A aventura do livro experimental

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a aventura do

livro experimental


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor Vice-reitor

Diretor-p­residente

Presidente Vice-presidente

Diretora Editorial Editoras-assistentes

João Grandino Rodas Franco Maria Lajolo

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Plinio Martins Filho Comissão Editorial

José Mindlin Carlos Alberto Barbosa Dantas Adolpho José Melfi Benjamin Abdala Júnior Maria Arminda do Nascimento Arruda Nélio Marco Vincenzo Bizzo Ricardo Toledo Silva Silvana Biral Marilena Vizentin Carla Fernanda Fontana


Ana Paula Mathias de Paiva

a aventura do

livro experimental


Copyright © 2010 Ana Paula Mathias de Paiva

projeto gráfico de capa e miolo

Christiane Costa Imagem da capa: Livro-objeto, de Benjamin & Deborah Alterman, 1987. Mount Holly, Nova Jérsei. Fonte: Olmer, Michael. The Smithsonian book of books. Biblioteca do Congresso, 1992. editoração eletrônica

Christiane Costa projeto gráfico original

Bernardo Sepúlveda revisão

Dila Bragança de Mendonça Ana Carolina Lins Brandão editora responsável

Rejane Dias Todos os esforços foram envidados para a correta identificação dos detentores de direitos autorais das imagens. A editora se compromete a corrigir possíveis omissões ou erros nas edições subsequentes. Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Paiva, Ana Paula Mathias de A aventura do livro experimental / Ana Paula Mathias de Paiva. – Belo Horizonte : Autêntica Editora ; São Paulo, SP : Edusp, 2010. ISBN 978-85-7526-447-8 (Autêntica) ISBN 978-85-314-1231-8 (Edusp) 1. Impressão - História 2. Livros - História I. Título. 10-01084

CDD-002.09 Índices para catálogo sistemático: 1. Livros : História 002.09


Ao meu amado Rogério, à minha Gabriela-flor e à minha mãe querida. Fontes de inspiração e apoio inesgotáveis. Anjos amigos, obrigada. In memoriam Afonso Duarte de Paiva


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Agradecimentos

Agradeço ao professor Plinio Martins (USP) pelo incentivo após a minha palestra por ocasião do Fórum de Produção Editorial promovido na cidade de Belo Horizonte pela Academia das Letrinhas, encontro que tematizou o livro, a edição e os livros artísticos no Ciclo de Estudos Contemporâneos da Língua Portuguesa. Penso que sua escuta e conselhos tempos depois, no Salão do Livro (BH), quando eu já esboçava os primeiros capítulos e sumário, foram fundamentais para minha dedicação em pesquisa e finalização. Agradeço ao meu marido, Rogério Mol, pelas releituras e crença no projeto. Pelo incentivo permanente e pesquisa bibliográfica conjunta. Pelas observações. Todas. Agradeço àqueles que conceberam comigo o projeto gráficoartístico: Bernardo Sepúlveda, Christiane Costa e Diogo Droschi. Obrigada pela harmonia visual, pelo primor e profissionalismo, Chris, anjinho da guarda do livro. Agradeço pela visão de mercado, animação e apoio na coedição às queridas Rejane Dias e Waldênia Alvarenga, da Autêntica Editora (BH), pioneiras em abraçar projetos originais, experimentais, que contribuem para a história do livro no Brasil. Agradeço ainda à equipe da FAE/UFMG/Doutorado, que aplicará os conceitos em encontros de Educação e Discursos Experimentais. 1 P. Maiocco. Première .

Minha admiração e carinho a todos vocês.


2 Lynndee Nielson, Everything you Wanted to Know About West Nile, 2004.


11 . Apresentação 15 . O livro experimental 1 5 . Formas primárias de registro e expressão 2 2 . Arte e evolução aplicadas ao códex 3 0 . O livro medieval-religioso e laico 3 4 . A invenção do papel e os ateliês editoriais 3 6 . Valor e negócio do livro 4 1 . Tecnologia de produção 5 4 . A marcha do saber

63 . Métiers do livro 8 3 . Livro: função e definição

91 . Livro-objeto lúdico 96 . Circuito adorador 97 . Timeline e a metáfora da janela 98 . Motivos de viagem 1 05 . A perspectiva do flâneur

113 . Galeria 1 14 . Arquitetura e personalidade 1 30 . Sugestões para estudos de caso 1 31 . Conclusões

135 . Notas


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Apresentação

Para que esta obra nascesse em completude, ao longo de oito anos uma pesquisa se renovou, tematizando a produção de livros e o mercado editorial. Informações preciosas, bem como vasta quantidade de material foram recolhidas sobretudo no Salão do Livro (Paris), no Museu Gutenberg (Mainz), no Museu da Impressão (Lyon), no Salão Lire en Fête (Marselha, França), nas Bienais do Rio de Janeiro e de São Paulo, em encontros na Casa Rui Barbosa (Seminário Brasileiro sobre o Livro e a História Editorial) e em eventos relacionados ao livro. Visitas a ateliês editoriais experimentais, a antigos moinhos como Fontaine de Vaucluse, a exposições do Fonds International du Livre d’Artiste (FILAC) e a casas impressoras de acervo patrimonial litográfico, xilográfico e tipográfico, sobretudo por ocasião de minha residência no sul da França, ampliaram a visão que difundia a meus alunos acerca dos processos produtivos editoriais. Afinal, eram todas manifestações a favor do livro, de sua pluralidade expressiva, incrementando caminhos para um debate atual acerca da leitura pela percepção de usos de suportes, linguagens, técnicas de produção e métodos de experimentação. A viagem seguia pelas evoluções do livro enquanto expressão do pensamento humano, desde a Antiguidade até os dias atuais. Estudos em bibliotecas no Brasil e no exterior, viagens a lugares emblemáticos e trabalhos docentes (workshops e palestras) apoiavam a decisão de acumular registros relevantes para o desenvolvimento do projeto A aventura do livro experimental. O interesse demonstrado em sala de aula e encontros indicou então uma demanda pelo assunto, mobilizadora de pesquisadores nas áreas gráficas, artísticas e de linguagem editorial. 3 Riverlark Studio.

Em 2007 a iniciativa comercial desta publicação nasceu de uma necessidade surgida após conversa com editores especializados de Belo 11


Horizonte e São Paulo. Uma obra que abarcasse o gosto pela leitura, colocando o livro em discussão, revendo as evoluções da humanidade por algumas de suas produções e demandas teria espaço nas bibliotecas universitárias e espaços culturais que pensam um acerto de informação no mercado editorial, destacando o livro inventivo, performático, e sua existência fundamental para a cultura. No Capítulo 1 desta obra há um resgate à história dos pioneiros, apresentando homens, livros e acontecimentos importantes para a formação de uma linha do tempo editorial, firmada em formas de registro e expressão. Arte e técnica estão aplicadas a esse bem cultural que evolui como discurso, repertoriando aplicações e saberes humanos. Livros medievais, religiosos e laicos são lembrados em especificidades, assim como lugares de criação reservados e o surgimento dos primeiros ateliês editoriais. São mais de 80 imagens só nesse capítulo para representar os desenvolvimentos e as perspectivas que cambiam o valor do livro ao longo do tempo e criam o negócio do livro – seu valor de mercado. Acompanha a marcha do saber uma pormenorizada descrição de palavras de ordem na produção e em usos editoriais industriais. Imagens registram de maneira significativa períodos e estilos. Afinal, as informações reunidas no Capítulo 2 procuram atualizar definições amplas e modernas do conceito “livro”. São descritas por categoria funções formais e poéticas desse suporte de discurso universal, e há um momento específico em que são mencionados, um a um, aqueles que sempre estiveram e hoje estão por trás do métier editorial, engrenado a seleção de obras, a criação, a escolha de linha editorial, os acabamentos e o escoamento da produção, como editores, assistentes de arte, agentes culturais, difusores, artistas gráficos e planejadores editoriais estratégicos. No Capítulo 3 o destaque vai para o livro lúdico, reinventado em fusão de conhecimentos e 12

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profissionalização de artes e técnicas. Livro brincante, inventivo, performático e experimental, sobretudo em sensorialidade e montagens. São citadas influências vitais que ajudaram a pensar o livro enquanto objeto, veículo da imaginação, convidativo à participação em ênfase provocadora, plástica e sensória. Uma linha do tempo no Capítulo 3 perfaz o circuito adorador dos amantes do livro. No fluxo aberto em leque de possibilidades – passeios, encontros, flânerie – estão os estilos, idealizadores, propulsores culturais e iniciativas que pouco a pouco colocaram o livro a evoluir. Rotas se abrem como paisagem. Registros de viagem destacam nomes, datas, parcerias, endereços, caracterizações de obras vanguardistas. Visita-se a arte e distinguese a mercadoria numa aventura pela criatividade humana e pelas formas editoriais de apropriação artística. Ao adorador do livro, ao profissional editorial ou ao estudante são oferecidas pistas num agradável tour que percorre universidades, bibliotecas, museus, institutos, galerias, ateliês, salões, feiras, bienais, coleções, encontros e publicações que tratam do assunto “livro feito para apreciação”. Seleta e panoramicamente, o Capítulo 4 estimula a visão desses livros artísticos, ornamentais e brincantes, variados em linguagem, expandidos em acesso à arte. Livros-objetos que estabelecem novo vínculo com o leitor, em suas chances comunicativas não previsíveis nem repetitivas. Há exercícios de motivação a partir de estudos de caso e fica sugerido, em cada vislumbre de página, o mérito de cada obra assinada nessa galeria – são mais de 60 livros reunidos. Multiplicam-se sentimentos e retumbam ecos visuais, emoções, comoções, surpresas. Ficam sugestões de trabalho e diálogo, diante de tamanha capacidade humana de renovar padrões. Dedico este livro a todos esses artistas maravilhosos que se debruçaram e se ocupam do ofício de pensar o livro e de vivê-lo como exercício em processo.


4 Sharon McCartney. The Other Day, 2004.



Capítulo 1

O livro experimental Formas primárias de registro e expressão O livro como suporte no século XXI é resultado de um processo. O livro moderno nasce de uma longa evolução da escrita, do suporte, da aprendizagem, da observação, do conhecimento, da demanda, da técnica, da indústria, do métier. Comunica experimentações, acúmulos, resultados. Ilustra invenções e adequações de arte e técnica. Reorganiza o saber e o querer humanos ao longo da história. Revela Idades, pessoas, culturas. Ora rivaliza, ora contempla o tradicional. Estampa crescentemente liberdade. Nem todo texto reunido é livro. Livro é o registro, o que instrui porque significa. Aquilo que tem valor, sentido, expressão. Despertando, revelando, traduzindo, relacionando. Mas e antes do livro? Como eram as formas de registro e expressão? Os estágios mais primitivos da escrita incluem a noção de iconografia. Representações rupestres,1 figurativas, simbólicas, pictogramas, ideogramas. Escrita de imagens. Ainda não contávamos com os fonogramas.

5 Stylus [protótipo do lápis romano] na mão direita e pugilare [antiga tabuleta de cera]. A poetisa grecoromana. Sappho. Pompeia, afresco. Museu Nacional, Nápoles, Scala/Art Resource, Nova Iorque.

Nascido como testemunho desses repertórios visuais, dos meios descobertos de preservar o conhecimento, da presteza para lidar com ferramentas e suportes, e da evolução do pensamento humano, o livro no curso da história é desde o princípio objeto variado. Dentre os principais materiais antigos usados para a marcação, registro e pintura, estão as superfícies naturais de paredes de pedra de cavernas e montanhas. Mais tarde, grandes blocos de pedra, megalitos, foram gravados. Logo, pedaços menores e pedras mais macias: calcário e alabastro; pedras duras: mármore, ônix e lápis-lazúli; pedras vulcânicas: 15


basalto, dacita, dolerita e diorita. Algumas vezes usou-se argila, placas de cobre, antimônio, bronze, latão, marfim, cristais, ouro, prata. Outras vezes, materiais menos usuais: peles de peixe, intestinos de serpente, corcova de camelo. A maior parte das inscrições pertence a três classes: comemorativa ou histórica; votiva ou dedicatória; donativa.2 Temos registros na Mesopotâmia de livros ou equivalentes que não se enquadrariam na definição moderna: coleção de folhas de papel, cortadas, dobradas e reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura ou grampos, formando um volume que se recobre com capa. Trata-se de tabuletas de argila (séries) numeradas, com número e título identificadores gravados em cada tabuleta, para fins de registro de atividades comerciais. 6

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6 Tabuleta de madeira de um caderno escolar, escrita da época romano-bizantina. Museu do Louvre, Paris.

7 Octoptych de Herculano. Reconstruído por M. Paolini. Museu Britânico. Fonte: Add. MS. 33270.

8 Livro de adivinhação batak escrito em casca de árvore: representa parte da tábua de adivinhação para os trinta dias do mês. Explicação do Dr. Voorhoeve, Biblioteca da Universidade de Leyden, Holanda.

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A madeira muitas vezes foi um material escolhido para a escrita porque é farta e apresenta poucas dificuldades técnicas de manuseio. No Egito Antigo, Mesopotâmia, China, Índia, Grécia e Roma fez-se uso das placas ou tabuletas de madeira, chamadas pugillares, recobertas por camada de cera e marcadas em instrumento pontiagudo conhecido como stilus ou graphium. Essas peças podiam ser recondicionadas e substituídas por novas escrituras. Os tamanhos e os formatos variam; a maioria, no entanto, assumia forma retangular. No início mediam 4 ou 5 cm de comprimento por 2 ou 3 cm de largura. À medida que o tempo avança, o tamanho das tabuletas aumenta chegando a 10,6 x 11,3 cm, 14 x 12 cm, 18 x 16 cm e 17,5 x 23,5 cm, o que não anula a existência de tamanhos alternativos. Algumas dessas tabuletas têm aspecto fino e altamente polido. Eram usadas para escrever notas efêmeras, memorandos, listas de nomes, contas, relatórios e, mais tarde, para cartas, além de apagar e reescrever na escola, e propósitos judiciais e administrativos. O conjunto dessas placas, articulado por dobradiças constituindo uma espécie de livro, é denominado díptico, tríptico, políptico etc. dependendo do número de tabuletas reunidas. O uso de tabuletas de madeira, que teria se estendido até a Idade Moderna, se faz presente até hoje no Marrocos.3 Octoptych é o nome dado a oito tabuletas de madeira reunidas, encontradas na antiga cidade romana de Herculanum, na região da Campânia, província de Nápoles. As camadas externas exibem uma superfície plana de madeira, e as partes internas são cobertas com uma camada de cera, circundadas por uma margem de madeira. As arestas de um lado são perfuradas de forma que possam ser amarradas por uma corda, fio ou similar. A princípio, escrever correspondia a duas noções fundamentais: desenhar, traçar, marcar, designar, tornar visível e riscar, arranhar, raspar

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de novo, começar do nada, começar de novo. Os estudantes se serviam de pedaços de cerâmica ou tabuletas de madeira recobertas por estuque ou cera para escrever e apagar, como nas lousas em ardósia. No início do século XX foi encontrada casualmente uma inscrição em ossos, que hoje é considerada a escrita mais antiga da China. Na aldeia Xiaotun, a sudoeste de Anyang, província de Henan, carapaças de tartaruga e ossos de animais com inscrições antigas foram descobertos por camponeses. Historiadores e arqueólogos identificaram que a escrita nessas peças relaciona-se à dinastia Shang – que teria existido do século XVI a.C. ao século XI a.C. Mais de 160 mil peças e 4.000 caracteres já foram estudados desde então no local. Cientificamente, jiaguwen é a denominação dada a toda inscrição feita em carapaças de tartaruga e ossos de animais, limpos e polidos para esse fim.Árabes também empregaram esse suporte para registros de documentos, textos mágicos e versos do Alcorão. Caro e bem mais escasso, trabalhado por mãos bem mais delicadas e precisas, o marfim

era eleito como suporte para distinguir inscrições valiosas ou proteger obras raras. Batak é um termo coletivo usado para identificar grupos e tribos que viveram e vivem em Sumatra, Indonésia. Fabricavam livros de casca de árvore no formato acordeon e livros tubo, no estilo flauta de bambu. Na China o bambu também era usado para a mesma finalidade e, até os dias de hoje, no Sudoeste asiático, fabricam-se livros com esse material. Na Índia, dois tipos de cortiça – a bidueira (Betula utilis) no noroeste e o aloé (Aquilaria agallocha) no nordeste – eram usados com a finalidade de inscrição. Polidas, as mais antigas contêm fragmentos budistas de mais de dois mil anos. Os batak, os maias e os astecas igualmente fizeram uso desse suporte para transcrever seus registros. Outro tipo de material usado era a folha de palma – como manuscritos em sânscrito encontrados no Nepal, século XI. Aliás, a palavra folium daí derivaria: folhas de árvores. Na Índia, a palma talipat (Corypha umbraculifera), a palmeira palmira (Borassus

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flabellifer) e a palmeira lontar (Corypha utan) eram empregadas na escrita, depois de cortadas, cozidas, secas e polidas. Descobertas mostram folhas de palma atadas entre tabuletas de madeira – no caso específico do Sri Lanka, as tabuletas são decoradas com ouro, prata e marfim. No entanto, o livro mais antigo de todos, flexível, de que temos notícia, é um rolo de papiro, descoberto em Tebas, com textos que datam da V Dinastia (2563-2424 a.C.). A palavra papiro vem do latim papyrus e do grego antigo πάπυρος. É, originalmente, uma planta da família das ciperáceas – cujo nome científico é Cyperus papyrus ou Papyrus antiquorum. Correntes teóricas associam o termo papiro “àquilo que pertence ao rio Nilo ou ao faraó”.4 A palavra, é certo, originou os vocábulos papel, paper (inglês), papier (francês), Papier (alemão), papka (russo). Folha de papiro em grego é khártes (em latim charta). Por extensão, é também o meio físico usado para a escrita (precursor do papel) durante a Antiguidade sobretudo no Antigo Egito e por civilizações do Oriente Médio, como os hebreus e babilônios, e todo o mundo greco-romano. Acredita-se que era usado no Egito desde o III milênio antes de Cristo. O papiro é obtido da parte interna, branca e esponjosa, do seu caule, cortado em finas tiras posteriormente molhadas, sobrepostas e cruzadas, para depois ser prensadas. A folha obtida era basicamente martelada, alisada e colada ao lado de outras folhas para formar uma longa fita que era depois enrolada. A escrita dava-se paralelamente às fibras. Foi por volta de 2.200 anos antes de Cristo que os egípcios desenvolveram a técnica do papiro, um dos mais velhos antepassados do papel. Para confeccioná-lo, corta-se o miolo esbranquiçado e poroso do talo em finas lâminas. Depois de secas, estas lâminas são mergulhadas em água com vinagre ou similar para ali permanecerem por alguns dias, com propósito de eliminar o açúcar. Outra vez secas, as lâminas são ajeitadas em fileiras horizontais e verticais, sobrepostas umas às outras. A seqüência do processo exige que as lâminas sejam colocadas entre dois pedaços de tecido de algodão ou similar, por cima e por baixo, sendo então mantidas prensadas por quase uma semana. É com o peso da prensa que as finas lâminas se misturam homogeneamente para formar o suporte de tom amarelado, pronto para ser usado.5

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Frágil para ser dobrado porque quebra, o papiro, abundante nas margens do Nilo, era colado em bastões ou varetas de madeira, marfim, ébano ou ouro, chamados omphalós, em grego, ou umbilicus, em latim. O texto era escrito em uma coluna ou série de colunas,


chamadas selídes, em grego, ou paginal, em latim. A direção podia ser da direita para a esquerda ou vice-versa. As linhas eram escritas, em geral, paralelas ao maior lado do rolo. As margens entre as colunas eram estreitas, e quanto mais comum era o assunto, mais o espaço para margens se reduzia. Quase sempre inscrito só de um lado, organizado em colunas de texto de 25 a 45 linhas, ora com título ao fim da escrita. Muitos respeitam o padrão 20 folhas por rolo. Como volumen, era composto de folhas coladas em sequência e enroladas. O que se harmoniza com a nomenclatura; afinal volumen é termo latim que significa rolo ou algo enrolado, uma derivação do verbo volvere, enrolar, e equivalente do grego kýlindros, cilindro. Papiros de melhor qualidade denominam-se sagrados, regia (real) ou hieratica e são fabricados com o núcleo ou feixe central do caule, onde as fibras são mais longas. Na Antiguidade, o papiro foi usado para fins literários e ordinários, tais como documentos legais, recibos, petições, notificações de nascimento, cartas oficiais e privadas. Dentre todos os antigos documentos matemáticos que chegaram aos dias de hoje, talvez o mais famoso seja o Papiro de Ahmes (ou Rhind). Encontrado pelo egiptólogo inglês Rhind no final do século XIX e exposto no Museu Britânico, em Londres, trata-se de um longo papiro egípcio, datado de 1650 a.C., onde um escriba de nome Ahmes ensina as soluções de 85 problemas de aritmética e geometria. Por sua vez, o Papyrus P52 da Biblioteca de Rylands, conhecido como o fragmento de São João, contém parte do Evangelho segundo João, escrito em grego. Não há um consenso a respeito da sua exata datação. Alguns historiadores afirmam que teria sido escrito entre o período de 100 a 125 d.C. Outros, no entanto, argumentam que o estilo da escrita leva a uma data entre os anos 125 e 160 d.C. Independentemente dessas diferenças, o manuscrito foi amplamente aceito por especialistas como o texto mais antigo de um evangelho canônico, tornando-se o primeiro documento que se refere a Jesus. Espécie de livro fabricado a partir da extração da polpa de uma planta, que servia aos escritos feitos com tinta e cálamo, os papiros se deterioram rapidamente, e os últimos que chegaram até a época atual datam do século X.

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9 Jovem mulher lendo um volumen [rolo]. Detalhe de um afresco de Pompeia, século I. Museu Nacional, Nápoles.

10 Livro de cortiça batak. In: Diringer, David. The book before printing. Nova Iorque: Dover Publications, 1982.

11 Rolo de velino [pele de novilho] do Livro de Esher. Século XVII. Coleção Nacional Numismática, Museu Nacional de História Americana. Foto de Ed. Castle.

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Até o século I depois de Jesus Cristo o papiro ainda ocupava o primeiro lugar como suporte para o livro. Já a fabricação do papiro foi monopólio do Egito até o século XII. Em outras partes do mundo o homem continuava servindo-se dos suportes pedra, metal, madeira, seda, vidro e, a partir de agora, da pele de animais. Os mosteiros do deserto tinham de economizar o papiro devido às dificuldades de transporte e preço. Jerônimo (São Jerônimo, 347-420) adverte seus amigos da Aquileia dizendo-lhes que a falta de papiro não deve servir como pretexto para cartas breves: “Por que ter-me enviado uma epístola tão breve? Não pode ser por falta de papiro, creio, pois é objeto de comércio no Egito”. Em outro trecho: “[...] o pequeno formato de meu papel mostrará que estamos no deserto”.6

12 Papiro P52, conhecido como Fragmento de São João. Biblioteca de Rylands. Escrito entre o período de 100 a 125 d.C.

13 Papiro. [s.n.]: [s.l.]

14 Palimpsesto de Cícero. Biblioteca do Vaticano. Foto de Gérard Rancinan. Fonte: De Republica. Cópia do século IV.

Em geral, era utilizado apenas um lado do papiro, onde as fibras seguem em direção horizontal (recto), o que interfere na qualidade da escrita. No entanto, em alguns rolos chamados opistógrapha, especialmente aqueles destinados a usos privados ou a cópias grosseiras, o verso também era usado, ou seja, o lado do papiro onde as fibras seguem a direção vertical. Muitos papiros egípcios foram encontrados escritos de ambos os lados, o que reforça usos diferenciados e nos sugestiona a pensar que, pela via de técnicas de lavar o papiro, alguns suportes teriam sido usados para a escrita até mais do que uma vez. As melhores fábricas de papiro estavam em Alexandria. Em geral, este produto era exportado para a Grécia, Itália e países mediterrâneos já fabricado, pronto para o uso, o que logicamente criava uma dependência. Contra o monopólio do Egito – papiro –, o rei de Pérgamo na Ásia Menor (Turquia) se lança a buscar alternativas de abastecimento para poder desenvolver sua biblioteca. Afinal, na época helenística a existência de grandes bibliotecas associava-se ao princípio de civilização – período que compreende a história da Grécia entre a morte de Alexandre III da Macedônia em 323 a.C. e a anexação da península grega e ilhas por Roma em 147 a.C. A Biblioteca de Alexandria, fundada no início do século III a.C., durante o reinado de Ptolomeu II do Egito, por um século não teve rival – pesquisas indicam que tenha armazenado mais de 400.000 rolos de papiro e pode ter chegado a 1.000.000 até que em 646 um incêndio a destruiu. Mas depois a Biblioteca de Pérgamo, fundada por Eumene II, rei de Pérgamo (197-160 a.C.), esteve a rivalizar com a de Alexandria. Estima-se que as bibliotecas de Pérgamo e de Alexandria reuniram, em média, de 200.000 a 500.000 volumes.

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