Convite

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CONVITE | Fernanda Grigolin



Encaminhei imagens produzidas por mim para nove escritores próximos. Eles deveriam escrever textos baseados nelas, sob duas condições: não descrever as fotos e não ir muito além de 1.200 caracteres. Vejam as fotos. Leiam os textos. Sintam a montagem. Bem-vindos. Fernanda Grigolin


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Origem Gisele Werneck

Houve um tempo em que eu era um bicho e vivia salgado e tranquilo numa barriga de água. Eu era, apenas, antes do pré-sal, do circo, antes do show comício, eu era antes do símbolo. E nem sequer andava de quatro. Eu boiava, entende. Agora me pedem para construir prédios, ficar ereto, ser monge, para julgar os outros homens. Pedem que eu minta, e me esconda ou apareça, que eu faça joguinhos de cultura. Por isso corro para você, mamã meu amor, para retornar à água e respirar o seu líquido, e nadar no seu nada. Para entrar de novo por onde eu vim, úmido e quente, e sair em sua boca num sorriso. Mas um que seja sem motivo, uma alegria sem sinapses, um amor que não seja palavra. E olha, daqui para fora eu não volto de jeito nenhum. Que mandem o mergulhador me buscar, debaixo da sua saia, ele que tente me arrancar com uma pinça, vem, anda, cara, me salve para o que ainda é humano, pois agora eu já virei um pato, e daqui eu perco o bico. Perco cada pena, cada sensação daquilo que se pega, deixo para trás as minhas partes moles até virar um signo, uma bolha que estoura. E então não serei mais que a intenção de um pelo antes do arrepio.

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É isso que dá para escutar Luis Rafael Montero

Já disse que não sei nada e o nada que sei eu já disse. Não escutei. Quando saí cheguei aqui e a coisa toda assim. A menina desse jeito encolhida rasgada e não adianta até perguntei e a menina coitada não fala e só fica esse olho esse nada perdido na cara. Bem aqui no meu portão. Não sei se foi bem aqui, isso que aconteceu com a menina. Coitada. Tem que perguntar para o marido, é tem um marido um filhinho e essa coisa toda de família dentro de casa. Bem ali no portão da frente, é aquele quebrado. Não sei bem se foi ali. Não escutei. Essas coisas dentro da casa dos outros não tem que escutar, não dá. E não adianta o seu guarda gritar e latir desse jeito. Com essa coisa de família dentro de casa não dá para escutar. Não adianta. O marido só manda e ainda tem as crianças para-lá-e-para-onde e o marido reclama e ainda tem a cozinha o almoço gritando e o marido ainda quer que responda ou vou ficar aqui falando sozinho? É isso que dá para escutar, seu guarda. E mais nada. Que vou eu saber do marido do lado de lá, se ele fala sozinho se a menina coitada consegue escutar? Sei que tem um filhinho e só isso que sei. Escutou? É o almoço avisando as crianças não param e o marido latindo e falando, sozinho. É essa coisa de família, aqui dentro. É isso que dá para escutar.

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Vazio com movimento Pedro Tostes

e já não sei ao certo seu nome ou telefone por onde anda ou o que faz a cor dos teus olhos ou sorriso e como cai a mecha de cabelos na sua testa não lembro mais dos teus beijos teu gosto cheiro olhar nossos desejos os desencontros a fricção atômica de nossos pulsares ou mesmo onde ficava o seu prazer hoje procuro em mim qualquer resquício ou lembrança do que fomos como quem tenta achar a si mesmo no resultado de somas estranhas que um dia fizeram sentido

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Sobre coisas convexas Ana Estaregui

Pelos pés. Era dado um labirinto Um recinto de grãos Um sinto. Uns vãos. Pela pontinha dos dedos pelo silêncio deles, Solidezas. Sólido sólido sólido... Sós e lidos, seus grãos. Os vãos eram mais que vazios Eram dedos de pedras líquidas.

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Naquele instante em que seus olhos ameaçaram piscar e o sol inundou de luz nossos corpos, eu quis gritar.

Virado Simone Toji

Naquele instante em que seus olhos ameaçaram piscar, em que o sol inundou de luz nossos corpos e meu peito se inchava para suspirar, eu acordei os mortos. Naquele instante em que seus olhos ameaçaram piscar, em que o sol inundou de luz nossos corpos, em que meu peito se inchava para suspirar e seus lábios se abriam como flor de lótus, eu me fiz desterrar. Naquele instante em que seus olhos ameaçaram piscar, em que o sol inundou de luz nossos corpos, em que meu peito se inchava para suspirar, em que seus lábios se abriam como flor de lótus e meus calcanhares se preparavam para saltar, eu fechei meus olhos. Naquele instante em que seus olhos ameaçaram piscar, em que o sol inundou de luz nossos corpos, em que meu peito se inchava para suspirar, em que seus lábios se abriam como flor de lótus, em que meus calcanhares se preparavam para saltar e nossas mãos chegaram a se entrelaçar, eu não lhe reconheci mais. 21


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É segredo Adrienne Myrtes

Dela, eu guardei poucas lembranças. A pele fina sobre os ossos, sobre a cama, os cabelos de um branco passado, murcho, e um murmurar eterno. Os olhos ocupavam-se do teto, mas desconfio que não enxergava qualquer coisa além de si. A mão caída ao lado do colchão era o detalhe mais visível. Acessível à minha curiosidade infantil. Eu observava da porta do quarto sem me aproximar. Eu não tinha o que dizer a ela. Eu era criança, e ela, velha demais. Em nossa casa faltavam histórias à mesa. Silêncio e mastigação soterravam segredos. Tudo tão distante nessa infância desbotada, a família guardada em uma nebulosa. De fato eu conheci pouco a respeito dela e, nem mesmo depois de adulta me ocupei com qualquer pensamento a seu respeito. Ela sempre foi uma personagem engavetada em um tempo antigo. Cruzamos a vida uma da outra feito desconhecidas se cumprimentando numa rua esquisita. Só hoje fui levada a pensar nela, e procurei seus olhos zombeteiros na fotografia restaurada. Encontrei cumplicidade. A voz da minha mãe me reprovando: Você deve se achar muito moderna, mas olhe, olhe bem, muito antes de você sua bisavó foi capaz dessa mesma loucura que você pensa inaugurar.

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O passo imperfeito do amor Aleksandro Nunes da Costa

O baque da porta asfixiou meu transe. Ecoei seu nome até a inércia, a casa entristeceu três luas seguidas. Quando remoí lembranças adiadas. O que pude, escureci. Restou num candente fiapo da memória sua imagem. Que não perdi sequer em sono. Hoje encontrei belo retrato seu, em claro-escuro. Olhos ternos, em facho; intenções ocultas num riso. Meti-o no bolso, enfiei-me na rua. No bar da esquina viro uns tragos; compro um litro de uísque corriqueiro. Quero extraviar meu dia em voltas e voltas ao redor de sua quadra. Converto-me no invisível. Mesma dimensão dos infaustos que suportam suas cargas às oito da manhã. Ninguém se repara. Avanço sobre o meio-fio, entornado. A certa distância, um cabelo negro ondeia acima de todos os ombros sob chapéu de palha natural. Jeito inconfundível de pisar. Perna esquerda três centímetros imperceptíveis menor que a direita. Consonância irregular em ritmo honesto e gracioso. O sobressalto adiciona excitação à corrente maciça que circula zonza em minhas veias. E nesse caso arritmia. Além disso, surpresa não calculada. E mais da ânsia estreitando a garganta. E pasmo. E por fim, a botelha deslizando pelo gargalo no momento justo em que o vento arranja asas pra foto que eu segurava, frouxo. No instante mesmo em que fico de cara, outra vez, com meu amor. 31


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Continuum Caroline Carrion

Parada em frente à foto, só consegue ouvir o mar – os demais sentidos turvos por aquele vaguear incessante. Imagens, texturas e sons do museu, tudo é ofuscado pela volúpia da água se esparramando sobre a terra, indício de um universo além das paredes brancas, repletas de estranheza. Mimetizando o vai-e-vem infinito, ondeia-se entre onde de fato está e o oceano que tem em si. Em um momento de consciência, procura manter-se no presente: adentra em uma instalação repleta de som e fúria. Em vão. O ruído do mar a encontra, lançando-a em hipnose para onde não existe nada além de vagas sensações de existência. Algum visitante esbarra em seu corpo (abandonado enquanto ela olhava para o lado de dentro). O toque e a voz estranhos trazem-na de volta à tona. Reconhece-se tão insensata quanto o oceano a se derrubar sobre a areia apenas para recolher-se e se derrubar novamente, infinitamente. Sai do museu entre êxtase e loucura. A linha reta de seus passos rumo ao denso ondulado da água. Abandona a bolsa na areia, onde deixa também sapatos, chapéu e vestido para olhares espantados de transeuntes e banhistas. Continua a traçar, com os pés, a reta. Quando a água atinge sua cintura, mergulha. Emerge, submerge, emerge novamente, infinitamente. Sob sol morno de fim de tarde, delicia-se com a maravilha de sua insensatez.

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Febre

Felipe Valério

“Sinto muito mas isso é tudo que sinto”. Alice Ruiz

e olha que é um tanto de coisa engasgada, pequena, aqui ó, bem fundo no calor da garganta, eu correndo e lutando pra arrancar você desse suor, e você confessando pecado e sussurando beleza e reza de joelho virado, pois ouve aqui e ouve bem, esse tal pai nosso que está lá no céu nunca mexeu um santo pra descer de lá, do alto do céu, juro, pequena, juro de dedo trancado e mãe enterrada que sofrimento é coisa que some com choro, e choro é desvio torto feito de água, vitamina e um ou dois motivos facinhos de esquecer, é, porque olha que é um tanto de coisa engasgada e você aí derretendo no cantinho da parede, pedindo a deus, medindo adeus, o fogo invadindo janela, ralo e tempo, o gás vazando, o teto pingando, eu querendo vem comigo e esquece de vez o medo, a roupa do corpo, a boneca sem cabeça, a metade da vela, eu querendo vem comigo e risca a unha na minha mão, pequena, sem medo de apertar de sufocar de engasgar, e olha que é um tanto de coisa engasgada e você aí sendo você, pois agarra minha mão e sente o meu pulso e arrasta comigo, arrasta você, arrasta esse mundo, onde o fogo queima alto, o toque faz bolha e onde o nosso incêndio, pequena, é faísca que mal começa.

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Concepção | Montagem | Fotografias: Fernanda Grigolin (Curitiba, 1980) é artista visual. Produz objetos artísticos híbridos de literatura e fotografia, em vários formatos: vídeo, livros e ensaios. Participa do coletivo literário EDITH e é sócia-fundadora da editora e produtora cultural Publicações Iara. Publicou, em outubro de 2010, o livro Retratos da Garoupa. Por dez anos, Fernanda foi ativista de movimentos sociais no Brasil e na América Latina. Possui especialização em Direitos Humanos (USP). Participou de atividades, encontros e conferências na América Latina, Ásia, África e Europa. Seu site: fernandagrigolin.com Impressão | produção: Publicações Iara espaço colaborativo em arte contemporânea no formato de editora e produtora cultural. Iara é lenda, Iara é prenda. É a mãe d’água que incendeia o coração daqueles que seu canto ouvem. É fogo que atiça os desejos dos mais fracos e dos mais fortes. É aquela que sorve o ar de quem por ela se deixa enfeitiçar. Como editora, é especializada em livros impressos de alto-padrão e tiragem limitada. Atua no mercado editorial nos segmentos de artes visuais e poesia. Como produtora, promove e apoia eventos literários e de arte contemporânea. Assessora jovens artistas. Projeto gráfico: Ana Estaregui (Sorocaba, 1987) é artista visual formada pela FAAP em 2009. Desenvolve trabalhos de arte que concernem a relação entre palavra/imagem e palavra/objeto. Estuda Design Editorial e trabalha como assistente cultural no Instituto Itaú Cultural. Seus blogs: palavrassolidas.wordpress.com e anaestaregui.wordpress.com.

vezes redator. Não publicou nenhum livro, apenas amostras em sites, blogs e na edição 19 da Revista Ficções. Gosta de inventar histórias das quais não lembra. É de Itapipoca, cidade embutida entre as serras, o mar e o sertão cearense. Caroline Carrion (1986) nasceu em Jundiaí/SP e vive em São Paulo. É formada em Comunicação pela Universidade de São Paulo e pela Université Paris IV - Sorbonne. Escreve ficções desde que aprendeu a colocar palavras no papel, mas só recentemente decidiu assumir a literatura como compromisso. Atualmente, trabalha no projeto de seu primeiro romance. Felipe Valério é manezinho da ilha de São Paulo e cria do coletivo artístico-literário Edith. Lançou a novela Hotel Trombose (Edith, 2011) e o livro de microcontos Sem Casca (2009). Também participou das antologias Maus Escritores (Demônio Negro, 2009) e Mamãe, vim só fazer uma visita rápida (Edith, 2010). Gisele Werneck é escritora, roteirista e atriz. Nasceu em Belo Horizonte, mora em São Paulo e viaja pelo mundo, experimentando suas próprias histórias. É autora dos livros Gisele Werneck vai para Onde Judas perdeu as Botas (Edith), Guerreiras de Gaia, Nasci pra ser Madonna e do romance inédito A Queda da Machamba, ganhador da Bolsa Funarte de Criação Literária. Luis Rafael Montero nasceu na terra vermelha do noroeste do Paraná, em 1983, em Umuarama. Viveu em Cianorte e, em 2008, chegou a São Paulo para dar de cara com o cinismo e lançar, em 2011, seu primeiro romance, Eu Cínico, publicado pelo selo EDITH.

Além de assinar o projeto gráfico, Ana participa com um poema. Escritores convidados: Adrienne Myrtes nasceu no Recife/Pernambuco e vive em São Paulo desde 2001. Além de escritora, é artista plástica. Publicou o livro A Mulher e o Cavalo e outros contos (Editora Alaúde, EraOdito Editora, 2006), e o romance Eis o mundo de fora (Ateliê Editorial, 2011), que recebeu o Prêmio Petrobras Cultural 2008/2009. Aleksandro Nunes da Costa. Ainda adolescente, chegou a São Paulo. Formou-se em publicidade, por pressa. Ganha a vida como revisor – às

Simone Toji é antropóloga, tem 34 anos e mora em São Paulo. Escreve histórias esporadicamente desde a adolescência e ultimamente anda criando coragem para se entender no ofício de escrever. Tem muitas histórias escritas e se prepara para circular algumas delas. Pedro Tostes é poeta. É produtor e editor no projeto PoesiaPod. Como autor, publicou os livros O mínimo (Ibis Libris, 2003) e Descaminhar (Annablume, 2008). Participou de vários festivais e mesas de debates como Off-FLIP, Semana de Arte de Santa Tereza, FLAP, Cartografia Literária (SESC) e Bienal de Arte e Cultura da UNE.

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Convite A montagem do livro foi pensada a partir da costura, da dobra e da relação palavra-imagem. Concepção | montagem: Fernanda Grigolin Fotografias | edição e tratamento: Fernanda Grigolin Projeto gráfico: Ana Estaregui Revisão de texto: Juliana Amato Costura e encadernação: Rosana Chat Escritores participantes: Ana Estaregui Adrienne Myrtes Aleksandro Nunes da Costa Caroline Carrion Felipe Valério Gisele Werneck Luis Rafael Montero Pedro Tostes Simone Toji Tiragem de 30 + 2 PA | livros numerados e assinados pela autora Este livro foi impresso com a fonte Josefin Slab e em papel sundance warm smooth 176 gr Impressão e produção | Publicações Iara | www.publicacoesiara.com.br




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