John John Hughes foi roteirista, diretor e produtor de cinema. Considerado o maior representante dos filmes adolescentes nos anos 1980, concebeu projetos que conversam diretamente com o espírito juvenil de uma década, influenciando grandes cineastas da atualidade, como Wes Anderson e Judd Apatow. Além de Curtindo a vida adoidado, Hughes escreveu e dirigiu sucessos atemporais, como o Clube dos cinco e Mulher nota 1000, e roteirizou os dois primeiros filmes da franquia Esqueceram de mim. Hughes faleceu em 2009, aos 59 anos, e foi homenageado em um tributo na cerimônia do Oscar de 2010.
Os pais de Ferris Bueller realmente acreditaram que ele estava doente. A sua pior atuação em anos, e eles haviam caído nessa. Ferris não esperava que fosse fácil convencer o amigo, Cameron, a sair de sua fossa interior para acompanhá-lo em um dia onde o céu era o limite e não haveria nada que eles não pudessem fazer. Tirar a namorada, Sloane, da aula seria a parte fácil do plano, mesmo com a marcação cerrada do diretor Rooney e a perseguição de Jeanie, a explosiva irmã de Ferris. Tendo Chicago inteira como parque de diversões e com a missão de fazer com que seu dia de folga seja incrível, Ferris não aceitará ter nada menos que o dia mais inesquecível de sua adolescência – tão inesquecível quanto o filme de John Hughes, que completa 30 anos em 2016. Considerado uma das obras mais importantes do cinema e o retrato de uma geração, Curtindo a vida adoidado é a expressão do sonho de jovens de todas as épocas. Afinal, quem nunca quis fugir de uma aula chata para curtir um dia lindo na companhia de seus melhores amigos? Publicado pela primeira vez no Brasil em formato de romance, esta edição comemorativa contém altas doses de encrencas, aventuras e desculpas esfarrapadas!
Salve Ferris!
ISBN 978-85-8235-379-0
9 788582 353790
CURTINDO A VIDA ADOIDADO
Todd Strasser é autor de mais de 140 livros, muitos deles vencedores de diversos prêmios. Antes de se familiarizar com a escrita, chegou a ser músico de rua. Consolidado como autor versátil e com facilidade para se comunicar com jovens, Todd especializou-se em adaptar, na forma de romances, roteiros cinematográficos, e escreveu muitas de suas obras sob os pseudônimos de Morton Rhue e T. S. Rue. Seu best-seller mais recente, Fallout, recebeu crítica estrelada no The New York Times. Todd vive no subúrbio de Nova York e dá palestras em escolas com muita frequência.
Todd Strasser
“A vida passa rápido demais. E se você não parar de vez em quando para vivê-la, vai acabar perdendo o seu tempo.”
“Bueller? Bueller?” “Ele está doente”, disse uma garota no fundo da sala. “A namorada do irmão do namorado da irmã da minha melhor amiga ouviu de um cara que conhece esse sujeito que está saindo com uma garota que viu o Ferris desmaiar na sorveteria 31 Sabores ontem à noite. Parece que é bem sério.” Sr. Clark assentiu de leve e anotou no caderno com a caneta vermelha. “Obrigado, Simone.”
r e s s a r t Todd S
O D N I CURT DA A VI ADO D I O D A
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DO FILM
GHES JOHN HU
CURTINDO A VIDA ADOIDADO
Copyright © 1986 Paramount Pictures Corporation Copyright © 2016 Editora Gutenberg Título original: Ferris Bueller’s Day Off Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
Edição publicada em acordo com a New American Library, um selo da Penguin Publishing Group, divisão da Penguin Random House LLC.
editora
revisão
Silvia Tocci Masini
Andresa Vidal Branco
editores assistentes
capa
Carol Christo Felipe Castilho Nilce Xavier
Carol Oliveira Guilherme Fagundes
assistente editorial
Guilherme Fagundes
Andresa Vidal Branco
diagramação
preparação
Felipe Castilho
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil Strasser, Todd Curtindo a vida adoidado / um romance de Todd Strasser baseado no roteiro de John Hughes ; tradução Marcelo Salles. -- 1. ed. -- Belo Horizonte : Editora Gutenberg, 2016. Título original: Ferris Bueller's Day Off ISBN 978-85-8235-379-0 1. Estudantes - Chicago - Ficção 2. Ficção norte-americana I. Hughes, John, 1950-. II. Título. 16-02619
CDD-813
Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana 813
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Todd Strasser
CURTINDO A VIDA ADOIDADO Um romance de Todd Strasser baseado no roteiro de John Hughes
Tradução :
Marcelo Salles
1
À primeira vista, a pequena cidade de Shermer, em Illinois, não parece ter nada de mais. As ruas, ladeadas por árvores, estão limpas, os jardins das casas estão sempre bem aparados e os sobrados estão com a manutenção em dia. O local é o que as pessoas chamam de cidade-dormitório, porque basicamente todo mundo que mora em Shermer vai trabalhar ou estudar em Chicago de manhã e retorna à noite para jantar, dormir, acordar e repetir a mesma rotina. As pessoas ali acreditam que honestidade, trabalho árduo e determinação trazem felicidade e prosperidade. Em suma, o sonho americano ainda está bem vivo em Shermer. Claro que algumas famílias possuem carros mais caros que outras; algumas passam as férias na Europa enquanto outras tiram alguns dias de folga passeando no interior do estado, mas, de modo geral, as pessoas de Shermer, assim como as casas de lá, são bem parecidas umas com as outras. Ao menos na aparência. No entanto, dentro de uma daquelas grandes casas coloniais, em uma manhã tranquila, estava a prova de que as coisas raramente são o que parecem ser. A casa da família Bueller estava agitada com a atividade matinal. Havia despertadores tocando, a torradeira e os secadores de cabelo não paravam de trabalhar. O jovem Ferris Bueller, de 18 anos – um ferrenho defensor da vida, da liberdade e da busca pela felicidade –, estava pensando exatamente em como conseguir ainda mais liberdade e felicidade naquela bela manhã de primavera. Afinal, dias como aquele foram feitos para serem aproveitados; Ferris estava certo disso. Assim como ele também estava certo de que os fundadores dos Estados Unidos concordariam com ele – eles apenas estavam distraídos em meio à correria quando instituíram coisas como: presença obrigatória na escola em dias quentes de primavera. Era difícil buscar a felicidade no colégio em dias como aquele, Ferris pensava. 5
Claro, qualquer pessoa que diz que a escola é divertida ou não está mais na escola ou veio de outro país. Obviamente os políticos já não eram mais estudantes quando acharam que era uma ótima ideia obrigar todo mundo a frequentar a escola por dezoito anos. Mas Ferris os compreendia. Adultos normalmente deixam de enxergar as verdades simples quando se encontram enredados na burocracia da vida. Já a garotada, por outro lado, não tem esse problema. Ferris virou-se de lado na cama e pôde ouvir seus irmãos mais novos no corredor. “Seu idiota!” “Sua boba!” “Seu otário!” “Sua fedida!” “Escuta aqui”, Kimberly disse em um tom de voz mais baixo. “Quando você estiver com 10 anos, sua cabeça vai inchar até ficar do tamanho de uma melancia, e vamos precisar sacrificá-lo, igual fazem com os cachorros.” “Você é uma mentirosa!”, Rick reagiu. “Juro por Deus, é verdade”, Kimberly respondeu. “O dr. Albert me disse ontem quando fui fazer o exame. A mamãe e o papai já sabem disso faz anos.” Ricky arregalou os olhos. “Por que eles não me contaram?” “Eles querem que você aproveite a vida o máximo que puder”, Kimberly disse com frieza. Ela mal podia acreditar que o irmão estava caindo naquela. “Você está mentindo!”, Ricky retrucou mais uma vez, embora a preocupação estivesse visível em seu rosto. “Estou, é? Para mim, parece que sua cabeça já começou a inchar.” “MANHÊ!”, Ricky gritou. Ele não estava acreditando de verdade na irmã, mas não custava nada ir conferir. Ficar com a cabeça do tamanho de uma melancia não seria nada divertido. Ele só queria que a irmã saísse da frente da porta, para ele correr até o quarto dos pais.
“Katie!”, Tom Bueller chamou a esposa enquanto vasculhava em seus paletós. “Onde está minha carteira?”. Ele conferiu o gaveteiro e 6
remexeu na papelada que tinha deixado sobre ele. Não achou a carteira, mas encontrou suas chaves. Após colocá-las no bolso da calça, foi em direção à cozinha. “Katie!” Assim que Ricky conseguiu passar pela irmã, ele viu o pai no corredor. “Onde está sua mãe?”, Tom perguntou sem paciência. “Minha cabeça vai ficar inchada?” Ricky olhava para o pai meio que esperando receber uma notícia terrível. “Quê?!”, Tom perguntou enquanto terminava de abotoar a camisa. Às vezes ele se perguntava se escutava direito o que as crianças falavam. Ele se virou para a escada, imaginando que Katie estava na cozinha preparando o café da manhã. “Venha comigo para baixo, Ricky”, Tom continuou. “Não sei do que você está falando e preciso achar logo minha carteira ou vou me atrasar no trabalho.” “Mas a Kimberly disse que…” Bem nessa hora, ele sentiu os braços da irmã, que o pegou por trás. “Espera! Fica parado!”, ela sussurrou. “O que foi?” “Sua cabeça começou mesmo a inchar!” Ricky gritou, mas outra voz gritou ainda mais alto. Jeanie Bueller tinha acabado de sair do banho e estava procurando uma toalha. Ela estava de mãos vazias. “Ei, estou precisando de uma toalha!”, ela gritou. Jeanie estava tremendo de frio. Com certeza Ferris pegou a última toalha limpa e esqueceu de colocar uma no lugar. Era uma regra da família, toda vez que alguém usasse uma toalha deveria substituí-la por uma nova. Mas Ferris não precisava seguir as regras. Seus pais não o obrigavam a segui-las. “Alguém me escutou?!”, ela gritou de novo, abrindo de leve a porta do banheiro e pingando água no chão. “Se algum idiota aí estiver me ouvindo, eu estou congelando no banheiro porque um babaca pegou a última toalha e não colocou uma nova no lugar!” “Olha sua boca, mocinha!”, a mãe respondeu gritando de algum lugar da casa. “E aí, você vai me deixar morrer de frio ou o quê?” “Eu vou até aí assim que puder”, respondeu a Katie Bueller. “Há outros seres humanos nesta família também.” Jeanie resmungou e fechou a porta. Não havia outros seres humanos na família dela. Só havia Ferris, o Favorito, e mais quatro minhocas. 7
Ferris ouviu a porta do banheiro bater com força. Ele não conseguia entender por que Jeanie encarava a vida como uma provação, um fardo a ser suportado. Às vezes, parecia que ela era apenas um repositório de raiva. Ferris não sabia de onde essa raiva vinha; ele com certeza aproveitava a vida, e o resto da família basicamente era bem legal. Na verdade, Jeanie era uma garota de 17 anos bem bonita, e ele tinha várias recordações de quando eles brincavam juntos quando crianças. Então, por que ela ficava tão estressada assim de tempos em tempos? Essa peculiaridade da irmã já não incomodava Ferris tanto quanto no passado. Ele percebeu que toda casa tinha suas particularidades depois de conhecer a família de seu melhor amigo, Cameron Frye. Sem dúvida, a vida na casa da família de Cameron era bem estranha. Ferris não gostava de frequentar a casa do amigo porque ela mais parecia um museu. Era tudo muito bonito e muito frio, e ninguém podia tocar em nada. Na verdade, se você abrisse uma porta podia ver que todos os parafusos nas dobradiças estavam apertados demais, o que dificultava abrir e fechar as portas. No ano passado, Ferris afrouxou os parafusos em um dos armários da cozinha. Quando voltou à casa alguns dias depois, viu que os parafusos tinham sido apertados novamente. Desde aquele dia, Ferris percebeu como deve ter sido difícil para Cameron ter crescido naquela casa desde bebê. Só de pensar em estar naquilo, ele sentia um frio percorrer a coluna. Ferris viveu toda sua vida em uma casa onde cada um dos indivíduos deixou uma pequena marca nos ambientes do local. O ambiente era todo mais relaxado, e os móveis lá eram mais aconchegantes porque eram bem usados. O próprio quarto de Ferris estava apinhado de pôsteres, revistas, discos de todo tipo de banda. Alguns desses discos ficavam jogados sobre um gaveteiro, onde também estava o porta-retratos com a foto da namorada dele, Sloane. Ferris ainda guardava todos modelos de carros que ele montou quando criança em uma estante, ao lado da máscara de apanhador de beisebol e de um cantil do exército dos Estados Unidos. Havia uma luminária fluorescente, que piscava “This Bud’s for You”, o slogan de uma cerveja famosa, em uma parede cheia de pôsteres de Bryan Ferry, The Smiths e Simple Minds. O resto do espaço disponível da parede foi coberto por fotos menores de roqueiros e havia uma bandeira da Grã-Bretanha pendurada na porta do quarto. 8
Na verdade, todos os bens mais prezados de Ferris – desde seu aparelho de som Carver, o CD player da Sony e os alto-falantes da Bose, à sua coleção de placas de trânsito e ferraduras – estavam no quarto dele. Aquele era obviamente o território de Ferris, planejado e moldado por ele ao longo dos anos. Havia algo bastante reconfortante naquele quarto, e Ferris não conseguia se imaginar morando em nenhum outro lugar senão naquele caos organizado, onde ele acrescentava objetos de tempos em tempos. Quando tocava guitarra em seu quarto, ele se sentia vivo. Cameron, por outro lado, frequentemente ficava doente. Ferris tinha certeza que a saúde de seu amigo estava sendo seriamente prejudicada pelo ambiente onde ele vivia, que mais lembrava um mausoléu. Não era à toa que Cameron era tão tenso. Na verdade, Cameron era a única pessoa que Ferris conhecia que se sentia melhor quando ficava doente… Era isso! Ferris sabia exatamente como iria aproveitar ao máximo aquele dia lindo. Ele fingiria que estava doente, faltaria às aulas e ligaria para Cameron. Com certeza seu amigo estava precisando de um pouco de ar fresco e diversão. Isso iria fazer bem a ele. Ferris percebeu que precisaria agir com rapidez. A qualquer minuto sua mãe iria trazer uma toalha para Jeanie e dar uma olhada no quarto para perguntar o que ele ia querer de café da manhã. Ferris precisava parecer doente de verdade se quisesse convencê-la – pela nona vez naquele semestre – de que ele não ia conseguir ir para o colégio. Qual doença ele podia fingir dessa vez? Duas semanas atrás ele já usou o velho truque da febre com toalha quente na testa. E o vômito feito com comida de cachorro na privada tinha funcionado feito mágica no semestre passado. A tosse ininterrupta por 24 horas também sempre funcionou bem. Não, Ferris pensou consigo, essa já estava ficando meio exagerada, e estava deixando sua mãe assustada. Não havia por que deixá-la preocupada sem motivo algum. Além do mais, se ele tentasse esse truque hoje, provavelmente sua mãe o levaria ao médico. E a única coisa pior que ir para a escola era ir para o consultório do Dr. Albert. Ferris decidiu, então, simplesmente lamber a palma das mãos até elas ficarem encharcadas e fingir que estava com a vista embaçada. Usar sintomas genéricos é sempre melhor. E então, se fingisse dores estomacais e ficasse curvado, gemendo e choramingando, com certeza sua mãe acreditaria nele. Claro, isso tudo era uma criancice, Ferris percebia, mas até aí o colégio também era. A vida passa rápido demais, Ferris pensava consigo. Se você não parar de vez em quando para viver a vida, vai acabar perdendo o seu tempo. 9
De repente, ele escutou Ricky correndo pelo corredor até a mãe, implorando para que ela lhe contasse se a cabeça dele iria inchar mesmo e se eles iriam sacrificá-lo como um cachorro. Ferris sentiu pena do irmão. Você acredita nesse tipo de coisa quando tem 7 anos. Em seguida, ele ouviu a mãe gritar com Kimberly. “Deixe Ricky em paz e leve uma toalha limpa para Jeanie.” “Preciso mesmo fazer isso?”, Kimberly reclamou. “Ela é um pé no saco.” “Sim, você precisa fazer isso”, retrucou Katie. Nessa hora a voz de Jeanie se fez ouvir por todo o andar de cima da residência dos Bueller. “Quem mijou no assento da privada?! MÃÃÃE!” Kimberly revirou os olhos e, depois de pegar uma toalha no closet ali perto, seguiu em direção ao banheiro. Katie viu as horas em seu relógio e caminhou até o quarto de Ferris. “Ferris, você já levantou?” Ela viu que ele ainda estava deitado na cama. “Qual o problema? Por que você ainda está na cama?” Era a deixa que ele esperava. Em vez de responder, Ferris gemeu. Ele sabia que a mãe precisava se aproximar para notar sua aparência de doente. Ferris abriu a boca, colocou a língua para fora e gemeu novamente. Ele mais parecia um búfalo africano indisposto. Meu Deus, será que vai dar certo desta vez?, ele pensava, choramingando mais do que nunca. Mas Katie Bueller se aproximou da cama, com o rosto cheio de preocupação. Ela estava vestindo um terno cinza, com os cabelos puxados para trás, revelando um par de brincos de ouro com o formato de conchas de vieira. Ela tocou a testa de Ferris com a palma da mão. “Ferris, o que foi? Por favor, fale comigo. O que está doendo?” “Tômaco”, ele sussurrou. “Tômaco?”, Katie repetiu, sem entender direito. Ferris lentamente levantou o braço e apontou para a barriga. “Ah, seu estômago”, Katie finalmente compreendeu. Ferris assentiu com debilidade e apertou os olhos, fingindo tentar focar a vista na mãe, que olhava diretamente para ele. “Potos”, ele murmurou. “Potos?”, Katie repetiu. Ferris apontou para os olhos. “Você está vendo pontos?”, ela perguntou. “Ah, meu Deus. É melhor ligar para um médico”. “Não”, Ferris pediu. “Isso vai passar, vai sim”. Mas Katie Bueller já tinha visto o bastante. Ela correu até a porta e gritou pelo marido. 10
Tensão pré-menstrual, Jeanie pensou. Ela se inclinou sobre o assento da privada e limpou as gostas que haviam lá com papel higiênico. Não foi uma mulher do Novo México que argumentou que essa tinha sido a razão para ela matar o marido? Uma equipe de médicos especialistas foi chamada à corte e garantiu que era certamente possível que a TPM tenha enlouquecido a mulher a ponto de ela matar o marido pelo fato de ele ter esquecido de regar as flores dela. Bem, Jeanie pensou, se isso funcionou para aquela mulher, com certeza vai funcionar para mim. Ela sabia exatamente quem tinha molhado a tampa da privada. Ferris se levantou no meio da noite e usou o banheiro. Seu irmão reconhecidamente tinha a mira ruim. O júri ia compreendê-la. Considerando o fato de que estava sob efeito da TPM, Jeanie não podia ser considerada culpada por assassinar alguém que mijava nos assentos da privada.
Ferris ficou deitado pensando se teria tempo de ligar para Sloane antes que ela saísse para ir à escola. A mãe dele ainda estava esperando na entrada do quarto pelo marido. Ferris conseguia escutar o pai subindo a escada apressadamente. Seus olhos estavam começando a coçar, e o braço direito, pendurado para fora da cama, estava ficando dormente. Ele aguardou a mãe olhar para fora e então lambeu as mãos mais uma vez. Meu Deus, pensou, como isso dá trabalho. Ferris escutava um barulho alto, já que seu pai subia a escada dois degraus por passo. Logo em seguida, Tom Bueller apareceu à porta, vestindo um terno cor de areia, camisa branca e uma gravata vermelho vivo. “Qual o problema?”, ele perguntou para a esposa, arfando. “É o Ferris”, ela respondeu. Tom Bueller voltou os olhos para a cama. “O que há com ele?” “O que há com ele? Pelo amor de Deus! Olhe para ele!” Os dois caminharam na direção da cama ao mesmo tempo, como se juntos eles pudessem combater a terrível doença que tinha acometido seu filho. 11
“Ferris?”, Tom falou depois de se ajoelhar ao lado da cama. Ferris não respondeu. Ele sabia por experiência própria que era melhor deixar a imaginação de seus pais correr solta. “Ele não está com febre”, Katie Bueller disse, “mas disse que o estômago está doendo e que está enxergando pontos”. Tom Bueller tocou a testa de seu filho. “Qual o problema, Ferris?” Ferris apenas gemeu. “Sinta as mãos dele. Elas estão frias e úmidas”, Katie comentou. Tom tocou uma das mãos de Ferris. “E meio pegajosas”, ele comentou. “Vamos ligar para o médico?” “Ele não quer que eu faça isso”, Katie respondeu. “Por que você não quer que sua mãe chame o médico?” Ferris mexeu os lábios, quase como se estivesse sofrendo para conseguir falar. “Nããããããoo. Não precisa disso tudo. Estou bem”, ele falou com a voz rouca. “Vou levantar.” Ele começou a se ajeitar para sentar, mas sua mãe se aproximou e pôs a mão em seu ombro. Ferris permitiu que ela o empurrasse para se deitar novamente. Esse era sempre um bom sinal. Agora ele só precisava dar o toque final. “Eu tenho prova hoje”, ele disse, fazendo uma voz áspera. “Não posso perdê-la. E-eu quero ir para uma boa faculdade e poder desfrutar de uma vida de trabalho…” “Meu amor, você não pode ir pra escola nesse estado”, Katie insistiu. Ferris sabia que já tinha conseguido, mas ele não resistiu fazer mais uma última cena. “Estou bem, mãe. Estou me sentindo perfeitamente…” De repente, ele foi tomado por uma convulsão. “Ah, meu Deus!”
Jeanie Bueller estava passando maquiagem no banheiro. Ela penteou seus cabelos loiros e conferiu a roupa que vestia no espelho. Ao ouvir a comoção vinda do corredor, ela sabia que era algo com Ferris. Todo drama na família era relacionado a Ferris. Se algo acontecesse com ela, por outro lado, ninguém estava nem aí. Era seu irmão que conseguia toda a atenção, e não sobrava nada para ela. Sempre foi assim e, provavelmente, sempre iria ser desse jeito. 12
Dessa vez, Jeanie decidiu ir ver qual o motivo da barulheira. Ao caminhar pelo corredor em direção ao quarto de Ferris, ela se imaginava na corte diante do juiz: Sinto muito, meritíssimo, eu agora compreendo que foi errado estrangular meu irmão com a meia-calça, mas naquele momento eu estava passando por uma TPM e sabia que ele tinha urinado sobre o assento da privada. Obrigada por me inocentar. Prometo que serei uma pessoa boa pelo resto da minha vida. Ela entrou no quarto do irmão e o viu deitado na cama, parecendo alguém que tinha acabado de engolir algo que não devia. Meu Deus, como eu queria que isso fosse de verdade, ela pensou. Seus pais estavam curvados sobre a cama, tentando descobrir qual era o problema. “Que maravilha. E o que ele tá sentindo?”, Jeanie perguntou, com a mão na cintura e batendo um pé no chão. “Ele não está passando bem”, respondeu Katie, sem nem se virar. Jeanie sorriu e se aproximou da escrivaninha do irmão. Distraidamente, ela pegou um dos modelos de submarino que estavam sobre ela. “Ah, claro. E se ele morrer, usamos as cinzas como fertilizante.” Tom lançou um olhar duro a ela. “Já chega, Jeanie.” “Vocês não vão cair nessa, vão?”, Jeanie perguntou. “Por favor, me digam que não vão cair nessa.” Ferris se agitou na cama. “Jeanie, é você? Jeanie, eu não estou conseguindo te ver direito. Jeanie?” “Vá cagar, Ferris.” “Obrigada, Jeanie”, Katie disse irritada. “Pode ir para a escola.” Mas Jeanie não cedeu. “Peraí, vocês vão deixar ele ficar em casa?”, perguntou. “Eu não acredito. Mesmo se eu estivesse sangrando pelos olhos, vocês dois iam fazer eu ir para a escola. Isso é muito injusto”. Ferris rolou na cama novamente. “Jeanie... por favor, não fique zangada comigo. Fique grata por você estar em forma e com boa saúde. Você é tão saudável! Devia agradecer.” “Ah, preciso vomitar!”, Jeanie gritou. Ela bateu o modelo na escrivaninha, virou-se e saiu caminhando apressada na direção da escada. Aquilo tudo era uma tremenda injustiça. Como é que eles acreditavam em todas as mentiras que seu irmão contava? Como ele conseguia se safar sempre? Jeanie não conseguia entender; tudo o que ela sabia é que Ferris a deixava maluca. Um mentiroso cara de pau! Um fedelho malcriado. E todo mundo o adorava. Ela não entendia. 13
Ferris ouviu os passos pesados de Jeanie descendo as escadas. Ele não compreendia por que ela ficava tão irritada com esse tipo de coisa. No mínimo, ela teria a oportunidade de se fingir de doente também se quisesse. Era perfeitamente lógico que ela pudesse se contagiar com algo vindo dele. Assim pelo menos ele teria alguém para passar o dia com ele lá. Enquanto isso, ambos os pais estavam olhando para o relógio. Graças a Deus ele vivia em uma família com dois provedores, pais que trabalhavam todo dia das 9h às 17h. Kimberly e Ricky deram as caras na porta. Kimberly, com 12 anos, ainda se vestia como se fosse um clone da Madonna, já que não tinha surgido nenhuma estrela nova para ela imitar. Ricky, mais novo que ela, ainda deixava a mãe escolher suas roupas. “Infecção do miocárdio?”, Kimberly sussurrou. Katie se virou para ela e meneou a cabeça. “Aneurisma?”, Kimberly perguntou. “Pegue suas coisas”, Katie respondeu. “Seu pai já vai descer.” “Meningite sifilítica?”, Kimberly perguntou. “Isso iria envergonhar a família inteira.” Ferris estava lutando para manter a expressão séria. Sua irmã daria uma grande comediante um dia. “Vai logo!”, Katie Bueller gritou. “Eu vou descer em um minuto.” Kimberly se afastou em direção à porta. “Está bem, mas se ele morrer eu fico com o aparelho de som.” Ela saiu e deixou Ricky parado na entrada do quarto. “E o que você quer?”, a mãe perguntou. Ricky apontou para o próprio crânio. “Minha cabeça está normal?” “Vá já para baixo”, Katie disse. “Puxa, se fosse com sua cabeça você ia ver”, Ricky reclamou. Ele parecia preocupado e ninguém estava dando a mínima. “Agora!”, Tom Bueller gritou. Ferris observou o irmão sair correndo pela porta. Três já foram, só faltam dois. Ele inspirou profundamente e deixou o ar sair devagar. Faltava bem pouco. “Mãe? Pai? Eu acho que vou ficar bem. Só preciso dormir. Talvez eu tome uma aspirina lá pelo meio-dia”. 14
Katie Bueller assentiu. “Hoje eu vou estar fora do escritório mostrando uma casa para aquela família de Los Angeles. Eles estão bem perto de tomar uma decisão sobre a compra. Mas se você precisar de mim, o pessoal do escritório sabe onde me localizar.” “E eu vou ficar no escritório o dia todo”, Tom disse. “Se você precisar de qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, é só me ligar, está bem?” Ferris assentiu com debilidade. “É muito bom saber que eu posso contar com pais tão atenciosos. Vocês são muito especiais.” A mãe esticou o braço e acariciou os cabelos dele. “Você também.” O pai colocou a mão gentilmente no ombro de Ferris. “Lembre-se, se precisar de qualquer coisa… Está bem, amigão?” Ferris assentiu lentamente, como se aquele gesto exigisse todas as forças que ele tinha. Em seguida, ele fechou os olhos, como se estivesse fraco demais para mantê-los abertos por mais um segundo que fosse. Katie se inclinou e beijou a testa de Ferris. “Fique bem, meu docinho.” “Vou ficar sim, mãe”, ele respondeu, com uma voz um pouco mais alta que um sussurro. Os pais de Ferris se levantaram e caminharam em silêncio em direção à porta, como se estivessem com medo de fazer barulho. “Nós amamos você, querido”, Katie sussurrou. “Se precisar é só ligar”, Tom falou em voz baixa. Ferris permaneceu completamente imóvel, parecendo quase um cadáver. Por fim, ele escutou a porta se fechar e ouviu o clique da fechadura. Ele abriu um dos olhos, bem de leve, e olhou ao redor para ter certeza. O quarto estava vazio. Abriu ambos os olhos e se virou de costas na cama, apoiando o braço direito no colchão para que o sangue voltasse a irrigá-lo. Eles caíram nessa, ele pensou. Inacreditável. Uma das piores atuações da carreira dele e os dois não duvidaram nem por um minuto. Ferris sentou e abriu os braços. Deve ter sido a mão úmida que os convenceu. Nada como um bom sintoma genérico.
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