O que te faz mais forte

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tradução de

Antonio Carlos Vilela


Copyright © 2014 JB Liege, LCC Copyright © 2017 Editora Nemo/Vestígio

Título original: Stronger

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editor responsável

revisão

Arnaud Vin

Tiago Garcias

editor assistente

capa

Eduardo Soares

Diogo Droschi (sobre cartaz de Paris Filmes)

assistente editorial

Jim Anotsu

diagramação

Larissa Carvalho Mazzoni

preparação de texto

Eduardo Soares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Bauman, Jeff O que te faz mais forte / Jeff Bauman ; tradução Antonio Carlos Vilela. -- 1. ed. -- São Paulo : Vestígio, 2017. Título original: Stronger ISBN 978-85-8286-422-7 1. Bauman, Jeff 2. Maratona - Massachusetts - Boston - Biografia 3. Reabilitação 4. Memórias autobiográficas 5. Vítimas de terrorismo Massachusetts - Boston - Biografia I. Título. 17-07203

CDD-920

Índices para catálogo sistemático: 1. Autobiografia : memórias 920

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Para mamĂŁe e papai



A BOMBA * * *

15 de abril de 2013



Eu sei exatamente quando minha vida mudou: foi quando olhei para o rosto de Tamerlan Tsarnaev. Eram 14h48, 15 de abril de 2013 – um minuto antes do maior atentado terrorista dentro dos Estados Unidos desde o 11 de Setembro –, e ele estava parado bem ao meu lado. Estávamos a meio quarteirão da linha de chegada da Maratona de Boston, duas pessoas em uma multidão de meio milhão. A maratona era o evento característico do Dia do Patriota, feriado especial em Boston que homenageia a cavalgada de Paul Revere e os milicianos locais que lutaram a primeira batalha da Revolução Americana, em 19 de abril de 1775. O Dia do Patriota também era o início não oficial da primavera, em uma cidade conhecida por seus invernos rigorosos, de modo que meia cidade tinha tirado o dia de folga, e todo mundo queria estar ao ar livre. Como manda a tradição, um jogo do Red Sox tinha começado às 11 horas, coincidindo com o último grupo a largar na maratona. Às 14h30, torcedores de beisebol vinham do estádio pela Yawkey Way, desaguando na Rua Boylston e inchando o público da maratona. Eu tinha chegado meia hora antes, com minhas amigas Remy e Michele, para torcer pela minha namorada, Erin Hurley. Já naquela hora as calçadas estavam abarrotadas, e os restaurante e bares, cheios de gente com camisetas de Boston e uniformes do Red Sox. Os melhores corredores, que se classificaram para o primeiro pelotão de largada, tinham terminado de correr horas antes, mas os outros corredores continuavam chegando, e a multidão não parava de crescer. 9


A maioria dessas pessoas, incluindo Erin, corria para apoiar uma causa filantrópica. Eram os corredores comuns, que mereciam e precisavam do nosso apoio. Por toda parte, as pessoas aplaudiam, davam vivas, gritavam para que os corredores continuassem; a linha de chegada estava próxima, eles estavam quase lá. Foi então que notei Tsarnaev. Eu não sei como ele foi parar do meu lado. Só me lembro de olhar por cima do meu ombro direito e vê-lo. Estava perto de mim, talvez a uns trinta centímetros, e havia algo de estranho nele. Tsarnaev usava óculos de sol e um boné de beisebol branco, com a aba cobrindo seu rosto, e vestia um casaco com capuz que parecia pesado demais, mesmo para um dia frio. O que mais me chamou a atenção, contudo, foi o comportamento dele. Todo mundo comemorava e assistia à corrida. Todo mundo estava se divertindo, menos esse cara. Ele estava sozinho, e não se divertia. Ele tinha um objetivo. Então ele se virou para mim. Não pude ver seus olhos, por causa dos óculos escuros, mas soube que ele me encarava. Eu sei, agora, que ele planejava me matar – Tsarnaev pensou que eu estaria morto em menos de um minuto –, mas seu rosto não revelava nenhuma emoção. Nenhuma dúvida. Nenhum remorso. O cara era uma rocha. Nos encaramos por cerca de oito, dez segundos, então minha amiga Michele disse algo e me virei para falar com ela. Nossa amiga Remy tinha se aproximado da linha de chegada para tentar conseguir uma visão melhor. Eu ia sugerir para Michele que nos juntássemos a Remy. Aquele cara tinha me incomodado bastante. Mas não sugeri. E quando olhei para trás, ele tinha sumido. Graças a Deus, eu pensei... Até que notei a mochila dele. Estava largada no chão, perto dos meus pés. Estremeci de medo, e aquele velho alerta dos aeroportos começou a passar pela minha cabeça: não deixe malas largadas. Denuncie pacotes suspeitos. Olhei em redor, na esperança de encontrar o cara... 10


Então escutei. A explosão. Não foi como as bombas dos filmes, nada daquele estrondo imenso, mas três estalos, um após o outro. Não ficou tudo nebuloso depois disso. Ficou muito claro. O psiquiatra do hospital depois me disse que meu cérebro “acendeu”, que no momento em que a bomba explodiu, meu cérebro se tornou hiperalerta, de modo que embora minhas lembranças estejam fragmentadas em centenas de partes, elas são todas claras. Eu lembro de abrir os olhos e ver fumaça, depois perceber que estava no chão olhando para cima, para o céu. Lembro de uma mulher, coberta de sangue, passando por cima de mim. Então outras pessoas, correndo em todas as direções. Havia sangue no chão. Pedaços de carne. E calor, um calor terrível. O cheiro era de um churrasco no inferno. Houve um acidente, pensei. Alguma coisa deu errado. Eu me sentei. Michele estava deitada de costas a poucos passos, uma barreira da corrida caída sobre ela. Dava para ver o osso da perna dela através de um buraco. Isso não é bom, eu pensei. Nós nos fitamos. Ela estendeu a mão para mim e eu fiz menção de me aproximar dela. Então Michele olhou para minhas pernas e se deteve, arregalando os olhos. Baixei os olhos. Não havia nada abaixo dos meus joelhos. Eu estava sentado em uma poça grossa de sangue – meu sangue –, e minhas pernas tinham desaparecido. Olhei ao redor. Sangue para todo lado. Partes de corpo espalhadas, e não só minhas. Isso não foi um acidente, eu pensei. Ele fez isso conosco. Aquele merda tinha feito isso conosco. Então ouvi a segunda explosão, a certa distância. Tinham se passado apenas doze segundos desde o momento em que a primeira bomba foi detonada. Era guerra, eu pensei. Ele iria ser caçado. Haveria tiroteio. Não conseguiria chegar até mim. 11


Eu me deitei. Vou morrer, pensei, e percebi que tinha aceitado isso. Minha vida tinha sido curta, apenas vinte e sete anos, mas boa. Aceitei ir embora. Então um médico de pronto-socorro chamado Allen Panter, que estava assistindo à corrida do outro lado da rua, apareceu sobre mim. Ele aplicou torniquetes nas pontas dilaceradas de onde minhas pernas tinham sido arrancadas, gritando enquanto trabalhava. – Peguem camisas! – ele gritava por cima do ombro. – Jaquetas! Cadarços! Qualquer coisa! As pessoas estão sangrando aqui! – Saia de perto de mim – eu disse. – Fique calmo. Eu estava calmo. Até então eu estava absolutamente calmo. Mas esse cara estava me assustando. – Vá ajudar outra pessoa! – gritei, empurrando-o. – Vá ajudar minha amiga! Ele molhou o dedo no meu sangue e desenhou um “C” vermelho na minha testa. Lembro disso com muita clareza. Acho que queria dizer “crítico”. Então ele se foi, gritando ordens enquanto se afastava. Minhas orelhas estavam zunindo, mas eu ainda conseguia ouvir os gritos. Vi uma mulher deitada, imóvel, os olhos abertos. Vi um homem usando chapéu amarelo de caubói levantar a barreira de cima de Michele e então se virar para mim. A próxima coisa que percebi foi ele agarrando minha camisa, enrolando-a em seu punho. Ele me levantou do chão com uma mão, girou-se e me jogou numa cadeira de rodas, que estava ali para ajudar corredores cansados demais para andar depois de terminarem a corrida. Quando sentei na cadeira, foi como um choque elétrico. Pareceu aquela cena de Pulp Fiction: Tempo de violência, quando o John Travolta injeta adrenalina no coração da Uma Thurman. Meu corpo ganhou vida, e eu pensei: “Sem chance, Jeff. De jeito nenhum que aquele merda vai acabar com você”. – Eu vou sobreviver – eu disse. 12


– Isso mesmo, amigo – disse o homem com chapéu de caubói, correndo ao meu lado. – Isso mesmo. Você vai sobreviver. Nós passamos por uma tenda médica. As pessoas gritaram para que parássemos. – Não! – o homem gritou sem parar. – Nós vamos para o hospital. O torniquete da minha perna direita se soltou. Ele ficou preso na roda e foi arrancado. De repente, apareceu um outro homem, e os dois começaram a segurar minha perna, apertando-a para deter a hemorragia. Eu me abaixei e agarrei a perna esquerda, tentando fazer o mesmo. Um fotógrafo emergiu do caos, ajoelhando-se na rua e tirando fotos enquanto passávamos. Eu pensei: “O que ele está fazendo aqui?”. Nós cruzamos a linha de chegada da Maratona de Boston. Eu vi a faixa quando me tiraram da cadeira de rodas e me puseram na ambulância. – Quem é você? – uma mulher perguntou. – Qual é o seu nome? – Bauman – eu disse enquanto me imobilizavam. – Sou Jeff Bauman. – Você é Bowman? A mulher gritou, sem entender bem meu nome, para o homem com chapéu de caubói. – O quê? – Você também é Bowman? – Não – ele respondeu. – Não sou irmão dele. E então fomos embora, em disparada pela Rua Boylston na direção do Centro Médico de Boston enquanto um socorrista tratava as minhas pernas. – Eu sei o que aconteceu – eu disse. O socorrista hesitou, e olhou para o meu rosto pela primeira vez. – Ele está consciente – ele gritou para alguém no banco da frente. – O cara ainda está consciente. – Foi uma bomba – eu disse. – Tem certeza? – Tenho. Foi uma bomba. 13


– Como você sabe? – Eu vi o cara. Eu sei quem fez isso. Perdi a consciência por um segundo, talvez dois, e acordei assustado. Não faça isso, Jeff. Continue alerta. Eu me lembro de tudo. O equipamento acima de mim na ambulância. Os enfermeiros à nossa espera quando chegamos. Lembro de ser levado às pressas por um corredor, um policial de uniforme correndo do meu lado. Eu sei quem fez isso, tentei gritar para ele. Eu sei. Eu sei. Eu queria que mais alguém também soubesse, só para garantir. Mas não consegui fazê-lo parar. Não consegui que ninguém me ouvisse. – Fique calmo – as pessoas continuavam dizendo. – Fiquei deitado e calmo. E então fui colocado na mesa de cirurgia, com dez, doze pessoas à minha volta. Foi aí que comecei a entrar em pânico. Eu tinha visto muitos hospitais em séries de televisão e nos filmes. Eu não gostava de hospitais. – Eu quero anestesia – gritei. – Estou acordado. Eu quero anestesia. Um rosto se aproximou do meu, destacando-se dos outros. Era um cara jovem, parecido com o Major Winters, da série Irmãos de Guerra. – Não se preocupe – ele disse. – Nós vamos cuidar de você. E eles cuidaram. Todo mundo, naquele dia, cuidou de mim. Eles salvaram minha vida. São heróis, porque me deram esta oportunidade. Eles me deram a chance de provar que eu... nós... somos melhores do que covardes com bombas. Que não nos abatemos. E não temos medo. Nós somos mais fortes.

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