MOVIMENTOS SOCIAIS DIGITAIS

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ CURSO DE COMUNICAÇÂO SOCIAL HABILITAÇÃO: JORNALISMO

MOVIMENTOS SOCIAIS DIGITAIS: UMA ANÁLISE DO TWITTER DA LEI SECA E SUAS RELAÇÕES COM A ESTRUTURA TECNOLÓGICA DAS REDES DIGITAIS

Rafael Swoboda de Castro

Rio de Janeiro, Junho/2011


RAFAEL SWOBODA DE CASTRO

MOVIMENTOS SOCIAIS DIGITAIS: UMA ANÁLISE DO TWITTER DA LEI SECA E SUAS RELAÇÕES COM A ESTRUTURA TECNOLÓGICA DAS REDES DIGITAIS

Monografia apresentada como conclusão do curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá.

ORIENTADOR: Professora Élida Vaz

Rio de Janeiro, Junho/2011


Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

C355

CASTRO, Rafael Swoboda de. Movimentos sociais digitais: uma análise do Twitter da Lei Seca e suas relações com a estrutura tecnológica das redes digitais / Rafael Swoboda de Castro. – Rio de Janeiro, 2011. 54f; 30cm. Monografia (Graduação em Comunicação Social) - Universidade Estácio de Sá, 2011. Bibliografia: f. 52-54. Orientador: Élida Vaz. 1. Comunicação social 2.Cultura digital 3. Movimentos sociais 4. Twitter 5. Interatividade I. Título.

CDD 302.23


“A tecnologia não é boa, nem ruim e também não é neutra.”

Melvin Kranzberg

“Os efeitos da tecnologia não ocorrem aos níveis das opiniões e dos conceitos: eles se manifestam nas relações entre os sentidos e nas estruturas da percepção, num passo firme e sem qualquer resistência. O artista sério é a única pessoa capaz de enfrentar, impune, a tecnologia, justamente porque ele é um perito nas mudanças de percepção.”

Marshall McLuhan

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RESUMO

Este trabalho busca compreender alguns dos principais fenômenos sociais relacionados com o cenário da comunicação digital contemporânea baseado nas redes digitais da chamada “Web 2.0” a partir das suas relações com as características estruturais mais marcantes desses novos meios. Como estudo de caso, este trabalho pesquisa especificamente os fenômenos em torno do uso do Twitter da “Lei Seca” (perfis do microblog dedicados à troca de informações sobre o trânsito e as blitzes, especialmente da Operação Lei Seca, em algumas cidades) em suas relações com a organização informacional em redes descentralizadas, a interatividade e a convergência de mídias e tecnologias, considerando a forma específica em que tais características se expressam nesse tipo de rede digital. Para alcançar esse objetivo, primeiramente o autor percorre a história dos meios de comunicação eletrônicos com foco nas relações entre o desenvolvimento tecnológico e as estruturas sociais envolvidas no seu processo histórico; em seguida, são definidos os conceitos relevantes para o tema, relacionando-os com o fenômeno das organizações sociais independentes baseadas nas redes digitais, e são traçados os pressupostos teóricos que orientam o trabalho no que diz respeito às relações entre características estruturais dos meios e certos fenômenos sociais; por último, é feita uma análise específica da organização social mencionada, confrontando a realidade empírica observada nesse contexto com o quadro teórico desenvolvido anteriormente.

Palavras-chave: cultura digital, movimentos sociais, tecnologia, twitter, lei seca, interatividade, redes digitais, redes sociais, convergência

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SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................... p.06 Capítulo 1 – Da Energia Elétrica à Internet................................................................. p.10 1.1 – A Genealogia da Eletrônica.................................................................... p.10 1.2 – A Revolução Elétrica e a Indústria Cultural .......................................... p.14 1.3 – A Revolução da Computação ................................................................ p.20 1.3.1 – A Internet e a Era da Informação ............................... p.25 Capítulo 2 – Fundamentos da Comunicação Digital na Web 2.0............................... p. 29 2.1 – Redes e Descentralização ...................................................................... p.39 2.2 – Interatividade.......................................................................................... p.33 2.3 – Convergência.......................................................................................... p.34 Capítulo 3 – As Redes Digitais e os Movimentos Sociais.......................................... p.38 3.1 – A Operação Lei Seca e o Twitter .......................................................... p.39 3.1.1 – Definições: Operação Lei Seca .............................................. p.39 3.1.2 – Definições: O Twitter ............................................................. p.39 3.1.3 – Análise da Página “Lei Seca” do Twitter e seus Fenômenos Sociais em suas Relações com as Bases Tecnológicas das Redes Digitais..... p.41

Conclusões .................................................................................................................. p.48

Bibliografia ................................................................................................................. p.52

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INTRODUÇÃO

A expansão acelerada e a rápida absorção das tecnologias digitais de comunicação pela cultura global vêm transformando as estruturas psicossociais do homem ocidental moderno a velocidades cada vez maiores. Em Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, MCLUHAN (1964:10) já observava que “toda tecnologia gradualmente cria um ambiente humano totalmente novo”. Mas McLuhan não testemunhou a verdadeira revolução da proclamada Era Eletrônica – que atualmente passa a ser a Era Digital. As tecnologias e mídias digitais criam continuamente múltiplos ambientes humanos totalmente novos. Como conseqüência disso, o indivíduo comum dispõe de cada vez menos tempo, entre cada nova ambientação, para compreender as influências desses ambientes sobre si mesmo e sobre a sociedade em que está inserido. As verdadeiras implicações sociais das novas formas de relacionamento mediadas pelas redes digitais compõem um tema rodeado por diversas polêmicas e controvérsias. Enquanto alguns teóricos e pesquisadores acreditam em um potencial revolucionário dessas novas formas de comunicação para o fortalecimento de laços comunitários, outros, ao contrário, argumentam sobre um potencial devastador de empobrecimento da vida social dos usuários dessas tecnologias (CASTELLS, 442-449). A existência dessa controvérsia dentro do meio acadêmico evidencia uma falta de consenso sobre o tema, gerando a demanda por novas pesquisas e novas formas de abordagem ao problema, principalmente em face às novas formas de mídia digitas que vão surgindo e se disseminando dentro de intervalos de tempo cada vez mais curtos em nossa sociedade. Diante disso, este trabalho busca lançar luz sobre o tema das inter-relações entre sociedade e tecnologia por meio do recorte de uma área específica da relação entre as novas tecnologias de comunicação e o espectro de fenômenos sociais a elas relacionados; essa área se trata da emergência e manutenção de movimentos sociais e/ou formas de organização independentes que possuem como base de comunicação as redes digitais interativas da chamada “Web 2.0”.


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De acordo com o criador do conceito, a “Web 2.0” se define pela mudança para uma internet como plataforma em que o fundamento mais importante é o desenvolvimento de aplicativos que se beneficiam dos efeitos em rede para se otimizarem cada vez mais na medida em que são usados pelas pessoas, se aproveitando da “inteligência coletiva”. (O´REILLY1) Dentro desse conceito, nasceram, entre outros, a Wikipedia, os Blogs, e as redes digitais como Twitter e Facebook, que são a principal forma de mídia estudada neste trabalho. Para realizar a análise proposta, o autor inicia o trabalho percorrendo a história das transformações tecnológicas na sociedade ocidental a partir da Revolução Industrial, mais especificamente a partir da invenção e disseminação das fontes de energia elétrica, com uma abordagem focada nas relações entre as diferentes tecnologias – particularmente, as tecnologias de comunicação - entre e si mesmas e com os principais fenômenos sociais relacionados a elas. De início, é importante buscar compreender como a relação entre tecnologia e sociedade se desenvolveu ao longo do processo histórico da civilização ocidental, e como as características estruturais das tecnologias, particularmente as tecnologias de comunicação, se relacionam com os contextos sociais nos quais se inserem, modificando-os e sendo modificadas por eles. Como veremos no primeiro capítulo, na Idade Mecânica (MCLUHAN, 1964) – que foi caracterizada pela introdução das novas relações sociais mediadas pelas tecnologias de industrialização da primeira Revolução Industrial - a influência da tecnologia sobre a sociedade é bastante evidente. Seja colocada como causa ou conseqüência – ou como uma relação sinérgica simultânea na qual causa é também conseqüência e vice-versa – de nova uma nova estrutura social e mentalidade coletiva, o fato sobre o qual deve existir um consenso é que as relações entre as novas tecnologias e a sociedade moldaram as bases do novo sistema social da chamada modernidade; época que foi caracterizada inicialmente pelo êxodo rural e crescimento explosivo do modo de vida urbano, baseado no trabalho assalariado e na idéia do cidadão como consumidor e, mais tarde – na chamada “Segunda Revolução Industrial” ou “Segunda Industrialização” (MORIN, 1984) - pela disseminação das

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De acordo com artigo de Tim O´Reilly, o criador da expressão “Web 2.0”, disponível em http://radar.oreilly.com/2006/12/web-20-compact-definition-tryi.html - Acessado em 15/05/2011 (Tradução livre do autor)


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mídias eletrônicas, o nascimento da cultura de massas e da indústria cultural; processos e conceitos que veremos no primeiro capítulo. Uma hipótese explorada neste trabalho é a de que as tecnologias digitais de comunicação introduzem e/ou (considerando a possibilidade já mencionada de relação sinérgica entre causa e conseqüência) são introduzidas por uma nova mudança histórica nas estruturas do sistema social da civilização ocidental - que, com os processos de globalização, se torna cada vez mais unitário, interconectado e global - de proporções comparáveis às mudanças introduzidas pela industrialização do processo produtivo na Primeira Revolução Industrial e pela industrialização dos bens culturais através da mídia de massas na Segunda Revolução Industrial. Tendo isso em vista, no primeiro capítulo o autor analisa o espectro dos principais fenômenos sociais relacionados com as duas etapas da Revolução Industrial que foram descritas, com foco principal naqueles que emergiram a partir da invenção e disseminação das fontes de energia elétrica até a difusão da televisão; em seguida analisa o contexto histórico, tecnológico e social em que se deu a emergência dos computadores modernos e, posteriormente, da internet e das redes digitais interativas, buscando traçar as principais diferenças estruturais desse “novo” sistema de comunicação em relação às mídias eletrônicas de massa mais tradicionais. No segundo capítulo são traçados os pressupostos teóricos que orientam o trabalho, e são explorados os conceitos envolvidos com as estruturas de organização informacional das redes digitais em suas principais diferenças em relação aos tradicionais sistemas de mídia eletrônicos de massa, e em suas relações com a emergência e manutenção de movimentos sociais e/ ou organizações independentes (desvinculados de instituições governamentais ou privadas) em geral. Os pressupostos teóricos são traçados através de uma análise preliminar das relações entre características intrínsecas dos meios, seus conteúdos e potenciais de uso, tendo como referências teorias e obras consagradas sobre o assunto, como as de McLuhan (1964) e Giovannini (1987). A exploração conceitual é feita a partir da revisão das definições conceituais mais aplicáveis ao cenário das redes digitais que estamos estudando, tendo em vista as relações das três características interdependentes escolhidas neste trabalho como fundamentos centrais da comunicação mediada por tais redes digitais - a estrutura


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informacional em redes descentralizadas, a interatividade e a convergência de mídias e tecnologias - entre si mesmas e com o fenômeno desses movimentos sociais. No terceiro capítulo, o autor confronta os resultados das análises histórica e teórica com fenômenos sociais empíricos observados no atual cenário da comunicação digital através de uma pesquisa/estudo de caso sobre o fenômeno do Twitter da “Lei Seca”(páginas o microblog utizadas para troca de informação em tempo real sobre o trânsito e localidades de blitzes, especialmente da Operação Lei Seca – uma operação policial com o principal objetivo de reprimir o uso do álcool por motoristas – em algumas cidades brasileiras, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo). Essa análise é conduzida tendo em vista a influência das três características estruturais estudadas no capítulo anterior sobre a formação e manutenção desse movimento social específico, com o objetivo de compreender as funções da tecnologia – especificamente as características tecnológicas estruturais que isolamos como referenciais de fundamentos técnicos da comunicação das redes digitais – nesse contexto. Ao final desse processo são apresentadas as conclusões do trabalho, buscando cobrir as relações entre os temas de cada capítulo em uma síntese lógica que leve o trabalho a cumprir seu objetivo geral de contribuir para o estudo dos fenômenos sociais relacionados ao cenário contemporâneo da comunicação digital e, em específico, contribuir para o estudo das relações entre os fundamentos tecnológicos das novas redes digitais e a emergência e manutenção de diversos tipos de organizações sociais independentes, ou seja, formadas a partir de interesses de indivíduos ou grupos isolados que se apropriam dessas características estruturais das novas tecnologias para se organizarem coletivamente com diversos propósitos.


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CAPÍTULO 1 – DA ENERGIA ELÉTRICA À INTERNET

Este capítulo explora as bases sociais e tecnológicas que prepararam o terreno para o nascimento das mídias e cultura digitais no mundo contemporâneo. Para isso, o autor percorre a história das mídias eletrônicas e seus fundamentos técnicos, tendo como fio condutor as relações do processo tecnológico com os contextos sociais envolvidos, buscando tecer uma síntese do cenário de onde emergiram as chamadas “Eras” eletrônica e digital. O Capítulo foi organizado numa ordem essencialmente cronológica, e dividido em três sessões principais, denominadas e abordadas da seguinte forma: A Genealogia da Eletrônica, voltada para as bases sociais e tecnológicas que precederam e deram origem à Era Eletrônica a partir da Revolução Industrial; A Revolução Elétrica e a Indústria Cultural, direcionada para o período de emergência das mídias eletrônicas mais tradicionais (antes do computador) e dos fenômenos socioculturais que a acompanharam; e A Revolução da Computação, seção que foi dividida em duas partes: a primeira, voltada para o contexto social e tecnológico no qual se deu a emergência dos computadores e, a segunda, da internet e da chamada Era da Informação. 1.1 – A Genealogia da Eletrônica

Durante a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX, séries de descobertas e experiências científicas tiveram profundos impactos sobre as organizações sociais do mundo ocidental. Novas formas de relacionamento dos homens entre si, dos homens com o meio ambiente e dos homens com o trabalho foram definidas em torno do progresso tecnológico e científico que caracterizou essa época. A mecanização das indústrias, o surgimento e proliferação de estradas de ferro e locomotivas, as novas formas de relações comerciais entre nações, a disseminação do motor a vapor e o surgimento e a expansão das mídias eletrônicas e da cultura de massas são alguns dos principais aspectos que marcaram esse período Cada um desses aspectos gerou


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complexas redes de conseqüências sociais que se desenrolam até hoje. (BRIGGS & BURKE, 2006; GIOVANNINI, 1987). Para o estudo de qualquer uma das mídias eletrônicas em suas relações com a sociedade contemporânea, a disseminação da eletricidade como fonte de energia e o seu respectivo cenário social representam um marco importante, que serve como ponto de partida para a sua contextualização histórica. Antes da introdução das fontes de eletricidade, os tecidos da cultura ocidental eram costurados a partir da sinergia entre duas formas básicas de tecnologia de comunicação: o alfabeto romano e o papel, enquanto a velocidade da transmissão de informações era limitada, em sua maior expressão de avanço, pela tecnologia do motor a vapor (BRIGGS & BURKE, 2006), tal como anteriormente fora limitada pelo galopar dos cavalos e pelos pombos-correio. A partir da disseminação da eletricidade, começam a surgir sucessivamente sistemas de mídia de grande complexidade e alta velocidade de transmissão de informações, integrando diversas formas de tecnologia e conhecimentos especializados. Juntamente com a velocidade de transmissão, esse processo de integração entre mídias e tecnologias se tornaria uma das principais características do cenário midiático contemporâneo. Apesar de o moderno conceito da ―convergência de mídias‖ ter surgido com a ascensão da internet, é possível observar essa convergência como uma característica intrínseca ao desenvolvimento dos meios de comunicação e tecnologias, especialmente a partir da ―Era da eletricidade‖, quando nossas mídias e aparatos técnicos passaram a ser sistemas extremamente complexos, unificando diversos tipos de conhecimentos técnicos especializados que até então se desenvolviam separadamente. A energia elétrica se disseminou pelo mundo apenas a partir do início do século XX, apesar de o processo do seu desenvolvimento ter ocorrido desde o século XVII através de sucessivas descobertas e experimentos científicos (BRIGGS & BURKE, 2006). Algumas dessas descobertas e experimentos tiveram tal importância para a subseqüente história das tecnologias e dos meios de comunicação que merecem ser brevemente descritas neste trabalho. Foi por volta de 1750 que Benjamin Franklin realizou o famoso e perigoso experimento no qual canalizou energia elétrica de raios utilizando uma pipa, demonstrando assim que os raios são fenômenos de natureza elétrica. As descobertas e


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estudos de Franklin são conhecidos como pioneiros na área da eletricidade, além de terem possibilitado a invenção dos primeiros pára-raios. A primeira pilha voltaica – tecnologia que utiliza reações químicas para converter energia química em energia elétrica, e que se tornaria fundamental para os dispositivos elétricos móveis, muitos dos quais viriam a ter um papel essencial na comunicação, tais como telefones celulares, câmeras, filmadoras, gravadores, entre muitos outros – foi inventada por volta de 1800 pelo físico italiano Alessandro Volta. A invenção da pilha possibilitou pela primeira vez a geração de uma corrente elétrica estável, representando um marco de grande importância para os futuros estudos do eletromagnetismo (GIOVANNINI, 1987:156). O fenômeno da indução eletromagnética – que se tornaria o princípio fundamental dos geradores, transformadores, motores e da maioria das máquinas que passariam a ser introduzidas no mundo a partir daí - foi descoberto em 1831 pelo físico e químico inglês Michael Faraday. Isso ocorreu após o físico dinamarquês Hans Christioan Oested descobrir, em 1820, a existência de uma relação entre magnetismo e eletricidade, ao notar que um fio de corrente elétrica exercia influência sob a agulha de uma bússola; uma descoberta que deu origem à ciência do eletromagnetismo, unificando duas formas de ciência (eletricidade e magnetismo) que até então vinham se desenvolvendo isoladamente. A geração de novas tecnologias possibilitadas por essa seqüência de descobertas e experiências foram se desenvolvendo paulatinamente até que os geradores se tornaram as principais fontes de energia empregada na iluminação. Foi então que, em 1876, o inventor norte-americano Alexandre Graham Bell patenteou uma tecnologia de comunicação que convertia a energia acústica em energia elétrica e vice-versa, e iria exercer uma grande influência sobre a sociedade ocidental. Era o telefone, que só décadas mais tarde se disseminaria pelo mundo como meio de comunicação popular (BRIGGS & BURKE, 2006). Em 1880, Thomas Edison desenvolvia a lâmpada elétrica incandescente, e durante as décadas seguintes até o início do século XX a proliferação de usinas geradoras levou à consolidação da eletricidade como principal fonte de energia no mundo ocidental. Dessa forma, estava formada a base tecnológica para a transição de


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um cenário sócio-cultural para outro completamente diferente. A Era do Vapor começava a dar lugar à Era Eletrônica. Essa história – contada aqui de forma muito resumida – do surgimento das fontes de energia elétrica mostra claramente a fusão e interdependência cada vez maior de diferentes tipos de conhecimentos especializados na medida em que se desenvolvem novas tecnologias; processo que fica progressivamente mais evidente enquanto avançamos no estudo das mídias eletrônicas e digitais. Afinal, ―novas tecnologias‖ não emergem do vácuo, mas são possibilitadas e constituídas por tecnologias precedentes, da mesma forma que possibilitam e constituem as tecnologias futuras. É importante observar que todas essas invenções, descobertas e experiências ocorreram dentro de um contexto social marcado por intensas transformações em múltiplos aspectos, relacionadas de forma direta ou indireta, como causas ou conseqüências umas das outras, todas como partes do mesmo processo histórico conhecido como Revolução Industrial, que foi caracterizado justamente pelas novas relações sociais mediadas pelas tecnologias. As revoluções nos meios de comunicação vieram como partes importantes desse processo, conforme observaram Asa Briggs e Peter Burke: ―[...]a "Revolução Industrial" e a "revolução da comunicação" podem ser vistas como parte do mesmo processo — com a revolução dos transportes em primeiro lugar na seqüência tecnológica que parecia ter uma lógica própria, principalmente depois que a eletricidade substituiu o vapor como nova fonte de energia apesar de ser, no início, ainda mais misteriosa (a palavra "eletrônica" surgiu muito depois). No século XX, a televisão precedeu o computador, do mesmo modo que a impressão gráfica antecedeu o motor a vapor, o rádio antecedeu a televisão e as estradas de ferro e os navios a vapor precederam os automóveis e aviões. A seqüência não manteve um ritmo regular, e cada demora precisa ser explicada. "Uma máquina de voar factível", foco de aspiração de muitas pessoas, teve de esperar a invenção do motor a combustão interna para se tornar uma possibilidade técnica. O telégrafo precedeu o telefone, e o rádio deu início à telegrafia sem fio. Mais tarde, depois da invenção da telefonia sem fio, ela foi empregada para introduzir uma "era da radiodifusão", primeiro em palavras, depois em imagens.‖ (BRIGGS & BURKE, 2006:112)

Ao mesmo tempo em que a energia elétrica se desenvolvia paulatina e silenciosamente, a cadeia de todo o processo produtivo passava a ser industrial, massiva e mecanizada, enquanto o planeta passava a ser cada vez mais interligado por ferrovias


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que possibilitavam a distribuição geográfica dos produtos, criando novas formas de relações comerciais entre nações e uma demanda cada vez maior por mão de obra nas áreas urbanas. Na Inglaterra - o berço da Revolução Industrial -, a Lei dos Cercamentos de Terras privatizava, desde meados do século XVIII, as terras onde camponeses viviam e obtinham seus meios de subsistência (para finalidades como a criação de ovelhas utilizadas na produção de lã pela indústria têxtil), gerando parte do êxodo rural que atendia justamente a essas novas demandas das organizações urbanas (grande quantidade de trabalhadores e mão de obra barata). Esses processos, cada vez mais globalizados no mundo ocidental industrial, introduziam uma profunda mudança não apenas na organização das estruturas sociais, mas também nas relações dos homens com o trabalho, pois, convertendo camponeses em assalariados, essa nova mecânica retirava da vida desses trabalhadores os frutos – literais e metafóricos - diretos dos seus esforços. Subitamente, o sentido da vida desses homens do campo era substituído pela mecânica imposta pelo chamado ―progresso‖ do mundo industrial.1. Dentro desse cenário, começam a surgir e se proliferar os meios de comunicação eletrônicos de massa, gerando uma nova forma de indústria (a chamada indústria cultural) e complexificando ainda mais o processo de transformação social iniciado com a primeira Revolução Industrial. São esses processos que estudaremos a seguir. 1.2 – A Revolução Elétrica e a Indústria Cultural O telégrafo elétrico foi ―o primeiro grande avanço da área da eletricidade‖ (BRIGGS & BURKE, 2006:137) e o meio de comunicação que inaugurou a nova geração de mídias eletrônicas. Foi descrito, em 1889, pelo primeiro ministro britânico, Salisbury, como: ――[...]uma estranha e fascinante descoberta‖ que tivera influência direta na ―natureza moral e intelectual e nas ações da humanidade‖. Ele havia ―reunido toda a humanidade em um grande nível, em que se podia ver [sic] tudo que é feito e ouvir tudo que é dito, e julgar cada

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MENEZES, Wellington Fontes. ―Propriedade Intelectual: Das origens agrárias ao capitalismo mundializado‖. Anais do V Colóquio Marx e Engels, CEMARX/Unicamp, 2007. Disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt3/sessao1/Wellingt on_Menezes.pdf – Acessado em 12/05/2011


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política no exato momento em que os eventos acontecem‖‖.(BRIGGS & BURKE, 2006:137)

Embora seja improvável que toda a humanidade estivesse realmente incluída em tais benefícios, essa descrição evidencia a expectativa de um potencial revolucionário do meio de comunicação, bem como o reconhecimento imediato do seu poder de uso político (BRIGGS & BURKE, 2006:137), o que continua sendo um padrão familiar em relação aos meios de comunicação da atualidade. De fato, a introdução do telégrafo elétrico geraria uma constelação de efeitos sociais e econômicos, como descrevem Asa Briggs e Peter Burke em sua obra Uma História Social da Mídia: de Gutenberg à Internet: ―Como os canais, ferrovias e ligações oceânicas, também o telégrafo ligou mercados nacionais e internacionais, incluindo bolsas de valores e mercadorias (algodão, trigo e peixe, por exemplo). Também aumentou a velocidade de transmissão de informação, pública e privada, local e regional, nacional e imperial, e essa característica, a longo prazo, foi seu efeito mais significativo. A distância ia sendo conquistada à medida que se transmitiam informações relativas a governos, negócios, assuntos familiares, condições climáticas e desastres naturais ou provocados pelo homem, a maior parte delas como notícias. Agências nasceram para levar as notícias através de fronteiras(...)‖ (BRIGGS & BURKE, 2006:139)

Briggs e Burke seguem descrevendo eloquentemente como a telegrafia elétrica afetou as operações e planejamentos militares, tendo seu valor consolidado dentro desse contexto durante a guerra civil dos Estados Unidos, quando mais de 24 mil quilômetros de linhas de telégrafo estavam sendo usadas e mais de cinco mil pessoas trabalhavam na operação do sistema, com a Reuters telegrafando do Atlântico e ―muito mais‖. (BRIGGS & BURKE, 2006:140-141)

Em 1900, o telegrafo já se encontrava bastante disseminado pelo mundo ocidental, mas em breve seria ofuscado pela ascensão do telefone e do rádio, cujas histórias se misturam no tempo. Por volta de 1890, o cientista alemão Heinrich Hertz havia comprovado a existência das ondas eletromagnéticas, também chamadas de ―ondas hertzianas‖ ou simplesmente ―ondas de rádio‖. Nessa mesma década foram criados os receptores e transmissores das ondas hertzianas, e foram feitas as primeiras transmissões de rádio. O


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primeiro sistema de radiodifusão do mundo foi criado em 1893, pelo inventor Theodore Puskas, em Budapeste, mas foi somente na década de 1920 que vários países – entre eles o Brasil - começaram a criar sistemas transmissores de rádio. Enquanto isso, o uso do telefone (que, como vimos, já havia sido inventado desde 1876) vinha se expandindo lentamente através de um processo histórico caracterizado

por

polêmicas,

resistências

ideológicas

e

disputas

judiciais

(GIOVANNINI, 1987; BRIGGS & BURKE, 2006) para, somente a partir de 1950, ―começar a ser identificado como tendência social importante dos dois lados do Atlântico.‖ (BRIGGS & BURKE, 2006:154). A despeito disso, como mencionam Briggs e Burke (2006:147), a revista Scientific American já havia sugerido, em 1880, que ―[...]o telefone levaria a uma nova organização da sociedade – um estado de coisas em que qualquer indivíduo, mesmo completamente isolado, poderá ligar para qualquer outro indivíduo da comunidade, poupando infindáveis complicações sociais e comerciais, sem necessidade de idas e vindas‖.‖ (BRIGGS & BURKE, 2006:147).

Na década de 1920, a ascensão do rádio levou ao surgimento de grandes redes transmissoras e da publicidade como principal substrato econômico da mídia, constituindo um padrão que se consolidaria cada vez mais no cenário da modernidade. Mas isso ocorreu através de um processo cultural muito polêmico, como observaram Briggs e Burke: ―A publicidade tornou-se a dinâmica financeira. Criticada por diversos setores da imprensa, também foi atacada em 1922 e 1923 por Herbert Hoover (1874-1966), futuro presidente dos Estados Unidos e então secretário do Comércio: em uma frase notável, ele declarou ser ―inconcebível permitir-se que um grande potencial para uso em serviços, notícias, lazer e educação e em objetivos comerciais vitais fosse afogado por tagarelice publicitária‖. Ele estava errado, e em 1927, quando tornou-se presidente e fez aprovar a primeira lei governamental estabelecendo a Comissão Federal de Rádio (um exercício limitado de regulamentação), ela não falava de ―serviço‖, mas de ―interesse público, utilidade, necessidade‖. (BRIGGS &

BURKE, 2006:164) Essas primeiras discussões públicas sobre o rádio e o telefone já refletiam questões que acompanhariam toda a subsequente história da mídia. O papel e os limites


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da publicidade continuam sendo lugar-comum nos atuais debates da mídia de massas, e a idéia do potencial dos meios eletrônicos para romper fronteiras e facilitar diversos tipos de relações sociais continua a impressionar a humanidade, gerando idéias e conceitos de cunho quase profético-mitológico, como a aldeia global de McLuhan (1964). Mas, naquela época, a última grande revolução da comunicação antes do advento da internet ainda estava por vir. Era a tecnologia doméstica de transmissão de imagens em movimento, fundamentos do que veio a ser a televisão. Em 1872, o inglês Eadweard Muybridge já havia feito uma demonstração para o governador da Califórnia, na qual utilizou seqüências de imagens feitas com câmeras fotográficas de modo a transmitir a impressão de movimento (BRIGGS & BURKE, 2006:168). E, desde o início do século XX, o cinema estava se expandindo em vários lugares do mundo industrializado, originando as primeiras ―estrelas de cinema‖ como Charles Chaplin (1889-1977). Por volta do fim da década de 1920 e início da década de 1930, algumas das principais grandes corporações cinematográficas já haviam se formado, dando início à chamada ―era de ouro‖ do cinema, termo que também se aplicaria a outros meios de comunicação. Esse período iria coincidir com a comercialização dos primeiros aparelhos de TV, cuja história das bases tecnológicas e introdução no mundo industrial é descrita por Asa Briggs e Peter Burke (2006): ―Nenhuma empresa produtora de filmes ou cinejornais via a televisão como um adversário, em 1927 ou 1933. Na verdade, quase nenhum país possuía regularmente canais de televisão, embora a palavra houvesse sido inventada — em francês — em 1900. Antes disso ela já contava com uma longa pré-história de experiências no século XIX, remontando em geral à data de 1839 (ver p.165), marco de referência na história da fotografia. No rastro das experiências de Edouard Becquerel, Willoughby Smith, um dos engenheiros de telegrafia que supervisionaram a colocação do cabo transatlântico (ver p.132), percebeu em 1873 a correlação entre o comportamento peculiar dos resistores de selênio e a luz do sol. Na mesma década um advogado francês sugeriu que o selênio poderia ser usado em um sistema de varredura. O que ele tinha em mente, no entanto, era a transferência de imagens individuais, instantâneas, mas "fugidias", e não de imagens contínuas em tela; e quando três anos depois o inglês Shelford Bidwell demonstrou a "telegrafia de imagens" — necessariamente de pouca definição — à Sociedade de Física de Londres, ele era um precursor do fax e não da televisão. (BRIGGS & BURKE, 2006:175)


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Em Evolução na Comunicação: Do Sílex ao Silício, Giovannini dedica um capítulo inteiro à descrição detalhada dessa ―longa pré-história‖ da televisão, enfatizando estágios que já foram explorados neste trabalho, como as descobertas científicas em torno da eletricidade, da telegrafia e do rádio, em contraste com o ―rápido desenvolvimento‖ desse meio de comunicação dentro da cultura industrial. (GIOVANNINI, 1987). Também não deixa de exaltar o fato de a televisão nunca ter sido um meio realmente ―democrático‖, visto que a transmissão sempre foi privilégio de pequenas elites sociais: ―Dos quase 35 mil transmissores que existem no planeta, quase metade (mais de 16 mil) estão concentrados na Europa, e um outro número elevado (4.400), nos Estados Unidos. No seu todo, países desenvolvidos (todas as nações européias, os Estados Unidos, o Canadá, a União Soviética, o Japão, Israel, a Austrália, a Nova Zelândia e a África do Sul: pouco mais de um quarto dos habitantes da terra) detém 95% das estações transmissoras, deixando os restantes 5% para as intermináveis populações de países em desenvolvimento‖ (GIOVANNINI, 1987:254-255)2.

Giovannini segue argumentando sobre o aspecto exclusivista da televisão ressaltando, também, a restrição do acesso financeiro à tecnologia de recepção nos primórdios da sua disseminação pelo mundo; restrição essa que se tornaria menor com a popularização da tecnologia em decorrência dos avanços no processo de industrialização, mas que, pelas diferenças socioeconômicas entre as nações, seria mantida até os dias atuais. (GIOVANNINI, 1987:255-256). Dentro desse contexto, é importante observar que, mesmo que o acesso à tecnologia de recepção fosse completamente ―democrático‖, isso dificilmente seria possível em relação à produção e transmissão de conteúdo, pois, devido à natureza centralizadora desse meio, esse processo sempre esteve e tende a estar em poder restrito de grandes corporações institucionais. Após a Segunda Guerra Mundial (1945), o uso da Televisão começa a se expandir rapidamente pelo mundo, alcançando, por volta de 1950, a chamada ―idade da televisão‖ (BRIGGS & BURKE, 2006). A partir daí, uma audiência realmente massiva

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Unesco. Statistical Yearbook 1982. Paris, 1982, pp.897-1235.


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começava a nascer, e aquilo que foi chamado de indústria cultural pelos teóricos de Frankfurt começava a se consolidar, transformando bens culturais em mercadorias produzidas e comercializadas através da lógica industrial. Era, nas palavras de Morin (1984:13), ―[...]a ―segunda industrialização, que passa a ser a industrialização do espírito‖. A cultura que nasceria a partir desse processo seria chamada de ―cultura de massa‖, tal como define Edgar Morin (1984:14): ―Cultura de massa, isto é, produzida segundo as normas maciças da fabricação industrial; propaganda pelas técnicas de difusão maciça (que um estranho neologismo anglo-latino chama de mass media); destinando-se a uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade (classes, família, etc.).‖

A implicação mais básica teorizada sobre a indústria cultural seria uma espécie de sabotagem ao potencial criativo do homem, na medida em que, dentro desse novo sistema, o desenvolvimento da novidade com características singulares que define a criação de um conteúdo cultural dá lugar à padronização de acordo com uma lógica exógena relacionada com a mecânica industrial da produção, consumo massivo e os interesses das grandes corporações envolvidas na produção e transmissão desses conteúdos culturais. Daí se conclui que indústria cultural e criatividade são antagonismos inconciliáveis, e que a cultura de massas representa a decadência da verdadeira produção cultural e artística. Pesquisadores como Edgar Morin (1984), porém, argumentam que a indústria cultural opera através desse paradoxo, e depende da criação individualizada justamente para manter-se viva, pois o consumidor do produto cultural exige sempre um conteúdo original e novo: ―Existem técnicas-padrão de individualização que consistem em modificar o conjunto dos diferentes elementos, do mesmo modo que se pode obter os mais variados objetos a partir de peças de meccano. Em determinado momento precisa-se de mais, precisa-se da invenção. É aqui que a produção não chega a abafar a criação, que a burocracia é obrigada a procurar a invenção, que o padrão se detém para ser aperfeiçoado pela originalidade. Donde esse princípio fundamental: a criação cultural não pode ser totalmente integrada num sistema de produção industrial. Daí um certo número de conseqüências: por um lado, contratendência à


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descentralização e à concorrência, por outro lado, tendência à autonomia relativa da criação no seio da produção‖ (MORIN, 1984:26)

A descentralização e a produção de conteúdo cultural individualizado se tornariam características definidoras da comunicação digital altamente interativa, baseada na internet, dos tempos atuais. Nesse sentido, a própria internet pode ser vista como uma contratendência em relação aos padrões mecânicos e burocratizados de produção de cultura introduzidos pela indústria cultural. Essa é uma hipótese para a qual iremos olhar mais adiante, porém, independente disso, o que fica evidente é que, a partir da ascensão das mídias eletrônicas de massas nascia uma nova estrutura cultural; uma estrutura cultural baseada na mesma mecânica que caracterizou a Revolução Industrial em relação ao processo produtivo. Em outras palavras, a produção de cultura agora precisava seguir as regras e condições impostas pelo capitalismo industrial moderno: produção em massa, apelo publicitário, interesses de grandes corporações e assim por diante. 1.3 – A Revolução da Computação

Enquanto a cultura de massas se expandia pelo mundo ocidental tecno-industrial, a próxima tecnologia de grande impacto social, o computador eletrônico, já estava sendo idealizada e desenvolvida. Na realidade, a verdadeira origem dos computadores remonta um período de mais de seis mil anos atrás, no qual povos antigos utilizavam instrumentos manuais de calcular chamados de ábaco (Figura). Essas ferramentas, que eram muito simples e aparentemente não tinham nenhuma semelhança com o que nós conhecemos atualmente por ―computador‖, foram os primeiros protótipos de instrumentos utilizados para processar dados com maior eficiência do que a mente humana normalmente é capaz. Por isso, pode-se dizer que esses são os primeiros artefatos que materializam a mentalidade computacional, ou os primeiros computadores (STRATHERN, 2000:9). Muitas variações dessas ferramentas foram encontradas em culturas antigas da Mesopotâmia, China, Grécia, Roma, Egito, entre outras. Mas os computadores como conhecemos ainda iriam demorar alguns milênios para surgirem.


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No decorrer dos séculos XVII e XVIII, protótipos mais complexos de computadores começaram a surgir. Um dos mais conhecidos deles foi a máquina de Pascal (Pascaline), cuja criação - atribuída ao físico e matemático Blaise Pascal (16231662) - data da década de 1640, e é considerada a primeira calculadora mecânica da história (STRATHERN, 2000:15). Trinta anos mais tarde, em 1673, o filósofo alemão Gottfried Leibnitz criou a ―roda dentada de Leibnitz‖, uma versão aperfeiçoada da máquina de Pascal, que era capaz de realizar operações ainda mais complexas. (GIOVANNINI, 1987:285, STRATHERN, 2000:17). Embora estejam associadas às raízes dos computadores modernos, essas primeiras máquinas eram apenas calculadoras não-programáveis, e seus potenciais de uso eram restritos a áreas muito específicas da cultura humana, como continuariam sendo durante muito tempo antes de se tornarem o tipo de tecnologia onipresente na estrutura do sistema social que são atualmente. Um grande passo na direção dos computadores como conhecemos hoje foi a invenção de sistemas programáveis. A primeira máquina programável foi inventada em 1801 pelo costureiro Joseph Marie Jacquad para realizar cortes automáticos em tecidos. Foi uma invenção denominada ―tear mecânico‖, que ―revolucionou a indústria têxtil na Europa no início de 1800‖(GIOVANNINI, 1987:285). Mas sua real importância iria muito além disso. Embora não tivesse notado a magnitude das suas implicações, Jacquad havia criado a idéia de programar máquinas, que se tornaria um princípio básico da computação moderna (STRATHERN, 2000:18). Durante as décadas de 1820 e 1830, o cientista Charles Babbage desenvolveu uma serie de projetos que lhe deram o crédito de paternidade do computador moderno (GIOVANNI, 1987:285; STRATHERN, 2000). Particularmente importante era a sua ―Máquina Analítica‖, inspirada em conceitos anteriormente empregados por Jacquad no ―tear mecânico‖. Sua invenção ―iria ser a primeira máquina analítica: uma máquina cuja função era controlada por um programa externo.‖(STRATHERN, 2000:22). Mas, apesar de revolucionário, o projeto de Babbage não foi implementado na prática devido a limitações técnicas da época, porém suas contribuições teóricas foram de grande importância para o desenvolvimento dos computadores modernos. No início do século XX, várias versões de computadores mecânicos começaram a ser desenvolvidas, ao passo que a energia elétrica e os equipamentos e meios de


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comunicação

eletrônicos

começavam

a

se

expandir

pelo

mundo

ocidental

industrializado, seguindo o processo que já descrevemos nos tópicos anteriores. O período de emergência dos computadores modernos acompanha todo o contexto da Revolução Industrial que exploramos anteriormente neste capítulo. Com o passar do tempo, os projetos de computadores foram incorporando cada vez mais componentes eletrônicos, até que, em 1936, o engenheiro alemão Konrad Zuse criou o primeiro computador de mecânica inteiramente elétrica, que era capaz de executar cálculos e exibir os resultados em uma fita perfurada. Mas foi somente durante a Segunda Guerra Mundial que os computadores modernos começaram realmente a surgir. O primeiro computador a válvulas foi o ENIAC, criado em 1946. Embora seja o protótipo modelo do que veio a ser o computador, essa máquina ainda não tinha muita semelhança em aparência com os ―micros‖ atuais, já que tinha trinta metros de largura e três metros de altura, contando com 18 mil válvulas de 16 tipos diferentes. E o seu objetivo era, principalmente, realizar cálculos balísticos do Pentágono. (GIOVANNINI, 1987:286). Para que o uso dos computadores fosse além desses ambientes restritos de áreas culturais especializadas e começasse a atingir o cidadão comum em sua residência, bem como todas as esferas do nosso sistema social, duas limitações tecnológicas principais precisavam ser superadas: o alto consumo de energia e as próprias dimensões físicas que essas máquinas demandavam. Um grande avanço nessa direção foi dado com a fabricação do primeiro transistor, em 1948. Tratava-se de ―um dispositivo capaz de realizar funções de comutação e de amplificação de correntes elétricas que até então só tinham sido conseguidas com as bem maiores válvulas termoiônicas‖ (GIOVANNINI, 1987:289). A importância do transistor era justamente permitir a realização das mesmas funções das válvulas, mas ocupando um espaço menor e demandando um consumo de energia muito mais baixo (GIOVANNINI, 1987:209). Essa tecnologia é tida como um marco inaugural da ―segunda geração‖ dos computadores. Durante os dez anos seguintes, as técnicas de produção dos transistores progrediram paulatinamente na direção da redução do consumo de energia e de aparelhos cada vez menores; progressos que foram essenciais para o surgimento dos computadores domésticos, pois, como observamos, o tamanho daquelas

primeiras


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máquinas e a energia que demandava seu funcionamento tornavam inviável que fossem utilizadas dessa forma. Em 1964, a Fairchild começou a produzir industrialmente o que chamou de ―circuitos integrados‖, que se tornaria a principal característica definidora da ―terceira geração‖ dos computadores. Esses circuitos eram ―constituídos por alguns transistores interligados entre si de forma a realizar simples funções lógicas num único chip.‖(GIOVANNINI, 1987:289). Era o início da computação baseada nos chips, tão comuns nos dias de hoje. Essa tecnologia reduzia muito o tamanho, custo, e o consumo de energia dos equipamentos, integrando complexos circuitos eletrônicos em uma pequena peça, representando assim o início do período de transição entre o uso restrito e o começo da popularização dos computadores. No ano seguinte, a IBM lançou a serie 360, uma geração de computadores construídos por circuitos integrados. Mas os microprocessadores – peças-chave para o desenvolvimento dos computadores pessoais domésticos – só vieram alguns anos depois. Após lançar, em 1971, o primeiro microprocessador produzido em escala industrial (o 4004, de 4 bits) e perceber que a tecnologia possuía o potencial para transcender as áreas específicas onde era utilizada até então, a Intel seguiu desenvolvendo uma série de microprocessadores, que marcaram a transição para a chamada ―quarta geração‖ dos computadores; aquela caracterizada pelo surgimento dos primeiros microcomputadores portáteis - os famosos PC´s (Personal Computer). Os computadores de quarta geração, de acordo com Giovannini (1987), ―[...]são produtos revolucionários, com um planejamento que os coloca culturalmente num espaço acima do tradicional mundo EDP, com uma nítida orientação rumo à inteligência artificial e aos projetos fault tolerant.‖ (GIOVANNINI, 1987:290). Os PC´s foram introduzidos pela IBM em 1981, inaugurando definitivamente a Era dos computadores domésticos pessoais e o grande mercado da informática. A partir daí, começaram a surgir gerações cada vez mais diversas e potentes de ―micros‖ em intervalos de tempo cada vez mais curtos, e o potencial do seu mercado tornou-se cada vez mais evidente e expansivo, como continua até os dias atuais.


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Observando esses aspectos sob uma perspectiva histórica, Giovannini (1987) ressaltou uma característica da evolução dos computadores que também segue perfeitamente aplicável à realidade atual: ―A sequência histórica acompanhou com bastante fidelidade o movimento de uma curva segundo a qual a cada ano a complexidade dos circuitos integrados, medida em termos de número de transistores componentes, seria dobrada, enquanto o preço correspondente diminui exponencialmente‖ (GIOVANNINI, 1987:290)

Desde a década de 70 até os dias atuais, o mercado dos computadores segue crescendo em ritmo exponencial, e a tecnologia continua integrando cada vez mais funções em cada vez menos espaço, enquanto os preços dos equipamentos de informática seguem diminuindo. Dentro desse intervalo de tempo, o computador penetrou, se consolidou e, associado à comunicação digital mediada pela internet, passou a ser cada vez mais fundamental para todas as esferas da nossa sociedade. As principais bases das implicações sociais desse cenário já haviam sido previstas e descritas por Giovannini (1987), ao observar os fundamentos tecnológicos da computação:

―O aumento da potência de cálculo e a ampliação contínua das aplicações do processamento de dados correspondem a uma crescente facilidade de acesso aos computadores, uma difusão cada vez maior dos meios de cálculo, a aproximação da linguagem das máquinas a do homem, o aumento das possibilidades de armazenamento de grandes volumes de informações e de troca de dados a distância a

velocidades altíssimas.‖ (GIOVANNINI, 1987:291) Atualmente, já não existem dúvidas sobre a importância central dos computadores em praticamente todos os sistemas que compõem a

sociedade

contemporânea, desde os relacionamentos interpessoais dos indivíduos até o funcionamento de órgãos governamentais e empresas privadas. Como observaram Briggs e Burke (2006): ―Logo que deixaram de ser considerados simples máquinas de calcular ou úteis acessórios de escritório(...) [os computadores] passaram a fazer com que todos os tipos de serviços, e não somente os de comunicações, tomassem novas formas.‖ (BRIGGS & BURKE, 2006:273).


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A introdução dos ―micros‖, a partir da década de 1970, marca o início do período conhecido como Era Pós-Industrial, também chamada de Era da Informação, que seria consolidada com o advento da internet; fenômenos que estudaremos a seguir. 1.3.1 – A Internet e a Era da Informação

No início da década de 60, em meio ao ápice da Guerra Fria, o governo dos Estados Unidos sentiu que os seus sistemas convencionais de comunicação e organização informacional se tornaram muito frágeis diante das ameaças militares. Por serem baseados em centrais de comunicação, as principais bases desses sistemas poderiam ser destruídas em ataques inimigos estratégicos, fragilizando justamente as organizações militares, que eram extremamente dependentes dessas tecnologias. Nesse contexto, foram empreendidas séries de pesquisas com o objetivo de criar, para propósitos militares, sistemas de comunicação mais seguros do que os convencionais meios da época, baseados principalmente em telecomunicação. Assim, em 1969, foi criado um sistema denominado ARPANET (Advanced Research Projects Agency Network) , que conectava computadores em rede. Dessa forma, o armazenamento das informações passavam a ser descentralizado e, assim, tais informações não seriam facilmente perdidas no caso de ataques de inimigos em locais específicos. 3 Esse projeto foi a matriz do que hoje é a internet, mas certamente seus criadores não tinham a menor idéia dos efeitos revolucionários do gatilho que estavam puxando. No início da década de 1980, o desenvolvimento do protocolo TCP/IP (Transmission Control Protocol / Internet Protocol), que ainda hoje é o protocolo padrão para troca de informações na internet, começou a aumentar a abrangência da rede, até que, em 1990, a ARPANET foi transformada em NSFnet (National Sciences Foundation Network) conectando várias outras redes de centros de pesquisas e universidades do mundo inteiro.4 Nascia assim a internet, primeiramente como uma

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MONTEIRO, Luís. A Internet como Meio de Comunicação: Possibilidades e Limitações, 2001. Disponível em http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/4714/1/NP8MONTEIRO.pdf Acessado em 15/05/2011. 4 MONTEIRO, Luís. A Internet como Meio de Comunicação: Possibilidades e Limitações, 2001. Disponível em http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/4714/1/NP8MONTEIRO.pdf Acessado em 15/05/2011.


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ferramenta essencialmente militar e, mais tarde, como uma ferramenta essencialmente acadêmica. A característica estrutural desse novo meio que o difere radicalmente dos outros veículos tradicionais está nas formas pelas quais a informação é tratada, tanto em termos de armazenagem como de transmissão e recepção. Embora não pudessem prever os tipos de usos que seriam possibilitados pela evolução de uma tecnologia dessa natureza, os seus aspectos estruturais básicos eram partes centrais da ideologia dos seus criadores, conforme descrevem Briggs e Burke (2006): ―[...]era de importância crucial, tanto de imediato quanto a longo prazo, que a "arquitetura do sistema" (termo empregado com freqüência) diferisse daquela construída para a rede telefônica. Os responsáveis pelo sistema se orgulhavam disso. Qualquer computador podia se ligar à Net de qualquer lugar, e a informação era trocada imediatamente, em "fatias" dentro de "pacotes". O sistema de envio quebrava a informação em peças codificadas, e o sistema receptor juntava-a novamente, depois de ter viajado até seu destino. Esse foi o primeiro sistema de dados empacotados da história.‖ (BRIGGS & BURKE, 2006:301)

A explosão da internet como veículo de comunicação popular começou em meados dos anos 90, a partir da popularização da WWW (World Wide Web), onde se cristalizou o sistema de navegação por meio dos tradicionais navegadores (ou ―browsers‖). A World Wide Web foi criada em 1990 pelo cientista inglês Tim BernersLee, no CERN (Conselho Europeu para Pesquisa Nuclear), sendo ―[...]concebida como uma ferramenta de troca de informações mais amigável que as interfaces ―somente-texto‖ então utilizadas. Baseado no conceito de hipertexto (que veremos adiante), Tim desenvolveu uma linguagem de programação (chamada HTML, ou HyperText Markup Language) que permitia ao usuário – utilizando um mouse e um software chamado ―browser‖ (navegador), desenvolvido especialmente com esta finalidade – acessar diversas informações de modo não-linear, indo de um documento (fosse ele texto, imagem ou som) a outro através de ligações entre eles, mesmo que estivessem em computadores remotos.‖5

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MONTEIRO, Luís. A Internet como Meio de Comunicação: Possibilidades e Limitações, 2001. Disponível em http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/4714/1/NP8MONTEIRO.pdf Acessado em 15/05/2011.


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Essa seria a base da programação utilizada até hoje nos conteúdos da internet. A partir daí, começamos a assistir a uma crescente e intensa criação, proliferação e fusão de mídias digitais e aparatos tecnológicos integrados à rede, formando o que hoje é o nosso mais complexo sistema de comunicação. Com as novas tecnologias digitais e a rede mundial de computadores baseada na World Wide Web, começou a se desenhar um cenário completamente novo na cultura global. Dava-se início à chamada Era da Informação, uma revolução cujo cerne: ―[...]refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação. A tecnologia da informação é para esta revolução o que as novas fontes de energia foram para as revoluções industriais sucessivas, do motor a vapor à eletricidade, aos combustíveis fósseis e até mesmo à energia nuclear, visto que a geração e distribuição de energia foi o elemento principal na base da sociedade industrial.‖ (CASTELLS, 1999:68)

Além disso, Castells (1999:69) também observou que o que realmente caracteriza essa revolução em torno das tecnologias da informação não é apenas o papel central dos conhecimentos e informação em si mesmos, mas: ―[...] a aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e seu uso. [...] O ciclo de realimentação entre a introdução de uma nova tecnologia, seus usos e seus desenvolvimentos em novos domínios torna-se muito mais rápido no novo paradigma tecnológico. Consequentemente, a difusão da tecnologia amplifica seu poder de forma infinita, à medida que os usuários apropriam-se dela e a redefinem. As novas tecnologias da informação não são simplesmente ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos. Usuários e criadores podem tornarse a mesma coisa. [...] Há, por conseguinte, uma relação muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação de símbolos (a cultura da sociedade) e a capacidade de produzir e distribuir bens e serviços (as forças produtivas). Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo.‖ (CASTELLS, 1999:69)

Isso é bastante evidente no cenário atual, onde a comunicação interativa individualizada das redes digitais adquire dimensões massivas, chegando a ditar pautas para a imprensa tradicional e alterar seus padrões de operação, e onde o desenvolvimento dos potenciais usos das tecnologias digitais de comunicação cada vez


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mais se caracteriza como um processo contínuo moldado por usuários que se apropriam constantemente dos padrões estruturais de funcionamento desses sistemas para os seus próprios propósitos de uso, e cada vez menos como um processo limitado pelas intenções iniciais dos seus criadores. Como observam Briggs e Burke (2006), as implicações do novo cenário que começava a se desdobrar com a difusão da internet eram, desde o início – como são até hoje – motivo de polêmicas e controvérsia entre diversos pesquisadores da área: ―Havia abordagens muito contrastantes sobre o futuro da internet. Assim como nas ferrovias, ela reuniria estranhos: você nunca sabia quem iria encontrar. Semelhante à mídia — e pela mídia —, ela oferecia informação, entretenimento e educação. Ao contrário de tudo isso, porém, cresceria a partir de baixo, sem direcionamento por parte do governo. Isso era um atrativo, mesmo para os críticos. Mas poderia a Internet continuar assim? Para Benjamin Parker, escritor norteamericano com uma autodeclarada "paixão pela democracia", estavam surgindo novos titãs das telecomunicações, ansiosos para exercer "controle monopolístico, não somente sobre bens materiais, como carvão, petróleo, aço e ferrovias, mas sobre os instrumentos essenciais de poder de uma civilização baseada em informação". (BRIGGS & BURKE, 2006:303)

Essas questões continuam sendo bastante debatidas atualmente, com opiniões e teorias muito divergentes. Tendo em vista esse problema, um dos objetivos deste trabalho é, justamente, avaliar até que ponto e de que forma aquilo que foi chamado de ―arquitetura do sistema‖ (BRIGGS & BURKE, 2006:301), ou seja, as características basais desse meio desde o seu início, estão favorecendo e/ou influenciando grupos sociais desvinculados de governos ou grandes instituições lucrativas, já que, com o advento da chamada ―Web 2.0‖ a partir da década de 2000, especialmente as chamadas ―Redes Sociais‖, é notável a emergência de diversos grupos que se unem por interesses em comum através dessas redes digitais para realizar diversos tipos de ações com propósitos políticos e/ou sócio-culturais.


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CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTOS DA COMUNICAÇÃO DIGITAL NA WEB 2.0

Para os propósitos deste trabalho, assumimos que a compreensão do potencial de sistemas altamente complexos, como é o caso da comunicação digital mediada pela internet, depende do estudo de cada uma das suas principais características não apenas isoladamente, mas em suas relações umas com as outras e dentro do contexto do conjunto unitário da qual fazem parte, conforme postula o princípio sistêmico estabelecido por Edgar Morin1 para a abordagem de sistemas complexos de diversas naturezas. Partindo desses pressupostos teóricos, iremos explorar neste capítulo a relação entre alguns dos principais fundamentos conceituais da comunicação digital, especificamente expressos na Web 2.0, analisando suas relações com a emergência e manutenção de diversas formas de ativismos organizados desvinculados de instituições lucrativas e/ou governos. No próximo capítulo, confrontaremos o resultado dessa análise teórica com o estudo de caso realizado.

2.1 - Redes e Descentralização

Conforme observamos no capítulo anterior, a organização informacional em redes descentralizadas é parte central da arquitetura da internet desde o seu início, fazendo parte da ideologia central dos seus criadores. Esse, de fato, é um dos seus traços definidores mais marcantes, e que a diferencia radicalmente das mídias eletrônicas anteriores a ela. Embora a palavra “rede” também seja usada para classificar os sistemas de televisão e rádio, na internet ela adquire um significado especial, pois, como observou Lucia Santaella (2004:38), “ela não se constrói segundo princípios hierárquicos, mas

1

MORIN, Edgar. “Da Necessidade de um Pensamento Complexo”. In: MARTINS, F. M.; SILVA, J. M (Org.). Para navegar no século XXI – Tecnologias do Imaginário e Cibercultura. Disponível em http://www.uesb.br/labtece/artigos/Da%20Necessidade%20de%20um%20Pensamento%20Complexo.pdf – Acessado em 20/05/11


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como se uma grande teia na forma do globo envolvesse a terra inteira, sem bordas nem centros.”. Como também já observamos no capítulo anterior, a centralização hierárquica do poder de comunicação, que resulta na formação de monopólios e oligopólios hegemônicos, é uma característica reforçada pela estrutura dos tradicionais sistemas de comunicação de massas, tais como as redes de televisão e rádio. Com isso, os conteúdos da comunicação veiculados por tais meios não podem ser outra coisa senão produtos de uma negociação entre os interesses dos usuários e os interesses dos grupos que detém o controle desses sistemas. Dentro dessa mecânica, os interesses dos usuários nunca se sobrepõem aos interesses dessas organizações, visto que estas têm de prezar pela sua própria existência acima de tudo. Dessa forma, se estabelece um limite aos benefícios que os usuários podem obter através desses meios; é o limite em que tais benefícios passam a confrontar-se com os interesses dos grupos hegemônicos que controlam direta ou indiretamente esses sistemas de comunicação. A noção que estamos explorando aqui postula que esse cenário é diferente nas redes digitais. Por causa da própria natureza estrutural do sistema, conforme assinalamos, o conteúdo da internet é descentralizado, não estando sob propriedade ou controle hegemônico de uma organização ou um grupo de organizações. Isso não significa que essas organizações e seus interesses não estejam presentes nas redes digitais – o que, obviamente, não é verdade (muito pelo contrário) -, mas que não controlam e não podem controlar o conteúdo da internet, pois, como assinalou Castells (1999:441): “a arquitetura da rede é, e continuará sendo aberta, sob o ponto de vista tecnológico, possibilitando amplo acesso público e limitando seriamente restrições governamentais ou comerciais a esse acesso [...]”. Isso produz uma situação em que os interesses dos indivíduos, de grupos, de governos e de grandes instituições competem, sob certa ótica, livremente no ciberespaço. Embora a causa desse fenômeno seja muito atribuída à ausência de regras, legislações e/ou outras formas impositivas de controle como resultado de uma introdução muito recente da tecnologia na sociedade (argumentos seguindo a linha de que a internet parece ser tão “livre” porque as instituições sociais ainda estão começando a lidar com ela), o aprofundamento no estudo dos padrões estruturais dessa tecnologia tem mostrado que esse aspecto também é reforçado por características da


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própria tecnologia, da mesma forma que os padrões hierárquicos e hegemônicos tendem a ser reforçados pelas características estruturalmente centralizadoras das mídias de massa tradicionais. No entanto, é importante observar que essa situação pode ter suas exceções em casos extremos, como foi na recente Revolução Egípcia (2011), quando o ameaçado governo do Egito simplesmente derrubou a internet no país para tentar frear a onda de manifestações que se alastrava com ajuda das Redes Sociais, especialmente o Facebook, que foi amplamente utilizado nesse contexto, tendo sido considerado um ponto central da emergência dos conflitos no país2. Porém, essa situação crítica e excepcional acaba por reforçar o suposto potencial da internet e suas redes digitais de servir aos interesses de indivíduos ou grupos independentes de governos ou instituições a partir da sua característica intrínseca de organização informacional em redes descentralizadas. Pois, o que ficou bastante evidente nessa situação é que o governo egípcio precisou derrubar a internet porque não podia controlar seu conteúdo. Esse é um fenômeno que dificilmente aconteceria com meios como a televisão ou o rádio. Ainda dentro do contexto dos ativismos, tem sido observado que a estrutura das redes digitais tem dificultado ou até impossibilitado aos órgãos hegemônicos de controle social a identificação das origens ou pontos de partidas das manifestações que emergem nesses contextos, como foi o caso nos recentes conflitos na Tunísia e na Revolução Egípcia de 20113. Por um lado, a instantaneidade e a difusão multidirecional de informações proporcionada por essas redes dificulta o trabalho de repressão das instituições de controle ao dificultar a identificação dos pontos causadores ou iniciais das manifestações e, por outro, essas mesmas características fazem com que a própria repressão seja alvo de uma espécie de dispositivo panóptico popular, ou um potencial contínuo de vigilância por parte da população, que utiliza tecnologias convergentes de fácil acesso (celulares com câmera e internet, por exemplo) para colher e disseminar informações sobre abusos de poder por parte das instituições de controle. Essa situação

2

SILVA, Tarcísio Torres: Mobilidade e Ativismos: Novas Estratégias na Luta Contra o Estado Hegemônico. Revista Geminis ano 2 – n.1 p.53-55 – Disponível em http://www.revistageminis.ufscar.br/index.php/geminis/article/view/39/36 - Acessado em 14/06/2011 3 Idem


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introduz uma nova tensão entre população e estado - ou entre indivíduo e instituições de controle social - na medida em que se fortalecem cada vez mais as veiculações com caráter de denúncia contra muitas dessas instituições. Por fim, cabe observar que organização em redes descentralizadas vem sendo considerada por muitos teóricos como a forma mais eficaz de interação entre elementos em sistemas de diferentes naturezas. O micologista Paul Stamets (20054), por exemplo, acredita que “essa estrutura da Internet é simplesmente uma forma arquetípica, uma conseqüência inevitável de um modelo evolucionário previamente provado, que é também visto no cérebro humano; diagramas de redes de computadores carregam semelhanças tanto com matrizes miceliais quanto neurológica nos cérebros dos mamíferos. Nossa compreensão das redes de informações em suas muitas formas levará a um salto quântico no poder computacional humano.” (STAMETS, 2005)

Stamets enfatiza a profunda a sensibilidade e capacidade de resposta que um fungo pode ter em relação a diversos tipos de flutuações ambientais como conseqüência da alta interatividade bioquímica que ocorre através da sua arquitetura micelial em rede, fazendo analogia com o fenômeno da internet no nível social. Nesse contexto, a arquitetura em redes descentralizadas é entendida como uma estrutura que facilita ou potencializa a interatividade (conceito que estudaremos a seguir) entre os elementos que fazem parte dessa rede, gerando um maior potencial de articulação desse sistema em relação ao seu contexto. Castells (1999) enfatiza esses aspectos das redes no âmbito social, indo além da Internet propriamente dita, ao observar que o padrão em redes descentralizadas que ela simboliza está cada vez mais consolidado como modelo organizacional de todos os setores da sociedade contemporânea, sejam sistemas econômicos, empresariais, governamentais e/ou socioculturais. Dentro desse ponto de vista, a Internet e as redes digitais podem ser vistas como aspectos sociais que reforçam o padrão das redes descentralizadas que já faz parte tanto da sociedade humana quanto da natureza.

4

STAMETS, Paul. Mycellium Running: How Mushrooms Can Help Save the World. Ten Speed Press, 2005 – Extraído do excerto disponível em: http://www.booklounge.ca/catalog/display.pperl?isbn=9781607741244&view=excerpt Acessado em 21/05/2011 (Tradução livre do autor)


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2.2 - Interatividade

Além da arquitetura em redes descentralizadas, outro aspecto estrutural da comunicação digital que pode ser isolado como característica definidora e diferenciadora em relação aos outros meios de comunicação, e explorado em seu potencial de reforçar grupos sociais independentes é a interatividade. Conforme descreve Lucia Santaella (2004), o termo “interatividade” foi difundido com um espectro de significados tão amplo que é necessário redefini-lo de uma forma mais estrita para que se possa tratar das especificidades dos fenômenos da comunicação digital que nos interessam. Dessa forma, nos esquivaremos dos relativismos e adotaremos neste trabalho aquela definição que, no ponto de vista do autor, melhor expressa o tipo de comunicação interativa que se caracteriza na Web 2.0, especialmente nas redes sociais que estamos estudando: “Um produto, uma comunicação, um equipamento, uma obra de arte são de fato interativos quando estão imbuídos de uma concepção que contemple complexidade, multiplicidade, não-linearidade, bidirecionalidade, potencialidade, permutabilidade (combinatória), imprevisibilidade, etc., permitindo ao usuário-interlocutor-fruidor a liberdade de participação, de intervenção, de criação.” (SANTAELLA, 2004:154, apud SILVA, 2000:105).

Dentro do cenário das redes digitais, a comunicação abrange precisamente todas essas características, sendo multidirecional (pode ser tanto de um para todos quanto de um para um), de conteúdo múltiplo (pois estes são regidos pelos interesses dos próprios usuários), não-linear (pois sua difusão se estrutura em forma de redes descentralizadas), envolvendo permutabilidade (as mensagens são transformadas pelos participantes durante o processo de comunicação), imprevisibilidade (o alcance das mensagens frequentemente toma dimensões não previstas e inesperadas), e se construindo através da participação livre do usuário-interlocutor-fruidor. Diante disso, seria mesmo redundante afirmar que essas redes sociais digitais altamente interativas favorecem a formação de grupos independentes por afinidade. Isso já está praticamente implícito na própria idéia de interatividade em uma definição de limiar elevado (SANTAELLA, 2004) como a que adotamos neste trabalho. Facilitando e potencializando a troca bi-direcional de informações de múltiplas naturezas através de


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uma estrutura não-linear e descentralizada, bem como incitando a participatividade do usuário no seio dos fenômenos em torno dos quais a comunicação gira, a interatividade como é definida aqui pode ser considerada um potencial catalisador da coletividade, independente de quais sejam os seus propósitos aplicados. Conforme observa Lucia Santaella (2009), devido a essa forma de interatividade específica das redes digitais, “as tecnologias do ciberespaço potencializam a pulsão gregária, agindo como vetores de comunhão, de compartilhamento de sentimentos e de religação comunitária.” (Lemos, 2002:92, apud SANTAELLA, 2009:172). Como observamos no tópico anterior, a interatividade do mundo digital se relaciona diretamente com a arquitetura em redes descentralizadas. Em grande parte dos casos – possivelmente todos - em que essa arquitetura compõe um determinado meio, a interatividade interna desse meio é potencializada. Se isso não é uma regra geral, certamente é uma regra para os meios de comunicação, como evidencia a internet e as suas redes sociais digitais. De fato, ao menos no caso da internet a interatividade pode ser vista como característica, conseqüência ou subsistema da estrutura informacional em redes descentralizadas, da mesma forma que essas redes descentralizadas são uma característica, subsistema ou conseqüência da própria internet. Ainda, seguindo essa lógica, a emergência das redes digitais de comunicação que estudamos aqui também pode ser vista como uma característica, conseqüência ou subsistema dessas novas formas de interatividade emergentes a partir da Web 2.0, e a formação, através delas, de grupos sociais de diversos tipos, como uma característica, conseqüência ou subsistema dessas redes sociais digitais.

Convergência

Convergência, no contexto dos sistemas de informação, pode ser definida simplesmente como “integração de tecnologias”5. No primeiro capítulo, observamos que a convergência é uma característica do desenvolvimento tecnológico desde o seu início, embora a larga utilização desse conceito esteja relacionada com a ascensão da internet. A evolução do desenvolvimento tecnológico sempre ocorreu a partir de 5

SERRA, Ana Paula Gonçalves. Convergência Tecnológica em Sistemas de Informação. Disponível em ftp://www.usjt.br/pub/revint/333_47.pdf - Acessado em 20/05/2011


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tecnologias precedentes, num processo contínuo de complexificação exponencial, que fica particularmente evidente a partir das tecnologias elétricas, conforme exploramos no primeiro capítulo. Além disso, todos os nossos meios de comunicação são, em si mesmos, manifestações dessa convergência tecnológica, como já observava McLuhan (1964), ao enfatizar que: “[...]o conteúdo” de qualquer meio ou veículo é sempre outro meio ou veículo. O conteúdo da escrita é a fala, assim como a palavra escrita é o conteúdo da imprensa, e a palavra impressa é o conteúdo do telégrafo. Se alguém perguntar, “Qual é o conteúdo da fala?”, necessário se torna dizer: “É um processo de pensamento, real, não verbal em si mesmo.” (MCLUHAN, 1964:22)

Além de evidenciar o processo de convergência implícito na própria evolução dos meios de comunicação, essa formulação de McLuhan postula o conteúdo último (ou primeiro, dependendo do ponto de vista) de qualquer comunicação como um “processo de pensamento”, implicando na idéia de que todos os nossos meios são diferentes formas de “codificação” ou processamento desses sistemas de pensamento. Dessa forma, teoricamente o processo de convergência de mídias implica em um potencial cada vez mais expandido para a codificação ou processamento de sistemas de pensamento. Em outras palavras, a partir da convergência emergem formas cada vez mais sofisticadas e eficazes de comunicação em potencial. Manuel Castells (1999) enfatizou os potenciais efeitos sociais desse aspecto no cenário contemporâneo, ao dizer que a integração entre vários modos de comunicação implica na: “[...]formação de um hipertexto e de uma metalinguagem que, pela primeira vez na história, integra no mesmo sistema as modalidades escrita, oral e audiovisual da comunicação humana. O espírito humano reúne suas dimensões em uma nova interação entre os dois lados do cérebro, máquinas e contextos sociais.[...] A integração potencial de textos, imagens, sons no mesmo sistema – interagindo a partir de pontos múltiplos, no tempo escolhido (real ou atrasado) em uma rede global, em condições de acesso aberto e de preço acessível – muda de forma fundamental o caráter da comunicação. E a comunicação, decididamente, molda a cultura, porque, como afirma Postman “nós não vemos ... a realidade ... como “ela” é, mas como são nossas linguagens. E nossas linguagens são nossos meios de comunicação.


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Nossos meios de comunicação são nossas metáforas. Nossas metáforas criam o conteúdo de nossa cultura”. Como a cultura é mediada e determinada pela comunicação, as próprias culturas, isto é, nossos sistemas de crenças e códigos historicamente produzidos são transformados de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o serão ainda mais com o passar do tempo.” (CASTELLS, 1999:414)

Se essa formulação parece abstrata, pode ser útil buscar imaginar o potencial da introdução da linguagem articulada em termos de moldar a cultura dos hominídeos préhistóricos, ou o potencial da escrita e, posteriormente, da imprensa, em termos de moldar as culturas da história humana. Todo meio ou veículo de comunicação introduz novas formas de interação que trazem consigo um espectro de fenômenos psicossociais relacionados com suas próprias características estruturais, como se os indivíduos e/ou sociedades usuários desses meios fossem “contaminados” com seus aspectos mais marcantes. Por isso McLuhan, (1964) que explorou exaustivamente esse fenômeno, dizia que “o meio é a mensagem”, ressaltando o potencial de transformação pessoal e social dos meios em si mesmos em oposição a seus “conteúdos”. No contexto da comunicação digital, a convergência de tecnologias reforça e é reforçada pelos outros dois aspectos que analisamos anteriormente. A arquitetura da internet e seu conseqüente potencial de interatividade favorecem tanto quanto são favorecidos pela sua integração com diversos outros meios e tecnologias. Evidências desse fenômeno e dos modos pelos quais ocorre podem ser encontradas no contexto contemporâneo, no qual a integração entre meios e tecnologias como a telefonia celular e a internet é favorecida pela alta interatividade imprimida e possibilitada por veículos como as Redes Sociais. A convergência de mídias possui um papel fundamental para as novas formas de ativismos baseados nas redes digitais. Pois são aparatos como telefones celulares populares com acesso à internet, integrados com as redes digitais e equipados com câmeras fotográficas e de vídeo que permitem uma ampla, rápida e eficiente disseminação de informações dos mais variados tipos, desde imagens e vídeos que


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causam choque e revolta na população, catalizando revoltas foi o caso dos protestos do Egito em 20116. Conforme analisaremos no próximo capítulo, o uso do Twitter, acessado por meio de telefones celulares por uma parte substancial da população, especialmente das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, para driblar a Operação Lei Seca nessas cidades é um dos exemplos em que essa sinergia tecnológica pode ser explorada em profundidade no seio de um movimento social independente, assim como no fenômeno da divulgação ampla e instantânea na Rede de vídeos e/ou imagens de denúncias feitos por cidadãos comuns por meio aparelhos portáteis de amplo acesso, com ajuda de ferramentas, também amplamente acessíveis, do mundo digital, como o Youtube e o Facebook. Dessa forma, no próximo capítulo vamos analisar um dos movimentos sociais que emergem a partir desse contexto da comunicação digital e se apropriam ou se apropriam das redes digitais como principal suporte das suas atividades comunicativas, buscando avaliar as formas pelas quais opera o suposto papel diferenciado que essas redes desempenham na formação, manutenção e organização das ações promovidas por esses grupos, tendo em foco as características estruturais do meio que estudamos neste capítulo.

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SILVA, Tarcísio Torres: Mobilidade e Ativismos: Novas Estratégias na Luta Contra o Estado Hegemônico. Revista Geminis ano 2 – n.1 p.53-55 – Disponível em http://www.revistageminis.ufscar.br/index.php/geminis/article/view/39/36 - Acessado em 14/06/2011


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CAPÍTULO 3 – AS REDES DIGITAIS E OS MOVIMENTOS SOCIAIS

Uma noção central que estamos explorando neste trabalho é a de que certos aspectos da comunicação digital mediada pela internet, especificamente expressos nas redes sociais da chamada “Web 2.0”, favorecem ou reforçam o potencial de diversas formas de ativismos e movimentos ou formas de organização sociais que não eram favorecidos pelas estruturas das nossas mídias mais tradicionais. Para avaliar essa hipótese e suas principais formas de operação, no capítulo anterior exploramos conceitualmente esses aspectos estruturais em suas relações uns com os outros, tendo em vista a emergência e manutenção desses movimentos em geral. Conforme mencionado anteriormente, neste capítulo o autor analisa em específico um dos diversos tipos de organizações e movimentos sociais independentes que estão em ascensão com ajuda das redes digitais interativas da Web 2.0, como Twitter, Orkut e Facebook. O autor escolheu o fenômeno em torno do Twitter da “Lei Seca” – utilizado por muitos usuários para troca de informações sobre blitzes e sobre o trânsito em geral -

como objeto de estudo de caso por expressar características

particularmente esclarecedoras em relação aos aspectos estruturais das redes digitais que estudamos no capítulo anterior. Dessa forma, após definirmos nossos objetos, vamos confrontar os fatos observados empiricamente no cenário desse movimento com o quadro teórico desenvolvido no capítulo anterior, fazendo uma análise das formas pelas quais as características estruturais que abordamos influenciaram a sua emergência e manutenção, bem como de qual tem sido realmente a efetividade e o seu potencial impacto social a partir disso. Para produzir esta pesquisa, o autor monitorou sistematicamente a página do Twitter “Lei Seca RJ” (www.twitter.com/leisecarj) - a mais importante e utilizada das páginas do microblog destinadas a esses propósitos – durante os dois meses que antecederam esta publicação, em um período localizado entre o início de abril e o início de junho de 2011. Dentro desse período, foram analisados, em média, 50 “tweets” (nome das mensagens postadas no twitter) por dia. Além da própria imersão pessoal do autor no contexto pesquisado, o objetivo dessa pesquisa foi classificar os principais padrões de conteúdo das mensagens


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veiculadas na página, com o propósito de identificar as suas principais formas efetivas de utilidade (que, como veremos adiante, são rodeadas de polêmicas e controvérsias). Feito isso, o autor analisa os resultados da pesquisa em paralelo com fenômenos sociais relacionados ao seu uso, traçando as suas relações com as características das redes digitais que estudamos no capítulo anterior, buscando compreender qual tem sido a função dessas características no contexto do movimento pesquisado. 3.1 – A Operação Lei Seca e o Twitter 3.1.1 – Definições: Operação Lei Seca

Baseadas na Lei Nª 11.705, de 19 de junho de 2008, que, dentre outras definições, estabelece alcoolemia 0 (zero) para condutores de veículos, as atividades da Operação Lei Seca consistem na montagem de blitzes policiais em locais estratégicos, quase sempre à noite e, em geral, com maior abrangência nos finais de semana, com o objetivo central de flagrar motoristas que estejam conduzindo veículos sob efeito de álcool. O modelo padrão considerado de maior sucesso desse tipo de operação foi implementado no Estado do Rio de Janeiro por meio de política pública do Governo do Estado. 3.1.2 – Definições: O Twitter

O Twitter foi criado em 2006, inspirado na idéia de interação em tempo real entre mensagens de celular do tipo SMS e a internet1. Em termos operacionais simples, é uma rede digital de interação em forma de microblog (o número dos caracteres de cada mensagem é limitados a 140), onde usuários e/ou organizações criam seus perfis e compartilham o seu conteúdo com todos aqueles que escolhem “segui-los”, ou seja, que fazem parte da sua rede de contatos “seguidores”.

1

De acordo com o Co-Criador do microblog, Jack Dorsey, em entrevista disponível em: http://www.jornaldoempreendedor.com.br/destaques/a-historia-do-twitter-contada-por-jack-dorsey-seuco-fundador - Acessado em 8/08/2011


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Sob o ponto de vista dos seus aspectos estruturais, em uma perspectiva teórica mais profunda, de acordo com Renata Lemos (2010:2282), o Twitter se trata de: “[...] uma mídia social que, unindo a mobilidade do acesso à temporalidade always on (PELLANDA, 2007), possibilita o entrelaçamento de fluxos informacionais e o design colaborativo de ideias em tempo real, modificando e acelerando os processos globais de inteligência coletiva. Retomando a questão “O que é o Twitter?” é possível classificá-lo como uma verdadeira ágora digital global: ambiente de aprendizagem, clube de entretenimento, “termômetro” social e político, instrumento de resistência civil, palco cultural, arena de conversações contínuas.”

A definição acima, além de fornecer uma perspectiva bastante abrangente sobre o Twitter, postula a mobilidade e a temporalidade como seus principais fundamentos operacionais. São justamente essas características que permitem a forma de uso que estamos estudando neste trabalho. Afinal, se a comunicação nessa rede não pudesse acontecer em “tempo real” e por meio de dispositivos móveis, as páginas da “Lei Seca” no Twiter não funcionariam com eficiência ao que se propõe. Sobre a questão “para quê serve o Twitter?”, a partir dessas características estruturais, Lemos (idem) responde que: “[...]este atua como um meio multidirecional de captação de informações personalizadas; um veículo de difusão contínua de ideias; um espaço colaborativo onde perguntas que surgem a partir de interesses dos mais microscópicos aos mais macroscópicos podem ser livremente debatidas e respondidas; uma zona livre – pelo menos até agora – da invasão de privacidade que domina a lógica do capitalismo corporativo neoliberal que invade tudo, até mesmo o ciberespaço.”

Com seu funcionamento em tempo real, sua auto-gestão e progressiva otimização da qualidade informacional através dos próprios usuários, sendo usada por civis muitas vezes com propostos de resistência a certas estruturas sociais impostas, a página da “Lei Seca” é um perfil do microblog que exemplifica com perfeição todas essas funções e características estruturais, conforme veremos a seguir.

2

LEMOS, Renata. Qotd, por @umairh: a inteligência coletiva no Twitter. Revista Galáxia, São Paulo, n. 19, p. 226-239, jul. 2010. Disponível em http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/2507/2207 - Acessado em 03/06/2011


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3.1.3 – Análise da Página “Lei Seca” do Twitter e seus Fenômenos Sociais em suas Relações com as Bases Tecnológicas das Redes Digitais

Como mencionamos, a Operação Lei Seca tem produzido interessantes fenômenos sociais em torno do cenário da comunicação digital que estamos explorando aqui. Isso porque o Twitter têm sido largamente utilizado para “driblar” as operações das blitzes, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Na prática, o que acontece é que muitos usuários da Rede acessam uma página do microblog (www.twitter.com/leisecarj no caso da cidade do Rio de Janeiro; e www.twitter.com/leisecasp no caso de São Paulo) para colher informações sobre as localidades das operações que estão ocorrendo na sua cidade no momento do acesso. Essas informações são postadas no veículo pelos próprios usuários do microblog, que geralmente acabaram de passar pelos locais das blitzes. Grande parte desses usuários acessa – e publica - as informações através de aparelhos de telefone celular com acesso à internet, pois é comum aos interessados estarem em movimento ou fora de suas residências, visto que o principal uso da ferramenta é direcionado justamente para a locomoção. Com o passar do tempo, as informações vão sendo confirmadas ou desmentidas por outros usuários que eventualmente passam nos locais referidos, e os organizadores frequentemente sintetizam em resumos todos os locais onde se tem informações confirmadas sobre a ocorrência das blitzes, tal como nos exemplos abaixo3:

LeiSecaRJ #ResumoBOLS (1) até 3h Gavea (Puc sent Barra), Barra(A Senna Saida da praia em direcao ao Cebolao), Ricardo de Albuquerque(Cemiterio) LeiSecaRJ #ResumoBOLS (2) até h Lagoa (E Pessoa alt. Joana Angélica), Leblon(Delf Moreira, saida da Niemayer), Niteroi(Túnel São Fran. sent. Icaraí) LeiSecaRJ #ResumoBOLS (3) NAO CONFIRMADA, só 1 informe! Gloria (Hotel Gloria) NAO SABEMOS O SENTIDO! Evitem Ambos! #LeiSecaRJ2Anos

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Exemplos colhidos em 15/06/2011 às 16:17


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O que se tem, então, são relatórios atualizados em tempo praticamente real mapeando os locais das blitzes. A velocidade da interação entre os usuários que ocorre nesse meio é tão alta que geralmente as informações estão na rede antes mesmo das blitzes estarem completamente montadas, como foi possível constatar acompanhando a página do microblog em diversas noites de fins de semana dentro do período que pesquisamos. Mensagens muito comuns seguem o padrão dos exemplos a seguir:

Dom 22:04 CONFIRMEM! RT @LeiSecaRJ: RT @Fastdeeper: montando #BOLS início vieira solto sent leblon RT @fillsoares: #BOLS sendo montada Av. Radial Oeste, dois sentidos, em frente a est. Sao Cristovao do metro4

O uso dessa tecnologia tem provocado uma cascata de efeitos sociais, que vão desde alterações na organização do trânsito das cidades, com motoristas modificando constantemente suas rotas tradicionais, até contra-estratégias policiais para driblar a artimanha tecnológica. Foi o que aconteceu em São Paulo, onde o Comando de Policiamento da Capital revelou que diminuiria o tempo de permanência das blitzes em um mesmo local por causa das evasões propiciadas pelo uso da ferramenta, fato que foi amplamente divulgado pela imprensa5. Além disso, o uso dessa tecnologia levantou um problema de dimensões morais, que também é parte importante do seu espectro de efeitos sociais. Pois, logo que a ferramenta começou a se disseminar, passou a ser muito comum a proposição de que esta forma de uso da tecnologia é “incorreta” ou um “desserviço” à população, já que buscaria facilitar um comportamento de risco (dirigir alcoolizado). Chegou-se a discutir a possibilidade de proibir a ferramenta, o que para os administradores dos referidos perfis é um absurdo, tendo em vista o direito livre à emissão e recepção de informações

4

No contexto do Twitter, a sigla “RT” (retweet) significa que o usuário que postou essa informação não é o seu criador original, mas está apenas repassando-a, enquanto “BOLS” é a sigla para “Blitz da Operação Lei Seca”. Exemplos colhidos em 6/06/11 às 00:50 na página do Twitter da Lei Seca do Rio de Janeiro (www.twitter.com/leisecarj) 5 Conforme noticiado no portal do R7 em 09/05/2010, disponível em http://noticias.r7.com/saopaulo/noticias/twitter-faz-pm-mudar-blitze-da-lei-seca-em-sp-20100509.html - Acessado em 9/06/2011


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garantido pela Constituição Brasileira e a Declaração Universal do Direito do Homem de 19486. A proibição não ocorreu, mas o debate está longe de ter um fim. As novas tecnologias de comunicação trazem cada vez mais à tona questões controvertidas e de grande relevância social. Em face ao novo cenário tecnológico, devemos rever nossa. Constituição e legislações? Essa suposta revisão deve buscar traçar limites muito bem definidos para o uso da tecnologia por meio de mecanismos de repressão ou, ao contrário, deve ser uma revisão buscando adequar as nossas rígidas estruturas sociais e jurídicas ao cenário tecnológico que já se impõe de forma determinante em nosso cotidiano? O problema divide radicalmente opiniões entre os especialistas, evidenciando que o novo cenário tecnológico possivelmente forçará a revisão de diversas esferas da nossa estrutura social. Os administradores da página alegam ainda que a ferramenta não estimula a prática de dirigir alcoolizado, e que, atualmente, a Operação Lei Seca é apenas um dos tópicos abordados pelo perfil do microblog, que hoje se configura muito mais como um serviço de utilidade pública geral sobre o trânsito e outros. De fato, através do monitoramento feito no decorrer desta pesquisa o autor pôde verificar que essa utilidade é notável no cotidiano da página do microblog, conforme mostram alguns exemplos colhidos durante o período de um único dia de monitoramento do microblog7: Ter 21:44 RT @FlaviAnjinha: trânsito bom na brasil ate viaduto lobo junior. Atenção pista molhada. #LeiSecaRJ2Anos Ter 21:36 RT @ou7break: @amplaenergia Grande parte da Av Central sem luz, a energia piscou varias vezes antes de faltar. Ter 21:35 RT @garciaenloc: 3 veic 1 no meio da pista e 2 no acost, parados LV alt Infraero sent Dutra, devido a colisao. Cuidado!!! RT @JoannaGamaps: TER 20:06 Av.Brasil sent ZO#FreeWay + com muiita chuva no caminho ATENÇÅO 30 min até Bangu

Ter 20:31 RT @moskow_unico: Perimetral parou geral indo pra Av Brasil meeeeeeega engarrafamento. #transitorj 20h30

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Conforme declaração dada ao “Jornal da Tarde”, disponível em http://blogs.estadao.com.br/jtcidades/pm-usa-twitter-para-pegar-fujoes-da-lei-seca/ - Acessado em 9/06/2011 7 Exemplos colhidos em 14/06/2011 às 22:07.


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RT @jrgshanks: TER 18:27 Ônibus enguiçado na pista lateral Av. Americas sent São Conrado alt. do nº 209 causa retenção. Mesmo em curtos períodos de tempo, constantemente podem ser observadas muitas postagens com essas características. Não seria necessária uma análise estatística com grande quantidade de dados para se constatar que esse tipo de conteúdo é um padrão na página, e está tão presente quanto as informações sobre blitzes. O perfil do Twitter da Lei Seca do Rio de Janeiro chegou a receber uma homenagem (a Medalha Pedro Ernesto da Câmara de Vereadores, a mais importante do município) de reconhecimento dos vereadores do Rio pelo serviço prestado à população durante as enchentes que atingiram a cidade em fevereiro de 20108. Embora com menor freqüência que os tipos descritos anteriormente, também é possível observar constantemente postagens com aspectos ainda mais gerais e distantes do suposto objeto central da página, tal como nos exemplos a seguir:

Ter 21:07 RT @lulinah: Tão ouvindo tiros redondezas do Caio Martins em Icaraí, Niteroi? Eu estou! #socorro! #falaniteroi #niteroi #icarai TER 15:11 STAFF? RT @fmacedo: Helicóptero sobrevoando em circula a mangueira e aredores de Benfica - Alguém sabe?

De acordo com todos esses exemplos - que representam os principais padrões de postagens da página - pode-se concluir que o que eles possuem em comum, em termos operacionais, é o fato das informações girarem em torno de acontecimentos pontuais que possuem algum tipo de influência imediata sobre o cotidiano local de algum ponto da cidade. Logo, essa pode ser identificada como a definição mais geral sobre as utilidades da ferramenta, que então pode ser entendida como um análogo aos boletins de trânsito e cidades de veículos como o rádio ou a televisão. Como o seu conteúdo é produzido e publicado por qualquer cidadão com acesso às tecnologias necessárias, o potencial de cobertura desse meio é muito maior do que os outros que mencionamos, visto que existem muito mais cidadãos comuns com acesso a esse tipo de tecnologia circulando nas ruas do que jornalistas de grandes veículos designados a cobrir esses acontecimentos. 8

Conforme notícia disponível em http://www.clicapiaui.com/geral/3484/twitter-da-lei-seca-recebemedalha-pedro-ernesto-da-camara-do-rio.html - Acessado em 9/06/2011


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Por outro lado, surge a questão da confiabilidade dessas informações postadas pelos próprios usuários, muitos dos quais podem ser despreparados para exercer uma função de comunicador, enquanto outros podem estar intencionalmente buscando confundir o sistema. Esse aspecto invoca aquilo que provavelmente é a maior controvérsia dentro do contexto da Web 2.0, que se caracteriza por sistemas autogeridos através da participação dos usuários, como já observamos. A capacidade desses usuários - representados por cidadãos comuns - para exercerem a função que estão exercendo é questionada, e por isso veículos como a Wikipedia são vistos com desconfiança por muitos pesquisadores da área. No entanto, a realidade empírica observada nesses veículos desafia a teoria. A Wikipedia, por exemplo, foi comparada com a enciclopédia Britânica em uma pesquisa realizada pela revista Nature em 20059, que concluiu que a quantidade de erros em ambas é muito semelhante. E a Wikipedia, por ser digital, tem a vantagem do potencial de correção instantânea, enquanto uma enciclopédia impressa como a Britânica carrega seus erros para sempre nas edições que são lançadas antes da identificação dos mesmos, podendo corrigi-los apenas em edições futuras. O que fica claro através da análise do nosso objeto é que esse aspecto das correções/atualizações/otimizações constantes compensa o potencial de incapacidade ou de intenções duvidosas dos usuários-comunicadores. Quando se argumenta sobre a falta de confiabilidade desses veículos por causa da incapacidade ou intenções obscuras dos usuários-comunicadores, deixa-se de lado o fato de que o conteúdo desses veículos é gerido coletivamente, em um processo contínuo que tem como princípio a sua própria otimização constante. Dessa forma, não se tratam apenas de sistemas de produção indiscriminada de conteúdo, mas também de sistemas de monitoramento e aperfeiçoamento contínuo desses conteúdos. No Twitter da Lei Seca isso torna especialmente evidente porque ele possui uma função central muito prática. E, se existe algum consenso sobre esse assunto, é o de que a ferramenta funciona ao que se propõe. Não poderia existir uma evidência maior disso do que as mudanças de estratégias das operações das blitzes que, conforme já observamos, foram bastante documentadas pela imprensa.

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Conforme notícia disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u19402.shtml


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Além dos padrões de conteúdos que já observamos, um outro padrão que pode ser observado, com menor freqüência do que os outros que analisamos, mas também com regularidade, refere-se às postagens com conteúdo explicitamente político10: RT @drigo_teixeira: #professoresrj realizam passeata na Candelária - Sexta 17/06-10hs DE LUTO PELA EDUCAÇÃO, VAI TBM! #GrevenaeducaçaoRJ RT @_Carlah: VERGONHA! BOMBEIRO O GOVERNADOR PRENDE!/ @cbnrio O desaparecimento da engenheira Patrícia Amieiro completa três anos hoje. http://ow.ly/i/cVyT Cabral, o povo quis saber hj no O GLOBO onde e exatamente aplicada a Taxa de Incêndio. Ta esquentando o negocio.. Rt @matedolouco: Ouça Ricardo Boechat dando uma lição de moral no Governador Cabral http://migre.me/53tVC #voltaboechat.

Aqui uma outra funcionalidade do veículo pode ser observada, que é servir como nódulo de “propaganda” contra instituições governamentais ou seus representantes. Embora esse seja claramente um aspecto secundário dos conteúdos do perfil, ele aponta para um potencial caráter de ideologia política por trás da sua existência. Associado a isso, a funcionalidade de “fuga” das blitzes, sob esse ponto de vista, pode ser vista como parte de uma política contra instituições hegemônicas ou de controle – não mais apenas como uma ferramenta com certas utilidades práticas. O fenômeno relacionado com o uso do Twitter para driblar a Operação Lei Seca se torna possível devido à sinergia entre as três características que estudamos no capítulo anterior. Conforme já observamos, a estrutura informacional em redes descentralizadas, caracterizada no Twitter pela sua arquitetura em redes digitais, favorece o alto grau de interatividade, que é uma condição necessária para o funcionamento efetivo desse sistema. É o nível de interatividade possibilitado pela estrutura tecnológica do Twitter que permite o alto grau de trocas de informações dentro de curtos intervalos de tempo, possibilitando uma atualização constante sem a qual não seria possível atingir os propósitos do sistema. Finalmente, a convergência tecnológica, apesar de já estar implícita em qualquer sistema complexo de tecnologia ou meio de comunicação, conforme observamos no primeiro capítulo, se expressa com grande relevância nesse caso, pois, se tratando de 10

Exemplos colhidos em 12/06/2011 e 15/06/2011


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uma ferramenta voltada para estratégias de locomoção, ela encontra sua melhor forma de uso por meio de aparelhos de telefones celulares conectados à internet. Como já mencionamos, grande parte dos usuários dessa tecnologia recebem ou enviam as informações por meio de celulares enquanto estão se locomovendo pelas cidades. Essa integração com os aparelhos de telefone celular é fundamental para a interatividade em tempo quase real que acontece nessas páginas do Twitter, e que é indispensável para a eficiência dessa ferramenta para o que se propõe.


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CONCLUSÕES

Através do estudo da história dos meios de comunicação relacionados com suas bases tecnológicas e os contextos sociais envolvidos, é possível observar que esses meios fazem parte de grandes transformações sociais, ao ponto de poderem ser isolados como marcadores do início de diferentes “Eras” da humanidade. No decorrer do primeiro capítulo, observamos esse aspecto apenas sob a ótica dos meios eletrônicos que são o foco do presente trabalho, pois uma contextualização envolvendo todos os meios de comunicação da nossa história demandaria um grau de pesquisa e aprofundamento que seria inviável para esse propósito, muito embora tal contextualização pudesse ser muito útil, já que as bases da história da comunicação se encontram muito além da tecnologia elétrica. Um estudo aprofundado sobre o impacto social de determinado meio deve compreender também a influência dos meios que o precederam e formaram sua base, pois o conteúdo de um meio é sempre outro meio (MCLUHAN, 1964). Além do fato de o surgimento de todas essas mídias ter ocorrido em períodos marcados por intensas transformações sociais, o que se conclui, de uma forma geral, a partir do processo histórico, é que o intervalo entre as revoluções na comunicação – e, consequentemente, nas organizações sociais do homem - tendeu a ser cada vez menor no decorrer do processo (GIOVANNINI, 1987:337-338). Do surgimento da linguagem articulada à Era da escrita manual correram-se milênios; daí até a disseminação do alfabeto com a revolução da prensa gráfica, passaram-se cerca de 2 mil anos; da prensa até os primeiros meios eletrônicos, cerca de quatrocentos anos; e entre o telégrafo e a internet passaram-se apenas cerca de um século, com todos os outros meios eletrônicos surgimento nesse pequeno intervalo (GIOVANNINI, 1987). Quando chegamos à internet, as revoluções na comunicação continuam acontecendo em períodos de tempo cada vez mais curtos, até chegarmos na “Web 2.0” e nas redes digitais de comunicação que são nosso objeto de pesquisa. Ainda no primeiro capítulo, observamos que as primeiras mídias eletrônicas de massas, especialmente a televisão e o rádio, possuem uma estrutura centralizadora no que diz respeito à produção e transmissão de conteúdo, reforçando padrões


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hegemônicos de monopólios ou oligopólios. Dessa forma, essas mídias tendem a funcionar de acordo com um sistema excludente, hierárquico e burocratizado, não sendo particularmente favoráveis, sob a ótica das suas características estruturais intrínsecas, aos propósitos dos usuários dessas tecnologias. A difusão dessas mídias eletrônicas de massas implicaram na emergência cenário da indústria cultural e da cultura de massas que exploramos no primeiro capítulo. Através das características estruturais das redes digitais estudas no segundo capítulo, observamos um potencial de contratendência em relação aos padrões hierárquicos e burocratizados que caracterizam a mídia de massas e a indústria cultural. Concluímos, pela análise teórica, que a comunicação multidirecional instaurada pelo padrão informacional em redes descentralizadas que caracteriza essas novas mídias favorece a interconexão entre indivíduos e/ou grupos de uma forma geral e não-seletiva, ou seja, independentemente de quais sejam seus interesses específicos ou suas posições nas hierarquias sociais. Tendo em vista essas características, concluímos que a estrutura informacional em redes descentralizadas facilita a interatividade entre os diferentes elementos que fazem parte de um sistema, observando que isso não acontece apenas nas redes digitais de comunicação, mas também em sistemas biológicos (STAMETS, 20051) e sistemas sociais de diversos tipos (CASTELLS, 1999). Concluímos também que as complexas formas de interatividade envolvidas nas redes digitais da Web 2.0 tendem a incitar os usuários a um maior grau de participatividade no seio dos fenômenos sociais envolvidos nessas formas de comunicação, favorecendo o desenvolvimento de valores comunitários, conforme Lucia Santaella (2009:172) já havia assinalado. Observamos que a convergência se trata de um processo intrínseco ao desenvolvimento da tecnologia desde os seus primórdios, sendo que todos os meios de comunicação expressam em si mesmos essa convergência, conforme McLuhan (1964:22) já havia observado sem chegar a utilizar o conceito. Concluímos que a convergência de mídias cria formas cada vez mais complexas de comunicação em 1

STAMETS, Paul. Mycellium Running: How Mushrooms Can Help Save the World. Ten Speed Press, 2005 – Excerto disponível em: http://www.booklounge.ca/catalog/display.pperl?isbn=9781607741244&view=excerpt Acessado em 21/05/2011 (Tradução livre do autor)


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potencial, reforçando e sendo reforçada pelos outros dois aspectos estruturais – a arquitetura das redes e a interatividade – que estudamos. Dentro do contexto da pesquisa realizada no Twitter da “Lei Seca”, foi possível observar o funcionamento e a interação entre todos esses aspectos estruturais da comunicação digital no seio de um movimento social independente carregado de questões controvertidas e polêmicas. Através dessa pesquisa, confirmamos as teorias desenvolvidas anteriormente e observamos como usuários se apropriam dessas características estruturais para os seus próprios propósitos, ignorando filtros morais e interesses hierárquicos que, em outras mídias de massas como a televisão ou o rádio, poderiam comprometer o funcionamento do sistema. Concluímos que as características estruturais das redes digitais que estudamos neste trabalho favorecem potencialmente a emergência, organização e manutenção de movimentos com as características daquele que pesquisamos. Essas características foram definidas por meio das análises dos padrões de conteúdos do veículo pesquisado, e englobam tanto formas de manifestações populares contra estruturas de poder em geral quanto serviços de utilidade pública que dependem de uma comunicação eficiente e em tempo real envolvendo grande número de pessoas, como é o caso do Twitter da Lei Seca. Através do estudo de caso foi possível concluir - e observar como isso acontece no caso estudado – que tecnologias com as características estruturais que abordamos, dentro do conceito da Web 2.0, trazem inúmeras discussões e fenômenos sociais a partir do confronto com padrões de ideologias morais ou de formas de organização social instituídas. Isso pode ser entendido como uma tendência, catalisada pelas características da tecnologia, à revisão dos principais valores que orientam a nossa atual sociedade. Dito isso, este trabalho não teve pretensões de adentrar nos julgamentos dessas questões, mas de compreender – ao menos em parte - os processos tecnológicos que favorecem sua emergência. Não cabe ao autor deste trabalho decidir se o Twitter da Lei Seca é “bom” ou “ruim” para a sociedade; ao invés disso, buscamos compreender os fundamentos por trás da sua funcionalidade e os processos relacionados à constelação de fenômenos sociais que se agregam a essa tecnologia. As opiniões sobre a polêmica moral em torno do seu uso não altera esses processos; por outro lado, a simples existência dessa polêmica se torna importante como um sintoma de transformações socais catalisadas pela tecnologia.


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Por fim, como resultado da pesquisa e também da contínua experiência de imersão no mundo das redes digitais, o autor conclui que o sentimento de se estar no centro de ação participativa de um sistema descentralizado é, além de uma característica que diferencia o novo cenário da comunicação digital daquele cenário da cultura de massa introduzido pela indústria cultural e pelas mídias eletrônicas de massa, o verdadeiro motor da Era Digital que se inicia. As redes digitais interativas, pelas suas características intrínsecas, tendem a trazer de volta o indivíduo para o drama da sua vida real, onde ele é o personagem principal e, dessa forma, possui muito mais autonomia do que teria sendo um mero espectador. E é a partir dessa inversão de papéis entre espectadores e personagens no nível da percepção de si-mesmo que emergem e se mantém os diversos tipos movimentos sociais que já podem ser vistos como característicos da Era Digital.


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STAMETS, Paul. Mycellium Running: How Mushrooms Can Help Save the World. Ten

Speed

Press,

2005

Extraído

do

excerto

disponível

em:

http://www.booklounge.ca/catalog/display.pperl?isbn=9781607741244&view=excerpt Acessado em 21/05/2011 O´REILLY, Tim. Web 2.0 Compact Definition: Try Again – Artigo disponível em http://radar.oreilly.com/2006/12/web-20-compact-definition-tryi.html - Acessado em 15/05/2011


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