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aborto clandestino sobre a vida e a saúde física e mental das mulheres. Posteriormente, debate-se o aborto tanto à luz dos princípios constitucionais brasileiros quanto da pluralidade de vozes nas sociedades complexas e nas democracias laicas. Finalmente, a autonomia das mulheres é colocada no centro do debate, e é apresentada a experiência de um serviço de aborto legal, em Belo Horizonte. Atual e revelador, este livro é um importante passo para a discussão das questões sobre o aborto voluntário no Brasil e um convite para que todos e todas possam experimentar uma nova visão sobre o tema.
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A aprovação da resolução que demandava do governo brasileiro iniciativas que viessem a rever, no sentido descriminalizante, a legislação brasileira inseriu o tema aborto no campo das políticas públicas, mais especificamente no âmbito da saúde pública. Por outro lado, vale registrar que, no Brasil, seguindo uma tendência mundial, houve no mesmo período um acentuado crescimento e/ou explicitação de posições conservadoras quanto ao tema, por parte de diferentes grupamentos religiosos que ampliaram sua força política no Congresso Nacional. Na sociedade brasileira, apesar da legislação restritiva e criminalizante, a prática clandestina do aborto ocorre em escala que coloca em risco a vida de milhares de mulheres, sobretudo nos extratos de renda mais baixos da população, configurando-se, dessa maneira, como a quarta causa de morte materna no Brasil. Urge, portanto, aprofundar o debate entre nós com a delicadeza que o assunto merece e com a consciência da polêmica que desperta. Nilcéa Freire
A ORGANIZADORA Mônica Bara Maia é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais, especializada em Educação Sexual pela Fundação Mineira de Educação e Cultura, mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e pesquisadora em gênero e saúde. Coordenou a área de comunicação da Rede Feminista de Saúde.
Direito de decidir – Múltiplos olhares sobre o ABORTO
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MÔNICA BARA MAIA (ORG.)
Direito de decidir Múltiplos olhares sobre o ABORTO
www.autenticaeditora.com.br 0800 2831322 ISBN 978-85-7526-335-8
9 788 575 26 335 8
Lançar luzes à discussão sobre o aborto induzido é refletir sobre uma gama complexa de questões que ultrapassam a difícil – quiçá impossível – tarefa de definir o que é vida e quando ela começa. Com a seriedade, a complexidade, a clareza e o olhar multidisciplinar que o assunto merece, este livro, organizado por Mônica Bara Maia, reúne artigos de especialistas de diversas áreas do conhecimento (direito, medicina, psicologia, biologia, filosofia, história e sociologia), com o objetivo de diversificar e qualificar os argumentos em defesa da vida, da saúde física e mental e da autonomia das mulheres. O livro se inicia a partir de duas perguntas que têm se apresentado como básicas nessa discussão: O que é vida? Quando ela começa? Várias são as correntes de pensamentos e teorias, apresentadas na parte inicial deste livro, que tentam chegar a uma definição. Porém, nem mesmo a biologia,“ciência dedicada ao estudo dos seres vivos”, nos apresenta um único e definitivo conceito de vida. A partir dessa constatação, os dois capítulos seguintes buscam compreender o impacto do
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Copyright © 2008 by os autores
CAPA
Patrícia De Michelis sobre imagem de Bruno Sersocima, da stock.xchng (http://www.sxc.hu) EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Waldênia Alvarenga Santos Ataíde Conrado Esteves REVISÃO
Vera Lúcia de Simoni Castro EDITORA RESPONSÁVEL
Rejane Dias Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica sem a autorização prévia da editora. AUTÊNTICA EDITORA LTDA
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil Direito de decidir : múltiplos olhares sobre o aborto / organização Mônica Bara Maia. -- Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. Vários autores ISBN 978-85-7526-335-8 1. Aborto 2. Aborto - Aspectos morais e éticos 3. Aborto - Aspectos psicológicos 4. Aborto - Aspectos religiosos 5. Aborto - Aspectos sociais 6. Aborto - Leis e legislação 7. Mulheres - Saúde e higiene I. Maia, Mônica Bara.
08-05484
CDD-301.5 Índices para catálogos sistemático: 1. Aborto : Sociologia 301.5
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Sumário
Apresentação
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Nilcéa Freire
A polissemia do conceito vida
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Francisco Ângelo Coutinho, Mônica Bara Maia e Fábio Augusto Rodrigues Silva
Saúde da mulher e aborto
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Ricardo Cabral Santiago
Aborto e saúde mental
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Wilza Villela, Eleonora Menicucci de Oliveira e Rosalina Carvalho da Silva
Entre normas e fatos, o direito de decidir: o debate sobre o aborto à luz dos princípios constitucionais
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Roberto Chateaubriand Domingues
Pluralidade de vozes em democracias laicas: o desafio da alteridade
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Alcilene Cavalcante e Samantha Buglione
Feminismo e as lutas pelo aborto legal ou por que a autonomia das mulheres incomoda tanto?
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Claudia Mayorga e Manuela de Sousa Magalhães
Serviços de atendimento ao aborto legal
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Francisco José Machado Viana
Os autores
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Apresentação
A discussão sobre o aborto no País e a primazia das mulheres em tomarem a decisão sobre sua realização foi, desde sempre, revestida de grande simbolismo, porque confronta a sociedade com temas “intocáveis”, como o início da vida humana e a “propriedade” sobre os corpos femininos. Nos últimos anos, e especialmente a partir da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, o tratamento do tema ganhou novos contornos. A aprovação da resolução que demandava ao governo brasileiro iniciativas que viessem a rever, no sentido descriminalizante, a legislação brasileira inseriu o tema aborto no campo das políticas públicas, mais especificamente no âmbito da saúde pública. Por outro lado, vale registrar que, no Brasil, seguindo uma tendência mundial, houve no mesmo período um acentuado crescimento e/ou explicitação de posições conservadoras quanto ao tema, por parte de diferentes grupamentos religiosos que ampliaram sua força política no Congresso Nacional. Na sociedade brasileira, apesar da legislação restritiva e criminalizante, a prática clandestina do aborto ocorre em escala que coloca em risco a vida de milhares de mulheres, sobretudo nos extratos de renda mais baixos da população, configurando-se, dessa maneira, como a quarta causa de morte materna no Brasil. Urge, portanto, aprofundar o debate entre nós com a delicadeza que o assunto merece e com a consciência da polêmica que desperta. Sendo partícipe da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas 7
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de Discriminação contra a Mulher e um dos signatários da Plataforma de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CAIRO, 1974), o Estado brasileiro deve garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres brasileiras através da discussão livre e informada. É nesse sentido que me congratulo com os/as autores/as da presente publicação. Trata-se de um conjunto de textos que contêm reflexões/questionamentos da maior relevância para a compreensão do aborto no País. Mediante uma abordagem multidisciplinar, somos, todas e todos, instigados a buscar as razões pelas quais a controvérsia sobre o aborto segue essa trajetória de avanços e recuos nas sociedades modernas. A leitura atenta deste livro talvez desperte em cada leitor/a mais dúvidas do que reafirme certezas. Mas, sem dúvida, ficará em cada um/a a convicção de que o aborto está mais do que nunca em pauta e à sociedade brasileira, e em especial às mulheres, cabe decidir sobre qual devem ser os próximos passos. Boa leitura! Nilcéa Freire Ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República
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A polissemia do conceito vida Francisco Ângelo Coutinho Mônica Bara Maia Fábio Augusto Rodrigues Silva
Em 1802, o francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) e o alemão Gottfried Treviranus (1776-1837) criaram, independentemente, o vocábulo “biologia” para se referir a uma “ciência dedicada ao estudo dos seres vivos” (COUTINHO; MARTINS, 2002). Na raiz etimológica da palavra, tem-se que “bios” significa vida e “logos”, estudo. Ao propor esse termo, tais pensadores se colocaram na defesa de uma nova ontologia que enfatizasse o que há de comum nas formas vivas e acentuasse suas distinções em relação ao não-vivo (KELLER, 2002). A origem do termo representa um marco de transição para esse campo do conhecimento. Se antes do século XIX já existiam pesquisas “biológicas” que classificavam e descreviam os seres vivos, a identificação da Biologia como uma ciência autônoma, dedicada à compreensão da vida e dos seres vivos, permitiu avanços no entendimento e na inferência sobre os fenômenos biológicos. A Biologia chega ao século XXI como uma ciência com significativos avanços teórico-conceituais e tecnológicos e fornecendo inúmeras contribuições para a sociedade. Ela tem fundamentado reflexões importantes e fomentado debates sobre as mais diferentes questões. E, após tantas pesquisas, discussões e estudos, espera-se que os biólogos possam apresentar um conceito para seu objeto de estudo: a vida. No entanto, por incrível que pareça, há um ceticismo entre a maioria dos biólogos quanto à possibilidade de se estabelecer uma definição para o conceito de vida. Assim, muitos consideram essa procura uma especulação “meramente teórica” ou metafísica, em detrimento 9
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daquilo que realmente importaria: os “fatos” da pesquisa empírica. Para esses biólogos, definir vida não ajudaria em nada na resolução dos quebra-cabeças da ciência normal em Biologia. Por isso, as perguntas “O que é vida?” e “Em que momento se pode considerar alguma coisa como viva?” não seriam relevantes. Ernest Mayr, um dos biólogos mais importantes do século XX e autor de textos de história e filosofia da Biologia, aponta que já foram feitas várias tentativas de se definir vida e que todos os esforços foram fúteis. Ele afirma que, atualmente, nenhuma substância especial, objeto ou força pode ser definida como vida. O que resta ao biólogo é definir e estudar os processos vitais (MAYR, 1982). Ele diz: Elucidar a natureza dessa entidade chamada de “vida” tem sido um dos maiores objetivos da biologia. O problema aqui é que vida sugere alguma “coisa” – uma substância ou força – e por séculos filósofos e biólogos têm tentado identificar essa substância viva ou força vital, sem proveito. Na realidade, o nome “vida” é meramente a reificação do processo de estar vivo. Ela não existe como uma entidade independente. (MAYR, 1997, p. 2)
Assim, os principais argumentos de Mayr para a questão da definição de vida são: o termo “vida” não pode ser definido, uma vez que a noção de vida é um hipostaseamento ou uma reificação dos processos vitais; a empreitada não é importante para a Biologia; e o que pode ser definido, ou pelo menos aproximadamente demarcado, são os processos vitais, por meio de uma lista de propriedades. Há de se destacar, no entanto, que essa idéia de lista de propriedades traz muitos problemas. Afinal, podem surgir as seguintes questões: quais e quantas seriam as propriedades suficientes para a classificação de um ser como vivo? Qual a lista de propriedades mais correta? Além disso, há formas limítrofes – vírus e outras estruturas moleculares – que podem ter características tanto de seres vivos quanto de seres inanimados (EMMECHE; EL-HANI, 1999; EMMECHE; EL-HANI, 2001). Por outro lado, o que nos parece problemático quanto ao ceticismo sobre a possibilidade de definição de vida e à preferência por definições baseadas em lista de propriedades é a atitude subjacente, a 10
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qual nós podemos chamar de “essencialismo”, que se sustentaria, por sua vez, em uma metafísica objetivista (LAKOFF, 1987). Vejamos como isso ocorre. Corretamente, Mayr considera que vida não é uma entidade do mundo. No entanto, também não é um hipostaseamento de processos, como ele pensa, porque, quando buscamos definir vida, não estamos lidando com uma coisa, mas com um conceito teórico. Ao procurar as propriedades definidoras de processos vitais, Mayr e outros céticos confundem a definição de um conceito teórico com o inventário de propriedades essenciais pelas quais uma coisa pertence ou não a uma categoria, no caso, das coisas vivas. É a essa atitude que chamamos de essencialismo. Essencialismo é a suposição de que as coisas possuem uma natureza íntima, ou propriedades essenciais, que faz com que elas sejam o que são ou, sem a qual, as coisas não podem ser o que são. As propriedades essenciais seriam aquelas que uma determinada entidade não poderia perder e continuar a ser entendida como pertencente a uma dada categoria. Ao longo de toda a história da Filosofia, houve muitas tentativas de encontrar tais essências e, muitas vezes, o conhecimento verdadeiro foi concebido como aquele capaz de captar as essências. Orientados por uma crítica da visão essencialista, Emmeche e ElHani (1999 e 2001) apresentam um novo tipo de abordagem. Eles defendem que conceitos como vida, mente, consciência e matéria estão situados na fronteira tênue entre a Ontologia e a Ciência, sendo, portanto, termos muito gerais. Esses conceitos gerais são denominados por eles de ontodefinições. Para Emmeche e El-Hani, as ontodefinições: [...] definem, de forma mais geral, o que os cientistas estão buscando em uma ou mais áreas da pesquisa científica e, ao mesmo tempo, fornecem um esquema básico para a compreensão e explicação da natureza de seus objetos de estudo. As ontodefinições têm um caráter integrativo, mas freqüentemente vago e implícito, no interior dos paradigmas científicos. (EMMECHE; EL-HANI, 2001, p. 36) 11
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As ontodefinições seriam construções teóricas que se estruturam a partir de um paradigma científico. Muitas vezes, para se alcançar a definição do conceito de um programa de pesquisa da Biologia contemporânea, é necessário analisar a teoria que o fundamenta. Com isso, definir vida não é uma tarefa inatingível, mas também não tem um resultado homogêneo, sendo que diferentes definições podem ser encontradas nos diversos programas de pesquisa da Biologia e na história da Ciência (EMMECHE; EL-HANI, 2001; COUTINHO, 2005). Assim, para contribuir com o debate sobre o conceito de vida, vamos apresentar alguns dos programas de pesquisa da Biologia contemporânea e tentaremos mostrar como existe uma diversidade grande de significados que podem ser atribuídos ao conceito mais importante desse campo de conhecimentos.
O conceito de vida na Biologia Molecular A Teoria Sintética da Evolução é o resultado do trabalho de diferentes pesquisadores do século XX que se preocuparam em responder por que as coisas vivas se apresentam em tamanha diversidade de formas ou por que elas se transformam ao longo do tempo (MEYER; EL-HANI, 2001). Essa teoria tem fundamentado inúmeros programas de pesquisa da Biologia contemporânea e é considerada, por alguns pensadores, como central ao pensamento biológico moderno. Nesse sentido, muitos biólogos fazem eco à declaração de Theodosius Dobzhansky (1900-1975), importante pesquisador do século XX, afirmando que: “Nada em Biologia faz sentido exceto à luz da evolução” (DOBZHANSKY, 1973). O que chamamos de Teoria Sintética da Evolução é, na verdade, uma estrutura complexa que resulta da união da Teoria de Seleção Natural de Charles Darwin (1809-1882) e da Teoria Genética da Herança de Mendel (1822-1884). Posteriormente, ela foi incrementada pelo modelo dupla-hélice do DNA e pelas contribuições da genética molecular. Ao longo do século XX, essa teoria foi sendo estudada, debatida, questionada e reformulada em um processo que resultou no desenvolvimento de uma heterogeneidade de concepções associadas ao seu corpo teórico. Por isso, analisando os principais programas da 12
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Teoria Sintética, podemos obter pelo menos três definições de vida diferentes: duas que se alicerçam no papel central dos genes e outra que se atenta para as interações entre os organismos e o ambiente (COUTINHO, 2005). Entretanto, antes de apresentar essas diferentes definições de vida, vamos expor as idéias centrais compartilhadas por pesquisadores, teóricos e programas de pesquisa da Teoria Sintética. Em comum, esses programas identificam o mecanismo de seleção natural proposto por Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) como a principal explicação para o problema da diversidade e da modificação dos seres vivos. O mecanismo de seleção natural foi apresentado ao grande público quando Darwin publicou, em 1859, o livro denominado A Origem das Espécies. Para entender o princípio da seleção natural, vamos considerar as seguintes informações: em uma população natural existe variabilidade de características entre os organismos de uma mesma espécie, sendo que algumas dessas variações podem ser herdadas pelas gerações futuras. Geralmente, todas as espécies têm um grande potencial reprodutivo e, se todos os indivíduos conseguissem reproduzir, as populações cresceriam em progressão exponencial. Essa tendência de aumento exponencial da população propicia o estabelecimento de uma luta pela sobrevivência. Os indivíduos da mesma espécie passam a competir pelos recursos do ambiente. Os indivíduos que possuem uma ou mais características que lhes forneçam maiores vantagens para a sobrevivência, em determinado meio, têm maiores probabilidades de reproduzir e gerar descendentes com características semelhantes. Esse processo de seleção, acontecendo ao longo de várias gerações, permitiu e permite o estabelecimento de diferenças entre as espécies. Na época do lançamento do A Origem das Espécies, o grande questionamento ao mecanismo de seleção natural estava relacionado ao fato de que Darwin não produziu uma boa explicação para a origem das variações e para a transmissão das características hereditárias, elementos essenciais de sua estrutura teórica. Essas explicações foram aportadas pelos trabalhos de Gregor Mendel e de Hugo de Vries (1848-1935) e 13
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permitiram atribuir aos genes e às mutações – alterações nos genes – a origem da diversidade entre os seres vivos. Durante as décadas de 1930 e 1940, a teoria darwinista da evolução, baseada no mecanismo da seleção natural, recebeu outros aportes importantes provenientes da genética mendeliana, da observação de populações naturais, de experimentos de laboratório, da paleontologia e da matemática (BLANC, 1994). Essas contribuições reformularam os princípios da Teoria da Evolução, que, denominada de Teoria Sintética ou Síntese Moderna, repousa em duas proposições principais: 1) a evolução consiste no surgimento de outras variantes de genes por mutação cega ou não-dirigida pelo ambiente, nas populações, seguida da substituição gradual, sob a ação da seleção natural, das variantes menos adaptadas pelas mais adaptadas; 2) o mesmo mecanismo de modificação da composição genética das populações, a seleção natural, permite explicar como uma espécie gradualmente dá origem à outra, em conseqüência da diferenciação genética de uma de suas subespécies. Coutinho (2005) argumenta que esses pressupostos criaram um contexto para o estabelecimento de um vínculo do pensamento evolucionista a uma compreensão dos sistemas vivos que podemos denominar de “concepção genecêntrica”. A evolução passa a ser entendida como um processo de transmissão de genes mais competitivos para as futuras gerações, sendo essas entidades consideradas a unidade de seleção. Então, dentro dessa visão genecêntrica da Teoria Sintética, encontramos nos trabalhos de Richard Dawkins (1941-) uma definição implícita para o conceito de vida. Na visão de Dawkins, o gene é entendido como a unidade de seleção que, sofrendo a ação da seleção natural, sobrevive ao longo das gerações. Os organismos são simplesmente veículos ou máquinas de sobrevivência dos genes (DAWKINS, 1979). Dawkins construiu esse argumento propondo um cenário de origem da vida no qual, do mundo pré-biótico inicial, surgiram moléculas denominadas de replicadores (entidades que fazem cópias de si mesmas). Tais moléculas teriam surgido por meio da união espontânea de seus monômeros constituintes, que estariam na sopa primordial, e teriam a capacidade fundamental de servir de molde para a síntese de cópias de si mesmas. Na medida em que os blocos de construção para 14
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esses replicadores foram ficando mais escassos, muito provavelmente ocorreu uma competição entre essas moléculas. As moléculas que eram mais estáveis e se replicavam com maior velocidade e precisão tendiam a sobreviver, enquanto as outras tendiam, aos poucos, a se extinguirem. Dessa forma, ocorria no cenário primordial uma verdadeira luta pela sobrevivência entre as linhagens de replicadores. O processo de melhoramento das moléculas era cumulativo. Aquelas moléculas capazes de aumentar sua estabilidade e de diminuir a de seus rivais eram mais eficientes. Algumas variedades podem ter encontrado uma forma de quebrar quimicamente as moléculas de linhagens “rivais”, de maneira a utilizar seus constituintes para fazer as próprias cópias. Outros replicadores poderiam também ter encontrado meios de protegeremse dos ataques rivais, formando uma barreira de proteínas ou lipídeos ao redor de si. A partir desse momento, os replicadores começaram a constituir envoltórios protetores, que seriam veículos para sua existência ininterrupta. Os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram as máquinas de sobrevivência mais eficazes para morarem. Esses replicadores que sobreviveram, segundo Dawkins, recebem hoje o nome de genes (DAWKINS, 1979). Por tudo isso, considera-se que a concepção de Dawkins reduz a vida à seleção natural de replicadores ou genes (EMMECHE; EL-HANI, 2001). Esses replicadores ou genes seriam aquilo que, na matéria, é responsável pelo processo da vida, ou que, em si, seria a própria vida e que utiliza os organismos como veículos de sobrevivência. A outra definição de vida, associada ao papel dos genes, que podemos extrair da Teoria Sintética está totalmente assentada sobre esse conceito e sobre o que se pensou ser um gene. De certa forma, essa concepção de vida está fundamentada em importantes resultados da Biologia e da genética moleculares que contribuíram para definir o que são genes. Esses resultados influenciaram os estudos evolutivos já que um dos pressupostos básicos da Teoria Sintética é a mudança na composição gênica da população. Durante os últimos 150 anos, pesquisadores da Biologia molecular trouxeram muitas contribuições para a compreensão dos processos relacionados à hereditariedade. Entre essas contribuições, pode-se citar: a descoberta do DNA em 1869 – um polímero de nucleotídeos – e 15
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sua posterior identificação como a substância responsável pela especificidade biológica; a proposta de um modelo dupla-hélice para a molécula de DNA, por Watson e Crick em 1953; e a sugestão de Crick, em 1957, de que o DNA, por meio da seqüência de nucleotídeos, serviria de código para a construção de proteínas. Em 1944, o físico Erwin Schrödinger, em um livro fundamental para o desenvolvimento da Biologia molecular e para a própria pesquisa sobre a estrutura molecular do DNA, já assegurava sobre a possibilidade de existência de um código. Schrödinger (1997) afirmava que os cromossomos, estruturas compostas por DNA e presentes no núcleo das células, contêm sob a forma de algum código todo o padrão do desenvolvimento futuro do indivíduo e de seu funcionamento no estado maduro. Em 1961, François Jacob e Jacques Monod apresentaram uma concepção semelhante à de Schrödinger. Eles afirmaram que o genoma contém um programa que coordena a síntese protéica, e, por conseqüência, o desenvolvimento de um ser vivo (JACOB; MONOD, 1961). Essa metáfora do programa introduz um espaço conceitual não só para pensar-se a realização de um organismo completo a partir de um ovo – denominado de paradoxo do desenvolvimento – mas, principalmente, para pensar a própria noção de ser vivo. Na visão desses autores, um ser vivo é a “realização de um programa prescrito pela hereditariedade” (JACOB, 1983, p. 10) ou “objetos dotados de um projeto” (MONOD, 1976, p. 21). Jacob e Monod oferecem uma possível compreensão da vida como o produto de um programa codificado no genoma. O DNA carrega o projeto, na forma de um programa interno ao ser vivo, de construção dos organismos. É a posse desse programa que caracteriza um objeto como ser vivo, já que é esse programa que o realiza, ou seja, é ele que é seu projeto. Ainda, segundo Jacob, “um organismo é apenas uma transição, uma etapa entre o que foi e o que será. A reprodução é ao mesmo tempo sua origem e seu fim, sua causa e seu objetivo” (JACOB, 1983, p. 10). A terceira definição de vida que pode ser extraída da Teoria Sintética se distancia das concepções genecêntricas e foi apresentada por David Hull (HULL, 1980; HULL, 2001). O trabalho de Hull aponta para um profundo engano na visão de que a vida e o processo de seleção 16
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natural se resumem a uma seleção de replicadores ou de um programa determinado por um conjunto de genes. Hull identifica os genes como unidades de replicação fundamentais ao processo evolutivo, mas eles não seriam os agentes causais da seleção natural. A argumentação de Hull busca mostrar que genes formam somente um dos níveis de organização biológica; nível este que é distinto e não pode realizar as funções de outros níveis, como organismos e espécies. Na sua visão, na evolução biológica a seleção natural atual sobre múltiplos níveis, sendo um processo hierárquico. Hull, então, introduz o termo geral Interator para designar “qualquer entidade que produz replicação diferencial, interagindo como um todo coeso com o seu ambiente”. Utiliza ainda o termo Replicador em referência “a qualquer entidade que passa sua estrutura diretamente por replicação”. Segundo Hull, uma explicação da seleção natural deve incluir ambos os conceitos. Diz ele: “[...] evolução por meio de seleção natural requer uma interação entre replicadores e interatores. Ambos os processos são necessários. Nenhum é suficiente” (HULL, 1980, p. 319). O sucesso adaptativo dos seres vivos dependeria da ação recíproca entre interatores e replicadores, isto é, da replicação da informação genética e da interação dos organismos com o ambiente. Nesse sentido, os replicadores estão causalmente relacionados a interatores, e a sobrevivência desses interatores é causalmente responsável pela perpetuação diferencial dos replicadores (HULL, 2001). Pode-se dizer, então, que a seleção natural atua na interação, não na replicação (GOULD, 2002). Ao estabelecer que a evolução biológica é um processo hierárquico no qual a unidade de seleção diz respeito ao nível de interação, Hull fornece uma definição de vida em termos de relações. A vida é seleção de níveis que possuem a propriedade da interação.
O conceito de vida na Teoria da Autopoiese Além da Teoria Sintética da Evolução, outros programas de pesquisa da Biologia, no século XX, ofereceram diferentes visões sobre a natureza e se distanciaram da noção de informação genética ou bioló17
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gica como algo necessário à vida. Como exemplo, vamos apresentar a Teoria da Autopoiese de Humberto Maturana (1928-) e Francisco Varella (1946-2001) proposta na década de 1970. Essa teoria procura oferecer uma definição explícita do conceito de vida. Para construir essa acepção de vida, Maturana e Varella se valem de uma proposição quantitativamente universal, contendo maior poder preditivo e conteúdo passível de falseamento. Segundo essa versão, “todo organismo vivo possível é feito de células” (BARBIERI, 2001, p. 21). Dessa forma, a célula é identificada como componente fundamental de toda forma de vida que poderia existir, incluindo possíveis seres vivos extraterrestres e criaturas vivas que poderiam ser produzidas pelo programa de pesquisa em vida artificial. Nessa versão da teoria, a célula é a unidade lógica do mundo vivo, tanto quanto os átomos são as unidades lógicas do mundo físico. Em outras palavras, o que se declara aqui é que não existe vida sem células, podendo-se propor, assim, a seguinte definição de vida: “vida é o estado de atividade da célula e dos sistemas celulares”. A grande questão da Biologia, “o que é vida?”, torna-se, dessa forma, equivalente à seguinte pergunta: “o que é a célula?” (BARBIERI, 2001, p. 22). Baseando-se na idéia de que a célula é a unidade fundamental da vida, Varela, Maturana e Uribe fizeram uma importante contribuição para as discussões sobre as definições de vida (VARELA et al., 1974). Nesse artigo de 1974, hoje clássico, os autores introduziram a palavra “autopoiese” para caracterizar o ser vivo. O conceito de autopoiese estaria relacionado ao fato de que pode ser percebida, em todos os seres considerados vivos, a capacidade de contínua reparação por si mesmos. Essa característica está relacionada à segunda lei da termodinâmica que impõe pensar que os organismos devem estar em perpétuo estado de atividade, a fim de poderem continuar vivendo. Um organismo deve estar constantemente reparando-se, ou seja, ele deve ser capaz de permanente autoprodução ou autopoiese. Segundo Maturana e Varela, o que caracteriza e define então um ser vivo, e, por conseqüência, a vida, é a organização autopoiética, um modelo que procura capturar o ser vivo como um sistema e o qualifica como um tipo particular de sistema. Esse sistema especial seria uma rede de componentes nos quais os componentes produzem a própria 18
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rede que, por sua vez, produz os componentes. Essa proposta de Maturana e Varela (1995) procura uma resposta que foge da enumeração de propriedades, simplificando o problema da definição para o conceito de vida a uma noção que envolve a questão da organização. Segundo eles, a célula, a unidade mínima de vida de acordo com a teoria celular, é um sistema que se define por sua organização autopoiética. Mas podemos perguntar, especificamente, o que é essa organização autopoiética celular, esse construir-se a si mesmo? Em primeiro lugar, dizem os autores, os componentes moleculares devem estar dinamicamente relacionados em uma rede de interações. Essa rede de interações é o que se chama de metabolismo celular e tem a peculiaridade de produzir componentes que integram a própria rede que os produzem. Em segundo lugar, alguns desses componentes constituem uma membrana, uma fronteira para essa rede de transformações. Essa membrana torna possível uma clivagem no espaço. É bom que se diga, no entanto, que essa fronteira não só limita a extensão da rede que produziu seus componentes integrantes, como também participa da rede. Assim, outra característica marcante de um ser vivo é que ele cria a si próprio e se constitui como distinto do meio circundante mediante uma dinâmica própria. Essa organização autopoiética permite interpretar os seres vivos como unidades autônomas – ou seja, sistemas capazes de especificar as próprias leis (MATURANA; VARELA, 1995). É a partir dessa autonomia que os seres vivos simultaneamente se realizam e se especificam. “O ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, e esse constitui seu modo específico de organização” (MATURANA; VARELA, 1995, p. 89). Disso resulta que o ser vivo é um sistema fechado. A vida é um operar que impõe uma fratura espacial, cuja própria clausura faz parte do operar. Embora não haja nada que possa ser apontado, internamente ao sistema, como hierarquicamente determinante das propriedades do ser vivo, a vida é, de acordo com a Teoria da Autopoiese, um determinado tipo de fechamento operacional. Até o momento, tudo que foi dito sobre Teoria da Autopoiese utilizou a célula como modelo privilegiado de descrição dos sistemas vivos. No entanto, além dos seres vivos unicelulares, há os organis19
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mos multicelulares. Será que estes organismos podem ser considerados unidades autopoiéticas? Maturana e Valera os chamam, provisoriamente, de “sistemas autopoiéticos de segunda ordem” (MATURANA; VARELA, 1995, p. 124). Reconhecendo a dificuldade da pergunta, deixam-na em aberto e afirmam que, de qualquer forma, o que é necessário reconhecer é que também os seres multicelulares possuem clausura operacional.
O conceito de vida na Teoria Biossemiótica Outra definição de vida alternativa à Teoria Sintética nos é oferecida pela Biossemiótica. A Biossemiótica (bios = vida & semion = signo) é um campo de investigação interdisciplinar que estuda a comunicação e a significação em sistemas vivos (SHAROV, 1998a). Ela tem sido considerada como um novo programa de pesquisa da Biologia (ou Biologia teórica) no século XXI, cujo objetivo “é reconstruir a história natural dos signos, descrevendo a evolução dos diferentes sistemas de signos e de interpretação de signos da natureza, desde os sistemas genéticos até linguagem humana” (EMMECHE; EL-HANI, 2001, p. 48). Os pesquisadores desse campo defendem que as entidades vivas interagem como corpos físicos e como mensagens. A Biossemiótica considera a interpretação de signos a propriedade fundamental dos sistemas vivos e a toma como definidora da vida (EMMECHE, 1997; EMMECHE, 1998). O desenvolvimento dessa visão das entidades vivas está relacionado ao livro de Jacob von Uexküllv intitulado Umwelt und Innenwelt der Tiere (Ambiente e mundo interior dos animais). Nesse livro de 1909, von Uexküllv identificou os animais como intérpretes de seus ambientes. Esse ambiente seria subjetivamente interpretado somente por organismos vivos. O ambiente se refere ao mundo fenomênico do organismo, o mundo ao seu redor tal como percebido por ele. Segundo Uexküll, a habilidade dos animais de interpretar o mundo é uma condição necessária para que possam sobreviver. O trabalho de Sebeok (1972), no qual encontramos uma teoria de zoosemiótica, contribuiu para a subseqüente integração da Biologia e da semiótica. Segundo Sebeok, os signos utilizados por animais (visuais, acústicos e quími20
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cos) são processados por seus sistemas nervosos da mesma forma como em humanos. Assim, noções da semiótica humana devem, em sua visão, ser estendidas à zoosemiótica. Estudos posteriores argumentam que a interpretação de signos não requer necessariamente um sistema nervoso. Por exemplo, Krampen (1981) sugeriu que mesmo plantas são capazes de interpretar signos – um exemplo seria a capacidade delas de crescer em direção à luz – e Hoffmeyer (1996) desenvolveu a teoria de que os organismos são mensagens, que descrevem a arte de sobreviver e reproduzir para as gerações futuras. Seguindo Hoffmeyer, defrontamo-nos com a concepção de que os organismos são mensagens, no sentido de que todo organismo tem uma autodescrição escrita na forma de DNA. Essa autodescrição vem de gerações passadas e sumariza as experiências dos ancestrais na arte de sobreviver. Assim, os organismos têm uma natureza dual: eles representam a eles mesmos e são mensagens expedidas às gerações futuras. Um dos problemas básicos do paradigma biossemiótico é o de explicar como surgiram sistemas capazes de interpretar o mundo (SHAROV, 1998b). Em organismos menos complexos, a interpretação é sempre reduzida a alguma ação simples. Por exemplo, para uma mariposa, o som de um morcego significa “fuja”; já para uma alga unicelular, uma fonte de luz significa “mova para cá” (SHAROV, 1998b). De acordo com Sharov (1998b), muitos acreditam que a atividade de um organismo esteja predeterminada em sua estrutura. Mas isso é somente metade da resposta, dado que a ação e a estrutura fazem parte do que se chama “organização”. Dessa forma, a ação e a estrutura estão integradas em um organismo. Faz-se necessária, então, outra noção, que nos permita entender o fenômeno da interpretação. Tal noção é introduzida, para Sharov, com o termo Valor. Valores podem ser aplicados a vários tipos de atividade: comer, dormir, mover, crescer, reproduzir, etc. Avaliando objetos e processos, o organismo interpreta subjetivamente o mundo e a ele mesmo e, ao fazê-lo, constrói seu ambiente (SHAROV, 1998a). Deve-se compreender, porém, que o valor não é uma qualidade nem do organismo nem do objeto. Por exemplo, preferimos 21
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uma barra de ouro a um copo d’água. Contudo, em uma situação extrema, o copo d’água pode ser muito mais preferível, por exprimir a diferença entre a vida e a morte. O valor se situa, assim, na relação entre o objeto e o organismo. Assim, a noção de valor é muito importante para entender-se o fenômeno da vida. Componentes do ambiente podem ter valor positivo ou valor negativo para um organismo. Por exemplo, recursos têm valores positivos, e objetos perigosos (por exemplo, inimigos) têm valores negativos. Também podem ser aplicados valores a vários tipos de atividade: comer, dormir, locomover, crescer, reproduzir, etc. A ação do organismo em relação a objetos externos, então, torna-se incorporada à organização (ação-estrutura). Como resultado, o organismo desenvolve seu ambiente ao associar objetos externos a ações específicas, ou seja, ao interpretar o mundo. No paradigma Biossemiótico, o foco não é a organização de moléculas nem a seleção natural de moléculas replicadoras, mas a comunicação de signos na natureza (EMMECHE, 1998). É a relação de signos em várias escalas biológicas que deve ser encarada como objeto próprio da Biologia, uma vez que a vida é fundamentalmente comunicação (PATTEE, 1995). Aqui, então, encontramos mais uma vez a definição de vida em termos de relação. A compreensão de que vida é relação é melhor alcançada quando levamos em consideração a própria natureza do signo. Sendo a vida compreendida como comunicação, podese então dizer que a unidade de estudo da Biologia é a relação sígnica, mais do que relações entre moléculas. A vida não é algo possuído ou doado a uma determinada entidade, não é instância material e, portanto, uma substância no mundo – pois, fundamentalmente, a vida acontece nas relações semióticas entre os organismos e o ambiente.
O conceito de vida nos estudos sobre vida artificial O programa da Vida Artificial é um campo de pesquisa preocupado em estabelecer uma definição explícita de vida. Segundo Moreno e Fernandez (2001), a Vida Artificial é o estudo de sistemas construídos pelo homem que exibem comportamentos característicos dos 22
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seres vivos.1 Bedau (1996) afirma que esse campo interdisciplinar tenta entender a essência natural dos seres vivos por meio de modelos implementados por computadores. Esse programa de pesquisas propõe ultrapassar o estudo da vida para além dos sistemas constituídos por carbono, substrato material do qual todos os seres vivos conhecidos são feitos. Segundo Langton (1989), na prática, a Biologia tem se dedicado a apenas um único tipo de vida conhecido até o momento. Mas, em princípio, não há nada que restrinja a Biologia a esse tipo de estudo, dado que nada impede que a vida possua outras bases materiais, além do carbono. Assim, a Biologia teórica poderia ser entendida como o estudo da forma dinâmica da vida, sem referência ao substrato material. Langton argumentou que é difícil de encontrar princípios gerais quando se tem somente um exemplo de vida. Todos os seres vivos da Terra compartilham a mesma base bioquímica e, com raríssimas exceções, o mesmo código genético. Mais ainda, todos eles evoluíram em resposta a acidentes históricos locais. Por isso, a Biologia teórica tem enfrentado o problema da impossibilidade de derivar teorias gerais de um único exemplo, uma vez que uma definição de vida não pode ser restrita à forma de vida terrestre, baseada na química do carbono (RAY, 1996). Segundo Langton, a Vida Artificial, através da síntese de novos sistemas reconhecíveis como formas alternativas de vida, pode auxiliar na busca de construção de uma teoria e de uma definição universal de vida. Os estudos são feitos por meio de simulações de computador que propiciam “condições materiais e formais tais que, a partir de interações simples, podem emergir estruturas e comportamentos complexos e funcionais análogos àqueles que caracterizam o universo biológico” (MORENO; FERNANDEZ, 2001 p. 261). A Vida Artificial segue os passos da proposta da Inteligência Artificial, assumindo uma orientação funcionalista, segundo a qual as propriedades dos sistemas vivos são conseqüência de uma determinada organização, e não de sua materialidade (MORENO; FERNANDEZ, 2001). 1
Exemplos de Vida Artificial podem ser encontrados na página de Karl Sims, disponível em: <http://www.genarts.com/karl/>. 23
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Entre os pesquisadores e filósofos da Vida Artificial, encontramos Mark Bedau, em cujos estudos há uma tentativa de se definir vida não utilizando listas de propriedades, estereótipos ou modelos da vida cotidiana. Na tentativa de definir vida, Bedau (1996) afirma que a vida é um tipo natural e propõe uma definição evolucionária radical, segundo a qual vida é “adaptação flexível” (supple adaptation). Normalmente as definições de vida estão focadas sobre algum tipo de individualidade (seja ela a célula, o organismo, o gene). No entanto, sistemas vivos estão continuamente explorando seus nichos e trocando material, energia e informação com seus ambientes locais. Assim, Bedau, ao invés de focar na individualidade, afirma que um sistema capaz de adaptação às contingências de um ambiente imprevisível (adaptação flexível) deveria ser considerado como a forma de vida primária. Um sistema exibe adaptação flexível quando produz e alcança novos tipos de resposta significativa a novos tipos de desafio e oportunidade adaptativa. Pode-se compreender um sistema que exibe adaptação flexível como uma população ou um ecossistema ou, finalmente, toda a biosfera, entendidos todos eles em suas múltiplas interações (BEDAU, 1998). Na visão de Bedau, componentes particulares dentro de um sistema que exibe adaptação flexível, como um único organismo, por exemplo, não são capazes de evolução – pois essa é uma propriedade de populações – e, por não serem capazes de evolução, não podem ser entendidos como vivos. O componente deve ser qualificado como vivo – forma secundária de vida – somente em virtude de suas relações dentro do sistema que exibe um processo evolutivo de contínua adaptação às mudanças ambientais. A mula, por exemplo, que não é capaz de reprodução, pode, dentro da concepção de Bedau, ser qualificada como ser vivo em função de participar de uma população reprodutiva, mas deve ser entendida como forma secundária de vida. Como já dito, a população reprodutiva mais ampla é que é a forma primária de vida (BEDAU, 1998). Novamente, podemos dizer que encontramos com a definição de Bedau, mais uma vez, uma definição de vida em termos de relações de entidades do mundo. A vida, nessa abordagem, deve ser compreendida como uma relação, basicamente porque sistemas que exibem 24
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adaptação flexível pressupõem, no mínimo, relações entre entidades e dessas entidades com o meio. Sendo assim, por ser essencialmente relação, a vida existe em diferentes níveis de organização, e a distinção entre vivo e não-vivo é uma questão de grau, e não uma distinção tudo-ou-nada. Por exemplo, um organismo multicelular é considerado uma forma de vida por participar de uma população reprodutora que exibe adaptação flexível. Isso não significa que não se possa atribuir algum grau de vida às suas células componentes. Então, conceber vida como algo inerente aos sistemas que possuem adaptação flexível é entendê-la como uma relação das entidades do mundo entre si e dessas entidades com o ambiente (COUTINHO, 2005). A vida é uma relação que existe em diferentes níveis de organização, e a distinção do vivo e não-vivo depende do nível que está sendo analisado.
Considerações finais O presente ensaio não é, definitivamente, uma tentativa de consensuar o que seja a vida. Nesta pequena trajetória, a única conclusão que se pode afirmar categoricamente é que a própria Biologia, a “ciência dedicada ao estudo dos seres vivos”, não nos apresenta um único e definitivo conceito de vida. Ao mesmo tempo em que este ensaio não busca responder ao que seja a “vida”, ele traz inúmeras outras questões: como podemos demarcar a fronteira da vida, quando se trata de seres humanos? Como dizer quando a vida começa ou quando ela termina? Como fazer a distinção entre o vivo e o não-vivo? A quem cabe a palavra final? Se adotarmos a visão genecêntrica, até espermatozóides e óvulos seriam uma forma de vida, e toda prática contraceptiva – bem como a masturbação – teria de ser condenada. Mesmo que algumas religiões professem tal crença, não se trata de um consenso nem entre as religiões, muito menos um consenso social e cultural. Por outro lado, em termos do sentimento religioso, a idéia de vida está pacificada sobre a crença de que toda vida é dada por Deus, e 25
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só por ele pode ser disposta. Tal profissão de fé se baseia em um dogma sobre o qual não nos compete tocar aqui: o de que existe um ser superior onipresente, onisciente e onipotente que planejou e arquitetou o mundo tal como o conhecemos. Partindo, então, da constatação de que não há consenso científico sobre o conceito de vida e de que o consenso religioso se aplica apenas a parcelas da sociedade, e não a toda ela, nossas reflexões finais estão no sentido de buscar um consenso político quando tal conceito se fizer necessário. Tal consenso não deve ser dogmático ou imutável e deve atender à diversidade cultural e complexidade das sociedades contemporâneas e manter a dignidade das pessoas, principalmente a das mulheres.
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