Acontecimento: Reverberações

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José Luiz Aidar Prado

O II Colóquio Internacional em Imagem e Sociabilidade (II CIS), realizado em Belo Horizonte, em maio de 2011, deu sequência às reflexões e questões suscitadas no primeiro colóquio e se debruçou sobre o conceito de acontecimento e suas “reverberações” – entendidas tanto como as propagações de um fenômeno concreto quanto como as diversas possibilidades de aplicação do conceito em situações de pesquisa no campo da Comunicação Social. A diversidade de temas e objetos tomados para análise nos vários textos aqui acolhidos demonstra o amplo leque de pesquisas que o conceito de acontecimento abre e fecunda. Especificamente no campo da Comunicação, as possibilidades levantadas por esse debate resultaram numa linha que se propõe a considerar a constituição dos acontecimentos como um aspecto da estruturação da experiência pública. Motivados por tal abordagem, pesquisadores do GRIS – Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade da Universidade Federal de Minas Gerais e de universidades parceiras do Brasil, da França e de Portugal apresentaram o conjunto de textos que, adensados pelas questões discutidas no colóquio, agora são apresentados ao público como contribuição ao avanço do pensamento comunicacional entre especialistas acadêmicos, profissionais e interessados em geral.

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Acontecimento: Reverberações

Como diz Vera França, “ao desorganizar o presente, o acontecimento instala uma temporalidade estendida, convoca um passado com o qual ele possa estabelecer ligações, anuncia futuros possíveis”. Se o acontecimento, por um lado, atua na divisão do comum, na partilha do sensível (conforme Rancière), buscando redistribuir as partes, por outro, não há garantia de que os sem-inscrição terão mais direito à voz do que as celebridades. Em meio à algarviada do social, os media gritam nos holofotes e telões, enquanto os blogs replicam e as mensagens treplicam nas redes sociais. Os autores deste livro analisam os acontecimentos (e o próprio conceito de “acontecimento”) nessa ótica dos fluxos, desde o momento em que algum agente nomeia o acontecimento, até que os inúmeros sentidos tenham se produzido e disputado suas visadas diferenciais. A disputa semiótica é luta política, como veremos em vários dos textos, combate partilhado, “máquina de guerra” visando à redefinição do porvir comunicacional.

Acontecimento não é simplesmente ocorrência, que registramos, mas fato narrado, fato de discurso que convoca os destinatários para ações, encarnando e produzindo paixões. Frequentemente, o acontecimento produz versões a partir do mesmo fato gerador, pois é objeto de disputa de sentidos, atravessando superfícies hegemônicas de variada inscrição comunicativa, suscitando reações apaixonadas dos públicos e reconfigurando práticas cotidianas dentro de um jogo de poderes e contrapoderes em fluxo.

Vera Regina Veiga França - Luciana de Oliveira (Orgs.)

Nas redes sociais fervilham comunidades partilhadas (constituídas ao redor do vazio, dirá um dos autores), no que poderíamos caracterizar como a construção de um novo coletivo de singularidades: a multidão em rede, aliás, nem sempre renovadora, como apontará outro artigo.

Vera Regina Veiga França Luciana de Oliveira (Organizadoras)

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Acontecimento, indicam os autores deste livro, é conceito que tenta circunscrever, nos campos da Comunicação, da Filosofia e da Teoria Social, a nomeação disputada do que conta e do que não deveria contar, entre os ocorridos, para a definição da vida boa, para a reconfiguração dos sentidos sociais do Lebenswelt (mundo vivido). Entre as indicações dadas pelos autores, algumas se destacam: a comunicação não produz os acontecimentos apenas a partir dos grandes e poderosos media, o que nos leva a pensar em uma lógica acontecimental, que gera, depois da informação, a contrainformação, a crítica em ato, feita não somente pelos tecnólogos das superproduções semióticas (os analistas simbólicos), mas também pelos agentes sociais distribuídos pelos mundos cotidianos carregados de sentidos.


Acontecimento: reverberaçþes



Vera Regina Veiga França Luciana de Oliveira (Organizadoras)

Acontecimento: reverberações


Copyright © 2012 As organizadoras Copyright © 2012 Autêntica Editora capa

revisão

Diogo Droschi (Sobre imagem de Laura Guimarães Corrêa)

Isadora Rodrigues Aline Sobreira

tradução dos textos em francês

editora responsável

Guilherme João de Freitas Teixeira Vera Chacham

Rejane Dias

editoração eletrônica

Christiane Costa Revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde janeiro de 2009. Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

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Apoio:

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Acontecimento : reverberações / Vera Regina Veiga França, Luciana de Oliveira (Organizadoras). -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2012. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-65381-26-0 1. Acontecimentos midiáticos 2. Comunicação 3. Comunicação de massa 4. Comunicação social 5. Meios de comunicação 6. Mídia I. França, Vera Regina Veiga. II. Oliveira, Luciana de. 12-04095

CDD-302.23

Índices para catálogo sistemático: 1. Acontecimentos e midiatização : Comunicação social : sociologia 302.23


Sumário

7 Apresentação Vera Regina Veiga França, Luciana de Oliveira

PARTE 1 - Acontecimento: reverberações – duas conferências 21 A dupla vida do acontecimento: por um realismo pragmatista Louis Queré

39 O acontecimento para além do acontecimento: uma ferramenta heurística Vera Regina Veiga França

PARTE 2 - Acontecimentos e midiatização do mundo vivido 55 Acontecimento e memória Isabel Babo-Lança

67 Propagação telemática dos acontecimentos e novos fazeres midiáticos Beatriz Bretas

PARTE 3 - O acontecimento na vida cotidiana

83 O acontecimento tomado pela palavra: um talk-show sobre a morte de Osama Bin Laden Alain Bovet

101 A experiência estética pública na construção do cotidiano e seus acontecimentos Eduardo Duarte 109 Na onda dos acontecimentos cotidianos Paulo Bernardo Vaz

PARTE 4 - Expressivismo e política: produção de acontecimentos e performances de agentes 125 A (in)experiência das vítimas e a “mitologia do acontecimento” Joan Stavo-Debauge


143 Acontecimento e criação de comunidades de partilha: o papel das ações comunicativas, estéticas e políticas Ângela Cristina Salgueiro Marques

157 No adro da igreja: o assassinato de mulheres e a potencialização de acontecimentos entrelaçados Laura Guimarães Corrêa, Mirian Chrystus

PARTE 5 - Diferentes estatutos dos personagens públicos: heróis, mártires e celebridades

173 Norbert Zongo: das margens sociais ao coração do Estado – a constituição de um personagem público Habibou Fofana

193 Eike Batista, “o bilionário popstar”: um estudo sobre a celebração midiática do empreendedorismo João Freire Filho, Mayka Castellano

213 Duas vinculações possíveis entre personagens públicos e acontecimentos: diferentes modos de atuação na vida pública Lígia Lana, Paula Guimarães Simões

PARTE 6 - A marca dos acontecimentos no país e em sua população

235 Os 30 anos do 11 de setembro de 1973 no Chile: comemoração de uma data Paola Diaz

257 Posts de uma revolução em declínio: Cuba na narrativa de Yoani Sánchez Márcio Serelle

269 Acontecimentos violentos, ressentimento e as marcas de uma interpretação Elton Antunes

PARTE 7 - Acontecimentos e Movimentos Sociais 295 Os fundamentos sensíveis da experiência pública Louis Quéré, Cédric Terzi 309 Acontecimento e resistência: mulheres contra a Aracruz Christa Berger 321 Quando o agenciamento do sujeito acontece Marta Regina Maia

329 Sobre autores e autoras


Apresentação Vera Regina Veiga França Luciana de Oliveira

Parece que os acontecimentos são mais vastos do que o momento em que ocorrem e não podem caber neles por inteiro. Decerto transbordam para o futuro pela memória que deles guardamos, mas pedem também um lugar ao tempo que os precede. Pode-se dizer que não os vemos então como serão, precisamente, mas na lembrança não são eles também modificados? Marcel Proust

O nosso trabalho – de pesquisadores da Comunicação e das Ciências Sociais, assim como o de profissionais da mídia – consiste, o tempo todo, em falar do mundo, recortar acontecimentos, retratar pessoas e situações. No domínio científico, faz-se apelo a teorias e métodos para construir abordagens acerca das experiências vividas como atos e processos comunicativos. No campo profissional, a produção de mensagens jornalísticas, publicitárias, ligadas ao entretenimento ou à comunicação com públicos diversos desenvolve critérios de relevância em consonância com valores e estruturas sociais e uma linguagem própria para (re)tratar a realidade segundo parâmetros técnicos. Assim, o “como falar o mundo” permaneceu, por muito tempo, atributo de campos relativamente autônomos, dotados de legitimidade própria – fosse o terreno acadêmico, fosse aquele dos profissionais da comunicação. A institucionalização desses campos não apenas autorizava, mas fundamentava e justificava as escolhas dos sujeitos produtores da comunicação ou de análises sobre os fenômenos comunicacionais. Contemporaneamente, no entanto, no cenário multimidiático em que vivemos, todos – e não apenas agentes especializados – se colocam em posição legítima de propagar informações, comentar fatos, construir narrativas sobre diferentes aspectos de nossa realidade. Relatar ou criar acontecimentos se inscreveu na pauta cotidiana dos cidadãos comuns, ou pelo menos daqueles que se encontram inseridos nas redes digitais. No mundo dos blogs, dos microblogs, das redes virtuais de relacionamento, das páginas pessoais ou sites de debate, indivíduos de qualquer parte do mundo não apenas estão em condições de opinar sobre acontecimentos, mas também, em muitos casos, de criá-los ou replicá-los. 7


Os acontecimentos, agora ao sabor da intervenção de múltiplos agentes, teriam se banalizado? Guardariam ainda sua importância e seu poder de afetação, ou ganharam existência passageira, ecoando apenas na medida da força e duração do relato midiático até serem substituídos por outros? E se o acontecimento saiu da esfera de competência dos especialistas, o que teriam estes ainda a dizer sobre o próprio conceito de acontecimento? Essas foram algumas das indagações que estimularam a organização do II Colóquio sobre Imagem e Sociabilidade (II CIS), realizado em Belo Horizonte em maio de 2011.1 Neste segundo evento internacional realizado pelo Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade da UFMG (GRIS)2 demos sequência às reflexões e questões suscitadas por ocasião do primeiro colóquio,3 que se desenvolveram tendo como eixo as relações entre mídia e instituições. Como um desdobramento da articulação que podemos apreender entre as práticas midiáticas e o campo dos valores numa determinada configuração social, o II CIS se debruçou sobre “o conceito e as reverberações do acontecimento”. Em torno dessa temática e de tais indagações, ambos os colóquios contaram com a participação dos pesquisadores do GRIS, mas também de pesquisadores de universidades parceiras do Brasil, da França e de Portugal. Afinal, para nós, qual a importância e o que significa falar em acontecimento? No senso comum, acontecimento e fato são palavras frequentemente usadas como sinônimos. Já a teoria do jornalismo promove uma articulação distinta entre elas: acontecimento se aproxima do conceito de notícia e diz respeito àqueles fatos que se destacam e merecem ser noticiados. Acontecimentos surgem como um tipo especial de fato, da mesma maneira como ganham especificidade as noções de acontecimento histórico ou político. Assim, a temática do acontecimento abre um vasto campo de reflexões e se desdobra em diversas “teorias do acontecimento”, caracterizando-se, cada uma, por inflexões próprias. Sem entrar, neste momento, numa revisão mais exaustiva das diferentes abordagens, interessa-nos, particularmente, duas vertentes – aquela que define o acontecimento como a narrativa do fato e uma segunda que faz a sua crítica, destacando o seu poder hermenêutico. Se, por um lado, a vertente que trata o acontecimento como “narrativa do fato” destaca – positivamente – a presença e a intervenção da linguagem na relação sujeito-mundo, por outro, ela pode radicalizar uma visão construtivista, tomando a realidade como um resultado do discurso. Esse risco nos leva a (re)pensar as relações entre discurso e ação, tal como nos chamam a atenção a filosofia da linguagem e a filosofia da ação. Sem dúvida, os acontecimentos incitam a palavra e se traduzem em narrativas, porém 1

O II CIS – Acontecimento: Reverberações foi realizado na UFMG nos dias 18 a 20 de maio de 2011 e contou com o apoio do Globo Universidade, da Capes, da Fapemig e da própria UFMG, instituições às quais agradecemos.

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O Gris recebe apoio do CNPq e da Fapemig no desenvolvimento de seus projetos, através de bolsas e auxílio à pesquisa.

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Os trabalhos apresentados no I Colóquio sobre Imagem e Sociabilidade (I CIS) encontram-se em: FRANÇA, Vera Regina Veiga; CORRÊA, Laura Guimarães (Org.). Mídia, instituições e valores. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

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tratar o acontecimento apenas como uma construção discursiva neutraliza aquilo que o caracteriza: a possibilidade que ele instaura, enquanto ocorrência concreta no mundo, de criação de novos sentidos, do desencadeamento de um outro campo de ações.4 Ao quebrar a normalidade e a sequência natural das coisas, o acontecimento alarga o horizonte do possível, aponta alternativas impensadas, convoca passados esquecidos e abre o presente para novos futuros possíveis. Esta é a perspectiva que nos interessa e provoca nossa reflexão: tomar o acontecimento como momento de ruptura e de reorganização, como ocorrência que afeta indivíduos e coletividades, que é ordenado através de narrativas, que convoca e constitui públicos específicos, que descortina campos problemáticos e reorganiza a intervenção dos sujeitos sociais. Os dois textos de abertura, de recorte mais teórico-conceitual, inscrevem-se nessa perspectiva colocando em diálogo os trabalhos de Louis Quéré (École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS) e Vera França (UFMG). Em seu texto, “A dupla vida do acontecimento: por um realismo pragmatista”, Quéré promove um novo salto qualitativo na leitura do acontecimento,5 ao distinguir suas duas fases (ou faces): o acontecimento-existencial e o acontecimento-objeto. Por um lado, existe o acontecimento inscrito no terreno do sensível, do existencial, o acontecimento como mudanças que se produzem concretamente em nosso ambiente (e que corresponderia à primeiridade e secundidade de Peirce); por outro, o acontecimento como “uma coisa dotada de significação”, que abre (e se inscreve) (n)um campo problemático (terceiridade). Longe de estabelecer uma dicotomia, Quéré acentua que as duas formas coexistem, e estamos o tempo todo convertendo acontecimentos-emergência em acontecimentos-objeto. Essa conversão abre perspectivas de ação e delineia uma direção – por isso, podemos dizer que seu conceito é pragmatista e teleológico. Sua reflexão incide também, de forma significativa, na discussão sobre os acontecimentos midiáticos e sua relação com a realidade e a experiência; eles constituem acontecimentos-objeto, que passaram pela simbolização (“são substitutos ideacionais e discursivos de acontecimentos emergentes”). Eles não são uma garantia do real passado, mas abrem para o vir a ser e podem se desdobrar na construção de um outro momento da experiência coletiva. No texto “O acontecimento para além do acontecimento: uma ferramenta heurística”, Vera França, reportando-se a distinções e questionamentos trazidos também por Quéré quanto aos limites de certas abordagens do acontecimento, procura revisitar 4

Sobre esse assunto, as tradições fenomenológica e pragmatista estão de acordo ao conceber os acontecimentos como choques salutares, que desencadeiam reações positivas pelas quais aqueles que suportaram o curso das ações e ocorrências retomam-nas em suas mãos de modo a se confrontarem com os problemas e dificuldades que surgiram.

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Um primeiro salto qualitativo foi possibilitado por seu texto anterior, “Entre facto e sentido: a dualidade do acontecimento”, no qual Quéré desenvolve o conceito de “poder hermenêutico do acontecimento”. Esta concepção, sem dúvida, trouxe uma contribuição ímpar à teoria do acontecimento, ao inscrevê-lo no terreno da ação e da experiência humana, aliando a facticidade do acontecimento (sua existência no domínio do sensível) à sua inscrição no campo do simbólico; sua temporalidade e sua natureza de emergência e devir (vir a ser). QUÉRÉ, Louis. Entre facto e sentido: a dualidade do acontecimento. Trajectos: revista de comunicação, cultura e educação, Lisboa, n. 6, p. 59-75, 2005. Apresentação

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pesquisas anteriores, apontando a maneira como certos acontecimentos não se deixaram conter nem pelo conceito de narrativa nem pelo conceito de construção ritualística, encontrando um eixo explicativo mais completo através da concepção hermenêutica – ou pela via de sua incidência na desorganização/reorganização de sentidos. Acontecimentos desestabilizam a normalidade e convocam novos enquadramentos; eles são geradores de informação e perturbadores de quadros de sentido convencionados pelo hábito. Por este caminho, eles também se mostram como momentos privilegiados em que podemos flagrar o cotidiano assaltado por possibilidades de mudança, muitas vezes por abrirem brechas a outros enquadramentos ou por expandirem os quadros convencionais apontando para janelas que configuram outros pontos de vista – não oficiais, não dominantes – ou simplesmente por abrirem possibilidades ao lacunar como convocação ao deslocamento de certas zonas interpretativas de conforto. Na sequência, os trabalhos apresentados foram agrupados por seis grandes eixos temáticos, conforme indicamos e sintetizamos a seguir.

Acontecimentos e midiatização do mundo vivido Este eixo temático vem interrogar sobre a maneira como os novos dispositivos de midiatização, disseminados na organização prática do mundo vivido, intervêm no devir dos acontecimentos – particularmente no advento das ocorrências enquanto acontecimentos, em sua constituição como objetos de discurso e na elaboração de suas consequências. Esse questionamento cobre um amplo espectro de fenômenos. Em uma de suas pontas, situa-se a questão de como a disponibilidade dos dispositivos técnicos participa da constituição daquilo que aparece como acontecimento suscetível de receber um tratamento midiático; na outra ponta, interroga-se sobre a maneira como essa disponibilidade é levada em conta na organização dos acontecimentos, que passam a ser planejados tendo em vista a possibilidade de sua midiatização. O presente tema se desdobra em diferentes aspectos e questões, tais como a participação dos cidadãos comuns no papel de produtores/veiculadores de imagens, a disponibilidade de dispositivos de midiatização, a consideração do horizonte potencial de uma cobertura midiática na organização de inúmeras atividades em princípio não midiáticas. Os trabalhos agrupados nesse eixo temático apresentam contribuições à discussão, partindo da concepção que entende os processos comunicativos como constituintes da vida coletiva. O texto de Isabel Babo-Lança, “Acontecimento e memória”, analisa o papel da mídia na construção da memória coletiva, ao enunciar aquilo que deve ser lembrado. São evidenciadas as relações entre a mídia, a memória dos grupos e a história, esta vista na sua dimensão objetiva de produzir conhecimento sobre o passado. Reivindica, também, uma pragmática da memória no estudo da mídia, cujas ações são mostradas como movimentos de procura, seleção e recuperação das informações na construção de uma memória coletiva. Com base na imprensa escrita, televisiva e redes digitais, o trabalho indaga sobre as novas modalidades de configuração e apropriação social da memória e sua transmissão junto aos públicos, nas seleções midiáticas que apresentam acontecimentos do ano ou da década que passou. 10

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Já o texto de Beatriz Bretas, “Propagação telemática dos acontecimentos e novos fazeres midiáticos”, propõe-se a refletir sobre modos de disseminação dos acontecimentos pela internet, a partir do significativo aumento da produção midiática das pessoas comuns na web. Leva em conta a função constitutiva da linguagem e sua força pragmática nos desdobramentos dos acontecimentos, bem como o caráter tático dessas práticas comunicativas, conformadas por remixagens. Para tanto, mostra-se central o conceito de midiatização, não reforçando certo midiacentrismo, mas sim admitindo que a relação com os acontecimentos midiáticos na contemporaneidade está repleta de sentidos pragmáticos. Tomando como ponto de partida o “11 de setembro”, as enunciações dos sujeitos ordinários em redes sociais são observadas sob o ângulo de contornos ativistas em prol de causas e valores comuns. Tais processos, ao mesmo tempo em que propiciam agregações sociais e construções coletivas, dão visibilidade a indivíduos que se engajam nesses movimentos. A autora buscou, então, compreender como a linguagem é apropriada para produzir modos de exposição de subjetividades que resultam em materiais expressivos.

O acontecimento na vida cotidiana A articulação com a temática da vida cotidiana vem colocar em evidência a organização prática do mundo do agir e do sofrer, que fundamenta as dinâmicas miméticas da atividade de configuração dos acontecimentos, conforme aponta Paul Ricoeur. Isso permitiria, destacadamente, sublinhar que os acontecimentos e seus públicos não são simples “construções discursivas”, mas se constituem na/pela afetação e por meio de ações de busca e investigação baseadas em situações concretas, apresentando qualidades únicas. Essa maneira de problematizar a questão do acontecimento pela perspectiva da organização da experiência cotidiana permite explorar, particularmente, os aspectos seguintes: como se dá a apreensão e a atribuição de um caráter acontecimental a certas ocorrências da vida social? Como determinados aspectos da vida cotidiana – em princípio desvestidos de interesse público mais evidente – ganham visibilidade e repercussão e se veem transformados em acontecimentos? Como as “conversações sociais” (a fala esparsa do dia a dia) intervêm na exploração e na individuação dos acontecimentos e na sua constituição como objetos de tratamento midiático e atenção pública? Como essas conversações intervêm na elaboração do “jogo político”6 e passam a ser captadas por meio de diferentes mecanismos de busca e investigação? Por outro lado, pode-se perguntar também como os discursos midiáticos alimentam as conversações cotidianas, e como os acontecimentos – constituídos como fenômenos midiáticos dignos de atenção pública – são reapreendidos e inscritos em histórias pessoais cuja organização acompanha o mundo ordinário do agir e sofrer. 6

Cf. GAMSON, William. Falando de política. Belo Horizonte: Autêntica, 2011 e DAHLGREN, Peter. Young Citizens and New Media: Learning for Democratic Participation. London: Routledge, 2007. Apresentação

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Essa temática é explorada pelo trabalho de três pesquisadores, que desenvolvem seus estudos em distintos lugares com objetos diversificados. Alain Bovet (EHESS), em seu artigo “O acontecimento tomado pela palavra: um talk-show sobre a morte de Osama bin Laden”, mostra como inscrever o acontecimento em um campo problemático. Longe de “construir” acontecimentos – o autor recusa a abordagem construtivista assim como a positivista dos acontecimentos –, os talk shows participam de sua configuração, articulando práticas de caráter ordinário e midiático que incidem sobre a constituição dos espaços públicos contemporâneos. O texto visa a compreender como a conversação televisiva participa da conformação de um acontecimento e, para tanto, o autor analisa os comentários dos participantes do talk show Ce soir ou jamais (Esta noite ou nunca), do canal francês FR3, numa edição do programa inteiramente dedicada ao tema da morte de Osama bin Laden e transmitida algumas horas depois de seu anúncio, feito pelo presidente Barack Obama em 2 de maio de 2011. Eduardo Duarte (UFPE) fala da naturalização de práticas transmitidas de geração em geração, formulando juízos de gosto, prazer e desprazer estéticos. Seu texto, “A experiência estética pública na construção do cotidiano e seus acontecimentos”, sintetiza a experiência sensível coletiva e espontânea que, normatizada, sedimenta a base de uma experiência institucionalizada. O autor busca subsídios numa ampla tradição filosófica, passando por Hume, Kant, Bergson e Dewey, até chegar às reflexões de Deleuze e Guattari, Rancière, Gadamer e Maturana e Varela. Por fim, tece comentários sobre três acontecimentos de ocorrência aproximada que ganharam graus variados de visibilidade, como o casamento real entre o Príncipe William e Kate Middleton, a beatificação de João Paulo II e a morte de Osama bin Laden. Finalmente, Paulo Bernardo Vaz (UFMG) se coloca no papel de um sujeito que se deixa afetar por acontecimentos os mais diversos, seja por sua exposição à mídia, seja por seu envolvimento com outros sujeitos, para entrar “Na onda dos acontecimentos cotidianos”, título de seu trabalho. Recorrendo à literatura (Shakespeare, Virginia Woolf e James Joyce), o autor nos dá pistas de sua inspiração teórica e metodológica: a vida é feita de acontecimentos e um único dia na vida do sujeito é suficiente para comprovar tal visada tão simples quanto complexa. As convocações midiáticas estão por toda parte, entremeadas a outras experiências ordinárias: na internet, nas falas, nos atos e “desacatos” de outros sujeitos, e, objeto especial da atenção do autor, nas capas das revistas semanais de notícias.

Expressivismo e política: produção de acontecimentos e performances de agentes Nosso terceiro eixo temático remete-se à confrontação entre duas orientações divergentes exploradas pelas críticas aos modelos liberais de esfera pública. A primeira orientação diz respeito às críticas difundidas pelos Estudos Culturais, sublinhando uma concepção política extremamente restritiva em relação às formas de ação e de expressão que estariam aptas a ocupar o espaço público de maneira legítima. Essas 12

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críticas abriram caminho para numerosos programas expressivistas, marcados pelo cruzamento entre a crítica teórica e a militância política. Seu desdobramento diz respeito à experimentação de novas formas de acontecimentos, de manifestações e de reivindicações públicas voltadas para o alargamento do cardápio de repertórios de ações aceitáveis como expressões e/ou reivindicações públicas que os movimentos sociais podem mobilizar. A segunda orientação, calcada na análise pragmatista da experiência pública, se opõe à concepção liberal do “público” e do “privado” enquanto espaços irredutíveis e opostos, não implicando, no entanto, nem a exigência da dissolução dessa distinção, nem a afirmação de que toda forma de expressão é legítima na esfera pública. Ao contrário, as teorias pragmatistas propõem uma análise procedimental do público através do processo de organização de sua experiência e da condução de investigações controladas. Isto quer dizer que a problematização e a publicização de situações são concebidas como a adoção metódica de procedimentos que demandam o exercício de uma vigilância particular a respeito das consequências dessas situações. Da mesma maneira, todos os acontecimentos e todas as formas de expressão e de reivindicação não se revestem do mesmo potencial de publicização. A expressividade de uma ação não se dá a partir de sua performance tomada em si mesma; é preciso observar os detalhes de seu desenvolvimento e, sobretudo, seguir e reconstituir suas consequências. Os trabalhos apresentados dentro dessa temática tiveram em comum a reflexão sobre o acontecimento relacionado à visibilidade de certos grupos a partir de ações coletivas de sujeitos marginalizados, marcados por inserções precárias ou privados de seus direitos. Joan Stavo-Debauge (EHESS), no texto “A (in)experiência das vítimas e a ‘mitologia do acontecimento’”, coloca em questão dois pressupostos: o poder de instrução da experimentação dos acontecimentos e a combatividade agenciadora das vítimas. O autor revê a tradição pragmática que tenderia a valorizar o acontecimento e ressalta o fato de que alguns acontecimentos não geram necessariamente uma “experiência” nem enriquecem uma compreensão de si ou do mundo. Stavo-Debauge chama nossa atenção para o fato de que, se o acontecimento é um choque, ele só pode ser portador de positividade sob a condição de ser percebido e transformado em ação coletiva. A questão levantada pelo autor é um convite a uma nova apreensão da problemática das relações entre atividade e passividade no âmbito da experiência do acontecimento. Ângela Marques (UFMG), no artigo “Acontecimento e criação de comunidades de partilha: o papel das ações comunicativas, estéticas e políticas”, empreende uma reflexão sobre os conceitos de comunidade e de mundo comum e aponta para a importância do acontecimento para a definição de formas politizadas de associação entre os sujeitos e de suas ações situadas. Marques mostra que uma experiência se torna partilhada quando configurada em ações comuns de problematização, enfatizando como o acontecimento pode estruturar em torno de si comunidades políticas de diferentes ordens: desde a comunidade de entendimento ou comunidade ideal de linguagem, de acordo com Habermas, até as comunidades de aventura, segundo Quéré, e de partilha, conforme Rancière. Apresentação

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No terceiro trabalho, ”No adro da igreja: o assassinato de mulheres e a potencialização de acontecimentos entrelaçados”, Laura Guimarães Corrêa e Miriam Chrystus (ambas da UFMG) revisitam a repercussão midiática de dois crimes ocorridos em Belo Horizonte na década de 1980 e seus desdobramentos: o assassinato de duas mulheres por seus respectivos maridos. As autoras analisam ainda a repercussão midiática de um ato público organizado por grupos feministas com vistas à discussão pública de um problema maior que os dois crimes denunciavam: a permanência de valores patriarcais justificando a violência contra a mulher. Assim, na visão das autoras, esses acontecimentos – antecedidos pelo amplo debate nacional em torno do assassinato de Ângela Diniz por seu marido Doca Street e discutidos no contexto da redemocratização brasileira – abriram um campo problemático que se refletiu na ação de grupos minoritários, criando um novo acontecimento a partir de táticas de visibilidade.

Diferentes estatutos dos personagens públicos: heróis, mártires e celebridades Esta temática reporta-se ao surgimento e ao papel dos agentes no contexto de sua experiência pública, da ação política, atentando para o fato de que a natureza das “personalidades públicas” no contexto de uma sociedade midiatizada invoca, em nossos dias, um novo quadro interpretativo. No atual cenário de midiatização, a relação entre visibilidade e importância social de determinados personagens ganhou novos contornos – e essa importância tanto aciona a visibilidade como é, em muitas situações, uma decorrência dela. O debate em torno das figuras públicas, assim, inclui diferentes aspectos. Um primeiro ponto que chama a atenção é a relação que se estabelece entre a individualidade da pessoa pública e sua natureza de representação: ela se torna mais do que ela mesma, e expande-se / resume-se naquilo que representa. Dizer que uma personalidade se tornou pública significa afirmar que ela passou a ser acessível a todos, sem, no entanto, perder seu caráter pessoal. Uma maneira de dar conta desse fenômeno seria dizer que elas revestem-se de características denominadas por Jean-Claude Passeron7 como os “seminomes próprios”, que tanto são referenciais como abstratos: “eles incorporam a descrição individualizante (como faz o nome próprio) e a classificação generalizante (como o substantivo comum)”.8 Outro aspecto a ser debatido diz respeito às condições de surgimento das pessoas públicas, e à apropriação/aproveitamento da situação de visibilidade adquirida por certos acontecimentos para a promoção de alguns de seus protagonistas. O cenário e as consequências de certas situações são apreendidos, por vezes, como momento

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Citado por DE SARDAN, Jean-Pierre Olivier. L’espace wébérien des sciences sociales. Genèses, 10, 1993.

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OLIVIER apud DE SARDAN, 1993, p. 152.

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favorável para promover a visibilidade midiática de eventuais participantes. Como tratar essas extensões e aproveitamentos das imagens dos acontecimentos? Nesse quadro, uma categoria particular de personagens públicos é aquela dos “indivíduos-acontecimento”. Esses são indivíduos cuja notoriedade é indissociável de sondagens, de controvérsias ou de celebrações suscitadas por acontecimentos dos quais eles participam ou nos quais se tornam uma figura emblemática. Esses personagens possuem um apelo interessante para uma análise pragmatista da experiência pública, pois a constituição de sua figura evolui junto com as mobilizações que estabelecem o sentido dos acontecimentos aos quais estão ligados. Os trabalhos apresentados discutiram a construção de personalidades públicas diversas. Habibou Fofana (EHESS), em “Norbert Zongo: das margens sociais ao coração do Estado – a constituição de um personagem público”, caracteriza a atuação do jornalista Norbert Zongo no contexto da revolta popular em Burkina Faso nos anos 1990. Durante alguns anos, o jornalista foi diretor do jornal L’Indépendant, escrevendo e publicando diversos artigos que criticavam a censura e a repressão em seu país. Em 1998, foi brutalmente assassinado, acontecimento que gera um grande movimento nacional de protesto. Na constituição do acontecimento popular de questionamento das circunstâncias da morte do jornalista, Norbert Zongo caracteriza-se como um personagem público heroico, símbolo da contestação da ordem social em Burkina Faso. João Freire Filho e Mayka Castellano (ambos da UFRJ) analisam o processo de celebrização no texto “Eike Batista, ‘o bilionário popstar’: um estudo sobre a celebração midiática do empreendedorismo”. Os pesquisadores investigam a trajetória vitoriosa desse empreendedor: de seu estatuto de “celebridade acessória” (o filho de um político importante; o marido de uma modelo de sucesso) até a sua consolidação como personalidade midiática (o empresário exemplar segundo a visão neoliberal de Veja, por exemplo). O trabalho procura compreender o fascínio exercido por sua imagem, articulando-a com a cultura do novo capitalismo e do individualismo contemporâneo, bem como com os valores do sucesso, da performance glamourosa e do self-empreendedor (conforme discussões do Alain Ehrenberg). Lígia Lana e Paula Simões (ambas da UFMG), em “Duas vinculações possíveis entre personagens públicos e acontecimentos: diferentes modos de atuação na vida pública”, discutem a relação entre pessoas públicas e acontecimentos a partir de dois estatutos de personagens: aqueles que podem ser vistos como acontecimento e aqueles que se constroem a partir do acontecimento. Para tanto, a reflexão consolidou-se na análise empírica da trajetória do jogador de futebol Ronaldo Fenômeno, exemplificando o primeiro caso, e da notoriedade alcançada pelo ex-policial Rodrigo Pimentel (que inspirou o personagem Capitão Nascimento no filme Tropa de Elite) como uma celebridade que caracteriza o segundo caso. As pesquisadoras procuram mostrar os movimentos distintos que tais indivíduos constroem na cena pública, bem como sua articulação com a experiência daqueles que são afetados pela atuação desses sujeitos. Apresentação

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A marca dos acontecimentos no país e em sua população Países, grupos e coletividades ganham a marca de acontecimentos fortes pelos quais passaram. Os judeus e os campos de concentração, por exemplo, ganharam uma associação que perdura e perdurará ainda por muito tempo. Uma primeira questão consiste em se perguntar como o que se passa vem a se tornar um acontecimento no âmbito de uma coletividade; em algumas circunstâncias, é preciso um longo desenvolvimento para que os fatos venham a se constituir como acontecimentos. Foi necessário um tempo de latência para que o extermínio judeu pelos nazistas se tornasse um acontecimento histórico no sentido forte, apelando àqueles que teriam vivido essa experiência para testemunhá-la. A constituição dos acontecimentos relaciona-se igualmente aos impactos, muitas vezes irreversíveis, que podem ser ocasionados pelo curso de seu desenvolvimento. A irreversibilidade indica que o processo de normalização não se sucede de maneira mecânica às rupturas instauradas. Alguns acontecimentos instauram um rompimento definitivo com a ordem habitual em que surgem, e numerosos exemplos históricos mostram que nem sempre é possível a retomada de uma situação normal de origem. Mesmo que haja tentativas de apagamento, a situação nesses casos pode nunca ser completamente neutralizada. Discutindo essa temática, três autores evocaram e analisaram experiências diversas. Paola Diaz (EHESS), no texto “Os 30 anos do 11 de Setembro de 1973 no Chile: comemoração de uma data”, procurou compreender as relações entre o poder político e as operações memorialísticas, invocando um contexto profundamente polêmico para a sociedade chilena: os atos que, 30 anos depois, lembravam a deposição do presidente Allende em 11 de setembro de 1973. A autora faz uma análise que toma como ponto de partida o discurso feito no dia 11 de setembro de 2003 pelo presidente Ricardo Lagos, tratando-o como um terceiro tempo do acontecimento, como uma peça da luta política em torno de sua memória. Márcio Serelle (PUC Minas) também se inscreve nessa leitura de um acontecimento marcante da vida de um país ao observar, no artigo “Posts de uma revolução em declínio: Cuba na narrativa de Yoani Sánchez”, como se constrói a mirada de uma “revolução em declínio” nas narrativas de contra-poder ancoradas no testemunho, a partir dos relatos da blogueira Yoani Sánchez. Marcados por uma guinada subjetiva e reivindicando a ausência de uma “face ideológica”, os textos de Yoani caracterizam-se ainda assim como um testemunho em sentido fortemente político e em oposição à crença que conduziu a revolução cubana. Se a ditadura iniciada no Chile no início dos anos de 1970 e a revolução Cubana são efetivamente episódios que marcaram a história desses países, Elton Antunes (UFMG), por sua vez, em “Acontecimentos violentos, ressentimento e as marcas de uma interpretação”, busca definir os “acontecimentos que marcam uma população” como aquilo que neles não ganha uma marca histórica específica, mas revela-se como um fundo comum que faz pulular uma profusão de acontecimentos e a sua inscrição 16

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em uma memória coletiva. Para isso, olha relatos ou assinala a ocorrência de diversos crimes violentos na cobertura jornalística, de maneira a caracterizar modos de perceber os acontecimentos desse universo de violência que imantam a sensibilidade social e, a seu ver, acionam processos de retradução dos crimes, de ressignificação da violência ocorrida, aparentemente ligados a uma forma de ressentimento. Para o pesquisador, a construção jornalística de acontecimentos acionaria determinados afetos que narram a violência e seriam parte dessa mesma violência.

Acontecimentos e Movimentos Sociais A relação entre acontecimentos e movimentos sociais permite levantar questões sobre as transformações que levam um acontecimento a se tornar uma mobilização coletiva; sobre as relações entre atividade/passividade; sobre as emoções coletivas, etc. Por vezes, um acontecimento de pequena importância desencadeia um movimento social de grandes proporções. Como isto acontece? Entre o ponto de partida e o ponto de chegada, há um encadeamento de acontecimentos e de ações puramente contingentes; sendo assim, o que realmente se passa poderia não ter acontecido e outros desdobramentos poderiam ter tido lugar. Mas essa contingência se inscreve em uma intriga e em um campo problemático que forneceram um contexto, um sentido e motivações para a recepção ativa dos acontecimentos. Como se dá esse gênero de totalizações e problematizações, como ele provoca e orienta condutas coletivas? Existem, certamente, situações e casos muito diferentes que seria necessário distinguir. Três pontos de análise podem ser apontados. O primeiro diz respeito às emoções coletivas (indignação, cólera, medo, sentimento de injustiça, aborrecimento, decepção) e o tipo de condutas coletivas que elas suscitam (motins, linchamentos, manifestações socialmente e politicamente organizadas). Muito resta a fazer para compreender a dinâmica dessas emoções, muitas vezes tratadas como deficientes em comparação com motivações consideradas mais racionais. O segundo ponto é o enquadramento dos acontecimentos ou a seleção da descrição sob a qual eles são identificados como perspectiva de conflitos e lutas. Nomear um evento como “ato terrorista” ou como “revolta contra uma injustiça”, por exemplo, altera substancialmente a maneira como ele é encarado. Desse enquadramento, dependem tanto a problematização efetuada como a definição dos desdobramentos, assim como as perguntas e investigações suscitadas. O terceiro ponto concerne ao uso das novas tecnologias de informação e de comunicação como meios de organização de revoltas ou de movimentos sociais, notadamente nos países onde a informação é trancada e a comunicação controlada por regimes autoritários. Mesmo nos países democráticos, o aproveitamento dos recursos midiáticos faz parte da pauta e do planejamento de intervenção dos movimentos sociais como forma de ganhar visibilidade, promover a legitimidade e a aceitação de sua pauta de ação. É notório o número de mobilizações online abrigados pela internet. Apresentação

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Três trabalhos foram apresentados dentro dessa temática. No primeiro deles, “Os fundamentos sensíveis da experiência pública”, Louis Quéré e Cédric Terzi (ambos da EHESS) discutem a experiência como dimensão de sensibilidade associada ao processo de investigação, a partir de uma mobilização na região da Bretanha (França), que opôs agricultores e ambientalistas. Um cartaz evidenciando as consequências da agricultura intensiva nessa região foi motivo de disputas ambientais, e esse acontecimento trouxe à tona várias questões, tais como: a contextualização da discussão, evidenciando diferentes formas de afetação; a reivindicação de propriedade do assunto; o “negacionismo” dos agricultores, colocando em dúvida a análise das entidades científicas. No texto “Acontecimento e resistência: mulheres contra a Aracruz”, Christa Berger (UNISINOS) analisa a ocupação de um horto florestal da Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul, em 8 de março de 2006, pelo Movimento das Mulheres da Via Campesina. A ação é analisada como um acontecimento que ocorreu em um tempo e lugar específicos, afetando sujeitos e instituições sociais e revelando um campo problemático marcado pela recorrência e atualidade: a terra e seus usos abusivos em terras brasileiras. A análise evidencia o confronto discursivo, observando a maneira como o acontecimento, formulado no interior de um movimento de resistência, circulou como acontecimento jornalístico na imprensa hegemônica e nas redes sociais. Marta Maia (UFOP), no texto “Quando o agenciamento do sujeito acontece”, discute a crise de sentidos na modernidade e a noção de pluralismo como possibilidade de abertura para o indivíduo, cujo processo de agenciamento se torna suscetível de ocorrer a partir da dimensão acional do próprio acontecimento. A nova dinâmica social suscita a reflexão sobre as maneiras como acontecimentos projetam sentidos para o sujeito contemporâneo e são capazes de mobilizá-lo para a ação coletiva de maneira independente das organizações políticas tradicionais. Em face de tal diversidade de eixos temáticos, bem como de objetos analisados, é possível perceber a grande frente de pesquisas que o conceito de acontecimento abre e fecunda. Especificamente no campo da Comunicação, as possibilidades suscitadas por esse debate resultaram numa linha que se propõe a tomar a constituição dos acontecimentos como um aspecto da estruturação da experiência pública. Retomando as indagações que fomentaram a organização do nosso colóquio, e a partir das reflexões e dos estudos apresentados, devemos falar não na banalização dos acontecimentos, mas na sua intensificação, bem como numa alteração na dinâmica temporal da própria experiência. Os textos aqui disponibilizados atestam, sem dúvida, que nós, especialistas, desafiados pelas mudanças, temos sim, muito a dizer sobre elas. E é com grande satisfação que colocamos à disposição de pesquisadores, profissionais e interessados nessa abordagem, nosso esforço de mapear e sistematizar esses diferentes investimentos de pesquisa.

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