas de iniciação à dança”, as aulas de baby

class recebe crianças de dois aos seis anos de idade, encontrando-se no período pré-operatório, tendo como principal característica a iniciação à fala. O

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aparecimento da linguagem nas crianças provoca mudanças essenciais nos aspectos cognitivos, sociais e afetivos, pois ao comunicar-se com o outro, irá permitir o desenvolvimento de novas características, como por exemplo, o pensamento egocêntrico, inteligência simbólica e a construção de esquema mental. (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016) O cenário do baby class como iniciação ao ballet infantil é relativamente novo, o que justifica ainda não haver uma institucionalização com regras e normas semelhantes aos outros níveis do ensino do ballet (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Nestes primeiros anos o conteúdo aplicado é estudado e desenvolvido através dos movimentos naturais da criança, da utilização do simbolismo e da fantasia, permitindo estimular o desenvolvimento da atividade criadora e da imaginação. (NABINGER, 2016) Bartolo desenvolveu o método Prima Ballerina, que tem como finalidade ensinar o ballet de forma lúdica, criando a possibilidade de aprendizado no autocontrole, limites, autoestima, criatividade através do mundo imaginário, aperfeiçoamento e rapidez aos movimentos, despertando sua inteligência (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Neste nível, o conteúdo é ministrado durante as aulas estimulando a atenção e a concentração, através de histórias, canções envolvendo fadas e robôs, procurando elementos que levem a interpretação e ao melhor entendimento dos exercícios. (NABINGER, 2016) De acordo com Almeida (2012) existem diferenças quanto ao gênero na técnica clássica. Enquanto a bailarina tem uma imagem na magreza, leviandade e ser etéreo, caracterizada pela técnica de sapatilhas de pontas, na saia tutu, no equilíbrio, no giro e nos amplos saltos das coreografias, o bailarino necessitam evidenciar em seus movimentos, força e agilidade na condução da bailarina na dança. O uso de princesas e fadas no baby class pode levar ao aprendizado da técnica clássica, mas age também como articulação ao gênero feminino. O b allet ainda é visto como uma arte especificamente feminina. Resultando, em um público quase que exclusivamente feminino, nas aulas de iniciação, reforçando na esfera infantil o estereótipo de apenas meninas na dança clássica (SANTOS, 2009). Dessa forma, nas aulas de baby class são utilizados contos de fadas, permitindo o universo infantil feminino. Princesas, fadas e a imagem da bailarina romântica, com o biótipo de sílfide, trajando tutu e sapatilhas de

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ponta, são aproveitadas para o aprendizado dos aspectos de leveza. (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016) METODOLOGIA A presente pesquisa classifica-se como um estudo de campo observacional descritivo, de modo longitudinal, com uma abordagem qualitativa e quantitativa, analisando a concepção do é clássico como desempenho artístico convertida em desempenho do gênero. Assim o estudo observacional é uma investigação em que a informação é sistematicamente colhida, mas o método experimental não é utilizado, porque não há uma intervenção ativa do investigador. Os estudos podem ser: descritivos e analíticos. Estudo observacional descritivo é definido por descrever uma situação. (LUNA, 1998) O cenário da pesquisa concedeu em uma academia de dança, em um colégio privado no município de Fortaleza- CE após a autorização das instituições através do Termo de Anuência. São ofertados os cursos de baby class, ballet clássico, jazz, hip hop e zumba. Planejado para diversas faixas etárias, a academia de dança é acessível para alunos, não alunos, pais e funcionários do colégio. A pesquisa foi realizada entre os meses de março 2017 a outubro do ano de 2018. A população foi composta por 208 alunos da academia, participantes das modalidades de dança, desenvolvida com a amostra de 11 alunas do sexo feminino. Já com relação as professoras a população do estudo integraram 9 professores da academia de dança, do turno manhã e tarde, no qual foi retirada uma amostra de 6 profissionais de baby class. Os participantes exclusivamente do sexo feminino, na faixa etária entre 3 a 4 anos, matriculadas na turma de

baby class. Os profissionais participantes do sexo feminino, na faixa etária entre 25 a 47 anos, com o tempo de atuação na dança de 9 a 30 anos e efetivadas na academia entre 3 a 23 anos. Deste modo foram incluídos na amostra professoras alunas das turmas de baby class, alunas matriculadas nas turmas de baby class I, porém foram excluídos da amostra todos aqueles participantes que se recusaram a participar da pesquisa ou ainda aqueles que porventura não assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A coleta de dados foi feita a partir de um diário de campo. O estudo

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prosseguiu com observações de 50 horas aula aplicadas ao de baby class I. Para registro da pesquisa foram observadas, registradas e analisadas as primeiras 10 horas-aulas e descritas 5 horas-aulas. Tais observações e registros deram-se por intermédio da observação, que é uma técnica de coleta, da qual o pesquisador se apropria de um diário de campo. Para cada aula, ressaltaram-se os acontecimentos que se relacionavam com os objetivos da pesquisa (Quadro 1). Para um melhor detalhamento da pesquisa também se utilizou para a coleta a utilizou-se a aplicação de um questionário semiestruturado contendo cinco questões. Antecedendo a aplicação do questionário foi apresentado e assinado no cenário de pesquisa o TCLE. Os preceitos éticos regidos pela a Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, referentes às pesquisas científicas com serem humanos, foram priorizados pela pesquisadora. (BRASIL, 2012) Os resultados, quando se trataram das questões objetivas, foram analisados através da estatística descritiva e apresentados através de gráficos e quadros programa Excel (2010) – Windows. As questões abertas, por meio da análise de conteúdo das respostas, que foram categorizadas e discutidas a luz da subjetividade. Quadro 1 – Observações das Aulas Aulas

Aula 1

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Observações das Aulas  A aula iniciou-se na chegada das crianças em meia ponta e mãos na cintura, a professora solicita a formação do círculo, sentadas para realizar a frequência. Na posição de borboleta, nesse momento a professora canta junto das bailarinas a música da borboletinha, alternando os movimentos entre lentos e rápido. Ainda na borboletinha, é perguntado as alunas: têm chulé?, as alunas colocam o nariz nos pés e voltando, com repetição dos movimento. Ainda na posição de borboleta, é solicitado que as crianças imaginem que estão no mar, seu corpo é um barco e para que não afundem é preciso balançar de um lado para o outro, sem colocar as mãos no chão.  Em seguida, a professora pede que as bailarinas imaginem que estão em uma floresta e as bolas de papel espalhadas pelo chão da sala são as maçãs e elas agora são a chapeuzinho vermelho. Nesse instante uma de cada vez pega as bolas de papel realizando o skip, demostrado antes pela professora. Próximo do termino da aula, as bailarinas escolhem uma música, dançam ou brincam pela sala, seguidamente a reúne-as, fazendo o agradecimento e encerra a aula. Todas as aulas tinham duração de 50 minutos, e acompanhadas de músicas infantis ou do ballet clássico.


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Aula 2

Aula 3

Aula 4

 A atividade de aquecimento inicia-se com a posição da borboleta, a professora pergunta a cor da borboleta de cada bailarina, e em sua maioria escolhem rosa ou lilás, fazem os movimentos das asas e cantam a música da borboletinha. Ainda sentadas, com as pernas estendidas, as meninas ficam em postura com a coluna reta, chamada de costas de bailarina, logo após relaxam, deixando a coluna curvada, chamada pela professora como costas de velhinha, depois trabalham o pé flex. e ponta, como: pé de palhaço, pé de bailarina.  Formando uma fila, as bailarinas andam na meia ponta em direção aos arcos que estão espalhadas pelo chão da sala, pulam dentro de cada um fazendo o pas de chat, nomeado pela professora como o pulo do gato. Faltando alguns minutos para o termino da aula, as bailarinas recebem arcos para dançar, nesse momento a professora observa uma dificuldade, pois a maioria tem resistência em aceitar o arco que não seja da cor rosa, então a professora senta com todas em um círculo e faz uma breve explicação sobre todas as cores são especiais, então elas escolhem uma música, dançam e brincam, logo depois reúne-as, fazendo o agradecimento e encerra a aula.  Na terceira aula as crianças entram na meia ponta e mãos na cintura, é solicita que formem um círculo sentadas para que realize a frequência. Sentadas de pernas cruzadas de frente para outra aluna, tentando dar um abraço na sua dupla e depois seguram nas mãos realizando o movimento de ir para traz e frente, como um barquinho navegando.  Ainda sentadas, agora com as duas pernas paralelas na frente do corpo, é solicitado que imaginem que são sereias, e suas pernas são a calda, assim joguem a calda para ambos os lados, depois se ajoelham e levantamse sem tocar as mãos no chão. Em seguida realizam uma abdução dos membros inferiores, formando uma piscina com as amigas, logo após realizavam o movimento na frente sem abduzir os membros inferiores ou flexiona-las, fazendo o movimento de mergulho. Com os membros inferiores ainda em abdução, colocam-se os ouvidos nos joelhos para escutar os joelhos, é importante destacar que todas as atividades propostas aconteciam de forma lúdica. Ao termino da aula, os arcos no chão, as alunas dançavam ao ritmo da música colocada, quando a música para elas trocava de lugar na meia ponta.  Na quarta aula, iniciando o alongamento das bailarinas, na posição da borboletinha, a professora pede que elas cheirem os pés, e balançam de um lado para o lado, como um barco em alto mar, em seguida estendendo as pernas para frente, logo em tentam dar um beijo nos joelhos, sem flexiona-los. Na diagonal da sala as alunas andam como vovozinha: andam com o corpo todo relaxado, depois andam como bailarina: na meia ponta, com as mãos na cintura, coluna reta e pescoço alongado, nomeado como pescoço de girafa. Logo em seguida é contado uma história sobre os sapos que viviam tranquilos no lago, um dia apareceram vários peixes deixando o lago lotado. Para os sapos si movimentarem de um lugar para outro precisam pular (saltar) por sobre os peixes até conseguir encontrar um lago mais tranquilo, em seguida as alunas são estimuladas a imaginassem que toda sala era um lago onde vivem vários sapos e peixes, e as alunas eram os sapos, espalhadas pela sala, pulam todas as fitas no chão que simbolizam os peixes, preparando o salto como o sapo (plié e

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finalizando com plié).  Para finalizar a aula, a professora distribui boias de espaguete para as bailarinas e escolhe uma música, dançam ou brincam pela sala, seguidamente a professora reúne-as, fazendo o agradecimento e encerra a aula.  Na quinta aula, na posição de borboleta, as alunas realizam os movimentos das asas, nesse momento a professora canta junto das bailarinas a música da borboletinha, alternando os movimentos em lento e rápido. Ainda na borboleta, as alunas abracem uma perna como se fosse um bebê e depois o coloque para dormir. Já deitadas, é solicitado que imaginem que estão pedalando uma bicicleta, pergunta a cor da bicicleta de cada uma, intervindo quando as alunas escolhem apenas rosa, pedindo que escolha outra cor, em seguida realizam a tesoura com as pernas, depois em duplas, juntam os pés e realizam a atividade de pedalar, tesoura e com as pernas semi-flexionadas. Posteriomente ao ritmo da música é realizado uma sequência de movimentos do ballet para estimular a memória das alunas, como skips, chassés, sauttés, elevés e caminhadas na meia ponta, Aula 5 mas sempre usando termos lúdicos para melhor memorização, como “abre a janelinha” ao invés de “plié”, “braços de bailarina, mãos de princesa, mãos de siri”. Em fila, foi explanada a sequência de movimentos que iriam realizar skip até os arcos, para entrar realizaram o pulo do gato, imitava uma pose de bailarina, reverenciava. Algumas crianças sentiam dificuldades nos movimentos, mas sempre realizavam o que era proposto. Em um círculo as alunas escutam a história do mágico de Oz, sempre interagindo a professora pede que as bailarinas imaginem que estão com o sapato da Dorothy e mostre a ponta da bailarina, imitam o espantalho, boneco de lata e leão. Logo após a professora ordena as alunas e passa uma sequência de passos ao som da música do filme mágico de Oz. Para finalizar a aula, a professora permitiu que dançassem livres pela sala com os arcos, fazendo o agradecimento e encerra a aula. Fonte: Dados da pesquisa (2017).

RESULTADOS E DISCUSSÃO Os resultados coletados e respectivas discussões da pesquisa, sendo as respostas apresentadas em gráficos e tabelas para melhor visualização e compreensão do leitor. É importante destacar que para o comprimento dos preceitos éticos da pesquisa os sujeitos serão descritos por siglas para preservação do anonimato. Durante o processo do estudo foi possível observar a abordagem do

ballet clássico nas aulas de baby class, como iniciação da técnica do clássico associado ao lúdico à professora empregava termos adaptados para a faixa etária, utilizava-se instrumentos como, músicas infantis, histórias (contos de fadas, princesas), adereços (arcos, boias espaguete, bexigas) que tornava as aulas mais lúdicas e atraentes para as crianças. As vestimentas usadas pelas

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bailarinas compreendiam em um collant justo, uma saia curta de tecido leve, meia calça e sapatilhas de meia ponta, nas primeiras aulas observou-se a preferência por cor rosa e lilás, algumas alunas também optavam por tutu (saia de tule em formato de bandeja), e os cabelos penteados de forma clássica conhecido como coques, sua importância consiste está relacionada a estética e organização dos cabelos para que este não atrapalhe a execução dos movimentos. Observou-se que os praticantes das turmas baby class da academia de dança eram exclusivamente meninas, pois, o ballet clássico continuamente é reforçado como uma atividade “feminina”, mesmo que haja o interesse dos pais ou do menino praticar, entendemos uma percepção social na figura da dança clássica como contexto feminino. Marques (1997) destaque que não são poucos os pais de alunos, e os próprios alunos, que ainda consideram a dança coisa de mulher. Para Andreoli (2010) estudos têm demonstrado que, num sentido geral, o tipo de elação que a dança estabelece entre o corpo e o sensível, converge com a noção de relação com o corpo, estabelecida pelas representações de feminilidade hegemônicas. Em outras palavras, a estética corporal proporcionada pela dança é considerada a mais própria de uma espécie e essência natural da mulher. Trona-se importante destacar que em alguns momentos das aulas a professora enfrentava dificuldades com as alunas, pois ao ser utilizados os adereços lúdicos as mesmas desejavam os instrumentos das cores rosa e lilás. Ao questionar os motivos por não querer as outras cores, estas indagavam que as outras cores não eram de menina. Com isso a professora iniciava sempre uma explicação que não existe essa distinção de cores, meninos e meninas podem usar a cor que desejar, apesar da explicação observava-se uma resistência. Hanna (1999) exemplifica que desde bebês existem padrões visuais que indicam a diferença entre meninos e meninas; a cor rosa é destinada para meninas e a cor azul para meninos. Outros fatores de destaque nas aulas eram utilizados os aspectos de leveza e graça, característicos no ballet clássico, a professora lidava com imagens de contos de fadas e princesas, fazendo com que as bailarinas correspondessem melhor. A professora explora em toda sua amplitude o esquema corporal, na assimilação quanto a sons e movimentos, na descoberta da

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colocação do corpo no espaço, e principalmente na percepção da imagem da bailarina, por se tratar de uma arte que se constitui na estética e no virtuosismo. Para Cruz e Palmeira (2009), a construção social da distinção de Gênero tem início desde o nascimento dos bebês. As pessoas nascem e são criadas e educadas conforme o que a sociedade define como próprio de homem e de mulher e essa educação diferenciada consistem entre outros procedimentos, como formas de presenteio, de vestimentas, contar estórias, e ainda mais sutilmente, nos aspectos como atitudes, trejeitos e expressões corporais. Dando continuidade respectivas discussões dos resultados coletados através da aplicação do questionário semiestruturas que obteve com sujeito as professoras de baby class. A primeira pergunta indagou: Qual abordagem utilizada nas suas aulas de baby class? Técnica do Ballet clássico; Prima

Ballerina; Outras. Gráfico 1 - Abordagem utilizada nas aulas de baby class pelas professoras

Fonte: Dados da pesquisa (2017).

Diante dos resultados obtidos no gráfico 1, 100% das professoras apresentam prima ballerina como a abordagem utilizada nas suas aulas de baby

class. A abordagem Prima Ballerina está fundamentada na pedagogia, na psicomotricidade, na psicologia e na neurociência. Foi criada por Bartolo, com a intenção de ensinar o ballet com o desempenho lúdico, proporcionando as crianças a desenvolver seus limites, o controle do corpo, a autonomia e a

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criatividade através do imaginar, da inteligência, da diminuição de tensões e de insatisfações. (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016) Ao planejar as aulas, o professor deve fazer uma ligação dos princípios básicos do ballet clássico como posições, direções, poses, exercícios, passos, giros e saltos com a ludicidade como brincadeiras, narração de histórias, tornando um ambiente agradável e divertido para as crianças (SOUZA, 2010). Assim quando o professor utiliza a psicomotricidade no ensino do ballet infantil, oportunizar crianças desenvolver-se de modo global, oportunizando a tomar suas próprias decisões, distinguindo-as como criador de sua cultura e arte, reconhecendo seu corpo no mundo. (OLIVEIRA, 2008) Na segunda questão tinha com perspectiva identificar as ferramentas utilizadas nas aulas de baby class pelas professoras. Tabela 1 - Ferramentas utilizadas nas aulas de baby class Ferramentas Opções

Qt.

%

Histórias, músicas apropriadas, objetos e adereços Exercícios de repetição e composição de movimento Barra, centro e diagonais Fonte: Dados da pesquisa (2017).

6 4 1

100% 66,6 16,6%

Nos resultados da tabela 1, evidencia-se que 100% das professoras utilizam histórias, músicas apropriadas, objetos e adereços, 66,6% usam exercícios de repetição e composição de movimento e 16,6% usufruem da barra, centro e diagonais. Os resultados evidenciam uma ligação direta com a ludicidade. Deste modo as ferramentas lúdicas, assim como as músicas e os exercícios, deverão sempre estar presentes na aula de baby class, assim como relacionados à idade e o objetivo específico para cada faixa etária. Devem ser utilizadas músicas que encantem as crianças, tornando a aula mais divertida e atrativa. Exploremos diferentes movimentos como pular, correr, deslizar e girar, utilizando objetos como bolas, lenços, cordas, arcos. Movimentos que auxiliam a musicalidade e coordenação. (SOUZA, 2010) Utilizadas em aula como ferramentas da ludicidade, os contos de fadas, princesas e a própria figura da bailarina romântica com o biótipo de sílfide,

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vestida de tutu e sapatilha de pontas, que compõem o mundo das meninas, são aplicadas no ensino do balé infantil para a introdução dos aspectos de leveza e graça. (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016) A terceira questão quando indagados: Nas suas aulas de baby class, qual o grau de dificuldade para lidar com situações que não se encaixam no estilo tradicional do ballet clássico? Fácil; Médio; Difícil; Extremamente Difícil. Gráfico 2 - Grau de dificuldade para lidar com situações que não se encaixam no estilo tradicional do ballet clássico

Fonte: Dados da pesquisa (2017).

Nos resultados do gráfico 2, 17% das professoras lida com facilidade nas situações que não se encaixam no estilo tradicional do ballet clássico e 87% enfrenta dificuldade média. É importante destacar que não obtivemos percentual para difícil e extremamente difícil. Nas aulas de ballet, muitas vezes, as ações do professor determinam, de certo modo o sucesso de seus alunos. Cabe a ele conduzir a técnica fundamentada nos ideais artísticos do ballet, incentivando seu público a apreciar a arte e frente as dificuldades e situações que não se encaixam presentes na formação dos alunos, tenham motivação para enfrentar e prosseguir. (RODRIGUES; LIMA, 2011) O terceiro gráfico e representam a quarta questão que se destinou: Com base nas suas experiências, o ballet clássico nas suas aulas pode influenciar na definição de gênero dos participantes?

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Gráfico 3 - Influência do ballet clássico nas aulas de baby class na definição do gênero

Fonte: Dados da pesquisa (2017).

Diante dos resultados obtidos, 17% das professoras afirmam que o ballet influência diretamente na definição do gênero dos alunos do baby class, 33% alegam que intervém parcialmente e 50% garantem que dificilmente influência. Para justificar sua resposta o sujeito P1 diz que, “o que influência na verdade não é o baby class propriamente dito, mas sim uma sociedade hipócrita e preconceituosa como a nossa. O ballet em si, não deve ser alvo do preconceito, ele é uma arte como todas as outras e merece todo nosso respeito”. Para o sujeito P2, “quem dança, faz por amor, acredito numa identificação com a atividade e não vejo uma influência no gênero”. O sujeito P3 “a dança não influencia nessa questão de gênero.” O sujeito P4 defende que, “não é uma modalidade da dança ou do esporte que irá definir ou influenciar na questão de gênero do praticante.” Sujeito P5 acredita que, “se a criança já tiver no gene dela, a dança só irá afinar o gênero.” O sujeito P6, o ballet no baby class “é usada mais para uma base do clássico e não definição de gênero”. Assim a dança pode ser analisada como uma dentre as muitas práticas socialmente instituídas através das quais os corpos dos indivíduos são marcados por gênero. O ballet ainda é visto como uma prática exclusivamente feminina e, com isso, relacionado à feminilidade. É por esse motivo que, as aulas de ballet infantil continuam recebendo somente o público feminino, o que reforça na infância o estereótipo da bailarina no ballet clássico. (SANTOS, 2009)

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Para que não haja a influência do baby class na definição de gênero, sugere-se que os professores abordem também o ballet contemporâneo, não se baseando somente nos contos de fadas, para não firmar o ser menina a regra do discurso de gênero como sendo formada somente para ser progenitora, mas sim uma mulher multitarefa (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Segundo Mora, o ballet clássico confere a feminilidade ao ser relacionada à suavidade, à leveza, à delicadeza e à sensibilidade. Vale destacar que se trata de uma idealização, de uma possibilidade cultural. (ABREU, 2017) A quinta questão implica na opinião das professoras a qual modelo ideal deve ser seguido nas aulas de baby class, visto que as crianças já sofrem as influências midiáticas sobre a construção e o papel de cada gênero que devem possuir na sociedade. Gráfico 4 - Modelo ideal a ser seguido nas aulas de baby class

Fonte: Dados da pesquisa (2017).

No gráfico acima, verificou-se que 33% das professoras assinalaram o

ballet clássico, 17% alegam ser o ballet contemporâneo e 50% defendem ser o princípio aplomb o modelo ideal a ser seguido nas aulas de baby class. A vinculação do ensino do ballet no baby class a princesas e fadas é dada pelo princípio do aplomb, que ensina a técnica clássica e feminilidade com graciosidade e leveza, mas na forma que não gere cobranças, por mais que se utilizem outras referências nas aulas, as crianças não respondem tanto quanto aos contos de fadas. (SANTOS, 2009)

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É fundamental que nas aulas de baby class, o professor tenha um olhar diferente ao escolher o modelo a ser seguido em suas aulas, tendo responsabilidade de não usar exclusivamente referencias relacionado ao universo dos contos de fadas e ballet de repertório (WOLLZ; CERQUEIRA; MULLER, 2016). Devem ser oferecidas nas aulas de baby class elementos que iniciam as técnicas do ballet clássico, contudo quem ocupa o lugar de destaque das aulas são as brincadeiras e jogos, pois é na brincadeira que a crianças se adapta dos códigos culturais, apropriando-se do seu corpo e facilita o movimento no espaço. (LENGOS, 2007) CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo teve como asserção investigar as aulas de baby class, reconhecer o ballet clássico como atuação na construção do gênero dos praticantes, como são lidadas as situações que não se encaixam nas aulas e os padrões que podem ser observados e retratados nas aulas. Contudo, através observou-se que o ballet clássico nas aulas de baby class, pode levar ao aprendizado coexistente da técnica, assim como também fazendo parte na construção do gênero das bailarinas. Ao analisar os dados da pesquisa com as professoras, percebe-se em sua maioria não reconhecem o ballet clássico como influência na definição do gênero, mas como ferramenta de iniciação a técnica. Nesse processo foi identificada, a partir de um levantamento bibliográfico, a escassez de estudos que abordam a prática pedagógica do ballet clássico direcionada para crianças e evidências do ballet como composição no gênero dos praticantes. Desse modo, nesse trabalho possibilita aos professores de baby class, alunos da Educação Física e áreas afins, se apropriarem do conhecimento do ballet clássico associado à ludicidade, contribuindo para que os professores possam utilizar nas suas aulas o modelo ideal, trabalhando os

ballet contemporâneos. Deste modo novos estudos são necessários com intensificação no assunto para melhor compreensão, de acordo com cada tipo de contexto social, a fim de identificar a influência do ballet clássico na construção do gênero no baby class. The artistic practice of the classical Ballet the gender construction in Baby Classes Abstract: Dance is related to the language processes that participate in the cultural

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construction of the body, acting as a cultural pedagogy of gender, by which the social differences of gender are reproduced and through the representation of different ways of using the male and female body. Children's ballet is relatively new, which justifies the absence of an institutionalization with rules and norms similar to the other levels of ballet teaching. Therefore, the present research aims to investigate the influence of classical ballet in baby classes as a construction of the student's gender. The research's scenario was an academy of dance, in a private school in the municipality of Fortaleza (CE). It is a descriptive observational field study, longitudinally, with a qualitative and quantitative approach. Six baby class' teachers and 11 dancers effectively enrolled in the baby class participated in the research. For data collection, it used field diary and a semi-structured questionnaire composed of five objective and descriptive questions. The results indicate that most teachers do not recognize classical ballet as an influence in the definition of the gender. However, it observes that baby classes can lead to the coexisting learning of the technique, as well as being part of the gender's construction of the dancers. Keywords: Classical ballet. Gender. Baby class.

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Corpo, dança e etnia: vivência das danças tradicionais brasileiras na comunidade indígena Jenipapo-Kanindé Klertianny Teixeira do Carmo (UFC) 11 Marcos Antônio de Almeida Campos (UFC) 12 Arliene Stephanie Menezes Pereira (IFCE) 13 Resumo: O texto apresenta o relato de uma proposta de práticas corporais sensíveis representadas e valorizadas através da arte, na vivência de um trabalho junto a jovens da comunidade indígena Jenipapo-Kanindé, na cidade de Iguape (CE). O relato traz a denotação de revalorização de identidades por meio da dança e de corpos que fazem sua própria história no mundo. Nos anos de 2013 e 2014, alunos bolsistas vinculados ao programa de extensão (PROEXT) ‘Entre penas e contas”, proposto pelo Grupo Oré Anacã da Universidade Federal do Ceará (UFC), atuaram na comunidade promovendo oficinas semanais de danças tradicionais brasileiras. O programa buscou incentivar e promover as culturas negra e indígena através da imersão na realidade de outras culturas, buscando reconhecer elementos corpóreo-significativos, gestuais e musicais através do contato direto com sujeitos ligados às manifestações culturais. Como metodologia, os jovens indígenas construíram dinâmicas teórico-práticas juntos a dois bolsistas do programa de extensão, em 25 encontros, nos quais foram desafiados a pesquisar e praticar danças, enfatizando aquelas que tem influência étnica negra e indígena. Palavras-chave: Práticas corporais. Dança. Indígenas Jenipapo-Kanindé.

INTRODUÇÃO O corpo sempre foi objeto de estudos no campo da Educação e da Educação Física (BEZERRA; MOREIRA, 2013). “Quando estudamos e escrevemos sobre o corpo e suas questões epistemológicas, na perspectiva de pensar desafios para a educação, logo somos tomados por uma dificuldade, pois várias questões nos parecem escapar pela complexidade e abstração que suscitam” (ZOBOLI; ALMEIDA; BORDAS, 2014. p. 219). A corporeidade humana, sempre se apresentou como indagação e questionamento entre diversas áreas da ciência, como a filosofia, história, antropologia, sociologia, ciências da saúde e as artes. Em sua espacialidade própria, descontínua, o corpo disponibiliza

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Mestra em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: klertianny@gmail.com 12 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: marcosalmeidacampos@gmail.com 13 Mestranda em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora do Instituto Federal do Ceará (IFCE). E-mail: sephanie_ce@hotmail.com

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desde componentes físico-químicos à signos que definem a condição humana e as possibilidades de comunicação, que tem conformado o interesse de diversas disciplinas científicas, filosofias e modelos de educação. (NÓBREGA, 2006 p. 65).

O desafio está em pensar o corpo como campo de saberes polimorfos e transmissor da cultura, e enquanto totalidade dialética da existência humana. O corpo é a presença existencial do ser humano, e nos traz inúmeras significações corporais, experiências vividas e tessituras de corpos que fazem sua própria história no mundo. Os corpos-sujeito que buscam sua experiência do e no mundo. Os corpos-estesiológicos que vivem e sentem. Um corpo, simplesmente corpo. (SANTIN, 2001) Com as diversas mudanças políticas e sociais no cenário nacional, a questão do corpo e da cultura voltam à cena, como objeto de críticas, análises e intervenções controladoras. A realidade atual brasileira nos remeteria à questões político-partidárias sobre corpos acríticos em educação, em meio a ideias do projeto escola sem partido; falar-se-ia das críticas do corpo na arte, em meio a crianças e adultos que veem corpos nus como objeto artístico (tabu ainda mistificado na nossa sociedade); dos corpos e suas relações de gênero, e das discussões que nos embasaram recentemente com a vinda de Judith Butler (criadora da teoria Queer), sobre discussões do mito da ideologia de gênero na escola, dos beijos gays na mídia; do preconceito racial e da homofobia que anda ganhando cada vez mais adeptos em nosso país, e de negação das manifestações indígenas e afro-brasileiras. O corpo e a cultura sendo mistificados, marginalizados e manipulados através de ideologias que chegam a beirar o absurdo, mas que foram reproduzidas durante toda a história da humanidade. O corpo perdendo sua identidade frente a tecnologia e sobre a alienação humana. Assim entendemos que o corpo é o modo pelo qual a cultura é perpassada e apr (e) endida. As tradições culturais se acumulam sem quebras de continuidade. Elementos culturais uma vez inventados, passam de um indivíduo para o outro através do aprendizado. Eles são compartilhados de uma geração a outra. Qualquer ruptura na corrente do aprendizado levaria ao seu desaparecimento. (SANTAELLA, 2008. p. 46).

Como forma de dar um continuum a essas transmissões de saberes, o

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presente texto apresenta o relato de uma proposta de corpo sensível representado e valorizado nas artes, na vivência de um trabalho junto a jovens indígenas da comunidade Jenipapo-Kanindé, na cidade de Iguape (CE), compactuando com a revalorização de identidades por ora, muitas vezes esquecidas. Em 2013 e 2014, bolsistas vinculados a um programa de extensão ligado ao PROEXT, proposto pelo Grupo Oré Anacã 14, atuaram na comunidade indígena

Jenipapo-Kanindé, promovendo

oficinas semanais de

danças

tradicionais brasileiras. Como metodologia, os jovens indígenas construíram dinâmicas teórico-práticas juntos a dois bolsistas do grupo supracitado, em 25 encontros, nos quais foram desafiados a pesquisar e praticar danças, enfatizando as que têm influência étnica negra e indígena. Com o advento da tecnologia, que trouxe o acesso fácil à internet, a globalização propagada pela mídia e a pouca presença dos temas ligados às tradições em livros ou programas de televisão fazem com que as novas gerações venham a se desinteressar pela manutenção das tradições orais e ritualísticas. O estudo então, justifica-se pelo fato de em muitas comunidades indígenas haver uma tendência de desvalorização das tradições por parte de muitos jovens, inclusive para os rituais e danças típicas de cada etnia. PROEXT COMO ESPAÇO DE POSSIBILIDADES DE VIVÊNCIAS CORPÓREAS O Programa de Extensão (PROEXT) “Entre penas e contas” foi um programa que buscou incentivar e promover as culturas negra e indígena, alicerçando seu trabalho na dança popular brasileira por meio de três linhas de ação: capacitação de professores da rede pública de Fortaleza; oficinas de danças de ascendência negra e indígena para integrantes de escolas públicas e comunidades quilombola e indígena; e criação de um espetáculo para estas escolas e comunidades. Um dos projetos que se uniu a esta ação foi o Oré Anacã, grupo que tem seu funcionamento desde 2011, buscando por meio da dança popular a formação artística de estudantes universitários. O PROEXT foi uma possibilidade de ampliar a experiência dos estudantes em dança popular, para 14

Grupo de dança popular da Universidade Federal do Ceará (UFC), coordenado pelo Professor Marcos Campos.

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atuação como professores-pesquisadores desse processo. É interessante compreender que o programa contou com viagens de pesquisa in loco, com o objetivo de promover a imersão na realidade das outras culturas, na busca de reconhecer elementos corpóreo-significativos, gestuais e musicais através do contato direto com sujeitos ligados às manifestações, na participação de oficinas, visitas a eventos, dentre outros. Com este material, passava-se à experimentação gestual, montagem de propostas coreográficas, de figurinos e outros elementos cênicos que compõem o conjunto artístico da obra. Um dos frutos deste processo foi a montagem de um espetáculo, ao final de 2013, intitulado “Entre penas e contas” apresentado na comunidade Indígena juntamente com o grupo formado pelos jovens e o grupo da Universidade Federal do Ceará (UFC), Grupo Oré Anacã. Em 2014, foi feito o movimento inverso, os jovens foram trazidos da comunidade para a universidade para se apresentarem juntamente com o Grupo Oré Anacã para os professores que estavam participando da capacitação, culminando numa grande roda de conversa entre todos os envolvidos. Tanto no ano de 2013, quanto em 2014, foram selecionados 12 alunos bolsistas da UFC que atuavam em duplas nas escolas/comunidades escolhidas pelo próprio grupo de bolsistas, conforme aceitação da proposta apresentada. Buscaram-se comunidades indígenas mais próximas de Fortaleza (capital do Ceará) pela disponibilidade dos bolsistas para chegar ao local, os quais iam aos locais de possível atuação para contato e explicitação da proposta. Cada dupla de bolsistas tinha autonomia para desenvolver metodologias de ensino das danças tradicionais, partindo de um repertório básico préestabelecido e do contato com a realidade de cada local atendido. SOBRE CORPOS ÉTNICOS: A IMPORTÂNCIA DA VALORIZAÇÃO DA CULTURA AFROBRASILEIRA E INDÍGENA ATRAVÉS DA DANÇA

Apesar de tratarmos neste estudo de um projeto não-formal de ensino que lida com as práticas corporais e as artes, é importante destacar elementos que permeiam o meio escolar e que influenciam a sociedade, no que diz respeito à valorização das culturas. Neste panorama, as danças tradicionais, ao terem pouco espaço nas políticas de ensino e no cotidiano concreto das aulas e projetos, acabam encontrando descrédito ou pouco interesse na sociedade como

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um todo. Nossa memória cultural é muito rica, mas pouco valorizada, e acaba por se perder no meio escolar, muitas vezes sendo lembrada apenas em datas comemorativas. Historicamente, as danças populares se veem diminuídas frente a outros estilos de dança, como o balé clássico. Concordamos que o balé clássico é tão importante quanto qualquer outro estilo, mas a realidade mostra que as danças de rua, tradicionais, de salão, afro, dentre outras, encontram resistência e/ou pouco espaço nos meios educacionais. Oliveira (1991, p. 28) afirma que a “ideologia que acompanha o Balé é reforçada pelo fato da Dança Afro ser exercida por pessoas de menor poder aquisitivo e negras, por isto, uma ‘arte menor’”. Pode-se confirmar esta afirmação por uma simples investigação nas escolas de qualquer cidade, a partir da quantidade de escolas de balé em comparação com a quantidade de escolas de dança afro. A dança afro nas escolas, muitas vezes, funciona a partir de projetos implantados por professores negros ou por ações afirmativas de ONGs, ou como afirmado anteriormente em datas comemorativas esporádicas como o dia da consciência negra, por exemplo. Quando falamos em dança indígena, podemos categorizar uma quase inexistência de trabalhos que toquem este tema. Se observarmos a discussão acerca da Pluralidade Cultural, apontada nos Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), observaremos já na introdução a questão da disparidade de importância de certos conhecimentos em confronto com outros. A temática da Pluralidade Cultural diz respeito ao conhecimento e à valorização de características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no território nacional, às desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um país complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal. (BRASIL, 1997. p. 121).

O que se vê na prática é o desconhecimento, negação ou tratamento raso e/ou equivocado sobre temáticas ligadas às tradições populares e às culturas afro e indígena. Isto fica mais evidente quando se destaca a criação da Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade

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da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena’”, em que ainda se vê muito pouco os espaços tratando da temática. A lei indica a necessidade de trabalhar a cultura afro-brasileira e indígena em espaços educativos diversos, como política de valorização étnica e promoção do sentido de identidade brasileira. Tal lei traz as seguintes ordenações: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2008).

Esta Lei foi uma importante ferramenta de luta para a entrada ou reforço das temáticas afro e indígena na escola; entretanto, notamos que pouco se avançou em estudos e práticas, apesar de sabermos que é primordial o trabalho com a arte e da gestualidade corporal, a partir de elementos que auxiliam no desenvolvimento da identidade cultural e do senso artístico dos sujeitos. (BARRETO, 2004; MARQUES, 1999) A gestualidade ou os cuidados com o corpo podem e devem ser tematizados nas diferentes práticas educativas propostas nos currículos e viabilizados por diferentes disciplinas. O desafio está em superarmos o aspecto instrumental, que, em geral, caracteriza boa parte das abordagens sobre o corpo na educação. (NÓBREGA, 2005, p. 610).

A Carta do Folclore Brasileiro é o documento que regulamenta qualquer trabalho ligado às culturas tradicionais brasileiras, apontando a “[...] importância do folclore como parte integrante do legado cultural e da cultura viva, é um meio de aproximação entre os povos e grupos sociais e de afirmação de sua identidade cultural” (1995, p. 1). Tanto na perspectiva pedagógica quanto artística, a produção de trabalhos inspirados na dança popular, como um dos domínios do folclore, ajuda a aproximar os indivíduos daquilo que os identifica como pertencentes a um mesmo povo, mesmo que estas produções

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estejam geograficamente distantes. Os jovens indígenas da comunidade Jenipapo-Kanindé, com sua cultura própria repassada de geração a geração, reconhecem-se como etnia a partir de seus valores e rituais. Entretanto, ao terem contato com produções culturais de outros povos passam a se reconhecerem como integrantes de uma cultura mais vasta, uma cultura genuinamente brasileira. Passam a entender que sua cultura também é importante para outros sujeitos fora de seu entorno; compreendem que a troca de conhecimentos, o repasse desses saberes tradicionais, reforçam sua própria cultura, ampliando sua presença e afirmação na cultura brasileira como um todo. Além disto, vale ressaltar o caráter vivo e dinâmico da cultura que se mantém, se reconstrói, morre e renasce a partir dos anseios e intenções do seu povo. Como nos diz Melo (1996): [...] apenas através do movimento de valorização do ‘outro’ que se pode superar as antigas concepções de folclore como simples coleções de curiosidades, ou concepções que viam as práticas culturais das camadas subalternas como sombras das ruínas da cultura erudita. (MELO, 1996, p. 66).

Conhecer e valorizar o outro, assim como fazer-se reconhecido pelo outro, promove a retroalimentação das culturas. Ter contato com as produções culturais de outros povos, dentro do mesmo país, permite uma ampliação de nossa identidade. Nesta “escola da vida”, dialogando com meus semelhantes e com o diferente, que os jovens indígenas se sentem parte de algo maior, ampliando seus saberes e concepções de mundo. (STACANELA, 2010) Florestan Fernandes (1977) aborda a questão da educação e folclore, chamando a atenção para o quanto o folclore ajuda a construir sentimentos e valores simbólicos no indivíduo, a construir o “ser social”; a introjetar técnicas e conhecimentos que se acham objetivados culturalmente. Ou seja, adquirem-se experiências e possibilidades de atuação social, ajudando o sujeito a se ajustar no meio e a corresponder à expectativa do outro. Concretizar um programa como este, com qualidade e recursos materiais e cênicos condizentes com a grandeza da arte representada, abre caminhos para o desenvolvimento do respeito e da valorização das produções culturais negras e indígenas; forma artisticamente os componentes da equipe executora; aumenta

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a visibilidade das culturas tradicionais, em destaque a dança e as músicas folclóricas; promove a capacitação de multiplicadores destes conhecimentos; fomenta o interesse de crianças e adolescentes por temas tratados de forma rasa no sistema escolar e/ou com poucos recursos em comunidades quilombolas e indígenas; enfim, promove a concretização do acesso da cultura popular no meio erudito do sistema escolar e nos grupos sociais de comunidades muitas vezes

marginalizadas,

com

qualidade,

beleza

estética

e

da

pesquisa

fundamentada na experiência in loco. Todos ganham, principalmente os participantes diretos (alunos, professores e membros das comunidades), a cultura popular, em especial as culturas negra e indígena. JOVENS: SUJEITOS PROTAGONISTAS DA TRANSFORMAÇÃO Paulo Freire (1987) propõe uma perspectiva das ações culturais, não no sentido de sobrepor uma cultura sobre a outra, mas de ampliar seu repertório, a partir do momento que se parte do conhecimento anterior dos jovens e, posteriormente, vê-se aquilo que é representativo para o mesmo, não havendo desvalorização de sua cultura, mas a sua ampliação. Esta perspectiva de agir a partir da invasão cultural foi e é algo muito forte em muitos projetos puramente conteudistas, algo que pode interferir negativamente no processo de busca de autonomia deste jovem, inclusive de jovens indígenas. Como afirma Duarte Júnior (2001), há no Brasil um desprezo para com os conhecimentos provenientes das nações indígenas há séculos, graças à arrogância e ao sentimento de superioridade do branco colonizador para com os povos aqui instalados. Isto faz com que a dita superioridade branca, no arcabouço de seus conhecimentos eruditos, despreze ou destrua saberes milenares destes povos. A catequização dos tempos coloniais e a atual demonização da mitologia indígena e negra feita por alguns grupos evangélicos desprezaram um imenso repertório de conhecimentos sobre a utilização de plantas medicinais, sobre danças e lendas e sobre a tradição oral. Os meios de comunicação pouco ou nada apresentam estas tradições, e quando o fazem, usam, na maioria das vezes, a lógica do exótico ou primitivo ou ainda deturpando sua cultura. Ainda é muito recente a atenção dada às línguas indígenas e a formação de cursos pensados a partir das demandas destes povos. Com isto, podemos inferir uma realidade pouco motivante para jovens manterem e cultivarem suas

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tradições. Como aponta Stacanela (2010, p. 21), “[...] há um educativo para além do escolar, e os jovens aprendem fora da escola”, o que faz com que o tempo livre destes jovens possa ajudar a manter ou a quebrar representações, alienações e paradigmas. Vale ressaltar que a proposta de um projeto que busque o diálogo entre culturas é primordial, ainda mais se pensarmos que a “[...] cultura consiste num conjunto de normas, concepções etc. que são compartilhadas por um grupo de pessoas [...] através de um processo de interação” (GOTTLIEB; REEVES, 1968, p. 68). Isto reverbera a crítica que Paulo Freire faz acerca da invasão cultural. Como lidar com o ensino de danças tradicionais juntos a jovens indígenas, frente ao fato que estes jovens também possuem danças dentro de suas etnias como práticas rituais ancestrais? Como pode ser feito este trabalho, numa perspectiva de diálogo, onde ambos os lados podem aprender uns com os outros? (DES) CAMINHOS DE UMA PROPOSTA O grande desafio era encontrar uma comunidade indígena para desenvolver as atividades. Nisto, dois dos alunos bolsistas resolveram visitar uma comunidade que ficava há 46 km de distância da capital do Ceará, os Jenipapo-Kanindé. Iniciaram por meio de uma visita informal através do contato com a chefa do aldeamento, a cacique Pequena (como é conhecida a senhora Maria de Lourdes da Conceição Alves) e com os líderes juvenis, já que, eram o público alvo para o desenvolvimento das atividades. Com isso foi firmado um novo encontro, este mais formal, para mostrar a intenção do mesmo para toda comunidade (Ver figura 1). Dando início ao ciclo de atividades. O processo de planejamento e execução dessas aulas partiam da metodologia que os bolsistas escolhessem. Como não tinham experiência de prática de ensino das danças tradicionais, mas tinham experiência como dançarinos do grupo Oré Anacã e como acadêmicos do curso de Educação Física (um em Licenciatura e o outro em Bacharelado), buscaram seu caminho a partir dos seguintes questionamentos: “O que trabalhar com eles? Como fazer essas oficinas? Porque tais danças?”

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Figura 1 – Contato inicial mostrando a proposta do projeto para os jovens Jenipapo-Kanindé

Fonte: Acervo pessoal.

Como resposta para a primeira pergunta “O que trabalhar com eles?”, organizaram as possibilidades dentro das danças contempladas pelo programa, que eram inicialmente nove: Bumba-meu-boi de São Luís (MA); Maracatu, Caboclinhos e Coco de Recife (PE); Carimbó de Santarém (PA); Boi Bumbá de Parintins (AM); Afoxé e Samba de roda de Salvador (BA) e Congado – Dores do Indaiá (MG). E, posteriormente, outras cinco danças foram acrescentadas conforme solicitação do coordenador (Professor Marcos Campos) no curso de capacitação de professores: Xote nordestino, Reisado de Juazeiro do Norte (CE) e Danças gaúchas (Xote carreirinho, Balaio, Pezinho). Eles queriam oportunizar aos jovens todas as danças; no entanto, precisavam da opinião deles para trabalharem aquilo que sentiam e queriam. Como resposta para a segunda pergunta “Como fazer essas oficinas?”, os bolsistas começaram a refletir sobre um formato/metodologia de aulas, já que quando iniciaram sabiam praticamente muito pouco sobre o assunto, pois aprenderam apenas os passos básicos de algumas danças nas aulas do professorcoordenador. Um recurso utilizado, então foi a busca de vídeos na internet.

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Assim, o contato inicial dos jovens com a temática era feito por meio de uma conversa inicial sobre os conhecimentos que tinham a respeito da dança. Em seguida eram passados vídeos e, a partir daí, iniciava-se a oficina prática (Ver figura 2), na qual os jovens tinham contato com a base gestual e noções coreográficas gerais, utilizando os métodos de ensino global, parcial e misto. A cada encontro, embora fosse ensinado um ritmo diferente, sempre se retomavam os ritmos anteriores, para que assim percebessem as diferenças e similaridades. Figura 2 – Vivências corporais em dança feitas pelos alunos bolsistas com jovens Jenipapo-Kanindé.

Fonte: Acervo pessoal.

Como resposta para a terceira pergunta “Porque trabalhar tais danças?”, os bolsistas refletiram sobre os inúmeros benefícios que a dança trouxe para eles e sobre o que queriam oportunizar aos adolescentes, que era uma maior vivência corporal, além de aproximá-los de outras culturas, como a deles mesmos. Assim, eles também tinham uma prática corporal física e outra cultural, já que muitos desses jovens se encontravam em idade escolar e com tempo ocioso no contra turno.

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Frente a estas questões e resposta iniciais, vale destacar os conteúdos desenvolvidos. A primeira dança escolhida pelos jovens foi o Boi Bumbá de Parintins (AM). Em dois encontros, os jovens aprenderam coreografias oficiais dos bois Garantido e Caprichoso, sendo que houve grande motivação e excelente adesão, com cerca de vinte índios, a maioria mulheres. A partir do quarto encontro, os bolsistas encontraram quatro “ferrolhos”, problemas que tentaram impedir sua atuação (OLIVEIRA, 2001). O primeiro, choque de horário entre os bolsistas; o segundo, a falta dos integrantes aos encontros semanais; o terceiro, a resistência na mudança da dança, pois muitos queriam somente o mesmo, Boi Bumbá; e o quarto, a impossibilidade de os jovens realizarem encontros extra, sem os bolsistas. Apesar disto, foi dado prosseguimento às atividades, buscando minimizar estas questões que dificultavam bastante a atuação. Assim, na continuidade, foram trabalhadas danças como maracatu, frevo, carimbó, coco e cabocolinho. Dos vinte alunos iniciais, apenas seis continuaram até o fim destas aulas e com eles foi definido que a montagem coreográfica seria feita com o carimbó (Ver figura 3) e o cabocolinho (Ver figura 4). Ao final do processo, estas duas coreografias foram apresentadas na própria comunidade, obtendo uma reação positiva tanto dos jovens quanto dos outros índios. Figura 3 – Apresentação de Carimbó

Fonte: Acervo pessoal.

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Figura 4 – Apresentação do primeiro espetáculo - Dança caboclinhos

. Fonte: Acervo pessoal.

Para avançar na metodologia, desenvolveu-se um novo ciclo de oficinas para o ensino de danças, intitulado de Projeto (MU) DANÇA. As atividades foram desenvolvidas dentro de uma nova lógica, na qual a formação não tivesse a técnica como eixo principal, mas sim o processo. Utilizou-se como referência o conceito de emancipação de Ranciére (2002) e a teoria das inteligências múltiplas de Gardner (1995). O trabalho foi dividido em 4 fases: I) Fase de sensibilização: visualização e reflexão do filme “Billy Elliot”, por trabalhar com a perspectiva do gênero masculino na dança e a persistência para seguir nossos sonhos; II) Fase de desconstrução: criação de composições coreográficas baseada no repertório de passos-base já aprendidos; III) Fase de aproximação: incluiu-se roda de conversa no início (com temas do cotidiano) e no final (sobre a atividade do dia); a tarefa semanal de pesquisa sobre o ritmo ensinado e a produção da narrativa de vida de cada um disparada por esta frase “Quem é você? Quais são seus sonhos e tristezas? ”; e a última etapa, IV) Fase de expansão: introdução de outras danças como balé e a contemporânea, na busca de ampliar as possibilidades corporais deles. Com essa iniciativa, conseguiram estreitar os laços sem perder o

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respeito; houve uma melhora na assiduidade e se buscou incentivar a autonomia por meio da produção de trabalhos coreográficos feitos pelos próprios integrantes. Ou seja, de meros reprodutores dos conteúdos que eram passados em 2013, os jovens indígenas se tornaram protagonistas nas próprias produções coreográficas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Desenvolver atividades corporais que tematizem as culturas afrobrasileira e indígena torna-se primordial para a maior valorização da identidade de qualquer jovem, seja no ensino formal ou em locais que abram espaço para promover projetos numa perspectiva de ensino não-formal. As oficinas desenvolvidas na comunidade indígena Jenipapo-Kanindé partiram desta perspectiva na busca do diálogo, onde ambos os lados puderam se aproximar de culturas tradicionais, o que também abriu espaço para se pensar a própria tradição. Conhecer danças de influência indígena provenientes de locais distintos e, ao mesmo tempo, pensar as danças de sua comunidade, fez com que os jovens entendessem melhor o que os diferencia e o que os identifica com uma cultura ampla. E ainda com um amplo repertório de vivências intercorpóreas. Considerando a extensão do conceito de corporeidade, as diferentes disciplinas ou pedagogias, ao intervir sobre o corpo, precisam considerar que o corpo que tenho é também o corpo que sou e que os padrões de ser e de viver, colocados por nossa condição corpórea, são bem mais flexíveis que os dispositivos normalizadores das instituições. Assim, quem sabe por meio dessas práticas sociais possamos transgredir, impulsionados pela paixão, para compor uma nova perspectiva de vida, mais ética e mais estética. (NÓBREGA, 2005. p. 612).

A escolha do fazer pedagógico deste projeto pautou-se nas danças tradicionais, entretanto, fica evidente que é possível trabalhar esta temática a partir de diversos caminhos educativos. Vale ressaltar que o caminho criativo do mesmo, inicialmente concretizado a partir de uma metodologia préestabelecida, transformou-se numa trajetória conjunta, de corpos entrecruzados, em que todos os sujeitos envolvidos tornaram-se agentes do conhecimento.

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Body, dance, and etnia: experience of traditional brazilian dances in the JenipapoKanindé indigenous community Abstract: The text presents the report of a proposal of sensible corporal practices represented and valued through the art, based on the experience of a work developed with young people of the indigenous community Jenipapo-Kanindé, in the city of Iguape (CE). The report reveals a denotation of revalorization of identities through dance and bodies which make its own history in the world. Where, in 2013 and 2014, scholarship students linked to the "Between Feathers and Accounts" extension program (PROEXT), proposed by the Oré Anacã Group of the Federal University of Ceará (UFC), worked in the community promoting weekly workshops of traditional Brazilian dances. The program aimed to encourage and promote black and indigenous cultures by immersion in other cultures' reality, seeking to recognize body-significant, gestural and musical elements through direct contact with individuals linked to cultural manifestations. As a methodology, the indigenous youths built theoretical and practical dynamics together with two scholarship students in 25 meetings, in which they were challenged to research and practice dances, emphasizing those with black and indigenous ethnic influence. Keywords: Corporal practices. Dance. Indigenous Jenipapo-Kanindé.

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Corpos negros nos aplicativos de relacionamentos gays: entre discursos, dinâmicas e subjetivações Delton Aparecido Felipe (UEM) 15 Samilo Takara (UNIFAMMA) 16 Resumo: O presente texto analisa como os corpos dos homens negros são apresentados nos aplicativos -apps- de relacionamentos gays. Utiliza o Grindr e o Scruff que são dois dos aplicativos de dispositivos móveis populares no Brasil. Os apps promovem encontros afetivos e/ou sexuais por meio de diálogos por mensagens, uso de imagens fotográficas e permite o mapeamento de geolocalização dos usuários em rede. Uma das principais características desses apps é visibilizar a diversidade de corpos em perfis em busca de encontros. Utiliza-se para análise a descrição/apresentação oferecidas pelos usuários que se identificam como negros em seus perfis no intuito de problematizar a relação entre visibilidade, sexualidade, objetificação e empoderamento. Como lente teórica adota conceitos vinculados aos Estudos Culturais com colaboração dos Estudos Foucaultianos como, identidade, representação, discurso e biopolítica. Conclui que para entender a forma como esses homens negros se apresentam é necessário discutir o impacto que a interseção entre a raça, sexualidade, gênero como discursos constitutivos da sociedade brasileira tem sobre a formação identitária dos homens negros gays. Palavras-chave: Homens negros gays. Aplicativos de relacionamentos. Formação identitária.

INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo problematizar como homens negros se apresentam em aplicativos (apps) de relacionamento gays. No decorrer do texto realizamos uma discussão ancorada nos Estudos Culturais com colaboração dos Estudos Foucaultianos. Partimos do pressuposto que para entender a forma como os corpos dos homens negros se localizam na teia discursiva veiculadas nos apps de relacionamentos gays é necessária a intersecção entre raça, sexualidade e gênero como elementos constituintes e constituidores das representações das homossexualidades masculinas. Os pesquisadores Couto, Souza e Nascimento (2013, p. 3) argumentam que os aplicativos de relacionamentos gays são “vitrines virtuais” em que os corpos ficam dispostos para consumo. Essa compreensão sugere leituras e interpretações acerca da cultura homossexual, do erotismo e das percepções de corpo, desejo e discursos das novas mídias sociais como os apps instalados nos celulares e/ou computadores. Os aplicativos de relacionamento facilitam 15

Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: ddelton@gmail.com 16 Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor da Faculdade Metropolitana de Maringá (UNIFAMMA). E-mail: samitakara@gmail.com

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encontros de parceiros sexuais, afetivos e/ou amorosos. Nestes processos, os apps ensinam aos que ali estão, formas de ser, pensar e agir, no entanto, é preciso ressaltar que os modelos de condutas instituídos nos apps não estão desvinculados de uma construção sócio histórica. Os apps escolhidos para um estudo exploratório foram os Grindr e

Scruff, pois de acordo com Couto, Souza e Nascimento (2013) são parecidos em possibilidades de interação, organização de perfis e interesses disponíveis; os dois aplicativos oferecem um serviço de contatos por geolocalização e dispõem perfis por proximidade geográfica – ou no contato direto com outros perfis – entre diferentes usuários que podem ou não se localizar próximos dos interlocutores. Ressaltamos que entendemos por estudos exploratórios, aqueles estudos que visam delinear a temática que está sendo investigada, fornecendo pistas para o encaminhamento da pesquisa, a seleção de sujeitos ou fontes, ou mesmo a revisão das hipóteses inicialmente levantadas. Também são dispostas nos aplicativos Informações como distância, etnia, idade, altura, peso, interesses e grupos de socialização 17. Essas características são atributos que podem ser visibilizados e disponibilizados por interesse do usuário em registrá-las e disponibilizá-las nos perfis. Ao traçarmos uma perspectiva sobre os contatos nos espaços dos apps também verificamos que as relações sejam sexuais, amoras e/ou afetivas são mediadas por esses marcadores culturais como peso, altura, raça e grupo que pertence dentro da comunidade gay, o que os aplicativos chamam de “tribos”: bears, malhados, magros, novinhos, pai, barbies e vários outros grupos disponíveis para escolha do usuário. Registramos que os grupos de socialização – ou as tribos – são características aparentes em diferentes grupos na sociedade. No caso dos grupos pertencente à comunidade gays, temos uma relação de atração/repulsão que é desenvolvida por esses grupos. O Scruff, por exemplo, é um aplicativo que utiliza diferentes nomenclaturas para as tribos, mas tem predominantemente 17

Por grupos de socialização, entendemos as chamadas “tribos” comuns aos grupos que pertencem a cultura LGBT (Lésbica, Gay, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Esses grupos são marcadores característicos por aspectos físicos, intelectuais, afetivos e/ou sociais que apresentam diferenças e registram aspectos de interesse e/ou desinteresse entre os sujeitos do grupo.

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perfis que estão relacionados às tribos dos bears18. Outros grupos são registrados por diferenças culturais, sociais ou mesmo aspectos corporais que podem ou não ser características que delimitam o grupo. Assim como o Scruff, o Grindr também atende a essa demanda de categorizar os grupos a partir de suas características e preferências. O Grindr foi criado em 2009 pelo jornalista israelense, residente nos Estados Unidos Joel Simkhai, que afirma que o aplicativo foi desenvolvido com a intenção de levar homens gays a conhecerem outros homens gays o mais próximo possível19. Outra característica que chama atenção é o próprio do app

“Grindr” que significa moedor em inglês. O que faz que autores como Couto; Souza e Nascimento (2013) afirmem que em aplicativos como esse Cada sujeito pode moer e se deixar moer no mercado dos desejos como quiser, como acontece com os vários grãos de café. Cada um pode misturar os grãos e obter o café que quiser. Só que ao invés de café, as pessoas se tornam moedoras de afetos, de amor e sexo, explicou Simkhai em entrevista a G Magazine. (COUTO; SOUZA; NASCIMENTO, 2013, p. 4).

Até meados 2012 o Grindr era o app mais popularizado no Brasil, fazendo com que o país fosse o de acessos na América do Sul, posto que foi perdido para o Scruff. O app foi desenvolvido em 2010 pelo norte americano Johnny Skandros Scruff e também teve grande adesão de homens gays e bissexuais brasileiros. Padilha (2015) afirma que o Scruff se destacou em relação a outros aplicativos a partir de 2010 por enfocar na imagem convencional do gay-urso, ou bear, contendo imagens de homens fortes, fisicamente robustos, vestindo trajes em couro ou jeans, com mais de trinta anos e peludos, mas sem fechar espaço para outros públicos, perfil que de acordo com o autor está mais próximo do imaginário do homem gay latino e brasileiro que por anos foi alimentado pela indústria gay. Outro fator que devemos considerar é que a interface do Scruff em seu início comparada ao Grindr era de mais fácil interação. A utilização dos apps permitiu o contato entre homens de diferentes 18

Ursos, em inglês. Disponível em: <http://igay.ig.com.br/2013-03-05/joel-simkhai-criador-do-grindr-seique-e-complicado-conhecer-outros-homens.html>. Acesso em: 24 jan. 2018. 19

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contextos sociais, possibilitaram falar sobre os seus desejos, assim como intensificaram a trocar imagens e alimentar as suas fantasias. A interação entre as pessoas, mediado pelos aplicativos colocou em circulação de uma forma sem precedente os desejos sexuais, amorosos e afetivos construídos historicamente que estão vinculados à identidade dos sujeitos que navegam por essas novas mídias, como a preferência por um determinado tipo corpo, formato de genitália e mesmo cor da pele. Couto, Souza e Nascimento (2013, p. 14-15) visibilizam que estes aplicativos registram uma ideia de que “[s]er consumível se tornou a maior fonte de gozo”. Assim, entendemos com base nos/as autores/as que estes corpos apresentam diferentes contextos, sugerem práticas de desejo e prazer e sugerem uma lógica de sociabilidade respaldada pelo consumo e pela visibilidade de corpos. Nas palavras dos/as autores/as, “[e]sses modos de viver apontam pedagogias de excitação e gozo, revelam os nossos segredos em triunfantes conexões humanas breves e, por isso mesmo, cheia de encantos”. Entre essas diferentes formas de situar os corpos e os desejos, os aplicativos nos interessam por registrar práticas subjetivas que foram educadas, constituídas

e

que

produzem

sentidos

e

significados

na

sociedade

contemporânea. Entender os deslocamentos, as incitações e as produções de sentidos que perpassam esses perfis, suas trocas e interações nos sugerem indicações

de

possibilidades

para

pensar

a

masculinidade

gay

no

contemporâneo e as relações entre sexualidade, gênero e raça. Kimmel (1998) nos apresenta a complexa relação de produção das masculinidades e suas significações atribuídas no processo de relação entre diferentes grupos sociais, políticos, econômicos e que perpassam a estrutura raça/etnia, gênero e sexualidade por registrar que existem elementos que são demarcados culturalmente e formulam possíveis valores, sentidos e significados atribuídos na sociedade contemporânea. [...] as masculinidades são socialmente construídas, e não uma propriedade de algum tipo de essência eterna, nem mítica, tampouco biológica [...] variam de cultura a cultura [...] variam em qualquer cultura no transcorrer de um certo período de tempo [...] variam em qualquer cultura através de um conjunto de outras variáveis, outros lugares potenciais de identidade e [...] variam no decorrer da vida de qualquer homem individual. (KIMMEL, 1998, p. 105).

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Desse modo, a rede de homens que sociabilizam está marcada por valores culturais e nos aplicativos Grindr e Scruff são exigidos dados como o usuário precisar de um acesso. É feita uma conta com dados como login, e-mail e senha. Após essas prerrogativas, somos convidados a constituir um perfil. São escolhidas informações que visibilizem aspectos físicos, sociais, culturais, políticos, econômicos e afetivos/sexuais. Esses elementos são localizações que apresentamos no perfil para sermos colocados às vitrines. Feitas essas visibilidades, somos passíveis de sermos escolhidos por muitos rostos, corpos, imagens disponíveis na rede. A rede de sujeitos que estão em sociabilidade nesses aplicativos produz diferentes (in) visibilidades. Entretanto, como nos avisa Silva (2009, p. 9), “[...] o sujeito vaza por todos os lados”. Nesses gotejamentos de subjetividades, percebemos a potencialidade teórica que nos sugerem os Estudos Culturais. Os Estudos Culturais sobre raça e etnia denunciam, de forma insistente, as relações espúrias entre, de um lado, o sujeito que é privilegiado no discurso e nas instituições dominantes e, do outro, o homem branco, de ascendência europeia. A análise pós-colonialista, por sua vez, flagra o sujeito racional e iluminado em suspeitas posições que denunciam as complexas tramas entre desejo, poder, raça, gênero e sexualidade em que se vê, inevitável e inequivocamente, envolvido. Reunidas, essas teorias mostram que não existe sujeito ou subjetividade fora da história e da linguagem, fora da cultura e das relações de poder. Sobra alguma coisa? (SILVA, 2009, p. 9-10, grifo nosso).

Nas sobras do processo de subjetivação, os perfis de usuário tornam-se elementos a serem escolhidos. Em nossas leituras percebemos que existem perfis que utilizam do que foi constituído na linguagem e na cultura histórica como elementos de valorização, empoderamento e práticas de visibilidade, bem como, também, aparecem perfis que utilizam das estratégias de objetificação, do discurso hegemônico e dos valores de uma sociedade machista, falocrática, patriarcal, misógina e racista para interagir nos aplicativos. HOMENS NEGROS GAYS NO MUNDO VIRTUAL: PERFIS, DISCURSOS, IMAGENS E DINÂMICAS

Os homens negros ao se apresentam nos apps de relacionamento gay estabelecem uma

prática

de representação

identitária que

sedimenta

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significados, estabelece atributos físicos e culturais e defini papéis sexuais, que muitas vezes são naturalizados no decorrer da história. Como argumenta Hall (1996), as práticas de representação de identidade implicam em posições de

enunciação. Ao nos referirmos às práticas sexuais dos homens negros gays nos remetemos às categorias sexuais que podem referir se àqueles homens que fazem sexo com outros homens, e cada uma delas pode implicar em aspectos identitários particulares e descontínuos. Utilizamos as categorias “homossexual” e “gay” basicamente como sinônimas, apesar de estarmos cientes que há significações sociais diferentes para os termos. Trabalhos como o de Green e Trevisan (2000) e Fry e Macrae (1983) demonstram que as discussões sobre sexualidade e as caracterizações da homossexualidade são produzidas nas relações históricas e suas significações atribuídas ao contexto contemporâneo. Por escolhermos o referencial dos Estudos Culturais nos dispomos a reconhecer nos aspectos históricos e políticos como foram significadas as diferenças de raça/etnia e sexualidade, na cultura brasileira. Os corpos de homens negros geralmente fetichizados são alvos de significações sociais que geralmente se relacionam com virilidade, força, violência, animalidade, entre outros. Essas significações estão dentro de uma lógica política que, ora é utilizada para processos visibilidade, ora para processos de objetificação e também processos de empoderamento de identidade.

A maioria da literatura acadêmica que se dedica a tratar das

temáticas gays, a visibilidade de corpos e práticas homossexuais entre homens ou os lugares possíveis das práticas sexuais, por muito tempo localizou o corpo negro como distante da homossexualidade. [...] os negros iniciavam as primeiras investidas para discutir o racismo, cultura e organização da população negra, fora do círculo de ferro dos partidos e centralismos da velha esquerda [...] Se, para essa esquerda, a sexualidade e o racismo eram temas incomodamente discutidos fora dos parâmetros da luta de classes (ou “luta maior”, em sua gíria), o aborto podia criar desagradáveis atritos com a Igreja Católica progressista, sua aliada. [...] as chamadas “minorias” apresentavam temas espinhosos. E, para nós das “minorias”, a sensação era de estar prensados num círculo de ferro, à direita e à esquerda. (TREVISAN, 2000, p. 338).

No excerto apresentado pelo autor e nas leituras de Green (2000) e Fry e

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Macrae (1983) a homossexualidade de homens negros fica silenciada e/ou é discutida em contornos distantes das pautas gays. A apresentação da figura emblemática do empoderamento gay e dos enfrentamentos das lógicas oferecidas, como Madame Satã, são trazidas como ícone de resistência, mas sua negritude e/ou homossexualidade não abrem espaços para criarmos condições de problematizar a virilidade, a masculinidade e os sexismos que incidem sobre esse grupo. Existe uma lógica do corpo negro como ativo, viril, imenso, dominador e nos distanciamos de uma oportunidade de problematizar como a raça/etnia, gênero e a sexualidade ficam relegadas às distâncias das problematizações conjuntas. A interseccionalidade também afeta outros estudos, como as lesbiandades negras e outras formas de ser sujeito de gênero/sexualidade e raça/etnia em nossas sociedades, porque historicamente o corpo negro e as práticas homossexuais são visibilizados como incoerências ou não existente nas leituras dessas discussões. Uma das estratégias que propomos nesse texto para entendermos como a homossexualidade negra discursa sobre si nos apps de relacionamentos afetivos ou sexuais, é considerarmos que o conceito de raça tem sua vigência histórica, que também perpassa por determinação da divisão social do trabalho, do pensamento, do poder político e econômico estabelecendo marcas no tecido social na atualidade como argumentam Fanon (1983) e Guimarães (1999). O homem negro gay é um habitante de dois mundos distintos, o da homossexualidade e o da raça. A sua negritude se constitui por meio da normalização do negro heterossexual, representado pela emblemática virilidade de sua força física, agressividade, violência, grande apetite sexual e pênis potente. A imagem do homem negro, desse modo, remete à perspectiva do herói. Um homem inabalável, que protegeria a si mesmo e aos subalternos mais frágeis (mulheres e crianças) contra a opressão racial. Ou remete a um ser bestial que, potencialmente, aplicará sua agressividade e violência contra o branco que o violenta e humilha e contra aqueles mais frágeis, mulheres e crianças que deveria proteger. (ROSA, 2006) Dentro dessa lógica, o negro homossexual é tido como incapaz para salvar a raça, tanto quanto é incapaz de proteger os mais fracos. Ao contrário, representa a covardia, a fraqueza, a fragilidade e mesmo uma traição ao

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estereótipo subumano assimilado pelo próprio homem negro. Afinal, como explica Kimmel (1998, p. 116) “[o]s homens gays são bichinhas passivas e efeminadas assim como são sexualmente insaciáveis e predatórios”. Embasados nesta representação, percebemos que os corpos negros são visualizados em outra dinâmica que tende a não fazer sentido nas representações dos gays negros nos

apps. O homossexual negro experimenta também uma negação no mundo gay, seus clubes, boates, espaços de confraternização, trajetórias pessoais modelares, imagens, mídia LGBTIQ, sua perspectiva de poder e, o que é muito importante, padrões de consumo, sempre têm como referência o homossexual branco. Ou seja,

ocorre

uma

afirmação

da

identidade

homossexual

que

passa

necessariamente pelas perspectivas definidas por um mercado de consumo voltado para o público homossexual urbano, branco, jovem e integrado às relações de produção e trabalho estabelecidas pelo mundo branco, heterossexual hegemônico. Os corpos negros gays que conseguem entrar nesse mundo poderoso do consumo são induzidos a adotar um referencial branco. O homossexual negro, portanto, é deslocado do padrão identitário aceito, e dessa forma cede à pressão por aceitação social dos homossexuais, desde que estes sejam brancos ou embranquecidos. Evidenciar os discursos desses sujeitos duplamente marginalizados, ao se apresentarem nos aplicativos de relacionamento gay significa visibilizar as estratégias discursivas e não discursivas que os homens negros gays utilizam para conseguir um lugar em dois universos. Entendemos, tal como Foucault (2016, p. 71-72) “[...] o papel da escrita é essencialmente um papel de colocação a distância e de medida da distância”. Assim, as localizações estabelecidas neste texto sugerem formas de percebermos os corpos negros nas relações estabelecidas pelos aplicativos. Visualizar esses perfis é uma forma de indicar sentidos acerca das narrativas apresentadas sobre esses corpos, suas estratégias de visibilidade, as práticas de corpo e as condições de consumo que estes suportes nos sugerem. Nesse sentido, a constituição de imagens do corpo como prática de visibilidade por meio dos aplicativos também sugere trajetos acerca da corporalidade negra gay em nossa sociedade. Em verificações feitas nos

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aplicativos no decorrer do mês de março de 2017 em uma região do interior do Paraná20, encontramos 7 perfis. Desses, um dos perfis não apresenta nickname, mas apresenta a frase no perfil “No caminho te explicou”. Há detalhamentos sobre altura, peso, porte físico, posição (se tem interesse por ser ativo, versátil e/ou passivo) e sobre o que busca. Os outros dois perfis apresentam nickname, também tem dados como o primeiro perfil. No perfil de Mr., ele tem por descrição a palavra “go”, em inglês, ir e o Bundudo que apresenta na descrição características corporais: “Bonito, Roludo, Bundudo, sarado. Com local. Curto caras discretos e higiênicos. Obs. Caras pauzudos que aguenta fuder são bem-vindos”. Além dessa apresentação, há altura e peso descritos. O perfil de Alan 20 traz a seguinte descrição “Versátil + ATV, procuro algo sério e novas amizades, ou só ficar, sem foto nem chama. Gosto de rabudos, porque padrãozinho não aceita levar fora? Vaza discreto fora do meio, aqui não tem biscoito para vocês. Sou Negro, nem moreno nem mulato” (sic). Ainda temos os perfis 20 cm grosso que enuncia o seguinte texto “Macho discreto se for para fica de mimi nem perca seu tempo não curto enrolados” sic, temos o Feio Fudedor 28 É macho? Obediente? Aguenta uma surra de pica? Mamar, levar tapa, mijada. Ter o rabo esfolado? Se curte entre em contato. Procura gato? Vaza! Sou cachorro, não curto miado! Bora marcar a cachorrada?” (Sic) e ainda temos o Dotado de Fora 27. Os perfis no Scruff e Grindr, por vezes, não apresentam a informação etnia. Diferente do caso de homens negros nessa informação é quase sempre publicizada e reforçada, a visibilidade dessa característica e a constituição de um imaginário sobre o corpo negro como uma performance viril, forte e, por vezes, violenta. Existe uma incitação ao sexo como prática que precisa ser dificultosa para mostrar que o corpo negro precisa ser vencido em uma disputa, 20

Faz-se importante ressaltar que a população negra (soma de pretos e pardos) no Paraná é, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2016, é de 34.25%, uma das menores do Brasil. A cidade realizada a pesquisa, da população negra é 25,7%. Esses dados são importantes porque os apps utilizam a tecnologia de geolocalização, o que faz com que o número de perfis de homens negros gays encontrados possam ter uma variação significativa de região para região de acordo com o percentual de negros e negras.

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tal como os perfis que mencionamos. Essas características sugerem uma leitura cultural sobre corpos negros gays nesses aplicativos. A indicação de um corpo preparado para a disputa sexual e que seja forte e viril são indicativos nessas afirmações. Visibilizar essa caracterização é uma forma de vislumbrarmos elementos da cultura machista na leitura atuando nestes aplicativos. Nosso intuito neste trajeto não é o de julgar ou avaliar a condição de posicionamento, as interações e/ou outras possibilidades da masculinidade homossexual negra, neste momento. Esses perfis são constituídos em condições potenciais para percebermos a teia complexa de valores estabelecidos. Bundudo convida “caras pauzudos”, também se intitula por “pauzudo”, mas seu nickname sugere foco para a posição passivo no sexo entre homens. Existem caminhos possíveis em uma análise deste e de outros perfis. O que fica nítido neste processo é a constituição da leitura de corpos que importam, a visibilidade do corpo negro e as possibilidades de interação entre homens nesses aplicativos. As potencialidades deste estudo, ainda em andamento, nos sugerem como a sociabilidade e a leitura dos corpos de homens negros também se engendram ao biopoder e nos sugerem a leitura da masculinidade homossexual negra como também produzida no contexto da cultura, da política e da sociedade contemporânea. Zago (2013) em seu estudo sobre a sociabilidade e as práticas curriculares e educativas de corpos masculinos em um site de relacionamento gay também

percebe esses elementos complexos na

constituição

da

masculinidade e de suas formas socialização. Entendendo o corpo como currículo, o autor situa as dinâmicas de valoração e desvalorização nas relações e interações entre homens mediados por uma rede de relacionamento. O “estereótipo gay” funciona, sobretudo, no, através do e para o corpo, como se o corpo-que-importa fosse a assunção de tudo aquilo que é pertinente de ser mostrado, e como se os anticorpos fossem a materialidade que precisa ser subsumida e escondida enquanto algo não pode, nem deve ser conhecido. (ZAGO, 2013, p. 155).

Essa lógica faz sentido ao percebermos que o anticorpo tem um viés produtivo nas relações homossexuais. Fugir das representações que nos colocam como sujeitos não interessantes para as práticas afetivas e/ou sexuais nos

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espaços dos apps é uma das características que encontramos nos perfis. “A afeminação é da ordem do insuportável”, como explica Zago (2013, p. 195). Os perfis que localizamos não se aproximam em nenhum momento da feminilidade, pelo contrário, vão estabelecer uma lógica de virilidade que sustenta a relação homoerótica no contemporâneo, por meio dos valores culturais enquadrados na sociedade. CORPOS: RAÇA/ETNIA, PESO, ALTURA, CENTÍMETROS E OUTROS VALORES CULTURAIS

Avisados por este flerte histórico com as relações raça/etnia e gênero/sexualidade na história da homossexualidade no Brasil, recorremos a Trevisan (2000, p. 472) para vislumbrar que “[...] ser homossexual reduz-se, lamentavelmente, a fazer sexo”. Assim, uma lógica do corpo gay é sustentada em diferentes perspectivas e favorece a construção de perfis de desejo que registram como a homossexualidade tem sido infiltrada por valores sociais, culturais e políticos que invisibilizam as problemáticas que aqui incitamos. Esses movimentos históricos e culturais geram o que Zago (2013, p. 124) caracterizou como “corpos-que-importam”, ou seja, corpos produzidos nos valores machistas, misóginos, patriarcais, falocráticos, brancos, eurocêntricos e consumíveis. Esses corpos, infelizmente, hierarquizam a relação de desejo e prazer e sustentam uma valoração denominada pelo autor de anticorpos. Seriam aqueles que “não se conformam às regulações da coerência entre sexo-gênerosexualidade, de geração, de morfologia corporal, de estética, de raça/etnia, entre outras” (ZAGO, 2013, p. 124). Os perfis desses aplicativos analisados nos oferecem lógicas que regulam essa relação entre importantes/descartáveis e objetificados/empoderados. Em uma lógica de consumo, as vitrines nos oferecem diferentes corpos, rostos, performances, tamanhos genitais, imagens pornográficas e/ou eróticas que localizam o desejo como um produto da lógica do consumo. Esse consumo está marcado, também, pelo funcionamento de uma estrutura dinâmica constituída pela ideia de um corpo que supere a biologia como aparato, um corpo pósorgânico. (SIBILIA, 2002) Se nos tornamos sujeitos passíveis de um sistema biotecnológico, digital e informatizado, nossos corpos e suas imagens também são criados em um “[...]

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aperfeiçoamento permanente de tais ferramentas foram obtidos resultados diversos, frutos das constantes lutas, resistências e negociações entre saberes, poderes e prazeres” (SIBILIA, 2002, p. 10). A noção de corpo-que-importa também é uma formulação que sugere uma lógica produtiva que nos incita a valorar no sistema de consumo os corpos que nos interessam, porque somos educados por essa dinâmica produtiva. A constituição desses corpos, os diversos artifícios imagéticos e/ou corporais são produzidos para que os corpos regulem um sistema visual. Concomitante a este movimento, esses perfis produzidos precisam ser visibilizados, desejados, cobiçados para que seus valores/produtos se tornem passíveis de valor social. Como nos explica Sibilia (2002, p. 34), “o consumidor passa a ser, ele mesmo, um produto à venda”. Assim, a autora retoma as discussões feitas por Foucault (2014, p. 213) acerca do biopoder que possibilita ao/à humano/a de “fazer a vida proliferar, de fabricar algo vivo, de fabricar – no limite – vírus incontroláveis e universalmente destruidores”. Não só apenas técnicas biotecnológicas, mas o corpo e a subjetividade tornaram-se processos contínuos e, desse modo, o imperativo produtivo sobre os corpos, suas marcas e seus valores tornaram-se passíveis de consumo de sentidos, significados, práticas e valores que transformaram as formas de viver e as resistências em “ slogans publicitários” comercializáveis (SIBILIA, 2002, p. 170). Como apresentado nos perfis selecionados vimos que a maioria destes chama atenção para o tamanho de seu pênis, e como afirma Silva Júnior (2011, p. 53), a “identidade sexual do homem negro é exaltada pelo modelo hegemônico, como reprodutor, viril, bem-dotado”, ou seja, o pênis grande é objeto de desejo de homens e mulheres, já que no imaginário do senso comum, os homens negros têm um desempenho sexual considerado acima da média. A sexualidade do homem negro estaria localizada na estrutura falocêntrica, o que o posicionaria como superior aos homens de outras raças do ponto de vista sexual, o que para os sujeitos dos perfis analisados é motivo de empoderamento, tornando seus corpos desejáveis. Desse modo, discutirmos a relação entre raça/etnia e gênero/sexualidade é um modo de indicarmos localizações, estratégias e formas de atuar na constituição de leituras acerca das condições contemporâneas e também são

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marcadores sociais das subjetividades que permeiam as imagens e os corpos dos homens negros gays da sociedade. Nos 7 perfis que passamos, encontramos elementos que significam a constituição de corpo dos homens negros gays dentro de uma lógica de masculinidade que favorece o desejo por uma representação viril, forte e violenta. Importante compreendermos que essa lógica não foi construída nos

apps, ela só ganhou potencial em sua difusão, visto que essa é uma característica das novas mídias sociais, devido a sua interatividade. Souza (2009) argumenta que no decorrer do processo histórico e de ocidentalização, a masculinidade negra se tornou alvo de preocupações por parte da branquitude, principalmente por parte de intelectuais das mais diversas áreas do pensamento social, posto que a masculinidade negra se encontrava e ainda se encontra associada ao perigo, ameaça, exótico, violência, estranho e dentre outros sinônimos, passando, com isto, a ser necessário estudá-lo, dissecá-lo e, consequentemente, aprisioná-lo para melhor compreendê-lo e contê-lo. Desde o momento em que os europeus fizeram os primeiros contatos com o continente africano, o pênis negro se tornou o ponto de referência das relações que seriam estabelecidas, e a partir daí, entre homens negros e brancos. O pênis negro foi medido, pesado e dissecado por diferentes cientistas, sendo guardado em recipientes com formol e exibido por toda Europa, causando ao mesmo tempo espanto e desejo. (FRIEDMAN, 2001) A intelectual norte americana Hooks (2003) diz que esta concepção reflete inúmeras problemáticas, tais como as questões de poder e subordinação atreladas ao simbolismo do órgão masculino, e aqui cabe ressaltarmos que ao falarmos dos corpos negros, a referência da hiperssexualização sempre se dará pelo enfoque no falo, reduzindo o homem negro gay a um espaço de objetificação e animalização, e assim retira desse qualquer possibilidade de humanidade, posto que este homem seria apenas “um pênis”, o que leva os homens negros gays que habitam os apps a se reduzirem a um pênis para ser consumido, o que fica evidente na maioria dos perfis analisados. Como afirma Fanon (2008) o homem negro não é um homem, uma vez que, no imaginário ocidental, antes de ser homem ele é negro e como tal não tem sexualidade, este negro tem sexo. Portanto, a construção da masculinidade negra enquanto sinônimo de um animal é perceptível e representada nos mais

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diferentes contextos, tais como no saber científico, na literatura, telejornais, jornais, rede sociais, propagandas. Estes espaços de socialização garantidos pelos apps, tornam-se também territórios de uma normalização. A feminilidade, a delicadeza, a presteza e a gentileza não são valores culturais bem vistos em um espaço que registra a ideia de que para ser pertencente a este espaço, é necessária a rudeza e um agir bruto. Percebemos também que a lógica dos apps é uma oportunidade para o encontro casual, para trocas de imagens e textos que incitem e excitem aspectos da virilidade, não interessadas, necessariamente, em estabelecer relações de outro tipo. Os corpos negros também entram em uma lógica da objetificação que os localiza como sujeitos de desejo por reverberarem um discurso de corpo-queimporta e por afastarem qualquer impressão ou resquício de feminilidade. O uso de palavras e imagens que valorizem a força, a virilidade e a violência são aptos e úteis nestes apps. Subjetividades e possibilidades identitárias são moídas, picadas e utilizadas apenas quando necessárias. Os sujeitos que perpassam esses espaços também estão interessados em pedações ou partes. O todo pode não interessar. CONSIDERAÇÕES Este texto tem como intuito focar os olhares para as relações sexuais e/ou afetivas entre homens negros gays e outras identidades ou na sociabilidade entre iguais. Os valores culturais que registramos aqui são apenas indicativos de que os estudos acerca das homossexualidades e das negritudes se fazem necessários

para

problematizarmos

diferentes

relações,

interações

e

possibilidades de entender os corpos e as dinâmicas do prazer em apps. Reconhecemos, neste movimento, que se aproxima de uma ideia de passeio pelos perfis, a potencialidade de visibilizar de que modo as dinâmicas das masculinidades constituem e são constituídas nos espaços de sociabilidade gays. O machismo, a misoginia e a homofobia povoam estes territórios e sustentam lógicas de virilidade e sexualidade que deslocam os anticorpos e os corpos que importam nas dinâmicas do dispositivo de sexualidade. Registramos, desse modo, que conhecer nos ajuda a perceber como os corpos negros e gays podem corroborar para práticas de sociabilidade que

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indicam a masculinidade como característica que nos territórios dos apps precisam se comportar como elementos constituintes das práticas homoeróticas. A sexualidade como espaço produtivo da vida de homens e mulheres ainda precisa ser problematizada como espaço criativo das formas de ser e de agir. Diferente da hipótese de que o sexo é tabu, seguimos pela lógica discutida amplamente por Foucault que falar de sexo sempre foi possível em diferentes sentidos da sociedade contemporânea. Nosso olhar segue nesta lógica e vai por outro sentido. Entender a sociabilidade erótica e/ou sexual de homens negros gays abre espaços para problematizarmos elementos machistas, misóginos, sexistas e violentos que comprimem, oprimem e fragilizam diferentes formas de ser, agir e pensar. A lógica do desejo é plural, possível e provisória. Nossa ideia não é dizer a que serve a sexualidade, mas como este espaço não precisa cumprir com os chavões do machismo e da homofobia para ser uma prática diferente da que nos deparamos nas redes dos apps. Black bodies in the applications of gay relationships: between speeches, dynamics, and subjectivations Abstract: The paper analyzes how black men's bodies are presented in the gay relationship applications - apps. It uses Grindr and Scruff, which are two of the popular mobile device applications in Brazil. The apps promote affective and/or sexual encounters through message dialogues, use of photographic images and allow the mapping of the geolocation of networked users. One of the main features of these apps is to visualize the diversity of bodies in profiles searching for encounters. The description/presentation offered by users who identify themselves as black in their profiles is used to analyze the relationship between visibility, sexuality, objectification, and empowerment. Theoretically, it adopts concepts linked to Cultural Studies with the collaboration of Foucaultian Studies such as identity, representation, discourse, and biopolitics. It concludes that to understand the way these black men present themselves it is necessary to discuss the impact that the intersection between race, sexuality, gender as constitutive discourses of Brazilian society has on the identity formation of black gay men. Keywords: Gay black men. Relationship applications. Identity formation.

REFERÊNCIAS CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre Estudos Culturais. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008. COUTO, Edvaldo Souza; SOUZA, Joana Dourado França de; NASCIMENTO, Sirlaine Pereira. Grindr e Scruff: amor e sexo na cibercultura. SIMSOCIAL – Simpósio em Tecnologias digitais e sociabilidade – performances interacionais e mediações sociotécnicas. Salvador: UFBA, 2013.

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Danças e doenças psicológicas: um olhar para a diversidade cultural em uma ala psiquiátrica em Belém do Pará Rayanne Mesquita Estumano (UEPA) 21 Luciane Cristina Farias de Aguiar (UEPA) 22 Stefanie da Conceição Franco (UEPA) 23 Vera Solange Pires Gomes de Sousa (UEPA) 24 Resumo: Relata o que os sujeitos vivenciaram com os conteúdos da Educação Física na Ala Psiquiátrica de um Hospital com o objetivo especifico de compreender a contribuição do conteúdo dança circular nos aspectos sociais, afetivos e cognitivos no tratamento de pacientes acometidos com doenças psicológicas. Partindo de um estudo de campo, com abordagem qualitativa, ações descritivas, enfoque materialismo histórico dialético e como instrumento de coleta e análise dos dados; as observações, interpretações fotográficas e anotações nos diários de campo. Conclui que a dança circular juntamente com os outros conteúdos ajudaram a diminuir o tempo de internação dos sujeitos internados neste Hospital e, o mais importante, o respeito a diversidade cultural depois das práticas propostas pelos pesquisadores. Palavras-chave: Dança circular; Educação Física; Doenças Psicológicas.

INTRODUÇÃO Este estudo está atrelado a vivências perpassadas por acadêmicos do curso de Licenciatura Plena em Educação Física, da Universidade do Estado do Pará (UEPA), durante a realização da disciplina Estágio Supervisionado III, os quais, no primeiro semestre do ano de 2017, desenvolveram atividades de estudos dirigidos e pesquisa de campo na Ala Psiquiátrica de um hospital público do Estado do Pará. Considerado um hospital de referência em Psiquiatria, Nefrologia e Cardiologia do Estado, o Hospital atende moradores da Região

Metropolitana

de

Belém

e

demais

municípios

desde

1987,

disponibilizando consultas e internações aos pacientes que necessitam de tratamento nas clínicas Médica, Cirúrgica, Pediátrica, Ginecológica e Obstétrica. A partir das observações e estudos realizados neste período, os pesquisadores puderam presenciar alguns conteúdos da cultura corporal, como o 21

Licenciada em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: rayestumano@hotmail.com 22 Licenciada em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: luciane.c.f.a@gmail.com 23 Graduanda em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: stefanie.franco.sf@gmail.com 24 Mestra em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora da Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: soldurui@hotmail.com

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jogo, a dança e o esporte, sendo utilizado como recurso de intervenção no tratamento destes pacientes. O conteúdo que mais chamou atenção dos sujeitos foi a dança, em específico a dança circular. Logo, a pesquisa descreve de forma geral o que os sujeitos vivenciaram com os conteúdos da Educação Física, partindo da análise da produção científica elaborada até então, as quais abordam a temática sobre as intervenções pedagógicas de professores de Educação Física em âmbito hospitalar, em meio a literatura estudada. Diante disso, sintetizando as experiências vividas e dando continuidade a esse processo, foram elaborados relatórios no decorrer do semestre letivo, posteriormente, entregues à docente do curso responsável por ministrar a disciplina em questão e socializados em sala por meio de seminários, como parte integrante do processo avaliativo. Em meio a esses achados, registros e memórias acumuladas, surgiram algumas inquietações, instigando-nos a desenvolver o presente trabalho acerca das implicações na utilização de um elemento observado: a dança circular. Assim, este trabalho visa compreender quais são as possibilidades da contribuição da dança circular nos aspectos sociais, afetivos e cognitivos no tratamento de pacientes acometidos com doenças psicológicas. METODOLOGIA A referida pesquisa possui caráter qualitativo que conforme (MINAYO, 2007) trabalha com significados, valores e atitudes dos sujeitos envolvidos. Apresenta como tipo de estudo, ações descritivas, pois segundo (TRIVIÑOS, 1987) o investigador tem uma série de informações dos fatos observados. Atrelado a isto, optou-se por desenvolver um tipo de pesquisa de campo, utilizando a perspectiva teórico-metodológica do materialismo históricodialético, por almejar um potencial crítico-dialético no sentido de levar a reflexão e análise da realidade perpassada pelos acadêmicos e propor uma transformação no olhar das ações dos professores de Educação Física inseridos na área da saúde. (GAMBOA; GAMBOA, 2009) A coleta de dados se sustentou em observações dos conteúdos da cultura corporal durante o Estágio Supervisionado III, que se encontra na grade curricular do Curso de Educação Física da Universidade do Estado do Pará

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(UEPA). O instrumento de coleta de dados, foi feito por meio de interpretações fotográficas e anotações nos diários de bordo. Ocorreu a autorização para tirar as fotos das atividades, porém, não foi permitido usar o nome e aparecer o rosto dos sujeitos que constam nas imagens. Para o critério de inclusão, foram considerados todos os sujeitos que tiveram interesse em participar das aulas, haja vista ser um espaço diferenciado. Este espaço chama Hospital de Clinicas Gaspar Vianna, que se situa na cidade de Belém do Pará. O período de intervenção foi de março a junho de 2017 onde foram trabalhados os conteúdos jogos, esporte e dança, respectivamente. Os acadêmicos do curso de Educação Física da Universidade do Estado do Pará (UEPA) ficaram locados, como estagiários, em uma Ala Psiquiátrica deste Hospital, convivendo com crianças, adultos e idosos do sexo masculino e feminino que recebiam tratamento e acompanhamento de uma Equipe Multiprofissional. Esta Equipe era composta por médicos, psicólogos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, técnicos em enfermagem e uma professora de educação física. Estes profissionais exerciam suas atividades diárias em conjunto, a partir da consulta à ficha de acompanhamento destinada a cada paciente. Nela constava as atitudes, comportamentos e dosagens precisas dos medicamentos destinados aos sujeitos que recebiam tratamento - desde o acolhimento até a alta médica. Sendo assim, a responsabilidade de registrar e acompanhar a evolução ou regresso no tratamento dos sujeitos inseridos nesse ambiente, era de todos. Dentre os responsáveis por tal registro, os estagiários, eventualmente, também exerciam a função de auxiliar a professora de Educação Física, compartilhando momentos de observação, registro e análise comportamental, os quais ocorriam nos dias de quinta-feira, no período vespertino, durante quatro horas de intervenção destes na Ala Psiquiátrica do Hospital. A análise dos dados foi inspirada nas orientações de Bardin (2009), no método de análise de conteúdo, o qual propôs três etapas para a construção da análise: (1) pré-análise; (2) exploração do material e (3) o tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação. Durante a pré-análise foi realizada a reunião dos materiais e diários de campo elaborados pelos pesquisadores. No segundo momento, denominado “a

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exploração do material”, realizamos a leitura flutuante dos dados selecionados na etapa anterior. Por fim, promovemos a interpretação a partir da análise do referencial estudado e dos resultados organizados e categorizados. CONCEITO DE DANÇA CIRCULAR Desenvolvida desde a antiguidade, as danças estiveram presentes em várias culturas, os primeiros resquícios de danças presentes foram nos rituais de iniciação, nos ritos e nas cerimônias, apresentando neste momento como principal característica o caráter ritualístico. A dança primitiva é uma das formas mais rústicas de danças que conhecemos na atualidade, conseguindo através dos movimentos dançados estabelecer a sua importância. De acordo com Berni (2002, p. 27), “a dança é uma forma de expressão primordial, uma manifestação cultural das mais antigas, presente em todas as sociedades.” Em sua forma mais simples ela já conseguia expressar um apanhado de sentimentos, emoções e sensações, era um elemento de representação mística. Segundo Nanni (2003, p. 8), “desde tempos imemoráveis a dança como atividade humana é uma forma de manifestação, a primeira, também como comunhão mística do homem com a natureza e com os deuses”. Berni (2002, p. 10), nos diz que: A dança circular sagrada é uma prática de dança contemporânea, que procura resgatar sua função primordial no passado, enquanto integrada no complexo Canto-Dança-Oração, fazendo-a agir como uma forma prática de auto-conhecimento e transcendência.

A dança realizada em círculo ou em roda permite que todos os sujeitos estejam voltados para o centro, com isso todas as pessoas conseguem visualizar as demais, logo elas possuem um grau de importância equivalente. O círculo proporciona equilíbrio, totalidade, diferenças e interdependência, permitindo que os envolvidos não somente se sintam parte da dança, mas também que eles consigam resgatar a existencialidade e a transcendência. Desse modo, a dança circular rompe o conceito de individualidade; o elo de ligação desta dança é a união, a interação, a soma, o autoconhecimento e a espiritualidade. Nesta dança foi possível observar que o principal objetivo é alcançar a superação, no sentido mais amplo, pois o foco principal são os

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sujeitos a partir da compreensão de uma totalidade e de uma singularidade. Conforme descrito por Andrada e Souza (2015), os primeiros dados encontrados sobre a dança circular, foram a partir do bailarino alemão Bernard Woisen que visualizou o grande potencial das danças realizadas em grupo. Segundo a definição do autor: As danças circulares não são meramente danças folclóricas, mas remetem a um trabalho que busca, por meio de dançar em roda, do gestual, da coreografia, do ritmo e da música, acessar a subjetividade humana e provocar vivências que possibilitem que o sensível emerja e seja compartilhado por um grupo. (ANDRADA; SOUZA, 2015, p. 360).

A interação que as danças circulares proporcionam aos sujeitos dançantes são excepcionais, o simbolismo desenvolvido por esta dança de dar e receber, de dançar em círculo e de agregação de valores é fundamental para consagração entre os sujeitos. Segundo Catib et al. (2015), as danças circulares têm o potencial para se tornar um recurso importante no contexto grupal, uma vez que despertam o respeito ao outro, a integração, a inclusão e o acolhimento às diversidades e estimulando a cooperação. A dança por meio de gestos e movimentos traduzem os mais singelos sentimentos, podendo exprimir variáveis sensações como, prazer, felicidade e bem-estar, assim como a elevação de estado de espírito do ser dançante. Através da prática da dança se percebe que os aspectos motores, cognitivos, sociais e afetivos são constantemente melhorados, sendo os três últimos mencionados, importantes para trabalhos realizados em grupo. Consequentemente, as suas contribuições são de grande valia para os participantes da dança circular. Portanto, sabendo-se de todos esses benefícios para os praticantes das danças circulares, o Ministério da Saúde (2006) vem elaborando políticas nesta área e em outras, e apoiando a incorporação das Práticas Integrativas e Complementares no atendimento dos sistemas de saúde. Este programa de Práticas Integrativas e Complementares ficou mais forte após a criação do SUS (Sistema Único de Saúde) na década de 1980. E depois, a Conferência Nacional de Saúde legitimou e instituiu como Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PNPIC). Em maio de 2006, o Ministério da Saúde, a partir dos artigos a seguir, inclui as danças circulares como abordagem de cuidado para serem utilizados nas redes

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de saúde em nível Federal, Estadual e Municipal: Art. 1º Inclui na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), instituída pela Portaria nº 971/GM/MS, de 3 de maio de 2006, publicada no Diário Oficial da União nº 84, de 4 de maio de 2006, Seção 1, pág. 20, as seguintes práticas: Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga apresentadas no anexo a esta Portaria. Art. 2º Define que as práticas citadas nesta Portaria atendem as diretrizes da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS. (BRASIL, 2017).

DOENÇAS PSICOLÓGICAS Algumas doenças psicológicas, que observamos, são recorrentes nos pacientes do

Hospital, identificação

feita

durante

as observações

e

acompanhamentos realizados pelos pesquisadores, no decorrer da realização do estágio supervisionado, tais como: a depressão, esquizofrenia e transtornos psiquiátricos oriundos do uso de substâncias psicoativas (álcool e drogas). Ao longo deste estágio, a fim de aprofundar o conhecimento dos acadêmicos e subsidiar a participação destes estudantes no auxílio às intervenções da professora de Educação Física – tais patologias psicológicas transformaram-se também em um objeto investigativo e, por isso, um relevante dado a ser exposto neste estudo, buscando elencar as características das patologias; principais alterações comportamentais perceptíveis no paciente diagnosticado e possíveis tratamentos, conforme a literatura estudada.

Depressão A Organização Mundial da Saúde aponta que mais de 300 milhões dos indivíduos sofrem por depressão no mundo e mais de 260 milhões convivem com crise de ansiedade. Estes distúrbios psicológicos são temas presentes em toda a sociedade e recebem destaque em diferentes abordagens, seja na área relacionada à saúde mental, na mídia ou em rodas de conversas informais, justamente, por apresentarem um índice epidemiológico que tende a expandir. Vejamos, então, a especificidade de cada uma destas: A depressão é uma doença psicológica que pode desencadear diferentes percepções nos indivíduos. Por tal motivo, utiliza-se este termo para designar

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um estado emocional eventual, sintoma ou uma forma de síndrome patológica (APÓSTOLO et al., 2011). Dentre as sensações que geralmente acometem os portadores da depressão constam: os sentimentos de tristeza, desânimo, desvalorização, raiva, fracasso, desmotivação, alterações no sono, fadiga, ideação e/ou tentativa suicida25. Estes, causados em decorrência da presença constante de pensamentos e sensações negativas, ocasionados pelas alterações no humor e na vida social dos portadores. Em pesquisa realizada por Moreira et al. (2013) verificou-se que o desequilíbrio emocional promovido em pessoas acometidas pela depressão pode acarretar no surgimento dos seguintes tipos de depressão: Transtornos depressivos maior, depressão relativa, catatônicas, crônica, transtorno afetivo bipolar e outros. Estas variações estão diretamente relacionadas a fatores de diferentes ordens, ou seja, demonstrando que não existe uma causa específica que determine o motivo, período para surgimento e forma de manifestação desta síndrome no organismo humano. Estes fatores, normalmente, podem ser desencadeados em decorrência de alguma alteração orgânica, ocasionado por crises de estresse emocional ou, até mesmo, pelo estilo de vida que o paciente utilize. O diagnóstico desta patologia está condicionado ao modo como se observa o comportamental do sujeito, por isso, as pessoas mais próximas destes - como familiares, amigos, colegas de trabalho, entre outros – geralmente, possuem um papel fundamental na identificação inicial e encaminhamento aos centros de tratamento. Nestes espaços, os profissionais responsáveis têm a função de diagnosticar qualquer alteração na maneira a qual o paciente se encontra, consultando – primeiramente - os familiares e/ou responsáveis legais, com a finalidade de reunir informações sobre as alterações que foram percebidas por estes até então; e analisar o estado físico e psicológico em que se encontram, utilizando escalas de avaliação contidas na 5ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM–V (APA, 2013) ou na 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças - CID–10 (OMS, 1992). 25

Características apontadas no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM – IV, 2002.

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Além disso, é fundamental atentar a forma como os pacientes estão organizando suas atividades cotidianas, investigando a maneira como se alimentam, realizam a higiene pessoal, utilizam as vestimentas e desenvolvem suas tarefas domésticas. Pois, dentre as características mais recorrente desta patologia, encontra-se a modificação no modo como estes realizam suas ações diárias, justamente, devido à intensidade do sofrimento ocasionado pela doença. (APÓSTOLO et al., 2011) O tratamento deverá agir de acordo com o nível da depressão diagnosticada.

Nos casos de

depressão

leve, recomenda-se

apenas o

acompanhamento e tratamentos psicoterapêuticos, porque neste tipo de depressão, normalmente, as atividades da vida cotidiana não são afetadas com tanta intensidade. No entanto, os casos considerados graves – os quais necessitam de maior cuidado e vigilância da equipe médica26 - o tratamento com a intervenção medicamentosa com antidepressivos deverá ser utilizado.

Esquizofrenia A Esquizofrenia é uma enfermidade psicológica crônica que afeta cerca de 1% de indivíduos no mundo – 70 milhões de pessoas – segundo a Organização Mundial da Saúde (2000). As causas desta patologia, a priori, encontram-se ainda desconhecidas pela ciência, entretanto, entende-se que fatores de ordem biológica, genética e ambiental podem influenciar o desenvolvimento desta doença nos sujeitos. De acordo com Oliveira et al. (2012, p. 310) “a mudança na maneira de se referir aos portadores de esquizofrenia tem sido uma tentativa de fazê-los ser considerados pessoas com um problema e não pessoas - problemas”. Essa concepção mais ampla, que compreende as causas das doenças mentais relacionadas aos aspectos biológicos e sociais, vem sendo considerada e difundida entre a comunidade científica com o intuito de alterar os estereótipos e termos pejorativos que muitos pacientes tendem a enfrentar. Dentre as principais percepções promovidas em pacientes acometidos com a Esquizofrenia estão: a incapacidade de organizar o pensamento, o surgimento de delírios e alucinações mentais capazes de induzir a não 26

Devido ao paciente apresentar sintomas de delírios e alucinações e/ou predisposição a cometer suicídio.

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identificação a diferenças entre ações reais e imaginárias, tendo como principal consequência o prejuízo da capacidade deste de se relacionar nas esferas familiar, profissional e interpessoal. (GIRALDI; CAMPOLIM, 2014) Conforme Giacon e Galera (2006), existem cinco subtipos desta doença, que o profissional da saúde deverá buscar identificar e enquadrar o paciente durante o início do tratamento - a partir da análise de seu estado comportamental e a realização de consulta aos familiares. Os subtipos clínicos desta patologia são: paranóide, catatônica, simples, residual e desorganizada ou hebrefênica. Após a diagnose inicial, os pacientes poderão receber tratamento psicológico e psiquiátrico com o auxílio de medicamentos antipsicóticos ou neurolépticos, de acordo com o comportamento, sinais e sintomas apresentados. Em alguns casos, também, aplicam-se intervenções de eletroconvulsoterapia em pacientes que não responderem ao tratamento medicamentoso (SOUZA et al., 2013).

Transtornos psiquiátricos oriundos do uso de substâncias psicoativas (álcool e drogas) O consumo exacerbado de entorpecentes, como o álcool e outras drogas (AOD) se tornou um dos principais problemas de saúde pública devido à crescente difusão social e cultural do consumo destas substâncias na sociedade moderna

(WESTERMEYER,

1991).

Estas

consideradas

substâncias

psicoativas – afetam o aspecto emocional do usuário, de modo a modificar o humor, a percepção e até mesmo dificultar o raciocínio. Comumente são utilizadas com a finalidade de minimizar as pressões da vida cotidiana e/ou possibilitar uma “fuga” da realidade aos usuários. Realidade esta, muitas vezes, marcada por problemas de origem familiar, econômica e legal, que afetam o aspecto psicológico do sujeito, influenciando-o a buscar soluções fáceis, de curto prazo, como o consumo das drogas, em decorrência à dificuldade de superá-los. O consumo abusivo dos entorpecentes pode promover uma brusca alteração no estado mental do usuário a ponto de provocar dependência, problemas psicossociais como a perda de emprego, conflitos interpessoais,

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dificuldade de aprendizagem e prejuízos à saúde como os transtornos psiquiátricos. (OLIVEIRA, 2005) Os critérios para o diagnóstico, a fim de detectar a dependência do paciente a AOD, ainda não são específicos, porém os critérios a serem analisados pelos profissionais da saúde para detectá-la, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (1993), parte da observação aos dados fornecidos pelos próprios usuários, correspondendo à análise da presença de intoxicação, uso nocivo e transtornos psicológicos. Dentre os tratamentos médicos recomendados aos dependentes de drogas diagnosticados com transtornos psiquiátricos não se encontra, ainda, um tratamento farmacológico universal. No entanto, para os pacientes que necessitam de tratamento psicológicos, de modo geral, encontram-se à disposição os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)27 e demais redes de atenção à saúde, como o Hospital Psiquiátrico (HP), estruturados pelo Ministério da Saúde, no Brasil, que seguem algumas recomendações e princípios terapêuticos básicos em suas atividades como: (1) Prestar atendimento e terapias individuais e coletivas; (2) Realizar um tratamento multidisciplinar, com profissionais habilitados em nível médio ou superior para desenvolver as terapias e oficinas (2) Possibilitar a realização de atendimento familiar; (4) Promover visitas residenciais; (5) Atendimento de desintoxicação; (6) Proporcionar atividades comunitárias com o intuito de socializar os pacientes e integrá-los ao meio; (7) Garantir a oferta de refeições aos participantes do tratamento. Para isso ocorrer, as unidades devem obrigatoriamente atender 100% da demanda de pessoas acometidas com transtornos mentais, possibilitar a acessibilidade e disponibilidade do tratamento ao paciente, quando este optar por realizá-lo, garantindo a existência de plantões técnicos durante todo o funcionamento da unidade, e dispor de um agradável ambiente para o acolhimento dos pacientes, conforme as recomendações.

27

Os Centros de Atenção Psicossociais são unidades de tratamento de pessoas acometidas por transtornos psicológicos que prestam serviço público à comunidade locada em seu território de atuação.

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VIVÊNCIA NO HOSPITAL DAS CLÍNICAS GASPAR VIANNA O grupo de alunos levou para a prática no Hospital vários conteúdos da Cultura Corporal - dança, jogo e esporte – expressas nas figuras 1, 2, 3 e 4 -, durante o período de vivências, sendo que o conteúdo que mais chamou atenção e teve participação direta28 e indireta29 foi o conteúdo dança, em específico a dança circular. A dança circular foi relatada pelos pacientes com vários sentimentos de sociabilidade, diversidade e lembrança de sua história e de seu lugar de origem. A maioria dos internados na Ala Psiquiátrica deste Hospital é de interiores do Estado. E quando íamos conversar com eles, percebíamos que os costumes, atitudes e hábitos apresentavam uma diversidade cultural abrangente, e que às vezes, essas diferenças atrapalhavam a convivência dentro da Ala Psiquiátrica. Muitas observações foram feitas pela professora que ficava nesse ambiente e durante as experiências com a dança circular, a professora comentava a participação de cada paciente, e disse que com esse conteúdo ela percebeu uma maior aceitação dos sujeitos. Percebemos que houve uma melhora nos aspectos motores, sociais, afetivos e cognitivos, nas atitudes entre eles. Com isso, o respeito foi o ponto chave para trabalhar a diversidade cultural dos internados, a partir da Dança Circular. Figura 1 – Dança Circular

Fonte: Pesquisa de Campo (2017). 28 29

Número de pacientes envolvidos perto dos estagiários e professora. Pacientes sentados, apenas observando e fazendo gestos com a cabeça e pernas.

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Logo, a participação leva à compreensão de um ser que ocupa a sociedade e, assim se comunica com as suas próprias habilidades, capacidades e possibilidades do seu corpo, com a dança. Portanto, os aspectos motores, sociais, emocionais e cognitivos foram observados como forma de experimentar o seu corpo com as diversas maneiras de manifestações pertencentes ao patrimônio cultural. E o envolvimento dos pacientes com a dança foi estimulante, pois alguns pacientes passaram a propor ideias para serem praticadas, como foi o caso com a dança da cadeira a pedido de pacientes que estavam envolvidos com a atividade. E nesse momento, aproveitamos para fazer um diálogo sobre o passado, família e amigos. Nessa atividade a expressividade foi significativa, pois, os sujeitos lembraram das suas infâncias, dizendo que a brincadeira da dança da cadeira era presente naquele período, que brincavam com os irmãos, primos e amigos na cidade onde moravam. Figura 2 – Brincadeira da dança da cadeira

Fonte: Pesquisa de Campo (2017).

Percebemos que houve um trato do senso perceptivo - ritmo, com essa dança utilizava gestos espontâneos; ocorre um desenvolvimento e melhoramento na noção de espaço, forma e tempo, em relação a si e na convivência com o outro. Dessa forma, a diversidade de expressão desenvolve atitudes não discriminatórias, ocorrendo a integração social e patrimônio cultural conforme a música que estava sendo tocada.

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Assim, observamos como a memória foi estimulada por essas propostas, seja por palavras como: “eu brincava disso quando era criança”; “minha irmã não gostava de perder pra mim quando a gente fazia isso”, “eras, professora eu tô muito feliz!” “quando vamos ter de novo dança circular ou dança da cadeira?”. Tais atitudes são relevantes para o resgate do paciente com problema psicológico, momento no qual ele consegue observar o valor da família, os pais, irmãos e familiares que vão visitá-los e os que estão torcendo pela sua melhora e volta para a casa. Figura 3 – Conteúdo Jogo

Fonte: Pesquisa de Campo (2017).

O dominó tem nível de complexidade, e se pode observar nessa prática, atitudes e valores das pessoas que estão jogando, sendo extremamente positivo para tentar diminuir o tempo de internação dos pacientes na Ala Psiquiátrica, haja vista que as dificuldades de concentração, organização espaço temporal e sociabilidade é forte dentro das pessoas com problemas psicológicos e esses aspectos são fundamentais para a alta médica. O fundamental nessa

experiência

é a

descontração, diversão,

desenvolvimento pessoal e a interação social dos pacientes, para assim, ajudar na melhora no quadro psicológico dos internados. Percebe-se que a coordenação dos movimentos e o ritmo dos pacientes não permitem utilizar uma complexidade de comandos, sendo um dos motivos, o nível de dosagem de

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medicamentos a que são submetidos. E com a prática da Educação Física, a dosagem de medicamentos pode diminuir, pois alguns sistemas podem ser ativados, assim como os hormônios corporais. Figura 3 – Conteúdo Esporte

Fonte: Pesquisa de Campo (2017).

Com isso, pode-se interpretar que além do conteúdo dança, o jogo e o esporte são bons instrumentos a serem utilizado neste ambiente. Que possa então, ser estudado em pesquisas futuras para que busque o melhoramento de outros sujeitos com problemas psicológicos, nos aspectos sociais, afetivos e cognitivos dos mesmos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Deve-se compreender a importância do professor de Educação Física nas Equipes Multiprofissionais para atuar em espaços não formais, como os hospitais. E com isso, a necessidade de trazer propostas de vivências da cultura corporal, a partir dos conteúdos da cultura corporal, jogo, esporte, dança, ginástica, e em alguns casos, as lutas, pois as características de agressividade são presentes nas pessoas com problemas psíquicos. Com isso, a proposta da dança na perspectiva da cultura corporal, tendo alcance nas Políticas Integradas Complementares norteou os aspectos sociais, afetivos e cognitivos dos pacientes com problemas psicológicos. Dessa forma, pode-se concluir que a dança circular juntamente com os outros conteúdos da

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Educação Física ajudaram a diminuir o tempo de internação dos sujeitos internados e o mais importante, o respeito a diversidade cultural depois das práticas propostas pelos pesquisadores na Ala Psiquiátrica do Hospital. Dances and psychological diseases: one look at cultural diversity in a psychiatric ward in Belem/PA Abstract: This study reports what subjects experienced with Physical Education contents in a psychiatric ward of a hospital. Its specific objective is to comprehend the contribution of circular dance content for the social, emotional and cognitive aspects in the treatment of psychological diseases patients. It is a field study, with a qualitative approach, descriptive actions, based on the materialism historical and dialectical. As an instrument for data collection and data analysis, it used observations, photographic interpretations, and notes in the field diary. It concludes that circular dance along with other contents aids to reduce the hospitalization time of the admitted patients in this hospital, and the most important, the respect to the cultural diversity after the practices proposed by the researchers. Keywords: Circular Dance; Physical Education; Psychological Diseases.

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Diálogos sobre identidades de gênero e sexualidades: narrativas de sujeito s descentrados e suas relações com a Educação Física Escolar30 Sérgio Melo da Cunha (UFRN) 31 Allyson Carvalho de Araújo (UFRN) 32 Resumo: Este estudo buscou expor as relações sociais e escolares, bem como as compreensões do próprio corpo de dois alunos do Ensino Médio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) – Campus Parnamirim, utilizando-se das histórias orais coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas, tendo uma abordagem qualitativa. A partir das falas coletadas, esta pesquisa tem o objetivo de identificar a auto percepção de sujeitos descentrados sobre sua trajetória e perceber as implicações de suas experiências no processo de educação escolarizada pelo qual passam, bem como debater acerca dos vínculos afetivos desenvolvidos no âmbito escolar. As entrevistas foram categorizadas em quatro aspectos: (I) social – a maneira como a pessoa se enxerga; (II) familiar, esclarecendo suas relações no meio doméstico; (III) escolar - construção de vínculos com colegas e professores; (IV) da Educação Física – ligação e importância da disciplina no decorrer da trajetória colegial. O discurso dos entrevistados se equivaleu em alguns pontos, como no fato de ambos terem sido expulsos de casa ou quando relatam que não precisaram expor suas orientações sexuais. Da mesma maneira que os dois citam o IFRN como local de ajuda no desenvolvimento e afirmação de suas personalidades. Somado a isso, temos ainda as expressões orais que remetem às aulas de Educação Física enquanto espaço de desconforto por suas condições. Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Educação Física escolar.

INTRODUÇÃO O corpo, enquanto condição de existência, pode ser visto como uma construção histórica da relação entre o sujeito e sua experiência vivida (MERLEAU-PONTY apud MENDES; NÓBREGA, 2004). Após o parto, ao deixarmos a segurança do útero, entramos em contato com o mundo de experiências que ampliam cada vez mais nossa compreensão de si e do mundo, mesmo compartilhando de muitas situações semelhantes a outros indivíduos, nunca será igual a qualquer um desses. Emoções, pensamentos e experiências enriquecerão este ser recém-formado durante o seu crescimento. 30

Este trabalho trata de um recorte de trabalho de conclusão de curso a ser apresentado ao Departamento de Educação Física (DEF) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), como requisito para conclusão da graduação de Licenciatura em Educação Física. 31 Graduando em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 32 Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: allyssoncarvalho@hotmail.com

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Não devemos fixar nossa atenção apenas no crescimento da estrutura física, mas também necessitamos falar desse corpo enquanto fenômeno que é passível de transformações no decorrer da vida, que surgem a partir do meio em que o indivíduo está inserido. Ou seja, o corpo está posto em determinado espaço, porém os aspectos culturais que este atravessará serão determinantes na sua condição. Sobre isto, Louro (2007) nos coloca que: Problematizar a noção de que a construção social se faz sobre um corpo significa colocar em questão a existência de um corpo a priori, quer dizer, um corpo que existiria antes ou fora da cultura. A identificação ou a nomeação de um corpo (feita no momento do nascimento, ou mesmo antes, através de técnicas prospectivas) dáse, certamente, no contexto de uma cultura, por meio das linguagens que essa cultura dispõe e, deve-se supor, é atravessada pelos valores que tal cultura adota. (LOURO, 2007, p. 209).

O corpo, portanto, configura-se a partir de agenciamentos diversos da cultura e transforma-se continuamente e, entre as diversas alterações pelas quais passa, sejam elas hormonais, estéticas ou sobre qualquer outra perspectiva, temos as mudanças relacionadas à composição da sexualidade de cada sujeito. Quando uma criança nasce, o único aspecto que podemos identificar se ancora no sistema binário sexual, ou seja, a presença do órgão sexual masculino ou feminino. Contudo, essa identificação não necessariamente corresponde que este se tornará homem (no caso de possuir o pênis) ou mulher (no caso de possuir a vagina). Ou seja, o sexo biológico apenas determinará se você nasceu macho, fêmea ou intersexual – que pode se manifestar de formas diferentes, seja por conta de as gônadas apresentarem características intermediárias entre os dois sexos, ou o aparelho genital não condizer com o tipo cromossômico. Esse último ocorre quando há indeterminação do sexo biológico. Dado naturalmente o amadurecimento em virtude da idade, o ser passa a enxergar-se, identificando-se, a partir de tal momento, como menino ou meninas e, posteriormente, homem ou mulher, seguindo o modelo binário que tradicionalmente se retificou em nossas sociedades. É o que diz respeito à identidade de gênero, que é entendida por Goellner (2009) como: A condição social através da qual nos identificamos como

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masculinos e femininos. É diferente de sexo, termo usado para identificar as características anatômicas que diferenciam os homens das mulheres, e vice-versa. O gênero, portanto, não é algo que está dado, mas é construído social e culturalmente e envolve um conjunto de processos que vão marcando os corpos, a partir daquilo que se identifica ser masculino e/ou feminino. Em outras palavras, o corpo é generificado, o que implica dizer que as marcas de gênero inscrevem-se nele. (GOELLNER, 2009, p. 76-77).

Quando a autora nos fala de um corpo generificado, isso quer dizer que o sexo biológico não é determinante para a identificação de gênero, haja vista que os aspectos socioculturais que permeiam o cotidiano do indivíduo podem interferir nas suas escolhas em diversas perspectivas, inclusive a sexual. Ao chegar à pré-adolescência os sujeitos, em sua maioria, começam a despertar seu lado afetivo. É nessa fase em que se descobre o corpo do outro e reconhece qual daqueles os atraem sexualmente. Com isso, o indivíduo inclina-se a sua orientação sexual. Se este se sente atraído por alguém do gênero oposto chamamos de heterossexual, se for do mesmo gênero, homossexual. Contudo, temos ainda os sujeitos bissexuais que se sentem atraídos por ambos os gêneros, ou o registro dos assexuais que diz respeito às pessoas que não sentem atração por nenhum gênero, mas vale ressaltar que ainda é uma sexualidade em construção, e por fim os pansexuais que se atraem por pessoas, independente do gênero ou sexualidade. A ampliação das possibilidades de se compreender o campo da sexualidade considera ainda que este conceito não corresponde apenas a atração sexual, mas amplia-se para outros campos, como nos explica Goellner (2009): Com relação à sexualidade, é importante considerá-la, tal como explicita Jeffrey Weeks (1999), como algo que envolve uma série de crenças, comportamentos, relações e identidades socialmente construídas e historicamente modeladas que permitem a homens e mulheres viverem, de determinados modos, seus desejos e seus prazeres corporais. (GOELLNER, 2009, p. 77).

Acerca do que foi abordado até este ponto, mesmo diante desta pluralidade,

ainda

nos

deparamos

com

situações

minimamente

incompreensíveis. Apesar das diferenças que dizem respeito tanto à orientação sexual, quanto à identidade de gênero, nenhum indivíduo pode ser excluído das práticas sociais, incluindo as corporais e esportivas. No entanto, não seguir os

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padrões heteronormativos impostos pela sociedade acaba fazendo com que os atletas das mais diversas modalidades, em diversos níveis (escolar, amador e/ou profissional) sofram ataques preconceituosos como forma de diminuí-los, à revelia de sua competência. Isto nos leva a refletir os seguintes questionamentos: como a sociedade interage com o sujeito que não se adéqua ao modelo tradicional de identidade de gênero e sexualidade? De que forma esse indivíduo encara as diversas manifestações de preconceito? E, em se tratando de escola, até quando haverá espaço para pensamentos regressistas? Diante dos questionamentos, adentrando um pouco mais o âmbito escolar e nos atentando às políticas públicas de educação, a cidade do Natal, capital do Rio Grande do Norte, é uma das cidades brasileiras onde, acompanhando um movimento nacional conservacionista, não é permitido aos professores em sala de aula o uso dos termos “orientação sexual” e “gênero”, segundo o Plano Municipal de Educação (PME) de 2016. O motivo, como colocado à época pelos parlamentares responsáveis pela votação do PME e que pode ser constatado em matéria do jornal potiguar Tribuna do Norte33, é que o verdadeiro sentido da família tradicional não seja deturpado. Os parlamentares locais reproduzem um discurso conservador que ecoa desde 2015 no Senado e no Congresso Nacional, quando estes pressionaram para que fossem excluídos do Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014) os temas citados acima. Sobre isso, em reportagem do portal online IG34, educadores classificaram o ato como um retrocesso no sistema educacional brasileiro. Por se tratar de algo enraizado socialmente e defendido politicamente, o preconceito adentra os espaços escolares e faz suas vítimas, que não seja por homicídio, mas através do bullying, das reclusões, entre outras formas de cercear o sujeito descentrado. A respeito deste termo, que a rigor não tem tradição nos campos da educação e educação física, esclarece-se que é uma aproximação com a noção de sujeito descentrado do teórico cultural e sociólogo Stuart Hall. Hall (2006), ao 33

Disponível em: <http://blog.tribunadonorte.com.br/politicaemfoco/na-camara-denatal-vereadores-aprovam-retirada-de-termos-que-indicam-discussao-de-genero-nasescolas/>. 34 Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2015-12-26/exclusao-degenero-do-plano-nacional-de-educacao-e-retrocesso-diz-educador.html>.

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tecer comentários sobre a identidade do sujeito na pós-modernidade atenta para um “duplo deslocamento do sujeito, tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos, constituindo uma ‘crise de identidade’”. Reservadas as proporções dos debates realizados na obra de Hall (2006) e em nossos propósitos, entendemos que os sujeitos marginalizados socialmente por exercerem identidades de gênero desviantes do padrão binário e sexualidades que questionam a heteronormatividade também sofrem esse deslocamento de um lugar no mundo social e cultural, bem como de si mesmos. Esses sujeitos que necessitam compreender-se em um mundo que os alijam são os que chamamos de sujeitos descentrados. À vista das problemáticas apontadas, este estudo traz como questão central: Como se desenvolvem os relacionamentos dos sujeitos descentrados consigo, enquanto indivíduos “em construção”, com a comunidade escolar como um todo e, especificamente, nas aulas de Educação Física? Buscando elucidar tal questionamento, este trabalho tem como objetivo geral, identificar a auto percepção dos sujeitos descentrados sobre sua trajetória e perceber as implicações de suas experiências no processo de educação escolarizada pelo qual passam. Tendo ainda os seguintes objetivos específicos: (a) expor como as dificuldades de relacionamentos (de si para si, e com os demais) enfrentadas por uma pessoa em formação (principalmente psicológica) interfere em seu cotidiano; (b) relatar o contexto histórico da esfera escolar vivido pelo indivíduo; e (c) discutir os vínculos afetivos e sociais no contexto das aulas de Educação Física, seja com os colegas ou com os professores da disciplina. A pesquisa é justificada por três enfoques distintos, além do pessoal já exposto, o acadêmico-científico, tendo em vista que, dando-se a temática, há uma produção de conhecimento limitada na Educação Física. E, por fim, a terceira justificativa é a social, pois apesar de tratar-se de um lugar-comum em diversos espaços de diálogo, o assunto “gênero e sexualidade” ainda leva pessoas a cometerem alguns equívocos relacionados às suas terminologias. Por isso, temos a intenção de esclarecer cada uma delas, bem como discutir o preconceito presente no cotidiano escolar.

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BASEADO EM HISTÓRIAS ORAIS Na busca por narrativas que deponham sobre o tema, este estudo se reconhece como de cunho qualitativo, utilizando-se da história oral como método de pesquisa. Sobre a pesquisa qualitativa, Minayo (2001) defende que esta lida com aspectos que se diversificam entre os sujeitos, acarretando em uma discussão mais profunda das relações, dos processos e dos fenômenos que não se resumem à operacionalização de variáveis. Já de acordo com Alberti (1989), a história oral refere-se a um método de pesquisa que se apoia em entrevistas com sujeitos que participaram ou testemunharam acontecimentos a fim de aproximar-se do objeto de estudo. É importante ressaltar, em concordância com Silva e Barros (2010), que a verdade não é absoluta, não há itinerário coeso, e sim a versão particular de sentimentos e acontecimentos históricos narrados por uma a pessoa. Independentemente de haver críticas direcionadas à subjetividade da história oral enquanto método de pesquisa, é válido reconhecê-la como, diversas vezes, única maneira de acessar determinados fatos significativos para o desenvolvimento do trabalho do pesquisador. Durante a pesquisa qualitativa julgamos de suma importância o trabalho de campo, ou seja, o fato de estar no meio em que o fenômeno acontece. Sobre este fato Minayo (1994) afirma que o estudo não deve ser ponderado sem que haja a presença do pesquisador no campo. O campo corresponde ao recorte espacial que contém, de maneira empírica, a compreensão do recorte teórico correspondente ao objeto da investigação. A interação sujeito-pesquisador com o objeto de estudo, bem como as relações de intersubjetividade envoltas, são essenciais para que se resulte conflito entre a realidade concreta e as hipóteses teóricas. Romanelli (1998) enfatiza: A subjetividade, elemento constitutivo da alteridade presente na relação entre sujeitos, não pode ser expulsa, nem evitada, mas deve ser admitida e explicitada e, assim, controlada pelos recursos teóricos e metodológicos do pesquisador, vale dizer, da experiência que ele, lentamente, vai adquirindo no trabalho de campo. (ROMANELLI, 1998, p. 128).

No instante em que a pesquisa qualitativa se utiliza da fonte oral, na busca por significados de multíplices aspectos do indivíduo (sociais,

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profissionais, familiares, além de outros), é viável se aproximar da realidade apoiado na concepção atribuída pelo pesquisado. Ademais, é admitida a escolha de um quantitativo baixo de sujeitos, sob a condição de que os escolhidos contribuirão para cumprimento dos objetivos do estudo (MARTINELLI, 2003, p. 23-24). Com base nestes pressupostos, o trabalho que ora se apresenta reúne discursos colhidos por meio de entrevistas semiestruturadas com 02 (dois) alunos do Ensino Médio do IFRN – Campus Parnamirim, com 19 e 20 anos de idade. O critério de escolha de tal amostra foi intencional. Considerando que estar imerso no cotidiano escolar sempre nos leva a conhecer e presenciar a espontaneidade dos alunos, foi determinante na escolha dos sujeitos da pesquisa o fato da instituição de ensino dos entrevistados ser também nosso campo de intervenção de estágio docente. Assim sendo, os dois alunos que compõem nossa amostra de pesquisa foram selecionados por se tratarem de pessoas com participação ativa nos movimentos estudantis da instituição de ensino, bem como também o fato de se enquadrarem no conceito de descentramento tratado anteriormente. A história oral requer, como várias outras metodologias, o uso de ferramentas e técnicas para a captação das fontes orais. Como falado anteriormente, esta pesquisa aplicou entrevistas semiestruturadas que Possibilitam a utilização de um roteiro com questões previamente definidas, e acréscimo de novas perguntas na medida da necessidade. Assim, pode-se esclarecer o que ficou duvidoso ou auxiliar na recondução dos objetivos, caso o entrevistado tenha “fugido” do assunto em pauta ou esteja com dificuldades. (BONI apud BRISOLA; MARCONDES, 2011, p. 129).

E ainda, estas Contribuem para a delimitação do volume das informações, proporcionando alcance dos objetivos de forma mais eficaz, ao mesmo tempo em que possibilita que a coleta de dados ocorra num clima semelhante ao de uma conversa informal. Assim, o sujeito a ser pesquisado terá liberdade para descrever realidades referentes ao seu cotidiano, bem como explicá-lo situando-o dentro do contexto relacionado ao tema da pesquisa. (BONI apud BRISOLA; MARCONDES, 2011, p. 129).

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As entrevistas foram gravadas mediante autorização das concedentes, e ocorreram em datas previamente definidas entre o pesquisador e os alunos. As conversas foram encaminhadas às discussões de gênero, como orientação sexual, representatividade perante a sociedade, entendimento do corpo, entre outros, além de relacionar os fatos com o contexto das aulas de Educação Física. Este trabalho procurou refletir as manifestações das falas dos alunos durante

as entrevistas, que

experiências

diárias

desses

expuseram sujeitos.

particularidades contidas nas

Originando-se

dessa

concepção

organizamos os discursos colhidos em quatro aspectos: (I) social, enfatizando como os sujeitos se enxergam; (II) familiar, ilustrando as experiências (não) vividas do meio doméstico; (III) escolar, relatar os vínculos afetivos desenvolvidos durante o histórico acadêmico dos indivíduos; e (IV) da Educação Física, explicitando a relevância ou não da disciplina no processo de construção e afirmação de suas personalidades. A VISTA DOS ENTREVISTADOS As entrevistas foram realizadas na instituição de ensino dos alunos, em uma sala reservada, apenas com a presença do pesquisador e do entrevistado. Os participantes foram informados de sua liberdade em responder ou não aos questionamentos. A partir desse ponto do nosso trabalho, os sujeitos foram identificados como entrevistados A e B, para fins de preservação da identidade. Os áudios capturados têm duração de dez minutos e três segundos e, treze minutos e trinta e três segundos, respectivamente.

Aspectos Sociais Enxergar-se como sujeito descentrado, mesmo não sabendo a significância do termo, não foi tarefa simples para esses alunos, pois era necessário que se entendesse a pluralidade de elementos que poderia adentrar esse corpo, como nos mostra Goellner (2008) quando diz que Um corpo não é apenas um corpo. É também o seu entorno. Mais do que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações, o corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções que nele se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele se incorporam,

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os silêncios que por ele falam, os vestígios que nele se exibem, a educação de seus gestos... enfim, é um sem limite de possibilidades sempre reinventadas, sempre à descoberta e a serem descobertas. Não são, portanto, as semelhanças biológicas que o definem, mas fundamentalmente os significados culturais e sociais que a ele se atribuem. (GOELLNER, 2008, p. 28).

O extrapolar do código binário, tributário de uma visão biologicista de corpo que restringe a experiência dos sujeitos aos discursos da diferença sexual naturalizada foi de forma muito contundente questionada pelo entrevistado A, que abraça a diversidade e a vive corriqueiramente quando fala que: Eu sou uma pessoa assim [...], hoje eu quero estar de menina, eu vou me vestir de menina. Hoje eu quero me vestir de roupas que as pessoas possam me adequar ao gênero masculino, eu vou me vestir assim.

Não se isentando dos embates sociais que suas atitudes implicam, o sujeito transparece transitar entre identidades tradicionalmente dicotômicas, o que gera estranheza social. Contudo, para compreender a situação como normal É necessário, de antemão, rejeitar os rótulos que aprisionam, engessam e fixam o sujeito, enredando-o em representações que o nomeiam como feio ou bonito, apto ou inapto, saudável ou doente, normal ou desviante, masculino ou feminino, heterossexual ou homossexual. (GOELLNER, 2009, p. 78).

Diante das colocações depostas por ambos entrevistados, percebemos a impossibilidade de rotular os corpos de forma simplista, validando assim Chaves e Araújo (2015) que julgam necessário a ruptura da identidade fixa, principalmente atrelada aos binarismos. A respeito de suas sexualidades, apenas o entrevistado B declara sua orientação, afirmando-a como bissexual. Este sujeito, contudo, tenciona sua afirmação ao alertar que “Até mesmo para quem é desse gênero [sic]35 sente essa

dificuldade de se assumir.” Isso porque, “As pessoas identificam ele, como sendo uma indecisão.” Já o entrevistado A não fala em nenhum momento ser homossexual, contudo afirma que “Sempre fui diferente.” 35

Nota de esclarecimento: O termo “bissexual” não diz respeito ao gênero, mas sim à orientação sexual. Neste caso houve transcrição fiel à fala do entrevistado.

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A diferença emerge como elemento intrigante na fala do entrevistado ou, na verdade, como elemento disjuntivo na expectativa social que investe ao homem a narrativa do masculino heterossexual como pré-concebida e, portanto, justificando o “ser diferente”, o deslocamento desta expectativa social. O mesmo entrevistado ao ser perguntado se precisou comunicar à família sua homossexualidade, este respondeu que “- não, mas com certeza eles já sabem”. Isso nos leva à segunda categoria.

Aspectos Familiares Para os indivíduos que vivem fora dos padrões heteronormativos e convivem com relações pouco acolhedoras em diversos espaços sociais, imaginase que encontrariam a segurança e laços afetivos no seio familiar. Contudo, a realidade relatada por nossos entrevistados é um tanto distintiva desta expectativa. Muitas vezes esses sujeitos, à margem da sociedade e do acolhimento familiar, correm riscos severos nas ruas pelo simples fato de serem quem são. Pensar que o fato de sair à noite, para esses sujeitos, é uma prática perigosa é desvelar uma realidade cruel para os sujeitos descentrados. Especialmente quando falamos do Brasil, que, segundo notícia do periódico Estado de Minas, é o país que mais mata travestis e transexuais36, dados da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil), e sendo a quinta maior taxa de feminicídio37, segundo os números da Organização Mundial de Saúde (OMS). Para além dos fatos noticiados, as falas dos entrevistados corroboram com a cena pouco animadora. O entrevistado A relata que “Atualmente eu fui

expulso de casa [...] pelo meu pai. Ele não aceitou. Então eu tive que sair.” A aceitação referida pelo sujeito é atrelada à identidade de gênero e sexualidade exercida pelo aluno. Enquanto desviante da expectativa, o sujeito se percebe à mercê do julgamento e aceitabilidade do outro, neste caso, membros da família. Já o sujeito B voltou a morar com os pais, mas confessa que a mãe 36

Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/dandara/2017/03/09/noticia-especialdandara,852965/brasil-e-pais-que-mais-mata-travestis-e-transexuais.shtml>. 37 Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maiormundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/>.

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Não quis entender, me colocou para fora de casa, eu tive que morar com meu tio por dois meses, porque eles não queriam estabelecer contato com uma pessoa que não estava de acordo com o modo de vida deles [...]. Eles viam isso como doença.

As

considerações

do

entrevistado

remontam

ao

processo

de

patologização de papéis de gênero e de condutas sexuais (FACCHINI; FERREIRA, 2013) tributárias do discurso médico e que foram incorporados de forma não reflexiva em diversos espaços sociais. Pelo fato de ter retornado ao convívio dos pais, o entrevistado B foi inquirido se a relação havia se normalizado. Ele respondeu que não havia diálogo. Em suas palavras: “Eu saio de casa de sete horas da manhã, chego em

casa de oito da noite, já cansado vou me deitar. Isso tem se tornado um ciclo .” Porém, tem convicção que a falta de conversa com aqueles que o rodeia faz falta. O entrevistado complementa, dizendo: “Faz falta porque eu acho que

com diálogo a gente consegue resolver as coisas de um modo mais harmonioso. ” Sob as circunstâncias apresentadas, os sujeitos passam a buscar a compensação afetiva em outros ambientes, no convívio com outras pessoas que os entendam. Para ilustrar isso trazemos uma fala do entrevistado A, que diz que “Minha família são as pessoas que realmente me aceitam como eu sou.” E nos casos desses alunos, essas pessoas estão na escola, o que nos leva à próxima categoria.

Aspectos escolares Atualmente, os participantes deste estudo estão rodeados por colegas acadêmicos que os entendem e os aceitam, mesmo que com reservas oriundas de um distanciamento da expectativa social. Todavia, essa é uma realidade ainda nova, haja vista que na história de vida de nossos entrevistados habitam passagens por escolas menores e no interior do estado do Rio Grande do Norte, onde os pensamentos retrógrados e tradicionalistas ainda dominam as discussões. Como os estudantes relatam, o início de suas trajetórias acadêmicas foi mais conturbado, pelo fato de ainda não se reconhecerem enquanto sujeitos descentrados – percebiam-se diferentes, porém não entendiam o que se passava. Ao comentar um ato preconceituoso sofrido no ensino fundamental, quando um

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colega de escola se dirigiu ao entrevistado e disse que “– aquele não era o banheiro que ele deveria entrar ”, o entrevistado B justifica seu destaque a este episódio em sua vida, dizendo que “ Esse comentário dele me doeu mais porque

eu não tinha certeza do que eu gostava [...] a personalidade estava se formando.” Do mesmo modo que o entrevistado A menciona, que Como eu era muito besta, não entendia nada desse negócio de gênero, essas coisas, e as pessoas também não tinham conhecimento sobre isso, acabava muitas vezes os meninos tirando onda comigo, porque eu tinha os meus trejeitos e por eles não conhecerem exatamente, por eles acharem aquilo diferente do que era para ser, eles acabavam tirando onda, mexendo comigo. Batiam em mim, mexiam comigo, era uma coisa muito complicada.

Nessas falas, percebe-se que os recursos de agressões físicas, verbais ou psicológicas, constituem-se como mecanismos comuns da negação da norma heterocentrada e binária. Com o ingresso no IFRN, temos a primeira disparidade nos discursos. Enquanto que para o entrevistado B, o Instituto serviu como ambiente de esclarecimento acerca da normalidade dos seus sentimentos e orientação, para o entrevistado A, originou-se uma marca traumática. Este nos conta que foi ao banheiro e um outro aluno jogou uma bolinha de papel molhada de urina, isso o levou a ter receio de entrar no local, quando o mesmo está com outras pessoas. Eu espero. Eu não sei o que é isso, por mais que seja “ah, é um menino de boas”, mas eu não entro. Eu acho que eu já tenho no psicológico “eu vou entrar e eles vão aprontar alguma coisa”. Eu espero todos saírem.

Aspectos da Educação Física A Educação Física é um componente curricular que, a depender da maneira que é abordada, adiciona à formação do cidadão fatores éticos, morais e estéticos, evidenciando princípios humanistas e democráticos. Com isso, os profissionais da área devem contribuir para a superação da violência e das discriminações, físicas ou psicológicas, que deixam marcas por vezes irreversíveis. (CHAVES, 2006) Quando questionados sobre a presença da Educação Física durante o curso de suas mudanças físicas e psicológicas, os participantes da pesquisa

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afirmaram que desde o ensino fundamental estão envolvidos nas práticas da disciplina, porém fazendo algumas ressalvas. O entrevistado B nos dá exemplo disso, quando relata que durante os anos finais do nível fundamental, sua escola não possuía local apropriado às aulas, o que fazia com que ele e seus colegas tivessem que se deslocar de ônibus até o ginásio mais próximo. Durante as indagações quanto às aulas de Educação Física, tivemos discursos homogêneos. Ambos confessaram que os professores sempre os trataram com respeito e sem distinção. E em momentos que seus colegas de turma ensaiavam algum tipo de ato preconceituoso, o profissional tinha a atitude de cessar as ações. Contudo, provavelmente devido à insegurança resultante do fato de encontrar-se às margens dos padrões sociais exigidos, o entrevistado A nos expõe um discurso de dúvida, ao afirmar que era tratado de maneira diferente dos demais, durante as aulas e após o pesquisador perguntá-lo se o tratamento distinto que recebia vinha dos colegas ou do professor, ele diz “Pelos professores

não. [...] Mesmo se eles tivessem um certo preconceito eles tinham que pelo menos tratar o aluno educadamente.” Percebemos no discurso que não há convicção por parte do aluno acerca da posição do professor. Ou seja, não há segurança por parte do entrevistado em recorrer ao profissional em casos de desrespeito pela sua condição, haja vista que aquele não confia no posicionamento deste. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do que foi abordado e exposto neste trabalho pensamos que, mesmo a passos curtos, estamos caminhando a uma sociedade mais igualitária. No entanto, viver em um país que é comprovadamente o que mais mata a população LGBT, e o quinto que assassina mais mulheres, deve nos deixar ainda em alerta. Constatamos que o conhecimento do próprio corpo ainda é algo desafiador a todos os seres; entender que o meio sociocultural em que estamos inseridos é diretamente ativo na nossa construção, seja nos aspectos físicos, intelectuais e sexuais. E ainda, compreender que nosso sexo biológico, nossa identidade de gênero, ou nossa orientação sexual não são escolhas, são transformações do nosso corpo.

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Reconhecemos, através das falas dos alunos, a importância dos laços afetivos no período de descobertas do sujeito descentrado. Em diversos casos, incluindo os dois relatados nesta pesquisa, o indivíduo não recebe o apoio no meio doméstico, transformando aquele lugar em mais um onde ele não se sente seguro. A partir disso, inicia-se a procura por um ambiente em que esse corpo possa ser quem deseja. Diante dos discursos coletados, vemos que os sujeitos percebem suas trajetórias de transformações psicossociais finalizadas, tendo completa convicção daquilo que são. Estes foram capazes de demonstrar em suas falas de que forma suas condições sexuais desencadearam experiências afetivas, positivas ou não, nos âmbitos familiar, social e escolar, respondendo assim as proposições gerais desse escrito. Até então, inferimos que a escola ainda é local propício à prática do

bullying. A começar do momento em que um aluno não é escolhido para uma atividade “masculina”, por conta de seus trejeitos afeminados, neste ponto já iniciou o preconceito. Por isso, a importância de se fazer um acompanhamento por parte do corpo docente e gestores. Já acerca da Educação Física, compreendemos que os profissionais da área podem ser mais próximos desses alunos que se encontram à margem da heteronormatividade, ajudando no conhecimento sobre o corpo e com o desenvolvimento de atividades inclusivas, ou seja, que não reforcem os padrões de masculinidade e feminilidade. Por fim, temos convicção que o estudo poderia ser mais direcionado aos fazeres pedagógicos da Educação Física, contudo vimos aqui a necessidade de se discutir de que forma a sociedade, a família e a escola lidam com um sujeito descentrado e o seu corpo em transformação. Dialogues about gender identities and sexuality: narratives of uncentered subjects and its relations with School Physical Education Abstract: This study aimed to expose the social and school relationships, as well as the understandings of two students about their own body. These students are from the High School of Federal Institute of Education, Science, and Technology of Rio Grande do Norte (IFRN) - Campus Parnamirim. It used oral histories collected through semistructured interviews, therefore having a qualitative approach. Considering the collected speeches, this research has as objective to identify the self-perception of uncentered subjects about their own trajectory and to notice the implications of their experiences in the education process they faced, as well as to discuss emotive bonds

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developed in the school context. The interviews were classified into four aspects: (I) social – the way the person sees her or himself; (II) family, explaining their relationships in the domestic area; (III) school – construction of bonds with friends and teachers; (IV) Physical education – connection and importance of the course during the school path. The interviewees' speeches were similar in some parts, such as the fact they were both expelled from their houses or when they affirm they didn't need to expose their sexual orientations. The same way the two mention IFRN as a place of help in the development and affirmation of their personalities. In addition, we still have the oral expressions that send to the Physical Education classes like a space of discomfort for their conditions. Keywords: Gender. Sexuality. School Physical Education.

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Gênero, sexualidade e currículo na formação de professores38 de Educação Física em Instituições Federais de Ensino Superior na região Amazônica Angelo de Aguiar Pegorett (UEPA) 39 Antonio Hugo Moreira de Brito Junior (UEPA) 40 Resumo: Este artigo é resultado das discussões e estudos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa Ressignificar – Conceição do Araguaia a respeito da intervenção docente em educação física no que tange aos temas gênero e sexualidade. A investigação realizada objetivou analisar a presença dos referidos temas nos currículos dos Cursos de formação de professores de Educação Física em Instituições de Ensino Superior (IFES) da Região Amazônica. A pesquisa caracterizou-se como documental, tendo em vista a adoção, como fontes de informação, os currículos dos 19 Cursos de Educação Física das IEFS no contexto supracitado. Neste estudo concluímos que os temas gênero e sexualidade não são incorporado pela maioria dos currículos dos Cursos de Educação Física da IFES, principalmente quando consideramos as ementas das disciplinas. Nos currículos que apresentam os descritores gêneros e sexualidade, observamos determinada polarização entre a área do conhecimento das Ciências humanas que concentra as disciplinas que incorporam o referido tema e as demais áreas que carecem desta aproximação. Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Currículo. Formação de Professores de Educação Física.

INTRODUÇÃO As discussões em torno dos temas gênero e sexualidade tem ganhado a cena nos últimos anos, principalmente na área da educação, com o avanço da produção do conhecimento sobre o assunto, com as iniciativas, mesmo que pontuais, de inclusão desta pauta em políticas públicas educacionais, assim como pela luta travada pelos movimentos sociais, especialmente os das mulheres e LGBTTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), em busca da garantia e conquista de direitos. No entanto, se por um lado este destaque é um fato, por outro o cenário 38

Assumimos, para efeito deste estudo, a posição que considera a formação profissional em Educação Física no Brasil, a partir da identidade epistemológica da ação desenvolvida nos diferentes campos de trabalho, isto é, a docência expressa pelo trabalho pedagógico com os temas da cultura corporal nos diferentes ambientes educacionais (escolares e não-escolares). Neste sentido, optamos por não desconsiderar os Cursos de Bacharelado em Educação Física, tendo a vista a compreensão que a natureza da intervenção profissional dos egressos destes cursos nos ambientes educacionais não-escolares, queiramos ou não, é mediada pelo trabalho pedagógico com as práticas corporais. 39 Graduando em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: angelopegorett@gmail.com 40 Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: hugobritojr@hotmail.com

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de crise estrutural do capital e acirramento da luta de classes, tem evidenciado de maneira cada vez mais intensa as disputas entre diferentes projetos de educação e sociedade. No Brasil, o governo lança mão de reformas no intuito da intensificação da exploração dos trabalhadores e, portanto, dos profissionais da educação. Tal assertiva é evidenciada quando consideramos: 1) a Emenda Constitucional n. 95 que congela os investimentos na educação por 20 anos; 2) a Medida Provisória n. 746 (“Novo” Ensino Médio) que promove o aligeiramento da formação neste nível de ensino; 3) a proposição de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que visa homogeneizar os currículos, bem como suprime as expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual” de sua versão final; 4) o avanço do Projeto Escola Sem Partido que ataca o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, bem como veda aos professores abordarem questões sobre identidade de gênero e orientação sexual em instituições de ensino e; 5) a lei das terceirizações, a reforma trabalhista e o avanço da reforma da previdência. Neste sentido, as mudanças em curso nas políticas educacionais expressam tendências que ratificam a opressão como mecanismo da exploração das mulheres e LGBTTs no mundo do trabalho. Não obstante a estes fatos, acrescentam-se as diversas situações por que passam mulheres e LGBTTs em decorrência da ideologia do machismo e da LGBTTfobia que impera nos diferentes âmbitos, seja na escola, nos ambientes de trabalho, nos espaços públicos e/ou no próprio seio familiar. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil possui a 5ª maior taxa de feminicídio do mundo e, segundo a Associação nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) é o país em que mais se mata travestis e transexuais no mundo. Neste contexto, a formação de professores de Educação Física não se encontra imune a dinâmica complexa e contraditória da realidade social, política e econômica brasileira. Vários são os questionamentos que emergem quando buscamos realizar reflexões a partir da Educação Física, como: de que maneira os professores desta área estão intervindo no que tange às questões de gênero e sexualidade? Como os Cursos de Educação Física em Instituições de Ensino Superior têm assimilado este cenário? Que papel tem assumido a formação dos professores nesta área?

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Das indagações levantadas, uma nos chamou a atenção, qual seja, aquela relacionada à formação dos professores, culminando na delimitação da seguinte pergunta-problema: Como os currículos dos Cursos de formação de professores de Educação Física em IFES da Região amazônica, têm se apropriado dos temas gênero e/ou sexualidade? Perspectivando encontrar respostas a este problema, a pesquisa de caráter documental, foi desenvolvida seguindo a mesma lógica pela qual organizamos este trabalho. Inicialmente buscamos apreender o objeto considerando o que até então havia sido produzido sobre o assunto, principalmente em relação aos entendimentos do gênero e sexualidade como categorias históricas, bem como da Educação Física como prática social específica situada no âmbito da ação pedagógica. Num segundo momento, pretendemos discorrer sobre gênero, sexualidade e formação de professores de Educação Física, com enfoque no papel desta última na reprodução e/ou transformação das relações estabelecidas socialmente, particularmente por meio das práticas corporais, tendo em vista as dimensões de gênero e sexualidade. Por fim, apresentamos os dados e análises dos currículos dos Cursos de Educação Física da IFES existentes na Região Amazônica. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE UM DEBATE NECESSÁRIO: EDUCAÇÃO FÍSICA, GÊNERO E SEXUALIDADE

A fim de situarmos de onde nos pronunciamos, buscamos aqui, delimitar o enfoque teórico pelo qual escolhemos abordar o tema Educação Física, gênero e sexualidade, a fim de contribuirmos para a tomada de consciência das ideias que nos orientaram no desenvolvimento deste estudo. Nesta direção, adotamos a compreensão de Educação Física como sendo uma prática pedagógica que tematiza os elementos da cultura corporal, sendo estes o jogo, a dança, a luta, o esporte e a ginástica. Tais elementos, compreendem parte do acervo cultural de representações de mundo que o homem produziu e, portanto, são historicamente criados, culturalmente desenvolvidos e exteriorizados pela expressão corporal. Como prática pedagógica, a Educação Física assume o caráter de ação intencional, que não é destituída de pensamento, sendo algo que emerge de uma necessidade social no

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plano da realidade concreta com o intento de se atingir um objetivo (SOARES et al., 2009). Pensarmos

a

cultura

corporal

como

conhecimento

tratado

historicamente e pedagogicamente pela Educação Física, impõem-nos o desafio da assimilação da cultura como um fenômeno humano que possui sua gênese e desenvolvimento no seio das relações estabelecidas com o mundo ao nosso entorno, com o objetivo de satisfação de nossas necessidades, dentre as quais, a própria produção de nossas existências. Neste processo pelo qual nos produzimos como humanos e ao qual Marx denomina de trabalho, são desenvolvidos sentidos e significados que norteiam as próprias relações sociais estabelecidas, dentre as quais, situam-se as relações de Gênero e sexualidade. Segundo Safiotti (2004), Gênero é compreendido como categoria histórica, podendo esta ser percebida sob diferentes aspectos, dentre os quais: Como aparelho semiótico (Lauretis, 1987); como símbolos culturais evocadores de representações conceitos normativos como grade de interpretação de significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva (Scott, 1988); como divisões e atribuições assimétricas de características e potencialidades (Flax, 1987); como, numa certa instância, uma gramática sexual, regulando não apenas homem-mulher, mas também relações homem-homem e relações mulher-mulher (Saffioti, 1992, 1997b; Saffioti e Almeida, 1995) etc. (SAFFIOTI, 2004, p. 44).

A autora afirma ainda, que as ênfases variam no entendimento desta categoria histórica, porém, mesmo com limitações, percebe-se um espaço de consenso, isto é, o gênero como sendo a construção social do masculino e do feminino (SAFFIOTI, 2004). Tal entendimento, perpassa não apenas o âmbito cultural, mas também o econômico, quando relacionado ao trabalho, como bem afirma Engels (2012) ao discorrer sobre a divisão do trabalho entre o homem e a mulher, evidenciando as responsabilidades atribuídas, a partir do papel socialmente assumido pelos diferentes gêneros, no modo de produção. É fundamental, porém, que entendamos que o conceito de gênero não explicita ou fundamenta as desigualdades entre homens e mulheres, como também

afirma

Safiotti

(2004),

a

ideia,

aqui

defendida,

perpassa

fundamentalmente as construções sociais que, simultaneamente, determinam e são sancionadas pelas atribuições aos diferentes sexos no convívio em

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sociedade. Portanto, podemos entender gênero como um produto social, que condiciona e é condicionado pelas relações e instituições sociais estabelecidas em uma sociedade, como a família, religião, estado, etc. Entretanto, precisamos ter em mente que essas instituições são diretamente condicionadas pelas relações de produção dessa mesma sociedade, tendo em vista a maneira como o homem produz e se apropria de bens e riquezas. Se de um lado, compreendemos o gênero como a construção social que se efetiva em torno dos sexos: feminino e masculino, no que tange à sexualidade, partiremos das reflexões de Bona Júnior (2012), que baseado nos estudos ontológicos de Lukács, discorre sobre a significação desta como uma dimensão do ser humano social, cultural e historicamente construído, compreendendo-a como a forma que o ser humano se relaciona com os outros e consigo mesmo. Nas palavras de Bona Júnior (2012) observamos: A natureza primeira do ser humano situa-se no nível orgânico do ser. A cultura situa-se no nível social do ser. O corpo, lugar da sexualidade, está marcado por esses dois níveis e é, por assim dizer, a ligação entre ambos. Isto significa que corpo e a sexualidade são compostos ou participam de duas realidades: o primeiro em relação à natureza e a cultura e a segunda em relação à sociedade e o indivíduo. Assim, a autêntica sexualidade deve partir da vivência autônoma da corporeidade do indivíduo, nesse construir-se humano com a natureza, com a cultura, com a sociedade e consigo mesmo por meio do trabalho e do fazer-se sujeito. Em outras palavras, é pela sexualidade que o ser humano se relaciona com os outros e, por extensão, consigo mesmo. Ela é a ponte, estabelecida entre o indivíduo e a sociedade, que possibilita o ir e vir dialético da construção da personalidade; é o “lugar” da relação que, nos atos de trabalho, constrói a subjetividade. (BONA JÚNIOR, 2012, p. 39).

Assim, temos a sexualidade também compreendida como um construto social, porém, não desligada da dimensão biológica do ser humano, da corporeidade, do corpo orgânico. Partindo deste pressuposto, “a sexualidade é uma função que aparece sempre naturalmente fundada, mas se sociabiliza no decurso da humanidade” (BONA JÚNIOR, 2012, p. 41). Portanto, “O homem nunca é, de um lado, essência humana, social, e de outro, pertencente à natureza; sua humanização, sua sociabilização não significa uma clivagem de seu ser em espírito (alma) e corpo” (LUKÁCS, 2010 apud BONA JÚNIOR, 2012, p. 41). Dessa forma, é necessário que possamos compreender as dimensões

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sociais e orgânicas do ser humano em conjunto, visto que uma exerce influência sobre a outra. Quando partimos de uma concepção dialética do homem, onde suas dimensões são historicamente conflitadas, podemos compreender as construções e variações sociais das culturas e sociedades. Adotamos, portanto, o entendimento de que o gênero é a construção social em torno do sexo e, a sexualidade é [...] uma dimensão inalienável do ser humano, que parte da condição sexual – que é biológica – mas a transcende no decorrer da constituição das relações sociais, tornando-se essencial na construção da subjetividade e na formação plena do indivíduo enquanto ser social. (BONA JÚNIOR, 2012, p. 19).

A Educação Física, enquanto uma prática pedagógica, isto é, ação deliberada que tematiza elementos da cultura corporal, elementos estes concebidos como formas de representação do mundo que os seres humanos constroem, não se encontra imune aos condicionantes que reproduzem e/ou rompem com as relações sociais hegemônicas (inclusive as pautadas sob o gênero e a sexualidade) em determinado contexto histórico. Tais compreensões, quando relacionadas ao trabalho pedagógico com os jogos, os esportes, as danças, as ginásticas e as lutas no contexto educacional, frequentemente manifestam-se carregadas de construtos sociais que se conformam e/ou se confrontam com as ideologias que sustentam as relações de gênero e sexualidade hegemônicas na sociedade do capital. Muitas têm sido as situações e experiências na Educação Física em que observamos a primazia de concepções que naturalizam determinadas práticas corporais como exclusividade do gênero masculino, e outras como sendo próprias ao gênero feminino. Quando indivíduos identificados com o gênero não condizente socialmente atribuído a determinada prática corporal, a sexualidade é frequentemente posta em suspeita, haja vista também os estereótipos socialmente construídos na associação entre gênero e sexualidade que desconsideram a diversidade no modo como os seres humanos usufruem a própria sexualidade. Reis (2015), ao apresentar estudo sobre a homofobia no ambiente educacional, afirma que: [...] ainda vivemos numa sociedade heteronormativa, na qual desde a

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infância o gênero já determina o comportamento social e sexual que se quer de uma pessoa do sexo masculino ou feminino. A norma é ser heterossexual e cumprir os papéis social e culturalmente atribuídos aos gêneros. A pressão existe para se conformar a esta norma, mesmo quando a vontade, a orientação sexual e/ou identidade de gênero da pessoa seja outra. (REIS, 2015, p. 49).

Em uma sociedade onde a sexualidade humana é hegemonicamente orientada pela heteronormatividade, podemos compreender isso da seguinte forma: Gênero masculino se relaciona com o Gênero feminino e vice-versa, da mesma forma que o futebol e o balé como elementos da cultura corporal, são socialmente associados ao gênero masculino e feminino, respectivamente. Qualquer variação manifestada neste padrão entra em confronto com o socialmente construído. O que ocorre é um processo de generificação das práticas corporais, entendido como a interpretação, com base no gênero, do que vem a ser, no âmbito da cultura corporal, próprio de cada sexo (CORREIA; DEVIDE; MURAD, 2017). Neste contexto, cabe, também, à Educação Física a necessidade de reflexão sobre as questões de gênero, corpo e sexualidade na formação de professores, na organização dos saberes, nas orientações metodológicas e em espaços onde o futuro professor possa problematizar as relações de gênero e sexualidade no usufruto dos elementos da cultura corporal, tendo em vista a formação humana comprometida com a transformação social. GÊNERO, SEXUALIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA NA SOCIEDADE DE CLASSES: REPRODUZIR OU TRANSFORMAR? EIS A QUESTÃO!

Partindo das reflexões e delimitações conceituais desenvolvidas na seção anterior, bem como de uma concepção crítica da história, o primeiro ponto que aqui pode ser destacado para compreendermos as relações de gênero e sexualidade como tema necessário de ser abordado pela formação de professores de Educação Física, consiste no desvelamento do contexto sob o qual tem se instituído as relações sociais, levando em consideração o próprio movimento histórico da sociedade de classes. Ao se debruçar sobre a origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels (2012) afirma que o antagonismo entre a mulher e o homem,

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principalmente, a partir da monogamia, é o primeiro antagonismo de classes que aparece na história. Para Federici (2004), “as hierarquias sexuais quase sempre estão a serviço de um projeto de dominação que só pode se sustentar por meio da divisão, constantemente renovada, daqueles a quem se procura governar.” Tal pressuposto, explica as diversas formas sob as quais se expressa a divisão social e sexual do trabalho na sociedade do capital. Afirmamos, portanto, a necessidade do entendimento da categoria gênero e da categoria sexualidade, a partir da noção de interseccionalidade, haja vista que: As hierarquias de gênero assumem formas diferenciadas segundo a posição de classe e raça das mulheres. A divisão sexual do trabalho, no entanto, não se detém nos limites das vantagens de classe e raça; impacta também as mulheres privilegiadas, porém com consequências distintas daquelas que se impõem à maioria das mulheres. (BIROLI, 2018, p. 23).

Buscamos estender as ideias de Biroli (2018), na perspectiva de abranger as relações hierarquizadas que também perpassam a compreensão da sexualidade como identidade social. Portanto, nas relações estabelecidas no mundo do trabalho, as LGBTTs vivenciam formas diferentes de opressão, pois atravessadas por condicionantes relacionadas ao próprio lugar ocupado pelas variadas formas de usufruir da sexualidade, inter-relacionando as identidades de gênero, de raça e de classe. Neste sentido, a violência como mecanismo de opressão sobre as mulheres e LGBTTs não tem se dado como um aspecto isolado e/ou particular, mas como mecanismo intrínseco à estrutura social da sociedade de classes. A violência como mecanismo de opressão, é fatal. O Relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), afirma que a cada 25 horas, um LGBT é assassinado brutalmente. Segundo o mesmo relatório, publicado no ano de 2016, 343 LGBTTs foram assassinados no país, colocando o Brasil como o país campeão mundial em mortes de minorias sexuais em todo o mundo. Irônico que o país do futebol, maior campeão mundial de títulos na Copa das Confederações, também seja campeão em mortes de LGBTTs. De acordo com este relatório, quando considerada a profissão/ocupação, o maior número de vítimas, encontra-se entre a profissão/ocupação de “Professor” e “Estudante”. Como podemos observar no

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gráfico 1 a seguir. Gráfico 1 – Quantidade de mortes de LGBTTs por profissão/ocupação em 2016 16

16 14 12 10 8 6 4 2 0

VÍTIMAS POR PROFISSÃO

14

5

4

3

3

3

3

2

2

2

2

2

2

2

2

Fonte: Grupo Gay da Bahia (2016).

Conforme dados expressos no gráfico 1, das profissões/ocupações observadas, predominam como vítimas os professores (17%) e estudantes (16%), seguidos em menor número por comerciantes, padres, empresários, enfermeiros, etc. Neste mesmo documento, aponta-se Manaus (AM), como sendo a cidade, dentre as capitais brasileiras, que teve o maior número de vítimas no ano de 2016. Um dado que expõe o caráter contraditório da educação escolarizada no Brasil, e em particular na Região Amazônica. A problematização desta realidade, quando associada à Educação Física, leva-nos à reflexão de que ao tematizar os elementos da cultura corporal, os professores podem reforçar e/ou se chocar com as ideologias que naturalizam as identidades de gênero, assim como com a noção de sexualidade assentada no padrão heteronormativo, que marginaliza todas as outras variações que existem no âmbito da sexualidade humana. Correia, Devide e Murad (2017) ressaltam o processo de generificação dos conteúdos nas aulas de Educação Física, a exemplo do que ocorre com o esporte e as lutas, frequentemente considerados como pertencentes ao universo masculino. Estes mesmos autores traçam considerações a respeito da reprodução desses estereótipos, afirmando que tanto homens quanto mulheres

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atuam como produtores e reprodutores da sociedade machista. Portanto, é preciso considerar que o professor de Educação Física não se encontra à margem desse contexto, mas inserido, seja pela indiferença ou intervenção consciente (ou não) no rumo da formação humana das futuras gerações, podendo contribuir para a reprodução ou superação das relações de opressão, que alimentam a exploração das mulheres e LGBTTs trabalhadores no modo de produção vigente. Elevar a formação de professores de Educação Física a um papel central no trato com os temas gênero e sexualidade, acaba por evidenciar o caráter político inerente às decisões tomadas neste nível da educação escolarizada, abrindo possibilidades para a superação da opressão e, portanto, da exploração de mulheres e LGBTTs, no âmbito das relações sociais mais amplas. Assim sendo, É importante prestar atenção às formas pelas quais o processamento diferencial do conhecimento está vinculado ao processamento diferencial das pessoas. Diferentes currículos produzem diferentes pessoas, mas naturalmente essas diferenças não são meras diferenças individuais, mas diferenças sociais, ligadas à classe, à raça, ao gênero. [...]. Nessa perspectiva o currículo deve ser visto não apenas como a expressão ou a representação ou o reflexo de interesses sociais determinados, mas também como produzindo identidades e subjetividades sociais determinadas. O currículo não apenas representa, ele faz. É preciso reconhecer que a inclusão ou exclusão no currículo tem conexões com a inclusão ou exclusão na sociedade. (GOODSON, 2012, p. 10).

CAMINHOS PERCORRIDOS E INSTRUMENTOS UTILIZADOS: DESCREVENDO O ESTUDO REALIZADO

O percurso que realizamos adotou como universo da pesquisa todos os Cursos de Educação Física ofertados pelas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) na Região Amazônica, de acordo com as informações contidas no sistema e-MEC, do Ministério da Educação, até abril de 2018. Para efeito da pesquisa consideramos apenas as IFES situadas nos limites territoriais da Amazônia legal em consonância com a demarcação realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como expresso pelo mapa 1 a seguir.

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Mapa 1 – Limite territorial da Amazônia Legal

Fonte: IBGE (2014).

Como se observa no mapa 1, a Amazônia Legal compreende os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão. Das 20 IFES situadas na Amazônia Legal, foram selecionadas apenas 10 instituições que oferecem, 19 Cursos de Educação Física, abarcando desta forma todos os Cursos de Educação Física ofertados em IFES no território delimitado, conforme distribuído no quadro 1. Dentre os aspectos que constituem a formação profissional, optamos por adotar como fonte de informação os currículos escritos dos 19 Cursos de Educação Física ofertados pelas instituições supracitadas e que se encontram, respectivamente, disponibilizados nas páginas institucionais na internet. A opção pelos currículos escritos, assenta-se nos pressupostos de que este “nos proporciona um testemunho, uma fonte documental, um mapa do terreno sujeito a modificações; constitui também um dos melhores roteiros oficiais para a estrutura institucionalizada da escolarização” (GOODSON, 2012, p. 21).

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Quadro 1 – Relação de IFES e cursos de Educação Física ofertados INSTITUIÇÕES

CURSOS

IFRR

Curso de Educação Física - Licenciatura Curso de Educação Física - Licenciatura Curso de Educação Física - Licenciatura (PARFOR - Presencial) Curso de Educação Física - Licenciatura Curso de Educação Física - Bacharelado Curso de Educação Física - Licenciatura (EaD) Curso de Educação Física - Licenciatura Curso de Educação Física - Licenciatura Curso de Educação Física - Bacharelado em Promoção em Saúde e Lazer Curso de Educação Física - Bacharelado em Treinamento Esportivo Curso de Educação Física - Licenciatura Curso de Educação Física - Bacharelado Curso de Educação Física - Licenciatura Curso de Educação Física - Bacharelado Curso de Educação Física - Licenciatura (Campus Belém) Curso de Educação Física - Licenciatura (Campus Castanhal) Curso de Educação Física - Licenciatura Curso de Educação Física - Licenciatura (Campus Miracema) Curso de Educação Física - Licenciatura (Campus Tocantinópolis)

IFTO UFAC UNB UNIFAP UFAM UFMA UFMT UFPA UNIR UFT

Fonte: e-MEC (2018). Nesta perspectiva, a investigação foi delineada como pesquisa de caráter documental, sendo esta compreendida como aquela em que o investigador, coleta e constrói os dados e informações a partir de “um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas para a apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos” (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009, p. 5), compreendidos como registros que ainda não receberam tratamento científico, caracterizando-os como fonte primária de informação. (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009) Pautamo-nos

no

enfoque

teórico-metodológico

do

materialismo

histórico-dialético, compreendendo este enquanto uma postura, método e práxis, nos termos que nos aponta Frigotto (2008). Tomamos como parâmetro as categorias realidade e possibilidades, no sentido de compreender a unidade do fenômeno estudado, como bem propõe Richardson (2015) e, neste sentido, analisar o fenômeno para além da pseudoconcreticidade (KOSIK, 2002) e, portanto, sem desconsiderar as múltiplas determinações que incidem sob este, num movimento complexo, contraditório e de conjunto.

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

Para tanto, no intuito de organizarmos e iniciarmos o processo de análise, realizamos a partir da leitura dos 19 Projetos Político-Pedagógico, quadros matriciais em que consideramos duas categorias empíricas, construídas a partir dos dados e informações contidas nos documentos. A primeira delas denominada de “espaço ocupado pelos temas gênero e sexualidade nos currículos escritos dos Cursos de Educação Física da IFES”, procuramos verificar qual o “lugar” destinado à temática dentro do currículo escrito. A segunda categoria empírica, denominou-se de “áreas de concentração dos temas gênero e sexualidade nos currículos dos Cursos de Educação Física da IFES”, na qual buscamos identificar as áreas do conhecimento em que a temática tem sido abordada. Em seguida à categorização, realizaram-se as inferências e o diálogo destas com o conhecimento até então produzido. GÊNERO E SEXUALIDADE NOS CURRÍCULOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA EM IFES DA REGIÃO AMAZÔNICA Para efeito de análise, delineamos duas categorias empíricas quais sejam: a) espaço ocupado pelos temas gênero e sexualidade nos currículos escritos dos Curso de Educação Física da IFES, na qual objetivamos mapear a presença e/ou ausência do tema nos currículos escritos, a partir dos descritores gênero e sexualidade, assim como quando da presença destes, analisar como os mesmos se encontram distribuídos nos documentos; e b) áreas de concentração dos temas gênero e sexualidade nos currículos dos Curso de Educação Física da IFES, na qual procuramos identificar, a partir da presença dos descritores gênero e sexualidade nas ementas das disciplinas oferecidas pelos Cursos, em que campos do conhecimento se concentram o trato com a temática em questão. Vale ressaltar, que a decisão de utilização dos descritores gênero e sexualidade, decorre da compreensão de que estes indicam de forma mais significativa a intencionalidade de se pautar especificamente as problemáticas acerca das identidades socialmente construídas e atribuídas aos diferentes indivíduos. Para tanto, os termos que possuíam a mesma grafia, mas que eram conferidos sentido e significado diferentes aos atribuídos para efeito deste estudo, tratamos de desconsiderá-los (Exemplos: gêneros alimentícios, gênero literário, etc.). Apesar do foco direcionado aos descritores em questão, é importante

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pontuar a presença de outros descritores, que em certa medida, aproximam-se e/ou oferecem a possibilidade de apropriação dos temas gênero e sexualidade, mesmo que de maneira implícita pelos currículos escritos, mas que, no entanto, pela não especificação acabam por depender quase que exclusivamente das decisões pedagógicas dos que colocam o currículo em movimento. Dentre tais descritores apareceram: diversidade, inclusão, minorias. Destes, damos destaque ao termo diversidade pela sua predominância em relação aos outros dois, mas que quase sempre aparece nos currículos de maneira genérica, quando não se referindo especificamente à diversidade cultural. Vejamos, portanto, qual o espaço ocupado especificamente pela temática gênero e sexualidade nos currículos da IFES. Dos dezenove (19) currículos analisados, onze (11) apresentaram pelo menos um dos descritores utilizados, sendo o descritor “gênero” o que predominou em todos eles, com destaque para os currículos do Curso de Bacharelado em Educação Física da UFMA e do Curso de Licenciatura em Educação Física da UNIR, por serem os únicos em que observamos a presença conjunta do descritor “gênero” e do descritor “sexualidade”, como expresso no quadro 2. Diferentemente do estudo realizado por Correia, Devide e Murad (2017) em um Curso de Educação Física de uma Instituição de Ensino Superior situado na Região Sudeste do país, em que não se encontrou o termo “gênero” em nenhuma das ementas analisadas, podemos verificar que dos 19 currículos analisados 11 apresentam os termos “gênero” e/ou “sexualidade”; a partir do quadro 2, identificamos que na maioria , os currículos incorporam os descritores “gênero” às ementas de disciplinas, sugerindo em certa medida um avanço em direção à apropriação do tema pela formação de professores de Educação Física nestas IFES quando comparamos a currículos que situam os termos gênero e/ou sexualidade apenas na dimensão das finalidades projetadas na proposta de formação, mas sem indicativos que incidam na dimensão estrutural de um currículo de formação de professores, a exemplo da inserção dos temas gênero e sexualidade em ementas de disciplinas ou mesmo na introdução de disciplina específica para abordar tal problemática.

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Quadro 2 – Dimensões do currículo das IFES que incorporam os termos gênero e sexualidade DIMENSÃO DO CURRÍCULO IFTO Licenciatura Gênero Objetivos IFTO - PARFOR Licenciatura Gênero Objetivos UFMA Bacharelado Gênero e sexualidade Ementa de disciplina UFPA-BELEM Licenciatura Gênero Ementa de disciplina UFPA-CAST Licenciatura Gênero Ementa de disciplina UFAM Bacharelado Gênero Ementa de disciplina UFT – Miracema Licenciatura Gênero Ementa de disciplina UFT – Tocantinópolis Licenciatura Gênero Ementa de disciplina UNB - EaD Licenciatura Gênero Objetivos UNIR Licenciatura Gênero e sexualidade Ementa de disciplina UFAC Licenciatura Gênero Ementa de disciplina Fontes: Elaboração dos autores com base nos currículos objeto da pesquisa. INSTITUIÇÃO

MODALIDADE

DESCRITORES

Todavia, quando consideramos a totalidade dos 19 Cursos de Educação Física ofertados em IFES na Região Amazônica, percebemos que a maioria destes ou não apresentam os termos gênero e/ou sexualidade em seus currículos, ou não incluem tais termos em ementas de disciplinas, o que sugere, em termos gerais, consonância tanto com os resultados do estudo inicialmente mencionado, bem como com o estudo realizado por Santos e Silva (2015), ao concluírem que, “na maioria das vezes, tratar desta temática depende da iniciativa e da sensibilidade do professor, não sendo contemplada nas ementas e programas das disciplinas oferecidas pelo curso”. Este panorama nos possibilita refletir que, apesar da predominância do distanciamento entre os currículos escritos e as temáticas “gênero” e/ou “sexualidade”, já podemos perceber alguma intenção, mesmo que ainda com limitações, de se pautar a discussão acerca das relações de gênero e/ou sexualidade, sugerindo desta maneira o rompimento do silêncio dos currículos da formação de professores de Educação Física frente a estes temas no contexto das IFES da Região Amazônica. Em relação às áreas do conhecimento, onde se concentram as disciplinas que incorporam os descritores gênero e/ou sexualidade em suas ementas nos currículos dos Cursos de Educação Física nas IFES, delineamos tal análise com base na classificação realizada por Correia, Devide e Murad (2017) e que se expressa em seis categorias, sendo estas: esportiva, biomédica, sócio humana, não esportiva, didático-pedagógica e instrumental. A distribuição das

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disciplinas por categoria e suas respectivas cargas horárias são apresentadas no quadro 3. Quadro 3 – Áreas do conhecimento em que se concentram as disciplinas que incorporam os descritores gênero e/ou sexualidade em suas ementas e suas respectivas cargas horárias CATEGORIAS

DISCIPLINAS/INTITUIÇÕES

CARGA HORÁRIA POR DISCIPLINA

CARGA HORÁRIA POR CATEGORIA

Nenhuma disciplina apresentou os descritores nas ementas Nenhuma disciplina apresentou os Biomédica descritores nas ementas Antropologia e Sociologia Aplicadas a Atividade Física e ao Esporte (UFMA 60h – Bacharelado) Estudos Antropológicos em Educação 68h Sócio-Humana Física (UFPA – Belém) Antropologia Educacional (UFPA – 60h Castanhal) Fundamentos da Antropologia Cultural 60h (UFAM – Bacharelado) Danças Contemporâneas (UFPA – 30h Não Esportiva Castanhal) Recreação Escolar (UNIR) 80h Profissão Docente (UFT – Miracema) 60h (Disciplina optativa) DidáticoSaúde e Sexualidade na Escola (UNIR); 40h Pedagógica Profissão Docente: Identidade, Carreira e Desenvolvimento Profissional (UFAC 60h – Licenciatura) Nenhuma disciplina apresentou os Instrumental descritores em suas ementas Fontes: Elaboração dos autores com base nos currículos objetos de pesquisa. Esportiva

-

248h

110h

160h

-

Observa-se no quadro 3, uma concentração dos descritores gênero e/ou sexualidade em ementas de disciplinas associadas à categoria sócio humana, como sendo aquela que agrega as disciplinas de filosofia e das Ciências Sociais. Se considerarmos as demais categorias, podemos identificar que a apropriação dos termos gênero e/ou sexualidade ocorre pelas ementas das disciplinas que se concentram nas áreas compreendidas como Ciências humanas (a partir das categorias sócio humanas, não esportivas e didático-pedagógicas). Por outro lado, verifica-se também, a não incorporação dos descritores, aqui em questão, por disciplinas relacionadas às áreas esportiva, biomédica e instrumental.

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Tal constatação sugere a centralização do trato dos temas gênero e/ou sexualidade no currículo da formação dos professores de Educação Física em determinadas áreas do conhecimento, manifestada principalmente pelo protagonismo das Ciências Humanas em detrimento da carência de pronunciamento das demais áreas do conhecimento sobre o tema em questão. Neste sentido, a concentração em áreas do conhecimento que protagonizam e as que manifestam carência de apropriação da temática gênero e/ou sexualidade, expressam uma concepção de abordagem dessas questões nos currículos dos cursos de Educação Física que se distancia de uma compreensão transversal sobre o tema e, portanto, podem apresentar limitações na apreensão dos indivíduos, que usufruem dos elementos da cultura corporal, em sua integralidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, o estudo que inicialmente tem sua origem no desconhecimento da apropriação dos temas “gênero” e/ou “sexualidade” pelos currículos dos Cursos de formação de professores de Educação Física em IFES da Região amazônica, oferece informações que, apesar de atestarem, em termos gerais, o distanciamento entre os currículos escritos e as temáticas “gênero” e/ou “sexualidade”, expressam possibilidades, ainda que não predominantes, de ruptura com o silêncio dos currículos da formação de professores de Educação Física frente aos temas em questão, no contexto dos Cursos de Educação Física nas IFES da Região Amazônica. Todavia, a concentração do tema “gênero” e/ou “sexualidade” em áreas do conhecimento específicas, sugere uma compreensão do modo como tal assunto tem sido tratado nos currículos dos cursos de Educação Física da IFES, ou seja, de forma que desconsidera o caráter transversal das relações de gênero e sexualidade, a partir das diferentes áreas do conhecimento, numa perspectiva que considera a omnilateralidade dos indivíduos, que usufruem dos elementos da cultura corporal. Logo, na conjuntura atual marcada por reformas educacionais, tais apontamentos nos colocam o desafio da apreensão dos nexos e determinações que incidem na apropriação dos conhecimentos sobre gênero e sexualidade, pela formação dos professores de Educação Física em IFES, considerando as

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particularidades do contexto amazônico e seu papel na dinâmica do modo de produção capitalista. Gender, sexuality, and curriculum in Physical Education teacher's training in Higher Superior Federal Institutions in the Amazon region Abstract: This article is the result of discussions and studies developed by the research group Ressignificar - Conceição do Araguaia regarding the teacher's intervention in physical education with the themes gender and sexuality. The investigation aimed to analyze the referred themes in the curricula of Physical Education Courses in Higher Education Institutions (IFES) in the Amazon Region. It is a documental research, based on the curricula of 19 Physical Education Courses. It concluded the themes gender and sexuality are not included in the most curricula of Physical Education Courses, especially when considered the disciplines' syllabus. In the curricula that presented the descriptors gender and sexuality, we observed a polarization between the area of knowledge of human sciences which centers the disciplines that include the referred theme and the other areas that lack this discussion. Keywords: Gender. Sexuality. Curriculum. Physical Education Teacher’s.

REFERÊNCIAS BONA JÚNIOR, Aurélio. A ontologia de Lukács e a sexualidade em perspectiva emancipatória. Filosofia e Educação, Campinas. v. 3, n. 2, p. 18-43, out./mar. 2011/2012. CORREIA, M.; DEVIDE, F. P.; MURAD, M. Discurso da licenciatura em Educação Física sobre as questões de gênero na formação profissional em Educação Física. In: DEVIDE, F. P. Estudos de gênero na educação física e no esporte. Curitiba: Appris, 2017. ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012. FEDERICI, S. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017. FRIGOTTO, G. Enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In: FAZENDA, I. (Org.). Metodologia da pesquisa educacional. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 69-90. FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA. Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação Física. Porto Velho, 2015. GOODSON, I. F. Currículo: teoria e história. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. GRUPO GAY DA BAHIA. Relatório de 2016: Assassinatos de LGBT no Brasil. Salvador: GGB, 2017. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Mapa da Amazônia Legal. 2014. KOSIK, K. Dialética do concreto. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE RORAIMA. Plano De Curso de Licenciatura em Educação Física. Boa Vista, 2009. INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO TOCANTINS. Projeto Pedagógico do Curso Superior de Licenciatura em Educação Física do Campus Palmas, do IFTO. Área Acadêmica: Educação Física. Modalidade: PARFOR Presencial. Palmas, 2016. INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO TOCANTINS. Projeto Pedagógico do Curso Superior de Licenciatura em Educação Física. Modalidade: Presencial. Área Acadêmica: Educação Física. Palmas, 2016. REIS, T. Homofobia no ambiente educacional: o silêncio está gritando. Curitiba: Appris, 2015. RICHARDSON, R. J. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. SÁ-SILVA, Jackson; ALMEIDA, Cristóvão; GUINDANI, Joel. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, v. 1, n. 1, jul. 2009. SANTOS, Ana Paula da Silva; SILVA, Rita de Cassia de Oliveira e. Gênero e formação de professores de educação física: apontamentos a partir da interculturalidade crítica. In: SEMINÁRIO BRASILEIRO DE ESTUDOS CULTURAIS E EDUCAÇÃO, 6., 2015, Canoas. Anais... Canoas: ULBRA/UFRGS, p. 1-12, 2015. SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do Ensino de Educação Física. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2012. UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Curso de Licenciatura em Educação Física a Distância - Projeto Pedagógico. Brasília, DF, 2016. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO. Projeto Pedagógico do Curso de Bacharelado em Educação Física – UFMT. Cuiabá, 2011. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO. Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação Física – UFMT. Cuiabá, 2011. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE. Currículo do Curso de Bacharelado em Educação Física. Rio Branco, 2016. UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE. Currículo do Curso de Licenciatura em Educação Física. Rio Branco, 2008. UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ. Projeto Político Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação Física. Macapá, 2010. UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS. Projeto Político Pedagógico do Curso de Educação Física – Licenciatura.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS. Projeto Político Pedagógico do Curso de Educação Física – Bacharelado – Promoção em Saúde e Lazer. UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS. Projeto Político Pedagógico do Curso de Educação Física – Bacharelado – Treinamento Esportivo. UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Projeto Pedagógico “Curso Bacharelado em Educação Física - Atividade Física e Saúde e Esporte”. São Luís, 2014. UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO. Projeto Político Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação Física da UFMA Campus do Bacanga. São Luís, 2014. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Projeto Político Pedagógico do Curso de Educação Física Licenciatura. Belém, PA, 2011. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Projeto Pedagógico Curso de Licenciatura em Educação Física do Campus de. Castanhal, 2010. UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS. Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Educação Física – Licenciatura. Miracema, 2014. UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS. Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação Física. Tocantinópolis, 2014.

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Mostra de Ginástica Geral e Folclore: uma experiência de valorização da diversidade cultural na formação de professores do Curso de Educação Física da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC) Natalia do Espírito Santo Evangelista da Silva (ESMAC) 41 Resumo: Esta aproximação de ginástica e da própria cultura brasileira vem estabelecer uma relação dialética da assimilação do outro com transformação, podendo criar novas relações nas coreografias de ginástica geral e folclore, veiculando assim uma diversidade cultural, proporcionando várias formas de comunicação e expressão. Acreditamos que quando entendemos o sentido de um movimento do universo folclórico e é contextualizado, alcançando dimensões que nos propomos ao trabalhar com ginástica geral. Assim, surge a Mostra de Ginástica Geral e Folclore (MGGF) como um projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão de caráter interdisciplinar, realizado no Curso de Licenciatura em Educação Física da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC), desde 2008, onde apresenta à comunidade acadêmica e do entorno, os trabalhos interdisciplinares de conclusão das disciplinas: Ensino da Ginástica (EG) e Ensino da Cultura Corporal Amazônica (ECCA). Ambas ministradas no 4º semestre do curso. Tendo como objetivo valorizar a diversidade cultural regional, com caráter interdisciplinar, entre duas disciplinas, EG e ECCA, além de promover o tripé ensino – pesquisa – extensão no Curso de Licenciatura em Educação Física da ESMAC. Nesse sentido, este manuscrito tem como objetivo relatar uma experiência de valorização da diversidade cultural na formação de professores do Curso de Educação Física da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC). Como resultado desta experiência acadêmica, observamos que o modelo utilizado como estratégia de ensino-aprendizagem permitiu aos alunos compreender as manifestações tradicionais e sua diversidade, bem como se reconhecerem sujeitos históricos da sua cultura. Além de promover uma reflexão critica sobre sua práxis docente. Palavras-chave: Educação Física; Ginástica Geral; Folclore; Diversidade Cultural.

INTRODUÇÃO Em sua intervenção no contexto escolar, o professor de educação física deve não só ensinar aos alunos os conhecimentos técnicos e científicos da área, com base em um planejamento e organização do trabalho pedagógico fundamentado, mas a cima de tudo fazer o diálogo com a realidade e a cultura do aluno, para que o processo de ensino-aprendizagem seja significativo na formação humana e educacional desse aluno. No entanto, o que ainda presenciamos na realidade escolar são aulas de educação física baseadas na esportivização, em especial os esportes coletivos, ou como chama Almeida et al. (2010) a aula “rola bola”. Ou também pela falta de material e estrutura física, a negação de outros conhecimentos como a ginástica 41

Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professora da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC). E-mail: nataliafolclore@hotmail.com

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e as lutas, reflexo da falta de habilidade e experiência motora nessas modalidades. Ou ainda, o planejamento com base no esporte ser interrompido para tratar do conteúdo dança na festa junina, no dia/semana do folclore ou ainda na abertura dos jogos de maneira descontextualizada, sem sentido aos alunos. Essa (não) organização do trabalho pedagógico tem demonstrado que se faz necessário que os cursos de formação de professores em educação física abordem não só os conhecimentos técnicos e científicos da área, mas também pensem em práticas pedagógicas em seus currículos de caráter interdisciplinar que contribua na formação acadêmico-profissional desses futuros professores no sentido de compreender as possibilidades de diálogo entre as manifestações da cultura corporal e a realidade e cultura escolar, principalmente no que tange a diversidade cultural, sem negligenciar os conteúdos específicos da área. Nesse contexto surge a Mostra de Ginástica Geral e Folclore (MGGF) como um projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão de caráter interdisciplinar, realizado no Curso de Licenciatura em Educação Física da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC), desde 2008, onde apresenta à comunidade acadêmica e do entorno, os trabalhos interdisciplinares de conclusão das disciplinas: Ensino da Ginástica (EG) e Ensino da Cultura Corporal Amazônica (ECCA). Ambas ministradas no 4º semestre do curso. Esta aproximação de ginástica e da própria cultura brasileira vem estabelecer uma relação dialética da assimilação do outro com transformação, podendo criar novas relações nas coreografias de ginástica geral e folclore, veiculando assim uma diversidade cultural, proporcionando várias formas de comunicação e expressão. Acreditamos que quando entendemos o sentido de um movimento do universo folclórico e é contextualizado, alcançando dimensões que nos propomos ao trabalhar com ginástica geral. Com a intenção de valorizar a diversidade cultural amazônica e de proporcionar a interdisciplinaridade entre a Ginástica como manifestação da cultura corporal e do Folclore enquanto manifestação de identidade cultural, o projeto se materializa através do diálogo entre as linguagens artísticas, do teatro e dança, além de envolver diversas práticas corporais, desenvolvidas a partir temas socioculturais relacionados à cultura tradicional amazônica, tais como: dança folclórica, manifestações religiosas, cotidiano amazônico, lendas e

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mitos, manifestações de rua, dentre outros. Favorecendo dessa forma, uma formação acadêmica sólida e efetiva dos acadêmicos do curso, referente aos conhecimentos gímnicos e do folclore amazônico. O objetivo deste manuscrito é relatar uma experiência de valorização da diversidade cultural na formação de professores do Curso de Educação Física da Escola Superior Madre Celeste (ESMAC), faculdade de iniciativa privada, do município de Ananindeua (PA). Como base teórica para este trabalho utilizaremos Brandão (2006) e Cascudo (2000) que tratam dos conceitos, características e objetos de estudo do folclore; Santos (1994) que trata dos conceitos e características sobre cultura; Soares et al. (2012) e Soares (2004) que tratam da Educação Física como área do conhecimento, proposta metodológica e das manifestações da cultura corporal; Freire (1996) que trata das práticas educativas e pedagógicas e Santos (2001), Nunomura et al. (2005), Nunomura et al. (2009) que tratam da história, dos conceitos e das características da Ginástica Geral. EDUCAÇÃO, EDUCAÇÃO FÍSICA E CULTURA. Partindo da origem da palavra, Cultura surge do latim e está associada às atividades agrícolas. Vem do verbo latim Colore que significa cultivar. No entanto, a partir das necessidades e interesses de grupos humanos ao se relacionarem e explorarem outros grupos e, de constatarem a variedade de modos de vida entre povos e nações, houve a necessidade de diferenciar-se. Assim, pensadores romanos antigos, por exemplo, ampliaram esse conceito para referir-se ao refinamento pessoal, a educação elaborada, ao nível de conhecimento adquirido. Esse conceito de cultura foi bastante utilizado e ainda na atualidade é utilizado para fazer referencia ao grau de instrução, a quantidade de conhecimento acumulado por individuo, bem como suas experiências nas diversas esferas da sociedade como: arte, música erudita, turismo, culinária, etc. (SANTOS, 1994) Historicamente, construiu-se uma visão dual de ser humano dividido em corpo e mente/alma, onde o conhecimento nascia no individuo e que necessitava ser revelado, logo esse corpo era reflexo da alma. A educação e a educação física se construíram com base nessa perspectiva, onde o aluno era visto como um individuo a-histórico, sem experiências ou qualquer tipo de contribuição, que

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precisava ser educado com rigor e disciplina. E a educação por sua vez vinha para “contribuir” na formação de individuo higienizado, domesticado, forte e apto para a guerra e para o trabalho nas indústrias. […] A Educação Física será a própria expressão do físico da sociedade do capital. […] torna-se receita e remédio para curar os homens de sua letargia, indolência, preguiça, imoralidade, e, desse modo, passa a integrar o discurso médico, pedagógico...familiar. […] a Educação Física se ocupará de um corpo a-histórico, indeterminado, um corpo anatomofisiológico, meticulosamente estudado e cientificamente explicado. (SOARES, 2004, p. 6).

Hoje sabemos que o conhecimento é produzido na relação do homem com a natureza e com outros homens, num processo dialético. A forma como esse homem se organiza em sociedade, seus modos de vida, suas atividades materiais, a forma como ele se relaciona com a natureza e com outros homens é resultado de um processo histórico e cultural. Logo no processo de educação e de formação, para que o conhecimento seja produzido é necessário que esse homem situe-se como sujeito histórico, social e cultural, num movimento de construção, desconstrução e reconstrução de si mesmo e do conhecimento. O primeiro pressuposto de toda a história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza. […] Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir os seus meios de vida; passo esse que é condicionado por sua organização corporal. (MARX; ENGELS, 1986 apud FRIGOTTO, 2010, p. 82).

A Educação Física na década de 1980 rompe com a concepção construída historicamente da dualidade entre corpo e mente, e com a base técnica presente tanto no contexto escolar como nos cursos de formação, com o discurso do corpo biologizado, para se fundamentar como disciplina que estuda as manifestações da cultura corporal em toda sua diversidade, levando em consideração as contradições, conflitos presentes na realidade escolar e na cultura da sociedade, buscando a superação dos sujeitos históricos e consequentemente a transformação da realidade. Na perspectiva da reflexão sobre a cultura corporal [...] no âmbito da Educação Física [...] [busca-se] desenvolver uma reflexão

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pedagógica sobre o acervo de formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizada pela expressão corporal: jogos, dança, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser identificados como formas de representação simbólica de realidade vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas. (SOARES et al., 2012, p. 39).

Nesse sentido trabalhar com a educação física escolar hoje é organizar uma intervenção que leve em consideração o ser humano e toda sua experiência corporal, social e cultural com suas diversas formas de saber, sentir e agir no mundo em que está inserido. É através do corpo que compreendemos nossa realidade, nossa cultura, com suas manifestações, valores, símbolos e organizações, pois é a partir dessa leitura da realidade que vamos construindo nossa identidade e como sujeitos históricos. Diante disso, a educação física escolar precisa levar em consideração todas as possibilidades de educação para que ela seja significativa e transformadora ao individuo. O corpo é uma síntese da cultura, porque expressa elementos específicos da sociedade da qual faz parte. O homem, por meio do corpo, vai assimilando e se apropriando de valores, normas e costumes sociais, num processo de incorporação (a palavra é significativa). Mais do que um aprendizado intelectual, o individuo adquire um conteúdo corporal, que se instala em seu corpo, no conjunto de suas expressões. Cada gesto que fazemos, a forma como nos sentamos, a maneira como caminhamos, os costumes com o corpo da gestante [...] tudo isso é especifico de uma determinada cultura, que não é melhor, nem pior que outra [...]. As brincadeiras, os tipos de ginástica, os cuidados estéticos com o corpo... enfim, tudo é influenciado pela cultura. (DAOLIO, 2003, p. 67 apud NUNOMURA, 2009, p. 43).

Para uma educação significativa é fundamental que o professor tenha os saberes necessários a pratica docente para adequar os conhecimentos apreendidos à realidade em que está inserido. Mas para isso, conforme Freire (1996), é necessário que o professor seja ético, não assuma a postura de detentor da verdade absoluta, compreenda que o processo de ensino-aprendizagem é continuo e uma via de mão dupla, apresentar teor critico em suas aulas e respeitar os saberes experiências de seus alunos no planejamento e realização de suas aulas.

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GINÁSTICA E GINÁSTICA GERAL: MODALIDADE OU ATIVIDADE? O termo ginástica tem origem grega que significa a “arte de exercitar o corpo nu” (NUNOMURA, 2009) e sua história vai se confundir com a própria história da humanidade e com a história da Educação Física. A ginástica existe há milhares de anos como uma prática educativa que visava à formação do corpo, conhecida também como educação física ou Ginástica médica terapêutica, praticada nas antigas civilizações com o objetivo de manter e melhorar a saúde. (PUBLIO, 1998 apud NUNOMURA, 2009, p. 18)

Na pré-história a ginástica era considerada toda e qualquer atividade física com caráter natural, utilitário, guerreiro. Natural através dos movimentos naturais ao ser humano como andar, correr, saltar, trepar, dentre outros; Utilitário pela necessidade de caçar, pescar, cultivar e manter sua sobrevivência; e Guerreiro pela necessidade vital de atacar e defender-se de animais e outras tribos. (PAOLIELLO, 1997) Na antiguidade, o discurso do culto ao corpo belo é exalto e a ginástica assume finalidades estéticas, de educação corporal e de preparação para a guerra, como os espartanos, sistematizada em forma de luta, natação, hipismo, remo, arco e flecha, em jogos e rituais religiosos. Esse discurso será materializado nas obras de arte espalhadas pelos museus em todo o mundo, com estátuas

de

homens

com

corpos

atléticos

e

esteticamente

perfeitos.

(PAOLIELLO, 1997) Na idade Média, com o controle da igreja e com o discurso de que o corpo deveria ser controlado e negado para “não cair em tentação”, pois a pratica corporal era considerada nesse período uma fonte de pecado e luxuria. A ginástica então ganha característica especifica e utilitárias com o objetivo de enobrecer o homem, fazendo-o forte e apto para a guerra e consequentemente defender a igreja nas cruzadas. Nessa fase as atividades valorizadas eram as lutas, esgrima e equitação. (PAOLIELLO, 1997) Na idade Moderna, o renascimento trouxe luz ao período sombrio construído na idade média fazendo ressurgir a ginástica em diversos países, principalmente na Europa. Era preciso recuperar o corpo massacrado pelas guerras, dos descuidos impostos pela igreja e pelos jejuns prolongados que serviam para salvar o corpo do pecado. Esse período é marcado pelo inicio da

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Práticas Corporais, Cultura e Diversidade

sistematização da Ginástica a partir da valorização dos movimentos naturais e ao ar livre. (NUNOMURA, 2009) E no início do século XIX, já idade contemporânea, surge o movimento ginástico em países da Europa como a Inglaterra, Alemanha, Suécia e França tendo como base o discurso médico, higienizador e de natureza disciplinar com a finalidade de adestrar o corpo, torná-lo forte, saudável, apto para guerra e para o trabalho (indústria), regenerar a raça, melhorar a saúde e desenvolver a moral (SOARES, 2004). Podemos afirmar que é a partir desse movimento que a ginástica se organizou, da forma como a concebemos nos dias atuais, tanto na escola, no lazer, no fitness e como modalidade esportiva. As modalidades esportivas da Ginástica são aquelas reconhecidas e regulamentadas pela Federação Internacional de Ginástica (FIG) a partir de seus códigos específicos e organizadas em: Ginástica Artística, Ginástica Rítmica, Ginástica Acrobática, Ginástica de Trampolim e Ginástica Geral. Para este momento nos interessa compreender melhor a história, os conceitos, os fundamentos e as características da Ginástica Geral, por ser considerada: “[...] um campo bastante abrangente da Ginástica, valendo-se de vários tipos de manifestações, tais como danças, expressões folclóricas e jogos, apresentados através de atividades livres e criativas, sempre fundamentadas em atividades ginásticas” (SANTOS, 2001, p. 23), e que utilizamos como base de nosso trabalho de intervenção. A Ginástica Geral (GG), também conhecida como Ginástica para Todos (GPT), foi idealizada por Nicolas Cupérus no século XIX, por acreditar que a ginástica deveria ser pensada fora do âmbito esportivo e competitivo. Para Cupérus os praticantes de ginástica deveriam ficar satisfeitos em superar seus limites corporais pelo esforço, força, agilidade e tenacidade, e consequentemente pela manutenção da saúde. No entanto ele se vê obrigado a deixar de lado suas concepções para ceder as pressões das Federações em sistematizar a Ginástica enquanto esporte Olímpico. Mas após sua morte, J. J. Sommer (antigo vicepresidente da FIG) resolve colocar em prática os anseios de Cupérus e organiza a I Gymnaestrada, em 1953, em Roterdã (Países Baixos), caracterizada como uma manifestação de ginástica que considerava o prazer da prática de atividade física em beneficio da saúde, sem nenhuma finalidade competitiva. (NUNOMURA et al., 2005)

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Devido ao seu caráter não competitivo, a Ginástica Geral apresenta como características principais a liberdade e a criatividade e em sua especificidade traz na base a acessibilidade para todas as idades, sexo, condição física ou técnica, proporcionando uma gama infinita de experiências motoras, o prazer do movimento, a superação individual e coletiva, além do resgate da cultura de cada povo e a interação social. Pois, “[...] os indivíduos participantes de um grupo de GG estão inseridos numa cultura e se manifestam por ela e com ela, não sendo possível dissociar o Homem da Cultura.” (NUNOMURA et al., 2009) A liberdade, característica fundamental da Ginástica Geral, se transforma também em dificuldade quando os estudiosos da área precisam caracterizar ou conceituar esta manifestação e por esse motivo ela é considerada tanto modalidade quanto atividade dentro da Ginástica. É considerada uma modalidade por ser reconhecida e orientada pela FIG, no entanto, por se apropriar dos elementos de outras modalidades através de adaptações e reconstruções, transforma-se também em atividade capaz de contribuir para a interação social, bem como para formação educacional e humana do individuo. (SANTOS, 2001) Por seu caráter de demonstração, de liberdade e criatividade, a Ginástica Geral assume algumas características artísticas e estéticas, sistematizadas em forma de coreografias dinâmicas, com liberdade na vestimenta, nos movimentos, temas, trilhas sonoras, com a possibilidade de utilizar ou não aparelhos, sento que estes podem ser infinitamente variados. No entanto, mesmo sem o rigor técnico na execução dos movimentos, estes devem ser executados com base nos elementos das outras modalidades da ginástica, dialogando com os elementos da dança, folclóricos e da cultura de forma harmoniosa. (SANTOS, 2001) A forma de atuar, o idealismo, a filosofia, o profissionalismo, a pedagogia, a herança cultural individual e de cada grupo social, enfim os vários elementos e valores que compões os pontos de vista dos atores dessa grande cena que é a vida, permitem diferentes posturas frente à própria vida e de outra forma não poderia ser quando se trata da Ginástica Geral. (SANTOS, 2001, p. 26).

Nessa perspectiva, a Ginástica Geral é uma modalidade que pode e deve

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estar presente nos cursos de formação de professores em educação física, nos clubes, projetos sociais, academias, e principalmente, na realidade escolar, valorizando a realidade dos alunos e suas manifestações da cultura corporal a nível, local, regional e nacional. Segundo Santos, “[...] a Ginástica Geral está inserida no contexto da Educação Física e é uma ferramenta importante da educação geral.” (SANTOS, 2010, p. 26). FOLCLORE: MANIFESTAÇÕES HISTÓRICAS E IDENTITÁRIAS DE UM POVO Falar em Cultura é falar de história, identidade, diversidade, nesse sentido a cultura de uma sociedade será resultado dos processos históricos, da lógica interna existente em cada grupo humano, de suas necessidades e interesses de mudanças (de ordem interna e externa), a forma de manipulação de recursos naturais, a maneira de organizar e transformar a vida em sociedade, de superar os conflitos de interesse, contradições e tensões geradas na vida social, que se tornam heterogêneas. É o processo de produção cultural e que faz com que os povos se diferenciem uns dos outros, cada um com as suas particularidades, formando assim a diversidade cultural. Para Santos (1994, p. 15), “[...] a diversidade das culturas existentes acompanha a variedade da história humana, expressa possibilidades de vida social organizada e registra graus e formas diferentes de domínio humano sobre a natureza”. A partir das Ciências Sociais, surgem duas concepções básicas sobre cultura: a primeira refere-se à Cultura como todos os aspectos de uma realidade social, ou seja, tudo aquilo que explica a existência de um povo; já a segunda concepção entende a Cultura especificamente ao conhecimento, as ideias e crenças de um povo, ou seja, as maneiras como eles existem na vida social. Assim, devemos entender que a cultura é dinâmica, passa por transformações de acordo com a realidade vivida por cada sociedade. Cultura é o conjunto de comportamentos, saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem, e transmitidas ao conjunto de seus membros. (LAPLATINE, 1988, p. 120).

Em estudos elaborados sobre Cultura, verifica-se a existência ampla de visões sobre seu conceito, sendo para alguns autores como Mello (2007), como

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um processo de simbologia, pois é por meio dele que as experiências são acumuladas e transmitidas; para Santos (1994) a Cultura é um conjunto da obra humana, além de ser um território para as lutas das classes sociais para uma condição de vida melhor; de acordo com Canclini (1983), além de ser simbólica a cultura também é uma prática econômica, e englobam a administração, a política, a economia, a tecnologia e outros; em Laraia (2006), a cultura é dinâmica pelo simples fato de um sistema cultural ter contato com outros sistemas ocasionando assim um “choque” de culturas. Para os antropólogos a Cultura é uma obra do homem, que existe para o homem, é uma tarefa social e não individual, pois a Cultura é formada pelo conjunto de experiências vividas pelo homem. Acreditamos que a Cultura é tudo aquilo que caracteriza um grupo humano, seja na sua organização social, na arte, na política, na linguagem, pois são esses elementos que explicarão a lógica existente em cada grupo. Além de influenciar no comportamento do homem, a Cultura também é influenciada pelo homem, por ser produto da coletividade humana. “Ou seja, a Cultura não é algo natural, não é uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Ao contrário, a Cultura é um produto coletivo da vida humana.” (SANTOS, 1994, p. 44). Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante. (SAHLINS et al., apud SANTOS, 1994, p. 59).

Assim percebemos relacionadas à cultura todas as instâncias e modelos de comportamento de uma formação social (a organização econômica, as relações sociais, as estruturas mentais, as práticas artísticas, etc.) sem construir uma hierarquia que leve em consideração o peso de cada uma. Sendo que, todas essas instâncias e modelos é que dão lógica ao sistema organizacional de uma sociedade, por estarem em constante interação. Ao falar de cultura falamos também de Folclore, que está diretamente relacionado a historia e identidade de um povo/sociedade. É considerada toda e qualquer manifestação tradicional relacionado aos bens materiais e imateriais, transmitidos pela oralidade. No entanto, antes do surgimento da palavra

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Folclore, já haviam historiadores, literatos, músicos eruditos, arqueólogos, antropólogos, antiquaristas, linguistas, sociólogos, outros especialistas e curiosos que estudavam os costumes e as tradições populares. (BRANDÃO, 2006, p. 26). Somente em 1946, o termo Folclore foi criado por William John Thoms e publicado pela revista The Atheneum, em Londres, no dia 22 de agosto. Etimologicamente falando, Folclore é uma palavra oriunda do inglês “Folk”, que significa povo, nação, raça; e “ Lore” que significa conhecimento, saber, educação, instrução. Inicialmente esse termo surge na tentativa de sistematizar e categorizar as tradições populares pela cultura erudita, a fim de se apropriar dessas manifestações para dominação sociopolítico de uma dada sociedade. Além disso, o termo vem para dar conta do estudo e da preservação das chamadas “antiguidades populares”, chamadas também de literatura popular, mas na verdade essas antiguidades eram o próprio saber do povo, resultante de suas experiência de vida e de outras gerações que vão para além de uma literatura. Para Gramsci apud Arantes (1990, p. 22), “[...] o folclore é um aglomerado indigesto de fragmentos”, pois ele é pensado como algo que está fora da realidade das pessoas, como algo que está perdido no contexto social. Porém o folclore não é uma manifestação do passado e que foi cristalizada no tempo, “coisa arcaica”, velha. O Folclore está vivo no cotidiano das pessoas, está presente nas coisas e nas tarefas mais simples do dia-a-dia. No Brasil, o estudo do Folclore foi introduzido na segunda metade do século XIX, por Celso de Magalhães (1849/1879), Silvio Romero (1851/1914) e João Ribeiro (1860/1934). Seguiram-lhe Arthur Ramos (1903/1949), Amadeu Amaral (1875/1929), Mario de Andrade (1893/1945), Renato Almeida (1895/1981) e Edílson Carneiro (1912/1972). Posteriormente, Joaquim Ribeiro, Alceu Maynard e Luis da Câmara Cascudo, considerado um folclorista mestre. (FRADE, 2002, p. 2) Os primeiros estudos no Brasil, voltaram-se para a poesia popular. Porém, Almeida sugeriu, em 1974, no seu “A inteligência do folclore” que, além da literatura, pudessem estudar aspectos da vida social, materiais e concretos como o artesanato, as indumentárias, os instrumentos musicais, além das formas de execução, as coreografias, os componentes rituais, e ainda as considerações econômicas, políticas, históricas e geográficas. Percebemos que,

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para Almeida, no entendimento do Folclore deve-se considerar “[...] o comportamento do grupo social onde existe e as formas que revestem o fato”. (ALMEIDA apud FRADE, 2002, p. 3). Posteriormente, após circunstâncias históricas como a necessidade de organizar estudos sobre o Folclore e o contexto pós-guerra, quando aumenta a preocupação com o Folclore junto a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em prol da paz mundial, Almeida resolve, então, assumir a presidência do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), pertencente ao Ministério do Exterior e vinculado à UNESCO, fundando assim, em 1946, a Comissão Nacional do Folclore (CNF). Essa comissão tinha como objetivo favorecer o estudo e a valorização do Folclore Brasileiro. Dessa forma, em 1951, é publicada uma documentação intitulada Carta do Folclore Brasileiro, no I Congresso Brasileiro do Folclore, realizado na cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de sistematizar o conceito e o objeto de estudo do Folclore. (FRADE, 2002, p. 3) 1. […] reconhece os estudo do Folclore como integrante das ciências antropológicas e culturais, condena o preconceito de só considerar folclórico o fato espiritual e aconselha o estudo da vida popular em toda sua plenitude, quer no aspecto material, quer no aspecto espiritual. 2. Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pala imitação e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação e conservação do patrimônio cientifico e artístico humanos ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica. (CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO, 1951, apud WOLFFENBÜTTEL, 2004, p. 111-112).

Em 1995, aconteceu o VIII Congresso Brasileiro de Folclore, para a atualização, considerando as contribuições das ciências humanas, bem como adoção de novas tecnologias, decidindo-se (re)conceituar o Folclore e seu objeto de estudo, definindo que: Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade. (CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO, 1995, apud WOLFFENBÜTTEL, 2004, p. 131).

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Segundo Andrade (2002), Folclore significa, correlatamente, o estudo ou ciência que tem por objeto de estudo a Cultura Popular. Já para outros autores Folclore é sinônimo de Cultura popular, porém discutiremos isso mais adiante. Para efeito sistematizador e analítico, o fato folclórico é dividido em 10 (dez) grupos, que são: festas, bailados, mitos e lendas, danças, recreação, música, ritos, sabença, linguagem, artes populares e técnicas tradicionais. Em sua obra O que é Folclore? Brandão (2006) caracteriza o fato folclórico em tradicional, pois é através dela que prevalece a resistência contra a dominação, a colonização, mantendo suas origens e tudo aquilo que caracteriza um povo; coletivizado, onde através da aceitação é conhecido e reproduzido sofrendo modificações de grupo para grupo, de acordo com cada realidade;

identidade de um povo, pois são os elementos folclóricos que irão diferenciar um povo do outro, resistindo à dominação; criativo, sendo uma das maiores capacidades do homem de criar, recriar, inovar, recuperar, incorporar o velho no novo, retomar o antigo a tradição; anônimo, porque mesmo que saibamos seus autores, depois de algum tempo sua autoria cai em domínio público, e assim, a partir de cada realidade ele ganhará uma nova interpretação, um novo significado; dinâmico, pois com o passar do tempo, a cada transformação social, ele ganhará uma nova roupagem, uma nova maneira de representação como estratégia para manter a preservação e a valorização do Folclore, pois as pessoas só valorizam e cultivam aquilo que tem significado pra elas; persistente, pois para manter-se vivo e significativo, o Folclore incorpora elementos novos da realidade sendo recriado para continuar conservando-se de geração para geração, de grupo para grupo; funcional, pois ele tem um significado, um valor imensurável para quem o produz, é o caminho para fortalecer sua existência, sua origem. Além disso, seu aprendizado ocorre através da oralidade e da

imitação, ou seja, não precisamos ir a uma Escola ou a uma Universidade, como fazemos para nos apropriar da cultura erudita de forma sistematizada, para aprendermos o Folclore e a Cultura Popular, pois seu aprendizado ocorre nas relações interpessoais, nas situações que ocorrem no dia-a-dia das pessoas. Desta maneira, entende-se que o Folclore está contido num processo histórico, pois os elementos do fato folclórico existem para explicar nossa origem, nosso passado e consequentemente, explicar o presente. Esses elementos só continuarão a se perpetuar e fazer parte no nosso cotidiano, se neles

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existirem valor e significado para quem os vive, pois, caso contrário, serão deixados de lado, virando apenas uma lembrança em nossas memórias. MOSTRA DE GINÁSTICA GERAL E FOLCLORE E A INTERDISCIPLINARIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A Mostra de Ginástica Geral e Folclore (MGGF) do curso de Licenciatura em Educação Física da ESMAC vêm promovendo desde 2008, através de um projeto de Ensino, Pesquisa e Extensão, a valorização da diversidade cultural amazônica, através da interdisciplinaridade entre as disciplinas Ensino da Ginástica (EG) e Ensino da Cultura Corporal Amazônica (ECCA), estimulando nos acadêmicos o ensino, através do exercício de sua docência, elaborando planos de aulas com proposta de práxis superadora, despertando o entendimento da Educação Física nos seus variados campos de atuação. A pesquisa, estimulando os discentes por intermédio de pesquisas bibliográficas, no acervo da própria instituição ou demais universidades locais, ou em bibliotecas digitais. Extensão, desenvolvida pelos discentes através de ações comunitárias, aulas abertas de Ginástica e Dança, aguçando o desenvolvimento criativo para a elaboração coreográfica da mostra. No segundo semestre 2017, foi realizada a 9ª edição da MGGF com o envolvimento de 02 turmas do 4º semestre do curso de Licenciatura em Educação Física, sendo 1 no período vespertino e 1 no período noturno, envolvendo a participação de aproximadamente 80 alunos no total. O processo de preparação transcorreu nos meses de agosto a novembro, correspondentes do ano de 2017, ocorrendo através de debates das leituras específicas de cada disciplina; de práticas corporais pedagógicas desenvolvidas em sala de aula; com os estudos sobre os referenciais teóricos; utilizando-se vídeos, filmes e pesquisas bibliográficas. No final do mês de outubro iniciamos a organização dos trabalhos dividindo as turmas em um total (06) equipes de 10 a 15 alunos. As equipes pesquisaram e construíram seus trabalhos a partir dos temas com base nos objetos de estudo do Folclore, estabelecidos pelos professores das disciplinas, utilizando o critério de sorteio dos seguintes temas: danças folclóricas, ritmos

populares, lendas e mitos, manifestações de rua, manifestações religiosas e folguedos populares. Os ensaios para elaboração coreográfica aconteceram sob 158


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supervisão dos professores responsáveis sempre nos horários de aulas das disciplinas, EG e ECCA. Todo o processo de construção das apresentações da MGGF foi organizado com base nas orientações de festivais de Ginástica Geral (SANTOS, 2010), partindo da observação da realidade do grupo no que tange a quantidade de integrantes, experiência motora, nível técnico, habilidade, idade, capacidades físicas, interesse musical e características pessoais. Em seguida, com a escolha do subtema, a partir dos temas sorteados, para então escolher o tipo de apresentação como tipo de aparelho, tipos de ginásticas, estilo de dança. Partindo para a escolha dos movimentos, adequando para a realidade do grupo, combinado

com

os

movimentos

ginásticos

e

folclóricos,

com

os

matérias/aparelhos escolhidos, além das formações humanas, geométricas e dos planos (baixo, médio e alto), tendo como prazo de preparação o período de 30 dias (09 de outubro a 09 de novembro de 2018). Cada equipe construiu seu trabalho a partir dos seguintes critérios: Trabalho em equipe com apresentação coreográfica de 5 a 7 minutos. Tendo como critérios de avaliação: Qualitativo – quanto ao compromisso, responsabilidade, participação na produção coreográfica, assiduidade e pontualidade, durante as aulas/ensaios para elaboração coreográfica. Técnico – relacionado a criatividade, diálogo entre os conteúdos das disciplinas EG e ECCA, ou seja, presença dos elementos ginásticos (movimentos primários da ginástica artística, acrobática, rítmica e geral) e folclóricos (características essências das manifestações folclóricas apresentadas), além da pesquisa bibliográfica sobre o objeto de estudo. Artístico – quanto a organização da equipe, referente a indumentárias, trilha sonora, coreografia/expressão corporal e/ou cenário e estética da apresentação de maneira geral. O resultado desse processo foi apresentado no dia 10 de novembro de 2017, das 19h às 21h na Praça da Bíblia, na cidade de Ananindeua (PA). Além dos registros fotográficos feitos pelos professores das disciplinas envolvidas e pelos próprios acadêmicos, temos também os relises (resumos) de cada apresentação elaborados por cada equipe.

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REGISTRO E RELISE DAS APRESENTAÇÕES

1. Ao som da Marujada (Manifestação religiosa) O tema da apresentação é a Marujada de Bragança e temos como título “Ao som do Marujada”. Trata da festividade em devoção a São Benedito na Cidade de Bragança que teve sua origem na Marujada, sendo a mais conhecida dança folclórica da região, temos vários tipos de danças da Marujada como o retumbão, mazurca, valsa, xote, contra dança e bagré, e selecionamos algumas para nossa apresentação. A apresentação vem demonstrar de maneira artística uma releitura manifestação religiosa que ocorre no mês de dezembro em Bragança, começando por uma procissão e logo em seguida finalizando com o momento profano da manifestação, a dança da marujada. Os elementos da ginástica que será utilizado é o girar, saltar e andar, o folclore presente na apresentação é a dança em si e seus símbolos que se fazem presentes na manifestação religiosa, conforme se visualiza na figura 1. Figura 1 – Ao Som da Marujada

Fonte: Arquivo pessoal.

2. Boi – Bumbá: Cantando e Dançando a Arte do Norte (Folguedos Populares) Nessa apresentação, vamos apresentar uma das mais belas manifestações culturais do Norte do país. Considerado um folguedo popular, o Boi-Bumbá é uma espécie de opereta popular que acontece nas ruas de Belém (PA), no período junino. Acompanhada de musica, dança e teatro. A apresentação faz uma releitura artística desse folguedo trazendo ao publico presente uma coreografia acompanhada por uma música regional,

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acompanhada de dançarinos, representando a influencia indígena dessa manifestação que dança e brinca de maneira alegre com o personagem principal, o Boi. Além disso, temos como objetivo resgatar as traições culturais e apresentá-la as novas gerações a fim de preservá-las. Na Construção coreográfica utilizamos os elementos da Ginástica como: o saltar, o girar, o pular. E como elemento Folclórico, os movimentos básicos do ritmo Boi-Bumbá, traje, trilha sonora, e o símbolo maior da manifestação, o Boi, como retratado na figura 2. Figura 2 – Boi – Bumbá: Cantando e Dançando a Arte do Norte

Fonte: Arquivo pessoal.

3. Siriá: o milagre de Cametá para o Mundo (Dança Folclórica) Trata-se de uma dança folclórica do município de Cametá chamada Siriá que se apresenta com expressões de amor, sedução e gratidão em sua coreografia, na qual a gratidão foi a principal justificativa do surgimento da Dança do Siriá. O mito do surgimento conta que um milagre ocorreu fazendo surgir centenas de siris na praia para os escravos pescarem, diante desse fato eles criaram a dança como forma de agradecer. A apresentação foi pensada e criada para retratar o mito da criação do Siriá, onde são executados movimentos, que remetem aos que os indivíduos faziam com as redes ao pescar o crustáceo que dá nome à dança. O trabalho tem por objetivo apresentar a dança que faz parte da cultura paraense, uma vez que não é uma dança comum nas manifestações culturais, e também desenvolver elementos da ginástica que estão compondo a dança folclórica. Os elementos da Ginástica apresentados na coreografia são: Andar;

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Saltar; Girar e a Ginástica natural. Já os elementos folclóricos são: Dança; trilha sonora e traje. Figura 3 – Siriá: o milagre de Cametá para o Mundo

Fonte: Arquivo pessoal.

4. Arraial do Pavulagem – Encanto do Boi (Manifestações de rua) A apresentação do grupo foi inspirada no Arraial do Pavulagem, manifestação de rua característica da cultura popular paraense, presente no período junino, nas festas do Círio de Nazaré e no Carnaval. Trazendo com tema Arraial do Pavulagem – O Encanto do Boi. O Arraial do Pavulagem, criado em 1987, é um grupo musical paraense que trabalha com a rítmica da música tradicional produzida na Amazônia brasileira, formado pelos músicos Ronaldo Silva, Júnior Soares, Rui Baldez. A coreografia traz em sua composição movimentos do boi-bumbá, e seus símbolos como: personagem principal o Boi, o Cabeçudo e Estandartes. Figura 4 – Arraial do Pavulagem – Encanto do Boi

Fonte: Arquivo pessoal.

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5. Maldição da Matinta Perera (Lendas e Mitos) A apresentação gira em torno da lenda amazônica da Matinta Perera, onde uma velha toda de preto e cabelos cobrindo seu rosto, tendo também a capacidade de se transformar em pássaro, mais conhecido como rasga mortalha, que através de seus gritos e assobios assombram e amaldiçoam aqueles que não atendem seu pedido de lhe deixar café e tabaco. A dança mostrará um grupo de Ribeirinhos que se encontram com a Matinta Perera, e por não atenderem seu pedido, serão amaldiçoados por ela. A dança mostrará movimentos básicos da Ginástica Geral como correr, saltar, girar, acrobacias, trabalhando também força e equilíbrio, representado pela figura 5. Tem como objetivo mostrar uma forma moderna de tratar a dança e a história de Lendas do nosso folclore. Figura 5 – Maldição da Matinta Perera

Fonte: Arquivo pessoal.

6. Cronologia do Brega (Manifestações populares) A composição coreográfica da equipe trata da Cronologia do Brega apresentando as mudanças que ocorreram durante os anos. Passando desde o brega romântico (música: Ao pôr do sol, Conquista) onde os casais dançavam juntos, logo em seguida a entrada na batida do tecnomelody (música: Fantasias). Apresentando em seguida as músicas mais atuais, como o treme e as aparelhagens (músicas: Galera da Laje, Crocodilo). Temos como principais elementos os movimentos básicos do brega, braços alongados, giros, aviãozinho, estrelinha e pulos, característicos da ginástica e da cultura popular. A apresentação mostra a diversidade da cultura

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paraense, só no estado do Pará existe o tecnomelody ou tecnobrega. Pode ser dançado sozinho ou em casal; a coreografia busca apresentar os momentos mais marcantes que aconteceram durante as transições temporais do ritmo. Figura 6 – Cronologia do Brega

Fonte: Arquivo pessoal.

Para complementação do processo avaliativo foi realizada a avaliação dialogada com os grupos sobre e cada equipe apresentou aos professores seus relatórios. As equipes levantaram pontos positivos sobre a necessidade de conhecer e valorizar as manifestações tradicionais amazônicas, a importância de respeitar a diversidade cultural, compreender as relações étnico-raciais e suas contradições e, a contribuição da atividade para sua formação profissional. Como pontos negativos os alunos apontaram o pouco conhecimento que possuem da sua cultura e das manifestações folclóricas, como resultado de lacunas na sua formação escolar e a dificuldade de trabalhar em coletivo a partir de interesses, diversidade, contradições e limitações pessoais e cada integrante do grupo. A partir dessa avaliação percebemos a necessidade de continuarmos com este projeto por considerarmos que o professor de educação física ao tratar das manifestações da cultura corporal precisa conhecer e compreender a totalidade da diversidade cultural de seus alunos para que haja uma educação física superadora e transformadora na vida dos sujeitos envolvidos. CONSIDERAÇÕES FINAIS O

corpo

humano

nos

permite

possibilidades

de

movimentos,

sobreposições de linguagens. Esta aproximação de ginástica e da própria

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cultura brasileira vem estabelecer uma relação dialética da assimilação do outro com transformação, podendo criar novas relações nas coreografias de ginástica geral e folclore, a partir da diversidade cultural amazônica, proporcionando várias formas de comunicação e expressão. Estas diversidades culturais podem ser observadas intensamente através dos estudos coreográficos realizados pelos alunos do Curso de Educação Física da ESMAC. E assim, acreditamos que quando entendemos o sentido de um movimento, de uma música, de uma dança, de um folguedo, de uma manifestação popular ou religiosa, de uma lenda, de uma cantiga ou de uma brincadeira do universo folclórico de maneira histórica e contextualizada, então podemos realizar uma releitura e transformá-la em uma coreografia, em outro universo, alcançando assim dimensões sociais, culturais a pedagógicas que nos propomos a trabalhar com a ginástica geral e o folclore. Pois, é nos reconhecendo como sujeitos históricos, com nossas relações e contradições, é que poderemos aspirar a transformação da nossa realidade, do outro e da educação do nosso país. General Gymnastics and Folklore Festival: an experience of valorization of cultural diversity in teacher’s training in the Physical Education Degree Course from Madre Celeste Higher Education Institution (ESMAC) Abstract: This approach to gymnastics and Brazilian culture itself establishes a dialectical relation between the assimilation of the other with transformation and can create new relationships in the choreography of general gymnastics and folklore, thus transmitting a cultural diversity, providing various forms of communication and expression. We believe that when we understand the meaning of a movement of the folklore universe and is contextualized, reaching dimensions that we propose when working with general gymnastics. Thus, the General Gymnastics and Folklore Festival (MGGF) emerges as an interdisciplinary Teaching, Research and Extension project, carried out in the Physical Education Degree Course of the Madre Celeste Higher Education Institution (ESMAC), since 2008, where it presents to the academic community the interdisciplinary works of completion of the disciplines: Teaching of Gymnastics (EG) and Teaching of the Amazonian Body Culture (ECCA). Both taught in the 4th semester of the course. The objective is to value the regional cultural diversity, with an interdisciplinary characteristic, between two disciplines, EG and ECCA, in addition to promoting the teaching-research-extension tripod in the ESMAC Physical Education Degree Course. In this sense, this manuscript aims to report an experience of appreciation of cultural diversity in the training of teachers of the Physical Education Degree Course of the Madre Celeste Higher Education Institution (ESMAC). As a result of this academic experience, we observed that the model used as a teaching-learning strategy allowed the students to understand the traditional manifestations and its diversity, as well as to recognize historical subjects of their culture. In addition to promoting a critical reflection on their teaching praxis. Keywords: Physical Education; General Gymnastics; Folklore; Cultural diversity.

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REFERÊNCIAS ALMEIDA, Felipe Quintão et al. As práticas de desinvestimento pedagógico na Educação Física escolar. Movimento, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 129-147, abr./jun. 2010. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Folclore. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. FRADE, Cáscia. Folclore/Cultura Popular: aspectos de sua história. In: ENCONTRO COM O FOLCLORE, 10., 2005, Campinas. Anais... Campinas: UNICAMP, 2005. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. FRIGOTTO, Gaudêncio. O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In: FAZENDA, Ivani (Org.). Metodologia da pesquisa educacional. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2010. LAPLATINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1988. NUNOMURA, M.; PICOLLO-NISTA, V. L. Fundamentos da Ginástica. São Paulo: Phorte, 2005. NUNOMURA, M.; HARUMI, M.; TSUKAMOTO, C. Compreendendo a Ginástica Artística. Jundiaí: Fontoura, 2009. SANTOS, José Carlos Eustáquio dos. Ginástica geral: elaboração de coreografias, organização de festivais. Jundiaí: Fontoura, 2001. SANTOS, José Luiz dos. O que é Cultura. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 2012. SOUZA, E. P. M. de. Ginástica Geral: uma proposta para a educação física escolar e comunitária. 2002. WOLFFENBÜTTEL, Cristina Rolim. Vivências e concepções de folclore e música folclórica: um survey com alunos de 9 a 11 anos do ensino fundamental. 2004. 141 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.

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O imaginário amazônico e a musicalidade do Maestro Waldemar Henrique: uma proposta do ensino da dança na escola de acordo com a Abordagem Crítico-Superadora Giovelângela Maria dos Santos Costa de Paula (SEDUC/PA) 42 Rayanne Mesquita Estumano (UEPA) 43 Bruno Luiz de Diniz Santa Brigida (UEPA) 44 Resumo: O artigo trata do conteúdo dança, tendo como suporte teórico a abordagem crítico-superadora, adotando o materialismo histórico-dialético como parâmetro científico. Realizou-se uma análise qualitativa, o qual se utilizou das ações metodológicas descritivas, com uma coleta de dados sustentada a partir de observações e interpretações dos momentos pedagógicos. O instrumento de coleta de dados, anotações das falas dos alunos e a partir de observações de dimensões atitudinais do conteúdo dança. O artigo tem como objetivo apresentar possibilidades do trato do conteúdo dança, a partir de músicas do Maestro Waldemar Henrique, tendo como parâmetro teórico-metodológico a abordagem crítico-superadora. Conclui-se que é possível tratar a dança como conteúdo de aulas de Educação Física, orientada pela abordagem críticosuperadora a partir da obra do Maestro Waldemar Henrique. Palavras-chave: Cultura Amazônica. Educação Física. Abordagem Crítico-Superadora. Dança.

INTRODUÇÃO Como perspectiva pedagógica, a abordagem crítico-superadora, que entende que a cultura corporal (jogos, esportes, ginásticas, danças e capoeira) tem relação com os conteúdos que devem ser tratados nas aulas de Educação Física. Nesse estudo, é tratado especificamente o conteúdo dança. Em um clássico da Educação Física – Metodologia do Ensino de Educação Física (SOARES et al., 2012) –, é apresentada uma proposta pedagógica para o ensino da dança. Mas, o clássico não dá conta de todos os tipos de dança. Dessa forma, o estudo contribui no preenchimento desta lacuna de conhecimento na Educação Física. Com isso, a questão central do trabalho investiga de que modo é possível desenvolver o conteúdo dança, levando em conta o imaginário amazônico, a 42

Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professora da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC/PA). E-mail: cgiovelangela@yahoo.com.br 43 Licenciada em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: rayestumano@hotmail.com. 44 Licenciado em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Especializando em Pedagogia da Cultura Corporal na Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: brunosantabrigida@yahoo.com.br

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partir da obra do Maestro Waldermar Henrique, em aulas de Educação Física, na abordagem crítico-superadora, com questões norteadoras sobre os fundamentos da abordagem crítico-superadora, a contribuição intelectual do Maestro Waldemar Henrique no imaginário amazônico e, a possibilidade de desenvolver o conteúdo dança, levando em conta o imaginário amazônico, a partir da obra do Maestro Waldermar Henrique, em aulas de Educação abordagem crítico-superadora? Como referencial científico para a análise dos dados foi adotado o materialismo histórico-dialético, realizando-se uma análise qualitativa, a partir dos fundamentos da abordagem crítico-superadora e das observações e registros das aulas. Assim, o capítulo está organizado em três seções: 1) A abordagem crítico-superadora; 2) Maestro Waldemar Henrique e Lendas Amazônicas e; 3) O caminho da escola. Na primeira seção, são apresentados os fundamentos da abordagem crítico-superadora, apresentando sua origem, importância e metodologia no ensino básico. Na seção seguinte, é apresentada a vida e obra do Maestro Waldemar Henrique de modo que seja compreendido como sua obra influenciou o imaginário amazônico. E, na terceira e última seção, é apresentada a análise dos dados, explicitando uma possibilidade do conteúdo dança em aulas de Educação Física, no ensino, a partir da abordagem crítico-superadora, levando em conta a cultura popular paraense, mais especificamente as contribuições do Maestro Waldemar Henrique. A ABORDAGEM CRÍTICO-SUPERADORA Esta seção tem como objetivo apresentar os fundamentos didáticometodológicos da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) e da Abordagem CríticoSuperadora (ACS), e a necessidade da presença no ensino escolar. Saviani (2009) adota a concepção marxista de homem, sociedade e de projeto histórico. Para o autor a sociedade está dividida em duas classes (burguesia e proletariado). Para Saviani (2009) a classe trabalhadora é a responsável pela criação das condições materiais de existência da humanidade, está subordinada aos interesses da classe burguesa e almeja a superação de sua

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condição de classe subordinada, enquanto que a burguesia tem como objetivo a manutenção do status quo, ou seja, a manutenção de sua soberania sobre a classe trabalhadora, a partir da exploração da força de trabalho e da extração de mais valia. Com isso em vista, Saviani (2009) entende que uma forma de fortalecer a classe trabalhadora e contribuir no processo de superação de classe subordinada é através de uma educação que almeje a superação de classe, tendo a escola um papel importantíssimo nesse processo. Assim, Saviani (2009) acredita que é dever da escola oportunizar o acesso aos conhecimentos científicos mais avançados para contribuir na formação de cidadãos críticos, que entendam que a sociedade é dividida em classes e que uma forma de superar sua condição de classe (trabalhadora) é através de uma educação crítica. Para Saviani (2009) uma educação crítica é aquela que permite perceber além das aparências, ou seja, que cultura, educação e trabalho não são neutros, pois seguem uma direção (superação ou subordinação da classe trabalhadora). Para Saviani (2009), cultura é produzida pelo trabalho humano, historicamente construída e acumulada e socialmente referenciada (ou seja, segue uma direção de classe). Saviani (2009) entende como trabalho, o processo pelo qual homens transformam a natureza para construção de produtos para suprir suas necessidades e transformar outros homens, construindo a sociedade. Ou seja, é através da produção cultural que os homens constroem a si mesmos. Dessa forma, entende-se que a socialização da cultura é fundamental para que a classe trabalhadora construa a si mesma e que supere sua condição de classe subordinada. Tanto a PHC quanto a ACS são teorias que se fundamentam no Materialismo Histórico-Dialético (MHD), tendo a segunda se originado da primeira. A PHC foi criada por Dermeval Saviani como uma maneira de confrontar e superar as teorias pedagógicas não-críticas. (SAVIANI, 2009) A PHC, de acordo com Saviani (2009) é estruturada em momentos didático-metodológicos: 1) Prática Social Inicial, 2) Problematização, 3) Instrumentalização, 4) Catarse e 5) Prática Social Final, compreendidas da seguinte forma:

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A prática social inicial é o primeiro contato com os estudantes, momento que dá início ao entendimento sobre a realidade dos alunos. Acreditase que a prática social inicial ocorra antes do contato direto com os estudantes, pois conhecer a escola e a comunidade que a cerca é fundamental para compreensão sobre os alunos. De acordo com Taffarel (1985, p. 22): Se faz mister que todas as opções e compromissos subsequentes estejam baseados em um honesto e concreto equacionamento dos problemas antropológicos, socioculturais. Considera-se que, quanto mais se conhece detalhes do contexto de trabalho (pessoas, grupos, instituições), maiores são as possibilidades de atuação para uma mudança. Esta mudança é fruto da organização de situações que se irradiam para além da escola, atingindo pessoas, grupo, instituições e sociedade.

Sendo assim, “[...] quanto mais precisas forem às informações sobre as condições para o ensino-aprendizagem, ou seja, as condições antropológicas e sócio-culturais, maior é a possibilidade de o processo decisório ser coerente com a realidade do aluno [...]” (TAFFAREL, 1985, p. 22-23). Portanto, o entendimento detalhado sobre as condições sociais dos alunos é necessário para construção de aulas coerentes com o real. Saviani (2009) conceitua a prática social inicial como a compreensão das condições materiais objetivas às quais professores e estudantes estão sujeitos. A segunda etapa, problematização, de acordo com Saviani (2009), consiste em, a partir dos conhecimentos obtidos através da prática social inicial, levantar questões para serem discutidas ao longo da aula. Isso não quer dizer que todas as questões levantadas serão discutidas em apenas uma aula, podendo ser encaminhadas para os próximos encontros, sendo discutidas ao longo do plano de ensino de acordo com as necessidades dos alunos. Em seguida, na etapa intitulada instrumentalização, o professor apresenta conhecimentos que os alunos necessitam para resolver as questões levantadas na problematização. Tal conteúdo apresenta o direcionamento dos fundamentos teóricos produzidos e acumulados historicamente pela humanidade a partir da ciência moderna. (SAVIANI, 2009) No quarto passo didático metodológico da PHC, catarse, os alunos apresentam as estratégias que criaram para solucionar os problemas levantados em sala de aula. Saviani (2009, p. 64) entende a catarse como o “[...] momento de

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expressão elaborada da nova forma de entendimento da prática social a que se ascendeu [...]. Trata-se da efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados em elementos ativos de transformação social”. Há diversas formas que os alunos podem utilizar para expressar as estratégias, como desenhos, apresentação de coreografias, textos falados e escritos, entre outras formas, de acordo com o ciclo e outras características da turma. E, na última etapa didático-metodológica, na prática social final, os alunos apresentam de maneira concreta o que aprenderam nas aulas. Para Saviani (2009) esta é a etapa em que os estudantes não mais compreendem o conteúdo em termos sincréticos, mas sim de modo sintético. Nesse momento, os estudantes conseguem compreender a prática social de modo tão elaborado quanto era possível ao professor. As etapas didático-metodológicas da Pedagogia Histórico-Crítica não são lineares, ou seja, não seguem necessariamente essa ordem de forma rígida, podendo, em determinadas situações, apresentar o predomínio de uma, duas ou mais etapas. O que foi mostrado foi uma maneira didática de apresentar a lógica do pensamento da PHC. A metodologia didático-pedagógica da PHC pode ser desenvolvida a partir de qualquer disciplina no ensino básico (Língua Portuguesa, Matemática, Biologia, etc.), inclusive pela Educação Física. Na Educação Física, o Coletivo de Autores se apropria da PHC e cria uma abordagem pedagógica para essa área do conhecimento, intitulando-a de abordagem crítico-superadora (ACS), expressa, inicialmente, no livro Metodologia do Ensino de Educação Física. (SOARES et al., 2012) A ACS, fundamenta-se filosófica e cientificamente no MHD e, pedagogicamente, na PHC. É uma abordagem pedagógica específica da Educação Física, conceituada por Soares et al. (2012) como uma contraposição ao paradigma dominante na Educação Física, ao paradigma da aptidão física, no qual o principal objetivo é o desenvolvimento de valências físicas (força, velocidade, flexibilidade, etc.), deixando em segundo e terceiro planos, os aspectos psicológicos e sociais. Tendo como base essa perspectiva, o Soares et al. (2012, p. 61-62) entendem que “A que trata, pedagogicamente, na escola, do conhecimento de uma área denominada aqui de cultura corporal [...]

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configurada com temas [tais como]: jogo, esporte, ginástica, dança ou outras [...]”. Para Soares et al. (2012), essa abordagem surge para confrontar a tradicional Educação Física, pautada essencialmente no desempenho prático dos alunos, tendo como principal objetivo o desenvolvimento da aptidão física. Contrapondo-se ao paradigma da aptidão física, a ACS entende que o principal papel da Educação Física no ensino escolar é proporcionar o aprendizado da cultura corporal (jogos, ginásticas, danças, esportes e capoeira). A ACS não nega a necessidade dos aprendizados técnicos, mas compreende que a cultura corporal é mais do que técnicas motoras, entendendo que a prática pedagógica da Educação Física deve ser diagnóstica, judicativa e teleológica. Diagnóstica, pois precisa constatar os dados da realidade. Judicativa, pois necessita fazer julgamento, análises, interpretações da realidade constatada. E teleológica, pois deve ter um alvo para alcançar, ou seja, deve ter claro que projeto de homem e sociedade defende. (SOARES et al., 2012) Outro aspecto característico da abordagem é considerar os ciclos de aprendizagem no planejamento das aulas. Sendo uma teoria pedagógica fundamentada no MHD, leva em conta que os conhecimentos no ensino escolar devem ser organizados de acordo com uma espiral de conhecimento, que amplia e aprofunda os conteúdos ao longo das etapas. Para Soares et al. (2012), os ciclos de aprendizagem são uma maneira de organizar os conteúdos do ensino escolar, distribuídos em quatro ciclos que abrangem todo o ensino básico. O primeiro ciclo (pré-escola à 3ª séries) é o ciclo de organização da identidade dos dados da realidade, de modo que o aluno se encontra num estado de síncrese, ou seja, compreendem os dados da realidade de forma caótica, difusa, misturada, cabendo ao professor “[...] organizar a identificação desses dados constatados e descritos pelo aluno para que ele possa formar sistemas, encontrar as relações entre as coisas, identificando as semelhanças e as diferenças.” (SOARES et al., 2012, p. 36). No segundo ciclo (4ª à 6ª séries), denominado ciclo de iniciação à sistematização do conhecimento, o aluno deve adquirir consciência de sua atividade mental, ou seja, deve confrontar os dados da realidade com os seus

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pensamentos. O aluno salta qualitativamente quando estabelece generalizações conceituais. Em seguida, no terceiro ciclo (7ª à 8ª séries), ciclo de ampliação da sistematização do conhecimento, “O aluno amplia as referências conceituais do seu pensamento; ele toma consciência da atividade teórica, ou seja, de que uma operação mental exige a reconstituição dessa mesma operação na sua imaginação [...] (SOARES et al., 2012, p. 36)”. O aluno avança qualitativamente quando reorganiza a constatação dos dados da realidade através do pensamento. E, no quarto e último ciclo (1ª, 2ª e 3ª séries do ensino médio), ciclo de aprofundamento da sistematização do conhecimento, o aluno inicia o processo de percepção, compreensão e explicação das propriedades comuns e regulares dos objetos. É nesse ciclo que o aluno lida com a regularidade científica, podendo inclusive ser estimulado à produção de conhecimento científico. O aluno avança qualitativamente ao estabelecer as regularidades dos objetos. (SOARES et al., 2012) Ao longo dos ciclos de aprendizagem, que compreendem o percurso dos estudantes no ensino básico, os conteúdos da Educação Física, tendo como referencial teórico-metodológico a ACS, são tratados pela cultura corporal, nas aulas de Educação Física. Os jogos, ginásticas, danças, esportes e capoeira podem ser organizados de diversas formas, tendo esta seção como objetivo apresentarem os fundamentos que norteiam a teoria pedagógica adotada e não apresentar fórmulas prontas, tendo em vista as variedades culturais das escolas e dos alunos. E levando em conta que, além de conhecimentos científicos, a escola deve oferecer o contato com a cultura popular, este estudo trata de um conteúdo específico da cultura corporal: a dança, mais especificamente, a dança popular paraense. Desse modo, na próxima seção, será apresentada a vida e obra do Maestro Waldemar Henrique, este importante intelectual e artista paraense. O CAMINHO DA ESCOLA A Escola Municipal Professora Palmira de Oliveira Gabriel, foi inaugurada em novembro de 1985, na gestão do prefeito Almir José de Oliveira Gabriel. O prédio fica localizado na Travessa Timbó n. 681, entre Antônio Everdosa e Rua Nova, no Bairro da Pedreira em Belém do Pará.

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Foi construída em março de 1980, em terreno doado pela prefeitura de Belém por meio do convênio entre o Ministério da Educação e a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (MEC/CNAE) e o Governo do Estado na gestão do governador Cel. Alacid da Silva Nunes, para funcionamento de uma repartição da Fundação de Amparo ao Estudante (FAE) denominada Cantina II, posteriormente adaptada para escola. Autorizada a funcionar por meio das Resoluções n. 515/89 e 002/90 do Conselho Estadual de Educação com ensino de pré-escolar a 4ª série e supletivo. A Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental “Palmira de Oliveira Gabriel” está situada em áreas periféricas do Município de Belém, no bairro da Pedreira. O bairro é conhecido como “Pedreira do Guamá”, local escolhido pelo General Francisco José de Souza Soares para o desembarque das forças imperiais que combateram os cabanos, durante a guerra dos cabanos no Estado do Pará. De acordo com informações fornecidas pela escola, os alunos matriculados na instituição são moradores do bairro, matriculadas na escola geralmente por vizinhos ou até mesmo fazem parte de uma mesma família. Essas famílias, em sua maioria, são formadas por pessoas com grau de escolaridade baixa, residentes em moradias simples. Um bairro com vulnerabilidade social latente. A maioria das famílias que fazem parte da comunidade escolar é assalariada e com renda não fixa. As situações expostas comprometem de maneira gradativa a participação dos pais no processo ensino aprendizagem dos estudantes, pela ausência nas atividades escolares e na vida de seus filhos. A Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Palmira de Oliveira Gabriel, conta com cerca de 460 alunos, distribuídos nos turnos da manhã, intermediário, tarde e noite, 40 professores e 14 funcionários dos setores técnico-administrativos. A escola disponibiliza 6 salas de aula, laboratório de informática, biblioteca, secretaria, sala de professores, sala de arquivo, sala especializada e uma quadra poliesportiva. DIÁLOGO DA PRÁXIS PEDAGÓGICA O planejamento político pedagógico da escola se organiza de acordo com a proposta da Secretaria Municipal de Ensino e estabelece seus objetivos de

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acordo com as necessidades e realidade da escola, pontuando como objetivo: escola, cultura e educação. Durante esse período de atuação pedagógica foram utilizadas nas aulas, a cultura corporal: jogo, dança, esporte, lutas e ginástica, proposta pelo Coletivo de Autores, como conteúdo das aulas de Educação Física e destacando também a cultura popular como propulsora nas aulas, neste caso, a riqueza da musicalidade do Maestro Waldemar Henrique. O planejamento é feito por bimestre. Desta forma, confirma-se que existe um planejamento organizado dos conteúdos a serem abordados e tais conteúdos são diversificados, demonstrando a apropriação e preocupação em passar para os alunos o vasto repertório da cultural corporal. (SOARES et al., 2012). Observa-se a existência do trabalho interdisciplinar com os conteúdos da Educação Física, conforme Soares et al. (2012, p. 30): Cada disciplina deve ser considerada na escola como um componente curricular que só tem sentido pedagógico à medida que seu objeto se articula aos diferentes objetos dos outros componentes do currículo (Línguas, Geografia, Matemática, História, Educação Física etc.).

A abordagem crítico-superadora serve como mola propulsora para o desenvolvimento das aulas. Segundo Xavier Filho e Assunção (2005, p. 29) “é uma abordagem propositiva, pois estabelece critérios para a sistematização dessa disciplina no âmbito escolar. E se apresenta pautado em um projeto histórico de sociedade que tem como princípio a superação da sociedade capitalista”. Toda a abordagem teórica adotada pelo professor irá conduzi-lo para o sucesso de sua prática. No cotidiano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Palmira de Oliveira Gabriel, é utilizado a abordagem crítico-superadora proposta Soares et al. (2012). No entanto, a pedagogia histórico-crítica é mais um referencial de estudo, pois estudá-la e experimentá-la possibilitou que levantassem questões acerca das possibilidades e dos limites dessa metodologia na disciplina Educação Física. Além de tudo, percebe-se o entendimento sobre a abrangência que a Educação Física se propõe, como disciplina curricular na escola. Dispõe de argumentos que determina a nova perspectiva sobre a Educação Física no que

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concerne a perspectiva da formação humana. Logo, tem-se a compreensão da Educação Física como uma disciplina que vai além da técnica, do treinamento desportivo contextualizando a realidade e suas problemáticas com a cultura corporal. Exige-se, também, uma participação mais efetiva dos professores de Educação Física na concepção do projeto pedagógico, pois ao considerá-la como componente curricular, as suas práticas deverão ser orientadas pelas diretrizes do Projeto Político-Pedagógico da Escola. Então, se os professores ficarem ausentes dos momentos de planejamento escolar, será difícil imaginar ações pedagógicas coerentes e pautadas nos eixos pedagógicos que organizam o trabalho escolar nos diferentes componentes. Entende-se componente curricular como a “forma de organização do conteúdo de ensino em cada grau, nível e série, compreendendo aquilo sobre o qual versa o ensino, ou em torno do qual se organiza o processo de ensino-aprendizagem” (SAVIANI, 2008, p. 142). A Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Palmira de Oliveira Gabriel, tem investido nas ações de novas propostas no âmbito da Educação Física escolar para a efetivação e consolidação de uma atitude consciente na busca de uma prática pedagógica mais coerente com a realidade. Sabe-se que a realidade das aulas de Educação Física normalmente é caracterizada por aspectos desanimadores, bem como falta de materiais, estrutura física inadequada, falta de vontade dos alunos e, às vezes, até do próprio professor ou professora, menosprezo à disciplina, e o não conhecimento da importância da Educação Física no processo formativo do ser social. Por isso, a necessidade de ressignificar o entendimento da função e do papel do componente curricular Educação Física. Observa-se, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Palmira de Oliveira Gabriel, que há necessidade de aquisição de novos materiais e de reforma da quadra poliesportiva para a prática de uma nova Educação Física. Deve-se repensar e organizar o espaço escolar a partir de uma perspectiva pedagógica, política e coletiva, para que as ações possam ter sentido e significado para os alunos e professores; diferentes abordagens teóricas são dadas à disciplina, tais como: saúde, desenvolvimento motor, qualidade de vida e o desenvolvimento da cultura corporal, no entanto, esquecemo-nos de tratar o

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aluno como sujeito historicamente construído e um ser social que está inserido no contexto educacional que privilegia somente interesses capitalistas. A docência exige do professor conhecimentos, sensibilidades e capacidades de reflexão e dedicação profissional. É necessário o preparo das aulas, estudar o assunto e objetivar cada prática, assim como ensinar aos alunos que a Educação Física proporciona diversas experiências e que todas as atividades ministradas poderão auxiliá-los na sua caminhada escolar e, consequentemente, nas escolhas que cada um fará futuramente. O ponto positivo da relação aluno com o conteúdo dança na escola é o de oportunizar a criatividade, fazendo com que ele também expresse suas experiências corporais, enfatizando sempre o respeito à diversidade cultural expressa na Obra do Maestro Waldemar Henrique, o que possibilitou o conhecimento histórico e sua visão crítica acerca da musicalidade. O planejamento do trabalho pedagógico, estruturou-se no estudo da biografia do Maestro Waldemar Henrique e nas suas Obras: Foi Botô Sinhá, Tamba-Tajá, Uirapuru, na visitação aos Teatros da Paz e Waldemar Henrique, na criação de coreografias e na apreciação da música a partir da riqueza da Obra do Maestro. As aulas foram sistematizadas pela proposta da pedagogia histórico-crítica,

dentro

do

método

didático:

prática

social

inicial,

problematização, instrumentalização, catarse e prática social final. O Maestro Waldermar Henrique (1905-1995) foi um compositor paraense e Diretor do Teatro da Paz, em Belém do Pará. Ele merece reconhecimento pelas suas composições críticas e pelo olhar sensível que retratou a Amazônia. Estudou música no Rio de Janeiro e obteve notoriedade no Brasil e no exterior com mais de 150 composições. Sendo assim, ao levarmos as canções do Maestro Waldemar Henrique para a escola, estamos ampliando a compreensão do patrimônio cultural dos alunos e o reconhecimento social de suas identidades. A partir disso, a interpretação e a valorização que existe dentro da diversidade cultural que compõem a Amazônia, visa promover atitudes de respeito e combate a estereótipos e preconceitos contra as minorias, e segundo Neira (2008, p. 83), a “[...] tematização do conhecimento popular potencializará novos métodos para validar a oportunidade das vozes divergentes”. Dessa forma, o trabalho pedagógico abrirá novos horizontes para a Educação Física nas escolas.

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178 Análise da Canção

Este fato é um mito na região amazônica. Onde o boto transforma-se em um belo rapaz, que veste-se de branco e usa chapéu branco na cabeça. Este homem conquista facilmente moças jovens e bonitas, casadas ou não. Convida-as para dançar, namorar e passear para seduzi-las e engravidá-las depois disso, volta para o rio. Isso é mascarado muitas vezes pelos vizinhos ou padrastos que acabam assediando as mulheres e colocam culpa no boto. Na tribo dos índios macuxis havia um índio que, por muito amar sua esposa, levava-a sempre consigo para todo lugar. Certa vez, o índio teve que ir para a guerra, mas a esposa ficou doente, sem poder andar. Mas mesmo assim, o levou nas costas e durante o combate, sua amada foi ferida e morreu. O índio, desesperado de amor, enterrou-se junto com ela. No lugar onde jaziam seus corpos, nasceu um tajá diferente. O tajá faz parte de algumas plantas da Amazônia que tem poderes curativos e mágicos. Havia uma tribo de índios cujo cacique era amado por duas jovens. Não sabendo qual escolher para esposa, o jovem cacique prometeu que iria escolher aquela com melhor pontaria. Assim sendo, fez-se uma competição. A jovem que perdeu a prova se chamava Oribicy. Ela chorou tanto por ter perdido seu amado, que suas lágrimas formaram um córrego. Sua tristeza era tanta, que pediu a Tupã que a transformasse num passarinho para que visitar seu amado sem ser reconhecida. Tupã realizou o desejo da moça e Oribicy, com sua nova forma, voou até o amado. Para sua grande tristeza, viu que o cacique vivia muito feliz com sua esposa. É por isso que o uirapuru, o pássaro que não é pássaro, vive a cantar e a atrair com seu canto todos os que o ouvem, fazendo com que a sua tristeza seja amenizada.

Letra da canção

Tajá-Panema chorou no terreiro / E a virgem morena fugiu no costeiro (bis) / Foi Bôto, Sinhá... / Foi Bôto, Sinhô! / Que veio tentá / E a moça levou / No tar dansará / Aquele douto / Foi Bôto, Sinhá / Foi Bôto, Sinhô! / Tajá-Panema se poz a chorá / Quem tem filha moça é bom vigiá! ( bis) / O Bôto não dorme / No fundo do rio / Seu dom é enorme / Quem quer que o viu / Que diga, que informe / Se lhe resistiu / O Bôto não dorme / No fundo do rio...

Tamba-Tajá / Me faz feliz / Que meu amor me queira bem... / Que seu amor seja só meu, / De mais ninguém, / Que seja meu, / Todinho meu, / De mais ninguém... / Tamba-Tajá, / Me faz feliz / Assim o índio carregou sua “macuxy” / Para o roçado, para a guerra, para a morte... / Assim carregue o nosso amor a boa sorte / Tamba-Tajá / Tamba-Tajá, / Me faz feliz, / Que mais ninguém possa beijar o que beijei, / Que mais ninguém escute aquilo que escutei / Nem possa olhar dentro dos olhos que olhei / Tamba-Tajá...

Certa vez de “montaria” / Eu descia um “paraná” / O caboclo que remava / Não parava de falá(r) / Á, á... Não parava de falá(r) / Á, á... Que cabôclo falador! / Me contou do “lobisomi”/ Da mãi-d’água, do tajá, / Disse do jurutahy/ Que se ri pro luar / Á, á... Que se ri pro luar / Á,á... Que cabôclo falador !/ Que mangava de visagem / Que matou surucucú/ E jurou com pavulagem / Que pegou uirapuru / Á, á...Que pegou uirapurú/ Á, á... Que cabôclo tentador! / Cabôclinho meu amor,/ Arranja um pra mi/m/ 21. Ando “rôxa” prá pegar/ “Um zinho”assim; / O diabo foi-se embora / Não quiz me dar/ Vou juntar meu dinheirinho / Prá poder comprar. / Mas, no dia que eu comprar / O caboclo vai sofrer / Eu vou desassocêgar/ O seu bem-querer / Á, á... O seu bem-querer / Á, á... Ora deixa ele prá lá...

Fonte: Adaptado de Alivertine (2005).

A Lenda do Uirapuru

“Uirapuru”

A Lenda do Tamba - Tajá

“Tamba–Tajá”

A Lenda do Boto

“Foi Boto Sinhá”

Nome da canção

Quadro 1 – Nome, descrição e análise das canções do Maestro Waldermar Henrique

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Com isso, organizamos o trabalho pedagógico com o primeiro momento, a prática social inicial, com o objetivo de perceber o que os alunos conheciam sobre o Maestro. Perguntamos aos alunos: Vocês conhecem a Obra do Maestro Waldemar Henrique? Alguma lenda amazônica? Sabem de onde veio essa manifestação? E o que elas representam? No segundo momento, a problematização, foram trabalhados temas transversais como o preconceito racial e cultural, pois por um momento percebemos expressões preconceituosas e desconhecimento histórico das fortes influências negras e indígenas. Trouxemos alguns questionamentos: Quem pode dançar? Quem pode dançar o imaginário amazônico? O porquê da indumentária?45 Por que da Dança do Boto, Tamba-Tajá, Uirapuru? Com o terceiro momento, a instrumentalização, foi feita uma aproximação com o conteúdo, apresentando a biografia e Obra do Maestro; perguntamos se conheciam ou tinham ouvido falar sobre algumas dessas composições, falamos sobre o imaginário da Obra, utilizamos contações de história para enfatizar a cultura ribeirinha e indígenas tão marcantes na Obra do autor e destacamos sua contribuição na história de nosso povo. Então falamos sobre a origem, a importância social, econômica e cultural da dança. Na aula seguinte destacamos a Obra intitulada “Foi Botô Sinhá” e pedimos que relatassem alguma experiência ou relato que conheciam sobre a Lenda do Boto. Percebemos muitas narrativas dos alunos sobre o homem que encanta e engravida a mulher, de acordo com as histórias contadas pela família, principalmente a do interior do Estado. Trabalhamos o tema a partir dessas informações e destacamos as vestimentas utilizadas para compor esse enredo. Estas têm uma origem e carregam diversos significados narrados por eles. Quanto às roupas utilizadas na Dança do Boto, destacamos a beleza da roupa e chapéu branco ilustrado pelos alunos. Partimos então, para a utilização da composição musical do Maestro para que pudessem relacionar e perceber a narrativa, e eles foram desafiados a mostrar o que conseguiam produzir com o corpo e suas impressões com a obra do autor, usando a música do Maestro para motivá-los a mostrar sua criação.

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Arte relacionada com o vestuário.

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Numa roda de conversa, perguntamos aos alunos sobre o que acharam da atividade proposta e o que sentiram com a atividade, utilizando o corpo como instrumento de criação e criatividade. A partir disso, trouxemos outras imagens da obra do Maestro como “Uirapuru” e “Tamba-Tajá”, para poderem ampliar o conhecimento com a obra do autor, as quais não eram conhecidas pela maioria dos alunos – em uma das turmas ninguém sabia do que tratava as outras Obras. Na aula seguinte, levamos para a turma um instrumento de sopro representando o som de um pássaro para que os alunos experimentassem aproximação com o som do Uirapuru, o que despertou curiosidade e alegria na turma; partimos, a seguir, para o estudo sobre a Obra do Uirapuru e sua experimentação com a movimentação do pássaro. Depois, destacamos a obra Tamba-Tajá, trazendo a discussão sobre sua história e musicalidade evidenciado no trato com o canto. Com isso, apresentamos a Obra do autor e sua proposta com a dança, este momento também foi utilizado para perceber quais informações os alunos traziam em seus corpos sobre o tema em questão. E ao definir o folclore, Cascudo (1967) diz que este é um patrimônio de tradições que é transmitido oralmente e conservado pelo costume. Um patrimônio que estaria presente em todos os países e em variados agrupamentos sociais: “Todos os países do mundo, raças, grupos humanos, famílias, classes profissionais, possuem um patrimônio de tradições que se transmite oralmente e é defendido e conservado pelo costume. Esse patrimônio é milenar e contemporâneo” (CASCUDO, 1967, p. 9). Dessa maneira, compreender o folclore, suas origens universais, as fusões das culturas indígena, negra e portuguesa e a convergência de inesperadas tradições que são formadas, compreender-se-á melhor a vida nacional e as singularidades que a caracterizam. Logo, discutimos sobre a organização do espaço desta dança, sendo este um elemento que compõe os fundamentos da dança de acordo com Soares et al. (2012). Como produção, ainda fizemos mostra de vídeo sobre as danças estudadas, para que os alunos pudessem perceber todo o assunto e oportunizamos a eles ampliar esse conhecimento com visitas aos teatros, onde constatamos o deslumbramento deles com os locais visitados.

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Como quarto momento, a catarse, a dança como elemento da cultura corporal trouxe discussões sobre a nossa riqueza no imaginário amazônico e como vem sendo executada nas propostas de aulas ministradas, este momento serviu como avaliação do conteúdo em que os alunos foram indagados sobre os conhecimentos trabalhados, e destes quais eles consideraram mais importantes. Dentre as respostas, obtivemos uma grande incidência dos elementos da nossa cultura, conhecer o que é nosso e a partir disso, trabalhamos a construção de uma coreografia nas outras aulas. No quinto momento, na prática social final fizemos o momento de avaliação da aula, iniciamos a discussão sobre o quê de novo foi apreendido com o conteúdo dança a partir da Obra de Waldemar Henrique. Assim, buscouse avaliar a aula e perceber a aceitação do tema, as discussões levantadas e os interesses despertados com as informações trazidas pelos professores e pelos alunos na troca de conhecimento. A escola teve a oportunidade de vivenciar um festival junino organizado pelo Departamento de Educação Física junto a Secretaria de Educação de Belém (SEMEC) que reuniu várias escolas da rede municipal de ensino com apresentação do tema “Festival Junino” e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Palmira de Oliveira Gabriel levou a riqueza do Lendário do Boto, construído nas aulas. A experiência foi maravilhosa, tanto para os professores que puderam ver a concretização e reconhecimento do trabalho, quanto para os alunos que puderem conhecer a grandiosidade do Maestro Waldemar Henrique, mas agora munidos de elementos que os tornam diferenciados, por entenderem não apenas dos movimentos corporais da dança, mas também entenderem seu contexto histórico, suas influências, raízes e densidade social. Os ensinamentos sobre o imaginário amazônico devem ser abordados como práticas pedagógicas desenvolvidas em um processo de ensino e aprendizagem, levando em consideração o sujeito aluno, seu contexto e os ambientes com os quais interagem na vida em sociedade, criando-se múltiplas possibilidades para a construção desse conhecimento. A partir disso, a dança como conteúdo da Educação Física, permite uma leitura e uma releitura diferenciada de nós mesmos, dos outros e do mundo. Por meio do corpo que dança, estabelecemos relações com os sons, as imagens,

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as palavras e as narrativas que nos circundam e podemos dialogar com elas. Portanto, a dança, inserida por meio da disciplina curricular de Educação Física e compreendida como elemento da Cultura Corporal, cumpre um importante papel na educação do sujeito crítico e transformador da realidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo possibilitou muitas reflexões sobre a dança na escola como perceber que é um conteúdo de ensino possível de ensinar de novas formas a partir da cultura corporal, tendo como aporte teórico-pedagógico a abordagem crítico-superadora, considerando a cultura amazônica a partir da obra do maestro Waldemar Henrique para o ensino da dança no palco da escola. Na escola Palmira Gabriel a dança faz parte das práticas inseridas como conteúdo de ensino, que possibilita desenvolver a riqueza da cultura amazônica, através da composição do maestro, em que destacaram-se as lendas da Amazônia como molas propulsoras para o desenvolvimento das aulas, apresentando a dança na dinâmica histórica e desenvolvendo os elementos técnicos sem abrir mão do contexto histórico e social e da beleza da obra do poeta da Amazônia, tratando-a como conteúdo de ensino da Educação Física que amplia o conhecimento a identidade amazônica. Dessa forma, conclui-se que é possível tratar a dança como conteúdo de aulas de Educação Física, orientada pela abordagem crítico-superadora a partir da obra do Maestro Waldemar Henrique de modo que os alunos compreendam o conteúdo além dos aspectos técnicos, considerando o contexto histórico e social da cultura amazônica, tomando consciência da dança a partir de uma perspectiva ampla de cultura. The Amazonian imaginary and Maestro Waldemar Henrique's musicality: a proposal of the teaching dance in school according to the critical-surpassing approach Abstract: The article deals with the dance content, theoretically based on the criticalsurpassing approach, adopting the historical and dialectical materialism as the scientific parameter. It carried out a qualitative analysis, in which it used the descriptive methodological actions, with a data collection sustained by observations and interpretations of the pedagogical moments. The tools for data collection included notes of students' speeches and observations of attitudinal dimensions of the dance content. The article aims to present possibilities of dealing with the dance content, from Maestro Waldemar Henrique's music, based on the critical-surpassing approach. It concludes it is possible to treat the dance as content in Physical Education classes, guided by the

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critical-surpassing approach from Maestro Waldemar Henrique's work. Keywords: Amazonian Culture. Physical Education. Critical-Surpassing Approach. Dance.

REFERÊNCIAS ALIVERTI, Márcia Jorge. Uma visão sobre a interpretação das canções amazônicas de Waldemar Henrique. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 54, p. 283-313, 2005. ASSUNÇÃO, Jeane Rodella; XAVIER FILHO, Lauro Pires. Saiba mais sobre educação física. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 2005. CASCUDO, Luis da Câmara. Folclore do Brasil: pesquisas e notas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1967. MARQUES, I. Ensino de dança hoje: textos e contextos. São Paulo: Cortez, 2003. NEIRA, Marcos Garcia. A cultura corporal popular como conteúdo do currículo multicultural da educação física. Revista Pensar a Prática, v. 11, n. 1, p. 81-89, jan./jul. 2008. SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. São Paulo: Autores Associados, 2009. _______. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 10. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2008. SOARES, Carmen Lúcia et al. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 2012. SOUZA, L. O; BERNADINO, A. A contação de história como estratégia pedagógica na educação infantil e ensino fundamental. Educere et Educare, v. 6, n. 12, p. 235-249, jul./dez. 2011. TAFFAREL, Celi Nelza Zülke. Criatividade nas aulas de Educação Física. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985.

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Para além de desculpas: fatores que limitam o trabalho com a questão étnico racial na Educação Física da rede municipal de ensino de Porto Alegre Gabriela Nobre Bins (SMED-Porto Alegre) 46 Vicente Molina Neto (UFGRS) 47 Resumo: Este artigo apresenta a analise dos limites para o trabalho com as questões étnico-raciais na escola oriundos da triangulação dos dados da investigação “Mojuodara: a educação física e as relações étnico-raciais na RME-POA”. A pesquisa, de caráter qualitativo, é constituída de um questionário diagnóstico e um estudo de caso etnográfico. Entre os limites apontados estão a dificuldade de se estabelecer um trabalho coletivo, principalmente, que abranja esse tema; as dificuldades do dia a dia da escola e sua rotina; a carência na formação para tratar do tema; o conceito de igualdade relatado pelos professores e o fato de a Lei n. 10.639/03 e a Lei n. 11.645/08 serem políticas de direito, mas ainda não serem políticas que se concretizem na prática. Palavras-chave: Educação Física. Escola. Relações étnico-raciais.

INTRODUÇÃO Esse artigo procede da investigação intitulada “Mojuodara: a educação física e as relações étnico-raciais na rede municipal de ensino de Porto Alegre”. Ao longo de mais de quinze anos de experiência docente em escolas públicas, constatamos com frequência episódios em que o dispositivo escolar inviabiliza a reflexão sobre as questões étnico-raciais nas quais os alunos e alunas negras estão envolvidos. Na busca de compreender esse fenômeno, a pesquisa teve como foco a educação física e as relações étnico-raciais na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME-POA). A questão de pesquisa que norteou nossa análise e vertebrou esse texto foi “quais os limites e as possibilidades para que o trabalho ou o desenvolvimento das questões étnico-raciais aconteça nas aulas de Educação Física da RME-POA”; e teve como objetivos identificar e compreender como os professores de Educação Física das escolas municipais de Porto Alegre abordam as questões étnico-raciais em suas aulas e quais dispositivos político pedagógicos Municipais, Estaduais e Federais interferem nessa abordagem. A 46

Doutoranda em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED). E-mail: ganobre@hotmail.com 47 Doutor em Filosofia e Ciências da Educação pela Universitat de Barcelona (UBEspanha). Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: vicente.neto@ufrgs.br

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pesquisa, de caráter qualitativo, é constituída de um questionário diagnóstico (endereçado a todos os professores de Educação Física da rede e com um retorno de 58%) e um estudo de caso etnográfico com um professor que pauta sua prática pedagógica nos valores civilizatórios afro brasileiros. Analisando os dados que emergiram da etnografia e dos questionários, alguns limites para o trabalho com as relações étnico-raciais na escola ficaram em evidência. Entre eles, a dificuldade de se estabelecer um trabalho coletivo, principalmente que abranja esse tema; as dificuldades do dia a dia da escola e sua rotina; os atos de fala dos professores de não terem formação para tratar do tema; o conceito de igualdade relatado pelos professores e o fato de a Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e a Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008, serem políticas de direito, mas ainda não serem políticas de fato, que se concretizem na prática. Sendo assim, construímos as seguintes categorias para discutir esses limites: a carência na formação; lei de direito, mas não de fato; a estrutura e visão da escola; a solidão e os atropelos da escola e igualdade X equidade. CARÊNCIA NA FORMAÇÃO Muitos professores afirmam não trabalharem as questões étnicas por falta de formação. Essa afirmação pode até servir como uma desculpa para a falta de abordagem da temática, mas não podemos ignorar o fato de que realmente não vemos essas questões abordadas nas universidades brasileiras, sejam elas públicas ou privadas. Essa é uma realidade que perpassa não só as faculdades de educação física, mas a maioria dos cursos de licenciatura das mais diversas áreas. Esses cursos estão longe de tratar temas que reflitam o dia a dia dos alunos e alunas e que estejam conectados com suas realidades. Lamentavelmente, nas faculdades de educação do País, não será difícil constatar a existência de uma estrutura curricular que sequer inclui o debate sobre as demandas históricas dos movimentos sociais pela educação. As análises presentes nas diferentes disciplinas curriculares dos currículos de licenciatura e pedagogia ainda tendem a privilegiar os conteúdos, desconectados dos sujeitos. (GOMES, 2011, p. 43).

Examinando os currículos atuais de algumas das universidades gaúchas de onde são oriundos os professores de educação física em exercício profissional na RME-POA, entre elas: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),

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Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Instituto Porto Alegre (IPA) e Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), percebe-se que ainda hoje, onze anos após a promulgação da Lei n. 10.639/03, há poucas referências a esse tema nos seus currículos. Com exceção da UFPEL, que, no seu projeto pedagógico do curso de Educação Física de 2013 faz referência explícita à lei 10.639/03 e aponta que, “a Educação Física enquanto componente curricular da Educação Básica, requer um professor conhecedor e atento às questões de relações étnico-raciais (lei nº 10.639, 2003)” (UFPEL, 2013); e da UNISINOS, que tem em seu currículo, além da disciplina de capoeira, as disciplinas de “Cultura, diferença e educação”, “Afrodescendentes na América Latina”, “Povos Indígenas na América Latina” e “Educação das relações étnico raciais e culturais na escola básica”; nas outras instituições não encontramos, nas ementas das disciplinas, nenhuma ênfase nessas questões. No currículo para ingressantes, em 2014, do IPA e no da UFSM consta apenas a disciplina de Capoeira; a UFRGS oferta uma disciplina denominada “Seminário Educação e Movimentos Sociais” de 2 créditos eletivos; e nos currículos das licenciaturas da PUC-RS e da ULBRA não consta nem uma disciplina que aborde as questões étnico-raciais de alguma forma. Estes dados vão ao encontro do que Gomes (2011) aponta: [...] tal desequilíbrio nos currículos expressa o quanto a formação de professores (as) ainda precisa avançar. Ele revela a tensão nas relações de poder frente às diferentes interpretações e tendências nos debates e nas práticas de formação inicial e continuada de professores (as) da educação básica. Indo mais longe, a tensão expressa o predomínio de um certo tipo de racionalidade, que impera nos meios acadêmicos e afeta a formação docente. Trata-se da concepção que considera e elege o conhecimento científico como a única forma legítima de saber e menospreza os outros saberes construídos na dinâmica social, sobretudo aqueles produzidos e sistematizados pelos movimentos sociais. (GOMES, 2011 p. 44).

Os currículos analisados nesta pesquisa são currículos atuais, que provavelmente não correspondem ao que os professores participantes desta pesquisa tenham vivenciado; mas partimos da premissa que, ao longo dos anos, os currículos tenham sido revisados e aprimorados; portanto, se nos atuais não encontramos quase referência às questões étnicas, é de questionar se as

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encontraríamos nos antigos. Nas respostas aos questionários, encontra-se referência à falta de formação em 26 questionários. Quando perguntados sobre se já haviam realizado alguma formação sobre o tema, somente dois professores se referiram à sua formação inicial; um deles afirmou “ter participado de algumas atividades em eventos locais e regionais na época da graduação” e o outro na UNISINOS, “sim, fiz formação na universidade quando da minha formação acadêmica”. Além destes, mais duas respostas falam de formação em nível de pós-graduação; uma na (Faculdade Porto-Alegrenses) FAPA, no pós em cultura afro-brasileira e a outra na Faculdade de Educação da UFRGS em educação para a diversidade. O restante das respostas trazem outros tipos de formação continuada. Dentre as falas sobre a falta de formação nos questionários, duas delas estão relacionadas à como as políticas para as relações étnico raciais se refletem na prática pedagógica dos professores; “timidamente, por falta de formação” e “não vejo, além das leis citadas, políticas claras para a educação inclusiva e antirracista. Nunca tive uma formação específica para discutir essas questões, nem soube que há políticas públicas que foram ou serão implementadas na nossa secretaria”. As outras falas são encontradas em resposta à pergunta se os professores trabalham algum conteúdo da cultura corporal afro ou indígena. Nessas respostas, os professores alegam não trabalhar por falta de formação, conhecimento e familiaridade com o tema; ou, mesmo que afirmem trabalhar esses elementos, enfatizam não terem tido formação para tanto. Deste segundo grupo, destacamos algumas respostas: “sim trabalho, mas de modo teórico. Gostaria de fazer mais, mas tenho limitações de formação para articular melhor a questão com práticas regulares”; “sim, já trabalhei capoeira, embora não tenha formação para isso”; “não faço mais por desconhecimento de elementos que me auxiliem em minha proposta pedagógica, falha minha e da minha formação”; e “trabalho capoeira, maculelê, puxada de rede e samba de roda. Trabalho com estes porque sou capoeirista há 16 anos e estes quatro elementos compõem o universo da capoeira. Não tive formação a respeito na graduação. Meu preparo foi fora dos bancos escolares e, por esse motivo, compreendo a dificuldade dos meus colegas em trabalhar com a temática da afro-descendência. A universidade não prepara para isso. Além da minha formação como capoeirista, cursei a disciplina ‘Capoeira I’ na Universidade

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Federal da Bahia (UFBA) para tentar suprir falta de conhecimento teórico gerado pela má formação propiciada pela maioria de nossas universidades no que se refere à cultura corporal afro e indígena”. Essas respostas apontam para o fato de que o discurso da falta de formação não é uma mera desculpa para os professores não realizarem as atividades, pois muitos já vêm realizando, mas sim uma dificuldade à inclusão desse conteúdo. Os dados acima apresentados são similares aos encontrados em pesquisa realizada há quase trinta anos. Em trabalho sobre o preconceito na escola, de 1988, a pesquisadora do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Vera Moreira Figueira, constatou que todos os professores entrevistados, [...] declararam não ter recebido qualquer tipo de orientação pedagógica sobre a questão racial no Brasil por ocasião de seus cursos de formação profissional ou nas escolas onde lecionaram. Ou seja, os cursos de complementação pedagógica (nos casos de professores com nível de escolaridade superior) ou os cursos de formação (equivalente ao segundo grau) não dedicam qualquer ênfase, ou ainda, desconhecem a especificidade da questão racial brasileira. (SANT’ANA, 2005, p. 56).

Depois de tanto tempo, esse quadro não avançou muito, ainda encontramos uma carência muito grande na formação quando o assunto são as questões étnico-raciais. Autores como Gomes (2011) e Munanga (2005) vêm alertando para essa falta de preparo para lidar com o desafio da problemática da convivência com a diversidade. Após a promulgação das Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08, muitos cursos e seminários sobre o tema foram implementados em diferentes lugares. Os núcleos de estudos afro-brasileiros das universidades públicas e privadas do País têm realizado diversos cursos e disciplinas, têm organizado seminários, produzido materiais didáticos e pesquisas. “No entanto, a movimentação não é suficiente para superar a situação de desequilíbrio enfrentada pela discussão sobre a diversidade étnico-racial nos processos de formação inicial e continuada de professores (as)” (GOMES, 2011, p. 41). Se em algumas áreas já são encontrados materiais didáticos e pesquisas que possam ajudar e respaldar a prática pedagógica dos professores, mesmo que ainda em número insuficiente, na Educação Física esse panorama ainda é deficiente. A pesquisa aos bancos de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Scientific Electronic Library Online

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(SCIELO) e algumas revistas científicas da área, realizada em 2013, revelaram números pouco animadores. Nos bancos de teses e dissertações da CAPES há o registro de 167 teses ou dissertações sob o descritor “relações étnicas e educação”. E sob o descritor “relações étnico-raciais e educação física” constam 9 trabalhos, entre teses e dissertações, sendo que somente 4 são específicos na área de conhecimento Educação Física. A dissertação de Bento (2012) tematiza a prática social de jogos de origem ou descendência indígena e africana no contexto das aulas de Educação Física, buscando compreender os processos educativos que aconteciam nessa prática. No trabalho de Maranhão (2009), o autor apresenta uma experiência de implementação da Lei n. 10.639/03, por meio da utilização de jogos de origem e/ou descendência africana em aulas de Educação Física; Moreira (2008) faz um estudo sobre os impactos da Lei n. 10.639/03 no ensino da Educação Física em escolas de Salvador; por sua vez, Santos (2007) apresenta a perspectiva dos alunos negros nas aulas de Educação Física. Os demais versam sobre o livro didático e o ensino de ciências, preconceito e discriminação nas aulas de geografia, abordagens da linguagem e diálogos das relações étnico-raciais em sala de aula e as relações de famílias negras da comunidade rural do Mato Grosso com a educação escolar. Nos periódicos do Portal de Periódicos da CAPES, encontramos 26 artigos que se relacionavam ao descritor “negro e educação” e também 26 artigos com o descritor “educação e relações étnico-raciais”. Mas nenhum que relacionasse o tema ao ensino da Educação Física. No banco de dados do SCIELO, encontramos 14 artigos sob o descritor “o negro e a educação”; apenas um voltado para a Educação Física (SANTOS; MOLINA NETO, 2011). Pesquisando relações étnicas e educação, encontramos 11 artigos; e novamente entre esses apareceu o artigo de Santos e Molina Neto. Quando o marcador usado foi “Educação Física e as relações étnico-raciais”, dois artigos foram relacionados, mas somente um realmente tratava da área da Educação Física. O outro artigo era sobre a relação entre corpo e educação na análise de um filme. Além dos bancos de dados da CAPES e SCIELO, realizamos uma busca mais detalhada nas revistas integrantes do estrato superior do WEBQUALIS da

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área de conhecimento Educação Física. Na revista Movimento, com relação às questões étnico-raciais, encontramos somente um artigo, que fala dos estereótipos raciais na sociedade brasileira a partir do futebol. Quando buscamos sob o descritor “negro e a Educação Física”, 14 artigos foram relacionados, mas com exceção de um artigo, que trata dos jogos e o preconceito racial na pré-escola, não encontramos estudos específicos que tratem das questões étnico-raciais na Educação Física escolar. Esse é um dado importante, pois corrobora a constatação de falta de formação que afirmam os professores das escolas. Na revista Motriz, para o descritor “relações étnico-raciais” nenhum item foi relacionado; enquanto para o descritor “o negro e a educação física”, quatro itens apareceram. Desses quatro itens, dois eram os anais de congressos de Motricidade Humana; e dos restantes, um falava sobre o comportamento das torcidas organizadas e outro sobre o futebol feminino nas olimpíadas de Pequim. Não foi encontrado nenhum artigo que relacionasse as questões étnicoraciais e a Educação Física escolar. O que também aconteceu em relação à revista Pensar a Prática. Dos quatro itens relacionados ao marcador “o negro e a Educação Física”, um deles era relacionado ao futebol; um à capoeira, e os outros dois relacionavam-se ao corpo. Na Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), não foi relacionado nenhum item sob os marcadores “relações étnico-raciais”, “o negro e a Educação Física” ou “negritude”; quando o marcador foi “o negro”, encontramos dois artigos: um sobre o negro no futebol; e outro sobre a capoeira. Ainda pesquisamos na RBCE sob o descritor “racismo”, onde o único item relacionado foi um artigo que aborda a trajetória de Muhammad Ali. O número irrisório de trabalhos sobre a temática racial na Educação Física é mais um dado que corrobora a afirmação do professor Baobá (professor experiente da RME-POA, um de nossos colaboradores e participante da etnografia), de que estamos muito distante dessa discussão. Segundo ele, [...] dentro da educação física nem se fala nisso, isso nem existe na educação física, nas poucas formações que eu pude ir não tem discussão é como se isso não passasse pela área; por que no meu tempo de graduação isso passava longe da academia também, e na realidade eu acho que isso está tão perto da educação física, são

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diversos motivos, mas tem um que pra mim é o principal... porque está no corpo. (Fragmento da entrevista com professor Baobá).

Analisando a revisão feita nos bancos de dados da CAPES e nas revistas acima citadas, notamos que os Programas de Pós-Graduação da Educação Física têm pouco interesse no estudo dessas questões na escola. O que é muito preocupante, pois a diversidade étnico-racial faz parte do cotidiano das escolas. Como diz o professor Baobá, ela está impressa nos corpos dos nossos alunos e alunas, portanto precisamos de elementos que formem os professores para lidar com essa diversidade e as problemáticas que possam decorrer dela. UMA POLÍTICA DE DIREITO, MAS NÃO DE FATO A Lei n. 10.639/03 é fruto de longas e intensas mobilizações dos movimentos sociais, principalmente do movimento negro. A educação era um elemento central de mobilização do movimento negro, que, principalmente após a criação do Movimento Negro Unificado, em 1978, passa a pressionar o governo para a implementação de políticas de valorização da população negra (DORNELLES, 2010). Na época da formulação da Constituição Federal de 1988, apresentaram algumas propostas que não foram incorporadas no texto final da Constituição. Entre as propostas apresentadas pelo movimento negro, no que se refere à educação, o principal debate em torno da educação é o de que o currículo escolar deve incluir o negro como sujeito na história do Brasil e a história do negro na África, atuando de forma crítica em relação a lógica hegemônica da homogeneidade. Por isso, a necessidade de que o texto constitucional garanta que a história e a cultura do negro e do índio sejam tratadas nos níveis da educação brasileira. (DORNELLES, 2010, p. 43).

Em 2003, finalmente, o governo brasileiro promulga a Lei n. 10.639, que altera os artigos 26, 26A e 79B da LDB e institui a obrigatoriedade do ensino da historia da África e de seus descendentes nas escolas. Gusmão (2008) afirma que a legislação é uma produção social localizada no tempo e no espaço, e é resultado de tencionamentos entre necessidades e interesses sociais e históricos. A Lei n. 10.639/03 é fruto de um avanço histórico, tecnológico e social (SOUZA, 2009). Segundo a autora “a lei 10.639/03 referenda uma conquista histórica, de ativistas e militantes, que há muito vêm trabalhando para a

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efetivação de políticas afirmativas” (SOUZA, 2009 p. 91). Porém, o fato de termos uma lei sancionada não significa na sua aplicação. Analisando os dados do trabalho de campo e as referências teóricas sobre o tema, nos atrevemos a dizer que precisamos avançar muito ainda para a implementação efetiva do ensino dessas questões nas escolas. Sobre essa distância entre a legislação e sua implementação Souza (2009) afirma: [...] a LDB é a maior lei da educação. E dela partem as demais leis voltadas para as reformas educacionais. Mas quantas e quantas leis são criadas e nunca conhecidas pela sociedade ou colocadas em prática? Enquanto conteúdo, raramente qualquer lei é discutida em sala de aula. Precisamos coletivamente despertar corações e mentes para que as legislações não permaneçam só no papel por muitos e muitos anos. (SOUZA, 2009 p. 35).

Nas

escolas

municipais

de

Porto

Alegre,

encontramos

várias

experiências de professores que contribuem à implementação da lei; algumas delas ficamos conhecendo a partir dos relatos de professores nas escolas. Mas mesmo com essas várias experiências, a lei e o trabalho docente com as questões étnico raciais ainda estão distantes da comunidade escolar como um todo e de muitos professores especificamente. Dos 131 professores que responderam aos questionários desta pesquisa, 36 afirmaram não conhecer a legislação federal (Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08, o que representa menos de 30%. Esse número é relativamente pequeno, demonstrando que os professores de Educação da Física da RME-POA que participaram desta pesquisa, em sua maioria, conhecem as leis em questão, porém quando se trata de pô-las em prática esse percentual não se mantém. Somente 61 professores, o que corresponde a 46,5%, afirmaram trabalhar elementos da cultura corporal afro ou indígena e abordam a temática étnicoracial, o que caracterizaria uma experiência de implementação da lei. Perguntamo-nos o que faz com que os restantes 23,5% dos professores que conhecem as referidas leis não as coloquem em prática em suas aulas. Seria somente pelos limites apontados ou também por falta de uma política clara da gestão educacional do município de Porto Alegre? Porto Alegre foi uma das cidades pioneiras na inclusão de leis com o

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intuito de uma educação antirracista48. Em 2003, após a promulgação da Lei n. 10.639/03, foi criada na SMED-POA a Assessoria Pedagógica de Relações Étnicas; e em 2006, mediante uma portaria, foi instituido o Grupo de Trabalho em Relações Étnicas (GTRE). O grupo surgiu da necessidade, naquele momento, de ter um grupo de formadores para dar continuidade à execução do projeto “A Cor da Cultura”49 para a formação de professores. Nesse período, a RME-POA teve um momento de investimento na implementação e no acompanhamento do cumprimento das Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08. Na época de criação do GTRE, a assessoria queria que o cumprimento da legislação fosse um compromisso da escola e não só de alguns professores; que fosse um compromisso de toda a RME-POA. Segundo a assessora da época, o desenvolvimento de uma educação antirracista e o estudo das relações etnico-raciais passa pelo estabelecimento e fortalecimento de políticas públicas de estado. O GTRE funcionou com reuniões períodicas, em que os professores eram liberados de suas escolas para participarem das reuniões, até 2011, quando houve uma desestruturação do GTRE. Desde sua criação até os dias de hoje, a assessoria pedagógica de relações étnicas teve um total de quatro assessores. Acompanhamos o inicio do trabalho do atual assessor 50 e a retomada dos trabalhos do GTRE em agosto de 2012. Desde o início, o discursso do assessor mencionava a necessidade de reestruturação do GTRE. Segundo o discurso do assessor, essa é uma reestruturação do GT das relações étnico-raciais, e ele pretende fazer uma abordagem pedagógica, já que os assessores anteriores foram “saídos” da assessoria por suas posições politicas e ele não pretendia que isso acontecesse com ele. (Relato do diário de campo de 30/08/2012).

As Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08 são um fato, elas existem de direito e estão para serem implementadas. A assessoria existe, pois é uma demanda da 48

Em 1999, a Lei municipal n. 8.423, de 28 de dezembro, institui o conteúdo "Educação Antirracista e Antidiscriminatória" nas escolas de 1º e 2º grau do município. 49 A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, fruto de uma parceria entre o Canal Futura, a Petrobras, o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (CIDAN), o MEC, a Fundação Palmares, a TV Globo e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Disponível em: <http://www.acordacultura.org.br>. 50 Para fins desta pesquisa colocamos o codinome de Mestre Griot Aprendiz ao assessor das relações étnico raciais da secretaria.

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lei, mas na realidade ela não tem autonomia e muito menos apoio institucional para viabilizar maiores ações em prol do ensino das questões étnico-raciais na escola. Falta articulação com o setor pedagógico da secretaria e muitas vezes interesse das escolas. A fala do assessor vem ao encontro do que observamos durante o trabalho de campo: Minha primeira observação e aprendizado foi entender que não teria o apoio objetivo das estruturas hierárquicas da secretaria para fazer o que tinha que ser feito. Assim como minhas colegas, iniciei um processo de produzir e executar a ação, mesmo sem o recurso, sem os materiais, sem instrumentos, sem "mailing" e não entrar no “POLIQEIXUME”, como costumo dizer; que é quando a pessoa reclama de tudo, mas não faz um mínimo de ação dentro do possível para melhorar a realidade encontrada. (Trecho da entrevista do Mestre Griô Aprendiz).

Da mesma forma, o professor Baobá avalia a política da secretaria para essas questões e o trabalho do Mestre Griô Aprendiz: Sabe, [...] como teoricamente é obrigatório esse trabalho, existem sempre os departamentos, os setores, mas ele não está, por exemplo aqui em Porto Alegre; ele está numa pessoa que faz o que pode ou o que não pode, que rema contra a maré, mas ele está sozinho e não está institucionalizado dentro da secretaria, apesar de ser institucional o cargo dele, o fazer é instituído, o fazer não está dado... o fazer é sempre algo que não está nos documentos oficiais, os encontros sempre são algo que é ajeitado mas não é algo que está dentro da política de formação [...]. (Fragmento da entrevista com o professor Baobá).

As ações realizadas na RME-POA em direção à implementação das leis são ações individualizadas. A lei é garantida, mas carece de legitimação, no espaço institucional da escola. Nesse ambiente formal há um trabalho quase heroico de muitos educadores e educadoras. E os resultados dos trabalhos desses educadores e escolas são cooptados e acabam veiculados pela mantenedora como propaganda política da gestão educacional. A sua sistemática de referência a algumas ações da gestão em sua comunicação “oficial” com movimentos institucionaliza uma condição “fake” na ação dessa política. Abre agendas para divulgações de ações isoladas de professores (militantes) que aplicam, em atividades pontuais, durante datas comemorativas das culturas dos povos indígenas e negros, durante o ano, na demonstração de uma ou mais práticas de sala de aula e não de

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contexto de escola; ações que incentivam criações de eventos pontuais de mostra de relatos, entre outras visibilizações que são incorporadas pelo governo como se fossem a ação da realização da prática da lei. (Entrevista do Mestre Griô Aprendiz).

Para que as práticas dos professores que já vêm aplicando a lei e promovendo uma educação antirracista e atenta à diversidade sejam potencializadas, é necessária uma intenção política da secretaria de educação. É preciso que a assessoria esteja dialogando como as direções e equipes pedagógicas das escolas para que essas questões estejam presentes no dia a dia de cada um. A distância entre a lei e sua materialização na prática precisa ser diminuída. O trabalho da Assessoria de Educação das Relações Étnico-Raciais é uma ação que pode referir-se e relacionar-se com as práticas dos professores, valorizá-las, respaldar ações dos professores nas suas comunidades escolares, mas não reduzir-se apenas a uma comunicação distante e dissociada de diálogos com os setores de supervisão e planejamento de ações das escolas. A distância entre os possíveis fazeres da Assessoria e o eixo da estrutura curricular demonstra o grau de incompreensões da administração e dos professores sobre o assunto das etnias ou da própria diversidade cultural, multirracial e pluri-étnica que temos em nossa rede. (Entrevista do Mestre Griô Aprendiz).

A temática étnico-racial e, consequentemente, a implementação das Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08 acontece a partir do viés da resistência. Ela está situada na resistência e quem amplifica a sua realização são os educadores e suas práticas. Para o Mestre Griô Aprendiz, o que amplifica a realização do trabalho com as questões étnicas são as capacidades físicas e essas capacidades são fatores que limitam o avanço dos educadores, pois são cargas a mais para o corpo aprender, assimilar, relacionar e defender a sua prática. ESTRUTURA E VISÃO DA ESCOLA O trabalho de campo ao lado de nossas experiências discentes e docentes, evidenciou que outro limite imposto ao trabalho com as questões étnico-raciais está ligado à estrutura e visão da escola. Na história da educação no Brasil, desde o início da colonização desse país, a escola se constituiu sobre um padrão europeu de educação. Com um modelo de ser humano e de sociedade

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definidos. Esse modelo coloca corpo e mente em posições dicotômicas e dá prioridade à dimensão intelectual. A escola se constitui, assim, como um espaço de construção da mente e não do corpo. O corpo, nesse espaço, no máximo está ali para ser civilizado, controlado. Ainda hoje, as nossas escolas se organizam como uma instituição total, como fábricas, promovendo, como afirma Foucault (2000), a docilidade dos corpos. No pensamento ocidental, o corpo aparece conceitualmente separado da mente. Oliveira (2009, p. 6) ressalta que A construção do moderno Estado-nação supôs um processo centralizador que implicava a monopolização dos meios de controle ideológicos e normativos. Neste sentido, o controle praticado entre indivíduos fomentou uma maior distância emocional entre sujeitos, assim como a extensão de um sentimento de dualidade mente-corpo.

Na visão afro-brasileira, o corpo é visto como uma entidade físicobiológica que atua sobre a sociedade e é suporte para a mente. A tríade corpomente-sociedade são indissociáveis, ao falar de um, fazemos referência aos demais. “A corporalidade é a identificação do ‘eu’ consigo mesmo, tão único e tão original que faz igualmente a pessoa ser única, incomparável e inigualável, ainda que necessite da coletividade como fator constitutivo da condição de pessoa” (OLIVEIRA, 2009, p. 9). O modelo eurocêntrico de escola, onde transita uma visão de ser humano, de sociedade capitalista e individualista, estrutura sua organização baseada na hierarquização dos saberes, na compartimentação, na meritocracia, na competição. E esses valores são contrários aos valores existentes nas cosmovisões africanas e indígenas como a cooperação, a solidariedade e o comunitarismo. Segundo Mazama (2009, p. 122), “a visão de mundo de um povo determina o que constitui problema para ele, além de como resolve seus problemas”. Sendo assim, a visão de mundo estrutura a escola e impõe um modelo de educação. A autora afirma que, devido a seu potencial libertador, o propósito e a forma de educação são uma prioridade do paradigma afrocêntrico. Ela também apresenta uma distinção entre educação e escolaridade; discutindo o caso dos negros nos Estados Unidos, a autora afirma:

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Enquanto o principal propósito da escolaridade é o controle social, juntamente com a reprodução da hegemonia do segmento populacional dominante euro-norte americano sobre a sociedade, a educação assegura a transmissão à geração seguinte de valores e atitudes que reflitam a cultura de determinado grupo. (MAZAMA, 2009, p. 126).

Então nos questionamos o que pode ser feito para pensarmos a escola brasileira e, mais especificamente, a escola municipal de Porto Alegre como um espaço não exclusivo de escolaridade e também como um espaço de educação mais amplo, como aponta Mazama (2009). Nossa escola não foi pensada para trabalhar com outros valores, outras formas de aprendizagem, de tempos, espaços e organização. Desde seu formato arquitetônico, dividido em salas, da mesma forma que estruturamos o pensamento, tudo compartimentado nas suas respectivas gavetas. Essa escola deriva da ciência ocidental, que, conforme Nascimento (2009, p. 182), “[...] propõe a busca de regras e normas universais, aplicáveis às varias dimensões da realidade compartimentadas em disciplinas específicas”. Como resultado disso, nos deparamos com a segmentação da experiência humana, que é resultado da separação do conhecimento em disciplinas especializadas, definindo espaços fechados de investigação científica e construção de conhecimento. Em conversa com o Mestre Griô Aprendiz sobre essa realidade, ele fala: O corpo da escola não foi preparado para assimilar nossa natureza de jeitos de aprender e ensinar... Viste nossa sala, ontem? Um retângulo; espaços circulares, arquitetura que privilegie as relações com a contemplação, com a natureza, o arejamento dos ambientes... Não foram feitos para serem agregados aos valores arquitetônicos da escola. (Entrevista do Mestre Griô Aprendiz).

Karenga apud Nascimento (2009) identifica algumas características culturais africanas que fazem parte de sua cosmovisão e valores civilizatórios. A centralidade da comunidade, o respeito à tradição, um alto nível de espiritualidade e envolvimento ético, a harmonia com a natureza, a natureza social da identidade individual, a veneração dos ancestrais e a unidade do ser. Esses valores não são encontrados nas nossas escolas, pois estando elas centradas em uma visão eurocêntrica, suas estruturas físicas, pedagógicas, políticas e administrativas não contemplam essas dimensões. “A escola consolida-se como um instrumento fabril e essa dinâmica, suas rotinas, suas

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normatividades não são passíveis de uma performatividade possível para flexibilização do currículo” (Entrevista com o Mestre Griô Aprendiz). Portanto, a escola não está preparada para romper com a cosmovisão eurocêntrica, o que se torna um limitador para o trabalho com as questões étnico-raciais nela. Gomes (2007) também argumenta nesse sentido; para a autora, [...] assim como o tempo, o espaço da escola também não é neutro e precisa passar por um processo de desnaturalização. O espaço escolar exprime uma determinada concepção e interpretação de sujeito social. Podemos dizer que a escola enquanto instituição social se realiza, ao mesmo tempo, como um espaço físico específico e também sociocultural. No que concerne ao espaço físico da escola, é importante refletir que ele exprime uma determinada concepção e interpretação de sujeito social. Como será a organização dos nossos espaços escolares? Será que o espaço da escola é pensado e ressignificado no sentido de garantir o desenvolvimento de um senso de liberdade, de criatividade e de experimentação? Será que a forma como organizamos o espaço possibilita ao aluno e à aluna interagir com o ambiente, arranjar sua sala de aula, alterá-la esteticamente, movimentar-se com tranquilidade e autonomia? Ou o espaço entra como um elemento de condicionamento e redução cultural de nossas crianças, adolescentes e jovens? (GOMES, 2007, p. 39).

Segundo Sacristán (1995, p. 84), “a escola tem se configurado em uma ideologia e em seus usos organizativos e pedagógicos, como um instrumento de homogeneização e de assimilação à cultura dominante”. Uma das grandes armas nessa homogeneização dentro da escola se dá por meio do currículo. O currículo nas escolas silencia e nega as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas, partindo do pressuposto de que a cultura hegemônica e dominante deva prevalecer sobre as demais culturas consideradas minoritárias (ONOFRE, 2008). Como um instrumento de poder, o currículo e o silenciamento cultural que ele efetiva na prática escolar são mais um limitador para uma educação das relações étnico-raciais. Apple (1994, p. 59) afirma que [...] o currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos que de algum modo aparece nos textos e nas salas de aula de uma nação. Ele é sempre parte de uma ‘tradição seletiva’ resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo. É produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo.

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O currículo é reflexo do modelo de educação e de sociedade que temos. Para construirmos uma sociedade mais justa, precisamos intervir no currículo de modo a subverter a lógica do racismo, não o limitando a áreas, temas ou conteúdos, como afirma Onofre (2008). Para o autor, precisamos de estratégias de elaboração de currículos que contemplem a história do povo negro, bem como metodologias de ensino e conteúdos voltados para tal fim. SOLIDÃO E OS ATROPELOS DA ESCOLA Refletindo sobre as escolas por onde já trabalhamos e sobre tantas outras com que de uma forma ou de outra tenhamos tido contato, além de nos basear no que observamos na escola Tinguerreiros 51, nos atrevemos a afirmar que o trabalho coletivo é algo muito escasso. Poucas são as escolas em que observamos um trabalho coletivo efetivo, não que não exista em nenhum lugar, que alguns professores não estabeleçam pequenas parcerias, mas no geral é muito difícil. Esse foi um dos limites apontados pelo professor Baobá para o trabalho com as questões étnico-raciais, segundo ele, o maior limite é “a falta de parceria para abordar a temática, principalmente com uma fala presa ao discurso da democracia racial. Que sabemos que é uma falácia e que serve como zona de conforto” (Trecho da entrevista do professor Baobá). Ao descrever um trabalho que estava realizando com uma turma, o professor lamentou a falta de parceria para poder dar continuidade ao trabalho. [...] A parceria com os colegas é algo que pra mim incomoda abruptamente, muito, muito, por que ela passa sempre pelas afinidades pessoais e não deveria, elas deveriam ser profissionais e as afinidades nos facilitarem... o que que eu digo com isso... é que eu acho que a parceria deveria ser algo quase que obrigatória, tu não deveria trabalhar sozinho nunca, deveria estar sempre trabalhando com os outros professores... isso não significa morrer de amores pelos outros professores nem concordar com tudo... um dos grandes problemas do Brasil é que se inventou essa história de que o conflito é ruim... e o conflito é bom... se tu for ético se tu tiver na perspectiva do trabalho, quando eu digo conflito, conflito teórico porque dai parece assim se eu não concordo contigo 100% a gente não pode trabalhar junto e eu discordo disso porque a gente não precisa fazer tudo igual trabalhar junto não é isso... é trabalhar com as diferenças, 51

Tinguerreiros é o codinome dado à escola onde foi feita a etnografia.

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com as divergências mas ter um objetivo comum que é a criança e que é a proposta educacional [...]. (Trecho da entrevista do professor Baobá).

Esse individualismo dos professores é chamado de “umbiguismo” na investigação de Bossle e Molina Neto (2009); esses autores apontam o umbiguismo como um individualismo em que o professor seria o centro das ações e não os alunos ou a prática pedagógica. Os autores apresentam essa noção trabalhada por Hargreaves (1996) que denomina essa atitude umbiguista como um individualismo eletivo. Esse conceito corrobora para a solidão de que fala o professor Baobá. Se na prática pedagógica em geral na escola nos deparamos com o individualismo e a solidão dos professores, quando nos referimos às questões étnico-raciais esse individualismo é ainda maior. Nas escolas em que encontramos trabalhos com essas questões, raramente é um trabalho do coletivo da escola, mas normalmente são iniciativas individuais que às vezes contagiam alguns poucos colegas. Segundo uma professora que trabalha em uma escola da RME-POA que é conhecida pelo trabalho com as questões étnicas, esse reconhecimento é falso, pois não é um trabalho da escola e sim o trabalho de algumas pessoas. Na escola Tinguerreiros, o trabalho com as questões étnico-raciais também é realizado por alguns poucos professores. O diretor Mandela, falando sobre o trabalho na escola com essas questões, aponta: Olha... infelizmente, embora a gente tenha colocado no PPP, infelizmente são ações mais pontuais, têm alguns professores que trabalham isso. Já se colocou em reuniões pedagógicas, se tentou, mas simplesmente é aquela coisa, é uma cultura que ainda está difícil de mudar, que tem que ser pela persuasão, mas é difícil do professor na sala de aula trabalhar. (Entrevista do diretor Mandela).

O segundo fator limitador para uma prática pedagógica que inclua as questões étnicas denominamos de “os atropelos da escola”. São elementos que fazem parte da rotina das escolas e que observamos tanto no trabalho de campo da etnografia quanto na nossa prática pedagógica ou nas visitas às escolas. A rotina das escolas municipais de Porto Alegre não difere muito entre elas. Nas várias visitas que fizemos às escolas para a entrega e a coleta dos questionários, observamos que quase todas convivem com a falta de professores. Na escola

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Tinguerreiros, esse problema também existe. Em um trecho do artigo sobre auto etnografia, Bossle e Molina Neto (2009) descrevem uma cena em uma escola do município de Porto Alegre e as consequências dessa falta de professores nas aulas de Educação Física: Estávamos sentados na sala dos professores esperando soar o sinal para iniciar a aula, às sete horas e trinta minutos, quando a coordenadora de turno nos falou que precisaríamos ficar com mais duas turmas de estudantes além da prevista no horário. A justificativa foi que faltariam quatro professores na escola pela manhã. Assim, já no primeiro módulo de aula estávamos com três turmas de mais ou menos vinte estudantes cada uma, esforçandonos para contornar o ‘caos’ em que estava nosso espaço de aula – o pátio. (BOSSLE; MOLINA NETO, 2009 p. 139).

Na escola do professor Baobá não observamos esse problema, mas na escola onde ensinamos já vivenciamos essa mesma situação mais de uma vez. Para poder contornar a falta de professores e não dispensar turmas, muitas vezes as aulas de Educação Física ficam sobrecarregadas com mais de uma turma, o que compromete todo o planejamento e a prática pedagógica. Essa prática também foi constatada por Molina Neto et al. (2013) no relato de professores iniciantes. A professora Julieta nos fez um relato que vem ao encontro de tal constatação. Durante nossas visitas e observações, ela nos contou que a escola sofre constantemente com a falta de professores. Desde que iniciou a lecionar lá, é mais comum haver a falta de pelo menos um professor por dia do que estarem todos na escola. Desta forma, o quadro-horário das turmas e das aulas é sempre uma incógnita. Com isto, muitas vezes Julieta entrou em sala de aula para preencher a lacuna de um colega ausente, abrindo compulsoriamente mão dos horários destinados ao planejamento do ensino e do tempo para estudar. Em consequência de fatos como esse, ela planeja suas aulas em casa, no seu tempo livre. Segundo suas próprias contas, nesse ano, já acumula 43 períodos a mais de trabalho para dar conta de aulas de um colega que esteve ausente do trabalho. Além disso, com frequência, dado ao fato de ser uma professora iniciante, Julieta é "convidada" a dar conta de duas turmas ao mesmo tempo. (MOLINA NETO et al., 2013, s/p).

Se por um lado, durante os meses de trabalho de campo, não presenciamos o acúmulo de turmas para o professor Baobá, por outro, mais de uma vez chegamos na escola e ele não estava na turma que deveria estar, pois tinham trocado seu horário.

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Falando sobre a escola, o professor comentou como é ruim e difícil, pois dificulta o trabalho, o fato deles estarem sem horário fixo. Segundo ele, tu nunca sabes se vai ter essa ou aquela turma, se tens um ou dois períodos, porque esse ano a escola está sempre reorganizando os horários (Trecho do diário de campo 30/9/2013). IGUALDADE X EQUIDADE É importante ressaltar que igualdade não significa justiça. Essa é uma confusão que muitas vezes atrapalha o trabalho com as questões étnico-raciais. Nossa sociedade não é igual e nem justa, mas no discurso de muitos professores o fato de tratarem os alunos com igualdade garantiria uma educação antirracista. Pretendemos discutir neste tópico que, para além da igualdade precisamos garantir a equidade nas nossas ações pedagógicas. E tratando-se das questões étnico-raciais isso é extremamente relevante devido à desigualdade construída ao longo dos anos. “Geralmente na escola trabalha-se como se não houvesse diferenças, a partir de um discurso da igualdade entre as crianças, apesar de ocorrerem práticas ostensivas de diferenciação, principalmente de caráter racial e estético” (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA; RODRIGES, 2010, p. 91). Esse ocultamento da diversidade e uma visão distorcida das relações étnico-raciais fomentam a ideia de que vivemos harmoniosamente integrados na sociedade. Segundo Abramowicz, Oliveira e Rodrigues (2010), ocultar da diversidade faz um brasileiro cordial, com igualdade, que ignora as nítidas e contundentes diferenças. O debate em torno da diferença entre igualdade e equidade é um tema complexo e atual52 que perpassa diferentes áreas, entre elas o direito, a economia, a sociologia, a filosofia, a saúde e a educação. Na área da saúde e da educação “[...] a equidade [...] se traduz em focalização e discriminação positiva de grupos de risco” (NOGUEIRA, 2004, p. 3). Esse dois conceitos aparentemente semelhantes, podem apontar para visões diferentes nas políticas públicas. Kawachi et al. (2002) enfatizam o fato de que “igualdade e desigualdade 52

Cf. Nogueira (2004).

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são conceitos mensuráveis, que se referem a quantidades passíveis de serem medidas. Por sua vez, equidade e iniquidade são conceitos políticos, que expressam um compromisso moral com a justiça social”. Discutindo as questões de saúde e de políticas do Sistema Único de Saúde (SUS), Pontes et al. (2009), afirmam: Por meio do princípio da equidade, objetiva-se diminuir as desigualdades, porém não significa que seja sinônimo de igualdade, apesar de todos terem direito de acesso aos serviços, independente de cor, raça ou religião e sem nenhum tipo de privilégio, as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades distintas. (PONTES et al., 2009, p. 501).

Aristóteles já dizia, “não há nada mais desigual do que tratar igualmente aqueles que são diferentes”, sendo assim, a equidade significa tratar diferentemente aqueles que são diferentes para garantir e promover uma igualdade posterior. Quando

questionados

se

consideravam

praticar

uma

educação

antirracista, vinte e cinco professores que responderam sim justificaram praticar essa educação antirracista, pois usavam o critério da igualdade. Entre eles, os exemplos a seguir: “tratando e exigindo que todos sejam tratados da mesma maneira” (resposta questionário 91, professora autodeclarada branca, com 7 anos de SMED); “promovendo a igualdade, o respeito e o diálogo” (resposta questionário 128, professor autodeclarado branco, com 14 anos de SMED); “todos têm os mesmos direitos e deveres” (resposta questionário 121, professora autodeclarada branca, com 5 anos de SMED); “no tratamento igualitário a todos os alunos em todas as situações” (resposta questionário 109, professor autodeclarado branco, com 17 anos de SMED); “tratando todos da mesma maneira” (resposta questionário 46, professora autodeclarada branca, com 1 ano de SMED). Refletindo sobre os conceitos de igualdade e equidade e analisando as respostas dos professores considero que elas não são sinônimos ou não caracterizam uma educação antirracista. É preciso mais do que tratar todos com igualdade para se garantir um ambiente justo, livre de preconceitos e discriminações, precisamos problematizar as questões e ter um olhar diferenciado para cada aluno. Isso não significa dar privilégio a uns em detrimento de outros, mas ter a sensibilidade de olhar e entender as diferenças e

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histórias de cada aluno. O professor Baobá, ao conversar sobre o tema afirmou: As pessoas sempre dizem que não importa a cor da pele, que todos são iguais ou tratados com igualdade. Eu uso o conceito de equidade do SUS. Nós não somos iguais e temos que ser tratados e vistos de forma diferente. Eu não posso tratar a aluna X (aluna negra que a mãe saiu agora da cadeia) igual aos outros, precisa de um olhar diferente. (Trecho do diário de campo 23/09/2013).

Além disso, a escola produz um discurso baseado na igualdade de todos os alunos. Por meio desse discurso, os agentes pedagógicos acionam mecanismos de poder que fixam um determinado modelo de sociedade, todos aqueles que se desviam desse modelo RODRIGUES, 2010)

são

punidos.

(ABRAMOWICZ;

OLIVEIRA;

Levando em consideração as colocações de Abramowicz, Oliveira e Rodrigues, (2010), refletindo sobre a afirmação do professor Baobá e pensando no conceito de equidade do SUS, onde se procura dar uma atenção especial para as pessoas mais desfavorecidas, oferecendo mais e melhor para quem mais precisa, buscando justiça social e igualdade, mas tendo em mente que partimos de diferenças; pensamos que na escola também podemos usar esse conceito de equidade. A escola precisa dar visibilidade às questões étnico-raciais, e para isso é importante a equidade de representações. Para o assessor das relações étnico raciais da SMED, o trabalho com a noção de equidade está vinculado à formação. Enquanto não tivermos uma formação que nos torne sensíveis para essas questões, continuaremos tornandoas invisíveis. Entendo que a instrução de nível superior não prepara os graduados para que tenham uma atuação mais ligada às questões da ética e da equidade na prestação do trabalho de educação no serviço público. Infelizmente, a conduta dos professores, em suas graduações, poderia ter uma abordagem mais profunda em disciplinas ligadas a questões da ética e nos conceitos ligados a equidade, principalmente, no que tange a políticas de reparação social e as mazelas geradas por seu não fazer. (Entrevista com o assessor mestre Griô Aprendiz).

CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS Para além de desculpas para a falta de abordagem das questões étnico raciais na Educação Física da RME-POA esse trabalho procurou discutir quais

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aspectos servem como limitadores dessa prática. Mas é importante ressaltar que apesar desses limites encontramos muitos professores que abordam a temática. Ficou evidente que os cursos de graduação das universidades aqui localizadas preparam de modo insuficiente os professores para lidarem com as questões da diversidade, principalmente a diversidade étnico-racial. Na Educação Física, essa questão é pouco debatida e nos currículos das universidades de onde são oriundos os professores participantes desta pesquisa poucas são as disciplinas que tematizam o assunto. Precisamos refletir que garantir o direito em lei e garanti-lo entre as pessoas funciona de modo diferente. Apesar de essas leis já terem anos desde sua promulgação, elas ainda não existem de fato no cotidiano das escolas. A implementação da lei como política pública é um processo lento e, por mais que já possamos ver avanços, como mostram alguns dados dessa pesquisa, ainda temos um longo caminho a trilhar. A temática das relações étnico-raciais e da diversidade é uma temática que, segundo o Mestre Griô Aprendiz, “se não tiver o respaldo institucional é difícil de ser assimilada” (Fragmento da entrevista com o Mestre Grio Aprendiz). A falta de uma política clara da SMED para a implementação do ensino das questões étnico-raciais e o fato de ela ser ainda uma lei de direito, mas não de fato, é mais um limitador para que se avance no trabalho com essas questões na escola e, principalmente, na Educação Física, que é o foco desta pesquisa. Também devemos levar em conta que a estrutura da escola é reflexo da visão de mundo onde ela é construída e que ela não favorece o trabalho com as cosmovisões africanas, afro-brasileiras e indígenas. A escola é baseada na dualidade corpo e mente, dando prioridade à mente e dividindo desde o seu espaço físico até a organização dos seus tempos e conteúdos em dispositivos pré-definidos. A escola ainda não está preparada para conviver e acolher outras formas de aprender e ensinar. De uma forma ou de outra, todos os aspectos discutidos neste texto, tornam-se limites para que os professores realizem um trabalho com as questões étnico-raciais nas aulas de Educação Física da RME-POA. Arriscamo-nos a afirmar que essas limitações extrapolam a dimensão desta rede de ensino e podem ser limitadores não só aqui, mas em diversas escolas do país. Porém,

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esses limites não impossibilitam que o trabalho aconteça. Eles tornam a tarefa mais difícil e cansativa e é possível que funcionem em alguns casos como justificativa para a sua não realização. Contudo, vários professores estão realizando boas práticas pedagógicas que dão visibilidade ao corpo e à cultura corporal afro-brasileira e indígena. Mas, ainda não é suficiente, urge ampliar a discussão para a maioria dos professores que tem dificuldades em lidar com a temática em sua prática pedagógica. Nossas

escolas

propagam

com

frequência

o

discurso

racista,

principalmente a partir das ações ou dos silenciamentos e invisibilidades da cultura negra dentro de seus espaços. Assumindo isso, poderemos reverter a situação e tornar a escola um núcleo de resistência ao racismo e uma semente que plante a educação antirracista na mente e corpo de professores e estudantes. Beyond excuses: limiting factors to the work with racial ethnic issue in the Physical Education of Porto Alegre’s municipal schools Abstract: This article presents the analysis of the limits to work with ethnic and racial issues in the school arising from the data triangulation of the study entitled "Mojuodara: physical education and ethnic and racial relations in RME-POA". It is a qualitative research and uses a diagnostic questionnaire and an ethnographic case study. Among the limits found it is: the difficulty of establishing a collective work to encompass this subject; the difficulties of the school's daily routine; the lack of training to approach the discussion; the concept of equality related by teachers; and the fact that Law 10.639/03 and 11.645/08 are legal rights, but still are not put into practice in the reality. Keywords: Physical Education. School. Ethnic-racial relations.

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Relações de gênero nas aulas de Educação Física: a visão das professoras e dos professores da Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA) Daniella Rocha Bittencourt (SEMED-Ananindeua) 53 Emerson Duarte Monte (UEPA) 54 Resumo: Este estudo debate a compreensão das(os) professoras(es) de Educação Física sobre as relações de gênero em suas aulas. Aborda gênero como uma construção histórica e social que impõe padrões de comportamento e delimita atividades ao ser mulher e ao ser homem de acordo com o sexo do sujeito. Para tanto, discute a desnaturalização de concepções biologicistas de gênero, as quais servem como justificativa para a manutenção das desigualdades entre homens e mulheres. Esta investigação se fundamenta no materialismo histórico-dialético como teoria do conhecimento para interpretar o real, e como instrumento de coleta de dados utilizou um questionário com as(os) professoras(es) de Educação Física da Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA). Conclui-se que, apesar dos inúmeros avanços no que diz respeito aos direitos das mulheres nas aulas de Educação Física, ainda é possível verificar discursos de inferioridade natural das meninas, neste sentido as questões referentes as desigualdades entre os sexos precisa ser alvo de melhor entendimento das(os) professoras(es) afim de conscientizar estas(es) profissionais que essa diferença é fruto de uma construção sócio-histórico-cultural e não da biologia dos sujeitos. Palavras-chave: Relações de Gênero. Feminismo. Educação Física. Docência.

INTRODUÇÃO Historicamente a mulher foi secundarizada no âmbito público, restringindo sua participação e atividades ao mundo privado, em especial a atuação materna e doméstica. Esta situação lhe conferiu uma invisibilidade social na construção da história da humanidade, dando aos homens, principalmente brancos, ocidentais e da classe dominante, o mérito por todas as conquistas (políticas, sociais, tecnológicas) até hoje alcançadas pelos seres humanos. Esta invisibilidade permanece, na maioria das vezes, justificada por um determinismo biológico, assentado no entendimento de que as diferenças, fisiológicas dos sujeitos é o que orienta seus comportamentos, gostos, profissões, ou seja, é o sexo biológico que, em última instância, decide o papel social de cada ser humano. Partindo desse pressuposto, afirma-se que a mulher é o ser mais frágil, 53

Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Professora da Secretaria Municipal de Educação de Ananindeua (SEMED). E-mail: dannybittencourt@hotmail.com 54 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA). E-mail: emerson@uepa.br

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emotivo e irracional e, portanto, com menor ou nenhuma habilidade para as atividades que exigem maior dispêndio de força física, de grandes responsabilidades ou de liderança, além disso, até o inicio do século XX, foram consideradas aptas apenas para cuidar, educar as crianças e realizar trabalhos detalhistas e monótonos, como os do lar. Foram, e ainda são, necessárias muitas lutas e resistências (políticas, sociais, ideológicas e da vida privada) para que a mulher adentrasse e ganhasse espaço na vida pública. Essas lutas dizem respeito, principalmente, a necessidade de entendimento de que as desigualdades geradas entre os sexos e os papéis sociais impostos as mulheres e aos homens são de origem cultural, ou seja, são construídos pelos próprios seres humanos na sua prática social e, portanto, não são inatas. Como produção e reprodução social, elas assumem as formas ideais das classes dominantes, tendo em vista que se configuram, historicamente, como as ideias hegemônicas de uma determinada época. (MARX; ENGELS, 2007) As desigualdades afligem a todas as mulheres com severas disparidades e graves discriminações, sendo que algumas delas têm, atingido, o próprio direito a vida e outras dizem respeito às condições materiais de existência, com contradições severas. Neste aspecto, conforme os dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), 29% das mulheres da região (América Latina e Caribe) não possuem renda própria e 26% possuem renda inferior a 1 salário mínimo (CEPAL, 2016a). Além disso, as mulheres ganharam, em média, 16,1% menos do que os homens em condições semelhantes de formação e isso se agrava quando amplia o tempo de estudo, alcançando a casa de 25,6% de diferença salarial entre os indivíduos com mais de 13 anos de escolarização (CEPAL, 2016a). O dado de maior gravidade é o que trata do volume de feminicídeos que, em 2014, alcançou a marca de 12 mulheres assassinadas por dia, pelo fato de serem mulheres. (CEPAL, 2016b) Estes dados demonstram que, apesar

dos

inúmeros

avanços

conquistados, como o direito ao voto, ao trabalho, a escolha de parceiros e parceiras, as mulheres, ainda hoje, possuem um lugar de desprestígio na sociedade, e sofrem preconceitos em todos os campos em que atuam. No interior deste cenário, a escola pode ser percebida como um campo

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de reprodução das desigualdades entre meninos e meninas. Ao longo do processo formativo dessa pesquisadora, no interior do Curso de Educação Física da Universidade do Estado do Pará (CEDF/UEPA), durante a disciplina de Estágio Supervisionado, foi possível vivenciar esta desigualdade de forma vívida. Na escola em que fora realizada as atividades do Estágio, as meninas eram tratadas de forma bastante desigual em relação aos meninos, com nítida reprodução do sexismo nas aulas de Educação Física. Nas aulas as meninas não podiam usar shorts para as atividades práticas da disciplina, e os meninos poderiam usar este tipo de vestimenta livremente, a justificativa utilizada pelos coordenadores desta área era a de que as meninas precisavam resguardar o corpo e não o podiam mostrar. Além disso, foi possível observar que as aulas eram dominadas pelos meninos, pois enquanto eles ocupavam dois terços da quadra (no melhor dos casos), às meninas eram destinados os menores espaços; nestas ocasiões as(os) professoras(es) pareciam achar natural as diferenças que ali estavam postas. Dentro desta perspectiva, surgem as inquietações deste estudo e se levantam

os seguintes questionamentos:

Qual a

compreensão

das(os)

professoras(es) de Educação Física da Rede Municipal de Ensino de Ananindeua (PA) sobre as relações de gênero? Em que medida as(os) professoras(es) obtiveram acesso a esse debate em sua formação profissional – inicial e continuada? A partir disso, delimita-se como objetivo geral deste artigo analisar a compreensão das(os) professoras(es) de Educação Física da educação básica sobre as relações que se estabelecem entre meninos e meninas nas aulas desta disciplina. Assim como, de modo específico, analisar as relações estabelecidas entre o processo de formação inicial e as ações de formação continuada, no interior da secretaria e fora dela, no que toca ao tema das relações de gênero na disciplina curricular de Educação Física. Este texto encara as relações de gênero como problemas latentes do mundo presente e que, portanto, devem ser abordadas e discutidas pelos(as) professores(as) no espaço educacional escolar. Para discutir a respeito das questões aqui levantadas, este artigo apresenta como suporte teórico a produção de Guacira Louro, Cecília Tôledo, Alexandra Kollontai e Silvana Goellner. Louro (2003), aborda a emergência do

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termo gênero e o conceitua como cultural e não natural, consequência da prática social dos próprios seres humanos e necessidade central na educação formal. Neste aspecto, Goellner (2015) corrobora com Louro (2003) e acrescenta que a Educação Física é uma área biologicista, que trata as capacidades dos alunos e alunas de acordo com o seu sexo, avalia que existe uma escassez de debates desta temática nesta área, o que precisa ser superado, em busca de igualdade entre os sujeitos da escola, especificamente, da Educação Física. Tôledo (2005) e Kollontai (2011), no âmbito da produção do feminismo marxista, fazem a discussão de gênero para além da certeza de que é uma construção histórica e social. Elas analisam as desigualdades entre os sexos como inerentes à divisão social do trabalho, expondo que o modo de produção da vida material é o que condiciona o processo de vida social, política e intelectual, portanto, as desigualdades decorrem, em última instância, da função que é designada a homens e mulheres na produção geral de bens. Do ponto de vista da teoria do conhecimento que fundamenta este artigo, define-se pelo materialismo histórico-dialético por compreender que este busca captar o movimento real das relações de gênero na visão das(os) professoras(es) de Educação Física, analisando e explicando a realidade a partir da compreensão das múltiplas determinações históricas que subsidiam a caracterização das desigualdades percebidas entre homens e mulheres. O método dialético tem como objetivo sintetizar a realidade concreta, a partir da produção da teoria como produto do movimento real do objeto e, nesse movimento, identificar as contradições inerentes a ela, com o intuito de romper com a lógica de reprodução de estereótipos e imposições de comportamentos que são feitas de forma diferente a cada um dos sexos. (KOSIK, 2002, p. 20) No que concerne a natureza da pesquisa, trata-se de uma pesquisa de campo com o objetivo de fornecer um nível de concretude e atualidade ao objeto em questão. Possui caráter crítico-analítico na busca de investigar criticamente as relações dialéticas entre o objeto e as condições dos sujeitos direta ou indiretamente envolvidos na pesquisa. (MELLO, 2017, p. 8) Utiliza-se como lócus de pesquisa a Secretaria Municipal de Educação de Ananindeua (PA), pois é onde a autora tem vínculo como professora da rede básica e, dessa forma, pôde acessar as(os) professoras(es) na ocasião da semana

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pedagógica, do ano de 2018, da disciplina de Educação Física. Como instrumento de coleta de dados este estudo utilizou um questionário, que contém 16 questões, dividas em 4 eixos temáticos: 1. Visão das(os) professoras(es) sobre as relações de gênero; 2. Conteúdos da Educação Física na perspectiva de gênero; 3. Acesso ao tema gênero; 4. Violência contra a mulher nas aulas de Educação Física. O questionário foi aplicado a 30 professoras(es) de Educação Física da Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA), que conta com uma média de 100 docentes desta disciplina. O número de professoras(es) participantes está diretamente relacionado aos presentes na ocasião da Semana Pedagógica anteriormente citada. Deste quantitativo, 17 são professores e 13 são professoras, que atuam da Educação Infantil ao 9º ano do Ensino Fundamental. Os dados coletados foram tabulados e geraram um banco de dados. A sistematização dos dados ocorreu por meio do uso do software Statistical

Package for the Social Sciences (SPSS) – versão 20. Após este procedimento foi realizado o cruzamento das questões para posterior análise. Este artigo se organiza em 3 seções. A primeira seção trata da desnaturalização de concepções biologiscistas que dizem que a mulher é inferior ao homem por sua condição física, contesta-se que elementos históricos permitem afirmar que a mulher não nasce oprimida, mas sim que ela se torna. A segunda seção trata do reflexo que estas relações históricas e desiguais, entre os gêneros, têm nas aulas de Educação Física, problematizando o papel social do(a) professor(a) no desenrolar destas relações. Na terceira seção, por fim, analisa-se a partir de questionários aplicados às(aos) professoras(es) de Educação Física da Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA), qual a compreensão destes sujeitos sobre as relações de gênero em suas aulas. A MULHER NÃO NASCE OPRIMIDA, ELA SE TORNA No que não é estranho, encontrem o estranho! No que é comum, encontrem o inexplicável! Com o que é normal, vocês devem se espantar. O que á a Regra, reconheçam como abuso E onde vocês reconhecerem o abuso, Busquem remediar! Bertolt Brecht (1967, apud MELLO, 2009) Inicia-se com esta epígrafe, pois ela é a que melhor representa a intenção

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desta seção, que é a de desmistificar (estranhar o que não é estranho) a inferioridade “natural” da mulher (tomar como inexplicável àquilo que é comum), destacando que as desigualdades geradas por esta afirmativa estão enraizadas na história da humanidade e em suas relações e, portanto, não são inatas (na busca por um remédio para o abuso). É importante situar que as relações de gênero expostas neste artigo se constroem a partir da emergência do termo em que Louro (2003) apresenta. A autora salienta que este conceito se constrói a partir dos estudos feministas, pela necessidade de acentuar o caráter social das diferenças percebidas entres os sexos. Gênero, ainda segundo a autora, refere-se às masculinidades e às feminilidades. Estes termos se encontram no plural, pois visam desconstruir o entendimento de que exista um sujeito universal, ou seja, há diversas formas de se viver o masculino e o feminino. Estas se tratam de uma construção cultural contínua e relacional, pois se supõe que para existir este processo de diferenciação existem duas formas de viver o gênero que se relacionam. (LOURO, 2003) Neste cenário, as formas de viver o gênero não desfrutam do mesmo prestígio e se constata que uns sujeitos são mais valorizados que outros. Gênero, então, trata da necessária defesa da desnaturalização sobre as formas assumidas pelo masculino e pelo feminino, por compreender que comportamentos não nascem com os sujeitos e que, por isto, todos os indivíduos devem ter direitos equivalentes. No entanto, no interior desta sociedade há quem (homens e mulheres) justifique as desigualdades entre os sexos, remetendo-as às características biológicas. Utiliza-se, para isso, o argumento de que homens e mulheres por serem

diferentes

biologicamente

devem

desempenhar

papéis

sociais

determinados pelas suas naturezas, em que a função da mulher é secundária e complementar ao do homem, o que acaba por ter o caráter de argumento final, imutável e, por vezes, infalível. Seja no senso comum, seja no meio acadêmicocientífico, o biologicismo serve para compreender, justificar, reproduzir e perpetuar as desigualdades. (LOURO, 2003, p. 20) Nessa esteira, Toledo (2005, p. 23) corrobora e afirma que uma das ideias mais perigosas e bem articuladas de nossa época é a de que as mulheres

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são inferiores por “natureza”, o que diz respeito a um determinismo biológico, pelo qual se daria a condição de submissão da mulher na sociedade. Neste caso, é difícil, ou mesmo impossível, ser transformada já que, supostamente, tem origem em características inatas. É necessário se contrapor a este argumento, pois a desigualdade que percebem as mulheres, em especial as mulheres negras, LGBT e oriundas da classe trabalhadora, está arraigada na história da humanidade e não em sua “natureza”. Portanto, estas argumentações são forjadas em um determinado tempo e espaço e são frutos de um meio social, das ideias sobre o papel das mulheres nas sociedades. Sendo assim, para desconstruir esta justificativa de origem biológica sobre as desigualdades, Toledo (2005, p. 33) certifica que nem sempre foi assim, ou seja, a análise rigorosa da história da opressão à mulher se configura como a chave para encontrar as suas origens. Dessa forma, a mulher nem sempre viveu oprimida e a origem desta opressão ocorreu pelas transformações nas relações humanas já nas primeiras sociedades que se conhece. Destaca Toledo (2005), que a antropologia permite afirmar que a mulher não nasceu oprimida, mas passou a ser devido a inúmeras variáveis, dentre as quais as relações econômicas assumem papel primordial. Isso reside no processo de maturação da propriedade privada dos meios de produção e reprodução da vida material, ao se impor uma ideologia de determinação de crenças, valores, costumes, cultura e tudo que dissesse respeito ao comportamento dos sujeitos, em que o homem passou a dominar o meio público tratando a mulher como parte de suas propriedades. Desse modo, torna-se necessário deslocar o debate para o âmbito social, pois é lá que se produz e reproduz as relações (desiguais) entre os sujeitos. As respostas para as desigualdades precisam ser buscadas não nas diferenças biológicas, mas sim nas relações sociais, na história, na vida material dos seres humanos e nas condições de acesso aos recursos construídos pela humanidade. (LOURO, 2003, p. 22) O que se observa é que, historicamente, foi concedido um papel às mulheres e aos homens que não era os de sua “natureza”, mas imposto a eles e a elas por meio da cultura, cultura determinada, em última instância, pelas condições materiais de vida dos sujeitos. Esses papéis se transformaram ao

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longo do tempo e redimensionaram o funcionamento da sociedade, dando ao homem (branco) o poder de controlar a esfera econômica da sociedade e, consequentemente, os demais segmentos. Destaca-se aqui que as relações sociais gerais apresentam origem nas relações econômicas, na produção social da vida material, no cotidiano das relações de troca, enfim, no alicerce das sociedades humanas, tal como exposto por Marx (2008): [...] na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual . Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX, 2008, p. 47, grifo nosso).

Portanto, a estrutura econômica da sociedade é a base para a opressão, pois a partir dela o homem toma a mulher, que não produz (diretamente) seus próprios meios de vida, como sua posse, estando a mulher sujeita a servi-lo, ou ainda, mesmo quando a mulher trabalha, sua renda é vista como complementar ao do homem. Isso se explica em virtude de que, historicamente, a maior parte da produção da vida material foi construída pelos homens, tanto como detentores dos meios de produção e dirigentes da superestrutura jurídica e política, quanto pelos membros da classe trabalhadora no interior das fábricas e, nesse processo, a ideia sobre a dominação do homem sobre a mulher, pelo papel que o homem assumiu na produção material, ganha legitimidade, assume vivacidade nas formas sociais determinadas de consciência. Mesmo com esta problemática o acesso da mulher ao mercado de trabalho melhorou muito suas condições de vida, permitindo que, a partir deste ganho, ela obtivesse acesso a espaços de luta pela sua emancipação. É por este motivo que o trabalho é crucial para a mulher, pois lhe dá o direito de se politizar e enxergar a condição de submissão que é imposta pela condição de dependência econômica, em síntese, pelo papel que ocupa na produção, não apenas material, mas que adentra a mundo da produção intelectual.

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Kollontai (2011, p. 55) reafirma que um fator muito importante para o fim da opressão contra a mulher é a transformação total de seu papel econômico na sociedade, mesmo que isso não signifique condição suficiente para equidade entre os sexos, mas é um importante passo. Nota-se que em países com menor nível de desenvolvimento, uma mulher que encontre um emprego pode aumentar em muito seu grau de independência, de poder decisório, e, por conseguinte, ter acesso à educação, à formação profissional. A diferença, simplesmente, entre saber ou não ler e escrever, pode ser decisiva. Do ponto de vista da classe trabalhadora, uma mulher que trabalha é uma mulher que pode participar do sindicato e dos movimentos políticos, e pode se localizar no seio de sua classe. Isso significa um ganho para a classe trabalhadora. (TOLEDO, 2005, p. 48) Hoje, mesmo com os avanços alcançados pelas muitas lutas ao longo dos séculos XX e XXI, a mulher ainda sofre com desigualdades. Estas desigualdades, em muito, devem-se ao modelo de produção vigente – o capitalismo – que exclui, segrega, explora e financia a continuidade de discursos de naturalização da inferioridade da maioria dos seres humanos, em nome da manutenção da estrutura econômica e do status quo. Em relação ao atual modo de produção Toledo (2005, p. 51) afirma que a “Opressão feminina é desemprego, é prostituição, é degradação, é violência, é morte por aborto sem assistência médica, é tristeza, frustração, dor. Tudo isso tem um nome: capitalismo”. Observa-se a manutenção das desigualdades entre homens e mulheres, no Brasil, quando se analisa o mundo do trabalho. Mesmo com todos os avanços, a participação das mulheres na População Economicamente Ativa (PEA)55, ainda está distante da equiparação com os homens. Em 60 anos, considerando 1950, o percentual de mulheres inseridas na PEA saltou de 13,6% para 49,9%, em 2010, abaixo dos 67,1% dos homens. Apesar desse avanço na PEA, quando se verificam os dados relativos à Taxa de Ocupação56, no último período (20042014), observa-se uma estagnação na participação das mulheres. A Taxa de 55

A PEA compreende as pessoas ocupadas e desocupadas na semana da coleta de dados. Define-se desocupadas as pessoas que na semana da coleta de dados estavam em busca de trabalho. (IBGE, 2007) 56 A Taxa de Ocupação corresponde ao percentual de pessoas ocupadas na semana da coleta de dados em relação às pessoas economicamente ativas nessa semana. (IBGE, 2007)

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Ocupação das mulheres salta de 51,2% para 52,0% nessa década, ou seja, as mulheres não conseguem mais ampliar o quantitativo de vagas de emprego considerando o total de mulheres na PEA. (ANDRADE, 2016, p. 10) Contribui para esse panorama a manutenção da dupla jornada de

trabalho que as mulheres estão submetidas, como parte do processo de naturalização das atividades destinadas às mulheres, produto dos valores da sociedade patriarcal e da ideologia machista ai desenvolvida. Naturalizar os afazeres e cuidados domésticos como atividades exclusivas das mulheres (tanto em relações heterossexuais, quanto em relações homossexuais), configura-se como fator que mantém a dependência e opressão da mulher em relação aos homens (ou mesmo em relações homossexuais57). Notam-se avanços quanto a dupla jornada de trabalho das mulheres nos anos iniciais do século XXI, contudo sem impacto na dupla jornada dos homens. De 2001 a 2015, o tempo gasto pelas mulheres com os afazeres e cuidados domésticos regrediu em 23,5%, uma redução de 34 horas para 26 horas semanais. No entanto, entre os homens, o quantitativo de horas despendidas com afazeres e cuidados domésticos ficou estagnado em 11 horas semanais ao longo do período em análise. (BARBOSA; COSTA, 2017, p. 25) Os autores avançam, ainda, para a análise do impacto que a elevada

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O Machismo aqui é encarado como uma opressão a mulher, independente do seu agente. E isso ganha sustentação na realidade concreta, a partir da dinâmica das relações heterossexuais, que são largamente permeadas pelo machismo, mas também no interior das relações homossexuais, que reproduzem os elementos definidores do machismo. Rodrigues (2017) apresenta relatos de mulheres que mantiveram relações homoafetivas e vivenciaram, de suas companheiras, um conjunto de ações/comportamentos/verbalizações machistas, inclusive violência doméstica, de natureza física e/ou psicológica. Fomin (2015) em entrevista a uma ativista do movimento LGBT, observa, a partir das falas de sua entrevistada, que o machismo entre as mulheres nas relações homoafetivas se manifesta desde o controle sobre a vestimenta, ao uso da maquiagem, até o controle do corpo permeado pela violência física. Sobre o particular da violência doméstica nas relações homoafetivas entre mulheres, Avena (2010) destaca que o “ciúme” se configura como o principal catalisador para a violência contra a mulher nessas relações. Nessa trilha analítica, Almeida (2010) realizou investigação empírica com famílias homoafetivas (três casais de mulheres e um casal de homens) e a reprodução do machismo no interior da dinâmica familiar, e concluiu que há reprodução do machismo a partir da divisão do trabalho doméstico desigual, da monogamia e das questões que dela derivam e da negação do projeto de vida individualprofissional de um dos membros da família em detrimento do projeto familiar como defesa de um dos membros da relação.

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jornada de trabalho realizada pelas mulheres com os afazeres e cuidados domésticos tem entre mulheres que possuem filhos (entre 0 e 5 anos) e o acesso a creche. A taxa de participação das mulheres com filhos na creche no mercado de trabalho, no período de 2001 a 2015, obteve um crescimento importante e mantém valores superiores a taxa de participação das mulheres com filhos fora da creche. No primeiro caso a taxa ampliou de 63% para 68%, já entre as mulheres com filhos fora da creche, a taxa saltou de 46% para 49%, demonstrando que a ausência do acesso a creche se configura como uma das barreiras para a maior inserção das mulheres no mundo do trabalho. (BARBOSA; COSTA, 2017, p. 27) No capitalismo, a mulher é a que mais sofre com a exploração em seus postos de trabalho por obter menores proventos pelo mesmo trabalho realizado por um homem, com o desemprego que assola a classe e, principalmente, as mulheres, faz com que ela se torne ainda mais dependente, o que alimenta as desigualdades de forma bastante reacionária. Nessa direção, as diferenças salariais são significativas, apesar do nível médio de escolarização (ensino médio e superior), em 2016, já ser superior entre as mulheres. Apesar disso, em 2009, as mulheres receberam, aproximadamente, 60% dos rendimentos dos homens, considerando iguais grupamentos de atividades e o tempo de formação acima de 11 anos (IBGE, 2010, p. 13). O valor médio, por todos os tipos de trabalhos, em 2016, avançou para 76%. (IBGE, 2018, p. 5) Apesar das diferenças salariais, mesmo as mulheres já possuírem maior tempo médio de escolarização, o maior quantitativo de anos de escolaridade tem se configurado como importante caminho para a ampliação da taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho. As mulheres com tempo de escolarização acima de 11 anos, no período de 1992 a 2012, mantiveram alta taxa de participação, na casa dos 75%, contudo as mulheres que possuem até 3 anos de escolarização, vivenciaram uma redução de 45% para 39% na taxa de participação no período em análise. (BARBOSA, 2014, p. 33) Além disso, pode-se perceber que existe um grande incentivo a maternidade, mas sem o oferecimento das devidas condições de saúde. Na mídia, vende-se a mulher como um objeto sexual, estas são apenas algumas situações que servem para reforçar o lugar de desprestígio da mulher na

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sociedade. Cabe lembrar que as relações de gênero estão permeadas por outros fatores sociais, como a classe e a raça a que pertence uma mulher, ou seja, estas relações se expressam de formas bastante diferentes na mulher burguesa e na mulher proletária. Ser pobre, com um emprego precário, com difícil acesso aos serviços da seguridade social e a educação e com precárias condições de sobrevivência são condições de classe, é a condição da classe trabalhadora no capitalismo. Uma mulher, nessas condições, tem experiências diferentes do “feminino” vivido por uma burguesa que reside em um bairro de luxo, é proprietária ou mulher de empresário, frequenta todos os dias o cabeleireiro, possui empregados domésticos e babá, etc. (TOLEDO, 2005, p. 118) Destaca-se, ainda, que a luta pela equidade entre os gêneros, como expressão da luta contra a opressão à mulher, deve se unir a luta contra o modo de produção capitalista, pelo fim da exploração da classe trabalhadora. Dessa maneira, as mulheres trabalhadoras fazem de sua luta de gênero, que é necessária, mas limitada em seu alcance, uma luta de classes, a única que pode abrir caminho, de fato, para a emancipação de todas as mulheres. (TOLEDO, 2005, p. 119) Para Kollontai (2011, p. 92), a medida que a mulher intervém no movimento da vida social, a medida que se torna ativa na vida econômica e na luta pela sua classe, seu horizonte se alarga e, então, compreende as desigualdades como mutáveis. Como frisado anteriormente, o alcance da emancipação é limitado e não depende somente da mulher, são necessárias políticas públicas que ofereçam melhores condições de vida a mulher, ou seja, serviços públicos de boa qualidade, creches, escolas, lavanderias, restaurantes. Portanto, é preciso o comprometimento de toda a sociedade com as tarefas domésticas e não mais concentrada nas mulheres, como observado a pouco nos dados nacionais. (TOLEDO, 2005, p. 104) É possível perceber que somente por meio de muitas lutas é que haverá justiça social e igualdade de acesso as oportunidades. Contudo, este não é um papel exclusivo da mulher, é necessária a mobilização de todos os sujeitos e setores da sociedade.

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Na escola este é um papel fundamental, pois a partir da instrumentalização é possível que se dê algum norte para uma nova prática social, ou seja, é por meio de debates e de discussões sobre o caráter social e histórico das relações de gênero que se fomenta a reflexão crítica e a mudança do senso comum, cheio de preconceitos e estereótipos, para um novo pensamento pautado na equidade, nutrido pela produção científica. EDUCAÇÃO FÍSICA E AS RELAÇÕES DE GÊNERO Esta seção trata das relações históricas e desiguais entre os gêneros e seu reflexo nas aulas de Educação Física, problematizando a necessidade de inserir o debate sobre as relações de gênero, reiterando o papel social do(a) professor(a) no desenrolar destas relações. Compreende-se a Educação Física como “[...] matéria escolar que trata, pedagogicamente, temas da cultura corporal, ou seja, os jogos, a ginástica, as lutas, as acrobacias, a mímica, o esporte e outros. Este é o conhecimento que constitui o conteúdo da Educação Física” (SOARES et al., 2012, p. 19). Nessa direção, ela deve: Buscar desenvolver uma reflexão pedagógica sobre o acervo de formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizadas pela expressão corporal [...] que podem ser identificadas como formas de representação simbólica de realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas. (SOARES et al., 2012, p. 39).

Portanto, a Educação Física deve ser vivida de forma igual por todos os estudantes, pois diz respeito a construção das práticas corporais que foram elaboradas ao longo do tempo e traz consigo conhecimentos necessários para a formação de sujeitos críticos, capazes de situar historicamente por meio dos conhecimentos da cultura corporal e capazes, também, de lutar pelo fim das desigualdades entre os seres humanos. Todavia, a educação na sociedade capitalista, ocidental e moderna tem caminhado em direção contrária a estes pressupostos e cumpre o papel de apartar os sujeitos. Começou separando e marginalizando àqueles que a ela não tinham acesso, logo após separou, também, os adultos das crianças, os católicos dos protestantes, também se fez desigual para os ricos e para os pobres e, por

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fim, separou os meninos das meninas. (LOURO, 2003, p. 61) Neste aspecto, para Unbehaum (2014, p. 75), a educação se tornou uma das instituições mais produtora e reprodutora de conceitos, habilidades e competências construídas e ratificadas socialmente, logo, a escola é um espaço marcado por relações de poder e por hierarquias sociais, culturais e econômicas. No interior destas relações de poder, estão as relações de gênero que permanecem imbricadas nas relações de ensino-aprendizagem da educação e da Educação Física e influenciam, diretamente, na vida dos sujeitos envolvidos no processo educacional, designando não só o espaço de atuação dos indivíduos, mas também seus comportamentos, vestimentas, gostos, etc. Para Louro (2003, p. 62) as instituições educacionais delimitam espaços, servem-se de símbolos e códigos para afirmar o que cada um pode (ou não pode) fazer; elas separam, instituem e informam o “lugar” dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Conforme Louro (2003, p. 72), nas aulas de Educação Física, a constituição das relações desiguais de gênero é um processo, geralmente, mais explícito e evidente do que nas demais disciplinas, mesmo que em várias escolas e a partir do trabalho de alguns professores e professoras caminhem em via contraria, na Educação Física, ainda hoje, parece existir uma maior resistência. Para Silva et al. (2009, p. 171) a Educação Física parece se assumir como uma disciplina que trata as crenças relacionadas aos gêneros como inatas e imutáveis. As autoras utilizam como exemplo o fato de que as atividades são modificadas e cindidas porque se presume que as meninas não são capazes de participar com ou em oposição aos meninos. Este quadro se deve, em larga escala, ao fato de que a Educação Física é uma área historicamente vinculada à biologia, indicando o sexo dos sujeitos como fundamento de suas habilidades físicas e psicológicas, em que se considera o homem mais forte e a mulher mais frágil. (GOELLNER, 2015) É como se nas aulas de Educação de Física as atividades fossem preconcebidas como que umas para o masculino e outras para o feminino e, vale lembrar, que o lugar dos meninos é, possivelmente, o lugar dos protagonistas, e se destina um lugar secundário às meninas. Para que este discurso não se reproduza, Silva et al. (2009, p. 172) afirmam que a função principal das(os) professoras(es) é estarem atentos(as)

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para que não construam suas aulas sobre os corpos individuais dos(as) alunos(as), haja vista que isto pode ocasionar a legitimação de uma natureza superior de alguns sujeitos sobre outros (classe, etnia, gênero, sexualidade). Neste sentido, é possível que concepções de diferenciação entre o masculino e o feminino possam negar às alunas, nas aulas de Educação Física, a vivência dos conteúdos em sua totalidade, construindo a ideia de inabilidade das meninas nas práticas corporais perante os meninos. Esta atitude carece de reflexão, pois a formação escolar é direito de todos os seres humanos, independentemente de suas características pessoais, é preciso considerar alunos e alunas como sujeitos que possuem diferenças, mas que possuem os mesmos direitos e devem acessar os mesmos conteúdos, as mesmas oportunidades. Isto se chama equidade e se identifica como a forma de respeito à igualdade de direitos e deveres, igualdade de acesso às práticas corporais, é somente assim que todos os sujeitos envolvidos nas aulas terão acesso a todos os conteúdos histórica e culturalmente produzidos pela humanidade, tal como defendido por Soares et al. (2012). Nesta perspectiva, Louro (2003, p. 74) afirma que o processo de diferenciação nas aulas de Educação Física, normalmente está vinculado a reafirmação do feminino como um desvio do masculino, em que se utiliza o discurso de que existem atividades que vão contra a feminilidade. Nas palavras da autora, “que se opõem a um determinado ideal feminino heterossexual, ligado à fragilidade, à passividade e a graça como o fato de que tais atividades podem "machucar" os seios ou os órgãos reprodutores das meninas”. É importante ressaltar que gênero é também uma categoria relacional, pois diz respeito às relações entre homens e mulheres e, diante deste discurso, há também que se preocupar com os meninos que também estão sujeitos a estereótipos e preconceitos que os colocam em condições de só poderem praticar atividades de grande vigor que exaltem o lado forte da masculinidade. Neste sentido, é necessário repensar as aulas de Educação Física no intuito de que se possam dar oportunidades iguais de escolhas a todos os alunos e a todas as alunas, para que através das experiências das diversas práticas corporais e da própria vida, eles e elas se sintam capazes de desenvolver atitudes e escolhas próprias na construção de suas identidades e de suas trajetórias de

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vida. Para isto, o papel das(os) professoras(es) é fundamental. Conforme Silva, Gomes e Goellner (2008, p. 398) o que deve estar em evidência na educação escolar é o processo de ensino-aprendizagem e, por isso mesmo, a Educação Física deve ser experimentada por todos e todas de forma positiva, para que estas experiências não sejam estereotipadas pelo gênero. Além disso, para Goellner (2015) é muito importante o processo de apropriação teórica das questões que envolvem relações de gênero pelas(os) professoras(es), pois algumas vezes, no campo da prática pedagógica, eles e elas não identificam as desigualdades de gênero por conta da escassez de debate e familiaridade com a teorização a respeito desta temática, o que pode ser feito durante sua formação profissional (inicial e continuada). Portanto, entende-se que a desnaturalização desse biologicismo presente na Educação Física é uma necessidade central, pois somente por meio de um novo entendimento acerca do tema, a partir da sua caracterização histórica, é que se poderá consolidar uma formação justa e igualitária, com radicalidade teórica. Constitui tarefa para as(os) professoras(es) de Educação Física tratarem sobre as desigualdades nas suas aulas, sem a divisão das aulas por sexo, assim como elaborar atividades que despertem nos alunos e alunas uma atitude crítica e reflexiva frente a estas problemáticas. RELAÇÕES DE GÊNERO NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA: O QUE DIZEM AS(OS) PROFESSORAS(ES)? Esta seção analisa, a partir da coleta de dados por meio de questionários junto às professoras e aos professores da Rede Municipal de Educação de Ananindeua (PA), qual a compreensão destes sujeitos sobre as relações de gênero e se percebem estas questões em suas aulas, bem como de que forma lidam com esta temática. Com o intuito de

compreender qual o entendimento

das(os)

professoras(es) do município de Ananindeua (PA) sobre as relações de gênero nas aulas de Educação Física, os resultados aqui apresentados partem do direcionamento dado por meio do questionário que foi dividido em 4 eixos temáticos: 1. Visão das(os) professoras(es) sobre as relações de gênero; 2.

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Conteúdos da Educação Física na perspectiva de gênero; 3. Acesso ao tema gênero; 4. Violência contra a mulher na escola.

1. Visão das(os) professoras(os) sobre as relações de gênero A partir da análise dos dados dos questionários pôde-se constatar que do total de participantes na pesquisa, 40,0% avaliaram que a mulher é, em parte, mais frágil do que o homem e para metade dessas(es) professoras(es), esta fragilidade se deve a fatores biológicos, ou seja, são os aspectos fisiológicos que fazem a mulher mais frágil. Ainda nesse particular, conforme dados expressos por meio da Tabela 1, é interessante destacar que a maioria das professoras defendem a tese de que a mulher não é mais frágil que os homens, com um total de 69,2%, no entanto, a maioria dos professores avalia que, em alguma medida, essa fragilidade feminina existe. Tabela 1 – Relações de gênero e percepção das(os) professoras(es) quanto as habilidades na Educação Física, fragilidade e funções laborais das mulheres Professores por Gênero Masculino Feminino TOTAL

Quem possui mais habilidades nas aulas de Educação Física?

A mulher é mais Há funções laborais que a frágil que o homem? mulher não deve exercer?

Meninos

São Iguais

Não

Em parte

Não

Em parte

17,6% 46,2% 30,0%

76,5% 53,8% 66,7%

41,2% 69,2% 53,3%

52,9% 23,1% 40,0%

70,6% 76,9% 73,3%

23,5% 7,7% 16,7%

Fonte: Pesquisa de Campo (2018).

Importa aqui destacar que a crença de que são fatores biológicos que dão a mulher o papel de mais frágil, desencadeia pensamentos de superioridade masculina naturalizadas, o que torna as relações desiguais entre as meninas e os meninos como imutáveis, além disso, é como se as pessoas já nascessem predestinadas a serem de um modo único, como uma marca genética intransponível, no qual elas não possuem escolhas, ou ainda, no qual as relações sociais não interferissem nessa dinâmica. Esse pensamento interfere na Educação Física de modo que impede a participação efetiva das meninas nas práticas, uma vez que já está predeterminado que elas são, em suma, mais frágeis e, portanto, não podem ser inseridas nalgumas práticas da cultura corporal. E essa realidade ainda se

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expressa, por exemplo, quando visualizamos que 46,2% das professoras avaliaram que os meninos possuem mais habilidades nas aulas de Educação Física. Apesar disso, a maioria dos participantes na pesquisa, 66,7%, compreendem que ambos são iguais, o que demonstra que o discurso em relação à igualdade tem se efetivado aos poucos na escola, pois durante muito tempo as mulheres não tiveram direito nenhum a educação formal, aprendendo somente as tarefas do lar. Este estudo carece de maiores investigações no sentido de saber se os discursos tem se efetivado na prática escolar. Para Silva et al. (2009, p. 176) o ambiente vivido pela maioria das alunas nas aulas de Educação Física não é convidativo para uma plena participação e comprometimento com as atividades e carece de proporcionar iguais oportunidades num plano de educação e formação de todas(os) as(os) jovens. Isto pode, além de afastar as meninas das aulas, também culpabilizá-las por não quererem participar das atividades. É preciso destacar que em um local onde já se é estereotipada(o), em que seu potencial de aprendizagem perpassa por uma questão que foge da sua capacidade de transformar o quadro em questão, só pode mesmo resultar em desistência, por isso mesmo a ideia de que as mulheres já nascem frágeis, já nascem menos habilidosas é tão perigosa, pois acaba por desarticular a luta em busca da equidade. Neste sentindo, pode-se dizer que a falta de experiências motoras, que diz respeito a desistência anteriormente citada, é o que possivelmente dê conta da inabilidade percebida nas meninas. Por isso é importante perceber que não são as diferenças físicas que devem direcionar as aulas, mas a ideia de que as(os) professoras(es) precisam dirigir suas aulas com as mesmas oportunidades, gerenciando os questionamentos quanto a superioridade de uns sujeitos sobre outros. Estes dados demonstram o que Goellner (2015, p. 168) sinaliza que a Educação Física é uma área que, historicamente, assentou os seus conhecimentos e justificativa na biologia, indicando o sexo como o elemento que define as capacidades e habilidades das pessoas. Nessa esteira, contraditoriamente, a maioria dos participantes, com 73,3%, responderam que não existe funções laborais em que as mulheres não podem se inserir; configurase como uma dissonância, quando se compara com as respostas as duas outras

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questões. É

necessário

destacar

que

33,3%

das(os)

professoras(es),

que

responderam que a mulher é, em parte, mais frágil que o homem, percebem esta fragilidade como um fato histórico, cultural e/ou religioso, o que demonstra que, para estas(es) professoras(es), as diferenças são algo construído pelos seres humanos e, portanto, podem ser modificadas. Pode-se concluir que, as(os) professoras(es) avaliam que as alunas são iguais, em termos de habilidades, aos alunos, enquanto que quase metade das professoras não as consideram, o que, de certo modo, foi uma surpresa, visto que a luta pela equidade entre homens e mulheres está, historicamente, vinculada ao feminismo e operada por mulheres, no entanto este fato não se confirma neste estudo. Neste aspecto é possível verificar que existe um grande conflito no que diz respeito ao desempenho de meninas e meninos e, pode-se perceber que, ainda é possível verificar uma visão androcêntrica da Educação Física, é possível que isto se deva ao fato de que no curso das experiências, aprende-se que os homens, por sua condição biológica, dominam a execução das atividades físicas e as mulheres ficam relegadas a atividades secundárias neste campo.

2. Conteúdos da Educação Física na perspectiva de gênero Quando as professoras e os professores foram questionados sobre se todos os conteúdos podem ser trabalhados para meninos e meninas, 96,7% responderam que sim, o que evidencia um avanço em relação aos conteúdos no que diz respeito às relações de gênero, visto que há pouco tempo as aulas eram separadas e extremamente sexistas, em que determinados conteúdos eram específicos para as meninas e outros para os meninos. Essa marca está presente, na Educação Física brasileira, desde a sua introdução na escola até o processo formativo em nível superior. O Decreto n. 981, de 8 de novembro de 1890, aprovou o Regulamento da Instrução Primária e Secundária do Distrito Federal, à época a cidade do Rio de Janeiro. Esse Regulamento serviria como base para o desenvolvimento da Educação Nacional e, em seu Art. 7º, ficou estabelecido que haveriam escolas de 1º e de 2º graus divididas, categoricamente, por sexo. Com base no decreto supracitado, foi aprovado o Regulamento do Gymnasio Nacional, por meio do Decreto n. 1.075,

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de 22 de novembro de 1890, que tratava da formação de bacharéis. O Regulamento do Gymnasio apresenta explícita formação para homens, descartado qualquer possibilidade de mulheres acessarem esse espaço formativo. Os conteúdos da Educação Física estavam presentes por meio da

gymnastica, das evoluções militares e da esgrima, assim como dos exercícios de tiro ao alvo, de besta, tiro de flecha, exercícios gymnasticos livres, salto, jogo de volante, e por meio dos jogos escolares, quais sejam: a barra, a amarela, o football, a peteca, o jogo da bola, o cricket, o lawntennies, o crocket, corridas, saltos, etc. (BRASIL, 1890b) Essa diretividade para o processo de formação desde a escolarização básica, lastreada pelo sexismo com o conteúdo da Educação Física, esteve presente, também, no processo de formação de professoras e professores de Educação Física. Os primeiros cursos de Educação Física têm origem na estrutura militar, logo, tratava-se de uma formação específica para homens. A partir da criação da Escola Nacional de Educação Física e Desportos (ENEFD) da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ), por meio do Decreto-Lei n. 1.212, de 17 de abril de 1939, é que iniciou o processo formativo para civis. Apesar do avanço, o ensino da Ginástica Rítmica era destinado “aos alunos do sexo feminino”, conforme demarcado no Art. 8º do Decreto-Lei n. 1.212/39. Essa realidade, do ponto de vista do processo formativo, a partir do quadro de disciplinas delimitadas para ENEFD, constituiu no principal parâmetro para a estruturação de novos cursos de Educação Física no Brasil. (BRASIL, 1939) Acerca disso, Sousa (1994), ao tratar do processo formativo em Educação Física na cidade de Belo Horizonte, destaca a formação dual no interior da Escola de Educação Física de Minas Gerais, criada em 1953, com base no projeto curricular da ENEFD. De imediato Sousa (1994) destaca que o Curso de Educação Física Infantil, que tinha como foco a formação para o ensino primário, ao longo da sua existência formou apenas mulheres, com uma única exceção. Apesar disso, o curso possuiu “[...] grade curricular específica para cada sexo” (SOUSA, 1994, p. 138). Mais do que isso, conforme a autora frisa:

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Embora a maioria dos conhecimentos previstos por esse currículo fosse comum aos dois sexos, aos homens negava-se a aprendizagem da ginástica e do atletismo "femininos" bem como da dança e da rítmica. E às mulheres não se permitia aprender a ginástica e o atletismo "masculinos", o futebol, o judô e o boxe. (SOUSA, 1994, p. 138).

Portanto, é possível verificar que ainda persistindo a crença de que meninos são mais habilidosos nas aulas de Educação Física, tem-se avançado no que diz respeito ao direito de acesso aos conteúdos desta disciplina, o que denota que as lutas, mesmo que de forma lenta, tem proporcionado às mulheres participar das aulas. Cabe destacar que esta é apenas uma parte da luta, pois é importante que esta participação se dê de maneira qualitativamente efetiva, em um ambiente educativo com igualdade e justiça.

3. Acesso ao tema gênero Para que as(os) professoras(es) saibam se posicionar e reconhecer situações de preconceitos e desigualdades entre os gêneros é necessário que entre em contato, desde a sua formação inicial, com os debates acerca das relações histórico-culturais de gênero. Neste sentindo, quando questionados sobre sua relação com a temática, 56,7% dos sujeitos desta pesquisa, conforme dados apresentados na Tabela 2, responderam que não tiveram acesso a este tema na formação inicial. Esse panorama de distanciamento do quadro de professoras(es) em relação ao tema gênero é potencializado quando se analisam os dados referentes à formação continuada oferecida pela Rede Municipal. Nesse particular, 73,3% dos participantes responderam que não tiveram acesso a este tema nas formações oferecidas pela Rede. Goellner (2015, p. 174) chama atenção para o fato de que existe uma escassez de debates e familiaridade com a teorização já produzida sobre as questões de gênero. No que tange a formação continuada, este quadro se atenua, tendo em vista que 40,0% afirmaram ter tido acesso a debates sobre relações de gênero e 20,0% afirmaram ter acessado, em parte, esse tema. Vale destacar, que o acesso ao tema gênero a partir da formação continuada, foi maior entre as professoras, com 53,8%, o que indica uma preocupação por parte das mulheres em dominar

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a base teórica que permeia o tema. Tabela 2 – Formação inicial e continuada das(os) professoras(es) e a relação com o tema gênero Professores por Gênero

Masculino Feminino TOTAL

Na formação inicial entrou em contato com o tema gênero

Na formação Na rede municipal de continuada entrou em Ananindeua já ocorreu contato com o tema alguma formação com o gênero tema gênero

Sim

Não

Sim

Não

Sim

Não

35,3% 30,8% 33,3%

47,1% 69,2% 56,7%

29,4% 53,8% 40,0%

29,4% 38,5% 33,3%

29,4% 23,1% 26,7%

70,6% 76,9% 73,3%

Fonte: Pesquisa de Campo (2018).

Ainda que este acesso esteja acontecendo é preciso questionar que tipo de debates foram estes, visto que muitos problemas foram percebidos nos posicionamentos das(os) professoras(es). As situações aqui postas têm como finalidade desafiar as normatizações e os estereótipos presentes na Educação Física. É necessário permanecer atento para que os sujeitos não sejam silenciados, não apenas em suas representações, mas em suas próprias experiências. Quando se fala em representações um grande exemplo é a dificuldade que a autora encontrou em escrever todos os sujeitos no masculino; é preciso romper com esta lógica, que parece ser de ordem gramatical, mas que é de ordem social e cultural, de que os homens representam as mulheres. As mulheres precisam ser inscritas na vida pública, no campo político, social e as formas de viver o feminino precisam ser encaradas como diversas, uma vez que gênero não é uma categoria solitária, mas é atravessado por diversos outros marcadores sociais, como raça, sexualidade e classe, e por isso mesmo precisa estar em debate, tendo em vista que a luta pela equidade de gênero é uma luta atrelada a diversas outras lutas, que permitem aos seres humanos alcançarem a transformação da realidade e uma formação de matriz omnilateral.

4. Violência contra a mulher na escola Destaca-se aqui a importância que deve ser dar a este tópico – mesmo

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que não seja o objetivo deste artigo discuti-lo em profundidade – uma vez que os números de casos relatados pelas(os) professoras(es) são significativos. Conforme a pesquisa, 60,0% das(os) professoras(es) disseram já ter presenciado algum tipo de violência contra a mulher em suas aulas e, na maioria destes relatos, aparecem mais de um tipo de violência contra a mulher. Quando somados todos os casos de violência contra a mulher já vivenciados pelas (os) professoras(es), tem-se uma predominância para a violência psicológica58, com 36,6%, como atestam os dados expressos por meio da Tabela 3. A partir da maior recorrência da violência psicológica, de modo igual aparecem a violência física e moral, além de um pequeno percentual de violência sexual. Todavia, a simples existência de relatos por parte dos participantes da pesquisa de violência contra a mulher no espaço escolar, demonstra a gravidade do problema, a magnitude que a opressão contra as mulheres apresenta no interior do espaço de formação sistematizada dos seres humanos. Tabela 3 – Tipos de violência contra a mulher Professoras(es)

Física

Moral

TOTAL

26,7

26,6

Psicológica 36,6

Sexual

Não respondeu

6,6

40,0

Fonte: Pesquisa de Campo (2018). 58

Conforme demarcado por meio da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, em seu Art. 7º, os tipificação das formas de violência contra a mulher são: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006)

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Esses dados caminham na mesma direção dos dados nacionais sobre violência contra a mulher, e estão em um processo ascendente de casos, com amplo destaque para a violência física. No período 2011-2016, o salto de casos foi de 122,1%, ampliando de 82.049 para 182.287 de violência contra a mulher, no Brasil. A violência física congrega o maior número de casos, com um crescimento, nesse período, de 132,4%, ampliando de 43.559 para 101.218. (SENADO, 2018, p. 12) Este quadro desumano demonstra a necessidade urgente de propostas que viabilizem debates sobre o respeito a equidade nas escolas, além disso é necessária uma maior atenção aos cursos de formação de professoras(es), visto que estes sujeitos precisam de formação adequada para lidar com estas situações. Para Louro (2011, p. 63) as questões que envolvem as relações de gênero são muito importantes para o campo da Educação, pois é diante dele que surgem os desafios de dar algum encaminhamento as dúvidas, as perguntas e as situações que as(os) alunas(os) colocam as(aos) professoras(es). CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir deste estudo é possível perceber a necessidade central de colocar em suspeita a representação da fragilidade feminina, visto que quando se naturaliza a inferioridade da mulher, isto torna as relações desiguais entre os sexos como algo imutável, sendo a escola, aqui, especificamente a disciplina curricular Educação Física, um fértil campo para se reafirmar ou se contrapor a este determinismo biológico. No interior das aulas de Educação Física, as(os) professoras(es) devem estar atentos a reprodução de concepções que perpassem pela opressão de gênero que tornem o processo de educação excludente. Devem, isto sim, oferecer oportunidades de acesso aos conteúdos de forma igualitária e justa, independentemente das condições físicas, psicológicas, sociais, culturais de quaisquer alunas e alunos. Nessa perspectiva, e diante dos limites e avanços dos resultados deste artigo, é importante destacar que este é um estudo que possui um caráter de diagnóstico inicial e que carece de mais investigações que contemplem as ações efetivas das(os) professoras(es) de combate ao machismo nas escolas e nas aulas

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de Educação Física. Além disso, aponta-se para a necessidade de se pensar na formação destas(es) profissionais que atuam na educação básica articulada com perspectivas de superação dos preconceitos, dos estereótipos. Para isso, é fundante o papel do Estado, com políticas públicas e novos estudos que apontem melhores condições as(aos) professoras(es) lidarem com problemas que envolvem as questões de gênero. As(os) professoras(es) e a escola, de modo geral, têm um papel primordial, pois deve ajudar a perceber, encaminhar e instruir as dúvidas das(os) alunas(os) em relação a superação dos estereótipos, dos preconceitos e das desigualdades. É necessário expor, falar sobre este assunto, pois somente assim, pode-se desmistificar os conceitos já elaborados de fragilidade natural da mulher. Frisa-se que os apontamentos feitos até aqui, são de caráter provisório, pois somente por meio de uma mudança radical (de raiz) nas estruturas desta sociedade é que será possível alcançar, efetivamente, a emancipação dos seres humanos, a partir de uma formação para a emancipação dos sujeitos, visto que uma educação que aponta para a emancipação dos seres humanos, consequentemente, deve subsidiar, também, a equidade de gênero para uma formação omnilateral. Gender relations in Physical Education classes: the view of teachers of the Ananindeua (PA) Municipal Education System Abstract: This study discusses the comprehension of Physical Education teachers regarding gender relations in their classrooms. It considers gender as a historical and social construct that imposes behavioral patterns and delimits activities to the being a woman and being a man according to the subject's biological sex. For this purpose, it discusses the denaturalization of biologicist conceptions of gender, which serve as justification for maintaining inequalities between men and women. Methodologically, it uses dialectical historical materialism as the theory of knowledge and a questionnaire, applied to Physical Education teachers of the Ananindeua (PA) Municipal Education System, as an instrument for data collection. It concludes that despite the many advances in women's rights in Physical Education classes, it is still possible to verify discourses of the natural inferiority of girls, in this sense, the issues regarding gender inequalities need to be better understood by teachers in order to raise their awareness about the source of this difference, which is not a result of the subject's biology, in fact, it results from the social-historical construct. Keywords: Gender Relations. Feminism. Physical Education. Teaching.

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