CH A M A R I L E NA C H AU I
Em defesa da educação pública, gratuita e democrática
E S C R I T O S DE M A R I L E N A C H AU I
Volume 6
Homero Santiago ORG.
MARILENA CHAUI
Em defesa da educação pública, gratuita e democrática
ES C R IT OS D E M A R IL E N A C HAU I
Volume 6 organização
Homero Santiago
Copyright © 2018 Marilena Chaui Copyright © 2018 Homero Santiago Copyright © 2018 Autêntica Editora Todos os esforços foram feitos no sentido de encontrar os detentores dos direitos autorais das obras que constam deste livro. Pedimos desculpas por eventuais omissões involuntárias e nos comprometemos a inserir os devidos créditos e corrigir possíveis falhas em edições subsequentes. Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. organizadores da coleção escritos de marilena chaui
André Rocha Ericka Marie Itokazu Homero Santiago
capa
Alberto Bittencourt projeto gráfico
Conrado Esteves
editoras responsáveis
diagramação
Rejane Dias Cecília Martins
Waldênia Alvarenga
revisão
Carla Neves Carolina Lins Lúcia Assumpção Samira Vilela
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Chaui, Marilena Em defesa da educação pública, gratuita e democrática / Marilena Chaui ; organização de Homero Santiago. -- 1. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2018. -- (Escritos de Marilena Chaui) ISBN 978-85-513-0428-0 1. Democracia 2. Democracia na educação 3. Educação pública 4. Educação - Filosofia 5. Filosofia política 6. Prática de ensino I. Santiago, Homero. II. Título. III. Série. 18-20126 CDD-370.115 Índices para catálogo sistemático: 1. Educação e democracia 370.115 Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014
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Apresentação
Homero Santiago
Em poucos campos da vida social os anseios humanos se revelam com tanta força como no campo da educação. Ali, as incessantes escolhas são sempre significativas. É lá que, em relação direta com os seus membros mais jovens, o social investe sua autorrepresentação presente, forja uma imagem do próprio passado e projeta-se na construção (ou “contingenciamento”, conforme o caso e para usar um vocábulo da moda) de um futuro. Por isso a educação, em seu sentido forte, jamais se reduz a um assunto puramente técnico da alçada de especialistas (ou pedagogos, os burocratas, ou coisa pior), nem pode ser tratada à guisa de questão meramente individual ou familiar (como se os pais tivessem a última palavra). O campo da educação é eminentemente social, ponto de tenso entrecruzamento de variadas perspectivas, atravessado pelas disputas em torno do que a sociedade é, foi e poderá ser (o que espera das próximas gerações) sob a mediação de um entendimento acerca do saber e da própria cultura que ela produz. Bem considerado esse aspecto determinante de tudo quanto se refere à educação, ressalta de imediato a importância da multifacetada meditação sobre o assunto levada a cabo por Marilena Chaui no correr de décadas e aqui pela primeira vez oferecida aos leitores em toda a sua extensão. A ideia de um volume sobre esse assunto ocorreu aos organizadores desta coleção tão logo ela foi concebida, ainda que à altura não se tivesse clara noção de sua magnitude – a qual, cabe dizer, impressionou a nós e à própria autora – nem de sua particularidade maior: constituir a prolongada e fecunda meditação de uma educadora. 9
“Sempre me vi como professora”, afirma Marilena num dos relatos deste livro (“Trajetória na filosofia”). E realmente é assim que ela continua preferindo apresentar-se e ser apresentada: professora de filosofia; salientando a primazia da ocupação a que se dedica desde meados dos anos 1960, quando iniciou a docência no Colégio Estadual Prof. Alberto Levy, e logo em seguida no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Foi em estreitíssima conexão com essa atividade que se foram produzindo os escritos aqui publicados, à maneira de reflexão sobre o próprio afazer, tentativas de superação de seus impasses, combates por sua dignidade e vislumbres de suas possibilidades. Nos textos que se seguem, a autora não faz o papel de filósofa que quer dar modelos educacionais ou armar teorias do aprendizado; descobrimos, pelo contrário, a professora e pensadora, a educadora (no sentido superior da palavra presente em “O que é ser educador hoje?”) que, tateando o ponto obscuro em que a vida e o conceito se enlaçam, logra conciliar o vigor da experiência própria à profundidade teórica e soldá-lo pelo empenho político a serviço da educação, uma educação essencialmente vinculada à democracia. Tendo se formado a autora sob o autoritarismo, o imperativo primeiro dessa reflexão foi o da resistência: “Onde você percebesse que estava se instalando uma relação hierárquica, uma relação de poder e uma relação de autoridade, você era sensível para perceber isso e não deixava acontecer. Nem na sala de aula, nem na defesa de tese, nem na orientação de alunos” (“Entrevista a Caros Amigos”, A ideologia da competência, vol. 3 desta coleção). Nem tampouco, acrescentemos, na estipulação daquilo que os jovens devem aprender e daquilo que lhes é cerceado. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, Marilena travou uma batalha incansável contra os efeitos nefastos da “reforma do ensino” ditatorial no currículo, como a supressão da disciplina filosofia, a obrigatoriedade da educação moral e cívica, o ensino profissionalizante redutor, e outros. Em contraposição ao rebaixamento interesseiro das funções da educação e da cultura concebidas apenas como transmissão de informações e adestramento para o mundo do trabalho, invoca Marilena uma noção maior de formação, que para ela situa-se no âmago mesmo da educação e atinge seu grau mais alto quando, para alunos e para professores, toma a forma de algo “que exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal maneira que nos tornamos 10
capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experimentado como questão, pergunta, problema, dificuldade” (“A universidade pública sob nova perspectiva”). Esse conceito de formação desdobra-se numa prática docente específica, certa relação pedagógica que a professora Marilena Chaui, percebemos ao ler seus textos, continuamente empenhou-se em criar e manter com seus alunos. A paciência em assistir aos seminários e corrigir minuciosamente os trabalhos, o que longe de indicar uma atitude materna é sinal da compreensão de que ensinar é uma ação política; a preocupação em elaborar livros didáticos para o ensino médio numa época em que a filosofia dele se ausentava quase completamente, na medida em que os considerava “atos políticos”; uma aguda reflexão sobre a relação aluno-professor, que para ela deve fugir aos extremos igualmente perversos da supressão ilusória da assimetria ou de seu enrijecimento autoritário, de modo a franquear ao estudante um diálogo com o saber, como se exprime perfeitamente na imagem merleau-pontyana amiúde invocada: “O mau professor de natação faz duas coisas: primeiro, se joga sozinho na água e diz aos alunos ‘façam como eu’, depois ensina os alunos a nadar na areia, como se areia e água fossem o mesmo; ao contrário, o bom professor de natação é aquele que se joga na água com os alunos e lhes diz ‘façam comigo’, porque a relação não é dos alunos com o professor, mas com a água” (“Filosofia, política e educação”). Se uma das linhas mestras da meditação de Marilena sobre a educação é o combate ao autoritarismo presente em nosso sistema de ensino (ora mais visível, como na ditadura, ora menos visível, como hoje), a ponto de possibilitar a contínua reprodução das estruturas do que a autora identifica como a “sociedade autoritária” brasileira; a outra linha é o reverso positivo da primeira, ou seja, a diligência em conceber o nexo profundo entre educação e democracia, desde os meandros recônditos da atividade docente. Com efeito, as tentativas de estabelecer uma relação pedagógica antiautoritária devem culminar precisamente no que a autora denomina “pedagogia democrática” ou “relação pedagógica democrática”, preparando o caminho para a questão maior da construção de uma sociedade democrática, já que nada impede que as possibilidades de transformação do presente sejam tão atuantes no ato de educar quanto os mecanismos de reprodução do passado. 11
Aos que continuam insistindo, a reboque dos burocratas de ontem mas com argumentos novos tirados da ordem do dia, que a educação pouco tem a ver com democracia, desde a perspectiva deste volume poder-se-ia responder que, de fato, não tem; se se toma por parâmetro a educação existente, plasmada no interior da sociedade autoritária brasileira e cujo objetivo seria, para uns, inculcar a moral e o civismo na cabeça dos jovens ou então, para outros, preparar o insumo humano de que as empresas necessitam, esta educação realmente pouco tem a ver com democracia. Como, esperamos, o leitor de boa vontade se convencerá ao ler os textos de Marilena, a relação entre educação e democracia, pedra de toque última dessa meditação, é algo que nos cobra, acima de tudo, reinvenção do velho e criação do novo. A concepção teórica e a efetivação prática de uma nova educação que seja, desde suas bases, democrática, e sustente a democracia porque efeito direto da própria vida democrática. No momento em que mais uma “reforma do ensino” desponta no horizonte e nos aflige a todos com seus desmandos, a aliança dessas duas diretrizes da meditação e do percurso de Marilena no campo da educação – a recusa do autoritarismo e a construção da democracia – serão de grande valor; para nos contar das agruras do passado, mas também para despertar-nos para os becos de um presente que mais e mais parece exigir de nós uma virtude particular capaz de desdobrar-se na firmeza da resistência e na coragem da criação. Como dito ao início, o campo da educação é central; lá decidimos quem somos, quem fomos e, sobretudo, quem esperamos ser, ou antes, como esperamos ser lembrados no futuro. Para ressaltar mais uma peculiaridade da educação, em nenhum outro campo da vida social nossas lutas presentes tão imediatamente determinam o futuro; em tudo que se refere à educação, as creches, o ensino básico, o médio, o universitário, aí se combate e se trabalha, não só mas principalmente, pelas novas gerações. Esperamos que isso tudo possa aclarar o título escolhido para este volume. A combinação de um polêmico em defesa, que dá o tom de urgência e combate comum a tantos textos (“Em defesa da escola normal”, “Unesp-Assis, urgente”, etc.), combina-se a uma tríade que, embora para alguns banalizada, ainda é capaz de resumir um ponto de partida mínimo, inegociável e promissor que anima todos estes textos e ganha expressão precisa num artigo de periódico que nos inspirou, 12
por demonstrar com felicidade o contínuo entre a circunstância de um movimento reivindicatório e a concepção da política democrática, tão cara a Marilena, como instituição de direitos: professores universitários grevistas deixam claro “que não lutam apenas por salários, mas pela existência de condições materiais e políticas para o ensino, a pesquisa e o atendimento à população. Lutam por uma universidade pública, gratuita e democrática. Pública: não submetida a imperativos empresariais. Gratuita: não submetida a discriminações socioeconômicas. Democrática: que garanta não só o direito de acesso à educação, mas também de criação científico-cultural e sobretudo que garanta aos universitários formas de representação, de participação e de intervenção nas políticas educacionais-culturais, o acesso aos orçamentos e à distribuição das verbas e à definição das prioridades didáticas, de pesquisa e de serviços à população” (“Universidade pública, urgente”). Recolhemos aqui a maior parte dos escritos de Marilena Chaui dedicados ao tema da educação, em sentido amplo: memórias da aluna e da professora, reflexões sobre o ensinar e o aprender, análises teóricas, intervenções públicas, propostas etc. Ficaram de fora apenas alguns poucos textos bastante pontuais, em geral preparados para participação em mesas de discussão e cujo estado de redação exigiria uma verdadeira escrita; igualmente, a fim de não sobrecarregar inutilmente o livro, deixamos de fora os textos reunidos e publicados em 2001 pela Editora da Unesp sob o título Escritos sobre a universidade e que continuam disponíveis ao leitor, além de que dois deles (“Ventos do progresso: a universidade administrada” e “Ideologia neoliberal e universidade”) foram já republicados no volume A ideologia da competência, desta coleção. O conjunto foi dividido em quatro partes e, no interior de cada uma, a sequência é cronológica, conforme a data de sua primeira apresentação, ou oral ou impressa, à exceção da primeira parte, em que se privilegiou a cronologia do percurso da autora em sua formação e em suas atividades docentes (assim, por exemplo, uma recordação da formação colegial vem antes de um texto sobre a experiência universitária). Na primeira parte, buscamos reconstituir o percurso da autora por meio de textos capazes de introduzir o leitor em sua experiência de aluna e de professora, a qual será a base de toda a sua reflexão sobre o tema da educação. 13
Na segunda, aparecem trabalhos de envergadura mais teórica que, geralmente a partir da crítica do autoritarismo brasileiro (tanto o ditatorial quanto o de nosso dia a dia) e da consideração das transformações do capitalismo recente, vão além desse quadro e esforçam-se em estabelecer a relação entre educação e democracia. Na terceira, reúnem-se textos de intervenção em debates e vários artigos e entrevistas que constituem um retrato da educação brasileira nas últimas décadas feito por alguém que jamais deixa de conectar as mazelas da escola às vicissitudes do poder, seja econômico, seja político, e pensar as possibilidades de resistência e invenção. A quarta parte, finalmente, reserva-se aos textos que tocam diretamente o ensino de filosofia; destacam-se aí, de um lado, a problemática da supressão do ensino de filosofia pela ditadura militar e a longa luta por sua retomada; de outro, a insistência da autora em conceber a filosofia (e por extensão o seu ensino) como um modo de vida. Quanto à preparação do material, cabem dois esclarecimentos. Optamos por não suprimir inteiramente as repetições entre alguns textos. Dada a autonomia com que foram concebidos e publicados, pareceu-nos bom manter-lhes assim, dentro do espírito de uma coleção que se propõe republicar mais que oferecer inéditos; com efeito, a supressão de passagens, exemplos e argumentos que aparecem mais de uma vez e o consequente rearranjo de páginas implicariam uma reescrita do conjunto, o que produziria um material quase inteiramente novo. Em segundo lugar, em se tratando de textos que não raro nasceram colados à conjuntura e que contêm inúmeras menções que não são triviais, em especial aos mais jovens (siglas, antigas designações da escola brasileira etc.), pensamos apropriada a inclusão de um glossário final que, evitando a multiplicação dos rodapés explicativos, elucide alguma daquelas menções, ao menos as mais recorrentes, e forneça a correspondência entre a antiga nomenclatura das séries de ensino (em particular a estabelecida na lei n.º 5692 de 11 de agosto de 1971, que dá o quadro de referência da autora) e a atual. Para concluir, permita-me o leitor três notas de agradecimento: O trabalho seria impossível sem os serviços prestados à memória pelas bibliotecas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Faculdade de Educação e do Instituto de Estudos Brasileiros, todos da Universidade de São Paulo, bem como pelo Departamento de Filosofia 14
da mesma universidade. É imperativo desmentir a ideia de que a vida “cabeu” totalmente na internet e nesta “tem tudo”. A maior parte do que está aqui não se encontra na rede, e só chega às mãos do leitor após o exercício de velhas práticas como o demorado folhear de jornais e revistas. Mister é dizê-lo, pois nestes tempos bicudos tem muita gente (dos ingênuos aos mal-intencionados) que pensa que boas bibliotecas são um detalhe. Oxalá o bonito texto “Biblioteca”, de Marilena, convença-lhes do contrário. Sou grande devedor do colega e amigo Fernando Bonadia de Oliveira, pedagogo, filósofo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. É excelente conhecedor dos aspectos burocráticos da educação brasileira (legislação, organização escolar etc.) e goza do dom verdadeiramente incomum de apreciar o assunto e combiná-lo à inteligência, a ponto de não somente conseguir ajudar um leigo como tornar interessantes as questões administrativas mais ásperas, sabendo delas partir para a análise dos rumos da educação nacional bem como suas implicações filosófico-pedagógicas. Por fim, embora seja descabido dedicar um conjunto de textos alheios a um terceiro, gostaria de recordar aqui o nome de Eduardo Amaral, amigo de quase três décadas que é professor de filosofia e apaixonado por todas as questões relativas à educação. Foi ele quem me persuadiu, ainda na primeira metade dos anos 1990, que era imprescindível ler os textos de Marilena sobre universidade e educação; e não apenas refletir sobre a trajetória dela como, quanto possível, retomar-lhe em sala de aula o exemplo. Até onde consigo lobrigar no emaranhado das possibilidades, estou seguro em dizer que sem ele este volume jamais existiria. Por isso afetuosamente lhe dedico o trabalho, ao menos a parte que neste me toca, pois educar também é um admirável modo de vida.
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