Os homens que salvavam livros

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Os

homens que salvavam livros A luta para proteger os tesouros judeus das mãos dos nazistas

VENCEDOR DO NATIONAL JEWISH BOOK AWARD CATEGORIA HOLOCAUSTO (2017)

DAV I D E . F I S H M A N



DAVID E. FISHMAN

Os

homens que salvavam livros A luta para proteger os tesouros judeus das mãos dos nazistas

TRADUÇÃO DE

Luis Reyes Gil


Copyright © 2017 David Fishman. Publicado mediante acordo com a Mendel Media Group LLC of New York. Copyright © 2018 Editora Vestígio

Título original: The Book Smugglers: Partisans, Poets, and the Race to Save Jewish Treasures from the Nazis

Todos os direitos reservados pela Editora Vestígio. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. gerente editorial

tradução da epígrafe

Arnaud Vin

Juliano Klevanskis

editor assistente

capa

Eduardo Soares

Diogo Droschi (sobre imagem do Instituto YIVO para Pesquisa Judaica)

assistente editorial

Pedro Pinheiro

diagramação

preparação

Larissa Carvalho Mazzoni

Pedro Pinheiro revisão

Eduardo Soares Samira Vilela Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Fishman, David E. Os homens que salvavam livros : a luta para proteger os tesouros judeus das mãos dos nazistas / David E. Fishman ; tradução Luis Reyes Gil. -- 1. ed. -- São Paulo : Vestígio, 2018. Título original: The Book Smugglers : Partisans, Poets, and the Race to Save Jewish Treasures from the Nazis. ISBN 978-85-54126-12-4 1. Bibliotecas judaicas - Destruição e pilhagem - Europa 2. Holocausto, judeu (1939-1945) - Europa 3. Propriedade cultural - Proteção - Europa 4. Propriedade cultural da Europa - Destruição e pilhagem I. Título. 18-19193

CDD-940.5318 Índices para catálogo sistemático:

1. Holocausto judeu : Guerra Mundial, 1939-1945 : Alemanha : História 940.5318 Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014 A VESTÍGIO É UMA EDITORA DO GRUPO AUTÊNTICA São Paulo Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I 23º andar . Conj. 2310-2312. Cerqueira César . 01311-940 São Paulo . SP Tel.: (55 11) 3034 4468 www.grupoautentica.com.br

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N O TA D O AUTOR

A

maioria de nós entende o Holocausto como o maior genocídio da história. Vimos muitas imagens de campos de concentração e de montes de cadáveres. Mas poucos encaram o Holocausto como um ato de pilhagem e destruição cultural. Os nazistas buscaram não só assassinar os judeus, mas também eliminar sua cultura. Mandaram milhões de livros, manuscritos e obras de arte para os incineradores e depósitos de lixo. E transportaram centenas de milhares de tesouros culturais para bibliotecas e institutos especializados na Alemanha, a fim de estudar a raça que pretendiam exterminar. Este livro conta a história de um grupo de internos de um gueto que resistiu, que não aceitou que sua cultura fosse esmagada e incinerada. Narra a perigosa operação levada a cabo por poetas que se transformaram em partisans, e por eruditos que viraram contrabandistas em Vilna, a “Jerusalém da Lituânia”. Esses salvadores lutaram contra o doutor Johannes Pohl, um nazista “especialista” em judeus, enviado pelo órgão de pilhagem alemão Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg para coordenar a destruição e a deportação das grandes coleções de livros judaicos de Vilna. Os alemães usaram quarenta internos do gueto como trabalhadores escravos para selecionar, empacotar e transportar o material. Em um 9


desesperador projeto de dezoito meses, os membros do grupo de trabalho escravo, apelidados de “brigada do papel”, enrolaram livros em volta de seu torso e conseguiram fazê-los passar escondidos pelos guardas alemães. Quando pegos, enfrentavam a morte no esquadrão de fuzilamento em Ponar, o local de assassínio em massa nos arredores de Vilna. Depois que Vilna foi libertada dos alemães, os membros sobreviventes da “brigada do papel” desencavaram os tesouros culturais ocultos em bunkers e esconderijos. Mas logo chegaram a uma dura constatação: as autoridades soviéticas que assumiram o controle de Vilna eram tão hostis à cultura judaica quanto os nazistas. Tiveram então que resgatar de novo os tesouros e tirá-los da União Soviética. Mas contrabandear livros e documentos pela fronteira soviético-polonesa era tão arriscado quanto a operação no gueto. Este livro conta a história de homens e mulheres que mostraram uma devoção inabalável à literatura e à arte, dispostos a arriscar a própria vida por isso. Coloca homens e mulheres de letras em confronto com dois dos mais mortíferos regimes da história. Tomei a liberdade de imaginar os sentimentos e os pensamentos de meus protagonistas em vários momentos, mas as coisas que eles fizeram não foram imaginadas – baseiam-se em extensiva pesquisa e documentação. Na maioria das vezes chamei a cidade onde os eventos tiveram lugar de “Vilna”, que é como os judeus a chamavam, mas em certos contextos usei a forma lituana “Vilnius” ou a polonesa “Wilno”. No fundo, Os homens que salvavam livros é uma história pessoal: uma história sobre pessoas. Permitam-me então contar uma história minha. Há alguns anos, dei uma palestra sobre o gueto de Vilna e mencionei de passagem a bravura da “brigada do papel”. Ao final do evento, um homem idoso, andando com auxílio de uma bengala, veio até mim e disse: “Sabe, eu trabalhei nessa brigada alguns meses. Eu mesmo passei alguns livros e documentos escondidos pelos guardas alemães”. Fiquei perplexo. Não imaginava que algum dos heróis da “brigada do papel” estivesse ainda vivo em 2012. Mas ao vê-lo responder minha bateria de perguntas, pude concluir que havia sido de fato membro do grupo. Aos 93 anos de idade, Michael Menkin vive hoje numa residência de idosos de Nova Jersey. É um homem gentil e elegante, um comerciante de joias e pedras preciosas que se mostra muito modesto levando em conta 10


sua bem-sucedida carreira nos negócios. Ele curte os prazeres prosaicos que a vida lhe concede: a companhia do filho, da filha, dos seis netos e dos muitos amigos e admiradores. Menkin é um apoiador convicto do Estado de Israel e lembra com orgulho que Menachem Begin, então o jovem líder do sionismo revisionista na Polônia – e mais tarde o sexto primeiro-ministro de Israel –, dormiu na casa de seus pais em Vilna. Michael foi também um dos fundadores do Museu Memorial do Holocausto dos EUA, em Washington, D.C. Mas naquela época, era um interno alto e esguio, de 18 anos de idade, do gueto de Vilna. Os alemães o mandavam carregar caixas de livros até a plataforma de carga – a maioria destinada aos incineradores e às “fábricas de papel”, e algumas para serem despachadas para a Alemanha. O poeta Shmerke Kaczerginski colocou-o sob sua proteção e ensinou-lhe a arte de contrabandear livros. A atividade de Michael resgatando livros é uma das poucas memórias felizes que ele guarda de seus anos no gueto. A mãe, duas irmãs e um irmão foram executados em Ponar. “Todos tínhamos certeza de que seríamos mortos logo. Então, por que não fazer uma coisa boa e salvar alguns tesouros? Não me lembro do nome dos livros e manuscritos que ‘roubei’ durante o trabalho, mas muitas vezes deitava na cama à noite e pensava comigo, Quem sabe? Talvez tenha resgatado algo importante.” De fato. Resgatou sua humanidade e a nossa.

nota do autor

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D R A M AT I S PERSONAE

Shmerke Kaczerginski. Idade em 1942: 34 anos. Nascido em Vilna, a “Jerusalém da Lituânia”. Criado em um orfanato, frequentava a escola noturna, trabalhava numa gráfica e escrevia poesia. Shmerke – todos o chamavam pelo primeiro nome – juntou-se ao grupo literário “Vilna Jovem” e se tornou o membro mais alegre e cheio de vida, o coração e a alma do grupo. Foi também membro do Partido Comunista clandestino na Polônia e autor de canções populares de cunho político. Independente e sagaz, quando os alemães invadiram Vilna perambulou pelo interior por sete meses fingindo ser um polonês surdo-mudo. Decidiu entrar no gueto de Vilna em abril de 1942 e tornou-se seu bardo mais popular.

Zelig Kalmanovitch. Idade em 1942: 61 anos. Nascido em Goldingen, Letônia. Erudito e intelectual até a alma, Kalmanovitch era doutor em filologia semítica pela Universidade de Konigsberg. Um amigo certa vez observou: “Quando Zelig entra na sala, não preciso mais de enciclopédias”. Exemplo de seriedade e integridade, tornou-se codiretor do Instituto Científico Iídiche de Vilna 12


(YIVO) em 1928. Kalmanovitch abraçou a fé religiosa e o sionismo por volta dos cinquenta e tantos anos, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. No gueto de Vilna, conclamava seus companheiros a manter a dignidade humana e a estatura moral, e foi apelidado de “o profeta do gueto”.

Rachela Krinsky. Idade em 1942: 32 anos. Nascida em Vilna. Era muito popular como professora de história do ensino médio, e tinha mestrado pela Universidade de Wilno e domínio de latim medieval e alemão. Num escândalo que chochou muitos de seus amigos, teve um caso amoroso com um homem rico e casado, Joseph Krinsky, que acabou se divorciando da esposa para casar-se com Rachela. Joseph morreu poucas semanas após a invasão de Vilna pelos alemães, e Rachela foi sozinha para o recém-criado gueto de Vilna. Deixou a filha de 22 meses de idade do lado de fora, aos cuidados de sua babá polonesa. No gueto, sua maior fonte de alívio e de distração da dor era ler poesia.

Herman Kruk. Idade em 1942: 45 anos. Nascido em Plock, Polônia. Bibliotecário profissional, Kruk era diretor da maior biblioteca judaica de Varsóvia. Era um social-democrata atuante, que via nos livros o meio pelo qual os trabalhadores judeus poderiam se erguer. Kruk fugiu de Varsóvia em setembro de 1939 e instalou-se como refugiado em Vilna. Poderia ter imigrado para os Estados Unidos em 1940, mas decidiu ficar e tentar resgatar a mulher e o filho, retidos na Varsóvia ocupada pelos nazistas. Depois que os alemães capturaram Vilna, em 1941, tornou-se diretor da biblioteca do gueto. Homem refinado, sempre engraxava os sapatos e lixava as unhas – mesmo no gueto.

dramatis personae

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Abraham Sutzkever. Idade em 1942: 29 anos. Nascido em Smorgon, Bielorrússia. Sutzkever passou a infância durante a Primeira Guerra Mundial como refugiado na Sibéria, lugar que conheceu como um paraíso invernal e cheio de neve. Neto de um rabino, era um esteta apolítico, que acreditava apenas na poesia. Com olhos sonhadores e cabelo ondulado, era o poeta laureado do grupo literário “Vilna Jovem”. Depois que os alemães invadiram, driblou a morte dezenas de vezes, uma delas escondendo-se dentro de um caixão num necrotério. Sutzkever abrigava a crença mística de que, se conseguisse cumprir sua missão e escrevesse poesia refinada, sobreviveria.

Johannes Pohl. Idade em 1942: 41 anos. Nascido em Colônia, Alemanha. Padre católico ordenado, acabou se tornando um nazista saqueador de livros. Pohl cursou estudos bíblicos avançados no Instituto Pontifício Oriental de Jerusalém, onde se tornou mestre em hebraico bíblico e moderno. Ao voltar à Alemanha em 1934, abandonou o sacerdócio e assumiu um cargo de bibliotecário de Hebraica* na Biblioteca Estatal Prussiana. De natureza diligente e agressiva obediência, tornou-se um servidor leal do nazismo e começou a publicar artigos antissemitas sobre o judaísmo e o Talmude. Em 1940, juntou-se ao órgão nazista alemão dedicado a pilhar tesouros culturais, o Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg, como especialista em assuntos judaicos. Chegou a Vilna em julho de 1941.

* Hebraica é o nome genérico que se dá a uma coleção de materiais hebraicos, em geral relacionados à literatura e à história. Judaica é outro termo genérico correlato, que indica também livros, manuscritos e documentos ligados à religião, história e cultura dos judeus. [N.T.] 14


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(Os nomes em iídiche estão entre parênteses)

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lna wa Za Gueto nº 2 (6 de setembro de 1941 a 24 de outubro de 1941) Portão do gueto

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Gueto nº 1 (6 de setembro de 1941 a 23 de setembro de 1943)

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1 Biblioteca do Gueto, Rua Strashun, nº 6 2 Edifício do Judenrat, Rua Rudnicka, nº 6 3 Bunker que armazenava livros e armas, Rua Żmudska (Shavel), n º 6

4 Grande Sinagoga (Shtot-shul) 5 Biblioteca Strashun 6 Sinagoga do Gaon de Vilna (Kloyz do Goen)


Europa Central e Leste Europeu após a Segunda Guerra Mundial FINLÂNDIA

Noruega

Leningrado

República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR)

RSS da Estônia

SUÉCIA

Moscou

RSS da Letônia

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MAR DO NORTE

DINAMARCA

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RSS da Lituânia Kaliningrad RSFSR

Smolensk

Vilnius Minsk Grodno

Hamburgo HOLANDA

BÉLGICA

ZONA BRITÂNICA

RSS da Bielorrússia

Bialystok

Berlim

P O L Ô N I A

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Varsóvia

Lodz Kiev

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Frankfurt

FRANÇA ZONA FRANCESA

SUÍÇA

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Krakow

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ÁUSTRIA

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Lviv Lvov

RSS DA UCRÂNIA Lvov

VÁQ U I A HUNGRIA

ROMÊNIA

Os alemães despacharam a maior parte dos livros e dos tesouros culturais saqueados em Vilna (Vilnius) para o Instituto para Investigação da Questão Judaica, em Frankfurt. Após a guerra, Shmerke e Sutzkever desenterraram o material que haviam escondido dos alemães e contrabandearam parte dele pela fronteira até Lodz e Varsóvia, na Polônia.


O S H O M E N S Q U E S A LVAVA M L I V R O S



INTRODUÇÃO

Vilna, Polônia sob ocupação nazista. Julho de 1943

O

poeta Shmerke Kaczerginski (pronuncia-se “Catcherguínsqui”) sai do trabalho e volta ao gueto. Trabalhador forçado, sua brigada seleciona livros, manuscritos e obras de arte. Alguns itens são despachados para a Alemanha. O resto acaba incinerado ou vai para fábricas de papel. Ele trabalha num equivalente de Auschwitz para a cultura judaica, responsável por selecionar os livros que serão deportados – e os que serão destruídos. Em comparação com as tarefas que outros trabalhadores forçados fazem pela Europa ocupada pelos nazistas, ele não está cavando fortificações para deter o Exército Vermelho, nem detonando minas terrestres com o próprio corpo, nem arrastando cadáveres das câmaras de gás para os fornos crematórios. Mesmo assim, foi um dia difícil, labutando no saguão cinza da Biblioteca da Universidade de Vilna, cheio até o teto de livros. Naquela manhã, o bruto chefe alemão da brigada, Albert Sporket, do Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg, flagrara Shmerke e alguns outros trabalhadores lendo um poema de um dos livros. Sporket, comerciante de gado por profissão, 19


explodiu em gritos furiosos. As veias de seu pescoço saltavam. Brandiu o punho para os trabalhadores e atirou o livro do outro lado da sala. “Seus ladrões trapaceiros, é isso que vocês chamam de trabalhar? Isso aqui não é uma sala de estar!” Advertiu todos que se aquilo acontecesse de novo haveria sérias consequências. A porta bateu atrás dele quando saiu. Os trabalhadores labutaram nervosos a tarde inteira. O comerciante de gado tratava todos eles e os livros como animais de carga – iria explorá-los até a hora de levá-los ao matadouro. Se Sporket reportasse o caso à Gestapo, estariam todos mortos. A colega de trabalho e amante de Shmerke, Rachela Krinsky, uma professora de ensino médio alta com profundos olhos castanhos, foi até ele. “Ainda vai carregar coisas hoje?” Shmerke respondeu com seu típico entusiasmo contagiante. “Claro. Esse louco de repente pode decidir levar tudo embora. Ou mandar para o lixo como papel velho. Esses tesouros são o futuro. Talvez não para nós, mas para quem sobreviver.” Shmerke colocou uma velha capa de Torá bordada em volta do torso. Assim que ela estava no lugar, enfiou quatro livrinhos dentro da nova cinta – velhas raridades publicadas em Veneza, Tessalônica, Amsterdã e Cracóvia. Enfaixou-se com outra pequena capa de Torá como se fosse uma fralda. Ele afivelou o cinto e vestiu a camisa e o paletó. Estava pronto para sair do trabalho e encarar a inspeção no portão do gueto. Shmerke havia feito isso muitas vezes, sempre com uma mistura de determinação, empolgação e medo. Sabia quais eram os riscos. Se fosse pego, provavelmente enfrentaria uma execução sumária – como ocorrera com seu amigo, o cantor Liuba Levitsky, pego carregando uma mochila de feijão. No mínimo, um SS lhe aplicaria 25 golpes de cassetete ou chicotadas. Enquanto enfiava a camisa para dentro da calça, Shmerke não deixou de perceber a ironia. Afinal, ele, um membro do Partido Comunista e ateu convicto havia muito tempo, que não ia à sinagoga desde criança, estava prestes a arriscar a vida por causa daqueles artefatos, a maioria deles religiosos. Podia sentir o toque de gerações passadas na própria pele. A fila de trabalhadores que voltavam para o gueto estava muito maior que de costume, dando voltas por dois quarteirões da cidade até chegar ao portão. Veio lá da frente da fila a informação de que o SS Oberscharfuhrer Bruno Kittel estava inspecionando todo mundo pessoalmente no portão. 20


Kittel – jovem, alto, de tez escura e bonito – era um músico competente e um assassino frio, nato. Às vezes entrava no gueto para matar internos por pura diversão. Parava alguém na rua, oferecia um cigarro à pessoa e então perguntava: “Quer fogo?”. Quando a pessoa assentia, tirava a pistola e lhe dava um tiro na cabeça. Quando Kittel estava presente, os guardas lituanos e a política judaica do gueto eram mais rigorosos. A um quarteirão de distância, dava para ouvir os gritos de internos sendo espancados por estarem levando comida escondida. Os trabalhadores em volta de Shmerke vasculharam dentro da roupa. Batatas, pão, legumes e pedaços de madeira para lenha rolaram pela calçada. Sussurraram advertências a Shmerke; afinal, seu corpo estufado chamava a atenção. Naquela paisagem povoada por corpos famintos e escravizados, seu torso inexplicavelmente robusto se destacava enquanto se aproximava do ponto de inspeção. “Joga isso fora, joga logo!” Mas Shmerke não faria isso. Sabia que seria inútil. Se deixasse os livros hebraicos e as capas da Torá largados na calçada, os alemães iriam associá-los à sua equipe. Ao contrário das batatas, os livros tinham ex libris, rótulos que indicavam sua origem e propriedade. Kittel poderia decidir executar a brigada de trabalho inteira – incluindo Rachela e o melhor amigo de Shmerke, o também poeta Abraham Sutzkever. Então Shmerke resolveu arriscar e se preparou para o que pudesse vir. Todos os demais na fila reviraram de novo os bolsos para ver se não havia moedas ou papéis que pudessem despertar a ira de Kittel. Shmerke começou a tremer. À medida que crescia, a fila passou a bloquear o trânsito na Rua Zawalna, uma das principais vias de comércio de Vilna. Os bondes buzinavam. Pedestres não judeus se juntavam pela rua para assistir ao espetáculo, e alguns aproveitavam para recolher da calçada os itens descartados. De repente, circularam vozes pela multidão. “Ele entrou no gueto!” “Vamos. Rápido!” Kittel, provavelmente cansado de supervisionar as repetitivas revistas dos corpos, decidira dar uma volta por seu feudo. A fila então avançou rápido. Os guardas, surpresos e aliviados pela saída de Kittel, se viraram para checar aonde ele havia ido e não se incomodaram mais em fazer esforços introdução

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para deter a multidão apressada. Ao passar pelo portão, com os livros firmemente atados ao corpo, Shmerke ouviu vozes enciumadas dirigidas a ele. “Alguns têm sorte mesmo!” “E as minhas batatas ficaram lá na calçada!” Não sabiam que não era comida o que ele carregava. Com suas botas retinindo contra os paralelepípedos da Rua Rudnicka, a principal do gueto, Shmerke começou a cantar uma canção que compusera para o clube jovem: Quem quiser sentir-se jovem venha cá, Pois anos têm aqui pouca importância. Os velhos também podem ser criança, Livre e nova é a primavera que virá.

Num bunker secreto bem no fundo do gueto – uma caverna com piso de pedra, escavada no solo úmido –, caixas de lata estavam abarrotadas de livros, manuscritos, documentos, lembranças relacionadas a peças de teatro e artefatos religiosos. Mais tarde naquela noite, Shmerke acrescentou seus tesouros àquele repositório perigoso. Antes de vedar de novo a passagem secreta para aquela sala dos tesouros, deu adeus às capas de Torá e às velhas raridades com uma carícia afetuosa, como se fossem seus filhos. E Shmerke, sempre um poeta, pensou consigo: “Nosso presente é escuro como esse bunker, mas os tesouros culturais brilham com a promessa de um futuro luminoso”.1

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