WALTER BENJAMIN (1892-1940) é um dos
O TRADUTOR – João Barrento licenciou-se
em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1964) e em 1986 tornou-se professor de Literatura Alemã e Comparada. Já publicou cerca de vinte livros de ensaio, crítica literária e crônica, e traduziu, assim como editou, diversas obras da literatura alemã. Como editor e tradutor, é responsável por algumas das mais importantes publicações de autores alemães para o português, com destaque para Goethe (9 volumes, 1991-1993), Robert Musil (8 volumes, desde 2005) e Walter Benjamin (7 volumes, desde 2004). Suas traduções lhe renderam diversos prêmios, como Calouste Gulbenkian da Academia das Ciências (Tradução de Poesia, 1979); Grande Prêmio de Tradução (1993 e 1999); Prêmio de Tradução Científica e Técnica da União Latina (2005); Prêmio de Tradução do Ministério da Cultura da Áustria (2010); além da Cruz de Mérito Alemã (1991) e da Medalha Goethe (1998), entre outros.
“A modernidade é em Baudelaire uma
FILOBENJAMIN
WALTER BENJAMIN Baudelaire e a modernidade
mais importantes pensadores do século XX. Filósofo, ensaísta, crítico literário e tradutor, abandonou sua carreira acadêmica após a rejeição de sua tese de livre-docência, intitulada Origem do drama trágico alemão, pela Universidade de Frankfurt, que a considerou pouco convencional. Escreveu peças para rádio, além de artigos para diversos jornais e revistas, entre elas a Zeitschrift für Sozialforschung, revista do Instituto de Pesquisa Social (mais tarde conhecido como “Escola de Frankfurt”). Alemão, filho de judeus, deixou seu país em 1933 rumo a Paris, onde ficou até a invasão nazista. Em 1940, fugiu ilegalmente para Portbou, Espanha, onde se suicidou para não ser capturado pela Gestapo. Benjamin deixou vasta e brilhante obra literária, além de ter contribuído enormemente para a teoria estética, para a filosofia, para o pensamento político e para a história.
“Nenhuma análise de Baudelaire pode, a rigor, prescindir da imagem da sua vida. Na verdade, essa imagem é determinada pelo fato de ele ter sido o primeiro a se aperceber, da forma mais consequente, de que a burguesia estava prestes a retirar ao poeta a missão que lhe tinha atribuído. Que missão social poderia ocupar o seu lugar? Essa missão não era mais uma missão de classe; tinha de ser deduzida do mercado e das suas crises. O que ocupou Baudelaire foi a resposta não à procura manifesta e de curto prazo, mas à latente e de longo prazo. As flores do mal mostra que o seu cálculo estava certo. Mas o mercado, no qual essa procura se manifestava, determinava uma forma de produção, e também de vida, completamente diferente da dos poetas de épocas anteriores. Baudelaire viu-se forçado a reclamar a dignidade do poeta numa sociedade que já não tinha qualquer dignidade para dar.”
conquista”, eis aqui a definição de
WALTER
BENJAMIN Baudelaire e a modernidade
Benjamin. Já no primeiro poema de As flores do mal, Baudelaire convoca o leitor à ruptura da apatia. Benjamin aponta o método da aventura, a captura do presente, a intenção do poeta de revidar os atordoantes choques na grande cidade. Para não se tornar receptor inanimado ou ator automatizado, Baudelaire troca o gabinete pelas ruas, a duras penas, físicas e espirituais, e transita entre duas instâncias, flânerie e esgrima. Ao levar a vivência aos âmbitos do coletivo e do voluntário, imiscui-se no hiato da distribuição entre consciente e inconsciente. Conjura os perigos da absorção pela profundeza obscura ou da reflexão pela superfície ofuscante. Antes de o estímulo se queimar como resposta imediata, a vivência, ou se perder como memória de difícil acesso, insere poemas, contragolpes, no espaço intervalar. O modus fica em verso: “tropeçando em palavras como na calçada”. É total exposição ao presente, com mente e corpo alertas, e plena compreensão de não se tratar de processo natural: “É essa a natureza da vivência a que Baudelaire atribuiu a importância de uma experiência. Fixou o preço pelo qual se pode adquirir a sensação da
ISBN 978-85-8217-575-0
modernidade: a destruição da aura na vivência do choque”.
9 788582 175750
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Tradução João Barrento
Beatriz de Almeida Magalhães
Outros livros da FILO
FILO
FILOESPINOSA
A sabedoria trágica Sobre o bom uso de Nietzsche Michel Onfray
Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar Espinosa
A teoria dos incorporais no estoicismo antigo Émile Bréhier
A unidade do corpo e da mente Afetos, ações e paixões em Espinosa Chantal Jaquet
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A comunidade que vem Giorgio Agamben Bartleby, ou da contigência Giorgio Agamben seguido de Bartleby, o escrevente Herman Melville O homem sem conteúdo Giorgio Agamben Ideia da prosa Giorgio Agamben Introdução a Giorgio Agamben Uma arqueologia da potência Edgardo Castro Meios sem fim Notas sobre a política Giorgio Agamben Nudez Giorgio Agamben A potência do pensamento Ensaios e conferências Giorgio Agamben FILOBATAILLE
O erotismo Georges Bataille A parte maldita Precedida de “A noção de dispêndio” Georges Bataille FILOBENJAMIN
O anjo da história Walter Benjamin Imagens de pensamento Sobre o haxixe e outras drogas Walter Benjamin Origem do drama trágico alemão Walter Benjamin Rua de mão única Infância berlinense: 1900 Walter Benjamin
FILOESTÉTICA
O belo autônomo Textos clássicos de estética Rodrigo Duarte (org.) O descredenciamento filosófico da arte Arthur C. Danto Do sublime ao trágico Friedrich Schiller Íon Platão FILOMARGENS
O amor impiedoso (ou: Sobre a crença) Slavoj Žižek Estilo e verdade em Jacques Lacan Gilson Iannini Introdução a Foucault Edgardo Castro Kafka Por uma literatura menor Gilles Deleuze Félix Guattari Lacan, o escrito, a imagem Jacques Aubert, François Cheng, Jean-Claude Milner, François Regnault, Gérard Wajcman O sofrimento de Deus Inversões do Apocalipse Slavoj Žižek Boris Gunjevic´ ANTIFILO
A Razão Pascal Quignard
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Walter Benjamin Baudelaire e a modernidade
Edição e tradução de
João Barrento
Edição original: Gesammelte Schriften [Obras completas]. Unter Mitwirkung von Theodor W. Adorno und Gershom Scholem hg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser. Volumes I e III. Copyright © Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main 1972, 1974 Copyright © 2015 Autêntica Editora Copyright da tradução © 2015 João Barrento Títulos originais: Charles Baudelaire. Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus Notes sur les Tableaux parisiens de Baudelaire Die Wiederkehr des Flaneurs Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou em cópia reprográfica, sem a autorização prévia da Editora.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Benjamin, Walter, 1892-1940. Baudelaire e a modernidade / Walter Benjamin ; edição e tradução de João Barrento. -- 1. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015. -- (Filô/Benjamin) Títulos originais: Charles Baudelaire. Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus; Notes sur les Tableaux parisiens de Baudelaire; Die Wiederkehr des Flaneurs ISBN 978-85-8217-575-0 1. Baudelaire, Charles, 1821-1867 - Crítica e interpretação 2. Filosofia francesa I. Título. 15-00885
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Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia francesa 194
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Charles Baudelaire Um poeta na época do capitalismo avançado
WALTER BENJAMIN BAUDELAIRE E A MODERNIDADE
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A Paris do Segundo ImpĂŠrio na obra de Baudelaire
Une capitale n’est pas absolument nécessaire à l’homme. Senancour1
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A fonte da epígrafe é a novela de Étienne Pivert de Senancour Obermann: nouvelle, ed. revista e corrigida, prefácio de George Sand, Paris, 1901, p. 248. A frase completa e correta de onde foi extraída a epígrafe é a seguinte: “Não é natural que um homem novo, de emoções intensas, ame uma capital, tendo em vista que uma capital não é absolutamente natural para o homem”. [Sobre o sistema de notação neste volume: as notas sem qualquer indicação são do autor; as assinaladas com (N.T.) são do tradutor.] 11
I. A bohème
A bohème aparece na obra de Marx num contexto muito elucidativo. Ele inclui nela os conspiradores profissionais, dos quais se ocupa no pormenorizado comentário das Memórias do agente policial de la Hodde, publicadas em 1850 no jornal Neue Rheinische Zeitung. Se quisermos trazer ao presente a fisionomia de Baudelaire, teremos de falar das semelhanças que ele evidencia com esse tipo político. Marx descreve-o nas seguintes palavras: “Com o incremento das conspirações proletárias surgiu a necessidade de divisão do trabalho; os seus membros dividiram-se em conspiradores de ocasião (conspirateurs d’occasion), isto é, operários que se dedicavam à conspiração apenas como atividade paralela às suas outras ocupações, que só frequentavam os encontros para poderem ficar disponíveis para comparecer nos lugares de reunião a um apelo dos chefes, e conspiradores profissionais, que se dedicavam exclusivamente à conspiração e dela viviam... As condições de vida desta classe determinam desde logo todo o seu caráter... A sua existência periclitante, a cada momento mais dependente do acaso do que da sua atividade, a sua vida desregrada, cujos únicos pontos de referência estáveis eram as tabernas – pontos de encontro dos conspiradores –, as suas inevitáveis relações com toda a espécie de gente duvidosa situam-nos naquela esfera de vida a que em Paris dá-se o nome de bohème”.1 Proudhon, querendo se distanciar dos conspiradores profissionais, chama por vezes a si próprio um “homem novo – um homem cuja causa não está nas
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A propósito, deve-se observar que o próprio Napoleão III iniciara a sua ascensão num meio social que tinha ligações com o que foi descrito. Sabe-se que um dos instrumentos da sua fase presidencial foi a Sociedade do 10 de Dezembro, cujos quadros, segundo Marx, se constituíram a partir “daquela massa indefinida, dissoluta e dispersa a que os franceses chamam a bohème”.2 Durante o seu período imperial, Napoleão continuou com essas práticas conspirativas. Proclamações surpreendentes e secretismos, rompantes bruscos e ironia impenetrável fazem parte da razão de Estado do Segundo Império. E os mesmos traços se encontram nos escritos teóricos de Baudelaire. Aí, os seus pontos de vista são quase sempre expostos de forma apodítica. A discussão não é o seu forte, e ele foge dela até naqueles momentos em que as mais gritantes contradições, nas teses de que sucessivamente se apropria, exigiriam um debate. O Salão de 1846 é dedicado “à burguesia”; nele o autor arvora-se em defensor dessa classe, e o seu gesto não é de advogado do diabo. Mais tarde, por exemplo, na invectiva contra a escola do bon sens, encontra para a honnête bourgeoise e para o notário, a figura de respeito daquela escola, os traços do mais furioso boêmio.3 Por volta de 1850, proclama que a arte não se separa do que é útil; poucos anos mais tarde já defende a arte pela arte. Em tudo isso, Baudelaire preocupa-se tão pouco em se justificar e argumentar perante o seu público quanto Napoleão III ao passar, do dia para a noite e ignorando o Parlamento Francês, do protecionismo para o livre-comércio. Traços como esses tornam, no entanto, compreensível barricadas, mas na discussão; um homem que poderia sentar-se todas as noites à mesa com o diretor da polícia e atrair à sua confiança todos os ‘de la Hodde’ do mundo” (cit. de Gustave Geffroy, L’enfermé, Paris, 1897, p. 180-181). A citação é de: Karl Marx e Friedrich Engels, Recensão de Adolphe Chenu, Les conspirateurs, Paris, 1850; e Lucien de la Hodde, La naissance de la République en février 1848, Paris, 1850. Citado de: Die Neue Zeit, nº 4 (1886), p. 555. 2 Marx, Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. Nova edição, aumentada e com um prefácio de F. Engels. Ed. e introdução de D[avid] Rjazanov, Viena/ Berlim, 1927, p. 73. 3 Charles Baudelaire, Œuvres. Texte établi et annoté par Yves-Gérard Le Dantec. 2 vols. Paris, 1931-1932 (Bibliothèque de la Pléiade, 1 e 7). v. II, p. 415 (a partir de agora, cita-se apenas o volume e o número de página). [Todos os excertos de prosa citados por Benjamin foram confrontados com o original francês, na edição da Pléiade de 1954, que reúne num só volume a poesia e a prosa de Baudelaire. (N.T.)] 14
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que a crítica oficial – com Jules Lemaître na dianteira – tenha se apercebido tão mal das energias teóricas contidas na prosa de Baudelaire. Na sua descrição dos conspirateurs de profession, Marx continua nos seguintes termos: “A única condição da revolução é, para eles, poder organizar de forma satisfatória a sua conspiração... Lançam mão de invenções que pretendem levar a cabo milagres revolucionários; bombas incendiárias, máquinas de destruição de efeito mágico, motins que terão repercussões tanto mais miraculosas e surpreendentes quanto menos tiverem uma fundamentação racional. Ocupados com uma tal panóplia de projetos, não têm outro objetivo que não seja a imediata derrubada do governo vigente e desdenham profundamente o esclarecimento mais teórico dos operários sobre os seus interesses de classe. Daí a sua ira, não proletária, mas plebeia, em relação aos habits noirs (casacas pretas), as pessoas mais ou menos cultas que representam essa faceta do movimento, das quais, no entanto, nunca conseguem se tornar independentes por completo, tal como se não libertam dos representantes oficiais do partido”.4 Os pontos de vista políticos de Baudelaire não vão nunca além dos desses conspiradores profissionais. Quer manifeste as suas simpatias pelo reacionarismo clerical, quer pela Revolução de 1848, a sua expressão carece de lógica, e os seus fundamentos são frágeis. A imagem que de si deu nos dias de fevereiro – agitando uma espingarda numa esquina qualquer de Paris e gritando “Morte ao general Aupick!”5 – é convincente. Quando muito, poderia ter feito suas as palavras de Flaubert, quando este diz: “De toda a política só compreendo uma coisa: a revolta”. E isso teria então de ser compreendido no sentido da passagem final de um apontamento que deixou entre os seus esboços sobre a Bélgica: “Digo ‘Viva a revolução!’ como poderia dizer ‘Viva a destruição! Viva a expiação! Viva o castigo! Viva a morte!’. Seria feliz, não apenas como vítima; também o papel de carrasco não me desagradaria – para sentir a revolução de ambos os lados! Todos temos no sangue espírito republicano, tal como temos a sífilis nos ossos; estamos infectados de democracia e de sífilis”.6 Marx e Engels, Recensão de Chenu e de la Hodde, op. cit., p. 556. O general Aupick era padrasto de Baudelaire. 6 II, p. 728. 4 5
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O que Baudelaire assim expõe poderia chamar-se a metafísica do provocador. Na Bélgica, onde esse apontamento foi escrito, ele foi durante algum tempo visto como denunciante da polícia francesa. Entendimentos desse tipo suscitavam tão pouca estranheza que Baudelaire pôde escrever à mãe, em 20 de dezembro de 1854, a propósito dos literatos de aluguel da polícia: “Nunca o meu nome aparecerá nos seus infames registros”.7 Aquilo que deu essa fama a Baudelaire na Bélgica dificilmente poderá ter sido apenas a inimizade que manifestou contra o então proscrito Victor Hugo, muito celebrado nesse país. O aparecimento de tal boato deveu-se também à sua devastadora ironia; pode muito bem ter sido ele mesmo a espalhá-lo. O culte de la blague, que encontramos também em Georges Sorel e que se tornou componente inalienável da propaganda fascista, dá em Baudelaire os seus primeiros frutos. O título e o espírito do livro de Céline Bagatelles pour un massacre remete diretamente para uma entrada no diário de Baudelaire: “Podia organizar-se uma bela conspiração para acabar de vez com a raça dos judeus”.8 O adepto de Blanqui, Rigault, que terminou a sua carreira de conspirador como chefe da polícia da Comuna, parece ter tido o mesmo humor macabro de que falam tantos testemunhos sobre Baudelaire. Em Hommes de la révolution de 1871, Charles Prolès escreve: “Rigault punha em tudo o que fazia, a par de um grande sangue-frio, um espírito faceto arrasador. Era qualquer coisa de que não abdicava, mesmo no seu fanatismo”.9 Até o ideal terrorista que Marx encontra nos conspiradores tem a sua correspondência em Baudelaire. Em 23 de dezembro de 1865 escreve à mãe: “Se algum dia recuperar o vigor e a energia que algumas vezes possuí, darei largas à minha cólera escrevendo livros que vão horrorizar toda a gente. Quero pôr contra mim toda a raça humana. Seria para mim uma volúpia que me compensaria de todo o resto”.10 Essa cólera encarniçada – la rogne – era o estado de espírito que alimentou os conspiradores profissionais de Paris durante meio século de barricadas. Baudelaire, Lettres à sa mère, Paris, 1932, p. 83. II, p. 666. 9 Charles Proès, “Raoul Rigault. La préfecture de police sous la Commune. Les otages” (Les hommes de la révolution de 1848), Paris, 1898, p. 9. 10 Baudelaire, Lettres à sa mère, op. cit., p. 278. 7 8
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“São eles”, diz Marx desses conspiradores, “que erguem as primeiras barricadas e as comandam”.11 De fato, o nó do movimento conspirativo foi a barricada. Pôde contar com a tradição revolucionária, de tal modo que na Revolução de Julho havia mais de quatro mil barricadas por toda a cidade.12 Quando Fourier busca um exemplo do travail non salarié mais passioné, o mais próximo que encontra é a construção de barricadas. Em Os miseráveis Hugo fixou de forma impressionante a rede dessas barricadas, ao deixar na sombra a sua guarnição: “Por toda a parte estava alerta a invisível polícia dos revoltosos. Mantinha a ordem, o mesmo que dizer que guardava a noite... Um olhar lançado de cima sobre essas sombras amontoadas talvez encontrasse, em pontos dispersos, um brilho indistinto que deixava ver contornos irregulares, arbitrariamente distribuídos, perfis de estranhas construções. Nessas ruínas, algo se movia, semelhante a luzes. Era nesses lugares que se encontravam as barricadas”.13 Na alocução a Paris, que permaneceu fragmentária e devia fechar As flores do mal, Baudelaire não se despede da cidade sem invocar as suas barricadas. Lembra as suas “mágicas pedras da calçada, que se erguem para as alturas como fortalezas”.14 “Mágicas” essas pedras são, é claro, porque o poema de Baudelaire não conhece as mãos que as moveram. O mesmo páthos se pode atribuir ao blanquismo, quando um correligionário como Tridon exclama: “Ó força, rainha das barricadas..., tu que brilhas no clarão e na revolta, ... é para ti que os prisioneiros estendem as mãos acorrentadas”.15 No fim da Comuna, o proletariado, vacilante, procura abrigo por trás das barricadas como um animal ferido de morte na sua toca. O fato de os operários, treinados na luta de barricadas, não terem arriscado a batalha em campo aberto, que teria obrigado Thiers a inverter a marcha, teve uma cota-parte significativa de responsabilidade na sua Marx e Engels, Recensão de Chenu e de la Hodde, op. cit., p. 556. Cf. Ajasson de Grandsagne e Maurice Plaut, Révolution de 1830. Plan des combats de Paris aux 27, 28 et 29 juillet, Paris, s.d. 13 Victor Hugo, Œuvres complètes, Édition définitive d’aprés les manuscrits originaux, Roman, vol. 8: Les misérables, IV. Paris, 1881, p. 522-523. 14 I, p. 229. 15 Citado por Charles Benoist, “La crise de l’état moderne. Le ‘mythe’ de la ‘classe ouvrière’”, in: Revue des Deux Mondes, 84e année, 6e période, tome 20 (1º de março de 1914), p. 105.
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derrota. Como escreve um dos mais recentes historiadores da Comuna, esses trabalhadores preferiram “a luta no seu próprio terreno ao combate em campo aberto... e, se necessário fosse, a morte atrás das pedras da calçada de uma rua de Paris transformada em barricada”.16 O mais importante chefe das barricadas de Paris, Blanqui, estava àquela altura encarcerado na sua última prisão, o Fort du Taureau. Nele e nos seus correligionários viu Marx, na retrospectiva que fez da Revolução de Junho, “os verdadeiros chefes do partido proletário”.17 É difícil chegar a uma imagem tão elevada a partir do prestígio revolucionário de que Blanqui desfrutava então e que manteve até a morte. Antes de Lênin, ninguém assumiu aos olhos do proletariado traços tão marcantes como ele. Também Baudelaire não lhes foi indiferente. Há uma página proveniente da sua pena onde, ao lado de outros desenhos improvisados, se vê uma cabeça de Blanqui. Mas são os conceitos a que Marx recorre na sua exposição sobre os meios conspirativos de Paris que melhor evidenciam a posição ambígua que Blanqui neles ocupava. Há boas razões para o fato de a tradição ter legado uma imagem de Blanqui como “putschista”. Para ela, ele representa o tipo de político que, como Marx escreve, vê como sua missão “antecipar-se ao processo de desenvolvimento da revolução, levá-lo à crise com recurso a artifícios, fazer uma revolução improvisada, sem que se verifiquem as condições para ela”.18 Se, por outro lado, compararmos essa descrição de Blanqui a outras de que dispomos, ele parece assemelhar-se muito a um daqueles habits noirs nos quais os conspiradores profissionais viam os seus detestáveis concorrentes. Uma testemunha ocular descreve nos seguintes termos o clube blanquista de Les Halles: “Se quisermos ter uma ideia mais exata da impressão que causava, à primeira vista, o clube revolucionário de Blanqui, quando comparado aos dois clubes do partido da ordem a essa altura..., poderemos fazê-lo imaginando o público da Comédie Française num dia em que sobem à cena Racine e Corneille, e, do outro lado, a multidão que enche um circo em que acrobatas fazem números arriscados. Era como entrar numa capela consagrada ao rito Georges Laronze, Histoire de la Commune de 1871 d’après des documents et des souvenirs inédits. La justice, Paris, 1928, p. 532. 17 Marx, Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte, op. cit., p. 28. 18 Marx e Engels, Recensão de Chenu e de la Hodde, op. cit., p. 556. 16
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ortodoxo da conspiração. As portas estavam abertas a todos, mas só os que se tornavam adeptos lá voltavam. Depois do entediante desfile dos oprimidos... erguia-se o sacerdote. O seu pretexto era resumir as queixas dos clientes, o povo, ali representado por meia dúzia de imbecis arrogantes e excitados que tinham acabado de ser ouvidos. De fato, o que ele fazia era explicar a situação. Tinha um aspecto distinto, a roupa que vestia era impecável, a cabeça tinha uma forma elegante, a expressão era tranquila; só um lampejo desvairado e ominoso lhe atravessava de vez em quando os olhos pequenos, estreitos e fulminantes; em geral, a sua expressão era mais de benevolência do que de dureza. O discurso era comedido, paternal e claro, a forma de falar a menos declamatória que já ouvi, comparável à de Thiers”.19 Blanqui aparece aqui como doutrinador. Os sinais dos habits noirs confirmam-se até nos mais ínfimos pormenores. Era sabido que “o velho” costumava perorar de luvas pretas.20 Mas a seriedade contida e o caráter impenetrável próprios de Blanqui são diferentes à luz de uma observação de Marx: “Eles são”, escreve sobre os conspiradores profissionais, “os alquimistas da revolução e partilham com os antigos alquimistas a desordem mental e a estreiteza das ideias fixas”.21 Emerge daqui espontaneamente a imagem de Baudelaire: num, a babel de enigmas da alegoria, no outro, o secretismo exagerado do conspirador. Marx fala, como não podia deixar de ser, de forma pejorativa quando se refere aos grupos das tabernas, onde o conspirador subalterno se sentia em casa. Os vapores que aí se concentravam eram também familiares a Baudelaire. No meio deles nasceu o grande poema que traz o título “Le vin des chifonniers” [O vinho dos trapeiros22]. A sua gênese deve poder situar-se em meados do século. A essa altura Relato de J.-J. Weiss, cit. em Gustave Geffroy, L’enfermé, op. cit., p. 346-348. Baudelaire apreciava tais pormenores. “Por que razão”, escreve, “não põem os pobres luvas quando pedem esmola? Fariam facilmente fortuna” (II, p. 424). Atribui a frase a um desconhecido, mas ela traz a marca inconfundível de Baudelaire. 21 Marx e Engels, Recensão de Chenu e de la Hodde, op. cit., p. 556. 22 Cito os poemas de As flores do mal na tradução portuguesa de Fernando Pinto do Amaral (Lisboa: Assírio & Alvim, 1992; o poema aqui citado encontra-se na p. 269). Salvo indicação em contrário, todos os poemas de As flores do mal serão citados dessa tradução, indicando-se apenas a sigla FM e o número de página. Optou-se por manter nesses casos a grafia lusitana. No caso de variantes e de poemas que não figuram nessa edição, a tradução é minha. (N.T.) 19
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circulavam no espaço público motivos que ecoam nesse poema. Em dado momento discutia-se o imposto sobre o vinho. A Assembleia Constituinte da República havia dado parecer favorável à sua abolição, como já acontecera em 1830. Em As lutas de classes na França, Marx mostrou como a abolição desse imposto fazia convergir a reivindicação do proletariado urbano e a dos camponeses. O imposto, que onerava o vinho de consumo corrente com taxa igual à dos vinhos finos, reduziu o consumo “ao instalar às portas de cada cidade com mais de quatro mil habitantes alfândegas municipais, transformando cada cidade num território estrangeiro com taxas protecionistas contra o vinho francês”.23 “No imposto sobre o vinho”, diz Marx, “o camponês saboreia o bouquet do governo”. Mas prejudicou também o habitante das cidades, forçando-o a procurar vinho mais barato nas tabernas fora da cidade. Aí se servia o vinho livre de impostos, a que se chamava vin de la barrière. A acreditar no que diz o chefe de seção do quartel-general da polícia, H.-A. Frégier, os operários exibiam com orgulho e arrogância os efeitos desse prazer, o único que lhes era concedido. “Há mulheres que não se envergonham de seguir os maridos até a barrière, levando consigo filhos já em idade de trabalhar... No regresso a casa, fazem-se meio embriagados, dando-se ares de mais bêbados do que realmente estão, para que todos vejam que beberam, e que não foi pouco. Por vezes, os filhos imitam os pais nessas cenas”.24 “Uma coisa é certa”, escreve um observador da época, “o vinho das ‘barreiras’ poupou a estrutura governamental de muitos abalos”.25 O vinho desencadeia os deserdados sonhos de vingança e de glória futuras, como se pode ler em “O vinho dos trapeiros”: Vê-se vir um trapeiro, abanando a cabeça Tropeçando e esbarrando em tudo, qual poeta, E, sem ligar nenhuma aos polícias, seus súbditos, Abre o seu coração em gloriosos projectos. Marx, Die Klassenkämpfe in Frankreich 1848 bis 1850. Reproduzido da Neue Rheinische Zeitung (revista político-econômica), Hamburgo, 1850, com introdução de Friedrich Engels. Berlim, 1895, p. 87.
23
H.-A. Frégier, Des classes dangereuses de la population dans les grandes villes, et des moyens de les rendre meilleures, Paris, 1840, vol. I, p. 86.
24
Edouard Foucaud, Paris inventeur. Physiologie de l’industrie française, Paris, 1844, p. 10.
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