Dar nome ao novo

Page 1

Qual é a relevância para os dias

U

EDUARDO FRANÇA PAIVA é professor

atuais do estudo de antigos conceitos, categorias e termos relativos às mestiçagens biológicas e culturais associadas à escravidão? As respostas

Eduardo França Paiva

de História na UFMG, doutor em História pela USP, com estágios pós-doutorais na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), e na Escuela de Estudios Hispano-Americanos (Sevilha). Dirige o Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno (CEPAMM), cocoordena a Rede de Grupos de Pesquisa Escravidão e Mestiçagens (RGPEM) e lidera o Grupo de Pesquisa Escravidão, mestiçagem, trânsito de culturas e globalização – séculos XV a XIX (CNPq-UFMG). Foi professor visitante em universidades da Espanha e da Bélgica. Tem vários livros, capítulos e artigos científicos publicados no Brasil e no exterior. Suas pesquisas abarcam a História da escravidão e das mestiçagens no Brasil e na Ibero-América, e abrangem temas como História Social da Cultura e da Arte, História da América e África, e História Moderna.

ma série de termos e expressões nomearam as dinâmicas das mestiçagens biológicas e culturais, as associações entre elas e o mundo do trabalho, mormente o da escravidão, e os seus produtos, incluídos os tipos humanos e os grupos sociais aí formados. Esse objeto de estudo perpassa todos os capítulos e seu desenvolvimento se lastreou em duas indagações fundamentais. A primeira: quem chama quem de quê? [...] A segunda foi a resposta em forma de pergunta que lhe apresentei: como cada qual se define e define o outro? Essas questões nortearam as pesquisas, as reflexões e a escrita deste livro. [...] Esses antigos sistemas de distinção parecem-me ter sido muito mais complexos e, também, mais próximos daquelas realidades multifacetadas e plurais do que os que aplicamos hoje a nós mesmos e à nossa diversidade.

Dar nome ao novo

Foto: Arquivo do autor

a essa pergunta são apresentadas ao

Eduardo França Paiva

longo deste livro, direta e indiretamente. O passado mestiço e escravista ibero-americano, entre o fim do sé-

Dar nome ao novo

culo XV e o início do século XIX, é estudado a partir das formas como foi nomeado, compreendido, explicado e organizado pelos agentes históricos

Uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho)

que o constituíram e de um grande conjunto de documentos que eles produziram e legaram ao futuro. Grandes categorias sociais, como “qualidade”, “condição”, “cor”, “nação”, “raça” e “casta”, assim como as designações “índio”, “branco”, “negro”, “preto”, “crioulo”, “mestiço”, “mameluco”, “caboclo”, “mulato”, “pardo”, “zambo”, “cabra”, entre outras, são analisadas a partir dos significados a elas atribuídos no passado. Surge daí uma história americana conectada, pensada em perspectiva comparada, que expõe matrizes do que somos e de como nos identificamos hoje, indicando, também, alterações e rupturas importantes

www.autenticaeditora.com.br

ocorridas, sobretudo, na segunda me-

ISBN 978-85-8217-535-4

tade do século XIX e início do século XX, que muito nos diferenciam de nossos antepassados.

9 788582 175354



Eduardo França Paiva

Dar nome ao novo Uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho)


Copyright © 2015 Eduardo França Paiva Copyright © 2015 Autêntica Editora

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editora responsável

Rejane Dias editora assistente

Cecília Martins revisão

Dila Bragança de Mendonça Lívia Martins capa

Alberto Bittencourt diagramação

Jairo Alvarenga Fonseca

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Paiva, Eduardo França Dar nome ao novo : uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho) / Eduardo França Paiva. -- 1. ed. -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015. ISBN 978-85-8217-535-4 1. Cultura 2. Escravidão 3. Mestiçagens 4. Ibero-Americanos I. Título. 14-12847

CDD-306.08

Índices para catálogo sistemático: 1. Mestiçagens : Cultura : História : Historiografia 306.08

Belo Horizonte Rua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários 30140-071 . Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3214 5700 Televendas: 0800 283 13 22 www.grupoautentica.com.br

São Paulo Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, Horsa I . 23º andar, Conj. 2301 . Cerqueira César . 01311-940 . São Paulo . SP Tel.: (55 11) 3034 4468


PREFÁCIO

Nomear, descrever, separar e hierarquizar Nota breve sobre o livro de Eduardo França Paiva

Carmen Bernand1

Todos os povos precisaram ordenar a diversidade natural do mundo para poder controlá-la. Para isso, tiveram que domesticar a realidade exterior – ou seja, os astros, a fauna, a flora, os objetos, as pedras e os povos – e classificá-la de acordo com diferentes critérios. Uns podem estar baseados em qualidades sensíveis como as cores, os odores, as texturas, os sons ou os ritmos, para citar somente algumas das muitas mediações cognitivas que caracterizam o famoso “pensée sauvage”, de Claude Lévi-Strauss. Outros critérios se fundam em conceitos racionais, como as nomenclaturas científicas. Claro que essa distinção geral não é tão contundente como pretende: este livro sobre o vocabulário da mestiçagem o demonstra amplamente. Eduardo França Paiva passou muitos anos estudando os escravos e os libertos africanos no Brasil e principalmente em Minas Gerais, uma região onde a riqueza do subsolo transformou a demografia das cidades e em muitos casos, a condição servil dos trabalhadores. Nesse campo, as mestiçagens biológicas sobretudo as culturais chamaram sua atenção. Este novo livro amplia essa temática e propõe um léxico analítico dos termos utilizados para nomear o que ainda não tem nome: os seres híbridos produzidos pela mestiçagem biológica no continente americano. Certamente não se trata de uma curiosidade exótica, mas da construção de um marco explicativo de um fenômeno cuja magnitude caracteriza os reinos ibéricos, agentes da primeira globalização moderna. 1

Professora Emérita de Paris-Ouest Nanterre La Défense. Membro honorário do Institut Universitaire de France. 11


A primeira originalidade deste trabalho é justamente incluir a totalidade do mundo ibero-americano, quer dizer, os reinos de Portugal e de Espanha, e comparar o vocabulário da mestiçagem do século XVIII ao XVI, segundo uma ótica historiográfica regressiva, que parte do estabelecido e conhecido para remontar às origens do pensamento classificatório, a fim de entender (e hierarquizar) o ignoto e o novo. Faltava-nos um estudo sintético dos recursos ibero-americanos, comparável ao que Jack D. Forbes realizou para os Estados Unidos – citado várias vezes por E. França Paiva. Daí o interesse deste livro, solidamente documentado a partir de fontes arquivísticas, bibliográficas e iconográficas. Além disso, o leitor apreciará as alusões musicais que encabeçam cada capítulo e que mostram que a mestiçagem está presente tanto nas esferas política e administrativa quanto nas artes. O léxico das diferenças visíveis entre os homens (a condição, a cor, o temperamento, a estética) é ao mesmo tempo racional, como mostram as diferentes definições que os dicionários e os documentos administrativos oferecem, e impreciso, porque a diversidade humana não pode ser reduzida a um conceito. Nesse caso, as metáforas substituem os conceitos improváveis. É então que afloram os critérios fundados nas percepções sensíveis, como a cor. Ela separa grupos contrastados. Se os ibéricos aparecem como gente de tez clara, é apenas para distingui-los dos negros africanos, ou seja, dos escravos. Os índios têm uma cor indefinida, que vai do “marmelo cozido” à cor de “terra”. As mestiçagens se desenvolvem em linhas cromáticas indescritíveis, nas quais a metáfora supre a referência concreta. As imagens são mais ricas em informações cruzadas. Os célebres quadros de castas (de finais do século XVII sobretudo do século XVIII), pintados nos reinos da Nova Espanha e do Peru, ilustram as múltiplas combinações entre os três troncos fundadores: os espanhóis, os indígenas e os negros. Esses quadros representam a mesma cena: um casal desigual quanto à origem e uma criança, fruto dessa união. O marco varia segundo a qualidade do casal: interior suntuoso ou modesto, cenário bucólico ou das ruas, cozinha ou oficina. Quando a imagem mostra um índio “selvagem” com seu diadema de plumas, o artista coloca ao seu redor frutos da terra (abacaxis, mamões, bananas), elementos metonímicos e indissociáveis da humanidade natural. As séries dos quadros de castas seguem o esquema dos três ciclos de mestiçagens: espanhol com índia, espanhol com negra, negro com índia, mas complicam os cruzamentos, que se degeneram em populacho heterogêneo e mesclado. O essencial dessa iconografia reside nos detalhes. Um deles é a vestimenta, que incide na qualidade da pessoa, ou seja, em sua aparência, 12


que é também uma essência. Bem diz o provérbio “O hábito faz o monge”. As atividades são importantes e determinam o destino dos mestiços: o menino “castiço”, que toca violino em um dos quadros pode esperar se casar com uma espanhola, mas se a barreira da mestiçagem é forte, como mostra outro quadro, a mestiça forma um casal com um índio, e o filho é um “coiote”. Para determinar o nível e a qualidade, é importante indicar como se alimentam esses homens novos: os mais civilizados (quer dizer, os mais espanholados) têm mesa, toalha, pratos e talheres. Comer de pé sobretudo na rua, é próprio dos índios. Segundo o Terceiro Concílio de Lima, citando a epístola de Paulo aos Coríntios, ser homem político é, entre outras coisas, “ter mesa para comer e leito para dormir no alto e não no chão, como faziam, e as casas com tanta limpeza e ordem que pareçam habitações de homens, e não choças ou pocilgas de animais imundos”. Sendo assim, essa iconografia nos mostra que o ciclo geracional da mestiçagem não é o mesmo se a mulher que dá origem à mescla é índia ou negra. Neste segundo caso, apesar de a cor geralmente desaparecer na terceira geração (que dá crianças “albinas”), ela volta a ressurgir na quarta com o “tornatrás”, prova da impossibilidade de apagar a marca da condição servil (a cor negra). Quanto ao terceiro ciclo, o das uniões “baixas” entre índios e negros, as mesclas são tão variadas, que os léxicos recorrem a nomes improváveis, como “lobo”, cuja cor é “parda”, ou “cambujo”, ou seja, ave de cor negra e avermelhada. Mas quase todos os cenários mostram um entorno pobre (trajes puídos, portas quebradas, pés descalços). A pobreza das castas e a pintura de suas distintas atividades indicam a pertinência do trabalho – geralmente mas não sempre, as “artes mecânicas”. Essa relação entre mestiçagem e trabalho constitui o aporte fundamental de E. França Paiva. Nas últimas décadas muito se tem falado sobre etnicidade e alteridade, mas geralmente de maneira abstrata e vinculada à impugnação do racismo. No contexto da última terça parte do século XX, as diferenças étnicas e a raça substituíram, nas discussões acadêmicas, as diferenças de classe, que haviam sido analisadas pela historiografia e antropologia marxistas. Após o colapso da “cortina de ferro” e das sociedades comunistas lideradas pela URSS, a “classe”, ligada ao mundo do trabalho e da exploração, deixou de ser um tema relevante para a análise da questão da discriminação. A insistência com que E. França Paiva nos lembra da importância do mercado e do trabalho na construção da mestiçagem constitui um dos aspectos mais importantes deste livro. Ao evocar a concessão de terras e instrumentos de trabalho aos cativos, para poderem produzir sua subsistência e 13


comercializar o excedente, o autor estende a problemática ao mundo rural. Ali os termos para designar (e hierarquizar) esses trabalhadores livres, servos ou escravos são muito variados – naborías, arrimados, arrendire, peões, yanaconas, conciertos, jornaleiros, etc. – e efetivamente merecem ser incluídos neste trabalho. Porque de todas as posições estatutárias, a mais baixa na prática mas não na jurisdição é a condição camponesa. Daí um pardo ou um negro que vive numa cidade ocupar um lugar superior na hierarquia social. Isso já era dito por Magnus Mörner há várias décadas, e todos os que temos trabalhado com povos rurais tradicionais, submetidos à pressão da terra dos latifúndios, o sabemos. Uma das obsessões ibéricas pela cor é que esta se encontra não só nos africanos escravos, como também nos camponeses submetidos aos raios do sol. E. França Paiva acertadamente examina os contextos de enunciação: a partir de que posição se nomeia a quem? É necessário levar em conta essa perspectiva, mas não é fácil. O ponto de vista dos proprietários de minas ou de terras aparece na documentação e mostra certa diferença com relação ao do pároco, cuja missão é inscrever nos registros paroquiais a qualidade e a condição do recém-nascido. A esse respeito, a zona do Rio da Prata é interessante porque os religiosos ou bem adotam critérios não estereotipados – “negros com cabelos lisos”, etc., ou bem descrevem o que os pais da criança dizem a eles. A estratificação colonial, em termos de qualidade e de condição jurídica, é o fio condutor deste livro, porém aqui também as definições clássicas nos deixam na incerteza, porque são abstratas e não concordam com as realidades antropológicas americanas. O termo crioulo é talvez o mais ambíguo. Em 1810, no México, crioulos eram os espanhóis nascidos na América. Mas em Buenos Aires, nesse mesmo ano e no mesmo contexto revolucionário, os crioulos são as pessoas de cor, e não os “patrícios”, que não querem ser confundidos com aqueles. No final do século XVI, os mestiços que dançam em uma sacristia são “crioulos” para o índio Guaman Poma de Ayala; nas Antilhas francesas, “créoles” são mulatos claros, e no Brasil crioulo é o filho dos negros de Angola ou da Guiné, mas o termo também é empregado no sentido de mulato. A crioulização ocorre quando uma “língua geral” se torna vernácula; em compensação, o “crioulismo” na Argentina é uma corrente artística e literária do século XIX, que busca o que lhe é “próprio”, rechaçando o alheio ou europeu. Nos departamentos franceses do Ultramar, créolisation é sinônimo de mestiçagem. Outra palavra difícil de conceituar e à qual E. França Paiva dedica vários parágrafos é “pardo”. Essa palavra costuma aparecer com mais 14


frequência no âmbito das milícias armadas e do exército (“batalhão de pardos”), enquanto “mulato” implica geralmente a ideia de distinguir de “negro” uma apelação marcada pela condição servil e pela fala boçal. Uma forma mais neutra para o mulato é “moreno”, que de certo modo pode também se referir a um branco de tez cetrina (amarelo esverdeado) e cabelos pretos... “Pardo” é sempre superior a negro e E. França Paiva nos diz que, para uma mãe africana, seus filhos nascidos na América são “pardos”. De fato, todas as categorias ambíguas apresentam problemas. Os três troncos iniciais, índio, negro e espanhol ou português, têm sua visibilidade, mas a proliferação das mestiçagens em todas as suas combinações possíveis produz uma população heterogênea e impossível de classificar. O que define justamente as castas é a transformação constante dos fenótipos e eventualmente a ascensão social; estas não podem se reduzir a um grupo preciso, mas a uma multidão, um populacho, uma plebe. Não é em vão que os quadros de castas já mencionados falam de castas confusas, para além da quarta geração, sobretudo quando as primeiras mesclas dizem respeito a negros com índias – estas também aconteceram entre índios e negras, mas a combinação mais corrente é aquela, já que a índia, sendo de condição livre, tinha filhos livres, e não escravos. Evidentemente, como ressalta Eduardo França Paiva, o léxico da mestiçagem não chegou a impedir certa ascensão social que geralmente passou pela medicina (sangradores, boticários) sobretudo pela música, arte pela qual decolaram os descendentes africanos, em todo o continente. Andrés Sacabuche, de nação Angola, intérprete do Venerável Servo de Deus, citado neste livro, foi um deles, e seu sobrenome decorre do instrumento que dominava. Se em sua origem a casta se confunde com descendência, no século XVIII domina a ideia de confusão e de desordem. Já não se pode saber quem é quem, sobretudo por duas razões principais: a vestimenta, que pode ser adquirida com dinheiro e, portanto, já não é uma marca obrigatória de status étnico, e a proliferação, nas cidades dos vice-reinos, de homens negros porém livres e teoricamente ao lado de crioulos brancos. Várias páginas deste livro tratam dessas situações ambíguas, entre as quais a coartação, situação bem definida pelo costume, mas sujeita a interpretações subjetivas e a dos índios forros, categoria contraditória. Outros termos são analisados, como a cor, a raça e a nação; em certas situações, tendem a se sobrepor. A cor, por exemplo, é ambígua e subjetiva, como toda categoria que se funda na percepção dos sentidos. Para acrescentar um exemplo aos muitos com que nos brinda o autor, “triguenho”, ou seja, “cor do trigo”, pode designar uma tez clara portanto bela, como 15


afirma o Inca Garcilaso, falando da mesma mulher a quem considera bela, apesar de ser triguenha, ou seja, de tez escura. A “nação” é outro conceito que só pode ser entendido em forma histórica. Teoricamente a “nação” se refere ao lugar de nascimento, portanto é sinônimo de “pátria”, como tem demonstrado Juan Antonio Maravall, para a Espanha, mas encontramos essa homologia na América, sobretudo no Rio da Prata, em finais do século XVIII. A palavra “nação”, em português, veio a designar os judeus marranos, “gente de nação”, sobretudo na América. Do ponto de vista da Inquisição, essa “nação”, apesar de haver adotado oficialmente a religião católica, não pertencia à cristandade, em virtude da herança judia, ou seja, o “sangue infecto”, segundo os estatutos da pureza de sangue. Essa afirmação transgride os preceitos básicos do cristianismo, enunciados por São Paulo, defensor do proselitismo. Se nada pode apagar essa mancha, essa nação peculiar, constituída pelos judeus convertidos, é essência pura e escapa à história, como o afirma Maurice Olender, em seu livro Race sans histoire. Daí que os judeus portugueses convertidos (muitos deles de origem espanhola) sejam o protótipo da “raça”, muito antes que o racismo “científico” se difunda na Europa e na América. A etimologia de “raça” originalmente designa em italiano a listra ou traço que aparece no tecido. Em outros dicionários, raça também é o raio de luz que penetra por uma fenda. Quer dizer, o que se vê, o que ressalta, o que destrói a harmonia do conjunto. O autor deste livro nos adverte que “nação” não pode ser pensada em termos modernos de comunidade política, tal como aparece nos textos revolucionários de começos do século XIX. Todavia, as coisas não estão tão claras. O quadro de Luis de Mena, pintado em 1750, apresenta em uma mesma tela oito combinações de castas mexicanas, presididas pela Virgem de Guadalupe, em posição central superior. Em ambos os lados da Virgem se acham, respectivamente, duas cenas: uma representa um passeio popular dos arredores da Cidade do México, e a outra, um baile de matachines, vestidos de montezumas. O artista transforma, assim, a diversidade da mestiçagem em retrato popular de usos e costumes, símbolo da incipiente nação mexicana, sob a proteção do emblema crioulo por excelência, a Guadalupe, uma virgem aparecida, segundo a lenda, a um indígena do vale do México. O livro de Eduardo França Paiva termina no século XVIII. No alvorecer de uma nova época anunciada pelas revoluções independentistas na América espanhola e pelo novo Império do Brasil, o termo “africano” começa a ser utilizado para nomear negros, mulatos e pardos dos tempos 16


coloniais, contraposto a “americano” (e não criollo), adotado pelos patriotas para se distinguirem dos espanhóis da Europa. No século XIX, em toda a América hispânica, desaparecem oficialmente as nomenclaturas estatutárias de “índios” e de “mestiços” – o caso dos mulatos y pardos é mais complexo e mereceria um estudo detalhado. A homogeneidade teórica da cidadania não supõe o desaparecimento de hierarquias e de exclusões. Nas áreas rurais, que já indicava E. França Paiva, as distinções são numerosas e só desaparecem, embora tardiamente em muitas regiões, no século XX. Nas cidades, outros termos se impõem, como cholos ou lépero, chazos ou “negros” (aqui, sinônimo de mestiços indígenas proletários, como foi o caso na Argentina), que prolongam as castas confusas do século XVIII. No século XXI, ainda que toda forma de racismo seja rechaçada oficialmente, a “raça” é o termo utilizado pelos mexicanos dos Estados Unidos para se autodefinirem. Porém, essa é outra história, cujas raízes, no entanto, se prolongam no universo lexical e laboral, tão bem tratado neste belo livro, cujo conteúdo é também de atualidade para entender o presente.

17


www.autenticaeditora.com.br www.twitter.com/autentica_ed www.facebook.com/editora.autentica


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.