GIORGIO
AGAMBEN A aventura
Tradução e notas Cláudio Oliveira
OUTROS LIVROS DA FILŌ FILŌ A alma e as formas Ensaios Georg Lukács
Meios sem fim Notas sobre a política Giorgio Agamben
Princípios da filosofia cartesiana e Pensamentos metafísicos Espinosa
Nudez Giorgio Agamben
A unidade do corpo e da mente Afetos, ações e paixões em Espinosa Chantal Jaquet
A aventura da filosofia francesa no século XX Alain Badiou
A potência do pensamento Ensaios e conferências Giorgio Agamben
Ciência, um Monstro Lições trentinas Paul K. Feyerabend
O tempo que resta Um comentário à Carta aos Romanos Giorgio Agamben
Do espírito geométrico e Da arte de persuadir E outros escritos de ciência, política e fé Blaise Pascal
FILŌBATAILLE
Em busca do real perdido Alain Badiou
O culpado Seguido de A aleluia Georges Bataille
A ideologia e a utopia Paul Ricœur
O erotismo Georges Bataille
Jacques, o sofista Lacan, logos e psicanálise Barbara Cassin
A experiência interior Seguida de Método de meditação e Postscriptum 1953 Georges Bataille
O primado da percepção e suas consequências filosóficas Maurice Merleau-Ponty
A literatura e o mal Georges Bataille
Relatar a si mesmo Crítica da violência ética Judith Butler
A parte maldita Precedida de A noção de dispêndio Georges Bataille
A sabedoria trágica Sobre o bom uso de Nietzsche Michel Onfray
Sobre Nietzsche: vontade de chance Seguido de Memorandum [...] Georges Bataille
Se Parmênides O tratado anônimo De Melisso Xenophane Gorgia Barbara Cassin A teoria dos incorporais no estoicismo antigo Émile Bréhier A união da alma e do corpo em Malebranche, Biran e Bergson Maurice Merleau-Ponty A vida psíquica do poder Teorias da sujeição Judith Butler Sobre a arte poética Aristóteles FILŌAGAMBEN
Teoria da religião Seguida de Esquema de uma história das religiões Georges Bataille FILŌBENJAMIN O anjo da história Walter Benjamin Baudelaire e a modernidade Walter Benjamin Estética e sociologia da arte Walter Benjamin Imagens de pensamento Sobre o haxixe e outras drogas Walter Benjamin
Bartleby, ou da contingência Giorgio Agamben seguido de Bartleby, o escrevente Herman Melville A comunidade que vem Giorgio Agamben
Origem do drama trágico alemão Walter Benjamin
Gosto Giorgio Agamben
Walter Benjamin Uma biografia Bernd Witte
O homem sem conteúdo Giorgio Agamben Ideia da prosa Giorgio Agamben Introdução a Giorgio Agamben Uma arqueologia da potência Edgardo Castro
Rua de mão única Infância berlinense: 1900 Walter Benjamin
FILŌESPINOSA Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar Espinosa Espinosa subversivo e outros escritos Antonio Negri
FILŌESTÉTICA O belo autônomo Textos clássicos de estética Rodrigo Duarte (Org.) O descredenciamento filosófico da arte Arthur C. Danto Do sublime ao trágico Friedrich Schiller Íon Platão Objetos trágicos, objetos estéticos Friedrich Schiller Pensar a imagem Emmanuel Alloa (Org.) FILŌMARGENS O amor impiedoso (ou: Sobre a crença) Slavoj Žižek Estilo e verdade em Jacques Lacan Gilson Iannini Interrogando o real Slavoj Žižek Introdução a Foucault Edgardo Castro Kaf ka Por uma literatura menor Gilles Deleuze Félix Guattari Lacan, o escrito, a imagem Jacques Aubert, François Cheng, Jean-Claude Milner, François Regnault, Gérard Wajcman O sofrimento de Deus Inversões do Apocalipse Boris Gunjevic Slavoj Žižek Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan Philippe Van Haute Tomas Geyskens ANTIFILŌ A Razão Pascal Quignard
FILOAGAMBEN
GIORGIO
AGAMBEN A aventura
Cláudio Oliveira Davi Pessoa
T R A D U Ç Ã O E N O TA S P O S FÁ C I O
Copyright © 2015 nottetempo srl Copyright © 2018 Autêntica Editora Título original: L’avventura Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. coordenador da coleção filô
editoras responsáveis
Gilson Iannini
Rejane Dias Cecília Martins
conselho editorial
Gilson Iannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris); Carla Rodrigues (UFJR); Cláudio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUCRio); Ernani Chaves (UFPA); Guilherme Castelo Branco (UFRJ); João Carlos Salles (UFBA); Monique David-Ménard (Paris); Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro Süssekind (UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas (UFOP); Slavoj Žižek (Liubliana); Vladimir Safatle (USP)
revisão
Samira Vilela capa
Alberto Bittencourt (sobre reprodução da gravura Nemesis [The Great Fortune], de Albrecht Dürer, c. 1501) diagramação
Larissa Carvalho Mazzoni
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Agamben, Giorgio A aventura / Giorgio Agamben ; tradução e notas Cláudio Oliveira. -- 1. ed. -Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2018. -- (Filô Agamben) Título original: L’avventura ISBN 978-85-513-0315-3 1. Filosofia italiana I. Oliveira, Cláudio. II. Título. III. Série. 17-11682 CDD-195 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia italiana 195
Belo Horizonte Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520 Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3465 4500
Rio de Janeiro Rua Debret, 23, sala 401 Centro . 20030-080 Rio de Janeiro . RJ Tel.: (55 21) 3179 1975
www.grupoautentica.com.br
São Paulo Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I 23º andar . Conj. 2310-2312 Cerqueira César . 01311-940 São Paulo . SP Tel.: (55 11) 3034 4468
7 Nota do tradutor Cláudio Oliveira A aventura 11 Demônio 25 Aventure 39 Eros 51 Evento 61 Elpis 65 Bibliografia Posfácio 69 Aventurar-se Davi Pessoa
Nota do tradutor Cláudio Oliveira
Seguimos, na presente tradução, o mesmo procedimento que adotamos em traduções anteriores da obra de Agamben no que diz respeito às citações de outros autores feitas pelo filósofo italiano. Preferimos traduzir as traduções que o próprio Agamben faz dos textos citados ou as traduções italianas que ele cita destes. Com isso visamos trabalhar com os termos que o autor utiliza para se referir a esses textos e autores, evitando assim introduzir elementos estranhos e mantendo o vocabulário que Agamben adota ao se referir a essas obras. Para contrabalançar essa decisão, no entanto, colocamos em notas de rodapé, sempre que possível, o texto original das citações bem como a referência bibliográfica das traduções brasileiras das obras citadas, quando elas existirem. Nas referências bibliográficas que se encontram ao final do livro também acrescentamos, junto às obras originais citadas e às traduções italianas correspondentes, as referências das traduções brasileiras dessas obras. Agradeço à Isabela Pinho o inestimável auxílio na localização das referências bibliográficas. Todas as notas de rodapé da presente edição são de responsabilidade do tradutor e foram marcadas com (N.T.). 7
A aventura
ďťż
9
10
FILÅŒAGAMBEN
Demônio1
Quem pode ter certeza, na subida até o éter, de que saberá dominar um veículo puxado pelos cinco: Daimon, Tyche, Eros, Ananche, Elpis? Aby Warburg
Nas Saturnais de Macróbio,2 um dos personagens que participam do banquete atribui aos Egípcios a crença No original, em italiano: Demone. Há, em italiano, tanto o termo demone quanto o termo demonio. O primeiro teria guardado mais a referência ao termo grego daímon, que Agamben visa aqui e, por isso, talvez o tenha preferido, ao passo que o termo italiano demonio guarda mais claramente uma associação com o diabo, o capeta, com uma praga, um flagelo, uma peste. Em português, temos apenas um termo derivado do étimo grego daímon: “demônio”, mas nele sentimos mais raramente a referência à experiência grega e mais frequentemente a referência à tradição cristã. Na ausência, no entanto, de uma variante do termo em nossa língua, mantivemos “demônio”, mas é preciso que o leitor tenha em mente que se trata sempre de uma referência ao daímon grego, como quando falamos do “demônio de Sócrates”. (N.T.) 2 Macróbio foi um escritor, filósofo e filólogo romano, nascido na Numídia, na África, por volta de 370 d.C. Sabe-se muito pouco sobre sua vida, mas suas obras, junto com as de Santo Agostinho e Cassiodoro, fizeram a transição entre o fim da antiguidade 1
11
de que, no nascimento de cada homem, presidem quatro divindades: Daimon, Tyche, Eros e Ananche (o Demônio, a Sorte, o Amor e a Necessidade). “Os egípcios ligam o significado do caduceu à geração dos homens, que se chama genesis, lembrando que quatro deuses assistem, como fiadores, ao nascimento de um homem: o Demônio, a Sorte, o Amor e a Necessidade. Acreditam que os primeiros dois sejam o sol e a lua, porque o sol – de onde provêm o espírito, o calor e a luz – é genitor e guardião da vida humana, e por isso é considerado Daimon, isto é, deus, daquele que nasce, ao passo que Tyche é a lua, porque esta é responsável pelos corpos que estão sujeitos às mudanças fortuitas. O Amor é simbolizado pelo beijo, a Necessidade por um nó” (Sat., 1, 19). A vida de cada homem deve pagar o seu tributo a essas quatro divindades, sem procurar evitá-las ou enganá-las. A Daimon, porque lhe deve o seu próprio caráter e a sua própria natureza; a Eros, porque dele dependem a fecundidade e o conhecimento; a Tyche e a Anache, porque a arte de viver consiste também em curvar-se, na justa medida, àquilo de que não se pode, em nenhum caso, escapar. O modo como cada um se mantém em relação com essas potências define a sua ética. Em 1817, Goethe se deparou por acaso com a passagem de Macróbio enquanto lia o estudo do filólogo dinamarquês Georg Zoëga sobre Tyche e Nemesis. greco-romana e o mundo medieval latino. Não consta tradução das Saturnais para o português. Há, no entanto, duas traduções da obra para o espanhol: Macrobio, Saturnales. Trad. Fernando Navarro Antolín. Madrid: Gredos, 2010; Macrobio, Saturnales. Trad. Juan Francisco Mesa Sanz. Madrid: Akal Ediciones, 2009. (N.T.) 12
FILŌAGAMBEN
Em outubro do mesmo ano, ele compõe Urworte, as “Palavras originárias”, em que, refletindo sobre a sua vida – tem então sessenta e oito anos –, tenta pagar, a seu modo, o seu próprio débito com as divindades de Macróbio, às quais acrescenta, como quinta, Elpis, a Esperança. Nada além dessas cinco pequenas estrofes “órficas”3 (Urworte. Orphisch Eis o texto, em alemão, das cinco estrofes órficas: ΔΑΙΜΩΝ, Dämon Wie an dem Tag, der dich der Welt verliehen, Die Sonne stand zum Gruße der Planeten, Bist alsobald und fort und fort gediehen Nach dem Gesetz, wonach du angetreten. So mußt du sein, dir kannst du nicht entfliehen, So sagten schon Sibyllen, so Propheten; Und keine Zeit und keine Macht zerstückelt Geprägte Form, die lebend sich entwickelt. 3
ΤΥΧΗ, Das Zufällige Die strenge Grenze doch umgeht gefällig Ein Wandelndes, das mit und um uns wandelt; Nicht einsam bleibst du, bildest dich gesellig Und handelst wohl so, wie ein andrer handelt: Im Leben ist’s bald hin–, bald widerfällig, Es ist ein Tand und wird so durchgetandelt. Schon hat sich still der Jahre Kreis geründet, Die Lampe harrt der Flamme, die entzündet.
ΕΡΩΣ, Liebe Die bleibt nicht aus! – Er stürzt vom Himmel nieder, Wohin er sich aus alter Öde schwang, Er schwebt heran auf luftigem Gefieder Um Stirn und Brust den Frühlingstag entlang, Scheint jetzt zu fliehn, vom Fliehen kehrt er wieder, Da wird ein Wohl im Weh, so süß und bang. Gar manches Herz verschwebt im Allgemeinen, Doch widmet sich das edelste dem Einen.
ΑΝΑΓΚΗ, Nötigung Da ist’s denn wieder, wie die Sterne wollten: Demônio
13
é o título completo)4 e dos breves comentários em prosa que as acompanham trai a superstição à qual Goethe consagrou a sua vida: o culto do demônio. Alguns anos antes, em uma célebre passagem de Poesia e verdade,5 ele já tinha descrito a sua ambígua relação com essa potência inconcebível: “Ele acreditou que descobria na
Bedingung und Gesetz; und aller Wille Ist nur ein Wollen, weil wir eben sollten, Und vor dem Willen schweigt die Willkür stille; Das Liebste wird vom Herzen weggescholten, Dem harten Muß bequemt sich Will und Grille. So sind wir scheinfrei denn, nach manchen Jahren Nur enger dran, als wir am Anfang waren.
ΕΛΠΙΣ, Hoffnung Doch solcher Grenze, solcher eh’rnen Mauer Höchst widerwärt’ge Pforte wird entriegelt, Sie stehe nur mit alter Felsendauer! Ein Wesen regt sich leicht und ungezügelt: Aus Wolkendecke, Nebel, Regenschauer Erhebt sie uns, mit ihr, durch sie beflügelt; Ihr kennt sie wohl, sie schwärmt durch alle Zonen; Ein Flügelschlag – und hinter uns Äonen. (N.T) 4 Cf. a respeito, a seguinte nota em BENJAMIN, W. Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009 (Coleção Espírito Crítico), p. 49: “Urworte. Orphisch: ciclo de oitavas escritas nos dias 7 e 8 de outubro de 1817. A redação dos poemas foi ensejada por uma controvérsia contemporânea sobre a mitologia primordial e remonta a ‘palavras sagradas’ (hieroi logoi, que Goethe traduz como ‘palavras primordiais’) apresentadas na literatura órfica – conceitos não personificados para as potências que regem a vida humana: Daimon, Tyche (acaso), Eros, Ananke (necessidade) e Elpis (esperança)”. 5 Ed. bras.: GOETHE, J. W. Memórias: poesia e verdade. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1971. 2 v. Consta ainda uma edição mais antiga, feita a partir da tradução francesa: Memórias. Trad. de acordo com a versão francesa da Baronesa A. de Carlowitz. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1948. 2 v. O v. 1 é traduzido por Lúcio Cardoso e o v. 2 por Osório Borba. (N.T.)
14
FILŌAGAMBEN
natureza, vivente e morta, animada e inanimada, algo que se manifestava somente em contradição e não podia ser apreendido por nenhum conceito, e ainda menos por uma palavra. Não era divino, porque parecia irracional; não era humano, pois era privado de inteligência; não era diabólico, pois era benéfico; não era angélico, porque revelava frequentemente algo de maligno. Assemelhavase ao acaso, pois não mostrava nenhuma coerência; assemelhava-se à providência, porque fazia alusão a uma conexão. Tudo o que nos limita lhe parecia penetrável; parecia governar, a seu arbítrio, os elementos necessários da nossa existência; abreviava o tempo e ampliava o espaço. Parecia comprazer-se apenas com o impossível e afastar de si, com desprezo, o possível. A este ser, que parecia misturar-se a todos os outros, dei o nome de demônico,6 segundo o exemplo dos antigos e daqueles que tinham percebido algo de semelhante. Tentei me salvar desse ser temível”.7 Uma leitura apenas um pouco mais atenta das Palavras mostra que a devoção, que na autobiografia era expressa com alguma reserva, aqui está organizada em um No original, em italiano: demonico. Assim como há, em italiano, demone e demonio, há também, respectivamente, demonico e demoniaco, como adjetivos derivados daqueles substantivos. Agamben, aqui como em outras obras suas em que trata do tema (cf. A comunidade que vem e A potência do pensamento), utiliza sempre a primeira forma, demonico, e jamais a segunda, demoniaco. Assim como demone, demonico deve ser entendido, como o substantivo do qual deriva, a partir de sua referência ao daímon grego. (N.T.) 7 GOETHE, J. W. Memórias: Poesia e verdade. 2 v. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Editora Globo, 1971, v. 2, p. 598, livro XX. (N.T.) 6
Demônio
15
tipo de Credo, para o qual conf luem astrologia e ciência. Pois o que para o poeta estava em questão no demônio era a tentativa de construir, como um destino, o nexo entre a sua vida e a sua obra. O Daimon, que abre a lista, não é mais, de fato, um ser inconcebível e contraditório, mas, como testemunha a inserção das estrofes no contexto dos escritos sobre a Metamorfose das plantas,8 tornou-se uma potência cósmica e um tipo de lei da natureza: Como no dia em que ao mundo foste dado o sol estava saudando os planetas, assim imediatamente tu avançaste seguindo a lei, segundo a qual tinhas aparecido. Assim deves ser, não podes fugir de ti mesmo, assim disseram Sibilas e os profetas. E não há tempo nem poder que destrua uma forma plasmada que vivendo desenvolve-se.9
“O demônio”, acrescenta com força o comentário em prosa,10 “significa a individualidade necessária e li Ed. bras.: GOETHE, J. W. A metamorfose das plantas. 4. ed. São Paulo: Editora Antroposófica, 2005. (N.T.) 9 Cf. GOETHE, J. W. Palavras-mães: poema órfico. In: Poemas. Trad. Paulo Quintela. Coimbra: Editora Acta Universitatis Conimbrigensis, 1957 (2. ed.), p. 229. No original, em alemão: Wie an dem Tag, der dich der Welt verliehen, Die Sonne stand zum Gruße der Planeten, Bist alsobald und fort und fort gediehen, Nach dem Gesetz, wonach du angetreten. So mußt du sein, dir kannst du nicht entfliehen, So sagten schon Sibyllen, so Propheten; Und keine Zeit und keine Macht zerstückelt Geprägte Form, die lebend sich entwickelt. Goethe, Urworte, Orphisch. (N.T.) 10 Como essas citações estão sem referência bibliográfica na edição original italiana, provavelmente o “comentário em prosa” ao qual 8
16
FILŌAGAMBEN
mitada, expressa imediatamente no momento do nascimento [...], a força inata e a propriedade que determina, mais do que qualquer outra coisa, o destino do homem”. E assim como, na autobiografia, o acaso não era senão um aspecto do demônio, do mesmo modo, agora, a palavra órfica que segue – Tyche, o Fortuito [das Zufällige] – é apenas o elemento mutável que, sobretudo entre os jovens, acompanha e distrai, “com as suas inclinações e os seus jogos”, o demônio, o qual consegue, a cada vez, conservar-se através deles. Reunindo, em um destino pessoal, o demônio e o acaso, Goethe deu expressão à sua crença mais secreta. Mais complicado é pagar a conta com Eros. Pois, com relação a esse terceiro nome, Goethe certamente não podia ignorar o fato de ter ficado inadimplente. A “indecisão erótica” e a “omissão”, que Benjamin lhe reprovava no artigo para a Enciclopédia Soviética11 e no Agamben se refere está em Poesia e verdade. Na edição brasileira, os comentários sobre o demoníaco encontram-se na parte IV, cap. 20, do volume 2 de GOETHE, J. W. Memórias: Poesia e verdade. 2 v. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Editora Globo, 1971. 11 O ensaio “Goethe” foi escrito entre 1926 e 1928 como verbete para a Grande Enciclopédia Soviética, mas apenas uma mínima parte foi publicada. A versão alemã editada pode ser encontrada atualmente no v. II/2 dos Gesammelte Schriften de Walter Benjamin (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 705-739). Em português, há duas traduções desse ensaio: a primeira encontra-se em BENJAMIN, W. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Organização e apresentação de Willi Bolle. São Paulo: Edusp/Cultrix, 1986; a outra foi feita por Irene Aron e Sidney Camargo e pode ser encontrada em BENJAMIN, W. Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2009 (Coleção Espírito Crítico). (N.T.) Demônio
17
ensaio sobre as Afinidades eletivas,12 eram, na realidade, uma renúncia a levar até o fim uma relação amorosa. É significativo que a única relação que ele não interrompeu tenha sido aquela com Christiane Vulpius, a operária de uma fábrica de f lores artificiais com quem tinha tido um filho e com quem, depois de quinze anos, decidiu se casar, precisamente porque a irreparável diferença social que os separava lhe impedia de ver no matrimônio qualquer outra coisa além de um ressarcimento devido à mãe do seu único filho. Não espanta, portanto, que Eros apareça nas Palavras órficas em uma luz decididamente desfavorável. Pois, no amor – assim explica o comentário em prosa13 –, o demônio individual se deixa enredar pela “Tyche tentadora” e, “embora pareça obedecer apenas a si mesmo e deixar o campo livre para a sua vontade”, na verdade se submete a “causalidades e elementos estranhos que o afastam do seu caminho: acredita que captura e na verdade se aprisiona; acredita que vence e é derrotado”. Na última e obscura divindade de Macróbio, Ananche, a Necessidade, Goethe não vê outra coisa senão o poder que, contra os desvios de Tyche e de Eros, reata “As afinidades eletivas de Goethe” (Goethes Wahlverwandtschaften) foi publicado em duas partes (em 1924 e em 1925) na revista Neue Deutsche Beiträge, editada por Hugo von Hofmannsthal. O texto, atualmente, pode ser encontrado no v. I/1 dos Gesammelte Schriften de Walter Benjamin (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 123-201). A versão em português, feita por Mônica Krausz Bornebusch e revista por Marcus Vinicius Mazzari, pode ser encontrada também em BENJAMIN, W. Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009 (Coleção Espírito Crítico). (N.T.) 13 Cf. nota 10. 12
18
FILŌAGAMBEN
mais estreitamente a ligação destinal entre o indivíduo e o seu demônio. Ela designa, nesse sentido, a mesma força astral da “lei” [Gesetz] que já definia o demônio na primeira estrofe: Agora é de novo como quiseram as estrelas: condição e lei; toda vontade é apenas um querer, porque assim devemos, e diante do querer, o arbítrio se cala; a coisa mais amada é escorraçada do coração, ao duro “devo” se dobram vontade e capricho. Assim nós somos, depois de muitos anos, livres [em aparência apenas mais constrangidos do que éramos no início.14
Nas Palavras órficas, Goethe pagou de fato o seu tributo somente a uma divindade: o Daimon. Essa escolha esclarece também a estratégia que guiou o poeta: inscrevendo a sua própria existência em uma constelação demônica, ele entendia subtraí-la de qualquer julgamento ético. As Palavras órficas selam assim a declaração de irresponsabilidade que o poeta de trinta anos tinha professado
Cf. GOETHE, J. W. Palavras-mães: poema órfico. In: Poemas. Trad. Paulo Quintela. Coimbra: Editora Acta Universitatis Conimbrigensis, 1957 (2. ed.), p. 231. No original, em alemão: Da ist’s denn wieder, wie die Sterne wollten: Bedingung und Gesetz; und aller Wille Ist nur ein Wollen, weil wir eben sollten, Und vor dem Willen schweigt die Willkür stille; Das Liebste wird vom Herzen weggescholten, Dem harten Muß bequemt sich Will und Grille. So sind wir scheinfrei denn nach manchen Jahren Nur enger dran, als wir am Anfang waren. (N.T.) 14
Demônio
19
www.autenticaeditora.com.br www.twitter.com/autentica_ed www.facebook.com/editora.autentica