Dicionário dos intraduzíveis Um vocabulário das filosofias VOLUME UM
Línguas ÇÃO COORDENA
Barbara Cassin ÇÃO ORGANIZA
Fernando Santoro Luisa Buarque
DICIONÁRIO DOS INTRADUZÍVEIS
Um vocabulário das filosofias VOLUME UM – LÍNGUAS
COORDENAÇÃO
Barbara Cassin ORGANIZAÇÃO
Fernando Santoro Luisa Buarque
Copyright © 2004 Editions du Seuil Copyright © 2018 Autêntica Editora Título original: Vocabulaire Européen des Philosophies: Dictionnaire des intraduisibles
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EDITORES RESPONSÁVEIS
Rejane Dias Cecília Martins Gilson Iannini REVISÃO
Carla Neves Cecília Martins Mariana Faria PROJETO GRÁFICO
Diogo Droschi DIAGRAMAÇÃO
Larissa Carvalho Mazzoni
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro) autores, Vários Dicionário dos intraduzíveis : um vocabulário das filosofias : volume um : línguas / coordenação Barbara Cassin ; organização Fernando Santoro, Luisa Buarque. -- 1.ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2018. Título original: Vocabulaire Européen des Philosophies: Dictionnaire des intraduisibles. Vários tradutores. ISBN 978-85-513-0426-6 1. Filosofia - Dicionários I. Cassin, Barbara. II. Santoro, Fernando. III. Buarque, Luisa. 18-20479
CDD-103
Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia : Dicionários 103 Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014
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PREFÁCIO DA EDIÇÃO BRASILEIRA Fernando Santoro, Luisa Buarque
Dicionário dos intraduzíveis: um vocabulário das filosofias é um instrumento indispensável para tradutores de diversas línguas e uma obra de referência para estudiosos interessados nas questões de filosofia em geral. Traduzido e adaptado do Vocabulaire Européen des Philosophies (VEP) [Vocabulário Europeu das Filosofias], publicado sob a direção de Barbara Cassin em 2004, trata-se de uma obra que também pode ser lida como um grande ensaio sobre diversas filosofias, tal como podem ser feitas com as línguas e através delas, explorando as transferências de ideias lá onde as palavras e as expressões mostram sua diversidade não como um obstáculo, mas como um dispositivo criativo para o pensamento. A definição de “intraduzível” foi formulada por Barbara Cassin em 1995, no número 14 da revista Rue Descartes, dedicado à tradução em filosofia: “O intraduzível não é o que não é ou não pode ser traduzido, mas antes o que se não cessa de (não) traduzir” (CASSIN, 1995). De modo algum se trata, portanto, do chamado “dogma da intraduzibilidade” (JAKOBSON, 1959, p. 234). Muito pelo contrário: o Intraduzível é precisamente aquilo que se traduz de muitas maneiras distintas, revelando em cada tradução a diferença entre as línguas e operando, assim, uma transformação no próprio conceito filosófico. É uma noção que recusa tanto a sinonímia e a transparência quanto a surdez entre as línguas; uma definição que desobedece ao princípio de não contradição, deliberadamente construída de forma paradoxal, em acordo com o caráter atópico do próprio intraduzível. Assim, procura-se evidenciar a aliança indissociável entre língua e pensamento a partir da diversidade de línguas e de filosofias. São sobretudo as razões dessa diversidade o que precisa ser tratado como conteúdo de um verbete do Dicionário. Por isso, o Dicionário dos intraduzíveis: um vocabulário das filosofias é muito diferente de um dicionário de conceitos filosóficos, ainda que se sirva de definições e busque explicações conceituais para os termos que aborda. De fato, o Dicionário interessa-se justamente por onde falha a universalidade do conceito e este não pode ser simplesmente vertido em outra língua por um único outro termo equivalente. O Dicionário busca explicitar os pontos de variação e incompletude, sobretudo onde os termos e as expressões podem gerar equívocos de uma língua a outra e onde efetivamente geraram ao longo das transmissões e tradições de obras filosóficas. Não entram no Dicionário termos ou expressões intraduzíveis potencialmente filosóficas ou termos filosóficos de obras que ainda não foram traduzidas para alguma língua: o Dicionário ocupa-se de problemas de tradução onde efetivamente a tradução foi tentada ou realizada. Não há, porém, perspectiva de correção, não se trata de encontrar “erros de tradução” e tentar PR EFÁC I O DA EDI Ç ÃO B R AS I LEI R A
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erradicá-los, mas de mostrar justamente como, pela impossibilidade da simples superposição da trama escrita de uma língua em outra, a transmissão cultural levada a cabo pelas operações de tradução acaba por interferir diretamente no desenvolvimento e nas transformações de pensamento, tornando-se um mecanismo da criação e diferenciação não apenas das expressões filosóficas, mas também dos próprios pensamentos e ideias. Já no ano de sua publicação, em 2004, o Vocabulaire Européen des Philosophies (VEP) foi um acontecimento cultural e político que ultrapassou as fronteiras da filosofia, tendo recebido o prêmio de melhor obra de não ficção do ano na França e mobilizado os gabinetes da União Europeia para as questões científicas, culturais, sociais e políticas referentes às línguas. Concebido como um instrumento de pesquisa original e um guia filosófico internacional para estudantes, professores e pesquisadores interessados em sua própria língua e em outras, seus cerca de 400 verbetes iniciais (visto que se trata de uma obra em expansão) comparavam cerca de 4.000 palavras, expressões, modos, etc. em mais de 15 línguas europeias (do basco ao ucraniano, do português ao sueco). Os desdobramentos do projeto – alçado ele mesmo à denominação plural de Dicionários dos intraduzíveis – foram efetivamente para além das nações e línguas europeias: atualmente o Dicionário já foi traduzido e adaptado para o ucraniano, o romeno, o inglês e o árabe e está sendo realizado em português, russo, espanhol, italiano e persa, além de ter estudos preparatórios para sua tradução em chinês, japonês e hebraico. Diversas línguas que eram de partida, de passagem ou mesmo ausentes do original foram incorporadas ou transformaram-se em línguas de chegada, ampliando o conteúdo e o número de verbetes em cada nova edição. Assim, a restrição arbitrária às línguas “europeias”, fundada principalmente nos enquadramentos práticos editoriais da obra inicial, rapidamente mostrou suas limitações frente ao panorama filosófico que o próprio projeto abria e pretendia alcançar. Em primeiro lugar, as línguas de origem europeia já não eram limitadas à Europa geográfica, o que ficou claro desde a elaboração do volume original, em que pesquisadores americanos e canadenses trataram de verbetes de termos e expressões em inglês; pesquisadores argentinos, de verbetes de termos e expressões em espanhol; e pesquisadores brasileiros, de verbetes de termos e expressões em português. Também nas adaptações e traduções já realizadas ou em curso, essas equipes acabaram por acrescentar às respectivas obras as experiências de filosofia originais das suas Américas. Em segundo lugar, as traduções do Vocabulaire Européen para línguas não europeias, que no volume original eram tratadas como línguas de transmissão cultural (como o árabe), ampliaram a geografia filosófica para além do Ocidente, reconfigurando o estatuto de cada língua em função da trama geral das transferências culturais, e não apenas segundo o único vetor da história da filosofia europeia. Em terceiro lugar, projetos como a tradução para o persa e para o chinês precisam tratar até mesmo da diferença radical entre as filosofias e as formas de pensamento que não se reconhecem necessariamente como filosóficas, e para as quais o próprio termo “filosofia” torna-se um sintoma primeiro do intraduzível. Nesse sentido, embora em contínua expansão, cada Dicionário não tem a pretensão de ser uma 6
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enciclopédia universal de termos filosóficos intraduzíveis, e sim uma amostra significativa de indicadores das transformações operadas pelo comércio cultural realizado através das traduções de obras filosóficas. Essas experiências de adaptação possibilitaram uma reavaliação do próprio volume original. A primeira constatação a que levaram é que o próprio VEP partiu de uma iniciativa filosófica determinada, que não se via enquanto tal antes da resposta reflexiva em tradução operada pelas efetivas ações das traduções em diversas línguas. O Vocabulaire Européen des Philosophies, de cunho francês, ou de filosofia continental desconstrutivista, se via no enfrentamento de dois modos principais de entender o fazer filosófico que não levam em consideração a diversidade da mesma maneira: um, que é determinado grosso modo pela completa desconsideração da influência intrínseca das línguas sobre o pensamento e sobre a constituição da pluralidade filosófica e que supõe que as diferenças não passam de perfumes [flavors] ou roupagens de um corpo lógico único – a chamada filosofia analítica, a qual, porém, apoia-se toda na sintaxe de um vernáculo particular: o inglês! Outro, um modo continental germânico de hierarquizar ontologicamente as línguas a partir de seu acesso mais ou menos direto ao ser, e de determinar de modo absoluto a filosofia pela língua, que obviamente põe a língua grega no topo da cadeia linguística e o alemão como seu sucessor natural, com consequências perigosas no desencadeamento dos chauvinismos nacionalistas em qualquer língua. Como diz Caetano Veloso, “se você tem uma ideia incrível, melhor fazer uma canção” (VELOSO, 1984). Somente a saída do interior desse embate filosófico tipicamente europeu permitiu considerar as posições recíprocas entre filosofias francesas, anglófonas e germânicas – evidenciadas particularmente nas teorias e nas práticas de traduzir e refletir sobre o estrangeiro. Não é de menor importância para a reflexão acerca dos intraduzíveis em filosofia a gama de contribuições oriundas de diversos movimentos de filosofias de perspectivas multiculturalista e decolonialista, como a “teoria da centricidade”, de Molefi Asante (1987). A partir delas, buscam-se pensamentos filosóficos não orientados pelos eurocentrismos e reconfiguram-se as vias de transmissão cultural e filosófica por outros vetores. A recolocação da perspectiva operada pela língua de chegada na tradução do Dicionário, que chamamos “metalíngua” – e, com isso, a própria recolocação do ponto de apoio do projeto – faz a gangorra pender para outro lado, ou melhor, para outros lados. Casos notórios foram as reformulações das questões de gênero pela equipe norte-americana ou das questões de religião pela equipe marroquina. A equipe brasileira teve que se haver com a própria questão do que é “uma” língua, frente à multiplicidade de línguas faladas no território nacional. A entrada em jogo de parceiros exteriores é o modo, por tradução, de reconhecer suas próprias questões e características no espelho nunca reto do outro. E a existência de mais espelhos significa também a possibilidade de percepção e desocultação de mais ângulos sobre si. Os Dicionários operaram também em outros campos da filosofia e da cultura. As diversas equipes empreenderam em seus e em outros países diversos projetos de tradução de obras filosóficas que podem constituir um “paideuma dos intraduzíveis”: PR EFÁC I O DA EDI Ç ÃO B R AS I LEI R A
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um conjunto de obras, em diversas línguas, sobre e desde uma linguagem filosófica original e passível de teorizar e/ou ilustrar o campo dos “intraduzíveis”. Em diversos países, foram criadas coleções bilíngues que, além da tradução efetiva da obra filosófica em questão, incluíam um dossiê voltado não apenas para questões históricas e conceituais, mas sobretudo para os fatos filosóficos relacionados às diferenças entre línguas, visando esclarecer questões de “intradução”. Coleções como os Bilingues, das editoras Seuil e Fayard, na França, ou a Biblioteca Clássica, da Biblioteca Nacional, no Brasil, são alguns exemplos. Em outros domínios da cultura, o movimento dos intraduzíveis e seus metaesquemas gerou novas obras, como a encenação plurilíngue do Poema de Parmênides, iniciada no Rio de Janeiro (2011) com a sua montagem em cinco línguas, interpretada pelos tradutores originais em português, francês, e espanhol, recitada em latim e cantada em grego por uma soprano. A montagem foi retomada em Cerisy (2012) com mais outra língua (italiano), em San Sebastián (2012) com mais duas (catalão e euskera) e em Paris (2013 e 2014) com mais quatro (chinês, com projeções de ideogramas, alemão, inglês e corso, cantado em polifonia), fazendo o poema “Sobre o ente” desdobrar-se inclusive em línguas que não comportam o verbo “ser”. No campo das artes plásticas, a bossa dos intraduzíveis gerou a exposição Après Babel: traduire, que já foi apresentada no Museu das Civilizações Europeias e Mediterrâneas (MUCEM), em Marselha, depois em Genebra e provavelmente aportará no Brasil em uma nova versão antropofágica, por sua vocação de girar o mundo. Essa operação reflexiva no interior da pluralidade filosófica, e para além das fronteiras da filosofia, em que cada transposição se revela nas interações de traduções recíprocas, é o que permite que se fale, em termos de história da filosofia contemporânea, de um translation turn – assim mesmo, em inglês –, porque continua ou sucede, ou supera, ou ironiza o linguistic turn – e, de toda forma, dialoga com esta virada a que, de um modo ou de outro, se reportam as diversas filosofias atuais, desde o século XX. EMBASAMENTO TEÓRICO DA EDIÇÃO BRASILEIRA As línguas são realidades mais vastas que as entidades políticas e históricas que chamamos nações. Um exemplo disso são as línguas europeias que falamos na América. A situação peculiar de nossas literaturas diante da literatura da Inglaterra, da Espanha, de Portugal e da França depende precisamente deste fato básico: são literaturas escritas em línguas transplantadas. As línguas nascem e crescem em um solo; alimenta-as uma história comum. Arrancadas de seu solo natal e de sua tradição, plantadas em um mundo desconhecido e a se nomear, as línguas europeias enraizaram-se nas terras novas, cresceram com as sociedades americanas e se transformaram. São a mesma planta e são uma planta distinta (PAZ, 2017, p. 70).
Nossa planta portuguesa transplantada em solo latino-americano, que é a mesma – língua europeia por excelência –, mas também outra – resultado de interações com 8
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línguas e culturas não europeias –, orienta a versão brasileira do Dicionário. Crescida no novo mundo e nutrida por seivas indígenas e africanas, é a língua portuguesa tal como se reconfigurou no Brasil e produziu filosofias brasileiras que serve como fio condutor para a adaptação da obra. Desde muito cedo, o Brasil tende a ser, aos olhos do europeu, o Outro por excelência. Exemplo disso são as várias leituras que o ameríndio brasileiro provocou nos europeus que primeiro narraram a descoberta do Novo Mundo. Basta lembrar-se do fascínio que exerceram os habitantes destas terras sobre Pero Vaz de Caminha, segundo quem “a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto à vergonha”. Fascínio que ele estende ainda à “vergonha” das índias, “tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela”. Mas deve-se lembrar também da mistura de admiração com piedade que a beleza, a saúde e a inocência daquele povo, associadas ao seu “estado de selvageria”, causaram no missivista português. Segundo ele, aqueles homens eram como aves montesas, de melhores penas do que as mansas; “muito bem cuidados e muito limpos”, porém “gente bestial e de pouco saber”. A tal ponto, que sua carta termina com o seguinte conselho ao rei: “Porém, o melhor fruto que nela [nesta terra] se pode fazer, me parece que será salvar esta gente, e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar” (CAMINHA, 1968). Por meio do jogo de espelhamentos que o ameríndio provoca no europeu, são produzidas as mais diversas “visões do paraíso” (BUARQUE DE HOLANDA, 1959), as mais profundas nostalgias pela inocência perdida, mas também o violento repúdio por suas diferenças ameaçadoras. Por outro lado, esse mesmo estranhamento pôde ser trabalhado em sentido inverso. Foi o que fez Montaigne, por exemplo, ao utilizar a imagem do ameríndio para apontar as estranhezas e selvagerias do próprio europeu que se diz civilizado. A respeito das tribos dos índios antropófagos, ele diz: “As próprias palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão são desconhecidas” (MONTAIGNE, 2010, p. 147). A ausência dessas palavras nas línguas indígenas é para ele sintoma da ausência dos próprios vícios. Surpreendentemente, o homem que deveria ser o mais perigoso e selvagem – na medida em que é capaz de comer seus próprios semelhantes – mostra-se como o mais pacato e naturalmente feliz. O espelho indígena serve em Montaigne para desnudar os aspectos mais problemáticos de sua própria cultura, afastada em máximo grau do estado de simplicidade. Se o índio é um Outro intraduzível, porque irredutível às categorias europeias mais básicas, os europeus também são os seus Outros – e não podem ser traduzidos para suas línguas não contaminadas pelos ardis da cultura civilizada, o que já aponta para um questionamento crítico do próprio conceito de civilização, bem como de toda a narrativa histórica que a ele vem atrelada. Interessante que o olhar de Montaigne já convirja precisamente para o antropófago, esse que será o ícone máximo do modernismo brasileiro. Nesse caso, o indígena torna-se um espelho para o brasileiro não indígena, alçando-se, assim, senão como símbolo de todo processo cultural, ao menos como da constituição da cultura PR EFÁC I O DA EDI Ç ÃO B R AS I LEI R A
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brasileira enquanto tal. A leitura modernista da antropofagia toma como leitmotiv de sua estética o fato de o canibalismo não poder ser compreendido como um processo de nutrição. Ao contrário da assimilação do outro que ocorre em toda alimentação, o canibalismo, mesmo em seu sentido mais literal, se constitui como um processo cultural de alteração de si a partir de elementos alheios. O índio que come seu inimigo não reduz o outro a si mesmo, não traduz material externo em material interno. Ele incorpora a força do inimigo vencido, modificando a si próprio por meio dela. A vingança do vitorioso não consiste em anular o inimigo, mas em tornar-se mais forte com o seu auxílio. Apenas porque o inimigo permanece intraduzido é que ele pode emprestar-lhe a sua potência. Esse paradigma antropofágico – em que o outro não é nem exterioridade integral, nem afinidade completa – compõe a moldura conceitual do Manifesto antropófago de Oswald de Andrade, no qual, aliás, cria-se o maior exemplo de performance intraduzível da cultura brasileira, a provocativa indagação: “Tupi or not tupi? That’s the question” (ANDRADE, 1928). Esta intraduz a frase shakespeariana pela exploração fonética da similaridade sonora entre o verbo “to be” e a palavra “tupi”, e ressignifica o problema: afinal, quem somos nós? No modernismo, em suma, o antropófago serve para evidenciar a necessidade de incorporação da força das várias formas culturais que compõem as raízes e os ramos da cultura brasileira. Com um gesto que acena para a descolonização cultural, Oswald propõe que não se recuse a força do inimigo colonizador, mas que ela seja incorporada em formas de vida ainda inéditas. “Só me interessa o que não é meu”, escreve o poeta em seu Manifesto. A língua de Oswald, “natural e neológica”, um português arrancado de seu solo europeu e alimentado pela “contribuição milionária de todos os erros”, não lamenta o seu desterro. Ao contrário, celebra suas raízes renovadas. Por isso, invocar o canibalismo cultural modernista no presente contexto significa evitar a tendência hierarquizante que poderia derivar de uma visão comparatista das línguas e de suas diversas manifestações, bem como suprimir possíveis dicotomias entre as noções de nacional ou regional, de um lado, e de universal, de outro (perigosamente próximas, aliás, da separação entre o que é correto ou incorreto). Inglês e tupi podem comunicar-se a partir de um jogo de equivocidades criativas, semânticas e sonoras. Camadas superpostas podem gerar uma rede de significados ao mesmo tempo locais e translocais. Línguas e filosofias podem alimentar-se umas das outras, incorporar-se mutuamente, deglutindo-se e transformandose. Não se trata nem de replicar transparentemente o outro, nem de dar as costas a ele, mas de tomar para si a sua força, atualizando-a em formas múltiplas. Contudo, nesse processo histórico de tomada do ameríndio como Outro e ao mesmo tempo como espelho de si mesmo, chama atenção a falta de acesso à perspectiva do próprio indígena sobre o homem branco. Apenas no contexto do século XX, e de uma espécie de virada antropológica relacionada às novas considerações e perspectivas teóricas sobre o ameríndio, é que se começará a ter um quadro consistente e mais robusto de depoimentos indígenas. A partir desse quadro será recomposta a formação teórica 10
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antropológica, que não mais os tomará como objetos de pesquisa, mas como dialogantes em um comércio cultural e filosófico. Nesse contexto cresce a importância da presença de autores indígenas, dentro e fora dos espaços acadêmicos. Ao longo desse processo, certos fatos e características ganham novas interpretações. Pensemos, por exemplo, na conhecida “resiliência ameríndia”, que já merecera bastante atenção da literatura indigenista, como no Sermão do Espírito Santo, de Antônio Vieira, de 1657, e que passou a ser vista por Lévi-Strauss como uma “abertura ao outro” extremamente particular. Além disso, foi interpretada por Eduardo Viveiros de Castro como um exemplo eloquente do fato de o paradigma cultural indígena simplesmente não coincidir com o do homem branco: “Nem creem nem deixam de crer: os índios, pelo jeito, não conseguiam acreditar nem em Deus, nem no terceiro excluído” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 214). Nesse universo outro, não faz sentido contrapor identidade e resistência, de um lado, e assimilação, de outro. Segundo ele, trata-se de uma compreensão cultural baseada na troca e na relação, de modo que a lógica mesma da manutenção e da identidade deixam de imperar. Possíveis polos opostos – o do dominador e o do dominado – apagam-se em prol de uma relação dinâmica. Não poderia haver sequer uma mescla de lógicas e de paradigmas, pois a chamada “lógica do dominado”, nesse caso, está longe de ser simplesmente uma outra lógica, que se oporia antiteticamente à primeira. Ela consiste menos em uma identidade fixa do que em uma multiplicidade de posicionamentos fluidos em relação ao que ela não é. A cultura e a religião dos brancos interessam aos ameríndios. No entanto, isso não significa nem que se conformam a ela, nem que a transformam em si mesmos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 196-206). É por esse mesmo motivo que a imagem da tradução tem sido considerada a mais adequada para esclarecer a tarefa do próprio antropólogo. Porém, trata-se de uma noção complexa de tradução, que é também a que nos interessa para analisar os sintomas dos intraduzíveis nas filosofias. Assim como o xamã possui, nas palavras de Manuela Carneiro da Cunha, uma “dolorosa sensibilidade às dificuldades e armadilhas dessas passagens entre códigos que jamais são inteiramente equivalentes” (CUNHA, 1998, p. 13-14), também o antropólogo deve estar consciente das armadilhas inerentes à própria noção de tradução cultural. Para Viveiros de Castro, essa tradução só pode ser realizada por meio da equivocação, a saber, “o modo de comunicação por excelência entre diferentes posições perspectivais – e portanto tanto enquanto condição de possibilidade quanto como limite do empreendimento antropológico”. Por isso, a tradução que o antropólogo opera “trai a língua de destinação, não a língua original. Uma boa tradução permite que os conceitos estrangeiros deformem e subvertam a caixa conceitual do tradutor, de modo que a intenção da língua original possa ser expressa na nova” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 5, tradução nossa). É nesse sentido que, focalizando menos as similaridades do que as diferenças, observando a heterogeneidade e a equivocação e trabalhando com a pluralidade de lógicas e culturas, o Dicionário dos intraduzíveis pretende ser uma obra de espírito antropofágico. PR EFÁC I O DA EDI Ç ÃO B R AS I LEI R A
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Em sua versão brasileira, que precisou ingerir a original e pôde fortalecer-se com ela, certas questões filosóficas foram abertas por uma nova sensibilidade periférica. Sobretudo a crítica ao universalismo ocidental, suas formas clássicas, sua política cultural imperial. O intercâmbio propiciado pela experiência das traduções em várias línguas, empreendidas simultaneamente por equipes de vários países, já acentuara a percepção crítica, ainda incipiente no volume original, do eurocentrismo e suas formas hierarquizantes. Esperamos que a contribuição fornecida pela experiência de um país periférico em relação ao velho continente, uma ex-colônia ultramarina – falante de uma língua academicamente também periférica –, possa ser útil para o fortalecimento de um tal posicionamento crítico. Obviamente, se o fato de ser periférico não significar orbitar um centro e estar sempre sob sua dependência e subordinação. A EDIÇÃO BRASILEIRA
O Dicionário dos intraduzíveis em sua edição brasileira não pode ser apenas uma tradução do Vocabulaire Européen des Philosophies. O estatuto linguístico do projeto, por si só, requer não apenas a transposição dos textos para outra língua, mas também sua reconfiguração, tendo em vista a mudança da língua de recepção e explicação dos termos e das expressões “intraduzíveis” em relação a todas as outras línguas concernidas nos verbetes. Essa língua das explicações é chamada de “metalíngua”. Em nosso caso, tratase do português. É o português dos textos filosóficos de Portugal e do Brasil, inclusive e sobretudo as traduções em português de todo tipo de obra filosófica estrangeira, não descartando a possibilidade de diálogo com as demais comunidades lusófonas e com a tradição textual das ciências humanas e dos estudos linguísticos e literários. O francês do volume original deixou de ser a língua de chegada do Dicionário e passou a ser uma entre outras línguas de partida. Seu estatuto, evidentemente, não é o mesmo das outras, pois já foi privilegiada por ter originado o volume inicial, que tratava primordialmente dos problemas de tradução para o francês. Muitas vezes os verbetes originais tratam de casos específicos de traduções datadas ou que denotam características e vícios particulares ou até recorrentes, e em vários casos deixamos em sua referência original as traduções francesas. Mas, sempre que possível, tentamos substituir ou acrescentar ao repertório do verbete as traduções publicadas em português, adaptando e não apenas traduzindo os verbetes originais. Já na capa, a primeira mudança realizada pela edição brasileira foi a retirada do adjetivo “europeu” do título original, decisão já compartilhada por algumas equipes de tradutores, como a norte-americana, a mexicana e a marroquina, que cuidam cada uma de línguas faladas em diversos países situados em mais de um continente: o inglês, o espanhol e o árabe. Afinal, o projeto já nasceu com a consciência do ruir das fronteiras nacionais para as línguas filosóficas. A experiência de trabalhar com as diferenças de línguas e filosofias forçou o encontro com alteridades inauditas no projeto original, além da ampliação das línguas europeias – já não tão metropolitanas, como vimos. 12
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Ademais, foram ampliadas não apenas as fronteiras geoculturais, mas também as disciplinares: acrescentamos, ao campo do problema, a discussão filosófica oriunda de vertentes de teoria literária, como as explorações de tradução em poesia pelo Concretismo dos irmãos Campos, resultando, por exemplo, no novo verbete “Intradução”. É, portanto, sob a perspectiva da reflexão em poesia que o Dicionário brasileiro alcançou a consciência filosófica sobre sua própria empreitada de traduzir e adaptar o primeiro dicionário, realizado em francês. Autores tradicionalmente alocados nas vastas prateleiras de literatura foram transportados para a restrita prateleira de clássicos da filosofia, como Fernando Pessoa e Antônio Vieira. Além disso, a cultura mestiça do Brasil obrigou o Dicionário a explorar os equívocos extremamente sintomáticos das noções de humanidade, animalidade, cultura e natureza na tradução das cosmovisões e ontologias ameríndias, bem como a confrontar problemas de tradução e apropriação entre conceitos e termos filosóficos teológicos de religiões monoteístas, como as de origem semita, e politeístas, como as de origem banta e iorubá. Além de produzir alguns verbetes originais, a versão brasileira do Dicionário incorporou também os verbetes originais das demais adaptações em curso, tais como os novos verbetes “Gender”, refeito por Judith Butler e “Chora”, escrito por Anthony Vidler, para a edição norte-americana; “Sharia”, ampliado por Ali Ben Makhlouf para a equipe marroquina. Ela também acrescentou ou modificou quadros internos – como “Sexo” – àqueles já existentes no dicionário francês, a partir das adaptações das outras traduções. Assim, a tradução deixou de ser efetivamente uma tradução unívoca e passou a realizar-se em trama, escolhendo para integrar o seu corpo de verbetes partes oriundas de diversos dicionários que compõem a galáxia dos intraduzíveis. Traduzimos um xadrez de estrelas, para usar a rica imagem de Antônio Vieira revista por Haroldo de Campos. O novo Dicionário dos intraduzíveis operou ainda uma separação física da obra, que passou a ter dois volumes de estrutura e conteúdo diferentes. O primeiro trata de problemas transversais a diversas línguas ou das características gerais próprias a cada uma; chama-se “Línguas”, e é composto de verbetes maiores, praticamente pequenos capítulos de um livro que pode ser lido do início ao fim como uma coletânea de ensaios. A maioria dos verbetes, ou artigos, tem por objeto os sintomas de tradução que caracterizam a engenhosidade de cada língua ou grupo de línguas discutidas. Este volume comporta, em cada artigo deste tipo, o risco de um dos fantasmas metodológicos e políticos que sempre rondaram os autores e tradutores do projeto. Fantasmas que Barbara Cassin nomeou de “nacionalismo ontológico” ou “gênio maligno das línguas” (citando o título de Marc Crépon, Le malin génie des langues). Trata-se do risco de tomar uma ou outra língua como um acesso privilegiado a algum recanto especial do ser, e finalmente o risco de afastar as margens entre uma língua e outra, pela negatividade da intradutibilidade. É preciso lembrar sempre que não tratamos de línguas cuja produção filosófica não pode ser traduzida, mas dos fatos gerados pelas operações de tradução. Os intraduzíveis só ocorrem porque acontece a tradução. PR EFÁC I O DA EDI Ç ÃO B R AS I LEI R A
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De fato, sem um, não haveria o outro: não há intraduzíveis onde não se tentou traduzir, e também não há tradução, mas mera réplica, se não nos deparamos com os impasses da equivocidade que marcam a diferença real entre as línguas e cuja superação requisita a inteligência própria da tradução, que uma máquina automática não pode alcançar. Trata-se, portanto, não da evocação de uma personalidade ou genialidade de cada língua, mas dos trânsitos plurais entre línguas tomadas uma a uma ou umas às outras. Em consequência disso, a caracterização de um modo próprio de certa língua, tal como realizada nos verbetes ou artigos do primeiro volume, não deve resultar na ideia de um solipsismo linguístico ou de uma hierarquia das línguas, conforme alguma suposta maior proximidade do ser ou da verdade, ou de qualquer outro valor dominante. Trata-se, antes de tudo, da marcação de diferenças que constituem a riqueza da diversidade. Diferenças que todo tradutor deve ter em mente como o fundo a partir do qual pode pôr as línguas e as filosofias em comunicação com outras línguas e pensamentos, um fundo diferente da “universalidade da razão” ou da “essência da natureza humana”, um fundo aberto para ver a si mesmo e ao outro desde o desconcertante da alteridade e do estranhamento, algo como o que Freud chamou de unheimlich – um certo deslocamento e desconforto evocado a partir do que é mais familiar. Este primeiro volume, em suma, procura pôr em evidência muito menos uma comparação estanque entre línguas isoladas – com suas supostas substancialidades – do que suas relações, influências recíprocas e trocas constantes. Trocas que não se dão sem o choque oriundo do enfrentamento de dificuldades de tradução, sem a resistência provocada por tais choques, e, sobretudo, sem a elasticidade inerente à própria noção de pluralidade linguística. O segundo volume tem propriamente o formato de um vocabulário – com verbetes em ordem alfabética –, funciona como um instrumento de consulta para “termos intraduzíveis”, e chama-se “Palavras”. Ademais, há, no segundo volume, como no original, verbetes redirecionadores, que constituem elos entre os diversos verbetes e sinalizam remissões intertextuais que formam uma trama hipertextual de palavras. A constituição dos elos possíveis dessa trama é talvez a melhor maneira de entender a lógica ou o método que orienta este Dicionário. Esse formato obedece a um dos princípios que regem as teorias da tradução filosófica orientadoras do projeto, em que os “intraduzíveis” são importantes nós – pequenos obstáculos que amarram entroncamentos de linhas. Cada texto é uma trama, e não um fio, e sua transposição para outras línguas requer sempre ultrapassar a literalidade linear e considerar de modo reflexivo e criativo as ligações em rede das línguas e suas expressivas formas de elaborar o pensamento, e de constituir filosofias. Realizado com apoio de grupos de pesquisa de diversas universidades brasileiras, capitaneados pelo Laboratório OUSIA de Estudos em Filosofia Clássica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Dicionário dos intraduzíveis chega a público em seu Volume I: Línguas em 2018, e promete para não tão longe o seu Volume II: Palavras. Use-o como um instrumento barroco, sem moderação. 14
DIC IO N ÁRI O DO S IN TRA D UZ ÍVE IS
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