Vaca de nariz sutil

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CAMPOS DE CARVALHO VACA DE NARIZ SUTIL


ilustração:

Uendell Rocha


CAMPOS DE CARVALHO VACA DE NARIZ SUTIL 5ª EDIÇÃO


Copyright © Herdeiras de Campos de Carvalho Copyright © 2017 Autêntica Editora

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Maria Amélia Mello

Miriam de Carvalho Abões

editora assistente

projeto gráfico

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Diogo Droschi

assistente editorial

diagramação

Rafaela Lamas

Carol Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Carvalho, Campos de, 1916-1998 Vaca de nariz sutil / Campos de Carvalho. -- 5. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2017. ISBN 978-85-513-0215-6 1. Ficção brasileira. I Carvalho, Campos de. II. Título. 17-03305

CDD-869.3

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.3

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7 VACA DE NARIZ SUTIL 91 SOBRE O AUTOR



VACA DE NARIZ SUTIL


A JORGE AMADO O homem e o escritor


Arrière la choucroute! Erik Satie Merde! André Derain



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Onde o senhor dorme? No Hotel Terminus. Mas aqui não há nenhum Hotel Terminus. É o que o senhor pensa. Passava das onze, chovia; imperceptivelmente fomos caminhando até o portão do cemitério. Aqui fico – disse-me, estendendo a mão fria: Boa noite! Não sou supersticioso mas confesso que foi, como direi? um tanto ou quanto, como direi... Tinha a sensação de que ainda trazia presa à minha aquela mão, quando liguei o computador e entrei no quarto. Tolice! – eu repetia com o cigarro no canto da boca, também ele frio e apagado. Tanta filosofia, para isto! A verdade, talvez. Mas não é bem isto o que eu queria dizer, não é bem o tipo de coisa que interesse a não ser a mim: quatro e quatro vinte e quatro, quarto e quarto dois mil quartos, o meu e o dele, o meu e o de quem compartilha do meu – compartilha é um modo de dizer. São duas camas, poderiam ser duzentas; como naquele hospital em que estive na guerra – exatamente como no cemitério, lado a lado, mas todos antípodas, cada um fechado no seu pijama, na sua cicatriz. O pasmo dos outros não me interessa, só o meu; e nem a mim me interessa pasmar: sou apenas vítima. Tudo tão fosco! Mesmo porque não existem fantasmas, e se ele mora num cemitério é porque tem lá as suas razões. Também já 11


morei em porões, em corredores, e até em trincheiras: o problema da moradia não preocupa o Estado, cada um que se arrume. Um dia é possível que o visite para tirar minhas dúvidas: Hotel Terminus – bem achado. Será um humorista. O meu quarto! Não se deveria permitir esta promiscuidade entre estranhos, e somos todos estranhos: minha mãe e eu, eu e eu, o que eu fui na infância e de que já nem me lembro, eu de bigode e sem bigode: uma enorme farsa. Daqui a pouco chega o estranho, entra sem bater, despe-se com o seu sexo e as suas nádegas, puxa o lençol e cai no sono – tudo sem dizer uma palavra. Seria pior se se deitasse na minha cama, a certidão de casamento para lhe garantir esse direito, quando até os mortos têm o direito de dormir sozinhos, ou quase. Protestar não adianta, que é tudo igual: o próprio presidente a esta hora estará dormindo com a primeira-dama, ou com a segunda-dama, e o rei com a rainha, e Deus com alguém. Se quer dormir sozinho, por que não mete uma bala na cabeça? – estou a ouvi-los, como sempre engraçadíssimos. Não protestarei, não tenho ânimo bastante para isso, nem para muito menos. O senso de humor dessa gente já levou muitas de minhas tias, e um tio, ao último desespero: sirva-me a lição. Na guerra mesmo me puseram um fuzil na mão: safe-se como puder! – deixando clara, de uma vez por todas, a situação verdadeira. Nem o fuzil me deixaram, nem sequer uma granada, de sorte que o consolo é rir-me do seu senso de humor para não morrer dele, como de resto manda a Constituição. Também tenho um livro de provérbios que me mantém nos devidos limites do meu corpo, da minha total insignificância – muito mais útil do que qualquer Eclesiastes ou Imitação de Cristo, e com o imprimatur da Cúria contra a minha incúria. O que ainda não conseguiram, mas chegarão lá, foi impedir que um 12


cérebro fosse capaz de desvarios tamanhos, e em vez de dormir se pusesse a girar como um cata-vento, sem nada de profícuo para este e outros mundos. É a neurose da guerra, da vossa guerra! – eu lhes lanço ao rosto. Sei que poderia aplicar-me em outras coisas, mas todas inúteis: tudo é inútil. Levei milhões de anos para chegar a esta sórdida conclusão, eu e meus antepassados; deve significar alguma coisa. Também fiz trapaças, e sobretudo comigo, para converter-me a alguma coisa, em alguma coisa: dizia o Credo em voz alta, todos os credos, postavame de joelhos, de cócoras, as pernas para o ar, batia-me no peito como numa porta: o mais que consegui foi enrijecer estes músculos, o que será um dia o meu cadáver, ou já é. Lia nos jornais as grandes descobertas, mas descobri que não me valiam de nada, nem a ninguém – era a mesma a condição humana, o vazio sobre a cabeça e sob os pés, e sobretudo dentro, dentro da alma. Um me dizia isto, o outro aquilo, mas já discutiam porque lhes faltava a certeza, daria na mesma se se postassem diante do espelho, a língua e o pênis de fora. O recitativo nunca foi o meu forte, nem a contemplação; hoje não recito nem a mim mesmo, e quanto a contemplações não tenho contemplação para com nenhuma delas, o homem é um homem e o girassol é um girassol. Posso ser um antecadáver, o abismo debaixo dos pés, mas recuso-me a ser enterrado em vida – e meu fogo-fátuo prefiro queimá-lo em meu próprio entretenimento, neste auto de fé de perplexidade em vez de gases. A princípio, diziam, era a amnésia, depois a esquizofrenia – tantas palavras belas para camuflar este vazio, esta cratera de suas bombas que se abriu dentro de minha consciência: um buraco, eis o nome. Puseramme uma medalha no peito, não sei se havia um Cristo nela, veio o arcebispo e disse algumas palavras em latim, 13


depois falou um vice já nem me lembro do quê, falou um outro, e ainda um outro – todos estavam eufóricos, havia música no ar, muitas bandeiras, alguns foguetes, um beijo estalou-me na face direita. Por dentro eu estava que era só vazio, nem era o momento de lembrar-me de coisa alguma, poderiam tomar-me por um traidor com medalha e tudo – alguém me tomava pelo braço e me levava: eu ia. Quando vi já estava chorando no meu canto, sem uma tristeza, chorando simplesmente, como se me derretesse ao sol – atrás de mim havia um muro, lembro-me bem. Todos me saudavam como um herói, conhecidos e desconhecidos, e eu era para mim mesmo um desconhecido – um desconhecido que chorava sobre o meu rosto, sem ao menos se cobrir com as mãos. Eu devera ter sido puro para chorar a esse ponto e sem um motivo ao menos, tão distante de tudo como o muro às minhas costas, a mesma fria insensibilidade, a mesma ausência de vísceras e nervos. Era mais um vômito, o estrebuchamento de uma consciência morta a golpes de baioneta, dados não recebidos, pressentidos mais que dados, algo cuja verdade me escapava e era a minha única verdade. Quando vi eu gritava bem alto: merda!, duas, três, vinte vezes, com toda a força dos meus pulmões, como um cachorro voltado para a lua, sem saber bem o que fazia – simplesmente pela necessidade de gritar, como poderia ter gritado deus ou qualquer outra palavra sem sentido. Desde então fiquei sozinho para sempre, com a nova consciência que me pregaram a martelo no peito, este fundo abismo sem fundo, frio frio frio, como um ressuscitado em verdade mais morto do que nunca, sem passado e sem futuro, enxergando as coisas por um binóculo, tão distante tudo, todos. Meu companheiro tem, quando menos, a virtude da discrição: não fora ele surdo-mudo. Chega, despe-se, 14


ajeita o travesseiro como se fosse morrer, e morre efetivamente. Que estranhos sonhos terá um surdo-mudo dormindo na escuridão, ou um cego, ou um louco, ou simplesmente um sujeito assim como eu – eis o que não prevê nenhuma metafísica! De mim sei que durmo exatamente como uma pedra, sem pavor de nenhuma espécie, sem paisagem ou rosto conhecidos, sem nada conhecido, tal como se me anestesiassem da cabeça aos pés: pena que não durma quando queira, e a todo instante, com um simples toque no umbigo ou no ânus. Só eu sei o que me custa dormir, a ginástica de encher cada noite este vazio que me vai até a ponta das unhas, e o vazio em torno, e todo o vazio do mundo. De desesperar! – não fosse eu um veterano. Na guerra deles eu dormia como uma criança, e não por cansaço, e muito menos por medo: apenas porque não lhes dava maior importância, ali estava por obrigação e não para ser eu mesmo – e havia o cheiro de terra que sempre nos torna um pouco como mortos, questão de atavismo talvez. Não fora uma monstruosidade, eis o remédio heroico para varrer toda e qualquer insônia da face da terra, desde a dos hospícios até a dos conventos e das prisões – e eu lhes proporia mesmo um slogan: Durma como um herói entre duas batalhas. Lembrem-se disso os fabricantes de canhões, e seus cúmplices, e os comerciantes de um modo geral, e todos os insones de um modo particular. Aristides é como se chama o meu surdo-mudo, e ele nem sabe como lhe soa o nome. Diz boa noite com a cabeça, ou bom dia, e é tudo: dará um excelente defunto. Às vezes assobia, o que é espantoso – música lá dele, sem nexo sem sexo, concreta, eletrônica, dodecafônica, nem sei. Se também é um herói nunca lhe perguntei, mesmo porque não obteria nenhuma resposta – o homem é um túmulo. Tenho comigo que há de ser excelente essa 15


surdo-mudez de nascença, ou de que espécie for, mesmo que seja postiça e apenas para que o deixem em paz: as perguntas nunca interessam, muito menos as respostas: só servem para nos desviar do nosso rumo, ainda quando procuremos apenas um endereço. Como está, está ótimo – antípodas a dois metros de distância, bom dia boa noite, um simples aceno da cabeça, Aristides por acaso, eu também por acaso, cada um com o seu umbigo e a sua morte, simples hóspedes provisórios de uma pensão provisória neste mundo provisório. Pode não ser um sábio mas é um sábio, eu poderia entrar em putrefação sem que ele ao menos atinasse com o fato, estou mais distante dele do que a última das galáxias. E assobia. A verdade é que devo dormir, já me diziam isto desde criança, quem me dizia não sei, até mesmo na guerra me diziam: parece que é um código de honra, qualquer coisa assim – seria o mesmo que me recusar a comer, a urinar, a descobrir-me diante do pavilhão nacional, diante de todos os pavilhões nacionais: coisa muito séria, haveria o pânico e o perigo de contaminação, um homem é um homem, uma lâmpada é uma lâmpada, e mesmo uma lâmpada há que apagá-la de quando em vez ou de vez em quando, daria muito na vista. O que eles não compreendem é que uma coisa é o estômago e outra é a consciência, ou se tem ou não se tem, não se apaga uma alma como se apaga um fósforo ou mesmo um incêndio, cada um sabe o que lhe vai por dentro, o resto é demagogia. O mais que posso fazer é apagar a luz, ou a lâmpada como eles dizem: ou então me deem duas batalhas para que eu possa enfim dormir entre elas, como um herói coberto de medalha e não de medo, o ânus voltado para a lua como manda o figurino.

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Aí entrou a questão dos lazeres. Um homem só, ou vira anarquista ou vira louco; louco não vira, já é – assim me explicaram. E mais: esqueça a primeira pessoa do singular, se preciso faça a barba fora de casa, compre um túmulo e mande gravar nele o seu nome, e o sobrenome, com retrato de criança e de adulto para evitar dúvidas, e coloque-o no ponto mais visível do cemitério – se possível em todos os cemitérios da redondeza, um em cada um, dois em cada um se o permitir a lei e mesmo que não o permita. Pode parecer um esbanjamento, mas são tantos os eus atrás de um simples eu que a medida se impõe, e mais se imporia se o governo não fosse tão obtuso, e os vizinhos, e a Igreja, e todos os que se contentam com um nome para definir o indefinível e o caos. Com esses estratagemas, e outros mais, a começar pela mudança do timbre da voz e do modo de andar ou recostar-se, trate de ver as coisas como se acabasse de chegar a uma terra estrangeira que simplesmente não figure em nenhum mapa, onde a sua presença tenha que permanecer incógnita como de fato ela é incógnita para você mesmo, sob risco de represálias e de torturas indescritíveis, a menor 17


delas a volta à própria consciência como aconteceu a Lázaro e que tornou o seu nome maldito. Isso dizia e redizia, a mão no meu ombro, o médico da família, o médico das famílias, como se estivesse diante de um cachorro ou de um retrato pintado a óleo – enquanto eu me fitava nas suas lentes e me enxergava duplo, e via-me quádruplo nas suas retinas. E os que morreram em mim na guerra, há que enterrá-los também ou deixarei que fiquem insepultos? – perguntei à guisa de esclarecimento, mas para meu espanto não obtive qualquer resposta, apenas um breve muxoxo. O homem tinha fama de sábio, não custava experimentar: nem me restava outro caminho, assim posto diante do espelho, de todos os espelhos, aquele vazio me espreitando como um convite ao salto mortal, o diploma de esquizofrênico no bolso junto com a medalha de ouro. Pisquei-lhe significativamente, a mão no seu ombro, todos se rejubilaram, meu pai, minha mãe, os cunhados, o gato da casa, o Cristo crucificado na parede. No dia seguinte, nem bem ainda era dia, saí pela porta e nunca mais voltei: desfizera-os de mim como num passe de mágica, os retratos e o espelho debaixo do braço para que só me pudessem reencontrar em sonho. Tempos depois, era numa quermesse, veio-me à mente a cara do imbecil. Eu estava bêbado, portanto lúcido, a balbúrdia ao redor tanto podia ser a China como um planeta desconhecido, meu umbigo se achava a uma distância infinita das minhas mãos, e eu nem sabia ao certo se minhas mãos eram pretas ou eram brancas, nem mesmo se eram as minhas mãos. Pois que seja!, decidi; se existe o hipnotismo, e a telepatia, e tudo mais que eles dizem, não custa arriscar essa fuga através do ânus 18


ou seja lá do que for, uma espécie assim de inspiração às avessas, expiração, expiação, o nome não interessa: o mais que me pode acontecer é eu fugir mesmo. Boa viagem! De súbito a música me invadiu como se até então eu nunca tivera ouvidos: um bombardino primeiro, de um tamanho descomunal, com o músico e a partitura e tudo – era como se se houvessem instalado no bojo do meu cérebro, sob uma concha acústica, para uma audição especial e exclusiva; depois a clarineta e o clarinetista, um pífaro suspenso no ar e cuja existência me passara inteiramente despercebida, os pratos e o tocador de pratos – e, numa avalanche, de cambulhada, o maestro com a sua batuta, um bombo e uma cornamusa, mil outros instrumentos conhecidos e desconhecidos, numa atroada de arrepiar os cabelos do sexo. Os músicos ainda lá estavam no coreto com os seus dólmãs vermelhos, mas eram apenas uns espectros que lá estavam; eu não conseguia ouvi-los à distância mas apenas dentro de mim – era como se de repente se houvessem transformado em mímicos e em fantoches, sem que ninguém nem eles mesmos dessem pela transformação. E as vozes! – a mesma coisa. À minha frente um casal sussurrava segredos, e os seus segredos quase me rebentavam os tímpanos; eu era quem lhes ditava as palavras necessárias como o ponto no teatro, e as suas minhas palavras voltavam a mim sob a forma de um eco – algo muito mais sério do que uma simples transmissão de pensamento porque era em verdade um único pensamento, uma só febre: eu me convertera nele e nela, poderia se quisesse obrigá-los a copular ali em público, o barulho da retreta abafaria os seus, os nossos gemidos. Emborquei outro copo de cerveja, e mais outro: meu 19


corpo nada tinha a ver com aquela sarabanda, era como se lançasse um balde d’água no fundo de um poço: eu planava sobre as mesas e as barracas como uma figura de Chagall, meus intestinos eram a praça e as bandeirolas, as lanternas de cor e os fogos de artifício. Há que implantar quanto antes a pena de morte, dizia o promotor – e com o joelho roçava a perna da mulher do prefeito, e este a da mulher do juiz, e este a da mulher do promotor. Três vezes setecentos e cinquenta: três vezes cinco quinze vai um, três vezes sete vinte e um... – e o vigário mentalmente ia calculando o lucro: esses cornos falam mais do que bebem: que tal mais um Lacryma Christi, meritíssimo? – Esse caso Chessman é um caso típico, ponderou grave o juiz, e quase ia esporrando: esta cadela não perde por esperar. E que pensa o senhor vigário, pode mandar vir outra garrafa, daquela história tenebrosa em que um idiota do marido, deixe a perna aí minha flor, em que o... mas que é mesmo que eu ia dizendo? Vejam só que memória, eu nem sei como ainda tenho cabeça para dar minhas sentenças – mas a senhora, dona Ifigênia, estou gostando de ver essas faces tão rosadas, devem ter sido os ares do campo – eu é que sei, sua sonsinha, com esse estupor de seu marido! Lá de cima eu me podia divisar à mesa, o ar aparvalhado de um defunto, e era bem o que era: para que aquele par de óculos? Positivamente o tipo do herói sem heroísmo, a cabeça sem um traço capaz de a distinguir do que quer que fosse, só faltava o rótulo da fábrica pregado no meio da testa; se aquilo era mesmo um nariz, não havia razão nenhuma para que continuasse respirando: bêbado ainda por cima! O tipo do sujeito a quem eu não procuraria para qualquer espécie de confidência, 20


nem mesmo para pedir um fósforo ou uma informação: dessas caras à primeira vista antipáticas, e também à segunda vista, e à terceira. Mais do que desprezível, insignificante – vazio para todos os efeitos, da cabeça aos pés, o começo de calvície mostrando o oco lá dentro, o cigarro apagado no canto da boca: seria mesmo espantoso que algo ainda pudesse luzir naquele abismo! Deveria ser obrigação do governo enterrar à força tais carcaças, é o mesmo que deixar de pé as ruínas de uma guerra, nem se compreende se possa ali viver, ou mesmo à sua sombra – e é ali que eu vivo! O leiloeiro apregoando as prendas: Leda e o cisne, A virgem e o divino, há para todos os gostos e mistérios – o velho Aparício cofiando a ponta da barba: adúlteras! A filha do dr. Vergal com uma verga entre as nádegas, essas crianças de hoje só pensam em fazer outras, de transviadas mesmo é que não têm nada, todos os caminhos levam a Roma e à fornicação, ou então me mostrem outro mapa. E aqui temos esta rica salva de prata – a voz do homem entre o escárnio do bombo e da clarineta, até parece um trecho de ópera-bufa: por que não anunciam logo preservativos e fuzis-metralhadoras, coisas de muito mais valia e lucro certo? – ou qualquer outra arma para matar o próximo enquanto não chega a outra guerra: no útero ou na esquina. Os fogos de artifício não impressionam a quem já os viu sem nenhum artifício, com tanto cogumelo atômico não é possível achar mais graça nestas pirotecnias, ou bem somos infantes como eles querem ou como gostaríamos de ser: decidam-se de uma vez. Há toda uma tragédia rugindo por entre as nuvens, e pedem que brinquemos de criança porque é o dia de Pentecostes; a esses pândegos 21


o que lhes interessa é fazer-nos confundir guignol com grand guignol, e eles mesmos os confundem – enquanto não nos damos por achados. Muito bela esta música, e sobretudo ensurdecedora, mas prefiro voltar à trincheira do meu corpo, a que eu mesmo cavei enquanto eles cavavam as suas, ombro a ombro comigo, sem suspeitarem de nada e sem que eu mesmo suspeitasse. Posso ali ser um cadáver, mas são eles que se putrefazem aqui fora, eles e as suas novenas, com este cheiro de incenso para disfarçar: os impolutos, e suas poluções. O doutorzinho e a sua lábia, merda para ele! Afinal, qual dos dois é o herói, o condecorado, o que tem mil consciências em vez de nenhuma, o que não cabe num só espelho nem em todos os espelhos do universo, porque pluriverso? Dizer as coisas com a mão no ombro é fácil, e repeti-las ainda mais fácil: – em pensamento aqui vai minha destra ou minha sinistra, nem é à toa que as chamo assim, até onde esteja a sua hombridade, a sua ombridade, para por minha vez dar-lhe um conselho de sabedoria, com a vantagem de ser como eu inteiramente gratuito: merda! merda! merda! merda! merda! merda! merda! merda!

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