MAR ANTERIOR Texto aqui. Danilo Santos de Miranda – Diretor Regional do Sesc São Paulo
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MAR ANTERIOR Tradução em inglês. Danilo Santos de Miranda – Diretor Regional do Sesc São Paulo
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ANTES DO COMECO Omi Oju Omi [Oju Omi Nla] Mar Anterior Olhos d'água de Olocum Menha-menhá preexistente Calunga a Grande Água-água, água-entre Mantém unos os distantes Na roda ancestral-vivente Mas a travessia de dor e morte Sulcando a Grande, traz Calunga a Pequena, Cemitérios ocultos do desterro Termo sem término de vidas Em diáspora no desespero Eis que em Odo Iyá ressurge Omi Cura socianímica para o lodo degredo Ela é Calunga das Sete Ondas (Como sete são as cores de Oxumarê Em cujo poço se expande em segredo) No molhar das cabeças, lavar dos corpos Desperta forças de Oxá-Orí Ânimo de reviravolta Amparo de crescimento Campo que, se cortado Inteiro eterno rebrota Correnteza alma-corpoBicho-pedra-planta-alma De Tudo renasce Vida, E a Tudo Ela úmida enlaça
Forças niveladoras das Águas Nos tenham em receptividade Calunga Mar Primordial Permita-nos flutuar entre os percalços Que suas marés alcem bem acima De hipócritas hierarquias Vetustos poderes de exclusão Falsas ciências Teologias interessadas Refunda, Mar, nossa jornada Com tua espuma mantém Sempre limpos nossos oriís Ajuda a perceber, aqui e além, Que histórias narram tambores Nossa Mãe Ancestral Mareja-nos olhos, Oju Com tuas lágrimas, Omi Preenchendo cada desvão De amor igual Por tua multiversa criação Paulo Dias
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BEFORE THE BEGINNING Omi Oju Omi [Oju Omi Nla] The Sea Before The watery eyes of Olokun The pre-existing pain Calunga the Great Water-water, water-in-the-middle Unite the distant In the living ancestral wheel But the journey of suffering and death Furrowing the Great, brings Calunga the Little, Hidden cemeteries of exile Terms for interminable lives The diaspora of despair So Omi resuscitates in Odo Iyá Socianimistic cure for unwanted banishment She is Calunga of the Seven Waves (Since seven are the colors of Oshunmare In whose pool she secretly grows) As heads are wet, bodies are washed She awakens the forces of Oxá-Orí Animus for turnarounds Support for growth A field that, if cut Blossoms back forever intact Soul-body-animalStone-plant-soul current Life is reborn in Everything, And by Everything is embraced
Leveling Forces of the Waters Make us receptacles Calunga Primordial Sea Let us float among our mishaps May your tides rise well above Hypocritical hierarchies Venerable powers of exclusion False sciences Interested theologies Restart, Sea, our journey With your foam keep Our oriís always clean Help us to see, here and beyond, What the drums tell us Ancestral Mother Fill our eyes, Oju With your tears, Omi Filling every corner With the same love Through your multiverse creation Paulo Dias¹ ___________________ ¹Translated by Marco Alexandre de Oliveira.
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1. IBARABÔ BXSVC1900326 05:34 Luiz Fiaminghi (1958), com base em cantiga da tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, Salvador, BA Luiz Fiaminghi (1958), based on a song from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, Salvador, BA 2. NON SEI COMO ME SALV’A MHA SENHOR - IBARABÔ BXSVC1900327 Dom Dinis (1261-1325), cantiga 6 - cantiga de tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, Salvador, BA King Dinis (1261-1325), song 6 - a song from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, Salvador, BA
03:34
ANIMA Liduino Pitombeira (1962), com base nas cantigas 7, Quix Ben e 2, A tal estado m’adusse, senhor, de Dom Dinis, e nas cantigas da tradição oral afro-brasileiras, candomblé ketu, Salvador, BA: Ogum Já Vai, Ogum Tinô Já e Agô Agô Lonã Liduino Pitombeira (1962), based on songs 7, Quix Ben and 2, A tal estado m’ adusse, senhor, by King Dinis, and on songs from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, Salvador, BA: Ogum Já Vai, Ogum Tinô Já and Agô Agô Lonã 3. Quix ben BXSVC1900328 02:52 4. Ogum BXSVC1900329 04:06
5. IN PRO BXSVC1900330 02:54 Estampie, LBM add. 29987 (séc. XIV) Estampie, LBM add. 29987 (14 th cent.) 6. TAMANQUÊRO COM “MARTELO” - ROMANCE DA LAGOA ENCANTADA tradição oral brasileira, João Pessoa, PB BXSVC1900331 01:48 Brazilian oral tradition, João Pessoa, PB BXSVC1900332 02:55
7. O BENDITO DE CATOLÉ DO ROCHA tradição oral brasileira, Catolé do Rocha, PB Brazilian oral tradition, Catolé do Rocha, PB
SUÍTE OXUMARÊ Luiz Fiaminghi (1958), com base em cantiga da tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, Salvador, BA. Luiz Fiaminghi (1958), based on a song from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, Salvador, BA 8. Lori orun (céu colorido ou arco-íris) BXSVC1900333 02:23 (colored sky or rainbow) 9. Solo de percussão, voz e coro BXSVC1900334 03:39 tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu Percussion solo, voice, and choir – Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé 10. Takará (arma de Oxumarê - transmutação para a renovação) (Oxumarê's weapon: transmutation for renovation) BXSVC1900335 02:57 11. Ejó (Serpente) BXSVC1900336 03:35 (Serpent)
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12. LAMENTO DO MATEUS: SÒDADES tradição oral brasileira, Natal, RN Brazilian oral tradition, Natal, RN
BXSVC1900337 02:41
13. BARREADO José Eduardo Gramani (1944-1998)
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14. POIS QUE VOS DEUS, AMIGO, QUER GUIZAR BXSVC1900339 04:18 Acácio Piedade (1961), com base na cantiga 1 de Dom Dinis Acácio Piedade (1961), based on Cantiga 1 by King Dinis 15. QUE MUI GRAN PRAZER QUE EU HEI, SENHOR - É TI Ó IMPROVISAÇÃO SOBRE É TI Ó BXSVC1900340 04:50 Dom Dinis (1261-1325) - tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, Salvador, BA - Improvisação sobre cantiga da tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, Salvador, BA e estampies do LBM add. 29987 (séc. XIV) King Dinis (1261-1325) - Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, Salvador, BA - Improvisation on a song from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, Salvador, BA and estampies from LBM add. 29987 (14th cent.) 16. SEREIA DO MAR Catimbó, tradição oral brasileira, Natal, RN Catimbó, Brazilian oral tradition, Natal, RN
BXSVC1900341 04:07
17. YEMANJÁ ÔTÔ BXSVC1900342 4:39 Luiz Fiaminghi (1958), com base em cantiga da tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, Salvador, BA Luiz Fiaminghi (1958), based on a song from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, Salvador, BA 18. YEMANJÁ SÓBA BXSVC1900343 02:18 tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, Salvador, BA, Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, Salvador, BA 19. O FONDO DO MAR TAN CHAO - OFULU LORÊRÊ Ê BXSVC1900344 07:45 Luiz Fiaminghi (1958), com base em Cantiga de Santa Maria (383), atribuída a Dom Afonso X, o sábio (1221-1284) - tradição oral afro-brasileira, candomblé nagô, Salvador, BA. Luiz Fiaminghi (1958), based on the Cantiga de Santa Maria (383), attributed to King Alfonso X, the Wise (1221-1284) - Afro-Brazilian oral tradition of Nagô Candomblé, Salvador, BA Duração total / Playing time:
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BURACOS E FENDAS UMA DRAMATURGIA POSSÍVEL EM TEMPOS DIFÍCEIS Há bastante tempo que o Grupo ANIMA decidiu integrar em seu projeto Imaginário Sonoro Brasileiro, se não todas, ao menos uma parte das sete únicas canções trovadorescas que contêm notação musical, de autoria de um dos mais admirados reis de Portugal, Dom Dinis (1261 – 1325) – monarca exemplar e poeta virtuose. O fragmento onde estão estas sete cantigas d’amor foi encontrado no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, no ano 1990 por Harvey Leo Sharrer (Universidade da Califórnia, Santa Bárbara); extremamente danificado pela ação do tempo, está entre um dos grandes achados da filologia medieval e da musicologia histórica para a Península Ibérica na atualidade. O Pergaminho Sharrer, como foi denominada esta fonte valiosa, foi estudado, transcrito, comentado, editado e publicado em livro no ano 2005, pelo musicólogo Manuel Pedro Ferreira1 (Universidade Nova de Lisboa), a convite do professor Sharrer. Será sobre esta edição minuciosamente elaborada que o ANIMA trabalhará então, cinco das 7 cantigas de Dom Dinis. Sobre um tecido dramatúrgico, apresentaremos aqui, neste CD/espetáculo, para celebrar os trinta anos de trabalho do Grupo, que amplia suas lentes sobre a tradição popular brasileira trazendo à tona a medievalidade pulsante na nossa música e vice-versa, aspectos das musicalidades afro-brasileiras amalgamadas à música medieval europeia. Segundo o musicólogo português, conhecemos 1.680 “poemas seculares galego-portugueses”, todos sem registro musical, contidos nos seguintes manuscritos: Cancioneiro da Ajuda, Cancioneiro da Vaticana, Cancioneiro ColocciBrancuti. Compostos por Dom Dinis, são 137 os poemas, todos profanos, em sua maioria cantigas de amor e cantigas de amigo, e algumas cantigas satíricas e pastorelas. FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberger. Kassel. 2005. 1
Até a descoberta das sete cantigas d’ amor do rei, as únicas cantigas profanas em galegoportuguês com notação musical de que se tinha notícia eram as seis cantigas de amigo escritas pelo trovador Martin Codax, contidas no Pergaminho Vindel (FERREIRA, 2005, p. 6), o que põe ainda mais em evidência esta descoberta recente. Por outro lado, a cultura ibérica, ou melhor dizendo, as culturas ibéricas, e a música medieval da Península têm o privilégio de conter em seu cancioneiro trovadoresco 419 cantigas devocionais, todas com o registro musical (com exceção de cinco), as conhecidas Cantigas de Santa Maria, compostas na corte de Dom Afonso X, o sábio, rei de Castela e Leão, avô de Dom Dinis. Em projetos anteriores, o Grupo ANIMA pôde criar versões com base nas cantigas de amigo de Martin Codax: em Especiarias (ano 1999) trabalhamos a cantiga Quantas sabedes amar; em Amares (ano 2003) a cantiga Ondas do Mar de Vigo; em Donzela Guerreira (ano 2010), apresentamos uma versão de Mandad’Ei Comigo. Buscamos, em nossos arranjos e improvisações, aproximar da tradição musical popular brasileira, o trovar galego-português destas cantigas de amigo, de temática e estrutura autóctones. Neste sentido, também motivados pelas considerações expostas pelo musicólogo Manuel Pedro Ferreira em seu texto Andalusian music and the ‘Cantigas de Santa Maria’ 2 (Música Andaluza e as Cantigas de Santa Maria), onde apontará rítmicas assimétricas como possibilidades de interpretação para as Cantigas de Santa Maria, trabalhamos neste viés interpretativo essas cantigas de Martin Codax mencionadas acima. Para uma cantiga de louvor à Virgem (cantiga de loor), a conhecida Rosa das Rosas, utilizamo-nos do mesmo processo aproximando-a, num dos arranjos propostos, do toque dos tambores da música Alvoradinha, da tradição das Caixeiras do Divino Espírito Santo, sacerdotisas da Casa Fanti Ashanti, da cidade de São Luís, no Maranhão. Este arranjo compõe o espetáculo/ FERREIRA, Manuel Pedro. Andalusian music and the Cantigas de Santa Maria. In: Cobras e Som: Papers from a Colloquium on the Text, Music and Manuscripts of the Cantigas de Santa Maria. Ed.: Stephen Parkinson. Legenda. Oxford. 2000. Pp. 7-19. 2
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CD Donzela Guerreira (2010), primeiro volume do tríptico Imaginário Sonoro Brasileiro. No segundo volume desta trilogia, o espetáculo/CD Encantaria (2015-2018) apresenta uma composição de assimetria ainda mais radical como base instrumental da cantiga de milagre (cantiga de miragre), ainda do corpo das Cantigas de Santa Maria, a de n.º 181, intitulada Pero que seja a gente. Construindo passos
o
espetáculo:
primeiros
Tomei conhecimento das sete canções de Dom Dinis, contidas no Pergaminho Sharrer, em 1997 no I Seminário Internacional de Trabalho Filológico: Textos Medievais e suas Fontes, promovido pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo (UNICAMP), em uma palestra ministrada pelo Professor Harvey Leo Sharrer. Muito tempo depois, ao terminarmos a temporada de concertos de lançamento do CD Donzela Guerreira (2013), voltei a apresentar este desejo embrionário de realizar no ANIMA um espetáculo que tivesse como núcleo parte das cantigas do rei português, o cantus coronatus. Decidimos estudar a música desses poemas através do livro escrito pelo Professor Manuel Pedro Ferreira, onde serão apresentadas possibilidades cuidadosas de reconstruções dos fragmentos dionisinos e onde estão expostas as imagens destes fragmentos encontrados em Lisboa. Assim, depois de gravarmos o segundo CD da trilogia, dedicado ao milenarismo que desliza pelo mito do rei desejado, Dom Sebastião, e que ressoa nos tambores de mina do Maranhão, voltamos a encarar estas cantigas em 2016 dando início ao Mar Anterior. Começamos a estudar a história de Dom Dinis pelo seu avesso, na contramão da história. Primeiro, através de sua música e de sua poesia, e depois, através da poesia que outros poetas fizeram para cantar este rei plantador de naus. Como não poderia deixar de ser, foi via Fernando Pessoa que entramos em contato com o que se imaginou, entre nós, sobre Dom Dinis, o rei-trovador que semeou 14
os pinheiros em Leiria, com os quais, tempos depois, foram construídas as embarcações que acionaram as epopeias marítimas, os “descobrimentos” e a conquista do mar. Foi portanto, através da criação ficcional3 (MENDES, 2018, p. 9) que o Anima se comunicou com a música e com a poesia deste rei-trovador. Através do mito, da lenda, que conhecemos Dom Dinis e, nesse caminhar, começamos a tornar realidade o espetáculo Mar Anterior, seguindo os passos trilhados por Pessoa: [...]“A lenda se escorre/A entrar na realidade./E a fecundal-a decorre”4 [...] . D. DINIZ5 Na noite escreve um seu Cantar de Amigo O plantador de naus a haver, E ouve um silencio murmuro comsigo: É o rumor dos pinhaes que, como um trigo De Imperio, ondulam sem se poder ver. Arroio, esse cantar, jovem e puro, Busca o oceano por achar; E a fala dos pinhaes, marulho obscuro, É o som presente d´esse mar futuro, É a voz da terra ansiando pelo mar.
Quando houve esta decisão coletiva de trabalharmos as cantigas de Dom Dinis, num primeiro momento, fixamos nosso eixo sobre o tempo futuro apontado por Pessoa, sobre o mar futuro atado ao mito dionisino e, em seguida sobre o sentimento de saudade6 que paira sobre o trovar do monarca. A saudade como um contorno nítido da história e da cultura portuguesa, presente no trovar do rei lusitano, indireta, ou mesmo diretamente, como em poucos exemplos, em seu poema MENDES, Ana Luiza. O trovar coroado de Dom Dinis: modelo de racionalidade artística e identitária do trovadorismo galego-português. Tese de doutoramento, Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2018. 4 PESSOA, Fernando. Obra Poética. Org.: Maria Aliete Galhoz. In: Mensagem/II. Os Castellos/ Primeiro/Ulysses. Ed. Nova Aguilar S. A. Rio de Janeiro. 2001. P.: 72. 5 PESSOA, Fernando. Obra Poética. Org.: Maria Aliete Galhoz. In: Mensagem/II. Os Castellos/ Sexto/D. Diniz. Ed. Nova Aguilar S. A. Rio de Janeiro. 2001. P.: 73. 6 GAMBOA, Márcia. “Dom Dinis e a retórica da saudade”. In: MEGALE, Heitor; OSAKABE, Haquira (orgs.). Textos medievais portugueses e suas fontes. São Paulo: Humanitas/FFLCH/ USP, 1999, p. 157. 3
(que não contém notação musical) Nom poss’eu, meu amigo, com vossa soidade viver. E o mar, como fundamento português da saudade. Este foi um primeiro passo dado por nós em direção a uma tomada de posição em performance usical que prioriza e que priorizará a dramaturgia seja na seleção de repertório, seja na construção de seus arranjos, ou mesmo na montagem de seu “espetáculo”. Como diálogo entre a poesia musical de Dom Dinis, a cultura popular tradicional brasileira, do lado de cá do mar, a ausência do(a) outro(a) e a saudade, nos voltamos de imediato para Mário de Andrade, não somente por o termos sempre como nossa bússola frente ao que se pode chamar de “identidade cultural brasileira”, mas também por nos lembrarmos de seu texto A Dona Ausente escrito em 1943 para integrar a revista Atlântico7. Este texto já havia servido de base para o Anima elaborar o espetáculo Amares, com direção cênica da bailarina Lu Favoretto (Estúdio Oito Nova Dança), entre 2003 e 2005. Ao pesquisar a poesia e o cancioneiro popular tradicional brasileiro, nas danças dramáticas, Mário irá identificar o “Sequestro da Dona Ausente”, que traz as viagens marítimas lusitanas como protagonistas da saudade e que reverberam aqui em nosso cancioneiro, como, por exemplo nos complexos dramáticos da Nau Catarineta, ou mesmo nas Cheganças de Marujos. Incluo, abaixo, um pequeno trecho onde o poeta, músico, crítico e professor, descreve aquilo que denominou “Sequestro da Dona Ausente” e que, naquele primeiro momento de fermentação do espetáculo Mar Anterior, havia trazido ao ANIMA uma direção rumo à ausência do amor e à saudade como os urdimentos de nosso tecido dramatúrgico: [...] O sofrimento causado pela falta da mulher nos navegadores de um povo de navegadores. O marinheiro parte em luta com o mar, e por todas as dificuldades que fazem o trabalho marítimo, é obrigado a abandonar a terra amada. O ramerrão do mar, em síntese, é o mesmo da terra, luta pela vida, comer, dormir...
Mas a dona está ausente, e sem dúvida este é o mais sofrido dos males a que o marujo está exposto em viagem. O mar todo poderoso exige dos que lhe manejam o rito de viverem em castidade completa. Mas a saudade da mulher persegue o casto, o desejo dela o castiga demais. E o marujo, especialmente o lusitano, que foi o maior dos navegadores, busca disfarçar o martírio nas imagens e nos símbolos da poesia. O folclore luso-brasileiro se enriqueceu com isso, de uma série numerosa e admirável de quadrinhas e cantigas [...]Depois da dona ausente no mar, o colono aportado veio curtir aqui a dona ausente na terra [...]A ocultação da dor da saudade e da insatisfação física. Sublimação disso na criação de imagens derivativas.” [...]
Ao remexermos o cancioneiro brasileiro popular tradicional recolhido por Mário de Andrade, dentre outros pesquisadores, que traz o mar e a saudade para lançarmos mão dessas canções como contrapontos no diálogo com as cantigas de Dom Dinis, nos deparamos na maioria das vezes com as imagens trazidas através dos cânticos do marujo, do colonizador. Aos poucos foram tomando conta do Grupo sentimentos de impotência e, ao mesmo tempo, de insatisfação. Insatisfação e impotência perante a nossa própria aceitação contínua e passiva, automática mesmo, da interpretação da história e, pior ainda, da interpretação atual da música histórica, como se, aquilo que denominamos história, ou histórica, fosse uma moeda de um lado só. Percebemos que buscávamos elementos para a construção de um enredo, nesses primeiros momentos de lida junto ao mito de Dom Dinis, que trouxesse não o anterior ao mar, o mar ancestral, composto de múltiplas vozes, mas ainda buscávamos uma invenção de um único mar e de uma única ausência construídos em nossa imaginação pelo ethos lusitano da saudade e de seu mar. Na história das navegações edificamos em nós, como nas palavras do medievalista Paul Zumthor8, o fascínio por um “passado destemporalizado”, onde o único lado da moeda seria exclusivamente aquele da dilatação do espaço marítimo europeu9, que se faz presente desde a Antiguidade e cuja presença se intensifica no mundo medieval na conquista dos contornos do Mediterrâneo, atingindo o Atlântico ZUMTHOR, Paul. Falando de Idade Média. Trad. Jerusa P. Ferreira. Editora Perspectiva. São Paulo. 2009. P. 58. 9 LEGOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. Vol. 2. Coord. De Trad. Hilário F. Júnior. Editora Unesp. São Paulo. 2017. Pp. 108-109. 8
ANDRADE, Mário de. “A Dona Ausente”. In: Atlântico: Revista Luso-Brasileira. Lisboa / Rio de Janeiro. Secretariado da Propaganda Nacional, Departamento de Imprensa e Propaganda. 1943. Nr. 3. 7
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até os Mares do Norte, Báltico, Índico... Esgarçando fronteiras, na Renascença, até a “dominação” e a “colonização” dentro de um período da composição histórica ao qual nos acostumamos chamar, sem muito pensar, de período das “Grandes Descobertas”10. Sofrimento, bravura, partidas, medos, perdas, vistas de uma margem só. Da margem europeia. Canções e enredos de um mar com uma só margem. “Quantas mães choraram, /[...] Quantas noivas ficaram por casar/Para que fosses nosso, ó mar!”11 Enfim, lágrimas salgadas de Portugal sobre o mar e a saudade portugueses. Tomada de posição para construção de uma dramaturgia musical possível Da mesma forma que percebemos em nós o mar e a saudade como mitos construídos de maneira a serem exclusividades daquele outro lado do Atlântico, este primeiro momento de trabalhos sobre a elaboração da trama dramatúrgica germinada nas sensações de impotência e de insatisfação, gerou uma inquietação frente também à nossa própria apreensão da Idade Média. Por mais que as ciências tenham trabalhado sobre o desvendar desse passado longínquo, percebemos que ainda lidamos com a civilização medieval com ferramentas forjadas numa mentalidade romântica entranhada em nós. O que nos trouxe chão por onde pisar quando contestamos em nós mesmos esta mentalidade que fixa com rigidez os “contornos frouxos” da escritura medieval, foi o contato com o livro de Paul Zumthor (já citado acima), intitulado Falando de Idade Média. Neste breve relato pessoal, este grande escritor, poeta e medievalista (1915-1995), analisa o discurso oitocentista que ainda permeia os estudos medievais, expondo quatro pressupostos do Romantismo, sobre os quais se edificaram tradições interpretativas modernas da cultura medieval, que bastante resumidamente, são: a perseguição a uma “noção de origem”, sobre a qual comentei acima e, junto a ela, 10
Idem. PESSOA, Fernando. Obra Poética. Org.: Maria Aliete Galhoz. In: Mensagem/Segunda Parte/X. Mar Portuguez. Ed. Nova Aguilar S. A. Rio de Janeiro. 2001. P.: 82. 11
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a ideia de “autenticidade”; a “tentativa de dissimular os vazios [da história], não mais de sua documentação, mas da própria história”. História que será denominada pelo escritor de “casaco furado”. A tentativa dos intérpretes do mundo medieval de “preencher estas fissuras [da história] com a ajuda de alguma resina grudenta em sua ideologia: essas fissuras virtualmente ameaçadoras para a sua própria (boa) consciência”; no que diz respeito à literatura e à música “[...] o caráter intransitivo da obra ‘literária [no caso da filologia]’” e, por último, a “noção de obra-prima” e, atrelada a ela, “um fator de ‘grandeza’ de certa época, manifestação eminente de seu ‘gênio’, sem o qual esta época não teria sido o que foi...”. Ao deflagrar tais noções, tanto a de obra-prima, como a do caráter intransitivo daquilo que se elege como obra, Zumthor nos mostra como nos aprisionamos à obra e à obra-prima e aos padrões por ela gerados, e, dessa maneira, passamos a excluir outras possibilidades de existências de manifestações e fazeres. Em nossos encontros, nos Laboratórios Coletivos de Arranjos do ANIMA, naturalmente não trabalhamos com esses pressupostos de modo linear, mas olhando para trás, vemos hoje que nossas inquietações quanto à nossa posição frente à composição do programa musical Mar Anterior, fundamentam-se também nas reflexões trazidas por Zumthor. Ao folhearmos o livro de Manuel Pedro Ferreira, sempre nos deparando com as imagens deste pergaminho que o tempo degradou, mostrando das canções somente alguns vestígios, entremeados por enormes buracos, fendas e borrões, crescia o abismo que nos separava das canções do monarca. Nos encontros do Anima, houve então um momento quando os buracos, as “fissuras” da história, como disse Zumthor, começaram a dar sentido e a trazer outras vozes além daquelas fragilmente fixadas no pergaminho pelos escribas da corte de Dom Dinis. Estas vozes que imaginamos soar de dentro daquelas fendas e borrões, escorreram, juntamente com o mito, por entre os buracos do pergaminho. Elas cantaram o “mar
futuro”, fecundando a realidade. Das fissuras do pergaminho Sharrer presentificou-se o futuro, que ressoou dos pinhais de Leiria nos movimentos das embarcações rumo às “Grandes Invasões”, não mais às “Grandes Descobertas”, povoando o mar com as vozes da diáspora africana, salgando este mar com outras lágrimas que não somente aquelas de Portugal. Nosso exercício dramatúrgico musical, a partir daí, foi o de construir um diálogo entre o virtuosismo através do qual se expressam as cantigas dionisinas e o virtuosismo extremo protagonizado pelos tambores da cultura iorubá nas cantigas dos seus orixás. Nesta tomada de posição, quando decidimos deslocar o eixo dramatúrgico da saudade e do mar para a segunda margem do oceano, vivenciamos dois felizes encontros. O primeiro, com o ogã Leandro Perez, um jovem ator e percussionista, jovem de alma anciã e sábia. E o segundo, com a artista visual, Rosana Paulino, cujo trabalho impactante é pautado sobre o trauma da escravidão que cada um de nós, no Brasil atual, ainda carrega consigo. Todos os encontros do ANIMA com o ogã Leandro, carinhosamente apelidado de Lelê, foram de aprendizado para nós, mas sobretudo de maravilhamento, no sentido medieval do termo, o que será explicado um pouco mais adiante. Ao tomarmos esta decisão de dialogar as cantigas do rei português com as cantigas de orixás do candomblé da Bahia recolhidas por Camargo Guarnieri em 1937, vimos que as transcrições dessas mais de duzentas cantigas de origens ketu, angola e “de caboclo” foram realizadas a partir de uma escuta oitocentista, romântica, que não considerou as linhas melódico-rítmicas entre os três tambores, o gã, e o canto-texto, não sendo anotadas pelo nosso grande compositor, Camargo Guarnieri.
Esta fonte riquíssima de difusão da cultura musical do candomblé, contida na terceira parte do livro Melodias registradas por meios não-mecânicos12, chegou até nós também com suas fendas e buracos produzidos por uma escuta datada historicamente (ver texto de Luiz Fiaminghi). Na transcrição de Guarnieri estava ausente o que é mais fundamental nos rituais de matrizes africanas, as melodias contrapontísticas entre os tambores, expressão dos toques dos orixás, para que estes possam estar presentes nas cerimônias nos terreiros de candomblé. O toque dos atabaques, instrumentos considerados na África e no Brasil negro, entes sagrados, o refinamento, a exatidão da escritura das linhas rítmicas e o contraponto perfeito entre as vozes do rum, do lé, do rumpi, do gã, da cantiga e os gestos da dança dos deuses, expõem ao lado do virtuosismo melismático, de “suprema excelência” (FERREIRA, 2005, p. 15) do cantus coronatus, uma cultura musical extremamente complexa, “coroada” de virtudes. Tivemos o privilégio de receber em nossos Laboratórios, então, o ogã Leandro, um virtuose, para (re) construirmos algumas das cantigas do candomblé ketu transcritas por Guarnieri (ver textos de Paulo Dias e de Luiz Fiaminghi) e que compõem, desde então, o coração do corpo deste espetáculo/ CD. Ao longo de quase dois anos tivemos a oportunidade de experienciarmos o “maravilhoso”, a “maravilha” (mirabilia), no sentido medieval de que falei acima, com ao menos duas de suas características supreendentes, aquelas “associadas quer ao domínio propriamente divino (portanto próximo do milagre), quer ao domínio do natural (sendo a natureza originalmente o produto da criação divina) [...]” (LE GOFF, SCHMITT, 2017, pp.121-122)13. Junto ao ogã Leandro pudemos nos aproximar da cultura do candomblé, religião de matriz africana, como fundamento histórico da musicalidade brasileira. Ao mesmo tempo travamos contato com as ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias registradas por meios não-mecânicos. Vol. 1. Departamento de Cultura. São Paulo. 1946. 13 Op. Cit. 12
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obras de Rosana Paulino, artista visual paulista que trata de maneira contundente a questão do negro, da escravidão e seus horrores e questões de gênero no Brasil de ontem e de hoje. Caminhando lado a lado com o ogã Leandro, desde o início da construção deste espetáculo/CD tomamos as obras de Rosana como nossa referência para a “costura” da trama e do enredo. Os rostos esvaziados dos negros escravizados que percorrem suas obras, estampam mais e mais nos seus buracos e fendas o apagamento do negro e do indígena na história do Brasil. Rosana Paulino traz em cada peça sua um “questionamento franco e sem rodeios [...] sobre a falsidade da assim chamada ‘democracia racial’ brasileira”14, ideia muitas vezes difundida através da própria música brasileira. As obras de Rosana Paulino e o virtuosismo musical do ogã Leandro Perez, o nosso “livro vivo”, como Paulo Dias costuma denominar o jovem mestre, foram nossas inspirações e, ao mesmo tempo, nosso chão, para construirmos nosso tecido dramatúrgico sonoro. Este programa musical e CD celebram os trinta anos de trabalhos do Grupo. Após três anos de trabalho de criação coletiva, assentamos seu núcleo sobre os sentimentos de saudade, de perda, de ausência, das separações causadas pelos oceanos e o trauma da escravidão a partir da diáspora africana. Os rizomas dos mitos do mar e da saudade lusos se alastraram por entre as frestas do trauma da escravidão. No sentido dramatúrgico, as polirritmias dos tambores dos orixás e toques de suas linhas-guias em diálogo com as cantigas da Idade Média mediterrânea são protagonistas nos arranjos, pondo em evidência o ethos lusitano da saudade não como um sentimento exclusivo do português, mas sobretudo como “sentimento gerado pelas grandes navegações causadoras das separações forçadas ou voluntárias relacionadas ao projeto expansionista, colonizador e conversionista dos países católicos ibéricos, deflagrado pela PICCOLI, Valéria; NERY, Pedro (curadores). Rosana Paulino: a costura da memória. Pinacoteca de São Paulo. 2018-2019. 15 PESSOA, Fernando. Obra Poética. Org.: Maria Aliete Galhoz. In: Mensagem/Segunda Parte/X. Mar Portuguez. Ed. Nova Aguilar S. A. Rio de Janeiro. 2001. P.: 78. 14
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Contra-Reforma” (Paulo Dias). Convidamos para participar desta construção que celebra os trinta anos do ANIMA os compositores e amigos queridos Liduino Pitombeira (Rio de Janeiro e Ceará) e Acácio Piedade (Santa Catarina), de quem temos a honra de performar duas obras dedicadas ao ANIMA. Para o arranjo composto pelo Fiaminghi, da música que encerra nosso espetáculo, O Fondo do Mar tan chao / Ofulu lorêrê rê, obra baseada na Cantiga de Santa Maria, nº 383, atribuída a Dom Afonso X, o sábio (1221 – 1284), avô de Dom Dinis e na cantiga do candomblé nagô do orixá Oxalá, tivemos como nossos convidados de honra os flautistas Flávio Stein (Curitiba), David Castelo (Goiânia e Ceará), Monica Lucas (São Paulo) e Liduino Pitombeira (agora não como compositor, mas sim como flautista). Ao mesmo tempo nos honramos em tocar ao lado do mestre Leandro Perez e em trabalhar com os estímulos visuais impactantes trazidos pelas obras da artista Rosana Paulino, ambos nossos convidados também. Nesse momento, com este CD, convidamos a todos que nos ouvem a não soltarem as mãos: ninguém solta a mão de ninguém. Valeria Bittar HORIZONTE15 O mar anterior a nós, teus medos Tinham coral e praias e arvoredos.
O sonho é ver as formas invisíveis
Desvendadas a noite e a cerração,
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
As tormentas passadas e o mistério,
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Buscar na linha fria do horizonte
Splendia sobre as naus da iniciação.
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Linha severa da longínqua costa Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta Em árvores onde o Longe nada tinha; Mais perto, abre-se a terra em sons e cores: E, no desembarcar, há aves, flores, Onde era só, de longe a abstracta linha.
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HOLES AND CRACKS A POSSIBLE DRAMATURGY IN HARD TIMES It has been a long time since the ANIMA Group decided to include in its Imaginário Sonoro Brasileiro (Brazilian Sound Imaginary) project, if not all, at least a part of the only seven troubadour songs that contain musical notation, written by one of the most admired kings of Portugal, King Dinis (1261 – 1325), an exemplary monarch and virtuoso poet. The fragment in which these cantigas d’amor (love songs) are located was found in the Torre do Tombo National Archive, in Lisbon, in 1990, by Harvey Leo Sharrer (University of California, Santa Barbara). Extremely damaged over the course of time, it is among the great finds of medieval philology and of historical musicology for the Iberian Peninsula today. The Pergaminho Sharrer (Sharrer Parchment), as this valuable source was named, was studied, transcribed, commented, edited, and published in a book in 2005 by the musicologist Manuel Pedro Ferreira1 (New University of Lisbon), at the invitation of Professor Sharrer. Based on this thoroughly elaborated edition, ANIMA would then work on five of the seven cantigas by King Dinis. In dramaturgical fashion, we will present here, in this show/CD, aspects of Afro-Brazilian music mixed with medieval European music, to celebrate the Group’s 30year anniversary, thus expanding its focus on the Brazilian popular tradition and bringing to light the pulsing medieval nature of our music. According to the Portuguese musicologist, we know of 1680 “Galician-Portuguese secular poems,” none of which were recorded, contained in the following manuscripts: the Cancioneiro da Ajuda (Help Songbook), the Cancioneiro da Vaticana (Vatican Songbook), and the Cancioneiro ColocciBrancuti (Colocci-Brancuti Songbook). Of the 137 poems composed by King Dinis, all were profane, most were cantigas de FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus: 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberger. Kassel. 2005. 1
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amor and cantigas de amigo (friend songs), and some were cantigas satíricas (satirical songs) and pastorelas (pastourelles). Until the discovery of the king’s seven cantigas d’amor, the only known profane cantigas in Galician-Portuguese with musical notation were the six cantigas de amigo written by the troubadour Martin Codax and contained in the Pergaminho Vindel (Vindel Parchment) (FERREIRA, 2005, p. 6), which draws even more attention to this recent discovery. On the other hand, Iberian culture, or rather, Iberian cultures, and the medieval music from the Peninsula, have the privilege of containing 419 cantigas devocionais (devotional songs) in their troubadour songbook, all of which were recorded (except for five): the well-known Cantigas de Santa Maria (Saint Mary’s Songs), composed in the court of King Alfonso X, the Wise, king of Castile and León, grandfather of King Dinis. In earlier projects, the ANIMA Group was able to create versions based on the cantigas de amigo by Martin Codax: in Especiarias (Spices, 1999), we explored the cantiga “Quantas sabedes amar” (How Much Can You Love); in Amares (2003), the cantiga “Ondas do Mar de Vigo” (Waves of the Sea of Vigo); and in Donzela Guerreira (Warrior Maiden, 2010), we presented a version of “Mandad’Ei Comigo” (A Message I’ve Received). We seek, in our arrangements and improvisations, to incorporate in the Brazilian popular music tradition the Galician-Portuguese compositions from those cantigas de amigo, which have original themes and structures. In this sense, and also motivated by the considerations expressed by the musicologist Manuel Pedro Ferreira in his “Andalusian Music and the Cantigas de Santa Maria,”2 in which he suggests asymmetrical rhythms for performing the Cantigas de Santa Maria, we explored similar possibilities in the aforementioned songs by Martin Codax. For a cantiga de loor (praise song) in honor of the Virgin Mary, the well-known “Rosa das Rosas” (Rose of Roses), we made use of FERREIRA, Manuel Pedro. “Andalusian Music and the Cantigas de Santa Maria.” In: Cobras e Som: Papers from a Colloquium on the Text, Music and Manuscripts of the Cantigas de Santa Maria. Ed.: Stephen Parkinson. Legenda. Oxford. 2000. pp. 7-19. 2
the same process, approximating it, in one of the proposed arrangements, to the beat of the drums in the song “Alvoradinha” (Little Dawn), from the tradition of the Caixeiras do Divino Espírito Santo (Caixeiras of the Divine Holy Spirit), priests of the Casa Fanti-Ashanti (Fanti-Ashanti House), from the city of São Luís, in the Brazilian state of Maranhão. This arrangement composes the show/CD Donzela Guerreira (2010), the first volume of the Imaginário Sonoro Brasileiro triptych. In the second volume of the trilogy, the CD/show Encantaria (20152018) presents a composition with even more radical asymmetry as an instrumental basis for the cantiga de miragre (miracle song), n.º 181 from the Cantigas de Santa Maria, titled “Pero que seja a gente” (“The Banner of the Virgin Defeats the Moors at Marrakesh”). The Making of the Performance: First Steps I became aware of the seven songs by King Dinis, contained in the Pergaminho Sharrer, in 1997, at the I Seminário Internacional de Trabalho Filológico: Textos Medievais e suas Fontes (I International Seminar of Philological Work), held by the Institute of Philosophy and the Humanities at the State University of Campinas, São Paulo (UNICAMP), in a lecture given by Professor Harvey Leo Sharrer. Much later, in 2013, after finishing the concert season for the release of the Donzela Guerreira CD, I once more had the embryonic urge to perform with ANIMA a show that consisted mainly of the Portuguese king’s cantigas, the cantus coronatus. We decided to study the music of these poems through the book written by Professor Manuel Pedro Ferreira, in which careful possibilities for the reconstruction of the Dionysian fragments are presented and in which the images of these images found in Lisbon are displayed. Thus, after recording the second CD of the trilogy, which was dedicated to the millenarianism pervades the myth of King Sebastian I, the Desired, and which resonates in the tambores de mina from the state of Maranhão, we returned to these cantigas
in 2016, which were the beginning of Mar Anterior. We began to study the story of King Dinis backwards, against the current of history. First, through his music and poetry, and then, through the poetry that other poets composed to sing about this planter of ships. Of course, it was through Fernando Pessoa that we had first contact with what was imagined about King Dinis, the troubadour king who planted pine trees in Leiria, with which, years later, were built the ships that enacted the maritime epics, the “discoveries,” and the conquest of the sea. It was, therefore, through fictional creation3 (MENDES, 2018, p. 9) that ANIMA had contact with the music and poetry of the troubadour king. Through the myth, the legend, we got to know King Dinis and thereby began to turn the project Mar Anterior into a reality, following in the footsteps of Pessoa: [...] “So the legend trickles through,/ Entering reality./ Then fecundating it.”4 KING DINIZ5 Night, and the tree planter of ships to come Is writing his Cantar de Amigo. He hears a self-whispering silence: It’s the rustling pines like wheatfields Of Empire that waver unseen. That pure new song is a stream Probing the unfound ocean, And in the piny voice’s dark roar The present speech of the future sea, Voice of the sea-craving earth.
MENDES, Ana Luiza. O trovar coroado de Dom Dinis: modelo de racionalidade artística e identitária do trovadorismo galego-português. Tese de doutoramento, Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2018. 4 PESSOA, Fernando. Poems of Fernando Pessoa. Translated and edited by Edwin Honig and Susan M. Brown. New York: The Ecco Press, 1986. p. 162. 5 PESSOA, Fernando. Poems of Fernando Pessoa. Translated and edited by Edwin Honig and Susan M. Brown. New York: The Ecco Press, 1986. p. 164. 3
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When the collective decision was made to work on the cantigas of King Dinis, at first we focused on the future time indicated by Pessoa, on the future sea tied to the Dionysian myth, and then, on the feeling of saudade6 (longing or nostalgia) that hangs over the monarch’s ballads. Saudade as a clear outline of Portuguese history and culture, indirectly or even directly present in the Lusitanian king’s ballads, for example, in his poem (which does not have musical notation) Nom poss’eu, meu amigo, com vossa soidade viver (I cannot, my friend, live with the sadness of your absence). And the sea, as a Portuguese foundation for saudade. This was the first step taken by us towards taking a stand in the form of a musical performance that prioritizes dramaturgy, whether in the selection of a repertoire, or in the construction of the musical arrangements, or even in the production of the “show.” With the dialogue between the musical poetry of King Dinis and traditional Brazilian popular culture on this side of the sea, the absence of the other and the saudade, we immediately turn to Mário de Andrade, not only as a constant reference with respect to what one may call a “Brazilian cultural identity,” but also because of his text A Dona Ausente (The Absent Woman), written in 1943 and published in the Atlântico magazine7. This text had already served as a basis for ANIMA to elaborate the Amares show, directed by the dancer Lu Favoretto (Oito Nova Dança Studio), between 2003 and 2005. Researching traditional Brazilian popular poetry and songbooks, Andrade identifies in the danças dramáticas (dramatic dances) the “Sequestro da Dona Ausente” (Kidnapping of the Absent Woman), which presents the Portuguese sea voyages as protagonists of the saudade and which reverberate here in our songbook, such as, for example, in the dramatic complexes of GAMBOA, Márcia. “Dom Dinis e a retórica da saudade.” In: MEGALE, Heitor; OSAKABE, Haquira (eds.). Textos medievais portugueses e suas fontes. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999, p. 157. 7 ANDRADE, Mário de. “A Dona Ausente”. In: Atlântico: Revista Luso-Brasileira. Lisboa / Rio de Janeiro. Secretariado da Propaganda Nacional, Departamento de Imprensa e Propaganda. 1943. No. 3. 6
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“Nau Catarineta” (Catarineta Ship), or even in “Cheganças de Marujos” (Sailor Arrivals). Below I include a small passage in which the poet, musician, critic, and professor describes that which he called the “Sequestro da Dona Ausente” (Kidnapping of the Absent Woman) and which, as the Mar Anterior show was being created, had pushed ANIMA in the direction of saudade and the absence of love as the warps in our dramatic fabric: [....] The suffering caused by the lack of women in the navigators from a country of navigators. The sailor sets forth in a struggle with the sea, and for all the hardships that make up maritime labor, is forced to abandon his beloved land. The hardships of the sea are, in short, the same as those of the land, a struggle to survive, to eat, to sleep… However, the women are absent, and without a doubt, this is the worst of all the ills to which the sailor is exposed on his voyage. The almighty sea requires of those who cross it the rite of living in complete chastity. However, the longing [saudade] for women persecutes the chaste, the desire for them overly chastises. And the sailor, especially the Portuguese one, who was the greatest of navigators, seeks to disguise his martyrdom in the images and symbols of poetry. Luso-Brazilian folklore has been enriched by this, with numerous and admirable series of quadrinhas [a form of popular quatrain] and cantigas [….] After the absent women in the sea, the docked colonist came to enjoy here the absent women on land [.…]8.
By searching through the traditional Brazilian popular songbook collected by Mário de Andrade, among other researchers, which presents the sea and saudade for us to make use of these songs as counterpoints in the dialogue with King Dinis’ cantigas, we most of the time came across the images presented by the songs of the sailors, the colonizers. Feelings of impotence and, at the same time, dissatisfaction gradually overcame the Group. Dissatisfaction and impotence in the face of our own continual, passive, and even automatic acceptance of the interpretation of history and, even worse, of the current interpretation of historical music, as if that which we call history, or historical, were a one-sided coin. We realized that we were seeking elements to build a plot, in this initial ANDRADE, Mário de. “A Dona Ausente”. In: Atlântico: Revista Luso-Brasileira. Lisboa / Rio de Janeiro. Secretariado da Propaganda Nacional, Departamento de Imprensa e Propaganda. 1943. No. 3. [Passage translated by Marco Alexandre de Oliveira] 8
reading of the myth of King Dinis, which did not include the sea before, the ancestral sea, composed of multiple voices, but we were still seeking to invent a single sea and a single absence built in our imagination by the Portuguese ethos of saudade and its sea. In the history of the navigations, we erected in us, as in the words of the medievalist Paul Zumthor9, the fascination for a “detemporalized past” in which the only side of the coin would be exclusively that of the dilation of European maritime space10, which has been made present since Antiquity and whose presence is intensified in the medieval world in the conquest of the Mediterranean, from the Atlantic to the North, Baltic, Indian Seas, etc. Stretching borders, in the Renaissance, until the “domination” and “colonization” within a period of history that we are accustomed to calling, without much thought, the age of the “Great Discoveries.”11 Suffering, bravery, departures, fears, losses, seen from only one side. From the European side. Songs and stories of a sea with only one side. “how many mothers wept […] How many girls betrothed remained unwed/ That we might possess you, Sea!”12 In the end, salty tears of Portugal upon the sea and the saudade of the Portuguese. A Position to Build a Possible Musical Dramaturgy In the same way that we harbor in us the sea and saudade as myths built exclusively from the other side of the Atlantic, as we began to work on the elaboration of the dramaturgical plot, born of the sensations of impotence and dissatisfaction, we also experienced unease in the face of our own apprehension of the Middle Ages.
ZUMTHOR, Paul. Speaking of the Middle Ages. Translated by Sarah White. Lincoln, NE, USA: University of Nebraska Press, 1986. p. 41. 10 LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário analítico do Ocidente medieval. Vol. 2. Translation coordinated by Hilário F. Júnior. Editora Unesp. São Paulo. 2017. pp. 108-109. [Passages translated by Marco Alexandre de Oliveira]. 11 Idem. 12 PESSOA, Fernando. Poems of Fernando Pessoa. Translated and edited by Edwin Honig and Susan M. Brown. New York: The Ecco Press, 1986. p. 164. 9
Although science has worked to uncover this distant past, we realize that we still deal with medieval civilization with tools forged in a romantic mentality that is deeply rooted in us. What provided us with a firm foundation, when we contested in ourselves this mentality that rigidly fixes the “loose” outlines of medieval writing13, was our contact with the aforementioned book by Paul Zumthor, Speaking of the Middle Ages. In this brief personal account, the great writer, poet, and medievalist (1915-1995) analyzes the 19th century discourse that still permeates medieval studies, exposing four assumptions of Romanticism, upon which modern interpretative traditions of medieval culture were erected and which, in short, are: the pursuit of a “notion of ‘origin,’” on which I commented earlier, and, along with it, the idea of “authenticity;” the “temptation” to “dissimulate the gaps [of history], not in their documentation, but in that mantle full of holes, history itself.” The attempt by the interpreters of the medieval world to “take some plaster kneaded with their ideology and patch those gaps [of history] potentially threatening to their own (good) conscience;” with respect to literature and music “[...] the intransitive character of the ‘literary’ work [in the case of philology]” and, finally the “notion of masterpiece” and, attached to it, “a factor in the grandeur of a certain era, an eminent manifestation of its ‘genius,’ without which that era would not have been what it was.”14 By questioning such notions, both that of the masterpiece and that of the intransitive character of that which is elected as a work, Zumthor shows us how we have imprisoned the work and the masterpiece, along with the standards created by them, and thereby come to exclude other possible forms and manifestations.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz – a “Literatura” Medieval. Translated by Amálio Pinheiro and Jerusa P. Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 14 ZUMTHOR, Paul. Speaking of the Middle Ages. Translated by Sarah White. Lincoln, NE, USA: University of Nebraska Press, 1986. p. 43. 13
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In ANIMA’s meetings, or “Collective Laboratories of Musical Arrangements,” we naturally did not work with these assumptions in linear fashion, but, looking back, we see today that our unease with regard to our position in the face of the composition of the Mar Anterior musical program is also based on the reflections presented by Zumthor. Upon leafing through the book by Manuel Pedro Ferreira, always encountering the images of this parchment degraded by time, showing only some traces of the songs interwoven with huge holes, cracks, and blots, the abyss that separated us from the monarch’s songs grew. In the ANIMA meetings, there was thus a moment in which the holes, the “gaps” of history, as Zumthor said, began to make sense and to include other voices besides those fragilely attached to the parchment by the scribes of King Dinis’ court. These voices that in our imagination resounded from within those cracks and blots exuded, along with the myth, through the holes of the parchment. They sang the “future sea,” fecundating reality. In the gaps of the Sharrer parchment, the future was made present, and it resonated from the pine trees of Leiria in the movements of the ships in the direction of the “Great Invasions,” no longer the “Great Discoveries,” peopling the sea with the voices of the African diaspora, salting this sea with tears other than only those of Portugal. Our musical dramaturgical exercise, from then on, was that of building a dialogue between the virtuosity through which the Dionysian cantigas are expressed and the extreme virtuosity featured in the drums of Yoruba culture in the cantigas of their Orishas. After taking this position, when we decided to displace the dramaturgical axis of saudade and the sea to the other side of the ocean, we experienced two fortunate encounters. The first, with the ogan Leandro Perez15, a young actor and percussionist, a young
man with an ancient and wise soul. And the second, with the visual artist Rosana Paulino, whose impressive work is marked by the trauma of slavery that still exists in every Brazilian, even today. All of the ANIMA meetings with the ogan Leandro, who is nicknamed Lelê, were a learning experience for us, and were especially marvelous, in the medieval sense of the term, which will be explained a little further on. By making this decision, to have the cantigas of the Portuguese king dialogue with the cantigas of the Orishas from Bahian Candomblé collected by Camargo Guarnieri in 1937, we saw that the transcriptions of these more than two hundred cantigas of Ketu, Angolan, and “Caboclo” origins were done based on a 19th century, romantic manuscript, which did not consider the melodic-rhythmic lines among the three drums, the agogô, and the song-text, not being annotated by our great composer, Camargo Guarnieri. We received this rich source of diffusion of the musical culture of Candomblé, contained in the third part of the book Melodias registradas por meios não-mecânicos (Melodies Recorded by Non-Mechanical Means)16, also with its cracks and holes produced by a historically dated listening (see the text by Luiz Fiaminghi). In Guarnieri’s transcription, that which is the main foundation in the rituals of African origin is missing: the counterpoint melodies among the drums, an expression of the Orisha beats, so that they can be present in the Candomblé ceremonies. The beat of the drums, instruments considered sacred entities in African and Afro-Brazilian cultures, the refinement, the exactitude of the rhythmic compositions, and the perfect counterpoint between the voices of the atabaque drums and the agogô of the cantiga and the gestures of the dance of the gods display, along with the “supreme excellence” (FERREIRA, 2005, p. 15) of the melismatic virtuosity in the cantus coronatus, an extremely complex musical culture that is “crowned” ALVARENGA, Oneyda (ed.). Melodias registradas por meios nãomecânicos. Vol. 1. Departamento de Cultura. São Paulo. 1946.
In the Candomblé tradition, an ogan designates a master of music.
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with virtues. We had the privilege of receiving in our Laboratories, then, the ogan Leandro, a virtuoso, for us to (re)construct some of the cantigas from Ketu candomblé transcribed by Guarnieri (see the texts by Paulo Dias and by Luiz Fiaminghi), which have come to compose the heart of the body of this CD/ show. Over the course of almost two years, we had the opportunity to experience the “marvelous,” the “marvel” (mirabilia), in the aforementioned medieval sense, with at least two of its surprising characteristics, those “associated either with the properly divine realm (therefore close to miracle), or with the natural realm (nature being originally the product of divine creation) [...]” (LE GOFF, SCHMITT, 2017, pp. 121-122)17. Together with the ogan Leandro, we were able to get closer to the culture of candomblé, a religion of African origin, as a historical foundation of Brazilian music. At the same time, we got in touch with the works of Rosana Paulino, a visual artist from São Paulo who forcefully deals with the question of negritude, of slavery and its horrors, and questions of gender in Brazilian history. Working together with the ogan Leandro, since the beginning of the development of this show/CD we used the works of Rosana as our reference to “tailor” the story and the plot. The emptied faces of the enslaved black people that pervade her works imprint more and more in their holes and cracks the erasure of the African and the indigenous in the History of Brazil. Rosana Paulino includes in all of her pieces a “frank and direct questioning […] of the falsity of the so-called Brazilian ‘racial democracy,’”18 an idea often diffused through Brazilian music itself. The works by Rosana Paulino and the musical virtuosity of the ogan Leandro Perez, our “living book,” as Paulo Dias usually calls the young master, were both our inspirations and our ground to build our dramaturgical
fabric of sound. This musical program and CD celebrate the ANIMA Group’s thirty years of work. After three years of collective and creative effort, we decided to focus on the feelings of saudade, loss, and absence, and the separations caused by the oceans, and on the trauma of slavery in the African diaspora. The rhizomes of the myths of the sea and of the Portuguese saudade spread throughout the interstices of the trauma of slavery. In the dramaturgical sense, the polyrhythms of the Orishas’ drums and beats in dialogue with the cantigas of the Mediterranean Middle Ages are protagonists in the arrangements, making evident the ethos of Lusitanian saudade not as an exclusively Portuguese feeling, but especially as a “feeling created by the great navigations that caused the forced or voluntary separations related to the expansionist, colonizing, and ‘conversionist’ project of the Iberian Catholic countries, triggered by the Counterreformation” (Paulo Dias). To participate in this project that celebrates the thirty years of ANIMA, we invited our friends and composers Liduino Pitombeira (Rio de Janeiro and Ceará) and Acácio Piedade (Santa Catarina and São Paulo), from whom we have the honor of performing works dedicated to ANIMA. For the arrangement, composed by Luiz Fiaminghi, of the song that closes our show, “O Fondo do Mar tan chao / Ofulu lorêrê ê,” a work based on the Cantiga de Santa Maria nº 383, attributed to King Alfonso X, the Wise (1221 – 1284), grandfather of King Denis, and on the Anago cantiga of Obatala, the Orisha, we had as our guests of honor the flutists Flávio Stein (Curitiba), David Castelo (Goiânia and Ceará), Monica Lucas (São Paulo), and Liduino Pitombeira (now not as a composer, but rather as a recorder player). At the same time, we felt honored to play alongside the master Leandro Perez and to work with the impressive images by the artist Rosana Paulino, both of whom were also our guests.
Op. Cit. PICCOLI, Valéria; NERY, Pedro (curators). Rosana Paulino: a costura da memória. Pinacoteca de São Paulo. 2018-2019. [Passage translated by Marco Alexandre de Oliveira] 17 18
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At this moment, with this CD, we invite all who hear us to stick together, and not give up. Valeria Bittar19 HORIZON20 Your fearfulness preceding us, O Sea, Was lodged in coral, shores, and masts. Once of night and fog, of bygone
That far-off rigid coastline – When the ship approaches, the shore now rises With the trees, where the distance offered nothing; Closer, land breaks into sounds and colors; As we disembark, come birds and flowers, Where before was but a far-off abstract line.
Tempests and the mystery, unveiled, Distance flowered, and the sidereal South Sparkled on initiated galleons.
Translated by Marco Alexandre de Oliveira. PESSOA, Fernando. Poems of Fernando Pessoa. Translated and edited by Edwin Honig and Susan M. Brown. New York: The Ecco Press, 1986. pp. 169-170. 19 20
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To dream is to see from some vague distance Shapes invisible, then with the quickened Motion of one’s hope and will, To seek upon the cold horizon Tree and beach, flower, bird, and fountain – Those kisses Truth awards.
Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, cx. 20, 2 Fonte: cantigas.fcsh.unl.pt
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BUSCAR A ALMA NAS CANTIGAS
arquivos da Torre do Tombo, contendo sete cantigas d'amor.
Poder acompanhar a trajetória do grupo ANIMA é algo que me anima; contribuir com algumas palavras para este disco, considero um privilégio.
É música surpreendentemente ornada, para nós difícil de assimilar. Temos apenas, para nos guiar, algumas melodias incompletas e a nossa tacteante imaginação.
Se o ANIMA tem uma alma, essa será a de celebrar o encontro e a ultrapassagem de fronteiras; a de abarcar a pluralidade; a de construir e festejar o diálogo intramusical.
Quem cantava, não se sabe: o próprio rei, ou o seu jogral? Seriam ou não tocados instrumentos enquadrando a cantoria? Haveria ou não flexibilidade — no ritmo, na ornamentação melódica, na articulação dos versos?
Nisto se imagina um Brasil inclusivo e criativo, imbuído de alegria, tão europeu quanto africano nas suas raízes, supranacional na sua história, internacional na sua projeção. Surpreende neste disco, talvez, o peso de umas cantigas que precedem de dois séculos a chegada das naus lusas à costa brasileira. Essas cantigas carregam, contudo, o passado da língua e da sua literatura: são a matriz dessa poesia que hoje viceja no Brasil. São também poesia de rei. Muito antes de o Rio de Janeiro ser morada de rei português, Dom Dinis (1261-1325) foi simultaneamente soberano em Lisboa e um dos mais importantes trovadores em língua galego-portuguesa. Cantou o amor da forma mais cortês do seu tempo, declarando (em cantigas d'amor) a sua fidelidade e paixão por uma qualquer “senhor(a)” casada, de alta estirpe e coração empedernido, alardeando assim a sua mestria no flirt, que podia, aliás, render favores ao alegado vassalo sentimental; isto, quando o trovador não se imaginava (em cantigas d'amigo) na cabeça de uma donzela tomada de amores pelo seu namorado, de modo a avivar no verdadeiro alvo da sua corte as chamas que podiam lhe fazer baixar a guarda. Considerada perdida durante séculos, a música das cantigas dionisinas reapareceu (muito parcialmente) em Lisboa, no ano de 1990, num fragmento encontrado nos 28
O fragmento da Torre do Tombo — agora normalmente designado pelo nome do seu descobridor, Harvey Sharrer —, dá-nos algumas indicações quanto à duração das notas, que sugerem uma pulsação ternária; mas tudo o resto permanece na penumbra. Não podendo nós interrogar diretamente os trovadores medievais, podemos interrogar a sua poesia, que por necessidade retórica teria determinado o fraseado musical, e no seu conjunto nos informa sobre algumas preferências da época: valorizavam-se as melodias providas de fluidez, harmonia e subtileza; a voz fina e agradável, mas bem audível; a diversidade nos tempos e emoções; e a surpresa nas pequenas variações. Aos músicos de hoje resta a possibilidade de experimentar soluções diversas de sonorização. Se pretendermos alcançar a verosimilhança histórica, reduziremos os meios à voz e a algum cordofone (os mais prováveis — cítola, viola d'arco, harpa ou saltério — ou os disponíveis) e colocaremos o poema no pedestal; se privilegiarmos uma apropriação musical mais livre e participada, ainda que sugestiva do ambiente medieval, alargaremos a paleta a mais instrumentos e, usando a melodia como fio condutor, daremos à cantiga uma presença mais inusitada e colorida. Aqui se encontrarão exemplos de ambas estratégias, por vezes em justaposição. Havendo vários corpos sonoros para envolver a cantiga, o que importa é tocar a sua alma.
Mas qual era ela? A suavidade ou o sentido lúdico? A emoção ou o requinte artístico? Não nos esqueçamos que o trovadorismo era uma arte de elite, vinculada à corte aristocrática, que prezava as marcas da sua eminência social. No entanto, por muito que tentassem evitar a contaminação estética, os trovadores não viviam isolados de outras práticas. Reutilizavam frequentemente melodias alheias, mesmo que na sua origem estivesse o detestado infiel. O próprio Dom Dinis, em 1279, possuía dez tambores, e estava bem ciente da tradição rítmica perso-árabe, que o seu avô Alfonso acolhera em dezenas de Cantigas de Santa Maria. Esta tradição admitia uma grande variedade de ciclos rítmicos padronizados, simétricos ou assimétricos, superficialmente próximos da lógica musical da África subsaariana. Quando, a partir do século XV, os portugueses entraram em contacto direto com as etnias africanas, abriu-se um período fértil em interações culturais. A adesão comercial às velhas práticas esclavagistas, e sua intensificação, levou à presença de muitos negros em Portugal. Foi, de facto, nos séculos XVI e XVII que, apesar da violência infligida aos escravos e da escassa aceitação dos libertos, se forjaram, na Península Ibérica, as bases da influência africana sobre a música europeia. Nos vilancicos “negros” de Coimbra do século XVII, tal como nalgumas danças em voga na Península Ibérica por volta de 1700 (o “oitavado” e o “paracumbé”), pode detectarse uma matriz rítmica de doze pulsações que corresponde às “linhas-guia” dos povos que habitavam na proximidade da costa da Guiné. Hibridismo e mestiçagem não são um exclusivo brasileiro. Também a Europa foi permeável a tradições musicais vindas do seu exterior (árabes, turcos, africanos);
também ela as soube, seletivamente, assimilar e exportar. No Brasil a intensidade da interpenetração é naturalmente muito maior, tal como a variedade dos tipos musicais (como seja a influência da África centro-ocidental, que parece ausente da música portuguesa) mas o princípio é o mesmo: os bons músicos abrem os ouvidos, sem preconceito, e tentam reproduzir novidades que os motivem. Será a alma da cantiga o poder integrativo da música, a sua humanidade universal, a sua infinita capacidade de renovação ao longo da História? Se resgatamos a cantiga do seu tempo, não poderemos também sinalizar o tempo decorrido, a deslocação do contexto, a contemporaneidade do resgate? Nada impede que se transplante Dom Dinis para o terreno fértil da fusão musical. Sobrepor cantigas medievais e música de candomblé sinaliza mais a compatibilidade do que a diferença, lembrando quer a continuidade histórica dos contatos entre a cultura europeia e as culturas africanas, quer a desejável comunicabilidade entre géneros e esferas sociais. Esta abordagem é, em suma, uma ousadia artística e uma afirmação política; uma visão da alma brasileira e um projeto de harmonização social. É também um gesto musicológico de imprevisto alcance. O grupo ANIMA não se deixou paralisar pela consciência de que descrições, transcrições e mesmo gravações de práticas culturais não são neutras, requerendo um esforço de reinterpretação. Numa época em que a etnomusicologia vive amarrada ao tempo longo da observação antropológica e chega a descrer da fecundidade da indagação externa, só mesmo gente vinda da música antiga é que se lembraria de recuperar as notações de músicas populares feitas em décadas passadas (tratadas por alguns como lixo académico, apesar da autoridade reconhecida a Mário de Andrade e a Camargo Guarnieri), aplicando29
lhes a receita consagrada entre os intérpretes: aceitar os limites epistemológicos e as lacunas desse tipo de transcrição e preenchê-las, com vista à recuperação integral da música respectiva, com o estudo das práticas de execução reveladas pelos informantes, que podem, se falecidos, deixar a informação na forma de narrativas, rubricas ou tratados, ou, se contemporâneos, dá-la de viva voz e através do exemplo. Com isto, dá-se vida ao património, protagonismo aos seus agentes (de todas as épocas), e consciência cultural aos ouvintes mais atentos. Isto tudo, num disco só, admitamos que é obra. Manuel Pedro Ferreira CESEM/FCSH, Universidade Nova de Lisboa
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FINDING THE SOUL IN SONGS I am thrilled to be able to follow ANIMA’s path and I consider it a privilege to contribute some words to this disc. If ANIMA has a soul, it must be one that embraces diversity; one that builds and upholds intra-musical dialogue; one that celebrates improbable encounters beyond established borders. The Brazil envisioned therein is one that is inclusive, creative, imbued with joy; European and African in its roots; supranational in its history; international in its projection. Surprising in this disc, perhaps, is the weight of some cantigas, songs that predate by two centuries the arrival of Portuguese ships to the Brazilian coast. These songs carry, however, the past of the Portuguese language and its literature: they are the matrix of all poetry thriving today in Brazil.They are also, to be sure, the poetry of a King. Long before Rio de Janeiro was the residence of the Portuguese court, King Dinis (12611325) was simultaneously the sovereign in Lisbon and one of the most important troubadours in the Galician-Portuguese language. He sang of love in the most courteous manner of his time, declaring (in cantigas d'amor) his fidelity and passion for any lady (senhor) of high lineage and hardened heart, boasting in this way his mastery of flirtation — which could, indeed, yield favors to the alleged sentimental vassal. This, when the troubadour was not imagining himself (in cantigas d'amigo) inside the head of a damsel lovestruck with her beau, so as to fan the flames which could make the true target of the court lower her guard.
some incomplete melodies and our tentative, grasping imagination. Who actually sang is not known: the King himself, or his jongleur? Would instruments have been played to frame the singing or not? Would there have been some flexibility (in the rhythm, in the melodic ornamentation, in the verses’ articulation) or not? The Torre do Tombo fragment (now currently designated by its discoverer’s name, Prof. Harvey Sharrer) gives us some indications as to the notes’ durations, which suggest a ternary pulsation — but all the rest remains shadowy. Not being able to directly interrogate the medieval troubadours, we can interrogate their poetry — which by rhetorical necessity would have determined the musical phrasing. All together they inform us about some preferences of the era: melodies stocked with fluidity, harmony and subtlety; the voice light and pleasant, but clearly audible; diversity in the tempos and emotions; and surprise in the small-scale variations. The responsibility of experimenting with various approaches to take the music off the page is left to today’s musicians. If we aim at historical verisimilitude, we will use only voice and some chordophone (either the most probable — citole, viol, harp or psaltery — or those available) and put the poem on a pedestal. If we favor a freer and more participatory musical appropriation, but nonetheless suggestive of the medieval setting, we will broaden the palette to more instruments and, using the melody as the common thread, give a more unusual and colorful presence to the song. Examples of both strategies can be found here, sometimes in juxtaposition.
Considered lost for centuries, the melodies of Dom Dinis’s songs reappeared (very lacunose) in Lisbon, in 1990, in a fragment found in the archives of Torre do Tombo, containing seven cantigas d'amor.
Having at our disposal different sonorous bodies to engage the song, what is important is to touch its soul. But which aspect of this soul are we speaking of? The softness or the ludic sense? The emotion or the artistic refinement?
The music is surprisingly ornate, difficult for us to absorb. To guide us we only have
Let us not forget that troubadour's art was one of the elite and was closely tied to the 31
aristocratic court, which found ways to show off signs of its social eminence. However, as much as the troubadours would try to avoid aesthetic contamination, they did not live in isolation from other practices. They frequently recycled previously existing melodies, even if the detested infidel was in their origin. King Dinis himself, in 1279, owned 10 drums, and was very much aware of the Persian-Arab rhythmic tradition — which his grandfather Alfonso appropriated in dozens of Cantigas de Santa Maria. This tradition allowed a great variety of patterned rhythmic cycles, either symmetric or asymmetric, superficially akin to the musical logic of sub-Saharan Africa. In the 15th century, when the Portuguese entered in direct contact with African ethnicities, a period fertile in cultural interactions was opened. The commercial adherence to the old enslavement practices, and their intensification, brought the presence in Portugal of many black people. In fact, it was in the 16th and 17th centuries that the basis of African influence over European music was forged, despite the violence inflicted on the slaves and the scarce social acceptance of the freed. In the vilancicos negros of 17th century Coimbra, as in certain dances in vogue in the Iberian Peninsula around 1700 (the oitavado and the paracumbé), one can detect a rhythmic matrix of 12 pulsations which corresponds to the time-lines traditionally used in ensemble music by the peoples who lived in proximity to the Guinea coast. Hybridism and cross-culturalism are in fact not exclusive to Brazil. Europe, as well, was permeable to foreign musical traditions (Arab, Turkish, African) and also knew how to, selectively, assimilate and export them. The intensity of cultural interpenetration in Brazil is naturally much greater, as is the variety of musical types (a case in point is the influence of Central Africa, which seems absent from Portuguese music). However, the principle is the same: good musicians open their ears without prejudice, and attempt to reproduce whichever new features motivate them.
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Might the soul of the song be the integrative power of the music, its universal humanity, its infinite capacity for renewal throughout History? If we recover the song from its own era, can we not also signal the time passed ever since, the displacement from the original context, the contemporaneity of the recovery? Nothing prevents King Dinis from being transplanted to the fertile grounds of musical fusion. Overlapping medieval songs and Candomblé music signals more their compatibility than their difference, reminding one of both the historical continuity of contacts among European and African cultures, and the desirable communicability among genres and social spheres. This approach is, in short, an act of artistic boldness and a political gesture; a particular vision of the Brazilian soul and a project of social reconciliation. It is also a musicological gesture of unforeseen reach. The ANIMA group has not let itself be paralyzed by the awareness that the descriptions, transcriptions and even the recording of cultural practices are not neutral — requiring a reinterpretative effort. In an era in which the ethnomusicologist is hostage to the long term of anthropological observation and even ceases sometimes to believe in the fruitfulness of external inquiry, only Early Music people would have thought of recovering notations of popular music done in past decades (treated by some as academic rubbish, despite the recognized authority of Mário de Andrade and Camargo Guarnieri) to apply them the consecrated recipe among performers, envisioning the complete recuperation of the respective music: accept the epistemological limits and lacunas of this type of transcriptions and fill the gaps with the study of the performance practices revealed by the informers. (No ontological distinction should be made here: if deceased, these informers leave behind the information in the form of narratives, rubrics or treatises; if contemporary, they can provide it orally or through living example.)
In so doing, life is injected into the heritage, agency is allowed to its creators (of all eras), and cultural consciousness is offered to the more attentive listeners. All this, in only one disc, is no mean feat: something that we can easily agree upon. Manuel Pedro Ferreira CESEM/FCSH, Universidade Nova de Lisboa
Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Fonte: cantigas.fcsh.unl.pt
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O OGÂ DE TEATRO O convite para participar deste álbum traduziu o desejo do Grupo ANIMA de apresentar a potencialidade de diálogo entre a música da Idade Média e os tambores do candomblé da nação ketu. Cabe dizer que, sempre tão relegados a cumprir acompanhamento, os instrumentos de percussão costumam ter papel coadjuvante na música ocidental. Em Mar Anterior, não. Flautas, harpa, órgão portativo, rabeca e viola de arame dançam com reverência perante a ancestralidade lembrada pelos tambores das religiões de matriz africana. Antes de qualquer coisa, cabe esclarecer: Quem são os responsáveis, sobretudo, pela música no ritual do Candomblé? Os chamados ogãs: autoridades masculinas de posto hierárquico abaixo do sacerdote/ sacerdotisa e seus auxiliares diretos. São diversas as funções exercidas pelo ogã, mas o que referido neste caso é o ogã alabê, ou seja, o ogã músico/tocador. A verdade é que minha formação acadêmica com licenciatura em Arte-Teatro veio depois da condição de ogã de uma casa de candomblé/umbanda. Foi o mergulho ritual que me convocou à pesquisa artística com a música, a dança e o teatro. O meu apelido “conceitual” é ogã-de-teatro: figura que transita com propriedade e lugar-defala pelos centros de pesquisa artística, pois transborda o conhecimento litúrgico da religião no olhar que a linguagem artística em questão pretende desenvolver em determinado trabalho. Sempre com respeito aos limites entre arte e religião. Aprofundar o entendimento do “ogã-de-teatro” se transformou na minha pesquisa acadêmica e artística. No caso do trabalho do ogã no candomblé, trata-se de um aprendizado que ocorre ao longo de anos através de tradição oral e observação dos mais velhos no ritual. O ogã necessita de diversos tipos de conhecimento, não só em relação à música: é mais que 34
saber tocar os ritmos e cantar as cantigas, é o conhecimento sobre a liturgia, sobre os itans (histórias), sobre, por exemplo, saber o determinado momento de tocar um ritmo ou cantar certa cantiga. Ou seja, necessita ter repertório para conseguir traduzir, em forma de música, a história de cada orixá. Os ritmos e danças acompanham e expressam o caráter do orixá e revelam alguns acontecimentos em sua vida, conforme sua história. Além dos toques e danças, também existem as cantigas, que são cantadas em iorubá. Assim, a formação do ogã é necessariamente a formação de um percussionista engajado em seu ofício e que pode conseguir, portanto, dialogar com outras linguagens artísticas: sua função inclui também a criação a partir do contexto ritualístico, onde é possível pensar do ponto de vista dramatúrgico, com ordem de acontecimentos, clímax e entendimento de atmosfera a serem evidenciados. O trabalho do ogã é, sem dúvida, o de costurar, ser o fio que conduz o ritual no terreiro. Lá é por excelência o lugar do tambor, lá só se toca percussão. Tambores ritmados tem o poder de levar a estados de transe, necessários para a atividade que se desenvolve nas religiões de matriz africana e tantas outras. Neste álbum, a música popular de terreiro dialoga com a música erudita convidando à atmosfera ritual através de releituras artísticas das cantigas dos orixás. Saibam que tive total liberdade para colocar as frases completas do rum (tambor solista e que faz a relação direta com a dança) nas canções tão bem arranjadas a partir das cantigas completas, sem supressões em nome de tempos pré-estabelecidos ou convenções estilísticas. Preciso dizer que, particularmente, eu me sentia honrado o tempo todo, por fazer parte. O grupo tem de estrada mais anos do que eu tenho de vida. E as cantigas que propus foram integralmente respeitadas e por isso evidenciadas em seu potencial de encontro com a emoção que causa em quem as ouve: um convite à força da delicadeza. Como o mar. Para navegar, há que saber respeitá-lo.
Assim como o ogã-de-teatro se abre à experiência de transbordar a arte de tocar, cantar e orquestrar um ritual religioso do candomblé para diversos espaços artísticos, o ANIMA ruma ao Mar Anterior transbordando-se para o ritual anterior a si, a nós, num mar, esse sem fim e que traz as saudades que já sinto por ter vivido essa travessia. Ogã Leandro Perez A THEATRE-OGAN
The invitation to participate on this album translated a desire of Grupo ANIMA to present the potential for dialogue between the music of the Middle Ages and the drums of Ketu Candomblé. It should be said that percussion instruments are usually relegated to a supporting role in occidental music, functioning often as accompaniment. Not so in Mar Anterior. Recorders, harp, organetto, Brazilian traditional fiddle and viola de arame (Brazilian baroque guitar) dance with reverence before the ancestry recalled by the drums of the African matrix of religions. First, a clarification: who is responsible, above all, for the music in the Candomblé ritual? The so-called ogans: male authorities ranked below the priest/priestess and their direct auxiliaries in the hierarchy. There are several functions performed by the ogan, but what is referred to in this case is the ogan alabê, that is, the ogan musician/player. The truth is that my academic training, with a degree in Art-Theater, came after the position of ogan for a house of Candomblé/ Umbanda. It was this immersion in ritual that called me to conduct artistic research with music, dance and theater. My “conceptual” nickname is theater-ogan: a figure who moves with propriety and locus-of-speech through the centers of artistic research. My liturgical knowledge overflows into the gaze that the artistic language in question intends
to develop in a specific work — always with respect to the boundaries between art and religion. Deepening the understanding of " “theater-ogan” has become my academic and artistic research. In the case of the work of the ogan in Candomblé, it is an apprenticeship that occurs over the years through oral tradition and observation of the elders in the ritual. The ogan needs different kinds of knowledge, not only in relation to music: more than knowing how to play the rhythms and sing the songs, it is the knowledge about the liturgy and the itans (stories). It is about, for example, knowing the right moment to play a rhythm or sing a certain song. In other words, it’s necessary to have a repertoire to be able to translate into music the story of each Orisha. The rhythms and dances accompany and express the character of the Orisha and reveal some events in their lives, according to their histories. Besides the rhythms and dances, there are also the songs, which are sung in Yoruba. Thus, the formation of the ogan is necessarily the formation of a percussionist engaged in his craft and who can therefore dialogue with other artistic languages. His function also includes creation from the ritualistic context, where it is possible to think from the dramaturgical point of view, with order of events, climax and understanding of the atmosphere to be manifested. The work of the ogan is, undoubtedly, to stitch together, to be the thread that conducts the ritual at the terreiro. There is, par excellence, the place of the drum: there is only percussion. Rhythmic drums have the power to lead to trance states, necessary for the activity that develops in the religions of the African matrix and so many others. On this album, the popular music of the terreiro dialogues with erudite music, inviting us to the atmosphere of ritual through artistic reinterpretations of the songs of the Orishas. Be certain that I had total liberty to put the complete phrases of the rum (the large atabaque drum soloist with a direct relation 35
to the dance) in the songs, so well arranged based upon the complete cantigas, or ancient songs, without distortions based on preestablished tempos or stylistic conventions. I must say that, personally, I feel honored all the time to be a part of this project. The group has been together more years than I have lived. And the ancient songs (cantigas) I proposed were fully respected and therefore evidenced in their potential to encounter the emotion they can provoke in those who hear them: an invitation to the strength of delicacy. And like the sea, to navigate them, you have to know how to respect them.
Just as the theatre-ogan is open to the experience of guiding into various artistic spaces the overflowing of the art of playing, singing and orchestrating a CandomblÊ religious ritual, ANIMA sets the course for Mar Anterior to overflow with the ritual before them, before us, in a sea, an endless sea that brings the longing that I already feel for having experienced this crossing. Ogan Leandro Perezš
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Translated by Sean M. McIntyre.
Arquivo IEB - USP, Fundo Camargo Guarnieri, CG-caderneta-10, p. 4.
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MÚSICA ANTIGA E CANDOMBLÉ DIÁLOGOS RÍTMICOS Um encontro Em trabalhos anteriores o ANIMA já havia explorado a língua franca dos metros ternários e suas hemíolas, colocando em perspectiva canções de Hildegard von Bingen e toadas das Caixeiras do Divino da Casa Fanti-Ashanti. Depois, buscamos na cultura afro-maranhense do Tambor de Mina os 12 pulsos que permitiam travar um diálogo com a linguagem rítmica medieval europeia. Agora vamos mais longe na proposta de aproximação com culturas ancestrais afro-brasileiras, procurando cada vez mais desconstruir a clássica abordagem eurocentrada que reina no setor da Música Antiga. Parece-nos problemático que só seja “antigo” o que vem da Europa. Tendência intelectual que se desenha desde a época do tráfico pelo Atlântico, as civilizações africanas vêm sendo pouco consideradas a partir da perspectiva da História; quase sempre são objeto de abordagens antropológicas. O traço diacrítico da música historicamente informada é o documento paleomusical, o códice que preserva sons antigos que, de fato, não sabemos muito bem como executar na prática. Isso parece servir de justificativa à exclusão da África dos griôs, os mestres da palavra, como referência na construção do conhecimento sobre a história da música, não obstante a multiplicação dos estudos sobre o potencial historiográfico de suas tradições orais. A África evocada pela “música artística” e por seus estudiosos e analistas em imagens ideais ou exóticas, apenas tangenciada na partitura de algum lundum impresso em Lisboa, parece só existir enquanto ausência. A Música Antiga brasileira vem passando ao largo da imensidão de representações culturais africanas em nosso país, bem como das indígenas. Os Estudos de Folclore e a Etnomusicologia vêm, até os dias de hoje, preenchendo “lacunas” de uma 38
documentação musical histórica africana e diaspórica. Porém esses mundos musicais são bem maiores, mais vivos e mais complexos do que se pode vislumbrar nos estudos em curso. O vício paleodocumental cria alienação mesmo entre músicos “informados”, que acabam por não enxergar que os mestres detentores das culturas afro-brasileiras, livros vivos, continuam entre nós, como sempre estiveram. A luta pela descolonização e a simetrização entre os campos epistêmicos populares-tradicionais e os acadêmicos ou eruditos ainda está em seus começos, e já potencializa novos protagonismos entre depositários de saberes orais na construção conjunta do conhecimento. Uma iniciativa a ser acompanhada com atenção é o “Encontro de Saberes” organizado pelo etnomusicólogo José Jorge Carvalho na Universidade de Brasília, que hoje se ramifica para várias outras instituições congêneres. Pois então, nos meandros de experimentação do ANIMA como grupo de Música Antiga que assume lugar de fala brasileiro e entrecruzado, nós nos imbuímos da importância de uma interlocução, neste novo trabalho, com uma cultura musical das mais ricas entre as inumeráveis heranças negras no Brasil - a do candomblé ketu (ou queto). O processo de formação diaspórica do candomblé como instituição religiosa afrobrasileira se situa entre os séculos XVIII e XIX, porém a ancestralidade de suas matrizes na África se estende por pelo menos mil anos no passado. Trata-se, portanto, de Música Antiga iorubá e adjá - respectivamente, dos povos falantes do iorubá e do gbe (ewefon) - cujos representantes atuais localizamse na Nigéria e no Benin, África Ocidental. Na maior parte dos estados brasileiros há cultores dessa música, entre cantores, ritualistas, instrumentistas e conhecedores laicos da tradição artístico-espiritual dos candomblés em suas diversas nações, com competência suficiente para poder avaliar a qualidade das performances - nos termos em que John Blacking coloca a questão em seu imprescindível livro “How Musical is Man?”. Uma estatística de percentagem bem menor quantifica os conhecedores da música erudita
de tradição europeia no Brasil, número ainda mais reduzido em se tratando do setor da música com performance historicamente orientada, ou Música Antiga. Em termos sociais, o corpo de conhecimentos dos candomblés vem sendo produzido e reproduzido quase exclusivamente entre os grupos de culto, cujos membros pertencem em sua maioria às classes populares, havendo ainda pouca permeabilidade para outras classes no que toca à aquisição competente desse legado. No âmbito da intelectualidade acadêmica, sociólogos, antropólogos, etnomusicólogos e historiadores de extração mais abastada dedicam-se aos estudos sobre candomblé. E, de maneira crescente, incluemse nesse grupo os pesquisadores de dentro que logram vencer a barreira social e racial do acesso ao saber universitário - inclusive, ainda que de maneira incipiente, aos circuitos da música de concerto, que até recentemente excluía afrodescendentes, muito embora eles tenham sido maioria nesse setor entre os séculos XVIII e XIX. No campo intelectual-acadêmico, tanto na vertente da Musicologia Comparada do século XIX quanto na atual Etnomusicologia, a tradição musical africana e afrodescendente, inclusive a dos candomblés, vem sendo vertida e interpretada, com maior frequência, a partir de conceitos muitas vezes alheios às suas práxis, sendo premente a reformulação dos vieses teóricos sobre o assunto. Vide o hábito de transcrever os atabaques do candomblé em pauta musical, não obstante a elaboração de uma bem desenvolvida notação pelos ogãs. Trata-se, agora, de descolonizar o pensamento sobre África, tendo como referenciais os olhares e reflexões dos pesquisadores africanos e afrodescendentes radicados nos ambientes das músicas tradicionais. Observe-se que o conceito de “mestre da tradição” adotado pela Unesco, calcado no termo japonês sansei, indica a tríplice qualidade de conhecedor, professor e pesquisador. O pioneiro dos estudos africanos em música, o ganense Kwabena Nketia, falecido recentemente, aos 97 anos, distinguia entre
uma etnomusicologia europeia sobre África e uma musicologia africana, feita por e para africanos. Buscando romper o longo monopólio epistemológico ocidental, pensar África a partir de África tem sido, sobretudo após as independências dos países do continente, uma preocupação de intelectuais africanos e de não africanos militantes musicólogos, como quer Nketia, porque são também intérpretes, mestres e difusores engajados do repertório que representam perante sua sociedade. Enlaçados com o conhecimento das universidades encontram-se, igualmente, os intérpretes da Música Antiga, acrescidos da competência de musicólogos e historiadores da música europeia e colonial do passado e suas interpretações históricas. Foi no interior desse nicho sociocultural, ao qual todos os músicos do ANIMA se ligam de alguma maneira, que se abriu para nós a possibilidade de aproximação entre os dois repertórios. O jovem ogã paulistano Leandro Perez cursou Teatro na UNESP e, apresentado pela pesquisadora em dança popular Marianna Monteiro, aceitou o convite para juntar-se ao ANIMA na qualidade de mestre-residente de música do candomblé ketu. Ogã Leandro é o livro vivo que consultamos, cujos conteúdos vêm sendo inscritos pelos anos de prática quase cotidiana nos rituais da Umbanda e do Candomblé. Com ele pudemos conhecer e aprender toques, suas dobras e floreios, lugares em que o tambor fala mais alto. E também imensidão de cantigas, danças e histórias de orixás. No mesmo passo em que o ogã ia tendo seu primeiro contato com o cancioneiro medieval e seus modos interpretativos. Nessa relação de troca, buscamos agir com cuidado e desapego. Atentos no detectar e evitar, na medida do possível, atitudes colonizadas e colonizantes - algumas fundamente entranhadas, como o pressuposto de poder explicar todas as culturas a partir da sua. Tratava-se de colocar em prática a máxima estampada em grandes letras na Praça do Relógio da Universidade de São Paulo: “No universo da cultura, o centro está em 39
toda parte”.
da Colônia e do Império, empenhadas na construção de um ideário de barbárie caracterizador dos povos escravizados.
Sonoridades pretas no Brasil Os sons que embalavam a vida na terra natal, de papel social central nas civilizações africanas, são reconfigurados no ambiente hostil da diáspora, a partir do lembrar coletivo de grupos de indivíduos com afinidades culturais compartilhando espaços geográficos. Memórias em torno da origem vão sendo reorganizadas no novo contexto, na medida em que os africanos identificam tais afinidades no campo da língua, da religião, da organização social. Na diáspora, as denominações de procedência dos africanos, ou nações, são moduladas pelas clivagens operadas pela própria sociedade escravista. Surgem formulações identitárias de caráter mais abrangente, diferentes das que havia na África, cujo referente as mais das vezes é meta-étnico, remetendo a região linguística ou a porto de embarque na África, e não a uma autodesignação. A nostalgia de voltar a ser constrói e reconstrói identidades congo, angola, benguela, cabinda, moçambique entre bantos centro-africanos e nagô, ketu, ijexá, mina, jeje-mahin, hauçá, muçurumim entre oeste-africanos. As músicas africanas no Brasil cobrem diversos aspectos de uma vida social em reconstrução, evidenciando coleções seletivas de repertórios étnicos. São cantigas para convocar divindades e para realizar curas espirituais, cantos coletivos de aviso e de trabalho em mutirão, cantos de crônica social, política e histórica, cantos para o jogo corporal, pontos para louvações, desafios, adivinhas e provérbios, cânticos para conduzir cortejos afro-católicos e outras músicas-danças de festa e fé. Traços distintivos das musicalidades africanas, como a alta hierarquia dos tambores e de seus conjuntos, as grandes coletividades participantes dos eventos musicais, as relações de polirritmia entre instrumentos e vozes, a aguda inteligência corporal são alguns dos aspectos julgados com um misto de admiração, medo e veemente reprovação pelos cronistas que representavam a moralidade e o gosto (ou o gosto pela moralidade) das classes senhoriais 40
Instrumentos musicais africanos executados nas ruas são cedo documentados pela iconografia, não raro duetando com congêneres europeus. Nessas gravuras vemos irmanados pela pobreza negros ao ganho1 cativos ou libertos, caboclos, pardos e brancos humildes dos centros urbanos, buscando parceria musical. Certamente atentos para aquilo que os aproximava, as similaridades estruturais existentes entre melodias e ritmos, formas de cantar e dançar, para além da oposição dura entre legados culturais. É nesses encontros multiétnicos das classes mais baixas da sociedade nos centros urbanos que se configura o lundu afro-ibero-brasileiro, reconhecido como forma germinal da nossa música popular. Como observa Gerhard Kubik em relação às escalas musicais e aos intervalos harmônicos coincidentes nas culturas musicais angolana e portuguesa, o processo transcultural entre Brasil diaspórico e África Central termina por engendrar reforço mútuo daquelas estruturas reconhecidas como familiares nas musicalidades em contato, propiciando franjas de interpenetração. Em paralelo, houve seletividade em torno daqueles aspectos diferenciais que carecem, para se firmarem, de uma massa crítica de etnicidade. As escalas de cinco notas oeste-africanas, tão diferentes das de sete, familiares a centroafricanos e a portugueses (embora utilizando intervalos diferentes), mantiveram-se apenas nos repertórios das roças, ilês ou casas de culto jeje-nagô que, a partir do século XIX, despontam nos bairros mais afastados de Salvador, Recife, São Luís, assim como da distante Rio Grande. Hoje, aspectos diferenciais da música jeje-nagô como as escalas pentatônicas, o canto responsorial uníssono e os ritmos assimétricos de doze pulsos podem ser ouvidos no Candomblé (BA e outros estados), Xangô (PE), Escravos ao ganho ou ganhadores: modalidade de escravidão urbana em que os escravizados prestavam diversos serviços (vendedores, artesãos, barbeiros etc) dividindo os ganhos com seus proprietários. 1
Xambá (PE), Tambor de Mina (MA), Babaçuê (PA), Batuque (RS). Raramente a musicalidade dos candomblés jeje-nagô ultrapassa os limites sociais da religião, assinala o etnomusicólogo Tiago de Oliveira Pinto. Um exemplo dessa música fora de seu espaço religioso são os afoxés, tidos como “candomblés de rua”, e os blocos afros do carnaval de Salvador. É consenso entre pesquisadores que os musicistas dos templos de Irmandades católicas de Minas Gerais pelo século XVIII, fossem elas de negros ou não, eram em sua maioria descendentes de africanos escravizados ou libertos, quase sempre denominados “mulatos” nos livros sobre história da música brasileira. Porém ainda não se sabe, a partir da documentação disponível, sobre um possível trânsito desses coralistas, instrumentistas, mestres de capela entre os dois grandes conjuntos de musicalidades - africano e europeu. A documentação de uma bimusicalidade entre afro-brasileiros é problemática, certamente por conter partes ocultadas pelo ódio cultural da historiografia oficial, ou dissimuladas pela discrição com que esses intermediários socioculturais, mestiços em sua maioria, deviam praticar as tradições de seus pais e avós, enredados que estavam numa escala de ascensão que pressupunha o embranquecimento. Além do resguardo de segredos de ordem iniciática, graças ao qual o ouro preto pôde até hoje preservar e reinstaurar seu fulgor. Uma leitura de documentos que exprimem o pensamento oficial da Colônia e do Império traz à tona sentimentos de ambiguidade. Os cronistas pouco ou nunca se aproximam fisicamente dos eventos musicais afrodescendentes que pretendem descrever, cultivando a dúvida: seria aquilo devoção, diversão, perversão? Suas narrativas, quase sempre levianas do ponto de vista etnográfico, mostram-se severas no julgamento moral das músicas-danças dos pretos, apontando-as como pagãs, indecentes e atentatórias à segurança pública. Crivo ideológico tríplice que as divide em honestas (congadas) e desonestas (batuques
e candomblés). Aos eventos considerados desonestos, as forças policiais e militares moveram implacável perseguição, em especial aos cultos dos candomblés, até os anos 1970. Tidos como redutos de paganismo, as casas de candomblé ou roças sempre foram temidas, na realidade, por representarem formas superiores de organização social que, ao fortalecer uma identidade grupal entre africanos e afrodescendentes, multiplicam e potencializam a presença social e política dos negros no Brasil. A fita atualmente em cartaz traz “o mesmo roteiro em outro cenário”, como versa o rapper Ba Kimbuta, mudando apenas a denominação religiosa dos perseguidores. A questão central é que os pregadores coloniais/imperiais da moral e dos bons costumes se mostravam deveras inquietos com a crescente popularidade que as musicalidades pretas amealhavam entre diferentes segmentos da população rural e urbana. Um embasbacado viajante alemão relata uma festa em fazenda de Alagoas onde até as sinhazinhas se aproximavam da roda dos negros, com visível satisfação. Caídas no gosto popular, as tradições culturais afrodescendentes vão sendo apropriadas por uma elite branca sequiosa por se reconhecer “brasileira”, carregando elementos de africanidade, e alguns de seus atores, para a casa grande, os teatros e ambientes burgueses. Quase sempre mediante depuração de traços percussivos. Desse ambiente de animação com a cultura do “outro”, mas com permanente resguardo das distâncias sociorraciais, vão emergir “unanimidades nacionais” como o maxixe, o samba e o rap, sempre enlaçadas ao desenvolvimento da música como indústria de entretenimento, no quadro da consolidação de um sistema de produção capitalista. Com raízes bem fincadas, lembremos justamente, na acumulação primitiva advinda do escravismo do Atlântico. Toque de Nação O candomblé desenvolve-se como integração de cultos originários de diferentes regiões da África num único corpus religioso, 41
mantendo-se reconhecida por seus adeptos a procedência etnocultural do conjunto de tradições associado a cada uma das divindades do panteão. A vivência cotidiana do sagrado dependeu tanto da longevidade quanto da inventividade no caso das tradições religiosas de comunidades humanas deportadas pelo tráfico Atlântico. O esforço contínuo de recomposição de um patrimônio espiritual em vão amordaçado sempre foi ponto de honra para pretos de todas as nações. No Oitocentos, em cidades como Salvador, Recife ou São Luís, a escravidão urbana ao ganho abre a possibilidade de os escravizados comerciantes e carregadores circularem pelas ruas, tendo oportunidade de se reunir segundo a procedência étnica ou nação. Cada grupo identitário africano tinha seus pontos de encontro geograficamente demarcados, o que facilitava articulações profissionais, religiosas e políticas. Entre os escravizados urbanos como os de Salvador, era grande o prestígio cultural dos nagôs e dos jejes, organizadores das primeiras casas de culto com modelo de adoração coletiva de divindades. Essas duas grandes nações já se relacionavam de longa data na África, influenciando-se reciprocamente nos campos religioso, linguístico e cultural; tal proximidade por vezes resultou em disputa territorial e conflito militar, sendo os prisioneiros de ambos os lados vendidos aos tumbeiros. Os voduns e orixás, ancestrais divinizados cultuados nos candomblés jeje e nagô, ligavam-se historicamente (como personagens fundadores) e espiritualmente (como divindades tutelares) a reinos ou cidades-estado iorubá e adjá: Ifé, Oyó, Ketu, Ijexá, Daomé, Savalu. Além da contribuição no campo da religião e da cultura, os iorubás ou nagôs eram politicamente muito ativos na oposição ao regime escravista, tendo sido os grandes protagonistas da Revolta dos Malês em Salvador (1835). No candomblé da nação ketu, considerado por pesquisadores como Vivaldo da Costa Lima como súmula de representação cultural do grande grupo jeje-nagô ou sudanês, há toques de atabaques que recebem nomes de lugares ou povos como savalu, toque de ketu, ijexá. Enquanto sinaliza ancestralidades comuns, a 42
noção de nação traduz-se em diversidade de performances nas festas públicas aos Orixás, Voduns, Inquices e Encantados realizadas nas casas de culto. Não se esquece a hagiografia das divindades, ligada ao povo/lugar de origem, a qual é evocada por repertórios e estilos musicais e coreográficos particulares. Motores inquestionáveis dos cultos, os toques dos três atabaques e do idiofone metálico funcionam como emblemas sonoros de linhagem, situando o orixá no ambiente da cultura musical que lhe é própria. Narrativas tamboriladas A importância dada ao tambor na visão de mundo africana tem sido antagonizada, no processo de formação das musicalidades diaspóricas, pela depreciação desses mesmos instrumentos pelos colonizadores brancoeuropeus e seus seguidores, que os empurram para a cozinha. A música europeia tem os instrumentos de percussão no chão da hierarquia, com as cordas ocupando o topo. A aversão da música savante ao tambor ligase sem dúvida à sua dimensão de instigador do corpo, esse mesmo corpo que na África é sacralizado e glorificado. Na Europa a música artística se torna um deleite puramente mental e até suítes de dança passam a ser feitas para serem tocadas e ouvidas em imobilidade. O tambor é desclassificado e banido das orquestras por séculos. Ao recorrermos ao cancioneiro de candomblé grafado por Camargo Guarnieri em Salvador, nós nos deparamos com uma falha comum aos registradores do popular musical brasileiro: a pouca preocupação, até por desconhecimento da práxis musical afro-brasileira, com a transcrição do conjunto de tambores e do pé de dança. De qualquer forma, é vício persistente o de não reconhecer como música a orquestra de percussão e a rítmica do corpo em movimento em suas intrincadas formas de inteiração. Mesmo nosso querido Mário de Andrade anotou apenas melodias em suas transcrições. O compositor e etnomusicólogo Guerra-Peixe foi pioneiro em transcrever em partitura a trama percussiva dos maracatus de Recife, isso já no fim dos anos 40, permitindo
desvelar aspectos até então não estudados da riqueza de procedimentos polirrítmicos africanos presentes em grupos populares brasileiros.
que chama a atenção quando comparada à música ocidental, em que os instrumentos solistas normalmente ocupam as frequências mais altas (violino, flauta).
Segundo o musicólogo marfinense Niangoran Bouah, o papel central atribuído ao tambor em culturas musicais africanas está diretamente ligado a concepções civilizatórias em torno da força vital, que relacionam o instrumento ao acúmulo de uma grande potência advinda dos três Reinos da natureza - vegetal, a madeira; animal, a membrana; mineral, os aros e cravos de metal. Ser de energia plena, o tambor detém poder de convocar sociedades humanas e conectar com mundos espirituais. Frequentemente os tambores figuram como regalia dos soberanos africanos, simbolizando o poder do Estado, muito embora todas as categorias de instrumentos estejam bem representadas nas culturas musicais do continente.
Os toques do tambor grande são articuladores de identidades míticas. Além de instrumentista impecável, o ogã alabê tem de ser um consumado conhecedor do ritual, do repertório cantado, das danças e seus movimentos específicos, que remetem a características comportamentais e a passagens da história sagrada ancestral dos quinze principais orixás cultuados no candomblé. Além disso, tem de dominar o enredo, as particularidades do orixá ou santo de cada um dos filhos do seu ebé - comunidade de culto.
No candomblé, os três atabaques são sagrados e sua consagração e manutenção é objeto de ritos específicos. Os instrumentos ocupam o altar dos atabaques, lugar elevado e de destaque dentro do espaço do terreiro. São cumprimentados por todos os que entram e saem do barracão. No plano musical, mais que suporte rítmico, a linguagem tamborilada do candomblé é de natureza narrativa, compondo uma verdadeira rapsódia de movimentos de dança. Esse papel protagonista coloca o alabê, intérprete do tambor solista rum (ou hun) e geralmente cantor principal do xirê, numa posição de grande prestígio, só igualado pelas ialorixás e babalorixás, líderes do culto. Afinal, no candomblé nada se faz sem música, ou seja, sem ogãs alabês, os músicos rituais. A interação fluente entre as configurações rítmicas e timbrísticas do tambor-mestre africano e as sequências coreográficas dos dançantes é algo que sempre intrigou e fascinou músicos e pesquisadores ocidentais. Corpo plasmado em som plasmado em corpo, ato de performance com protagonismos múltiplos e mútuos. O solo no registro grave é outro aspecto diferencial da música africana
A coreografia sagrada é marcada musicalmente pelos padrões do atabaque rum, configurados a partir de um amplo repertório de golpes desferidos em diferentes regiões do couro ou mesmo na madeira do tambor, mediante o uso de uma baqueta na mão direita e com a mão esquerda livre. O ciclo básico de alinhamento no tempo, denominado timeline pela Etnomusicologia africanista, é dado pelo metal do gã (sino de uma campana) ou agogô (sino de duas campanas), orientando a sincronia do conjunto. Completando a orquestra, o rumpi, atabaque médio, e o lé, o pequeno, são tambores de suporte que, executados com baquetas finas e flexíveis, os aguidavi, produzem padrões contínuos de ciclo curto, destinados a manter o andamento dos toques pela firmeza rítmica. Cada cântico tem seu toque específico. Há toques privativos de determinados orixás; há, ainda, os destinados a anunciar etapas do ritual. Um toque define-se musicalmente pelo ciclo rítmico da campânula de metal (timeline), reforçado no padrão do rumpi e do lé, pelo andamento do conjunto e pela marcação ou dobra do rum, tradicionalmente convencionada e em relação direta com a movimentação corporal. A escolha dos padrões na interpretação do rum depende circunstancialmente da performance de uma gesta coreografada - quando, por quanto tempo e quais sequências da história sagrada 43
do orixá serão executadas, durante o ritual do xirê, pela roda de dança ou pelo orixá que dá rum incorporado em seu sacerdote, evoluindo solisticamente pelo salão e frente aos atabaques. Aí, os padrões rítmicos da orquestra ritual tornam-se imediatamente tributários do elã incomensurável que é a força do orixá em terra. O padrão caracterizador do toque é chamado de base. Os floreios são variações dos motivos da base que o músico cria ou aciona da tradição, demonstrando habilidade e conhecimento; a dobra é o momento de desenvolvimento musical mais profundo do toque do rum, associado a sequências narrativas dançadas. Depois de executar floreios ou dobras, o ogã alabê (músico do rum) deve voltar à base, junto com o rumpi e o lé. Há motivos que introduzem o toque, indicam transição para a dobra ou anunciam sua finalização, com o intuito de prevenir músicos, cantores e bailarinos. Do trabalho composicional motívico em perspectiva polirrítmica surgem peças de grande complexidade, que se produzem em nome de um corpus de narrativas sagradas vertidas em código múltiplo. Na arte dos ogãs, a composição musical transcorre nos limites de codificação destas gestas nos cânones tradicionais, em confluência com a invenção própria a cada intérprete. O alabê, a partir de vivências e competências adquiridas, se esmera na criação de floreios originais e ousados, emprestando sua força estética pessoal à infraestrutura ancestral do aborixá - o louvor ao orixá. Por obra do arrojo de seus floreios e dobras o ogã será lembrado na sua comunidade e fortalecido pelos orixás. A relação musical colaborativa entre pessoa e coletividade, viventes e ancestralidade, pode ser inferida na noção filosófica pan-africana ubuntu - eu sou porque nós somos. Aditivo versus divisivo O etnomusicólogo ganense Kofi Agawu, herdeiro do pensamento de Kwabena Nketia, debruçou-se sobre a questão dos 44
ciclos rítmicos oeste-africanos de timeline e de suas leituras nas perspectivas aditiva e divisiva. O primeiro princípio seria próprio da música africana, enquanto o segundo, da música europeia. O que Agawu justamente critica nos etnomusicólogos africanistas é o hábito de enquadrar as culturas musicais do continente, categoricamente, na legenda de uma percepção aditiva do ritmo. Segundo esse autor, não há formas de se aquilatar com precisão se a atitude de um músico africano tradicional durante a performance é aditiva ou divisiva. Seria mais adequado pensar numa alternância de momentos, sobretudo na práxis tamborilada, em que a percepção psicossensorial da música deslize deste para aquele princípio de organização segundo as demandas da trama polirrítmica. Seja como for, a familiaridade com ambos os repertórios revela que um importante ponto de correlação entre música antiga e candomblé é a concepção aditiva, em que o ritmo se constrói, na linha do tempo, a partir da soma de agrupamentos pares e ímpares de pulsos básicos - as menores unidades de medida do tempo musical (a “pancada do ganzá”). O tempo pensado como tributário dos padrões da fala, do texto poético, traduz-se naturalmente como acumulação de unidades pequenas (“compasso unário” de Mário de Andrade). As sequências rítmicas da grande tradição musical do canto de igreja, desde a alta Idade Média, assim como a do canto trovadoresco, mostram apego à estrutura prosódica do ritmo melódico. Essa rítmica é recorrente também, na cantoria nordestina; o gênero martelo agalopado tem frases de 11 pulsos agrupados em 2+3+2+2+2 (como no verso “Tu não presta pra ser um grosador”). Como vemos nesse exemplo, o ritmo da fala resulta da soma de agrupamentos pares e ímpares de sílabas. Pode-se dizer que, desde a baixa Idade Média, o tempo musical toma a dianteira sobre o prosódico e, a partir do Renascimento, a poesia vai-se submetendo à medida do compasso musical, tanto quanto ao ritmo criado pelo uso crescente da harmonia, com seus pontos de tensão e de repouso. A
perspectiva rítmica dita divisiva torna-se dominante na música europeia a partir do desenvolvimento da escrita mensural; ela baliza a medida do discurso musical a partir de unidades temporais, os tactus, tempos ou batidas (beats) que se dividem em unidades menores na razão de 1:2 (compassos simples) e de 1:3 (compassos compostos). Segundo essa lógica, as configurações rítmicas que não podem ser divididas em metades iguais são consideradas assimétricas. Mesmo os padrões pares, como o do baião, com 8 pulsos (3+3+2) ou do samba, com 16 (2+2+3+2+2+2+3). Grande parte da rítmica do candomblé ketu é baseada em padrões assimétricos. O mais utilizado é um ciclo com 12 pulsos básicos denominado vassi, presente em vários toques: mojuba, lagunló, kitipô, oguêle, abiamã, alujá, ibi etc. A Etnomusicologia nomeou esse padrão western african standard pattern em virtude de sua recorrência nas culturas musicais da África Ocidental e nas afro-americanas. Trata-se de uma frase de sete pancadas percutidas no agogô e emulada pelos tambores de suporte rumpi e lé com a seguinte configuração (x = pulso sonoro . = pulso silencioso com igual valor):
tempo. O pensamento rítmico baseado em ciclos temporais de diferentes tamanhos em superposição é princípio organizador na interação polirrítmica da orquestra dos candomblés, assim como em outras culturas musicais de matriz africana. As estruturas de tempo circulares, em que final e começo se confundem, podem ser escandidas em diferentes agrupamentos pelos tambores binários ou ternários -, passando de uma a outra repartição de maneira fluente. Por exemplo, o vassi, nosso ciclo de 12 pulsos, pode ser entendido musicalmente como 4 grupos de 3, 3 grupos de 4 ou 2 grupos de 6 pulsos. Tal conceptualização difere da noção ocidental-europeia de compasso, onde uma fórmula no início da partitura preestabelece um metro hierarquicamente principal, a subdivisão dos tempos em dois ou três e uma acentuação fixa - os tempos fortes. Os ciclos do candomblé não necessitam de tempos acentuados ou "fortes" para sinalizar suas rearticulações. A sequência correta para se tocar os sete golpes do vassi no gã é: x. x.xx.x.x.x
x.x.xx.x.x.x
7-1-23-4-5-6
Em termos da sucessão e agrupamentos pares e ímpares de pulsos, consiste em:
Trata-se de uma fórmula mnemônica que indica o início do ciclo pela última pancada do gã, a de número 7 - portal para a continuidade, não para o recomeço. Um ciclo de timeline como a base vassi pode ser entendido como “iniciando” em diferentes fases de sua rotação, de acordo com os pontos de articulação com os outros tambores, o canto e a dança. Além da já mencionada 7-1, podemos ter
2+3+2+2+3 Ou seja, 5+7, configuração considerada assimétrica a partir do conceito divisivo ocidental. Os ciclos rítmicos utilizando 12 pulsos, como os vassi, ou 6 pulsos, como o batá, o bravum e o jinká, são de presença majoritária no candomblé de ketu. O número 12 é muito fértil, pois possui o maior potencial de divisões, e a sensação rítmica de um vassi pode mudar da água para o vinho conforme se desloca a acentuação no rum. Ciclos Ciclo é uma sequência rítmica isócrona, ou seja, reiterada em intervalos regulares de
1x. xx. x.x.xx. 3-4-5-67-1-2 x.x.x. xx. x.x etc. 45
23-4-5-67-
A sobreposição de ciclos com diferentes extensões - por exemplo, os do gã, rumpi e lé, mais curtos, e os do rum, mais longos - cria pontos de tensão na relação de simultaneidade enquanto não retorna, na linha do tempo, o gancho de sincronia inicial entre eles. Esses momentos de “não coincidência” muitas vezes parecem soar “fora do tempo” para ouvidos não afeitos, sem o apoio recorrente de um tempo forte de compasso. A esse estranhamento soma-se o das frequentes acentuações do tambor-mestre incidindo no contrapasso das articulações sonoras dos tambores de sustentação fazendo, dos tempos “fracos”, justamente, a sua força. Diálogos possíveis Pensando num ajustamento estético que levasse em consideração as similaridades das linguagens musicais do candomblé e da música antiga, nós nos preocupamos em resguardar a fala destacada que os atabaques rum, rumpi e lé (este, omitido em razão da formação do grupo) possuem na orquestra ritual. Bem mais que meros acompanhantes, os tambores aparecem como partícipes ativos na formulação dos motivos e temas do Mar Anterior. As sequências tamboriladas da tradição do culto aos orixás por vezes sobressaem na trama musical, firmando um modelo interpretativo em que a percussão assume dimensão narrativa e protagonista. Confirmando essa escolha em nossos arranjos, observamos o princípio de afinar os tambores rum e rumpi com os demais instrumentos harpa, viola, rabecas e flautas. A utilização dos tambores como referência dos centros tonais da música cantada é frequente na práxis vocal afro-brasileira, contrariando a classificação costumeira desses instrumentos como “sem altura definida”. Em primeiro lugar, escolhemos os toques de candomblé que propiciassem diálogo com as peças do repertório. No caso das cantigas de candomblé, o toque já está definido de antemão por um vínculo tradicional. Numas poucas transcrições de Camargo Guarnieri estava anotado o padrão básico do toque, 46
como em “Iemanjá Otô”, cujo registro de percussão foi por nós identificado como o awô, com 8 pulsos básicos. Para as outras cantigas da recolha de 1940, quase todas ainda muito populares nos candomblés atuais, o toque adequado foi apontado pelo nosso ogã residente: o mojuba na cantiga de Exu “Ibarabô agô mojuba”; o kitipô e o lagunló em “Oxumarê lelê malê”, awô novamente em “Ofuru lorerê”, para Oxalá etc. Já para o cancioneiro de matriz medieval europeia ou o popular brasileiro, optamos por toques que tivessem afinidades métricas, rítmicas e de andamento com as peças. Os metros em 12 pulsos (ou subdivisões), já dissemos, representam um importante ponto de aproximação entre candomblé, música antiga europeia e popular-tradicional brasileira, permitindo o trânsito entre abordagens aditivas e divisivas do ritmo. Na Idade Média, os metros ternários (12, 6, 3) eram os preferidos na Europa, e a sua designação perfectum exprimia a divina perfeição da Trindade, enquanto os binários eram imperfectum. Em culturas musicais populares brasileiras ligadas a uma ancestralidade medieval europeia, a exemplo dos cultos ao Divino Espírito Santo, toques de tambor como o das caixeiras do Divino do Maranhão trazem ecos dessa repartição religiosa do ritmo no predomínio de metros perfectum em 6 ou 12 pulsos (6/8, 12/8, 3/4). Não é de estranhar que as guardiãs históricas dessa tradição de raiz portuguesa tenham sido, naquele estado, as mulheres negras adeptas do culto afro-brasileiro do Tambor de Mina, o candomblé maranhense. Associada ao uso das divisões ternárias está a presença das hemíolas: um padrão rítmico em 6 pulsos (ou múltiplos de 6) que pode ser organizado como 2+2+2 (3X2) ou 3+3 (2X3). Sequência entre agrupamentos binários e ternários - por isso designada como polirritmia linear em etnomusicologia - a hemíola está fartamente representada tanto na rítmica do candomblé ketu brasileiro quanto no da música medieval europeia. Procuramos respeitar a ausência de acentuações ou tempos fortes, procedimento estilístico sempre bem-
vindo na interpretação de ambos os universos musicais. Do ponto de vista da interação rítmica, os ciclos do candomblé ketu foram acionados em diferentes tipos de relação com o tempo mais ou menos medido das músicas antigas europeias ou do cancioneiro popular brasileiro. Buscando sempre concerto, ora por aproximação, ora por contraste. Na música ocidental os ciclos estão mais ligados à forma que ao ritmo (ou melhor, ao ritmo da forma), manifestando-se na recorrência dos temas musicais e seus desenvolvimentos; a medida do tempo é mantida obedecendose ao compasso e andamento prescritos. Na música afro-brasileira são os ciclos rítmicos que organizam o tempo musical pelos seus regimes de revolução. Um dos expedientes que utilizamos para encetar diálogo entre ciclo e compasso foi o de transformar o ciclo africano em ostinato subjazendo imutável à medida do compasso. Procedimento caro ao compositor e etnomusicólogo Béla Bartók (1881/1945), interessado no potencial composicional das musicalidades ancestrais da Europa Oriental e seus compassos assimétricos. Uma importante referência nos arranjos do ANIMA foi o músico, professor e compositor José Eduardo Gramani, do qual alguns de nós fomos alunos, que marcou fortemente o pensamento rítmico do grupo com suas composições e métodos didáticos para a independência rítmica, utilizando padrões mensurados em contraposição a ostinatos. Nosso rabequista e arranjador principal, Luiz Fiaminghi, é um grande estudioso da obra de Gramani. Em outras passagens do nosso CD, procuramos uma relação direta de equivalência métrica entre as partes vocais e instrumentais, fazendo o compasso igual ao ciclo de timeline. Mesmo assim, quando o ouvido se compraz em identificar um comportamento estável, o atabaque solista produz sequências de acentuações nos contratempos, induzindo à impressão de deslocamento em relação ao beat. O que soa como articulação deslocada ou síncope é na verdade uma resultante aural
da polirritmia (polifonia rítmica), ou seja, execução simultânea de padrões rítmicos com medida e configuração diferenciadas, cada qual guardando identidade própria. Na execução de um vassi (12 pulsos) o alabê solista pode passar de uma divisão ternária para outra binária num piscar de olhos. Essa estética da instabilidade, relacionada à democracia dos metros na trama rítmica, conecta-se a princípios africanos de valorização das dinâmicas vitais, destacando seu aspecto processual, multidiverso e de permanente movimento. O muito estável equivale ao inerte. Há momentos em que a narrativa musical miticamente informada do rum, vertendo em som alguma passagem dançada do orixá, assume a dianteira na textura do arranjo, inclusive em solos de percussão. Em outros, busca entrelaçamento ou responde em complementaridade aos motivos rítmicos das canções de dom Dinis, através da execução de floreios estrategicamente colocados como convém ao ogã sempre atento ao seu contexto musical. Aliás, a ornamentação e a variação, procedimentos análogos aos floreios percussivos do candomblé, são largamente utilizadas na música ocidental da Idade Média ao Barroco. No plano da forma, um aspecto diferencial da música dos candomblés considerado nos arranjos foi o princípio responsorial africano. Na maior parte dos cantos afro-brasileiros, o cantor principal tira a música e o coro responde, ou seja, há alternância entre solista e coro, por vezes entoando partes complementares da peça. Nos cancioneiros medievais como os de Dom Dinis ou de Afonso X é comum a forma estrofe-refrão, na qual este último não é necessariamente entoado por um coro. Em alguns dos arranjos de Mar Anterior o responso coral é realizado pela flauta ou está ausente; nesse caso, a reiteração melódico/textual com valor de canto ostinato é assimilado ao ground renascentista e barroco - baixo ostinato sobre o qual se realizam sucessivas variações. Nas cantigas “Oxumarê Lelê Malê” e “Iemanjá Sóba”, em versão mais ortodoxamente candomblecista, o responso está presente 47
em sua forma habitual: na pergunta o solista faz ornamentações e acréscimos textuais, enquanto a resposta coral é imutável. No arranjo da cantiga “Ibarabô”, apresentamos primeiro uma versão contemporânea do nosso ogã alabê, formado na tradição do paulistano Axé Batistini, do saudoso Tata Pérsio de Xangô Airá – herdeiro espiritual e musical dos históricos terreiros baianos Axé Oxumarê e Gantois – e, na sequência, cantada pelo barítono, uma versão histórica, grafada por Béhague, da grande ialorixá Mãe Menininha do Gantois. Paulo Dias
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EARTH MUSIC AND CANDOMBLÉ RHYTHMIC DIALOGUES
An encounter In previous works, ANIMA has explored the lingua franca of triple meter and its hemiolas, putting in perspective songs of Hildegard von Bingen and Casa Fanti-Ashanti Caixeiras do Divino. Later, we found in the AfroMaranhense culture of Tambor de Mina, the 12 pulses which allowed a dialogue with Medieval European rhythmic language. Now we further the proposal to draw near Afro-Brazilian ancestral cultures, seeking to deconstruct more and more the classic Eurocentric approach which reigns in the Early Music field. It seems problematic that only that which should be “ancient” is what comes from Europe. An intellectual tendency which can be traced back to the Atlantic trafficking era, History’s perspective has slighted African civilizations. They are almost always the object of anthropological approaches. The diacritical mark of historically informed music is the paleomusical document — the codex that preserves ancient sounds which, in fact, we do not know well how to execute in practice. This seems to serve as justification to exclude the Africa of the griots, masters of the word, as a reference in the construction of knowledge of music history — notwithstanding the multiplication of studies on the historiographical potential of their oral tradition. The Africa evoked by “artistic music” and by its scholars and analysts in ideal or exotic images, merely tangentialized on the score of some lundum printed in Lisbon, seems to only exist as absence. Early Brazilian Music has been bypassing the immensity of African, as well as indigenous, cultural representations in our country. Folklore and Ethnomusicology Studies have been, till today, filling “gaps” in documentation of African and diasporic musical history. However these musical
worlds are much greater, much more alive and more complex than can be envisioned in the current study. The paleodocumentary vice creates alienation even among “informed” musicians, who end up not seeing that the master keepers of Afro-Brazilian cultures, living books, continue among us — as they always have. The struggle to decolonize and symmetrize is still in the initial stages between the folkloric-traditional and the academic or erudite epistemic fields, and already boosts new protagonism among oral wisdom depositories in joint knowledge construction. An initiative to be followed closely is the “Wisdom Meeting” organized by the ethnomusicologist José Jorge Carvalho at the University of Brasília — which nowadays branches out to many other similar institutions. So, in the experimentation meanderings of ANIMA as an Early Music group which takes up the intersectional Brazilian standpoint of speech, we imbue ourselves with the importance of an interlocution, in this new work, with one of the richest musical cultures among the innumerable Black heritages in Brazil — that of Ketu (or Queto) Candomblé. The diasporic formation process of Candomblé as an Afro-Brazilian religious institution falls in the 18th and 19th centuries, but the ancestry of its roots in Africa extends for at least a thousand years in the past. This means, therefore, Ancient Yoruba and Aja Music — respectively, speakers of Yoruba and Gbe (Ewe-Fon) — whose current representatives are located in Nigeria and Benin, West Africa. There are cultivators of this music in most Brazilian states: singers, ritualists, instrumentalists and “secular” experts of artistic-spiritual traditions of Candomblé in its many nations, with sufficient competency to evaluate performance quality — in the terms John Blacking poses the question in his indispensable book How Musical is Man?. One statistic of a much lower percentage quantifies the experts of erudite music from the European tradition in Brazil, a number even further reduced in considering the sector of music with performance historically oriented, or Ancient Music. 49
In social terms, the body of knowledge of Candomblés has been produced and reproduced almost exclusively among the worship service groups. The majority of those members belong to the working class, still having little permeability for the other classes in furthering competent acquisition of this heritage. In the academic-intellectual sphere, sociologists, anthropologist, ethnomusicologist and historians of higher distinction dedicate themselves to the study of Candomblé. And, in growing fashion, insiders are included in this group which contrives to overcome the social and racial barriers to university knowledge — including, if still in incipient form, to the concert music circuit. Until recently, this circuit excluded Afro-descendants — even though they had been the majority of this sector in the 18th and 19th centuries. In the academic-intellectual field (as much in the 19th-century Comparative Musicology area as in current Ethnomusicology), the African and Afro-descendant musical tradition (including that of Candomblés) has been shared and interpreted, with greater frequency, based on concepts many times unrelated to its praxis — pressing the reformulation of theoretical biases on the subject. Consider the habit of transcribing the Candomblé atabaques in musical score, notwithstanding the construction of welldeveloped notation by the ogans. Now the mindset on Africa must be decolonized, with the views and reflections of African and Afrodescendant researchers rooted in traditional music’s setting as references. Note that the concept of “master of tradition” adopted by UNESCO (based on the Japanese term sansei) suggests the triple qualities of expert, teacher and researcher. The pioneer of African study in music, Ghanaian Kwabena Nketia (who recently passed at the age of 97), distinguished between a European ethnomusicology on Africa and an African musicology — done by and for Africans. Primarily since independence of the continent’s countries, the quest to break the long Western epistemological monopoly (to 50
think of Africa based in Africa) has been a concern of African intellectuals and militant non-African activists — musicologists, as Nketia would have it, because they are also engaged interpreters, masters and propagators of the repertoire they represent before their society. Ingrained with university knowledge, the interpreters of Early Music find themselves, similarly, bolstered by the historians’ and musicologists’ competency and historical interpretations regarding European and colonial music of the past. It was within this sociocultural niche, to which all the ANIMA musicians are somehow linked, that the possibility of a convergence of the two repertoires arose. A young ogan from the city of São Paulo, Leandro Perez, studied Theater at São Paulo State University (UNESP) and, introduced by the folk dance researcher Marianna Monteiro, accepted the invitation to join ANIMA in the position of Ketu Candomblé music master-resident. Ogan Leandro is the living book we consult, whose contents have been inscribed by the years of almost daily practice in Umbanda and Candomblé rituals. With him we discover and learn rhythms, folds and flourishes, places where the drum speaks louder. We also encounter the immensity of the Orishas’ songs, dances and stories. At the same time, the ogan begins having their first contact with the medieval singer and interpretive modes. In this relationship of exchange, we look to act with care and detachment. We are attentive to detect and avoid, as much as possible, colonized and colonizing attitudes — some fundamentally entrenched, such as the assumption of being able to explain all cultures based on yours. The mission was to put into practice the maxim emblazoned on São Paulo University’s Praça do Relógio: “In the universe of culture, the center is everywhere.”
Black Sounds in Brazil
the enslaved peoples.
The sounds which cradled life in the native land, of a central social role in African civilizations, are reconfigured in the diaspora’s hostile environment. This reconfiguration stems from the collective remembering of groups of individuals with cultural affinities sharing geographic spaces. Memories around the origin have been reorganizing in the new context — to the extent that Africans identify such affinities in the fields of language, religion, social organization. In the diaspora, the nações Africans’ origins’ denominations, are modulated by divides wielded by the enslaver society. Identity formulations arise with a more extensive character, predominantly meta-ethnic, different from those that were present in Africa remitting to a linguistic region or departing port in Africa, and not to a self-designation. The nostalgia to return of being constructs and reconstructs identities: Congo, Angola, Benguela, Cabinda, Mozambique among CentralAfrican Bantus and Nagô, Ketu, Ijesha, Mina, Jeje-Mahin, Hausa, Muçurumim among West Africans.
African musical instruments played in the streets are documented early on by iconography, often dueting with similar European instruments. In these engravings we see captive or free Blacks ao ganho1, Caboclos, Brown people and poor Whites of the urban centers, united by poverty, seeking musical partnership. They were certainly attentive to that which brought them together: the structural similarities existing between melodies and rhythms, ways of singing and dancing, beyond the stark contrast among cultural heritages. It is these multiethnic encounters of the lowest classes of society in the urban centers which shape the AfroIbero-Brazilian Lundu, acknowledged as a germinal form of our people’s music.
African music in Brazil covers varied aspects of a social life in reconstruction, emphasizing selective collections of ethnic repertoires. They are hymns to summon divinities and to perform spiritual healings, collective songs of group work and notification, social, political and historical chronicle songs, songs for physical games, praise, challenge, riddle and proverb, canticles to conduct Afro-Catholic processions and other dance-music of feast and faith. Distinctive traits of African musicalities (like the high hierarchy of the drums in the ensemble, the great community participation in musical events, the polyrhythmic relationship between instrument and voice, the sharp physical intelligence) are some of the aspects judged with a mix of admiration, fear and vehement disapproval by the chroniclers who represented morality and taste (or the taste for morality) of the enslaver classes of Colony and Empire — engaged in the construction of an ideology of characterizing barbarity of
As Gerhard Kubik observes in relation to the musical scales and harmonic intervals coinciding in Angolan and Portuguese musical cultures, the transcultural process between diasporic Brazil and Central Africa ends up engendering mutual reinforcement of those structures recognized as familiar in musicalities in contact, fostering interpenetrating fringes. In parallel, there was selectivity around those differential aspects which lack, to endure, a critical mass of ethnicity. The West-African five-note scales, so different from the seven-note familiar to Central Africans and Portuguese (although utilizing different intervals), remain only in the repertoires of the roças, ilês or JejeNagô houses of worship (which, starting in the 19th century, emerge in the outer neighborhoods of Salvador, Recife, São Luís, just as in distant Rio Grande). Today, differential aspects of Jeje-Nagô music like the pentatonic scales, the responsorial song in unison and the asymmetric 12-pulse rhythms can be heard in Candomblé (Bahia and other states), Xangô (Pernambuco), Xambá (Pernambuco), Tambor de Mina (Maranhão), Babassuê (Pará), Batuque (Rio Grande do Sul). Enslaved Blacks ao ganho or ganhadores: a modality of urban slavery whereby the enslaved rendered various services (as vendors, artisans, barbers, etc.), sharing their earnings with the owner. 1
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Rarely will the musicality of Jeje-Nagô Candomblés cross the social boundaries of the religion, the ethnomusicologist Tiago de Oliveira Pinto stresses. An example of this music outside of its religious space is the afoxés, understood as “street Candomblés”, and the Carnival Afro blocks in Salvador. The consensus among researchers is that the musicians of the Catholic Brotherhoods of Minas Gerais temples through the 18th century, whether Black or not, were mostly descendants of enslaved or free Africans — almost always denominated “mulatos” in the history books of Brazilian music. However it is still not known, based on the available documentation, of possible transit of these choir members, instrumentalists and chapel masters between the two great groups of musicality — African and European. The documentation of bimusicality among Afro-Brazilians is problematic, certainly for containing parts hidden by the cultural hatred of the official historiography, or concealed by the discretion with which these sociocultural intermediaries (the majority of whom were mestiços) must have practiced the traditions of their parents and grandparents — enmeshed as they were in an ascension scale which presupposed whitening. This is in addition to the safeguarding of secrets of initiates, thanks to which the black gold can, until today, preserve and restore its shine. A reading of documents which voice the official thought of the Colony and Empire makes plain feelings of ambiguity. The chroniclers barely or never physically approached the Afro-descendant musical events which they purport to describe, raising doubt: could that be devotion, recreation, perversion? Their narratives, almost always lightweight from an ethnographic point of view, reveal themselves as severe in moral judgement of the Blacks’ song and dance — pointing them out as pagan, indecent and an affront to public safety. A triple ideological screen divides them into honestas (“honest”, such as Black Catholic corteges known as Congadas) and desonestas (“dishonest”, such as Batuques and Candomblés). On the events 52
considered dishonest (especially on the Candomblé services), the police and military forces imposed implacable persecution until the 1970s. Regarded as dens of paganism, Candomblé houses or roças were always feared, in reality, for representing superior forms of social organization which, in strengthening a group identity among Africans and Afrodescendants, multiplied and enhanced Blacks’ social and political presence in Brazil. Today, the film now playing brings us “the same script in another setting,” as the rapper Ba Kimbuta rhymes — changing only the religious denomination of the persecutors. The central question is that the colonial/ imperial preachers of morality and good manners revealed themselves indeed uneasy with the growing popularity which the Black musicalities massed among different segments of the rural and urban population. A baffled German traveler described a party on a farm in Alagoas where even the masters’ daughters approached the Blacks’ circle, with visible satisfaction. Having fallen into favor with the public, Afro-descendant cultural traditions have been and are being appropriated by the White elite eager to see itself as “Brazilian,” carrying elements of Africanness, and some of its protagonists, to the master’s house, the theaters and bourgeois settings (almost always through the purging of percussive traits). In this atmosphere of enthrallment with the culture of the “other,” but with permanent protection of the socio-racial distances, “national unanimities” like maxixe, samba and rap will emerge. However, they will always be bound to the development of music as an entertainment industry — within the framework of a capitalist production system consolidation. The roots of which are well grounded, we rightfully recall, in the primitive accumulation stemming from Atlantic slavery. Nação Rhythm Candomblé develops as an integration of devotions originating from different African regions in a singular religious corpus. The ethnocultural provenance of the gathering of traditions associated with each one
of the divinities of the pantheon retains followers’ recognition. The daily living of the sacred depended as much on longevity as on inventiveness in the case of religious traditions of human communities deported through Atlantic trafficking. The continued effort to recompose spiritual heritage in a muzzled void was always a badge of honor for the Blacks of all nations (nações: diasporic African ethnic groupings). In the 19th century, in cities like Salvador, Recife or São Luís, ao ganho (money earning) urban slavery created the opening for the enslaved vendors and porters to circulate through the streets, having the opportunity to gather according to ethnic origin or nation. Each African identity group had its meeting points geographically demarcated — which facilitated professional, religious and political connections. Among the urban enslaved such as those in Salvador, grand was the cultural prestige of the Nagôs and Jejes — organizers of the initial houses of worship with the collective adoration of divinities model. These two, great nations already had an age-old relationship in Africa, influencing each other in religious, linguistic and cultural field. That proximity sometimes resulted in territorial disputes and military conflict, with prisoners from both sides sold to the slave ships. The Voduns and Orishas, deified ancestors worshipped in Jeje and Nagô Candomblés, are linked historically (as founding figures) and spiritually (as tutelary divinities) to Yoruba and Aja kingdoms or city-states: Ifé, Oyó, Ketu, Ijexá, Daomé, Savalu. In addition to the contribution to the religious and cultural fields, the Yoruba or Nagôs were politically quite active in the opposition to the slavery regime, having been the major protagonists of the Malê Revolt in Salvador (1835). In Ketu nation Candomblé, considered by researchers such as Vivaldo da Costa Lima as the cultural representative epitome of the great Jeje-Nagô or Sudanese group, there are atabaques, or specific rhythmic patterns, which are named for places or peoples such as savalu, ketu, ijexá. While signaling common ancestry, the notion of nation resulted in a diversity of performances
in the public fests held in the houses of worship for Orishas, Voduns, Inquices and Encantados. The hagiography of the divinities is not forgotten, linked to the people/place of origin, which is evoked by particular musical and choreographical repertoires and styles. Unquestionable engines of the services, the rhythms of the three atabaques and the metal idiophone function as sonoric emblems of lineage, situating the Orisha in the proper musical culture. Drummed narratives The importance shown to the drum in the African worldview has been antagonized, in the formative process of diasporic musicalities, through the depreciation of these same instruments by the WhiteEuropean colonizers and their followers. European music has percussion instruments at the bottom of the hierarchy, with chords occupying the top. The aversion of savante music to the drum is linked without a doubt to its dimension as an instigator of the body, this same body which is sacred and glorified in Africa. In Europe artistic music becomes a purely mental delight and even dance suites were mostly composed to be played and heard and not danced. The drum is declassified and banned from orchestras for centuries. Turning to the Candomblé collection transcribed by Camargo Guarnieri in Salvador, we are confronted with a common flaw among the recorders of popular Brazilian music: little concern, due to a lack of knowledge of Afro-Brazilian musical praxis, with the transcription of the percussion orchestra and the dance steps. Regardless, a persistent vice is the lack of recognition for the drum orchestra as music and for the rhythm of the body in movement in its intricate forms of interaction. Even our dear Mário de Andrade recorded only melodies in his transcriptions. The composer and ethnomusicologist Guerra-Peixe was a pioneer in percussive scheme score transcription of Recife’s maracatus. This was already at the end of the 40s, permitting exhibition of never previously studied aspects of the wealth of 53
African polyrhythmic proceedings present in popular Brazilian groups. According to the Ivorian musicologist Niangoran Bouah, the central role attributed to the drum in African musical cultures is directly linked to civilizing conceptions around vital force, which relates the instrument to the accumulation of a great potency stemming from the three Kingdoms of nature — vegetable (the wood); animal (the membrane); mineral (the metal rims and nails). Filled with energy, the drum holds the power to summon human societies and connect with spiritual worlds. Frequently it is the drums which appear as regalia of African sovereigns, symbolizing the power of the State — even though all the categories of instruments were well represented in the continent’s musical cultures. In Candomblé, the three atabaques are sacred and their consecration and maintenance are objects of specific rites. The instruments occupy the altar dos atabaques, the shrine of the atabaques, a place that is elevated and of distinction within the terreiro space. They are greeted by all who enter and exit the barracão. On the musical plane, the drummed language of Candomblé is more than a supporting rhythm, but of a narrative nature — composing a real rhapsody of dance movements. This protagonist role places the alabê, player of the soloist drum rum (or hun) and generally the lead singer of xirê, in a position of great prestige — only equalled by the ialorixás and babalorixás, the leaders of the service. After all, in Candomblé nothing is done without music, or, that is, without the ogãs alabês, the ritual musicians. The fluent interaction among the rhythm and timbre configuration of the African master-drum and the dancers’ choreography sequences is something which always intrigued and fascinated Western musicians and researchers. Body molded on sound molded on body — a performance act with multiple and mutual protagonists. The bass tone solo is another differential aspect of African music which draws attention when 54
compared to Western music — where the soloist instruments normally occupy higher frequencies (violin, flute). The big drum players are articulators of mythic identities. In addition to being an impeccable instrumentalist, the ogã alabê must be a consummate sage of the ritual, of the sung repertoire, the dances and their specific movements — which transmit the behavioral characteristics and the passages of the sacred ancestral story of 15 principal orishas worshipped in Candomblé. Even more, they must master the enredo (the story), the peculiarities of the Orisha or santo (saint) of each one of the filhos de santo, the saint's children of their ebé (worship community). The sacred choreography is marked musically by the patterns of the atabaque rum, configured based on an ample repertoire of strikes hit on different regions of the drum’s leather or even on the wood (by means of a drumstick in the right hand with the left hand free). The basic cycle of tempo alignment (called timeline by Africanist Ethnomusicology) is set by the metal of the gã (single bell) or agogô (double bell), guiding the group’s synchronicity. Completing the orchestra, the rumpi (medium atabaque) and the lé (small) are support drums which, played with thin and flexible drumsticks (aguidavi), produce continuous short-cycle patterns, aimed at maintaining the beat’s movement through rhythmic consistency. Each canticle has its specific playing style. There are specific toques (rhythmic patterns) for certain Orishas. Others are designated to announce stages of the ritual. A toque is defined musically by the rhythmic cycle of the metal bell (timeline), reinforced in the rumpi and lé pattern, by the group’s tempo and by the rum marking or dobra — traditionally arranged in direct relation to the corporal movement. The choice of patterns in the rum rendering depends circumstantially on the performance of a choreographed gesta. That is when, for how long and which sequences from the
Orisha’s sacred history will be performed, during the xirê ritual, by the dance circle or by the Orisha who dances to the the rum (dá rum) embodied in their clergy — evolving soloistically around the hall and in front of the atabaques. Then, the rhythmic patterns of the ritual orchestra immediately become tributaries of immeasurable momentum which is the Orisha’s force on earth. The characterizing pattern of the beat is called the base. The floreios (ornamentation) are variations of the base’s motifs which the musician creates or activates from tradition, demonstrating ability and knowledge. The dobra (“double”, “duplicate”) is the moment of deeper musical development of the toque performed on the rum, associated with danced narrative sequences. After executing floreios and dobras, the ogã alabê (master drummer) should return to the base, along with the rumpi and lé. There are motifs which introduce the toque, indicate transition to the dobra or announce its completion, with the intention to alert musicians, singers and dancers. Pieces of great complexity arise from the motivic compositional work in a polyrhythmic perspective, produced in name of a corpus of sacred narratives translated in a multifaceted code. In the ogans’ art, the musical composition courses at the boundaries of codification of these gestas in the traditional canons — in confluence with the unique invention of each interpreter. The alabê, based on acquired experience and competency, exerts themselves in the creation of original and bold flourishes — lending their personal esthetic strength to the ancestral infrastructure of the aborixá (worship of the Orisha). The ogan will be remembered in his community for his work and strengthened by the Orishas for the audacity of their floreios and dobras. The collaborative musical relationship between individual and collective, and living and ancestral, can be inferred through the PanAfrican philosophical notion ubuntu — I am because we are.
Additive versus Divisive The Ghanaian ethnomusicologist Kofi Agawu, heir to Kwabena Nketia’s thinking, elaborated on the question of West-African rhythmic cycles of the timeline and his readings in the additive and divisive perspectives. The former principle would belong to African music, while the latter, to European music. What Agawu rightly criticizes in Africanist Ethnomusicologists is the habit of framing the continent’s musical cultures, categorically, under the heading of an additive perception of rhythm. According to the author, there is no way to precisely evaluate whether a traditional African musician’s attitude during a performance is additive or divisive. It would be more appropriate to think of an alternation of moments (especially in the drummed praxis) where the psychosensorial perception of music slides from this to another organizing principle according to the polyrhythmic scheme demands. In any case, the familiarity with both repertoires reveals that an important correlation point between early music and Candomblé music is the additive conception where the rhythm raises itself (on the timeline) based on the sum of odd and even groupings of basic pulses — the smallest unit of measurement of musical tempo (the “rattles stroke” ). The tempo thought of as tributary of patterns of speech, of poetic text, is translated naturally as the accumulation of small units (“unary bar” by Mário de Andrade). The rhythmic sequences of the grand musical tradition of church hymns, since the late Middle Ages, as well as that of troubadour song, show an attachment to the prosodic structure of the melodic rhythm. This rhythm is also recurring, in popular Brazilian Northeastern singing; the genre martelo agalopado has passages of 11 pulses grouped in 2+3+2+2+2 (as in the verse “Tu não presta pra ser um gro-sa-dor-”). As we see in this example, the rhythm of speech results from the sum of even and odd syllable groupings. It can be said that, since the early Middle Ages, musical tempo takes the lead over 55
prosodic and, starting with the Renaissance, poetry begins submitting to the musical bar measure — as much as to the rhythm created through the increasing use of harmony, with its points of tension and repose. The rhythmic perspective pronounced divisive becomes dominant in European music based in the development of mensural writing. It marks the measurement of musical discourse based in temporal units, tactus, tempo or beats which divide into smaller units in the ratio of 1:2 (simple bars) and 1:3 (composed bars). Following this logic, the rhythmic configurations which cannot be divided in equal halves are considered asymmetrical. Likewise, the even patterns, like that of Brazilian baião, with 8 pulses (3+3+2) or samba, with 16 (2+2+3+2+2+2+3). A large chunk of Ketu Candomblé rhythm is based on asymmetric patterns. A cycle with 12 basic pulses, called vassi, is most often utilized and present in multiple toques: mojuba, lagunló, kitipô, oguêle, abiamã, alujá, ibi, etc. Ethnomusicology named this Western African standard pattern in virtue of its recurrence in West-African and AfricanAmerican musical cultures. It consists of a passage of seven beats struck on the agogô and emulated by the support drums rumpi and lé with the following configuration (x = sonorous pulse . = silent pulse of equal value): x.x.xx.x.x.x In terms of succession and grouping even and odd pulses, it consists of: 2+3+2+2+3 Namely, it is 5+7, a configuration considered asymmetric based on the Western divisive concept. The rhythmic cycles using 12 pulses, like vassi, or 6 pulses, like batá, bravum and jinká, are the majority present in Ketu Candomblé. The number 12 is quite fertile, as it possesses the greatest potential for divisions, and the rhythmic sensation of a vassi can change from water to wine accordingly if there is a shift in the accentuation of the rum.
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Cycles A cycle is an isochronal rhythmic sequence —that is, reiterated in regular intervals of time. The rhythmic thought based in temporal cycles of different overlapping sizes is the organizing principle in the polyrhythmic interaction of the Candomblé orchestra, just as in other musical cultures of the African matrix. The structures of circular tempo, where the end and beginning are confused, can be cantillated in different groupings by the drums (binary or ternary) passing from one distribution to another in a fluid manner. For example, the vassi, our cycle of 12 pulses, can be understood musically as four groups of three, three groups of four or two groups of six pulses. Such conceptualization differs from the European-Western notion of a bar, where a formula at the score’s start establishes a hierarchically principal meter, the subdivision of tempos in two or three and a fixed accentuation — the strong tempos. Candomblé cycles do not need accentuated or “strong” tempos to signal their rearticulations. The correct sequence to play the vassi’s seven strikes on the gã is: x. x.xx.x.x.x 7-1-23-4-5-6 This is a mnemonic formula which indicates the cycle’s start through the last gã strike, on the number 7—portal to continuity, not to restart. A timeline cycle as the vassi base can be construed as “starting” in different phases of its rotation, in accordance with the articulation points of other drums, song and dance. In addition to the aforementioned 7-1, we can have: 1- 23-4-5-67x. xx. x.x.xx. 3-4-5-67-1-2 x.x.x. xx. x.x, etc.
The overlap of cycles with different ranges (for example, those of the gã, rumpi and lé, shorter, and those of the rum, longer) create tension points in relation to simultaneity while not returning, on the timeline, the hook of initial synchronicity between them. These moments of “no coincidence” many times seem to sound “off tempo” to unaccustomed ears, without the recurring support of a strong tempo of bars. Added to this unfamiliarity are frequent accentuations of the master-drum, focusing on the counterstep of the sonorous articulations of the sustaining drums — creating (from the “weak” tempos, precisely) their strength. Possible dialogues Thinking of an esthetic adjustment that would take into consideration the similarities of Candomblé musical languages and of early music, we concern ourselves with safeguarding the emphasized voice that the rum, rumpi and lé (the last omitted due to the group's formation) atabaques have in the ritual orchestra. Much more than mere accompaniment, the drums appear on Mar Anterior as active participants in motif and theme formulation. The drumming sequences of the Orisha worship tradition sometimes rise up in the musical plot, rooting an interpretative model where percussion takes on narrative and protagonist dimensions. Confirming this choice in our arrangements, we observe the principle of attuning the rum and rumpi drums to the other instruments — harp, viola, rabecas and flutes. The use of drums as reference for the tonal center of sung music is frequent in Afro-Brazilian vocal praxis — contrary to the customary classification of these instruments as “without defined pitch”. First, we choose Candomblé rhythms which foster dialogue with the pieces of the repertoire. In the case of the Candomblé songs, the rhythm is already previously defined by a traditional bond. The beat's basic pattern was recorded in a few Camargo Guarnieri transcriptions — like in “Iemanjá
Otô”, where we identified the percussion register as awô, with eight basic pulses. For the other songs from the 1940 collection, almost all still popular in current Candomblés, the appropriate rhythm was directed by our resident ogan: mojuba in Exu's song “Ibarabô agô mojuba”, kitipô and lagunló in “Oxumarê lelê malê”, awô again in “Ofuru lorerê”, for Oxalá, etc. Whereas for the music of the medieval European matrix or of Brazilian oral traditional music, we opt for toques which would have metric, rhythmic and tempo] affinities with the pieces. The meters in 12 pulses (or subdivisions) represent, as previously stated, an important proximity point among Candomblé, early European and popular-traditional Brazilian music — allowing transit between additive and divisive approaches to the rhythm. In the Middle Ages, the ternary meters (12, 6, 3) were preferred in Europe, and their designation as perfectum conveyed the divine perfection of the Trinity — while the binary meters were imperfectum. In popular Brazilian musical cultures linked to a medieval European ancestry (an example being the services for the Divine Holy Spirit), drum patterns like those of the Caixeiras do Divino in Maranhão raise echoes of this religious distribution of the rhythm in the predominance of the perfectum meters in six or 12 pulses (6/8, 12/8, 3/4). It is not surprising that the historic guardians of this tradition of Portuguese origin had been, in that state, the Black women who were worshippers of the Afro-Brazilian devotion Tambor de Mina, that state’s Candomblé. The presence of hemiolas is associated with the use of ternary division: a rhythmic pattern of six pulses (or multiples of six) which can be organized as 2+2+2 (3X2) or 3+3 (2X3). The hemiola, a sequence between binary and ternary groupings (and so designated as a linear polyrhythm in Ethnomusicology), is abundantly represented as much in the Ketu Candomblé rhythm as in medieval European music. We seek to respect the absence of accentuations or strong tempos, a stylistic procedure always welcome in the 57
performance of both musical universes. From the rhythmic interaction point of view, the Ketu Candomblé cycles were activated in different types of relations with the somewhat measured tempo of early European music or of the popular-traditional Brazilian music. Concert was always sought — sometimes through convergence, sometimes through contrast. In Western music the cycles are more linked to the form than the rhythm (or rather, to the rhythm of the form), manifesting itself in the recurrence of musical themes and their development: the measurement of tempo is kept obeying the bar and the prescribed movement. In Afro-Brazilian music it is the rhythmic cycles which organize the musical tempo by their revolution scheme. One of the expedients we utilized to engage in dialogue between cycle and bar was the transformation of the African cycle in ostinato underlying immutable to the bar measure. A dear procedure of the composer and ethnomusicologist Béla Bartók (1881 - 1945), interested in the compositional potential of musicalities of Eastern European ancestry and their asymmetric bars. An important reference in ANIMA’s arrangements was the musician, professor and composer José Eduardo Gramani, who taught many of us and strongly influenced our group’s rhythmic thought with his compositions and didactic methods for rhythmic independence, utilizing measured patterns in counterposition to ostinatos. Our rabeca player and main arranger, Luiz Fiaminghi, is a great scholar of Gramani’s oeuvre. In other passages of our CD, we pursue a direct relation of metric equivalence between the vocal and instrumental parts — producing bars equal to the timeline cycle. Even so, when the ear is pleased in identifying a steady bearing, the atabaque soloist produces accentuation sequences on the off beat - inducing the impression of movement in relation to the rhythm. What sounds like displaced articulation or syncope is really an aural result of polyrhythm (rhythmic polyphony). That is, the simultaneous 58
execution of rhythmic patterns with differentiated measure and configuration, each holding its own identity. In vassi playing (12 pulses), the alabê soloist can shift from a ternary to binary division in the blink of an eye. This esthetic of instability, related to the democracy of meters in the rhythmic plot, is connected to the African principles of valuing vital dynamics and highlighting these aspects: procedure, diversity and permanent movement. Highly stable amounts to inert. There are moments when the rum’s mythically informed musical narrative, translating into sound some danced passage of the Orisha, takes the lead in the arrangement’s texture (including in percussion solos). In other moments, it seeks to intertwine or respond in complementary fashion to the rhythmic motifs of the songs of Dom Dinis, through the execution of strategically placed flourishes — as suited to the ogan, always aware of the musical context. In fact, ornamentation and variation, procedures analogous to Candomblé’s percussive flourishes, are largely utilized in Western music from the Middle Ages to the Baroque. On the plane of form, a differential aspect of Candomblé music considered in the arrangements was the African call-andresponse principle. In the majority of AfroBrazilian songs, the lead singer strikes up the song and the chorus responds. That is, there is alternation between soloist and chorus, at times chanting complementary parts of the piece. In medieval songbooks like those of Dom Dinis or Afonso X, the stanzarefrain form is common—where the latter is not necessarily chanted by a chorus. In some of Mar Anterior’s arrangements, the choral response is performed by the flute or is absent - in this case, the melodic/textual reiteration as in ostinato song is assimilated to the Renaissance and Baroque ground – the bass ostinato over which successive variations are produced. In the songs “Oxumarê Lelê Malê” and “Iemanjá Sóba”, in a more orthodox Candomblé version, the response is present in its habitual form: in the question the soloist renders textual ornamentations
and additions, while the choral answer is immutable. In the arrangement of “Ibarabô” we introduce first a contemporary version of our ogã alabê, shaped in the tradition of the beloved Tata Pérsio de Xangô Airá’s Axé Batistini (from São Paulo’s capital) — musical and spiritual heir of the historic terreiros from the state of Bahia, Axé Oxumarê and Gantois. Second, sung by the baritone, is a historical version, transcribed by Béhague, of the great ialorixá Mãe Menininha do Gantois. Paulo Dias¹
________________________ ¹Translated by Jesse Dylan Marsden.
Arquivo IEB - USP, Fundo Camargo Guarnieri, CG-caderneta-10, p. 16.
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EPISTEMOLOGIAS DO TEMPO E METRO - UMA VISÂO PÓS-COLONIALISTA Melodias registradas por meios não-mecânicos, obra publicada em 1946 pelo Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, apenas um ano após a morte de Mário de Andrade, compunha parte de um projeto ambicioso de Mário para o registro das tradições musicais brasileiras. Organizada por Oneyda Alvarenga, na época diretora da Discoteca Pública Municipal, formava a primeira parte do acervo do Arquivo Folclórico, idealizado por Mário, cuja divulgação ao público previa ainda a publicação de um catálogo ilustrado dos objetos pertencentes ao Museu Folclórico e a “transcrição gráfica [notação musical] das melodias que a Discoteca Pública Municipal registrou em discos, em vários Estados do Brasil”, fruto do trabalho da grande viagem etnográfica realizada pela Missão de Pesquisas Folclóricas em 1938. Essa última ação não chegou a se concretizar, o que representa uma lacuna para os musicólogos que se debruçam sobre o legado de Mário. O acervo completo, entretanto, incluindo as gravações fonográficas, e registros em filmes e fotografia, após sua transferência para o Centro Cultural São Paulo, em 1982, foi finalmente catalogado, restaurado e publicado em 2000, mais de 60 anos após a sua criação. O primeiro volume das “Melodias” é dividido em três partes: a primeira com melodias que o próprio Mário doou ao Arquivo em 1936, a segunda da coleção de Oneyda Alvarenga, e a terceira com as melodias de candomblé que Camargo Guarnieri recolheu em Salvador, “por ocasião do Segundo Congresso Afrobrasileiro, reunido na Bahia em janeiro de 1937”. Esta última é uma fonte fundamental para os estudos da música afro-brasileira, concentrando em 208 cantigas transcritas por Guarnieri, a maior parte de apenas dois informantes oriundos da tradição dos terreiros, a força e o impacto rítmico/ melódico que a música do candomblé transmite. A maioria das melodias pertence às tradições jeje, ketu/nagô e candomblé de caboclo.
Nos primeiros CD’s do ANIMA, já havíamos utilizado algumas cantigas da Coleção Camargo Guarnieri: Cant’as Mangueira e Adeus Surpresa (Espiral do Tempo, 1997) e Tupinambá (Especiarias, 2000), apenas essa última pertencente à tradição do candomblé de caboclo. Essas cantigas foram incorporadas ao repertório após um longo período de experimentações, improvisação e trabalho de arranjos coletivos, em grande parte segundo um processo intuitivo que não obedecia a uma lógica pré-estabelecida. Em Mar Anterior, optamos por seguir outra prática, em parte porque o número de cantigas se configurou muito maior e, por outro lado, porque o contato com as melodias oriundas do candomblé se revelou extremamente complexo. Esse material musical passou a ser trabalhado mediante sua confrontação com as claves ou “toques” (timelines) respectivos de cada cantiga, associados a determinados orixás, e, a partir daí, a elaboração de uma intrincada rede polirrítmica que trouxesse à tona traços da ambiguidade métrica inerente a essas cantigas. Este é um processo que leva à utilização da escrita e à notação em partituras e grades, ou seja, composição. Nesse aspecto, a esfera do trabalho individual, com um foco especialista e técnico, passa a ser uma necessidade para o desfecho da produção em “obra” que será posteriormente coletivizada e polida nos ensaios e finalmente vivida em energia e Arte na performance. A consulta à literatura produzida pela etnomusicologia africanista foi fundamental para estabelecer novos parâmetros de escuta, mas ainda mais determinante no tocante a “novos parâmetros” foi o contato e a imersão na música do candomblé, através das oficinas/ensaios com a participação do ogã Leandro Perez. No total foram quatro as composições baseadas nas cantigas recolhidas por Guarnieri que tive a incumbência de escrever: (225) Ofulu Lorêrê ê; (198) Ina Ina Mojubara (que posteriormente seria descartada, como será discutido mais adiante, e em seu lugar se utilizou Ibarabô, um canto também atribuído a Exu); (202) Yemanjá ôtô e (207) Oxumarê Lê Lê. Os números entre parênteses correspondem à numeração com que esses 61
cantos aparecem na Coleção C. Guarnieri. Como o título da coletânea já diz, não há gravação original desse material. Sua coleta não foi feita no terreiro, durante o ritual, mas em outro momento, diretamente no trabalho de transcrição musical entre Guarnieri e cada informante. Esse mesmo processo foi utilizado pelo próprio Mário de Andrade na viagem etnográfica ao Nordeste, realizada solitariamente oito anos antes, entre 1928/29. Nessa viagem, em um período de três meses de trabalho intenso, Mário registrou por grafia musical direta mais de mil e quinhentos documentos musicais, travando contato com artistas - como o rabequeiro Vilemão Trindade e o embolador de cocos Chico Antônio, notabilizado em suas crônicas reunidas e publicadas no livro O Turista Aprendiz - e manifestações da cultura popular que o impressionaram fortemente. Todo esse material foi organizado e publicado postumamente por Oneyda Alvarenga, que o reuniu tematicamente da seguinte forma: (1) Danças dramáticas do Brasil, tomos I, II e III (1959); (2) Música de feitiçaria no Brasil (1963); (3) Os Cocos (1984); (4) As melodias do Boi e outras peças (1987). Esse processo isolado de coleta, tanto em Mário quanto em Guarnieri, a julgar pelo aspecto quantitativo, se mostrou extremamente produtivo. No caso específico de Guarnieri, como já dito acima, os cantos foram anotados fora do contexto em que acontecem durante o ritual do candomblé, sem conexão direta com as danças dos orixás e sem os demais instrumentos que compõem a “orquestra” do candomblé, que é formada pelo trio de tambores, lé, rumpi e rum (na ordem do agudo para o grave) e o gã ou agogô (idiofone de metal com campânula simples ou dupla, com duas alturas distintas). Apesar de eficiente como registro, essa forma de coleta implica em dar prioridade à melodia e ao texto e deixa em segundo plano o aspecto rítmico. O sequestro dos instrumentos percussivos não permitiu a Guarnieri o registro da intrincada malha polirrítmica que é uma característica marcante dessa prática musical.
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Ademais, as linhas rítmicas cíclicas e curtas desenvolvidas pelo gã ou agogô, repetidas em forma de ostinatos, as chamadas timelines, “toques”, “linhas-guias”, ou simplesmente “claves”, também não foram anotadas por Guarnieri, deixando as melodias à mercê de uma métrica imposta pela lógica de compassos binários ou ternários. O compasso na música europeia se tornou uma abstração e apenas uma representação métrica do tempo. Em sua origem, no entanto, teria sido estruturado a partir de danças renascentistas e barrocas que continham em seu cerne a simetria e o espelhamento dos passos e gestos regrados por uma Orchésographie, uma espécie de partitura de movimentos conectados com a música, termo que é o nome do primeiro tratado de música e dança publicado no final do século XVI por Thoinot Arbeau. Nele, música e dança obedecem a um ordenamento regrado pelas divisões do tactus e pela ornamentação das passaggi diminuti (passagens diminuídas). Trata-se, portanto, de uma ontologia rítmica fundamentada na divisão simétrica do tactus e de sua ordenação em períodos maiores, igualmente simétricos entre si. Desse modo, para uma música estruturada em imparidades rítmicas e em acordo com uma epistemologia não simétrica, como é o caso das músicas de matrizes africanas, a imposição de um tactus regular simétrico e abstrato encobre sua essência e desfigura o seu registro na partitura. Pode-se mesmo pensar que estamos aqui diante de uma outra ontologia rítmica, não fundamentada na divisão, mas na adição. Períodos são formados por agrupamentos menores de 2 ou 3 pulsos, gerando imparidades (2 + 3 = 5) (2 + 2 + 3= 7) que estruturalmente somam-se em unidades maiores, as claves, “toques” ou timelines. Como exemplo, podemos citar a clave de 12 pulsos: (2+3+2+2+3), conhecida como vassi na música de origem iorubá, ou a clave de 16 pulsos: (2+2+3+2+2+2+3), conhecida como teleco-teco ou toque do tamborim, no samba. O músico que se propõe a trabalhar esse repertório a partir da partitura escrita deverá, então, considerar os desvios que uma escrita fundamentada em outros parâmetros de temporalidade pode causar e saber relativizá-
la e colocá-la em constante confronto com os elementos que estão ausentes. Há, de fato, algumas informações que devem ser consideradas: em primeiro lugar, muitas melodias mencionam o orixá que evocam, seja diretamente em seus textos, seja anotado por Guarnieri, a partir dos relatos dos informantes. Isso é muito relevante, pois conhecendo-se a tradição, é possível identificar quais claves são associadas a determinados orixás, o que fornece uma informação crucial para o fenômeno rítmico. Em segundo lugar, algumas linhas rítmicas são anotadas abaixo da melodia principal, mas somente com a anotação de um atabaque e nunca do trio. Sabemos que no candomblé cada tambor tem sua “voz” e função bem determinada e que muitas vezes essas vozes trabalham de forma complementar uma à outra, uma técnica chamada pelos etnomusicólogos de interlocking rhythms (ritmos entrelaçados). Logo, nesse universo percussivo as vozes rítmicas só fazem sentido em sua totalidade, com todas as vozes presentes. Não é esse o caso das melodias colhidas por Guarnieri, a despeito de terem sido precisamente transcritas em seus aspectos melódicos. O trabalho de Guarnieri é fantástico e de uma competência inegável, entretanto transparece em sua lógica uma questão hierárquica que percorre a música ocidental como um todo e está fortemente estabelecida na estética musical do século XIX: no topo desta hierarquia está a melodia, ou o feixe melódico, se for um contraponto de melodias, seguido da harmonia e, por último, o ritmo. A este, reserva-se o papel de ordenar metricamente o fluxo melódico, mas em caráter subalterno, com a submissão de moldar metricamente a voz principal, a melodia. Esse regime melocrático é evidenciado também no protagonismo reservado ao solista, vocal ou instrumental, que o palco coloca em destaque com o foco centrado no virtuosismo que, desse modo, adquire uma valoração estética.
sistemas. George Houle, em seu abrangente estudo sobre a métrica nos séculos XVII e XVIII (Meter in Music, 1600-1800: Performance, Perception, and Notation, 1987), dedica um capítulo inteiro ao estudo da Rhythmopoeia, termo proveniente da teoria musical da Grécia clássica, definido em detalhe por Aristóxeno (c. 330 a.C). Segundo Houle, nos tratados do século XVII "Rhythmopoeia definia unidades métricas diferentemente de tactus, o qual regulava o fluxo da música sem observar os grupos métricos. O ‘pé musical’ da rhythmopoeia, equivalente ao pé poético, era simétrico ou assimétrico e poderia simplesmente ser repetido ou constantemente variado para formar uma frase” (HOULE, 1987, p. 62). Na Idade Média, a teoria dos modus rítmicos retomou os princípios dos pés métricos gregos, adotando como medida métrica os valores longos (Longa = L ou [ – ]) ou breves (Brevis = B ou [ u ]), que não necessariamente deveriam estar em relação métrica de 2:1, mas ocorrendo também nas proporções 3:2 e 3:1. O modo dáctilo – L B B – ou seja, uma longa e duas breves, comportaria três maneiras distintas de leitura: 1. proporção 2:1 = [ X . X X ]; 2. proporção 3:1 = [ X . . X X ]; e proporção 3:1 e 3:2 = [ X . . X X . ]. O valor da Breve, portanto, poderia ser de um ou dois pulsos, mas sempre menor que a Longa. O sistema notacional utilizado aqui para exemplificação foi concebido pela etnomusicologia africanista onde [ X ] representa um pulso sonoro (uma palma, ou o ataque da baqueta no couro do tamborim, por exemplo) e o [ . ] um pulso surdo (o abafamento da vibração do couro pelo dedo).
É preciso lembrar, no entanto, que o regime melocrático não foi exclusivo e que em outras épocas disputou a hegemonia com outros 63
O modo dáctilo foi, no início do século XVII, associado à guerra e ao stilo concitato (estilo agitado) em Claudio Monteverdi, por despertar o afeto da ira e agitação. Monteverdi chamava sua prática musical de seconda prattica, em oposição à música contrapontística e matemática das gerações anteriores, chamada de prima prattica. Para ele o mais importante seriam os afetos despertados no ouvinte e, desta maneira, as figuras rítmicas passam a ter uma semântica própria, para além apenas da divisão métrica. Um tratado importante desse período, Harmonie Universelle (Paris, 1636), de Marin Mersenne, apresenta uma descrição detalhada dos diversos modos rítmicos, associandoos a afetos da alma (Teoria dos Afetos) e passos de dança. Mersenne dá grande ênfase à Rhythmopoeia como parte da Inventio retórica, os loci topici, que alçariam o ritmo e o movimento ao gesto inicial da criação (Rhythmo = ritmo; poeia = poiésis, criação). Não se pode dizer aqui que a melocracia exerce o predomínio e a hegemonia do sistema, mas ao contrário, parece que o ritmo é que dita as regras do jogo. É interessante notar que no extenso quadro de modos rítmicos propostos por Mersenne, há espaço tanto para modos simétricos como o dáctilo ( – u u ) ou na proporção 2:1 como o iâmbico ( u – ) ou o troqueu ( – u ), quanto para modos estruturados em números primos como 5 e 7 e assimétricos, como as diversas variantes do modo peônico [paeon] em cinco pulsos ( – u u u ); báquio [bacchic], também em cinco pulsos ( u – – ) e até mesmo para o pé epitrítico [epitritic] ( u – – – ) em sete pulsos! (HOULE, 1987, p. 67). Dando um salto de dois séculos, no início do século XX, músicos e pedagogos como Émile-Jacques Dalcroze, direcionaram suas forças criativas para moldar uma pedagogia rítmica liberta das amarras do compasso que a música europeia dos séculos XVIII e XIX herdou naturalmente do conceito de tactus renascentista. Nesse esforço, recuperam o conceito de pés métricos gregos e imparidades rítmicas que, como vimos acima, estavam ainda presentes na Rhythmopoeia descrita 64
por Mersenne. No Brasil, em meados da década de 80, José Eduardo Gramani seguiu esses mesmos passos e desenvolveu uma pedagogia do ritmo, com conceitos que vão além das propostas de Dalcroze e da rítmica aditiva de Stravinsky, em sua primeira fase. A proposta de Gramani, que foi um dos fundadores do ANIMA e atuou no grupo como rabequeiro e compositor até 1998, ano de sua morte, é que a estruturação rítmica do músico se forme a partir do senso aguçado da polirritmia, provocada pela justaposição de vozes rítmicas coordenadas, porém não subordinadas umas às outras. Essas vozes são metricamente estruturadas em frases compostas pelos mesmos princípios dos modos rítmicos medievais (Longas e Breves em proporções 2:1, 3:1 e 3:2), contrapostos a ostinatos regulares. Esses exercícios são chamados por Gramani de “Séries” e ele os desenvolve em vários desdobramentos ao longo de dois volumes de seus “Antimétodos” (1988 e 1996). No decorrer de suas provocações rítmicas, “divertimentos” segundo ele, Gramani explora as várias possibilidades das proporções que nos tratados antigos, como no de Mersenne, são chamadas de sesquialtera ou hemiolia (proporção 3:2) e sesquiquarta (proporção 4:3). As Séries de Gramani são aditivas e geram imparidades rítmicas evidentes. São também cíclicas e retornam ao início após traçar um arco onde, ao invés de consonância métrica, emerge um fenômeno similar ao chamado cross rhythm, termo criado pelos etnomusicólogos africanistas para descrever os ritmos cruzados que atravessam os períodos em conjunção polirrítmica. Tampouco a noção de compasso deve estar presente nas Séries de Gramani, segundo suas próprias prescrições. De acordo com os etnomusicólogos africanistas mencionados acima (Nketia, Agawu, Locke, Kubik, Arom, Luninng, Oliveira Pinto e outros), esses elementos são igualmente estruturantes e presentes no senso rítmico das matrizes musicais africanas. No caso da Rítmica de Gramani, Coelho (2010), Ribeiro (2017) e Fiaminghi (2019) mostraram em seus trabalhos vários elos possíveis dessa
ligação improvável, considerando que no início dos anos 80 Gramani estava gestando seus “Anti-métodos”, quando a literatura africanista na etnomusicologia iniciava sua trajetória. Gramani, portanto, não conhecia essas vertentes do estudo rítmico e chegou a pressupostos semelhantes apenas ouvindo a música brasileira e constatando que alguma coisa estava errada na maneira com que o ritmo era ensinado nas escolas de música (e não nas escolas de samba!). Mas o que é mais importante para nós, é o quanto as portas abertas por Gramani possibilitaram o entendimento da rítmica em um sentido amplo, que pode conectar culturas distantes cronologicamente e distintas na sua forma de sentir o tempo na música. Contar neste trabalho com a presença do ogã Leandro Perez foi essencial para o desvendamento e a imersão na musicalidade afro-brasileira e para poder contestar na prática aquilo que os etnomusicólogos descreveram em suas etnografias. Um fato ocorrido às vésperas das primeiras seções de gravação é bastante elucidativo de como claves (timelines), ostinatos cíclicos, narrativa modal e acaso podem trabalhar em congruência: depois de elaborada, ensaiada e finalizada a composição do arranjo sobre a cantiga (198) Ina Ina Mojubara, que é referente ao orixá Exu, que tem como um de seus atributos abrir os caminhos, e por isso é o primeiro orixá reverenciado nos terreiros, recebemos a notícia de que essa cantiga especificamente não é realizada em cerimônia pública, mas reservada somente aos iniciados e, desta maneira, não seria recomendável sua gravação em um CD. A princípio ficamos perplexos em constatar que todo o trabalho teria que ser descartado, mas quando estávamos experimentando alternativas para substituir essa cantiga, tocando uma sequência de baixo que constava da composição original, o ogã Lelê começou a cantar outra cantiga dedicada a Exu, Ibarabô, completamente diferente da primeira em seu contorno melódico. Essa nova melodia se encaixou perfeitamente no lugar da melodia “proibida”, constituindo então, a primeira música que abre o CD Mar Anterior.
Essa feliz conjunção nos levou a refletir sobre como isso seria possível, musicalmente falando. A resposta é simples: por se tratar de trechos melódicos baseados na clave vassi, ambas as melodias, apesar de possuírem contornos distintos, comungam de uma estrutura rítmica congruente, o que ordena os seus ciclos em acordo métrico. Além disso, o trecho em questão foi estruturado harmonicamente sobre um baixo ostinato muito comum do século XVII, uma espécie de chacona, que possibilita à melodia retornar em pontos diferentes do início do chorus harmônico, sem prejuízo para inteligibilidade harmônico/melódica. Colocar lado a lado uma cantiga de D. Afonso X ou de D. Dinis, transmitida até nós por manuscritos incompletos e repletos de incoerências, e os cantos de candomblé recolhidos por Guarnieri, pode parecer uma tarefa desconfortável para uma musicologia apoiada apenas nas evidências históricas e factuais. O nosso trabalho vai num sentido oposto. Desde o início, conforme mencionado acima, o viés fenomenológico teve um peso grande na dinâmica de nossas pesquisas e criação, o que nos permitiu sermos guiados pelas sonoridades dos instrumentos, pelas práticas musicais ligadas à oralidade e, por que não, pela intuição. Deste modo, a prática musical se coloca como um fator imprescindível mesmo em um momento em que aparentemente ela está adormecida, no momento silencioso da criação solitária. Penso aqui como nesse processo houve de fato uma aproximação com aquilo que Mersenne descreveu como Rhythmopoeia, um processo criativo no qual a heurística nasce do ritmo, dos toques e de suas combinações polirrítmicas, como dois afetos que coexistem paralelamente. Trago como exemplo do que chamo aqui de “Rhythmopoeia do candomblé” a criação do arranjo de duas cantigas provenientes de tradições bastante distintas, mas que, quando justapostas, estabelecem um franco diálogo unificado pela linguagem comum do ritmo: Ibarabô mojuba, canto para Exu e a cantiga n. 6 Non sei como me salva, de D. Dinis. A 65
melodia de Ibarabô foi retirada do ensaio de Gerard Béhague, Patterns of Candomblé Music Performance: An Afro-Brazilian Religious Setting (1984). A melodia de D. Dinis, da edição que o musicólogo português Manuel Pedro Ferreira fez em Cantus Coronatus: 7 cantigas d’El-Rei Dom Dinis (2005). Béhague foi, dentre os musicólogos americanos que focaram seu estudo na música brasileira, o que mais se destacou pela abrangência de seu trabalho, enfocando vários períodos e gêneros musicais. Ele esteve na Bahia entre 1967 e 1979 pesquisando a música do candomblé e deixou vários escritos sobre o tema. Assim como nas transcrições de Guarnieri, somente a melodia é anotada, sem menção aos tambores e à timeline relativa ao orixá (Exu). Essa transcrição não foi feita a partir de uma coleta sua, mas anterior, realizada pelo eminente antropólogo americano Melville Herskovits (1895-1963) que, em 1941/42, gravou uma grande quantidade de canções (671, segundo Béhague) de candomblé, samba-batuque e samba de roda. Parte desse material de áudio está na Library of Congress Music Division, Folk Music of Brasil – Afro-Brazilian Religious Songs, e encontra-se disponível no Youtube. Nessas raras gravações podem-se ouvir todos os tambores e o gã, com o canto do referido Ibarabô na voz da Mãe Menininha do
Gantois, o que a torna ainda mais preciosa. A data de coleta é também muito próxima da coleta de Guarnieri (1937), o que aproxima as duas fontes como referências historiográficas e performáticas importantes para a música do candomblé. Na nossa versão a clave vassi (de 12 pulsos) é disposta em sobreposição à clave jinká (de 6 pulsos), e ambas permeiam as duas cantigas, atravessando o espaço das temporalidades medievais e iorubá. Assim como no exemplo da substituição de melodias citado acima, em que a sincronicidade de diferentes musicalidades se coaduna com uma clave comum, em uma gênese rítmica poderosa, aqui também a Rhythmopoeia é a raiz da Inventio de onde surgem todas as ideias. Desse modo, Exu, que quase foi cortado na última hora, acabou sendo homenageado com duas cantigas, que estabelecem entre si também um diálogo de tradições do candomblé (Bahia/São Paulo), numa justa homenagem ao orixá que abre o caminho e promove o desenlace, o que deve ter contribuído para o sucesso do desfecho. Luiz Fiaminghi
Arquivo IEB - USP, Fundo Camargo Guarnieri, CG-caderneta-10, p. 3.
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EPISTEMOLOGIES OF TEMPO AND METER - A POST-COLONIALIST VIEW Melodias registradas por meios não-mecânicos (Melodies Recorded by Non-Mechanical Means), published in 1946 by the Department of Culture of the City of São Paulo, only one year after the death of Mário de Andrade, was part of Andrade’s ambitious project to record Brazilian musical traditions. Organized by Oneyda Alvarenga, at the time director of the Municipal Public Music Library, Melodias formed the first part of the collection of the Folk Archive envisioned by Andrade, whose opening to the public also contemplated the publication of an illustrated catalogue of the objects belonging to the Folk Museum and the “graphic transcription [musical notation] of melodies that the Municipal Public Music Library recorded on disc records in several states of Brazil”, fruits of the work of the great ethnographic journey undertaken by the Folk Research Mission of 1938. The catalogue never came to fruition, which represents a gap for musicologists engaged with Mario Andrade’s legacy. The complete collection, however, including phonographic recordings, film images and photographs, was finally catalogued, restored and published in 2000 after its transfer to the São Paulo Cultural Center in 1982, more than 60 years after its creation. The first volume of the “Melodies” is divided into three parts: the first with melodies that Andrade himself donated to the archive in 1936, the second is from the collection of Oneyda Alvarenga, and the third contains Candomblé melodies that Camargo Guarnieri collected in Salvador, “for the occasion of the second Afro-Brazilian Congress, meeting in Bahia in January 1937”. The last is a fundamental source for the study of AfroBrazilian music, containing 208 songs transcribed by Guarnieri, most of which come from only two informants from the tradition of the terreiros, putting in evidence the force and rhythmic/melodic impact that Candomblé music transmits. Most melodies belong to the Jeje, Ketu/Nagô and Caboclo Candomblé traditions.
In ANIMA’s first albums we used some songs from the Camargo Guarnieri collection: Cant’as Mangueira and Adeus Surpresa (Espiral do Tempo, 1997) and Tupinambá (Especiarias, 2000). Only the latter belongs to the tradition of Caboclo Candomblé. These songs were incorporated into the repertoire after a long period of experimentation, improvisation and a collective effort on musical arrangements, largely according to an intuitive process that did not obey a pre-established logic. In Mar Anterior, we chose to follow another practice, partly because the number of songs became much larger, but also because the contact with the melodies originating from Candomblé proved to be extremely complex. This musical material began to be worked on through a confrontation with the respective claves or “toques” (timelines) of each song, associated with certain Orishas, and, thereafter, the elaboration of an intricate polyrhythmic network that brought to the surface traces of metric ambiguity inherent in these songs. This is a process that leads to the use of writing and notation in sheet music and grids, that is, composition. In this respect, the sphere of individual work, with a technical, specialist focus, becomes a necessity for the production of a “work of art” that will subsequently be collectivized and polished in rehearsals and finally experienced as energy and art in live performance. Examination of the literature produced by Africanist ethnomusicology was fundamental to establish new listening parameters, but even more decisive in relation to “new parameters” was the contact and immersion in the music of Candomblé, through the workshops/rehearsals with ogan Leandro Perez. Altogether there were four compositions based on the songs collected by Guarnieri that I had the task of writing: (225) Ofulu Lorêrê ê; (198) Ina Ina Mojubara (which would subsequently be discarded, as will be discussed later. In its place Ibarabô was used, a song also attributed to Exu); (202) Yemanjá ôtô and (207) Oxumarê Lê Lê. The numbers in parentheses correspond to the numbering with which these songs appear in the C. Guarnieri Collection. As the title of the 67
collection already states, there is no original recording of this material. His fieldwork collection was not done at the Candomblé terreiro, during the ritual, but at another time, directly in the work of musical transcription between Guarnieri and each informant. This same process was used by Mário de Andrade on the ethnographic journey to the Northeast, which he embarked upon alone eight years earlier, between 1928 and 1929. During this trip, in a period of three months of intense work, De Andrade recorded by direct musical notation more than 1500 musical documents, making contact with artists such as the fiddler Vilemão Trindade and the improviser of Coco Chico Antônio, notable in his collected chronicles and published in the book O Turista Aprendiz (The Apprentice Tourist) – and in manifestations of popular culture that greatly impressed him. All this material was organized and published posthumously by Oneyda Alvarenga, who organized it thematically as follows: (1) Dramatic Dances from Brazil, volumes I, II and III (1959); (2) Music of Sorcery in Brazil (1963); (3) The Cocos (1984); (4) The Ox Melodies and Other Pieces (1987). This isolated process of gathering material, both in De Andrade and in Guarnieri, proved to be extremely productive judging by the quantitative aspect. In the specific case of Guarnieri, as mentioned above, the songs were annotated outside the context in which they occur during the Candomblé ritual, without direct connection to the dances of the Orishas and without the other instruments that comprise the “orchestra” of Candomblé, formed by the trio of drums, lé, rumpi and rum (in the order of treble to bass) and the gã or agogô (metal idiophone with single or double bell, with two distinct pitches). Although efficient as a record, this form of collection implies giving priority to the melody and the text and relegates the rhythmic aspect to the background. The exclusion of the percussive instruments does not allow Guarnieri to record the intricate polyrhythmic mesh that is a hallmark of this musical practice. 68
Moreover, the cyclical and short rhythmic lines developed by the gã or agogô, repeated in the form of ostinatos, the so-called timelines, toques, “guiding lines”, or simply claves, were also not annotated by Guarnieri, leaving the melodies at the mercy of a metric imposed by the logic of binary or ternary measures. The measure in European music has become an abstraction and only a metrical representation of time. Originally, however, it would have been structured from Renaissance and Baroque dances that held at their core the symmetry and mirroring of the steps and gestures ruled by an orchésographie, a sort of score of movements connected with the music, a term that is the name of the first music and dance treatise published at the end of the 16th century by Thoinot Arbeau. In Arbeau’s treatise, music and dance obey an order governed by the divisions of the tactus and the ornamentation of the passaggi diminuti (diminished passages). It concerns, therefore, a rhythmic ontology based on the symmetrical division of tactus and its ordering into larger periods, equally symmetrical to each other. Thus, for a music that is structured in rhythmic imparities and in accordance with a non-symmetric epistemology, as in the case of African roots music, the imposition of a symmetrical and abstract, regular tactus conceals its essence and disfigures the historical record in the score. One might even think that we are here before another rhythmic ontology, not grounded in division, but in addition. Periods are formed by smaller groups of 2 or 3 pulses, generating imparities (2 + 3 = 5) (2 + 2 + 3= 7) that structurally add up to larger units, the claves, toques or timelines. As an example, we can cite the 12-pulse clave: (2+3+ 2 +2+3), known as vassi in the music of Yoruba origin, or the 16-pulse clave of: (2 + 2 + 3 + 2 + 2 + 2 + 3), known as teleco-teco or toque do tamborim in samba. The musician who intends to execute this repertoire from the written score should consider the deviations that a writing grounded in other temporal parameters may cause and know how to relativize it and place it in constant confrontation with the elements
that are missing. There is, in fact, some information that should be considered. First, many melodies mention the Orisha that they evoke, either directly in the texts, or annotated by Guarnieri from the informants’ reports. This is quite relevant because knowing the tradition, one can identify which claves are associated with certain Orishas, providing crucial information for the rhythmic phenomenon. Second, some rhythmic lines are registered below the main melody, but only with the annotation of one atabaque and never the trio. We know that in Candomblé each drum has its “voice” and well determined function and that often these voices work in a complementary way to each other, a technique called by the ethnomusicologists interlocking rhythms. Consequently, in this percussive universe the rhythmic voices only make sense in their totality when all the voices are present. This is not the case of the melodies collected by Guarnieri, despite being precisely transcribed in their melodic aspects. The work of Guarnieri is fantastic and of an undeniable competence, nevertheless there appears in its logic a hierarchical question that runs through western music as a whole and is strongly established in the musical aesthetics of nineteenth century: at the top of this hierarchy is the melody, or the melodic bundle, if it is a counterpoint of melodies, followed by harmony and, finally, rhythm. To this, it reserves the role of metrically ordering the melodic flow, but in a subaltern character, metrically shaping the main voice, the melody. This melocratic regime is also evidenced in the protagonism reserved for the soloist, vocal or instrumental, that the stage places in a spotlight, with the focus centered on virtuosity, which in this manner acquires aesthetic value. It must be remembered, however, that the melocratic regime was not exclusive and that at other times it disputed hegemony with other systems. George Houle in his comprehensive study of metrics in the eighteenth and seventeenth centuries
(Meter in Music, 1600-1800: Performance, Perception, and Notation, 1987), devotes an entire chapter to the study of rhythmopoeia, a term derived from Greek classical music theory, defined in detail by Aristoxenus (c. 330 BCE). According to Houle, in the 17th century treatises “rhythmopoeia defined metric units differently from tactus, which regulated the flow of music without observing metric groups. The 'musical foot' of rhythmopoeia, equivalent to the poetic foot, was symmetrical or asymmetrical and could simply be repeated or constantly varied to form a phrase” (HOULE, 1987, p. 62). In the Middle Ages, the theory of rhythmic modes revived the principles of Greek metric feet, adopting as a measure the long values (longa = L or [ --- ]) or short (brevis = B or [ u ]), which should not necessarily be in the metric ratio of 2:1, but also occurring in the ratio of 3:2 and 3:1. The Dactyl mode – the L B B – that is, a long and two short, would behave one of three distinct ways: 1. ratio 2:1 = [ X . X X ]; 2. ratio 3:1 = [ X .. XX]; and ratio 3:1 and 3:2 = [ X .. X X .]. The value of the Short, therefore, could be one or two pulses, but always smaller than the Long. The notational system used here for exemplification was conceived by Africanist ethnomusicology where [X] represents a sound pulse (a palm, or drumstick attack on the tamborim leather, for example) and [.] a muted pulse (a finger muffling of the vibration of the leather). In the early seventeenth century the dactyl mode was associated with war and the stilo concitato (agitated style) of Claudio Monteverdi, for its arousing of the affection of wrath and agitation. Monteverdi called his new musical practice seconda prattica, in opposition to contrapuntal and mathematical music of previous generations, called the prima prattica. For him the affections awakened in the listener were most important. Thus the rhythmic figures begin to have their own semantics, beyond just the metric division. An important treatise from this period, Marin Mersenne’s Harmonie Universelle (Paris, 1636), presents a detailed description of the various rhythmic modes, associating them with affections of the soul (Affection 69
Theory) and with dance steps. Mersenne gives great emphasis to rhythmopoeia as part of the Inventio rhetoric, the loci topici, which would elevate rhythm and movement to the initial gesture of creation (rhythmo = rhythm; Poeia = poiesis, creation). It cannot be said here that melocracy exerts predominance and hegemony within the system. On the contrary, it seems that rhythm dictates the rules of the game. It is interesting to note that in the extensive framework of rhythmic modes proposed by Mersenne, there is room for both symmetric modes such as the dactyl ( --- u u ) or the 2:1 ratio of the iambic ( u --- ) or the trochee ( --- u ), or modes structured in prime numbers like 5 and 7 and asymmetrical, such as the several variants of the paeonic mode in five pulses ( --- u u u ); bacchic, also in five pulses ( u --- --- ) and even the epitritic foot ( u --- --- --- ) in seven pulses! (HOULE, 1987, p. 67). Jumping forward two centuries to the beginning of the twentieth century, musicians and pedagogues such as Émile- Jacques Dalcroze directed their creative forces to shape a rhythmic pedagogy freed from the bonds of the measure that European music of the eighteenth and nineteenth centuries naturally inherited from the Renaissance concept of tactus. To this end they recovered the Greek concept of metric feet and rhythmic imbalances that, as we saw above, were still present in the rhythmopoeia described by Mersenne. In the mid-80s in Brazil, José Eduardo Gramani followed the same steps and developed a pedagogy of rhythm with concepts that go beyond Dalcroze’s proposals and the additive rhythm of Stravinsky in his first phase. Gramani, one of the founders of ANIMA and the group’s fiddler and composer up until 1998, the year of his death, proposed that the rhythmic structuring of the musician is formed from the keen sense of polyrhythmia, provoked by the juxtaposition of coordinated rhythmic voices, yet not subordinated to each other. The voices are metrically structured in phrases composed by 70
the same principles of the medieval rhythmic modes (long and brief in ratios of 2:1, 3:1 and 3:2), opposed to regular ostinatos. Gramani called these exercises “series” and he develops them in several iterations over the two volumes of his Anti-métodos (AntiMethods; 1988 and 1996). In the course of his rhythmic provocations, divertimentos as he called them, Gramani explores the various possibilities of ratios from the old treatises, such as Mersenne’s, called sesquialtera or hemiolia (3:2 ratio) and sesquiquarta (4:3 ratio). Gramani’s series are additive and generate evident rhythmic imparities. They are also cyclical and return to the beginning after tracing an arc where, instead of metric consonance, there emerges a phenomenon similar to cross-rhythm, a term created by Africanist ethnomusicologists to describe the crossed rhythms that traverse the periods in polyrhythmical conjunction. According to Gramani’s own prescriptions the notion of measure should also not be present in his series. According to the Africanist ethnomusicologists mentioned above (Nketia, Agawu, Locke, Kubik, Arom, Luninng, Oliveira Pinto and others), these elements are equally structuring and present in the rhythmic sensibility of African musical matrices. In the case of Gramani’s rhythmics, Coelho (2010), Ribeiro (2017) and Fiaminghi (2019) demonstrated in their works several connections possible for this improbable link, considering that in the early 1980s Gramani was developing his “anti-methods” at the same time that the Africanist literature on ethnomusicology initiated its trajectory. Gramani was not aware of these strands of rhythmic study and yet came to similar assumptions only by listening to Brazilian music and noting that something was wrong in the way the rhythm was taught in music schools (not in samba schools!). What is more important to us, however, is how much the doors opened by Gramani have enabled understanding rhythm in a broad sense, one capable of connecting distant cultures chronologically and distinct in their ways of experiencing temporality in music.
Benefiting from the presence of the ogan Leandro Perez was essential for the revealing of and immersion in Afro-musicality as well as to be able to attempt in practice what the ethnomusicologists described in their ethnographies. An event that occurred on the eve of the first recording sessions elucidates very much how claves (timelines), cyclical ostinatos, modal narrative and chance can work in congruence. After elaborating, rehearsing and finalizing the composition of the arrangement for the song (198) ina ina Mojubara, which refers to the Orisha Exu, one of whose attributes is that of opening the paths and for that reason is the first Orisha revered in the terreiros, we received the news that this song specifically is not performed in a public ceremony, but reserved only for initiates. Consequently, it would not be advisable to record it on this album. At first we were flustered to see that all the work would have to be discarded, but when we were experimenting with alternatives to replace the song, playing a bass sequence that was part of the original composition, The ogan Lelê began to sing another song devoted to Exu, ibarabô, completely different from the first in its melodic form. This new melody fits perfectly in place of the “forbidden” melody, thereby constituting the opening song for the Mar Anterior album. This happy conjuncture led us to reflect on how this could be possible, musically speaking. The answer is simple: because they are melodic passages based on the same vassi clave, both melodies, although they possess distinct contours, share a congruent rhythmic structure ordering their cycles in metric agreement. Moreover, the excerpt in question was structured harmonically on a very common bass ostinato of the 17th century, a kind of chaconne, which allows the melody to return at different points from the beginning of the harmonic chorus, without impairing the harmonic /melodic intelligibility. It may seem an uncomfortable task for a musicology based only in historical and factual evidence to place side by side the songs of Candomblé collected by Guarnieri
and a tune by D. Afonso X or D. Dinis, transmitted to us by incomplete manuscripts filled with inconsistencies. Our work moves in the opposite direction. From the outset, as mentioned above, the phenomenological angle had a great influence in the dynamics of our research and creation. This allowed us to be guided by the sonorities of the instruments, by the musical practices linked to orality and – why not – by intuition. In this way, musical practice is an indispensable factor even at a time when it is apparently dormant, in the silent moment of solitary creation. I think here how in this process there was indeed an approximation with what Mersenne described as rhythmopoeia, a creative process in which a heuristic is born from rhythm, from the toques and their polyrhythmic combinations, as two affects that coexist in parallel. I offer as an example of what I call here “rhythmopoeia of Candomblé” the creation of the arrangement of two songs from quite different traditions, yet when juxtaposed establish a frank dialogue unified by the common language of rhythm: Ibarabô Mojuba, a song for Exu and the n. 6 song, Não sei como me salva (I Don't Know How She Saves Me), by D. Dinis. The melody for Ibarabô was taken from Gerard Béhague’s essay, Patterns of Candomblé Music Performance: An Afro-Brazilian Religious Setting (1984). The melody by D. Dinis is from the version that the Portuguese musicologist Manuel Pedro Ferreira offered in Cantus Coronatus: 7 Cantigas d’ El-Rei Dom Dinis (2005). Among the American musicologists who focused their study on Brazilian music, Béhague was most notable for the scope of his work, focusing on various periods and musical genres. He was in Bahia between 1967 and 1979 researching the music of Candomblé and produced several texts on the subject. Just as in the transcriptions of Guarnieri, only the melody is registered, without mentioning the drums and the toques (timelines) relative to the Orisha (Exu). This transcription was not made from a collection of his, but from an earlier collection by the eminent American anthropologist Melville Herskovits (1895-1963) who, in 1941/42, 71
recorded a large number of Candomblé, samba-batuque, and samba de roda songs (671 in total, according to Béhague). A portion of this audio material is in the U.S. Library of Congress Music Division, Folk Music of Brazil – Afro-Brazilian Religious Songs, and is also available on Youtube. In these rare recordings one can hear all the drums and the gã, with the aforementioned Ibarabô sung by Mãe Meninha do Gantois, making it even more precious. The date of the collection is also very close to Guarnieri’s (1937), which approximates the two sources as important historiographic and performative references for Candomblé music. In our version, the vassi clave (12 pulses) is arranged overlapping with the jinká clave (6 pulses), and both permeate the two songs, traversing the space
of the medieval temporalities and Yoruba. As in the example of the substitution of melodies mentioned above, in which the synchronicity of different musicalities is consistent with a common clave in a powerful rhythmic genesis, here also rhythmopoeia is the root of the inventio from which all ideas emerge. Thus, Exu, who was almost cut out at the last minute, ended up honored with two songs, also establishing a dialogue of Candomblé traditions (Bahia/São Paulo), in a just homage to the Orisha who opens the way and promotes the denouement, which must have contributed to a successful outcome. Luiz Fiaminghi¹ _________________________ ¹Translated by Sean M. McIntyre.
Arquivo IEB - USP, Fundo Camargo Guarnieri, CG-caderneta-10, p. 7.
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GISELA NOGUEIRA
viola de arame
Brazilian Baroque Guitar Gisela estudou violão clássico com o mestre Isaías Sávio em São Paulo. É doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, com a tese A Viola com Anima: uma construção simbólica. Realizou especialização e posterior titulação de Master of Music in Performance pelo Royal Northern College of Music em convênio com The Victoria University of Manchester. Atua no ensino da música no Brasil como professora do Departamento de Música do Instituto de Artes da UNESP. Apresentou-se como violonista e intérprete de instrumentos da família das guitarras em tournées pela Inglaterra, outros países europeus e pelo Brasil. Especializou-se na técnica da Viola de Arame, a convite de Anna Maria Kieffer, para participar da documentação fonográfica da música brasileira dos séculos XVIII e XIX. Gisela gravou diversos trabalhos junto aos artistas: Luiza Sawaya, Anna Maria Kieffer, Edelton Gloeden, Gustavo Costa e com os Grupos Carmina de Música Antiga e ANIMA. Integrou o Núcleo Tálea de música medieval, coordenado pelo cantor e medievalista Fernando Carvalhaes. viola de arame construída por Roberto Gomes, São João Del Rey, MG, 1988, sobre modelo original encontrado em Tiradentes, Fazenda Capivari, datado do ano 1765
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Gisela studied classical guitar with master Isaías Sávio in São Paulo. She holds a PhD in Communication Sciences from the University of São Paulo, with the dissertation The Viola with Anima: A Symbolic Construction. She completed a specialization and received the title of Master of Music in Performance from the Royal Northern College of Music in agreement with The Victoria University of Manchester. She currently teaches music in Brazil in the Music Department at UNESP Institute of Arts. Nogueira has performed as a guitarist and interpreter of guitar family instruments in tours throughout Brazil, England and other European countries. At the invitation of Anna Maria Kieffer, Gisela specialized in the technique of Brazilian Baroque guitar to participate in the phonographic documentation of eighteenth- and nineteenth-century Brazilian music. Gisela has recorded several works with the following artists: Luiza Sawaya, Anna Maria Kieffer, Edelton Gloeden, Gustavo Costa and with the groups Carmina de música antiga and ANIMA. She was a member of the medieval music group Núcleo Tálea, led by singer and medievalist Fernando Carvalhaes. Brazilian baroque guitar made by Roberto Gomes, São João del Rey, MG, 1988, after an original model found in Tiradentes, Fazenda Capivari, 1765
Fiaminghi nasceu em São Paulo, em 1958. Professor associado da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, nas áreas de musicologia/etnomusicologia, percepção musical e práticas interpretativas. É coordenador do projeto de pesquisa A Vez e a Voz da Rabeca (CEART - UDESC) que concentra-se na música dos sécs. XVII e XVIII, retórica musical, violino barroco, rítmica e rabeca brasileira. Como diretor executivo, diretor musical e produtor do Grupo ANIMA, realizou turnês no Brasil e no exterior e foi ganhador dos prêmios APCA (1998), Carlos Gomes (2000), Prêmio Funarte de Música Brasileira (2012).Concluiu seu doutorado em práticas interpretativas pela UNICAMP, com a tese Violino violado: rabeca, hibridismo e desvio do método nas práticas interpretativas contemporâneas – tradição e inovação em José Eduardo Gramani. Por essa mesma universidade bacharelou-se em composição em 1996. Atuou em diversas orquestras barrocas, dentre elas a Orquestra Barroca da Comunidade Europeia. Realizou especialização em Cultura Barroca, pela UFOP, MG, recebendo orientação do Prof. Dr. João Adolfo Hansen (USP) em sua dissertação Violino e Retórica na Escola de Violino de Francesco Geminiani. Na sua formação como violinista teve como mestre Paulo Bosísio, no Brasil e posteriormente especializou-se em violino barroco na Holanda com Marie Leonhardt e Alda Stuurop. Atualmente atua como membro do conjunto Os Músicos de Capella, sob direção de Luis Otavio Santos, São Paulo. Integrou o Núcleo Tálea de música medieval, coordenado pelo cantor e medievalista Fernando Carvalhaes. Fiaminghi was born in São Paulo in 1958. He is an Associate Professor at the State University of Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, in the fields of musicology/ethnomusicology, musical perception and performance practices. His research concentrates on seventeenth- and eighteenth-century music, musical rhetoric, Baroque violin, rhythm and Brazilian fiddles. As executive director, music director and producer of Grupo ANIMA, Fiaminghi has toured Brazil and abroad and received awards from APCA (1998), Carlos Gomes (2000), and the Funarte Brazilian Music Award (2012). He completed his doctora-
LUIZ FIAMINGHI
rabecas brasileiras Brazilian fiddles
te in performance practices at the University of São Paulo-Campinas (UNICAMP) with the dissertation Violated Violin: Brazilian Fiddle, Hybridism and Method Deviation in Contemporary Performance Practices – Tradition and Innovation in José Eduardo Gramani. Luiz received a B.A. in composition at the same university in 1986. He has performed in several Baroque orchestras, among them the European Community Baroque Orchestra. Fiaminghi completed a specialization in Baroque culture at UFOP, Minas Gerais. Professor Dr. João Adolfo Hansen (USP) advised his thesis Violin and Rhetoric at the Francesco Gemi-
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niani Violin School. In his training as a violinist he has studied under master Paulo Bosísio in Brazil, and subsequently in Baroque violin in the Netherlands with Marie Leonhardt and Alda Stuurop. He is currently a member of the group Os Músicos de Capella, directed by Luis Otavio Santos, São Paulo. He was also a member of the medieval music group Núcleo Tálea, led by the singer and medievalist Fernando Carvalhaes. rabeca (1) construída por Nelson da Rabeca, Marechal Deodoro, AL; madeira raiz de jaqueira; afinação Sol2/Ré3/Sol3/Si3 Brazilian fiddle (1) made by Nelson da Rabeca, Marechal Deodoro, AL; wood of jaca tree; tuning G2/D3/G3/B3 rabeca (2) construída por Nelson da Rabeca, Marechal Deodoro, AL; madeira gameleira; afinação Lá2/Mi3/Lá3/Dó#3 Brazilian fiddle (2) made by Nelson da Rabeca, Marechal Deodoro, AL; wood of gameleira tree; tuning A2/E3/A3/C#3 rabeca (3) construída por Nelson da Rabeca, Marechal Deodoro, AL; madeira pau mijão; afinação Mi 2/Si 2/Mi 3/Sol#3 Brazilian fiddle (3) made by Nelson da Rabeca, Marechal Deodoro, AL; wood of pau mijão tree; tuning E2/B2/E3/G#3
HUGO PIERI
barítono voice O barítono, Hugo Pieri, nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais. Formou-se em Regência pela Universidade Federal de Minas Gerais. Na Europa, a partir de 2005, especializou-se em canto tendo como foco a interpretação da música barroca. Em 2007 obtém o Diploma de Estudos Musicais pelo Conservatório de Estrasburgo na França e em 2012 conclui o mestrado em performance em Canto na Música Antiga pela Escola Superior de Música em Trossingen, na Alemanha, nas classes dos professores Gundula Anders e Jan van Elsacker. Atua como solista, coralista e integra vários grupos de música antiga em diversos países: Schola Stralsundensis (Holanda) e Los Biganos (França) e junto aos músicos Hervé Niquet, Martin Gester e Maurice van Lieshout. Paralelo à sua atuação como cantor, desenvolveu trabalho como regente e professor de voz no Projeto Guri, São Paulo. Em seu projeto O Canto Livre alia as diversas influências vivenciadas em práticas corporais e energéticas à técnica vocal e ao fazer musical. Seu trabalho como performador da música visa investigar e conectar arte, corporalidade e presença.
The baritone Hugo Pieri, was born in Belo Horizonte, Minas Gerais. He has a degree in Conducting from the Federal University of Minas Gerais. In Europe from 2005 onwards, he specialized in singing, focusing on the interpretation of Baroque music. In 2007 he obtained a Diploma of Musical Studies from the Conservatory of Strasbourg, France and in 2012 completed his Master’s Degree in Performance in Early Music Singing at the School of Music in Trossingen, Germany, studying with Professors Gundula Anders and Jan van Elsacker. He sings as a soloist, choralist, and is a member groups of ancient music in several countries: Schola Stralsundensis (Holland) and Los Biganos (France), working also together with the musicians Hervé Niquet, Martin Gester and Maurice Van Lieshout. Parallel to his work as a singer, he has acted as conductor and voice teacher at Projeto Guri, São Paulo. In his project O Canto Livre, Hugo brings various influences experienced in bodily and energetic practices together with vocal technique and music making. His work as a music performer endeavors to investigate and connect art, corporality and presence.
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PAULO DIAS
percussão afro-brasileira, órgão portativo
Afro-Brazilian percussion, organetto
Nascido em São Paulo em 1960, é músico, produtor e livre-pesquisador de música. Tem como mestres de tradições afro-brasileiras, entre outros, Seu Romário Caxias no Batuque de Capivari, capitães Dirceu Ferreira Sérgio e João Lopes nos Reinados Mineiros, Antonio Marcondes Filho (Totonho) e Dona Maria José Martins (Dª Masé) no Jongo do Tamandaré, ogã Leandro Peres no Candomblé. Estudou piano com Anna Stela Schic e Pierre Sancan; cravo com Helena Jank e órgão com Doroteia Kerr. Bacharelou-se em piano na UNICAMP, SP, como aluno de Fernando Lopes. Foi professor e pianista correpetidor no Coral da USP. Desde 1988 dedica-se ao mapeamento, documentação e estudo das comunidades detentoras de tradições musicais populares, mais especificamente aquelas com forte presença centro-africana na Região Sudeste. Fundou e dirige a Associação Cultural Cachuera!, voltada ao registro, divulgação e reflexão sobre as culturas populares brasileiras, com várias publicações em CD, video-documentário, livros, junto com a realização de eventos públicos sobre o tema. Pela Associação Cultural Cachuera! recebeu a premiação “Ordem do Mérito Cultural” do governo Lula. Como ensaísta publica no Brasil e exterior. É membro da cátedra Kaapora, da UNIFESP, que tem por objetivo lutar pela presença epistêmica indígena e afrodescendente nessa instituição, rumo à simetrização com o modo acadêmico-ocidental de produção de conhecimento hoje dominante.
Born in São Paulo in 1960, Paulo Dias is a musician, producer and independent scholar of music. For Afro-Brazilian traditions, he studied under the masters Seu Romário Caxias with Batuque de Capivari, captains Dirceu Ferreira Sérgio and João Lopes with Reinados Mineiros, Antonio Marcondes Filho (Totonho) and Dona Maria José Martins (Dona Masé) with Jongo do Tamandaré, and Ogan Leandro Peres in Candomblé, among others. He studied piano with Anna Stela Schic and Pierre Sancan; harpsichord with Helena Jank and organ with Doroteia Kerr. He received his undergraduate degree in Piano from the University of São 80
Paulo-Campinas (UNICAMP), as a student of Fernando Lopes. He was an instructor and piano player with the University of São Paulo Chorale. Since 1988 he has dedicated himself to the mapping, documentation and study of communities maintaining popular music traditions, specifically those in the Southeastern region of Brazil and with a strong Central African presence. He is a founder and director of the Cachuera! Cultural Association, dedicated to registering, disseminating and reflecting upon popular Brazilian cultures, with various publications in CD format, video documentary, books, along with public events on the subject. With Cachuera! Cultural Association he received under Lula’s government the Order of Cultural Merit award. As an essayist Paulo publishes in Brazil and abroad. He holds the Kaapora Chair at UNIFESP, which endeavors to fight for indigenous and afrodescendent epistemic presence at this institution, with the goal of achieving symmetry with the dominant mode of Western academic production of knowledge.
atabaques de tarracha rumpi (1), autor Luis Poeira, Instituto Tambor. 2019, São Paulo, SP Candomblé's support drum (rumpi) (1), by Luis Poeira, Instituto Tambor. 2019. São Paulo, SP gã (2), autor desconhecido. Salvador, BA gã bell (2), unknown author, Salvador, BA banza ou chocalho de vime (3), autor desconhecido. São Tomé e Príncipe banza shaker (3), unkown author. São Tomé e Príncipe órgão portativo 26 tubos (4) (modelo “Huelgas”), Stefan & Anette Keppler Wolkenstayn, 2011. Koetz, Alemanha organetto (portative organ) (4), 26 pipes (Huelgas design), Stefan & Anette Keppler Wolkenstayn, 2011, Koetz, Germany pandeirão 17” (5) com afinação pneumática. Autor desconhecido bendir 17” (5) (pneumatic tuning), unkown author pandeiro 11” (6), Fernando “Boi” Gontijo. São Paulo, SP Brazilian tambourine 11” (6), Fernando “Boi” Gontijo, São Paulo, SP
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SILVIA RICARDINO
harpa medieval
Medieval harp
Iniciou seus estudos de piano e harpa em São Paulo como aluna de piano de Henriqueta Ricardino e Fritz Jank, entre outros. Estudou harpa de concerto, em São Paulo, com Laura Ferraro, Elsa Guarnieri e Henriqueta Ricardino. Aperfeiçoou-se, em Paris, com a harpista e compositora Annie Challan. Lecionou História da Música e História da Arte na Faculdade de Música Carlos Gomes, de São Paulo. Idealizou e apresentou programas sobre a harpa produzidos e transmitidos pela Rádio Cultura FM, de São Paulo. Foi professora de harpa da Escola Municipal de Música de São Paulo e membro da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Desde 1984 atua em duo com o flautista Marco Antonio Cancello. Integrou o Núcleo Tálea de música medieval, coordenado pelo cantor e medievalista Fernando Carvalhaes. Dedicando-se preferencialmente à música de câmara, é intérprete de harpa de concerto, harpa celta e harpa medieval. Silvia também é tradutora de grego moderno, em especial da obra do cretense Nikos Kazantzákis, de quem traduziu diretamente para o português O Capitão Mihális, Vida e Proezas de Aléxis Zorbás e Ascese, todos editados pela Grua Livros, São Paulo.
harpa modelo troubadour de 22 cordas, Camac, França, 1984 harp troubadour model, 22 strings, Camac, France, 1984 Silvia Ricardino began her piano and harp studies in São Paulo as a student of Henriqueta Ricardino and Fritz Jank, among others. She studied concert harp in São Paulo with Laura Ferraro, Elsa Guarnieri and Henriqueta Ricardino. She conducted advanced studies in Paris with the harpist and composer Annie Challan. Silvia taught music history and art history at the Carlos Gomes Music College in São Paulo. She has created and presented programs on the harp that were produced and transmitted by Rádio Cultura FM in São Paulo. She was harp instructor at the Municipal School of Music, São Paulo, and member of the Municipal Symphonic Orchestra São Paulo.
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Since 1984 she has performed in a duo with the flautist Marco Antonio Cancello. She was a member of the medieval music group Núcleo Tálea, led by the singer and medievalist Fernando Carvalhaes. Dedicated principally to chamber music, Silvia performs the concert harp, Celtic harp, and medieval harp. She also translates modern Greek, in particular the work of the Cretan author Nikos Kazantzákis, of which she has translated directly into Portuguese Captain Michalis, Zorba the Greek and Ascesis, all published by Grua Livros, São Paulo.
VALERIA BITTAR
flautas doces recorders
Nasceu em São Paulo, em 1962. Estudou flauta doce com João Dias Carrasqueira, mestre do choro paulista. Bacharelou-se em flauta doce na Universidade de Música e Artes Dramáticas de Viena, Áustria, como bolsista da Fundação Alban Berg de Apoio à Pesquisa de Música Contemporânea. Participou de master classes na Alemanha, Suíça, Holanda e Itália. Sob orientação da Profa. Dra. Suzi Sperber, doutorou-se em Artes (Poéticas da Escritura Cênica) na UNICAMP com a tese Músico e Ato. Trabalha sobre performance em música através da percepção corpórea, sendo formada em Didática da Técnica Klauss Vianna Escuta do Corpo. É professora de Prática de Conjunto e flauta doce na Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, onde também coordena o projeto de pesquisa Músicos, música e instrumentos: investigação da performance na música histórica e na música popular tradicional e o programa de extensão Flauta Doce – performance e formação. Responsável pela direção executiva e produção gráfica dos CD’s e espetáculos do Grupo ANIMA, do qual é fundadora: Mar Anterior (2018-2020), Encantaria (2012-2016), Donzela Guerreira (2008-2013), Espelho (2006), Amares (2003), Especiarias (2000), Espiral do Tempo (1998). Como integrante do Grupo ANIMA recebeu os prêmios: FUNARTE MÚSICA BRASILEIRA (2012), APCA (1998) e V Prêmio Carlos Gomes (2.000), apresentando-se em todo o Brasil, na Alemanha, Áustria, Suíça, França, Itália, Luxemburgo, EUA, Canadá, Argentina, Bolívia, Paraguai, Colômbia, Uruguai e México. É integrante do grupo Harmonia Universalis de música antiga e integrou o Núcleo Tálea de música medieval, coordenado por Fernando Carvalhaes.
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Born in São Paulo in 1962, Valeria studied recorder with João Dias Carrasqueira, master of São Paulo choro music. She received a Bachelor’s degree in recorder from the University of Music and Dramatic Arts, Vienna, Austria, with a scholarship from the Alban Berg Foundation for Support and Research on Contemporary Music. She has participated in master classes in Germany, Switzerland, Holland and Italy. Advised by Professor Suzi Sperber (PhD), Valeria earned her doctorate in Arts (Scenic Poetics) at the University of São Paulo-Campinas (UNICAMP) with the dissertation Musician and Act. She works on music performance through bodily perception, having been trained in the Klauss Vianna didactic technique-Listening to the Body. She is a professor of ensemble practice and recorder at the State University of Santa Catarina, Florianopolis, where she also directs the research project Musicians, Music and Instruments: Investigation of the Performance of Historical Music and Traditional Popular Music and the extension program Recorder – Performance and Didactic. Responsible for executive direction and graphic production of the following CDs and concerts for Grupo ANIMA, of which she is a founding member: Mar Anterior (2018-2020), Encantaria (2012-2016), Donzela Guerreira (2008-2013), Espelho (2006), Amares (2003), Especiarias (2000), Espiral do Tempo (1998). As a member of Grupo ANIMA she has received the following awards: FUNARTE Brazilian Music (2012), APCA (1998) and V Carlos Gomes Award (2000), performing throughout Brazil, and in Germany, Austria, Switzerland, France, Italy, Luxembourg, USA, Canada, Argentina, Bolivia, Paraguay, Colombia, Uruguay and Mexico. She was a member of the the medieval music group Núcleo Tálea, led by Fernando Carvalhaes and is a member of the early music group Harmonia Universalis. flauta contralto em fá (1): construída por Monika Musch, Freiburg, Alemanha, 2015, a partir de modelo Sylvestro Ganassi (Veneza 1492 - ?) f alto recorder (1): made by Monika Musch, Freiburg, Germany, after Sylvestro Ganassi (Venice 1492 - ?) flauta tenor em dó (2): construída por Luca de Paolis, L’Aquila, Itália, 2005, a partir de modelo C. Rafi, P. Grece (Itália, sécs. XVI-XVII) c tenor recorder (2): made by Luca de Paolis, L’ Aquila, Italy, 2005, after C. Rafi, P. Grece (Italy,
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16 th -17 th cent.) flauta soprano em dó (3): construída por Monika Musch, Freiburg, Alemanha, 2015, a partir de modelo Sylvestro Ganassi (Veneza 1492 - ?) c soprano recorder (3): made by Monika Musch, Freiburg, 2015, after Sylvestro Ganassi (Venice 1492 - ?) flauta soprano em dó (4): construída por Helge Stiegler, Weyer, Áustria, 1999, a partir de modelo Jacob van Eyck (Holanda, ca. 1590 – 1657) c soprano recorder (4): made by Helge Stiegler, Weyer, Austria, 1999, after Jacob van Eyck (Netherlands, ca. 1590 – 1657) flauta contralto em sol (5): construída por Adriana Breukink, Holanda, 2015, a partir de modelos da família Bassano (Itália, séc. XVI) – acervo Universidade de São Paulo g alto recorder (5): made by por Adriana Breukink, Netherlands, 2015, after Bassano's family models (Italy, 16th cent.) – Universidade de São Paulo flauta baixo em fá (6) construída por por Adriana Breukink, Holanda, 2015, a partir de modelos da família Bassano (Itália, séc. XVI) – acervo Universidade de São Paulo. f bassetto recorder (6): made by por Adriana Breukink, Netherlands, 2015, after Bassano's family models (Italy, 16th ent.) – Universidade de São Paulo flauta baixo em dó (7): construída por por Adriana Breukink, Holanda, 2015, a partir de modelos da família Bassano (Itália, séc. XVI) acervo Universidade de São Paulo. c bass recorder (7): made by por Adriana Breukink, Netherlands, 2015, after Bassano's family models (Italy, 16th cent.) – Universidade de São Paulo
AULOS – NÚCLEO INTERUNIVERSITÁRIO DE FLAUTAS DOCE: As flautas (5 a 13) construídas por Adriana Breukink, a partir de modelos da família Bassano (Itália, séc. XVI) foram gentilmente cedidas pelo Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), a partir de convênio firmado entre esta Universidade e a Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), como parte do Projeto de Pesquisa Músicos, Música e Instrumentos: investigação da performance na música histórica e na música popular tradicional, coordenado por Valeria Bittar, dentro do Grupo de Pesquisa MUSICS (Música Cultura e Sociedade).
Liduino Pitombeira . flauta tenor em dó (12): construída por Adriana Breukink, Holanda, 2015, a partir de modelos da família Bassano (Itália, séc. XVI) acervo Universidade de São Paulo Liduino Pitombeira . c tenor recorder (12): made by Adriana Breukink, Netherlands, 2015, after Bassano's family models (Italy, 16th cent.) – Universidade de São Paulo
AULOS – INTERUNIVERSITY RECORDER ENSEMBLE: The recorders (5 and 13) built by Adriana Breukink from Bassano family models (Italy, XVI century) were graciously furnished by the Department of Music of the School of Arts and Communications (ECA) at the University of São Paulo (USP), based on an agreement between USP and the State University of Santa Catarina (UDESC) as part of the research project Musicians, Music and Instruments: Investigation of the Performance of Historical Music and Traditional Popular Music, directed by Valeria Bittar within the MUSICS (Music, Culture and Society) research group. David Castelo . flauta soprano em dó (8), flauta contralto em fá (9), flauta tenor em dó (10): construídas por Adriana Breukink, Holanda, 2015, a partir de modelos da família Bassano (Itália, séc. XVI) acervo Universidade de São Paulo David Castelo . c soprano recorder (8), f alto recorder (9), c tenor recorder (10): made by Adriana Breukink, Netherlands, 2015, after Bassano's family models (Italy, 16th cent.) – Universidade de São Paulo
Monica Lucas . flauta tenor em dó (13): construída por Adriana Breukink, Holanda, 2015, a partir de modelos da família Bassano (Itália, séc. XVI) acervo Universidade de São Paulo Monica Lucas . c tenor recorder (13): made by Adriana Breukink, Netherlands, 2015, after Bassano's family models (Italy, 16th cent.) – Universidade de São Paulo Valeria Bittar . flauta baixo em dó (7): construída por Adriana Breukink, Holanda, 2015, a partir de modelos da família Bassano (Itália, séc. XVI) acervo Universidade de São Paulo Valeria Bittar . c bass recorder (7): made by Adriana Breukink, Netherlands, 2015, after Bassano's family models (Italy, 16th cent.) – Universidade de São Paulo
Flávio Stein . flauta baixo em fá (11): construída por Adriana Breukink, Holanda, 2015, a partir de modelos da família Bassano (Itália, séc. XVI) acervo Universidade de São Paulo Flávio Stein . f bassetto recorder (11): made by Adriana Breukink, Netherlands, 2015, after Bassano's family models (Italy, 16th cent.) – Universidade de São Paulo
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OGÃ LEANDRO PEREZ
percussão afro-brasileira e canto (artista convidado) Afro-Brazilian percussion and voice (guest artist)
Músico e ator, o ogã Leandro Perez especializou-se como percussionista, trabalhando a musicalidade e suas interfaces no treinamento do intérprete-criador em teatro e dança. Pesquisador da cultura popular brasileira, especificamente a afro-brasileira, é professor de percussão, capoeira e teatro. Há mais de dez anos é ogã (tocador de atabaques) no Terreiro de Umbanda e Candomblé Tenda de Umbanda Caboclo Vira-Mundo e Caboclo Treme-Terra, na zona norte de São Paulo.Como ator – é palhaço e também graduado no curso de Licenciatura em Arte-Teatro pelo IA - UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, com a monografia O ogã-de-teatro: O(s) trânsito(s) entre a prática artística e a religiosa. Estudou a percussão Malinkê e ritmos originários do Oeste da África. Desenvolve pesquisa voltada para a música popular brasileira, especialmente de manifestações populares, como o Candomblé, Umbanda, Bumba meu Boi, Jongo, Capoeira, Samba de roda e Congadas. Como músico-intérprete e diretor musical integra espetáculos junto às companhias de dança negra contemporânea, como: Nave Gris Cia. Cênica (desde 2013), o Coletivo Desvelo (desde 2015) e também o Grupo Cachuera!. Atua como arte-educador em diversos projetos, oficinas e cursos que envolvem a cultura do brincar e as culturas de matrizes afro-brasileiras. atabaque de tarracha rum (1), autor Luis Poeira, Instituto Tambor. 2019, São Paulo, SP Atabaque Rum, Candomble’s master drum (1), by Luis Poeira, Instituto Tambor. 2019, São Paulo, SP
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A musician and actor, the Ogan Leandro Perez is a specialist in percussion, working on musicality and its interfaces in the training of the performer-creator in theater and dance. A scholar of Brazilian popular culture, specifically Afro-Brazilian culture, Ogan Leandro is a professor of percussion, capoeira and theater. He has been an Ogan (atabaque player) for more than ten years in the terreiro of Umbanda and Candomblé Tenda de Umbanda Caboclo Vira-Mundo e Caboclo Treme-Terra, located in the north of São Paulo. As an actor, Ogan Leandro is a clown with a Licentiate degree in Theater-Arts from IA-UNESP, São Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho”, with the monography The Theater-Ogan: Transit(s) between Artistic and Religious Practice. He studied Malinke percussion and rhythms from West Africa. Ogan Leandro’s research is focused on Brazilian popular music, especially popular manifestations such as Candomblé, Umbanda, Bumba meu Boi, Jongo, Capoeira, Samba de Roda and Congadas. As a musicianperformer and music director, he integrates theater with contemporary black dance companies, such as: Nave Gris Compania Cênica (since 2013), Coletivo Desvelo (since 2015) and also Grupo Cachuera!. He works as an art educator in several projects, workshops and courses that involve the culture of play and the cultures of the Afro-Brazilian matrices.
CANTIGAS E SEUS TOQUES O que caracteriza um toque é o clave do gã somado às bases do rumpi e do lé e às frases do rum. O rum dialoga diretamente com a dança e com os cânticos. O clave mais comum é o vassi, base rítmica utilizada em diversos toques (12 pulsos). Os nomes dos toques no vassi variam de acordo com o andamento, as frases do rum e a dança. É importante ressaltar que há toques comuns ao culto de diferentes orixás, e outros que são específicos de determinadas divindades. Abaixo estão as denominações dos toques que utilizamos em cada faixa, seguidas de suas transcrições no sistema xisponto, criado pela etnomusicologia para grafar os claves (ou ciclos de timeline). O xis corresponde a um pulso-som e o ponto a um pulso-silêncio, ambos com igual valor de tempo. Entre parênteses, o número de pulsos básicos do ciclo. 1. IBARABÔ - Primeiro toque: Mojuba, base vassi, andamento moderado. Toque destinado ao orixá Exu, em iorubá significa “meus respeitos”. Pode ser utilizado para outros orixás. - Segundo toque: Lagunló, base vassi, andamento rápido. Toque destinado ao orixá Ogum, aqui utilizado por dar sequência ao ritual do xirê, como no candomblé, introduzindo também as próximas faixas destinadas a Ogum. Clave do vassi: (12) x.x.xx.x.x.x 2. NON SEI COMO ME SALV’A MHA SENHOR - IBARABÔ - Toque: Mojuba. ANIMA 3. Quix Ben 4. Ogum - Toque Batá, destinado a Otin, pode ser utilizado para quase todos os orixás e também em rituais de entrada e de consagração de determinados atos. Clave: (6) xx....
SUÍTE OXUMARÊ 8. Lori Orun (céu colorido ou arco íris) - Primeiro toque: Mojuba. Vale ressaltar que esse toque não é o correto para esta cantiga, mas logo em seguida executamos o cântico e o toque como são realizados nos terreiros. - Segundo toque: Kitipô, base vassi, andamento lento. Toque destinado a Nanã. Pode ser usado para outros orixás, como, na faixa em questão, o orixá Oxumarê. Clave do vassi: (12) x.x.xx.x.x.x - Terceiro toque: Oguera, base vassi, andamento entre moderado e rápido. Toque destinado ao orixá Osoguian, também é usado em outras ocasiões. Nesta faixa, escolhemos o Oguera por ser o mesmo toque utilizado na última cantiga do xirê de Oxumarê. Clave do vassi: (12) x.x.xx.x.x.x 11. Ejó (serpente) Toque Caça ou Corridinha, base vassi, andamento rápido. Toque destinado aos orixás da caça ou que caçam (Oxóssi, Ogum, Oxumarê, Oiá, Obá entre outros); a dança neste momento representa a espreita do caçador, a estratégia para abater a caça, o ir e o vir, ou seja, a consciência dos momentos de avançar e recuar. Clave do vassi: (12) x.x.xx.x.x.x 15. QUE MUI GRÃO PRAZER QUE EU HEI, SENHOR - É TI Ó - IMPROVISAÇÃO SOBRE É TI Ó - Primeiro toque: Awoyo Oge, base vassi, andamento moderado. Alguns toques não possuem um nome específico e são utilizados em determinadas cantigas; Awoyo Oge recebe o nome da cantiga em que ele é tocado e, neste trabalho, foi escolhido para a cantiga É TI Ó. Ambas são destinadas à orixá Iemanjá. Clave do vassi: (12) x.x.xx.x.x.x - Segundo toque: Alujá, base vassi, andamento rápido a muito rápido. O Alujá é o toque do orixá Xangô. Não é exclusivo desse orixá, mas é seu ritmo mais característico. Este toque é como uma brasa: no início, um fogo baixo que quase não esquenta, até chegar a um calor tão grande que é semelhante a um vulcão. Começa lento e vai aumentando, até um andamento mais acelerado que o Lagunló. Clave do vassi: x.x.xx.x.x.x
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16. SEREIA DO MAR Toque Agabi ou Tedô, base vassi, andamento rápido. Este é um toque em que o rum, o rumpi e o lé são tocados com as mãos. É um ritmo que não se destina a um orixá específico, mas é muito tocado para Xangô, Ogum e outros. Um toque muito animado e com grande complexidade no desempenho do rum em relação aos contratempos e frases de base. Clave do vassi: (12) x.x.xx.x.x.x 17. YEMANJÁ ÔTÔ - Primeiro toque: Awo, em iorubá significa “segredo”. Ritmo destinado ao orixá Ossain, mas não é exclusivo dele. Este toque é muito confundido com o Agueré de Oxóssi, porém são completamente diferentes, tanto em relação às bases de gã, rumpi e lé, quanto ao rum e, principalmente, à dança. Este toque possui outra característica interessante que é chamada de dobra, ou seja, a aceleração do andamento da base e frases diferentes do rum consequentemente passos diferentes na dança. Clave do Awo: (8) xx..x.x. - Segundo toque: Kitipô, base vassi, andamento lento. Clave do vassi: (12) x.x.xx.x.x.x
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19. O FONDO DO MAR TAN CHAO - OFULU LORÊRÊ Ê - Primeiro toque: Awo. Este é tocado para Oxalá, diferente do Awo tocado para Ossain. As bases de gã, rumpi e lé são as mesmas, mas o rum tem algumas variações que são chamadas de “quebras” ou “caídas”, por conta da dança deste orixá em questão - ou seja, muda a dança, muda o toque. Clave do Awo: (8) xx..x.x. - Segundo toque: Paó O Paó é uma sequência de palmas batidas ritmicamente pelos participantes do culto. Segundo o babá Edson de Oxum, o rito do Paó destina-se a chamar a atenção da divindade, ao abrir e fechar o ciclo de qualquer ritual. Assim, encerramos nosso CD com o Paó feito nos tambores rum e rumpi. Epa Babá! Ogã Leandro Perez
SONGS AND THEIR RHYTHMS What characterizes a rhythm is the gã’s clef added to the rumpi and lé bases and to the rum phrases. The rum dialogues directly with the dance and with the canticles. The most common clef is the vassi, the rhythmic base utilized in various rhythms (12 pulses). The vassi rhythms’ names vary according to the progression, rum phrases and dance. It is important to highlight that there are rhythms common to different Orishas’ worship, and others which are specific to certain divinities. Below are the denominations of the rhythms we use on each track, followed by their transcriptions in the x-point system—created by ethnomusicologists to graph clefs (or timeline cycles). The x corresponds to a sound-pulse and the point to a silence-pulse, both with equal time value. The number of the cycle’s basic pulses is in parentheses. 1. IBARABÔ - First rhythm: Mojuba, vassi base, moderate progression. Meaning “my respects” in Yoruba, this rhythm is assigned to the Orisha Exu. It can be utilized for other Orishas. - Second rhythm: Lagunló, vassi base, rapid progression. Rhythm assigned to the Orisha Ogum, utilized here to begin the xirê ritual, as in Candomblé, also introducing the next tracks designated for Ogum. Vassi clef: (12) x.x.xx.x.x.x 2. NON SEI COMO ME SALV’A MHA SENHOR - IBARABÔ - Rhythm: Mojuba. 1- Quix Ben and A tal estado m'adusse: - Batá rhythm, assigned to Otin, can be utilized for almost all the Orishas and also in entrance rituals and consecration of certain acts. Clef: (6) xx.... SUÍTE OXUMARÊ 8. Lori Orun (colored sky or rainbow) - First rhythm: Mojuba. It is worth pointing out that this rhythm is not the correct one for this song, but next we perform the canticle and the rhythm as they are in the terreiros. - Second rhythm: Kitipô, vassi base, slow
progression. Rhythm assigned to Nanã. It can be used for other Orishas, like, on the track in question, the Orisha Oxumarê. Vassi clef: (12) x.x.xx.x.x.x - Third rhythm: Oguera, vassi base, between moderate and rapid progression. Rhythm assigned to the Orisha Osoguian, it is also used on other occasions. On this track, we choose Oguera as it is the same rhythm utilized in the last Oxumarê xirê song. Vassi clef: (12) x.x.xx.x.x.x 11. Ejó (serpent) Caça or Corridinha rhythm, vassi base, rapid progression. Rhythm assigned to the Orishas of the hunt or those who hunt (Oxóssi, Ogum, Oxumarê, Oiá, Obá among others); a dance at this moment represents the hunter’s stalking, the strategy to slaughter the prey, the coming and going, that is, the awareness of advancing and retreating moments. Vassi clef: (12) x.x.xx.x.x.x 15. QUE MUI GRÃO PRAZER QUE EU HEI, SENHOR - É TI Ó - IMPROVISAÇÃO SOBRE É TI Ó - First rhythm: Awoyo Oge, vassi base, moderate progression. Some rhythms do not possess a specific name and are utilized in certain songs. Awoyo Oge takes the name of the song in which it is played and, in this work, was chosen for the song É TI Ó. Both are assigned to the Orisha Iemanjá. Vassi clef: (12) x.x.xx.x.x.x - Second rhythm: Alujá, vassi base, rapid to very rapid progression. Alujá is the rhythm of the Orisha Xangô. It is not exclusive, but it is the most characteristic beat of this Orisha. This rhythm is like an ember: at the beginning, a small fire which almost does not warm, until it reaches a heat so strong that it is similar to a volcano. It starts slowly but then begins growing — to a progression more accelerated than Lagunló. Vassi clef: x.x.xx.x.x.x
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16. SEREIA DO MAR Agabi or Tedô rhythm, vassi base, rapid progression. This is a rhythm in which the rum, rumpi and lé are played with the hand. It is a beat which is not assigned to a specific Orisha, but is often played for Xangô, Ogum and others. It is a very animated rhythm with great rum performance complexity in relation to the off-beat and base phrases. Vassi clef: (12) x.x.xx.x.x.x 17. YEMANJÁ ÔTÔ - First rhythm: Awo, means “secret” in Yoruba. Beat assigned to the Orisha Ossain, but not exclusively. This rhythm is often confused with the Agueré of Oxóssi, however they are completely different — as much in relation to the gã, rumpi and lé bases, as to the rum and, mainly, to the dance. This rhythm possesses another interesting characteristic which is called dobra, acceleration of base progression and different rum phrases — and, consequently, different dance steps. Awo clef: (8) xx..x.x. - Second rhythm: Kitipô, vassi base, slow progression. Vassi clef: (12) x.x.xx.x.x.x
19. O FONDO DO MAR TAN CHAO - OFULU LORÊRÊ Ê - First rhythm: Awo. This is played for Oxalá, different from the Awo played for Ossain. The gã, rumpi and lé bases are the same. However, the rum has some variations which are called “quebras” or “caídas”, on account of the dance of the Orisha in question—that is, when the dance changes, the rhythm changes. Awo clef: (8) xx..x.x. - Second rhythm: Paó Paó is a sequence of rhythmic clapping by the service participants. According to babá Edson de Oxum, the Paó rite is designed to draw the divinity’s attention, upon opening and closing any ritual’s cycle. Thus, we close our CD with the Paó played on the rum and rumpi drums. Epa Babá! Ogan Leandro Perez¹
________________________ ¹ Translated by Jesse Dylan Marsden.
Arquivo IEB - USP, Fundo Camargo Guarnieri, CG-caderneta-10, p. 90.
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1. IBARABÔ Luiz Fiaminghi (1958). Composição baseada em cantiga da tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, transmitida pelo ogã Leandro Perez, Terreiro Batistini, São Paulo. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez e Paulo Dias Luiz Fiaminghi (1958). Composition based on a song from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, transmited by Ogan Leandro Perez, Terreiro Batistini, São Paulo. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias Atabaque rum / Candomblé master drum (rum) (1): ogã Leandro Perez ∙ Atabaque rumpi/ Candomblé support drum (rumpi) (1): Paulo Dias ∙ voz / voice: ogã Leandro Perez ∙ viola de arame / Brazilian baroque guitar: Gisela Nogueira ∙ rabeca / Brazilian fiddle (1): Luiz Fiaminghi ∙ órgão portativo / organetto (4): Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flautas doce / recorders (1,2): Valeria Bittar Igba ragbo Ye Mojuba Ye Igba ko șé Igba ragbo Ye Mojuba Ye omade ko iko Igba ragbo Ye Mojuba Ye legbara Èșú lonan'
Ó grandioso que abençoa Sempre com respeito Intervém pelos fracos Ó grandioso que abençoa Sempre com respeito Ele não é criança Ó grandioso que abençoa Sempre com respeito Salve Elegbara Èșú seja bem-vindo
Oh great one Who always blesses with respect Intervene for the weak Oh great one Who always blesses with respect He is no child Oh great one Who always blesses with respect Hail Elegbara Welcome Èșú [Eshu]
Tradução: Babá Edson de Oșun
Translation: Marco Alexandre de Oliveira
2. NON SEI COMO ME SALV’A MHA SENHOR - IBARABÔ Dom Dinis (1261-1325). Cantiga 6. Em: FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberg. Kassel. 2005. Reconstrução realizada por Manuel Pedro Ferreira - Cantiga de tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu. Em: BÉHAGUE, Gerard. Patterns of Candomblé music performance: an Afro-Brazilian religious setting. Transcrição baseada em gravação realizada por Melville Herskovits, Salvador, BA, 1941-42, informada provavelmente por Mãe Menininha do Gantois. Versão e arranjo: Luiz Fiaminghi. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez e Paulo Dias King Dinis (1261-1325). Cantiga 6. In: FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberg. Kassel. 2005. Reconstructed by Manuel Pedro Ferreira - Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé. In: BÉHAGUE, Gerard. Patterns of Candomblé Music Performance: An Afro-Brazilian Religious Setting. Transcription based on recording by Melville Herskovits, Salvador, BA, 1941-42, probably informed by Mãe Menininha do Gantois. Version and arrangement: Luiz Fiaminghi. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias. Atabaque rum / Candomblé master drum (rum) (1): ogã Leandro Perez ∙ Atabaque rumpi / Candomblé support drum (rumpi) (1): Paulo Dias ∙ voz / voice: Hugo Pieri ∙ viola de arame / Brazilian baroque guitar: Gisela Nogueira ∙ rabeca / Brazilian fiddle (1): Luiz Fiaminghi ∙ banza /shaker (3): Paulo Dias: Paulo Dias ∙ órgão portativo / organetto (4): Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce / recorder (1): Valeria Bittar
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Non sei como me salv’a mha senhor Se me Deus ant’os seus olhos levar, Ca, par Deus, non ei como m’assalvar Que me non julgue por seu traedor, Refrão: pois tamanho temp’á que guareci sem seu mandad’oir e a non vi. E sei eu mui bem no meu coraçon O que mha senhor fremosa fará Depois que ant’ela for: julgarm’á Por seu traedor com mui gran razon, Refrão: pois tamanho temp’á que guareci sem seu mandad’oir e a non vi.
O grandioso que abençoa Sempre com respeito Intervem pelos fracos
Èșú akesan Ye Mojuba Ye omade ko iko
Èșú Akesan que abençoa Sempre com respeito Intervem pelos fracos
Ye igbaragbo Ye Mojuba Ye legbara Èșú onã
O grandioso que abençoa Sempre com respeito Salve Elegbara Èșú seja bem vindo Tradução: Babá Edson de Oșun
E pois tamanho foi o erro meu Que lhi fiz torto tan descomunal, Se mi asa gran mesura non val Julgarm’á poren por traedor seu, Refrão: pois tamanho temp’á que guareci sem seu mandad’oir e a non vi.
Oh great one Who always blesses With respect Intervene for the weak
Se o juízo passare assi, Ai eu cativ’! e que será de min?
Èșú [Eshu] Akesan Who always blesses With respect Intervene for the weak
O trovador não sabe como se justificar perante a sua senhora, quando a encontrar, pelo facto de conseguir viver há tanto tempo sem notícias dela e sem a ver. Decerto ela o considerará um traidor, quando estiver de novo na sua presença. Que será dele então?1 Since, my friend, God will find a way For you to go to the land where my lady is, I ask you now, by the love I bear you, that you ask her this: Soon to take pity on my pain. And I think that by your going there God will do me a favor, since you can see her, And, friend, tell her earnestly, Since I’ve been suffering so long, Soon to take pity on my pain. And since God is guiding you there, I think he did me a favor indeed, And since you know the pain I feel, Ask her, please, out of mercy for me, Soon to take pity on my pain. Translation: Rip Cohen 1
Igbaragbô Ye Mojuba Ye Igba koșe
LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. Disponível em: http://cantigas.fcsh.unl.pt. [Acesso em 21/07/2019]
Oh great one Who always blesses With respect Intervene for the weak Hail Elegbara Welcome Èșú [Eshu] Translation: Marco Alexandre de Oliveira
Nota do tradutor: Quando a gente fala Igbaragbô, é uma forma de se retratar a Èșú. Quando a gente diz Èșú Akesan, é uma forma de se retratar a Èșú. Em cada terra africana Èșú teve um nome, ou uma descrição, marcante ou emblemática, ou ambos. Em meio a isso, quando se canta cantigas que se tem essa abertura, a gente pode fazer várias voltas na cantiga, louvando Èșú, cada passagem da cantiga com um nome diferente e louvando ele em vários caminhos que ele caminhou por sobre a terra. Por isso, a diferença entre dizer Igbaragbô em uma estrofe, Akesã em outra. A tradução dessa cantiga diz assim: O grandioso que abençoa, sempre com respeito, intervém pelos fracos. Akesan, que abençoa, sempre com respeito, intervém pelos fracos. Sempre com respeito intervém pelos fracos. Sempre com respeito. Salve Elegbara. Èșú seja bem vindo. Quando a gente diz, Ó Nã, a gente está dizendo “caminho”. Quando a gente diz, Lonã, é uma descrição de quem está vindo do caminho para dentro de casa. Então, é uma forma de dizer “seja bem vindo”, àquele que está chegando. Comentário sobre a cantiga: Babá Edson de Oșun. Transcrição de áudio: ogã Leandro Perez e Paulo Dias. Translator's note: When we say Igbaragbô, it’s a way of portraying Èșú [Eshu]. When we say Èșú Akesan, it’s a way of portraying Èșú [Eshu]. In every African land Èșú (Eshu) had a name, or a description, which was striking or emblematic, or both. In the midst of this, when the cantigas that are in this opening are sung, we can do several rounds in the cantiga, praising Èșú [Eshu], each passage of the cantiga with a different name and praising him in several paths that he took across the land. That’s the reason for the difference between saying Igbaragbô in one stanza, Akesã in another. The translation of this cantiga goes like this: Oh great one, who always blesses with respect, intervene for the weak. Akesan, who always blesses with respect, intervene for the weak. Always with respect, intervene for the weak. Always with respect. Hail Elegbara. Welcome Èșú [Eshu]. When we say Ó Nã, we’re saying “path.” When we say Lonan, it’s a description of whoever is coming down the path towards our home. So, it’s a way of saying “welcome” to whoever is arriving. Commentary on the cantiga: Babá Edson de Oșun. Audio transcription: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias.
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ANIMA - Liduino Pitombeira (1962). Composição baseada nas Cantigas 7, Quix Ben e 2, A tal estado m’adusse, senhor de Dom Dinis (1261-1325). Em: FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberg. Kassel. 2005. Reconstrução realizada por Manuel Pedro Ferreira; e com base nas cantigas de tradição oral afro-brasileiras, candomblé ketu, Ogum Já Vai, Ogum Tinô Já e Agô Agô Lonã, recolhidas por Camargo Guarnieri, 2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937. Em: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios não-mecânicos. Vol. 1. Pref. do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez e Paulo Dias Liduino Pitombeira (1962). Composition based on Cantigas 7, Quix Ben and 2, A tal estado m’adusse, senhor by King Dinis (1261-1325). In: FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberg. Kassel. 2005. Reconstructed by Manuel Pedro Ferreira; and based on songs from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, Ogum Já Vai, Ogum Tinô Já and Agô Agô Lonã, collected by Camargo Guarnieri, 2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937. In: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios não-mecânicos. Vol. 1. Pref. do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez e Paulo Dias Atabaque rum / Candomblé master drum (rum) (1): ogã Leandro Perez ∙ Atabaque rumpi / Candomblé support drum (rumpi) (1): Paulo Dias ∙ voz / voice: Hugo Pieri ∙ viola de arame / Brazilian baroque guitar: Gisela Nogueira ∙ rabeca / Brazilian fiddle (1): Luiz Fiaminghi ∙ banza /shaker (3): Paulo Dias ∙ órgão portativo / organetto (4): Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce / recorder (1,3): Valeria Bittar
3. Quix ben Quix ben, amigos, e quer’e querrei Unha molher que me quis e quer mal E querrá, mais non vos direi eu qual É a molher; mais tanto vos direi: Refrão: quix ben e quer’e querrei tal molher Que me quis mal sempr’e querrá e quer.
I wished well, friend, and wish and shall wish A woman who wished and wishes me ill And will still, but I shall not say which Woman it is, but I shall tell you this: I wished and wish and shall wish well a lady Who wished and wishes and will wish me ill.
Quix e querrei e quero mui gran ben A quen mi quis mal e quer e querrá, Mais nunca homen per min saberá quen é; pero direivos unha ren: Refrão: quix ben e quer’e querrei tal molher Que me quis mal sempr’e querrá e quer.
I wished and shall wish and wish very well Someone who wished and wishes me ill, and will wish; But no man will ever know from me Who it is; but one thing I can tell: I wished and wish and shall wish well a lady Who wished and wishes and will wish me ill.
Quix e querrei e quero bem querer A quen me quis e quer, per bõa fe, Mal e querrá, mais non direi quen é; Mais pero tanto vos quero dizer: Refrão: quix ben e quer’e querrei tal molher Que me quis mal sempr’e querrá e quer.
I wished and shall wish and wish to wish well One who wished and wishes me, to tell the truth, Very ill, and will; but I shall not say who, but this much I shall tell you nonetheless: I wished and wish and shall wish well a lady Who wished and wishes and will wish me ill.
Dirigindo-se aos seus amigos, o trovador garante-lhes que nunca dirá quem é a mulher a quem quis, quer e quererá bem, sem correspondência.2
Translation: Rip Cohen
___________________________ 2
Idem.
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4. Ogum Ogum tinô já tacoa tacoa mãnã Ogum ami jacó o mibã mi côcô
Agô agô lonã Agô lonã ti deu a nicé Agô agô lonã Agô lonã ê ti deu anicé Agô agô lonã
informante: Adrovaldo Martins dos Santos grafia: Camargo Guarnieri Not. no. 192, Cod. no. 3
Ogum já vai já vai jê vé ai ai Ai maêdû lua ê ó ia ê ai ai Ai maiêdû
informante: Waldemar Ferreira dos Santos grafia: Camargo Guarnieri
informante: Adrovaldo Martins dos Santos grafia: Camargo Guarnieri Not. no. 191, Cod. no. 3
Ogun tino já Takoa takoa manan Ogun pa mi jakó Omi pa mi koko Ogun ye Diinajá Npa kopa Ekungba ewa Ogun aá Làanpadá Ogun ati e I ho ho
Not. no. 362, Cod. no. 5
Ago lonan Dide ma dago Ago ooo Ago lonan Ago lonan Dide wa niṣé ooo Ago ooo Ago lonan
Salve Ogun Aquele que Aprecia o sabor Da carne do cão Assim como o Leopardo aprecia E ambos comem o cão como Feijão Ogun já Mata com seu Facão e festeja
Quem entra Pede que se levantem Com licença Licença para quem entra Quem entra Pede que todos se Levantem com licença Dentro do Aṣé Licença para quem entra Tradução: Babá Edson de Oșun
Tradução: Babá Edson de Oșun
Hail Ogun He who Enjoys the flavor Of dog meat Just as the Leopard enjoys it And both eat dogs like beans Yet Ogun Kills with his Knife and celebrates
Who ever enters Asks everyone to stand up With permission Permission for whoever enters Whoever enters Asks everyone To stand up with permission Inside the Așé [Ashe] Permission for whoever enters
Translation: Marco Alexandre de Oliveira
Nota do tradutor: Ogunjá Salve Ogum, aquele que aprecia o sabor da carne do cão, assim como o leopardo aprecia. E ambos comem o cão como comem feijão. Ogunjá mata com seu facão e festeja. Comentário sobre a cantiga: Babá Edson de Oșun. Transcrição de áudio: ogã Leandro Perez e Paulo Dias.
Translation: Marco Alexandre de Oliveira
Translator’s note: Hail Ogun, he who enjoys the taste of dog meat, just as the leopard does. And both eat dog like they eat beans. Ogunjá kills with his knife and celebrates. Commentary on the cantiga: Babá Edson de Oșun. Audio transcription: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias.
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A tal estado m’adusse, senhor A tal estado m’adusse, senhor, O vosso ben e vosso parecer Que non vejo de mi nen d’al prazer Nen veerei já em quant’eu vivo for, Refrão: u non vir vós, que eu por meu mal vi.
Your joy and your looks, lady, Have led me to such a state That I see no joy in me nor elsewhere Nor shall see, as long as I live, Where I don’t see you, whom unluckily I saw.
E queria mha mort’e non mi vem, Senhor, porque tamanh’é o meu mal Que non vejo prazer de min nen d’al nen veerei já, esto creede bem, Refrão: u non vir vós, que eu por meu mal vi.
And I wanted my death, but it doesn’t come, Lady, since my pain is so great That I don’t see joy in me or elsewhere And shall see none, you can believe it, Where I don’t see you, whom unluckily I saw.
E pois meu feito, senhor, assi é, Queria já mha morte, pois que non Vejo de mi nen d’al nulha sazon Prazer nen veerei já, per bõa fe, Refrão: u non vir vós, que eu por meu mal vi.
And since that’s how it is with me I’d like my death now, since I do not See joy in myself or elsewhere anytime, And shall not see, in good faith, Where I don’t see you, whom unluckily I saw. Translation: Rip Cohen
Dirigindo-se à sua senhora, o trovador dá-lhe conta do estado a que a beleza e as qualidades dela o conduziram: em nada tem nem terá prazer, enquanto não a vir de novo7
Arquivo IEB - USP, Fundo Camargo Guarnieri, CG-caderneta-08, p. 26.
__________________________ 3
Idem.
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5. IN PRO Estampie, LBM add. 29987 (séc. XIV). Arranjo: Luiz Fiaminghi. Arranjo de percussão: Paulo Dias. Arranjo de harpa: Silvia Ricardino. Estampie, LBM add. 29987 (16th cent.) Arranged by Luiz Fiaminghi. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias. Medieval harp arrangement: Silvia Ricardino Rabeca / Brazilian fiddle (1): Luiz Fiaminghi ∙ pandeirão / bendir (5): Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce / recorder (3): Valeria Bittar
6. TAMANQUÊRO COM “MARTELO” - ROMANCE DA LAGOA ENCANTADA Tradição oral brasileira. Recolhida por Mário de Andrade em João Pessoa, PB, 1929, informada por Odilon Luís de França (Odilon do Jacaré). Em: Andrade, Mário. Os Côcos. Org. Oneyda Alvarenga. Livraria Duas Cidades, p. 210. São Paulo. 1984. Tradição oral brasileira. Recolhida por Mário de Andrade, Engenho Bom Jardim, RN, informada por Vilemão Trindade, 1929. Em: ANDRADE, Mário de. As Melodias do Boi e outras Peças. Org. Oneyda Alvarenga. 1ª Edição. Livraria Duas Cidades, p. 150. São Paulo. 1987. Versão e arranjo: Gisela Nogueira. Arranjo de percussão: Paulo Dias Brazilian oral tradition. Collected by Mário de Andrade in João Pessoa, PB, 1929, informed by Odilon Luís de França (Odilon do Jacaré). In: Andrade, Mário. Os Côcos. Org. Oneyda Alvarenga. Livraria Duas Cidades, p. 210. São Paulo. 1984. Brazilian oral tradition. Collected by Mário de Andrade, Engenho Bom Jardim, RN, informed by Vilemão Trindade, 1929. In: ANDRADE, Mário de. As Melodias do Boi e outras Peças. Org. Oneyda Alvarenga. 1ª Edição. Livraria Duas Cidades, p. 150. São Paulo. 1987. Version and arrangement: Gisela Nogueira. Percussion arrangement: Paulo Dias viola de arame / Brazilian baroque guitar: Gisela Nogueira ∙ pandeiro / Brazilian tambourine (6): Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce (1) / recorder (1): Valeria Bittar
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7. O BENDITO DE CATOLÉ DO ROCHA Tradição oral brasileira. Recolhida por Mário de Andrade, em Catolé do Rocha, PB, 1929, sem indicação de informante. Em: ANDRADE, Mário de. As Melodias do Boi e outras Peças. Org. Oneyda Alvarenga. 1ª Edição. Livraria Duas Cidades, p. 194. São Paulo. 1987. Versão e arranjo: Luiz Fiaminghi Brazilian oral tradition. Collected by Mário de Andrade, in Catolé do Rocha, PB, 1929, unknown informer. In: ANDRADE, Mário de. As Melodias do Boi e outras Peças. Org. Oneyda Alvarenga. 1ª Edição. Livraria Duas Cidades, p. 194. São Paulo. 1987. Version and arrangement: Luiz Fiaminghi voz / voice: Hugo Pieri ∙ rabeca / Brazilian fiddle (3): Luiz Fiaminghi ∙ órgão portativo / organetto: Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce (2,7) / recorder (2,7) : Valeria Bittar May God bless you For the alms! God carries them in A litter. Accompanied by angels! Surrounded by flowers, At the right hand, At the feet of our lord!
Deus li pagui’a santismol’! (Esmola) Deu u levi nu andô. Acumpanhadu di anj’! (Anjo) A circuladi di flô, Du ladu da mão direita, Nos péis di nossu sinhô! grafia: Mário de Andrade
Translation: Marco Alexandre de Oliveira
SUÍTE OXUMARÊ - Luiz Fiaminghi (1958). Composição baseada em cantiga da tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, recolhida por Camargo Guarnieri, 2º Congresso AfroBrasileiro, Salvador, Bahia, 1937. Em: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios não-mecânicos. Vol. 1. Pref.do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez e Paulo Dias Luiz Fiaminghi (1958). Composition based on a song from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, collected by Camargo Guarnieri, 2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937. In: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios não-mecânicos. Vol. 1. Pref.do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias Atabaque rum / Candomblé master drum (rum) (1): Ogan Leandro Perez ∙ Atabaque rumpi / Candomblé support drum (rumpi) (1): ogã Leandro Perez, Paulo Dias ∙ vozes / voices: ogã Leandro Perez, Hugo Pieri ∙ viola de arame / Brazilian baroque guitar: Gisela Nogueira ∙ rabeca / Brazilian fiddle (1,2): Luiz Fiaminghi ∙ pandeiro / Brazilian tambourine (6): Paulo Dias ∙ órgão portativo / organetto: Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce / recorder (1,2,3,4): Valeria Bittar ∙ coro / choir: Bia Goes (artista convidada / guest artist), Gisela Nogueira, Paulo Dias e Silvia Ricardino
8. Lori Orun (céu colorido ou arco-íris / colored sky or rainbow) 9. Solo de percussão, voz e coro Percussion, solo, voice, and choir Tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, transmitida pelo ogã Leandro Perez, Terreiro Batistini, São Paulo. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez e Paulo Dias Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, transmited by Ogan Leandro Perez, Terreiro Batistini, São Paulo. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias
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10. Takará (arma de Oxumarê - transmutação para renovação / Oxumarê's Weapon transmutation for renovation) 11. Ejó (serpente / serpent)
Oxumarê lêlê ma lê Oxumarê lê lê ma lê O arada ô lê lê malê Oxumarê Oxumarê kobê giro informante: Waldemar Ferreira dos Santos grafia: Camargo Guarnieri Not. no. 365 , Cod. no. 5
Arquivo IEB - USP, Fundo Camargo Guarnieri, CG-caderneta-10, p. 10.
Oșumare Lele male Oșumare Lele male Araká Lele male Oșumare
Oșumare (arco-íris) Voa para sua terra Voa para a terra de Araká Voa para sua terra Oșumare
{Ko bé jiró}
{Ele nunca saca sua lâmina para brincar}
Oșumare [Oshunmare] (rainbow) Fly to your land Fly to the land of Araká Fly to your land Oșumare [Oshunmare] [He never draws his knife to play]
Tradução: Babá Edson de Oșun
Translation: Marco Alexandre de Oliveira
12. LAMENTO DO MATEUS: SÒDADES (ORIGINAL
DE
COLHEITA)
Tradição oral brasileira, recolhida por Mário de Andrade, Natal, RN, informada por Vilemão Trindade, dezembro, 1929. Em: ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. 3º Tomo. Livraria Martins Editora, p. 84. São Paulo. 1959. Versão e arranjo: Luiz Fiaminghi. Brazilian oral tradition, collected by Mário de Andrade, Natal, RN, informed by Vilemão Trindade, December, 1929. In: ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. 3º Tomo. Livraria Martins Editora, p. 84. São Paulo. 1959. Version and arrangement: Luiz Fiaminghi voz / voice: Hugo Pieri ∙ rabeca (3) / Brazilian fiddle (3): Luiz Fiaminghi
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Sòdades eu tenho do país do Norte Meu Deus protegei um fio sem sorte! Sòdades eu tenho, lá pur onde andei, Do meu Ciará, do povo que amei!
How I miss the north of the country God protect a child so unlucky! How I miss where I used to rove, My state of Ceará, the people I loved!
Eu vinha do norte, meu paivinh’ do sú, Meu Deus, protegei esse pobre nú; Sòdades eu tenho do centro das mata, Lá do meu sertão, [do leite das vacas]!
I came from the north, my father the south, God protect this poor hungry mouth; How I miss the heart of the thicket, In my sertão, the sound of crickets! Translation: Marco Alexandre de Oliveira
grafia: Mário de Andrade
13. BARREADO José Eduardo Gramani (1944 – 1998) José Eduardo Gramani (1944 – 1998) Rabeca / Brazilian fiddle (3): Luiz Fiaminghi
14. POIS QUE VOS DEUS, AMIGO, QUER GUIZAR Acácio Piedade (1961). Composição baseada na Cantiga 1 de Dom Dinis (1261-1325). Em: FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberg. Kassel. 2005. Reconstrução realizada por Manuel Pedro Ferreira Acácio Piedade (1961). Composition based on Cantiga 1 by King Dinis (1261-1325). In: FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberg. Kassel. 2005. Reconstructed by Manuel Pedro Ferreira voz / voice: Hugo Pieri ∙ viola de arame / Brazilian baroque guitar: Gisela Nogueira ∙ rabeca / Brazilian fiddle (1): Luiz Fiaminghi ∙ órgão portativo / organetto (4): Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce / recorder (1) : Valeria Bittar Pedide lhi mercee por mi Refrão: que se dóia já do meu mal.
Pois que vos Deus, amigo, quer guizar D’irdes a terra d’u é mha senhor, Rogovos ora que, por qual amor Vos ei, lhi queirades tanto rogar Refrão: que se dóia já do meu mal.
Since, my friend, God will find a way For you to go to the land where my lady is, I ask you now, by the love I bear you, that you ask her this: Soon to take pity on my pain.
E d’irdes i tenh’eu que mi fará Deus gran ben, poila podedes ver, E, amigo, punhad’em lhi dizer, Pois tanto mal sofro gran sazon á, Refrão: que se dóia já do meu mal.
And I think that by your going there God will do me a favor, since you can see her, And, friend, tell her earnestly, Since I’ve been suffering so long, Soon to take pity on my pain.
E pois que vos Deus a guisa d’ir i, Tenh’eu que mi fez el i mui gran ben, E, pois sabede’ lo mal que mi ven,
Dirigindo-se a um amigo, que vai partir para a terra onde está a sua senhora, o trovador pede-lhe que lhe peça a ela para se condoer do seu sofrimento. O facto de esse seu amigo ir vê-la já é uma graça que Deus lhe faz, uma vez que pode falar-lhe do mal que ele sofre e ser mensageiro do seu pedido.4 ___________________________ 4
Idem.
100
And since God is guiding you there, I think he did me a favor indeed, And since you know the pain I feel, Ask her, please, out of mercy for me, Soon to take pity on my pain. Translation: Rip Cohen
15. QUE MUI GRAN PRAZER QUE EU HEI, SENHOR - É TI Ó IMPROVISAÇÃO SOBRE É TI Ó Dom Dinis (1261-1325), cantiga 4. Em: FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberg. Kassel. 2005. Reconstrução realizada por Manuel Pedro Ferreira. Arranjo Coletivo Grupo ANIMA - Tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, recolhida por Camargo Guarnieri, 2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937. Em: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios não-mecânicos. Vol. 1. Pref. do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Arranjo coletivo Grupo ANIMA. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez - Arranjo baseado em estampies, LBM add. 29987 (séc. XIV): Valeria Bittar. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez King Dinis (1261-1325), cantiga 4. In: FERREIRA, Manuel Pedro. Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’ El Rei Dom Dinis. Ed. Reichenberg. Kassel. 2005. Reconstructed by Manuel Pedro Ferreira. Collective arrangement (Grupo ANIMA) - Afro-Brazilian oral tradition Ketu Candomblé, collected by por Camargo Guarnieri, 2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937. In: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios nãomecânicos. Vol. 1. Pref.do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Collective arrangement (Grupo ANIMA). Percussion arrangement: ogã Leandro Perez - Arrangement based on estampies, LBM add. 29987 (14th cent.): Valeria Bittar. Percussion arrangement: ogã Leandro Perez Atabaque rum / Candomblé master drum (rum) (1): ogã Leandro Perez ∙ voz / voice: Hugo Pieri ∙ viola de arame / Brazilian baroque guitar: Gisela Nogueira ∙ flauta doce / recorder (1,5): Valeria Bittar Que mui gran prazer que eu ei, senhor, Quand’em vós cuid’e non cuido no mal Que mi fazedes, mais direivos qual Tenh’eu por gran maravilha, senhor, Refrão: de mi vir de vós mal, u Deus non Pôs mal, de quantos eno mundo son
Ca, senhor, mui gran prazer mi per é Quand’en vós cuid’e non ei de cuidar En quanto mal mi fazedes levar, Mais gran maravilha tenh’eu que é Refrão: de mi vir de vós mal, u Deus non Pôs mal, de quantos eno mundo son
E, senhor fremosa, quando cuid’eu En vós e non eno mal que mi ven Por vós, tod’aquel temp’eu ei de bem, Mais por gran maravilha per tenh’eu Refrão: de mi vir de vós mal, u Deus non Pôs mal, de quantos eno mundo son
Ca, par Deus, semelha mui sen razon D’aver eu mal d’u o Deus non pôs, non.
O trovador tem prazer em pensar na sua senhora, esquecendo o mal que ela lhe faz. Mas admira-se por esse mal ter origem em alguém que Deus fez isento de mal.5
What very great joy I have, lady, When I think of you, and don’t think of the bad That you cause me, but I’ll tell you what I feel is really amazing, lady, That bad should come to me from you, where God Put no bad, among all those in the world!
For, lady, it’s a very great joy for me When I think of you and don’t have to think Of how much bad you make me suffer, But I feel it’s really amazing That bad should come to me from you, where God Put no bad, among all those in the world!
And, lovely lady, when I think Of you and not of the bad that comes to me From you, all that time I feel quite good, But what I feel is really amazing is That bad should come to me from you, where God Put no bad, among all those in the world!
For, by God, it seems to make no sense That I have bad whence God put none at all. Translation: Rip Cohen ___________________________ 5
Idem.
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É ti ó alê É ti ó majobê Agalô ninã majobê É manjá lotirê informante: Waldemar Ferreira dos Santos grafia: Camargo Guarnieri Not. no. 354, Cod. no. 5
E tio ale E ti majole Agalo nina majole Yemonjá lotire
Ouvidos afiados Ouvindo os filhos Sempre rondando seus filhos Yemonjá é a melhor amiga
Variante: E tio o ole E ti o omojole Agalo nina omojole Yemonjá lotire
Tradução: Babá Edson de Oșun
Nota do tradutor: E ti o ale (Iemanjá) Ouvidos afiados ouvindo os filhos. Sempre rondando os filhos, pra ouvir suas necessidades. Iemanjá é a melhor amiga, quer dizer, a mãe é a melhor amiga de seus filhos. Comentário sobre a cantiga: Babá Edson de Oșun. Transcrição de áudio: ogã Leandro Perez e Paulo Dias.
Sharp ears Hearing her children Always watching her children Yemonjá [Yemoja] is their best friend Translation: Marco Alexandre de Oliveira
Translator’s note: E ti o ale (Iemanjá) Sharp ears listening to her children. Always watching her children, to listen to their needs. Yemoja is their best friend, that is, a mother is her children’s best friend. Commentary on the cantiga: Babá Edson de Oșun. Audio transcription: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias.
16. SEREIA DO MAR Tradição oral brasileira, melodia do catimbó recolhida por Mário de Andrade, dez. 1928-jan. 1929, Natal, RN, informada por: Manuel dos Santos e João Germano. Em: ANDRADE, Mário. Música de Feitiçaria no Brasil. Ed. Itatiaia Ltda, p. 92. Belo Horizonte. Coleção Obras Completas de Mário de Andrade. 2ª Edição. 1983. Versão e arranjo: Luiz Fiaminghi. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez e Paulo Dias A melody from the Brazilian oral tradition of Catimbó, collected by Mário de Andrade, December 1928, January 1929, Natal, RN, informed by Manuel dos Santos e João Germano. In: ANDRADE, Mário. Música de Feitiçaria no Brasil. Ed. Itatiaia Ltda, p. 92. Belo Horizonte. Coleção Obras Completas de Mário de Andrade. 2ª Edição. 1983. Version and arrangement: Luiz Fiaminghi. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias Atabaque rum / Candomblé master drum (rum) (1): ogã Leandro Perez ∙ Atabaque rumpi / Candomblé support drum (rumpi) (1): ogã Leandro Perez ∙ voz / voice: Hugo Pieri ∙ rabeca / Brazilian fiddle (1): Luiz Fiaminghi ∙ gã / gã bell (2): Paulo Dias ∙ órgão portativo / organetto (4): Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce / recorder (1,2): Valeria Bittar Eu vi, eu vi, No peito do mar, No meu reinado Sereia cantar!
I’ve seen, I‘ve seen, In the heart of the sea, In my kingdom, A mermaid sing! What voices Do I hear speak? They’re angels in heaven And a Mermaid in the sea
Que voiz é uma Que ouço falar? São anjos no céu E Sereia no mar grafia: Mário de Andrade
Translation: Marco Alexandre de Oliveira
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17. YEMANJÁ ÔTÔ Luiz Fiaminghi (1958). Composição baseada em cantiga da tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, recolhida por Camargo Guarnieri, 2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937. Em: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios nãomecânicos. Vol. 1. Pref.do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez e Paulo Dias Luiz Fiaminghi (1958). Composition based on a song from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, collected by Camargo Guarnieri, 2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937. In: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios não-mecânicos. Vol. 1. Pref.do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias Atabaque rum / Candomblé master drum (rum) (1): ogã Leandro Perez ∙ Atabaque rumpi / Candomblé support drum (rumpi) (1): Paulo Dias ∙ vozes / voices: ogã Leandro Perez e Hugo Pieri ∙ viola de arame / Brazilian baroque guitar: Gisela Nogueira ∙ rabeca / Brazilian fiddle (1): Luiz Fiaminghi ∙ órgão portativo / organetto (4): Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce / recorder (1, 2, 3): Valeria Bittar ∙ coro / choir: Gisela Nogueira, Luiz Fiaminghi, Paulo Dias, Silvia Ricardino e Valeria Bittar Yemanjá ôtô bajarê Ô yá ôtô bajarê O Yemanjá ôtô bajarê Ô Yemanjá ôtô bajarê ô informante: Waldemar Ferreira dos Santos grafia: Camargo Guarnieri Not. no. 360, Cod. no. 5
Nota do Tradutor: Yemanjá Odô. Odô quer dizer rio. Tem um itan de Iemanjá que é o que essa cantiga descreve. O Itan diz assim: Iemanjá era uma moça vaidosa e cheia de curiosidade, e um dia decidiu que iria sair de casa. Ia conhecer o mundo. Aí o pai dela, Olokun, levou ela até a casa de Orumilá Ifá e pediu um encantamento pra proteger a filha. Orumilá Ifá fez o ebó que tinha que fazer; quando estivesse em determinada situação ela ia precisar. Orientou que ela quebrasse a garrafa e o encantamento a traria de volta pra casa. Convidaria magicamente e a levaria de volta pra casa. Aí Iemanjá saiu pelo mundo, andou; todos os caminhos que possam se imaginar ela percorreu. Até que um dia ela chegou num local e então terminou se perdendo. Ela tinha o costume de seduzir os homens com seus seios fartos, e na hora H ia embora. Lá onde ela estava perdida todos os homens a desejaram e foram atrás dela. Cercaram Iemanjá numa gruta, onde ela se escondeu e eles chegaram até ela e a encurralaram. Ela tirou a garrafa do encantamento que Orumilá Ifá tinha pré-avisado; aí ela quebrou a garrafa e o encanto tomou conta dela e a transformou num rio. Saiu arrastando todos aqueles homens, tudo que estava pelo caminho. Esse rio percorreu todos os lugares por onde ela andou, correu por todo o mundo e levou ela de volta pra casa. Ela estava numa gruta no pé de uma montanha. Todos os rios do mundo nascem nos pés das montanhas dentro de grutas onde a água se acumula e depois verte. Todos os rios do mundo correm pra o mar. É Iemanjá voltando pra casa. Então quando a gente diz Iemanjá Odô majarê ou Iemanjá Odô bójarê remete ao encantamento que está levando ela de volta pra casa. Assim como disse Orumilá Ifá. Iya Odô bojarê - ela é a mãe dos rios. Comentário sobre a cantiga: Babá Edson de Oșun. Transcrição de áudio: ogã Leandro Perez e Paulo Dias.
Translator’s note: Yemanjá Odô. Odo means river. There is an itan [myth] of Yemoja [Yemanjá or Iemanjá in Portuguese], which is what this song describes. The itan says the following: Yemoja was a vain girl full of curiosity, and one day she decided that she would leave home. She was going to travel around the world. So her father, Olokun, took her to the house of Orunmila Ifá and asked for a spell to protect his daughter. Orunmilá Ifá performed the ebó offering that he had to do; when she was in a certain situation she would need it. He told her to break the bottle and the spell would bring her back home. It would magically call her and take her back home. So Yemoja wandered all around the world; she went everywhere you could imagine. Until one day she arrived in a place and then ended up getting lost. She had the habit of seducing men with her luscious breasts, and then suddenly leaving. There where she was lost all the men wanted her and went after her. They surrounded Yemoja in a cave, where she hid, and they reached her and cornered her. She took the bottle with the spell that Orunmilá Ifá had prepared; then she broke the bottle and the spell protected her and turned her into a river. She came out dragging all those men, everything that was in the way. This river ran everywhere she walked, ran all over the world and took her back home. She was in a cave at the foot of a mountain. All the rivers in the world are born at the foot of mountains inside caves where the water accumulates and then pours forth. All the rivers in the world run to the sea. It is Yemoja coming home. So when we say Iemanjá Odô majarê or Iemanjá Odô Bójarê it refers to the spell that is taking her back home. Just like Orunmilá Ifá said. Iya Odô bojarê - she is the mother of rivers. Audio transcription: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias. Commentary on the cantiga: Babá Edson de Oșun. Audio transcription: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias.
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Yemanjá oto Bajaré Iyá oto bajare Variante: Yemanjá Odo Bojare Iyá odo Bojare
Yemonjá rio que Volta para casa Mãe dos rios que Voltam para casa
Yemonjá [Yemoja] river that Comes back home Mother of the rivers that Come back home
Tradução: Baba Edson de Oșun
Translation: Marco Alexandre de Oliveira
18. YEMANJÁ SÓBA Cantiga da tradição oral afro-brasileira, candomblé ketu, transmitidas pelo ogã Leandro Perez, Terreiro Batistini, São Paulo. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez e Paulo Dias A song from the Afro-Brazilian oral tradition of Ketu Candomblé, transmited by Ogan Leandro Perez, Terreiro Batistini, São Paulo. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias Atabaque rum / Candomblé master drum (rum) (1): ogã Leandro Perez ∙ Atabaque rumpi / Candomblé's
Yemanjá sóba Sóba mirerê Sóba mirerê Sóba mirerê ô
Yemonjá sabá Sabá mirere Sabá mirere Yemonjá Sabá mirere O
Yemonjá Senhora antiga e Ágil Senhora antiga e Ágil Yemonjá Senhora antiga e Muito ágil Tradução: Babá Edson de Oșun
informante: Waldemar Ferreira dos Santos grafia: Camargo Guarnieri Not. no. 359, Cod. no. 5
Yemonjá [Yemoja] An ancient and agile Woman An ancient and agile Woman Yemonjá [Yemoja] A very ancient and agile Woman Translation: Marco Alexandre de Oliveira
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19. O FONDO DO MAR TAN CHAO / OFULU LORÊRÊ Ê Luiz Fiaminghi (1958). Composição baseada em Cantiga de Santa Maria, nº 383, atribuída a Dom Afonso X, o sábio (1221-1284) - Tradição oral afro-brasileira, candomblé nagô, recolhida por Camargo Guarnieri, 2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937. Em: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios não-mecânicos. Vol. 1. Pref.do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Arranjo de percussão: ogã Leandro Perez e Paulo Dias Luiz Fiaminghi (1958). Composition based on the Cantiga de Santa Maria (383), attributed to King Alfonso X, the Wise (1211-1284) - Afro-Brazilian oral tradition, Nagô Candomblé, collected by Camargo Guarnieri, 2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937. In: ALVARENGA, Oneyda (org.). Melodias Registradas por meios não-mecânicos. Vol. 1. Pref. do Município de São Paulo, Departamento de Cultura. 1946. Percussion arrangement: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias Atabaque rum / Candomblé master drum (rum) (1): ogã Leandro Perez ∙ Atabaque rumpi / Candomblé support drum (rumpi) (1): Paulo Dias ∙ voz / voice: Hugo Pieri ∙ viola de arame / Brazilian baroque guitar: Gisela Nogueira ∙ rabeca (2) / Brazilian fiddle (2): Luiz Fiaminghi ∙ órgão portativo / organetto (4): Paulo Dias ∙ harpa medieval / medieval harp: Silvia Ricardino ∙ flauta doce (7) / recorder (7): Valeria Bittar ∙ artistas convidados / guest artists: Aulos – Núcleo Interuniversitário de Flautas Doces: David Castelo (8, 9,10), Flávio Stein (11), Liduino Pitombeira (12), Monica Lukas (13) As Cantigas de Santa Maria representam uma das maiores e bem documentadas fontes do repertório musical do século XIII apresentando também um rico material iconográfico que descreve práticas musicais e instrumentário da época. Como grande parte da coleção, a Cantiga 383, “O Fondo do Mar Tan Chao”, narra um milagre da virgem (cantiga de miragre): uma senhora devota e sua filha, em peregrinação à Terra Santa, é salva pela Virgem quando cai ao mar, transformado milagrosamente em terra firme, como canta o refrão.
Como Santa María de Segónça guardou ûa mollér que quería entrar en ûa nave e caeu no mar, e guareceu e sacó-a Santa María.
O Fondo do Mar tan Chao [The Pilgrim Woman Saved from Drowning] The Cantigas de Santa Maria represent one of the largest and most well-documented sources of the 13th century musical repertoire, and also present rich iconographic material that describes musical and instrumental practices of the time. Like much of the collection, Cantiga 383, “O Fondo do Mar tan Chao” [The Pilgrim Woman Saved from Drowning], narrates a miracle of the Virgin Mary (cantiga de miragre): a devout woman and her daughter, on a pilgrimage to the Holy Land, are saved by the Virgin when they fall overboard and the sea is miraculously transformed into solid ground, as the chorus sings.
E pois aquest' ouve feito, | foi-se lógo sa carreira e levou sigo sa filla | por que non fosse senlleira, ca achar non podería | pera si tal companneira. E passou per muitas térras, | e atal foi sa ventura O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura...
O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura... aos séus Santa Maria, | Sennor de mui gran mesura. Dest' aveo un miragre | grand' e mui maravilloso, que fezo a Santa Virgen, | Madre do Rei glorïoso, por ua mollér que tiínna | o coraçôn desejoso de a servir noit' e día. | E foi en Estremadura, O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura... Na cibdade de Segónça | que é mui rico bispado; e cabo da grand' igreja | á un logar apartado que chaman Santa María | a Vélla, a que de grado ía essa mollér bõa, | e en est' éra sa cura. O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura...
Que passou o mar en salvo | sen neún deteemento, ca enquanto per el foron | sempr' ouvéron mui bon vento; e des que foron en Acre, | sen outro delongamento foron veer o Sepulcro | no tempo da caentura. O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura..... E poi-lo ouvéron visto, | ar fezéron romarías pelos logares mais santos | dessa térra u Messías Jesú-Cristo, Déus e óme, | andou; e a poucos días foron en Acre tornadas, | mais non como quen atura O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura...
Esta mollér ua filla | avía que muit' amava, e a cada ua delas | ena voontad' entrava d' iren veer o Sepulcro | de Jerusalên, e dava do séu a quena guïasse | por poder ir mais segura. O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura...
Fazendo mui gran morada | en Acre; non i ficaron, mais aginna se colleron | ao pórto e rogaron a aquel cuja nav' éra | que as levass', e punnaron d' entrar mui tóste na nave. | Mais foi tan grand' a presura O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura...
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D' i entrar, e en querendo | sobir per ua escaeira do batél en essa nave, | sobiu a filla primeiramente, e depois a madre | cuidou a seer arteira de sobir tóst', e na agua | caeu con sa vestidura. O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura...
O fururu Obere A ila la Baba kein yé Lejibo Ile ifa Mojuba Babá Ye Ajigborele Mojuba ooo Olwá... Ye Maoro
E en caendo, chamando | a grandes braados ía: “Acórre-me, Glorïosa, | a Vélla Santa María de Segónça, en que fío, | e fais que mia romaría acabe compridamente.” | E tan tóste da altura O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura...
Vento que corre e Move os céus Pai da doçura e dos Pássaros sobre Legigbo (terra de Oșalá) Casa do Pai da sabedoria E do respeito Salve esta terra Sagrada com respeito A Olwá (Deus) Salve tudo que Vem do céu Salve o ato de se Pôr com o coração Aos pés do Pai Salve tudo que Vem do céu
Ye maoro Nlá nșe Ye Maoro Lese kan Babá Ye Maoro Ye Maoro Nlá nșe
Dos céos a Virgen santa | acorreu-a e passou-a bees per fondo da agua | so a nave, e sacou-a mui longe da outra parte | eno mar, e pois tornou-a arriba viva e sãa | con fremosa catadura. O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura...
Tradução: Babá Edson de Oșun
Todos quantos esto viron | foron mui maravillados, e os geollos en térra | ouvéron lógo ficados e aa Virgen mui santa | porende loores dados, dizendo: “Beeita sejas, | dos coitados cobertura.” O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura.... E pois esta mollér bõa | pela Virgen foi guardada assí como ja oístes, | e a sa térra tornada, teve na Vélla igreja | noveas, e mui loada foi lógo Santa María | per ela, e fez cordura. O fondo do mar tan chão | faz come a térra dura... Wind that blows and Moves the heavens Sweet Father Of the birds Over Legigbo (land of Oșalá [Obatala]) House of the Father of wisdom And respect Hail this sacred
Ofulú lorêrê ê O kenhênnhên legibô Ilê i fan moxuá baba Ajibôrê mojibá ô Oluwa é mawo É mawo éwá lêxê É mawo é lê sê kan Babá é mawô é wálêxê
Land with respect To Olwá (God) Hail everything that Comes from the heavens Hail the act of Prostrating heartfully At our Father’s feet Hail everything that Comes from the heavens
Translation: Marco Alexandre de Oliveira
letra informada por: Waldemar Ferreira dos Santos grafia: Camargo Guarnieri Not. no. 383, Cod. no. 5 Nota do Tradutor: Ajiborê Quer dizer terra sagrada. Terra sagrada porque é a terra onde se dá a concepção e o nascimento de um deus, que é Ajagunã. O último filho da família de Oxalá nasce no Aiyê. Ele nasce em Elejigbô [Ejigbô]. Então, a palavra Ajigborelê significa terra consagrada, porque ela é divina, pelo nascimento de um deus. A divindade presente faz desse um local sagrado, um local que emana a energia pura da família de Oxalá. Então a gente tem uma terra que foi consagrada em função dessa centelha divina. A língua iorubá tem palavras que são expressões, a gente usa uma palavra como uma expressão. E pra você descrever uma expressão em português, muitas vezes precisa construir uma frase. Algumas dessas palavras em iorubá são também onomatopeias, descrevem toda uma situação, um som, com uma única palavra. Comentário sobre a cantiga: Babá Edson de Oșun. Transcrição de áudio: ogã Leandro Perez e Paulo Dias.
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Translator’s note: Ajiborê: It means holy land. Holy land because it is the land where the conception and birth of the god Ayagunna takes place. The last son of Obatala’s family is born in Aiyê. He is born in Elejigbô [Ejigbô]. So, the word Ajigborelê means consecrated land, because it is divine, due to the birth of a god. This deity makes it a sacred place, a place that emanates the pure energy of Obatala’s family. So we have a land that has been consecrated as a result of this divine spark. The Yoruba language has words that are expressions, we use a word as an expression. And to describe an expression, you often need to build a phrase. Some of these words in Yoruba are also onomatopoeias, they describe a whole situation, a sound, with a single word. Commentary on the cantiga: Babá Edson de Oșun. Audio transcription: Ogan Leandro Perez and Paulo Dias.
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direção musical / musical direction Grupo ANIMA: Hugo Pieri, Gisela Nogueira, Luiz Fiaminghi, Paulo Dias, Silvia Ricardino, Valeria Bittar dramaturgia musical / musical dramaturgy Grupo ANIMA: Hugo Pieri, Gisela Nogueira, ogã Leandro Perez, Luiz Fiaminghi, Paulo Dias, Silvia Ricardino, Valeria Bittar direção executiva / executive directors Luiz Fiaminghi, Valeria Bittar produção / production Luiz Fiaminghi, Valeria Bittar pesquisa de repertório / repertoire research Gisela Nogueira, ogã Leandro Perez, Luiz Fiaminghi, Paulo Dias, Silvia Ricardino, Valeria Bittar fotos Grupo ANIMA / Grupo ANIMA members’ photos Daniel Bittar criação do lettering / lettering designer Karla Wanderley e Mickael Jacques unidade visual Grupo Anima / visual unity Grupo Anima Paulo Ramon projeto gráfico / graphic design acompanhamento gráfico / graphic design monitoring Valeria Bittar, Paulo Ramon gravação / recording Carlos (KK) Akamine assistente de gravação / recording assistant Silvio Romualdo edição / editing Carlos (KK) Akamine assistentes de edição / editing assistants Luiz Fiaminghi, Paulo Dias, Valeria Bittar mixagem e sound design / mixing and sound design Carlos (KK) Akamine masterização / mastering Ono Seigen - Saidera Mastering, Tokyo, Japão / Japan coordenação de estúdio / studio coordination Shen Ribeiro versão para o português das cantiga do candomblé ketu / Portuguese version of the songs from Ketu Candomblé Babá Edson de Oșun versão para o inglês das cantigas de Dom Dinis / English version of the Cantigas by King Dinis Rip Cohen tradução para o inglês / translation of the texts into English Marco Alexandre de Oliveira, Jesse Dylan Marsden, Sean Michael Mcintyre, Luigi Gomes Brandão identidade visual Grupo Anima / visual identity of Grupo ANIMA Paulo Ramon obras de Rosana Paulino / Rosana Paulino's works As Gentes (capa); Atlântico Vermelho (p. 6); A permanência das estruturas (p. 9); Obra da série Musa Paradisíaca (p. 12), Proteção extrema contra a dor e o sofrimento II, (p. 19); O amor pela ciência (p. 30); Assentamento (p. 48); A salvação das almas? (p. 59); Paraíso tropical (p. 60); Assentamento (p. 73); Parede da memória (pp. 74-75); Proteção extrema contra a dor e o sofrimento I (p. 91); Sem título (p. 97); Assentamento (p. 107); Paraíso tropical (p. 111). Gravado no Estúdio Sala Viva – Espaço Cachuera!, em São Paulo, entre os meses de janeiro, fevereiro e março do ano 2019. / recorded at the Sala Viva Studio – Espaço Cachuera!, São Paulo, in January, February and March of 2019.
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AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGEMENTS Ao celebrarmos 30 anos de trabalho musical coletivo, nós, integrantes do Grupo ANIMA, agradecemos às pessoas que nos apoiaram com seus aplausos, numa única apresentação e àquelas que, desde 1988, continuam a nos incentivar prestigiando-nos com a sua presença e interação. In celebration of our 30 years of collective musical work, we, members of the Grupo ANIMA, would equally like to thank those who have supported us with their applause, at a single concert and those who, since 1988, have continuously encouraged and honored us with their presence and interaction. Ao ogã Leandro Perez, somos gratos por estar ao nosso lado sempre, com seu bom humor, seu amor pelas artes e pela cultura brasileira de matriz africana, ensinando-nos a tradição musical do candomblé, em especial a do candomblé ketu, construindo o repertório do espetáculo Mar Anterior conosco. We are grateful to Ogan Leandro Perez for always being by our side, with his good humor and his love for the arts and the Afro-Brazilian culture, teaching us the musical tradition of Candomblé, especially Ketu Candomblé, and building the repertoire of the Mar Anterior program with us. Agradecemos ao Baba Edson de Oșun, pela prontidão em traduzir as cantigas dos orixás apresentadas neste CD, do iorubá para o português e comentando, de maneira didática e muito atenciosa, cada uma delas. We thank Babá Edson de Oșun for his promptness in translating the songs of the Orishas presented on this CD from Yoruba to Portuguese, and for his comments – all given in a very careful and didactic manner – on each of the songs. As obras gráficas aqui apresentadas são de autoria da artista Rosana Paulino, a quem somos imensamente gratos por sua cessão. Tudo o que pudemos conhecer de seu trabalho tornou-se base para a construção dramatúrgico-musical do espetáculo e do CD Mar Anterior. The graphic works presented here are all by the artist Rosana Paulino, to whom we are immensely grateful. What we got to know of her work became the basis for the dramaturgicmusical construction of Mar Anterior presentation and CD. Somos muito agradecidos ao Professor Manuel Pedro Ferreira por partilhar conosco esta breve jornada através das cantigas do rei plantador de naus, Dom Dinis. Com seu trabalho artístico e acadêmico acionou as provocações para a construção deste espetáculo proporcionando-nos a chance de acessar um universo sonoro escondido e, se não, perdido nas fendas do Pergaminho na Torre do Tombo. We are very grateful to Professor Manuel Pedro Ferreira for sharing with us this brief journey through the Cantigas of King Dinis, the "planter of ships" With his artistic and academic work, he instigated the development of this show, giving us the chance to access a musical universe hidden, and nearly lost, in the binding of a book in the Torre do Tombo. Agradecemos à Daniella da Cunha Gramani por ceder os direitos para gravação e performance da música Barreado, composta por seu pai, José Eduardo Gramani, nosso querido amigo.
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We wish to thank Daniella da Cunha Gramani for ceding the rights to the recording and performance of “Barreado”, composed by her father José Eduardo Gramani, our dear friend. Aos compositores Liduino Pitombeira e Acácio Piedade, queridos amigos, por nos presentearem com as composições Anima e Cantiga 1. We are likewise grateful to the composers Liduino Pitombeira and Acácio Piedade, also dear friends, for gifting us with the compositions “Anima” and “Cantiga 1”, respectively. Ao Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade do Estado de São Paulo (ECA – USP), na pessoa da Professora Dra. Monica Lucas, por ceder temporariamente as flautas construídas por Adriana Breukink, com base no convênio entre esta Universidade e a Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), como parte do Projeto de Pesquisa Músicos, Música e Instrumentos: investigação da performance na música histórica e na música popular tradicional. Este empréstimo possibilitou a realização do arranjo O Fondo do Mar tan Chao – Ofulu Lorêrê ê pelo Aulos – Núcleo Interuniversitário de flautas doce. Aos seus flautistas: David Castelo, Flávio Stein, Liduino Pitombeira e Monica Lucas, somos muito agradecidos por aceitarem participar deste projeto. We thank the Music Department of the School of Communication and Arts from the State University of São Paulo (ECA – USP), especially Dr. Monica Lucas, for allowing us to the temporarily use the recorders made by Adriana Breukink, based on an agreement between the aforementioned university and the University of the State of Santa Catarina (UDESC), as part of the research project entitled “Musicians, Music, and Instruments: An Investigation of Performance in Historical Music and in Traditional Popular Music”. This agreement made possible the realization of the arrangement O Fondo do Mar tan Chao – Ofulu Lorêrê ê by Aulos – Núcleo Interuniversitário de flautas doces.(Interuniversitário de flautas doces (Interuniversity Group of Recorders). We are grateful to the recorder players of the group - David Castelo, Flávio Stein, Liduino Pitombeira and Monica Lucas - for their participation in this project. À Associação Cultural Cachuera! e a todas e todos que lá convivem, agradecemos por sempre apoiarem o Grupo ANIMA e por, nesses últimos 11 anos, ser a nossa casa de ensaios, acolhendo os laboratórios de arranjos coletivos, as pesquisas, debates e exposições de nossos trabalhos. We are grateful to Cachuera! Cultural Association, and to all its participants, for its unyielding support for Grupo ANIMA, and for being our rehearsal home over the past 11 years, welcoming the laboratories of collective arrangements, the research, debates and exhibitions of our work. Ao Instituto de Estudos Brasileiros - IEB, da Universidade de São Paulo, somos gratos pelo licenciamento das cadernetas de campo do Fundo Camargo Guarnieri (2º Congresso AfroBrasileiro, Salvador, Bahia, 1937). We are grateful to the Institute of Brazilian Studies (IEB), at the University of São Paulo (USP), for licensing the field notebooks of the Camargo Guarnieri Fund (2nd Afro-Brazilian Congress, Salvador, Bahia, 1937). À Tânia Camargo Guarnieri e ao Instituto de Estudos Brasileiros - IEB, da Universidade de São Paulo, somos gratos pelo licenciamento das cadernetas de campo do Fundo Camargo Guarnieri (2º Congresso Afro-Brasileiro, Salvador, Bahia, 1937). We are grateful to Tânia Camargo Guarnieri and to the Institute of Brazilian Studies (IEB), at the University of São Paulo (USP), for licensing the field notebooks of the Camargo Guarnieri Fund (2nd Afro-Brazilian Congress, Salvador, Bahia, 1937). 110
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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO SOCIAL SERVICE OF COMMERCE Administração Regional no Estado de São Paulo Regional Administration in the State of São Paulo Presidente do Conselho Regional / Regional Council President Abram Szajman Diretor Regional / Regional Director Danilo Santos de Miranda Superintendentes / Assistant Directors Comunicação Social / Social Communication Ivan Paulo Giannini Técnico-Social / Technical-Social Joel Naimayer Padula Administração / Administration Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento / Technical Consulting for Planning Sérgio José Battistelli Selo Sesc / Sesc Record Label Gerente do Centro de Produção Audiovisual / Audiovisual Production Center Manager: Silvana Morales Nunes, Gerente Adjunta / Deputy Manager: Sandra Karaoglan, Coordenador / Coordinator: Wagner Palazzi, Produção / Production Giuliano Jorge, Ricardo Tifona, Comunicação / Communication Alexandre Amaral, Raul Lorenzeti, Administrativo / Administration Katia Kieling, Thays Heiderich, Yumi Sakamoto, Áudio / Audio João Zilio, Marcelo Sarra
Av. Álvaro Ramos, 991 São Paulo I SP I CEP 03331-000 Tel: 55 11 2607-8271 selosesc@sescsp.org.br sescsp.org.br/selosesc sescsp.org.br/livraria