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Prefácio
Mônica Sodré 1
“O futuro não é mais como era antigamente” é um dos trechos célebres de “Índios”, canção brasileira, composta por Renato Russo, popularizada na década de 1980, imbuída de crítica a nosso processo de colonização, baseado no acúmulo material e na exploração. A luta dos colonizadores marca a origem da dissociação entre homem e natureza do lado de cá dos trópicos, atribuindo ao primeiro a exclusividade na produção de valor, ao mesmo tempo que considera a natureza como uma externalidade, um obstáculo a ser removido.
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De lá para cá, mais de 500 anos se passaram, e inegáveis avanços, em todas as áreas, foram conquistados. A despeito deles, a visão que coloca em lados opostos homem e natureza ainda não foi completamente superada. Nesse tempo, o mundo também mudou. A questão climática ascendeu à agenda econômica e política, deixando de ser uma questão ambiental e se tornando cada vez mais uma questão econômica e de desenvolvimento, ditando, assim, os rumos da geopolítica e do comércio internacional. A revolução tecnológica trouxe novos desafios a nossa democracia, prejudicando a capacidade de discernir entre o verdadeiro e o falso e tornando ainda mais frágeis as relações de confiança, tanto entre pessoas quanto entre pessoas e instituições. Por sua vez, esse mesmo avanço permitiu ganhos de produtividade agrícola sem a degradação de novas áreas, assim como o desenvolvimento de biotecnologia e de Soluções baseadas na Natureza (SbN), e em breve permitirá também o surgimento de novas tecnologias, algumas ainda nem sequer imaginadas.
Do blockchain2 à inteligência artificial (IA), que começa a fazer parte do dia a dia das pessoas, novas possibilidades se abrem para o combate à emergência do clima, com a IA permitindo melhor monitoramento de queimadas, construções mais eficientes do ponto de vista energético, criação de novos materiais com baixo nível de carbono e remoção de CO2. Para um país rico em sociobiodiversidade, um dos maiores produtores de alimentos do globo e que figura entre os maiores produtores de vida do mundo, abre-se uma oportunidade única de figurar e se reposicionar no mercado global a partir da produção de soluções, superando o atual modelo extrativista, com assimetrias nos ganhos e desigualdade em sua distribuição, e historicamente exportador de matérias-primas agrícolas e minerais. Diante disso, como imaginar o futuro quando ele é radicalmente diferente do futuro de antigamente? Que apostas e escolhas políticas devemos fazer hoje, diante de um futuro incerto e que chega mais rápido a cada dia, se quisermos mudar o rumo das coisas? Como lidar com o passado, reconhecendo sua importância, mas sem deixar que ele nos aprisione? Que questões deveríamos estar formulando para o nosso país? Que novas institucionalidades devem dar suporte a elas? Que inquietações deveriam nos inquietar?
Essas são algumas das reflexões que orientam Inquietações de um Brasil contemporâneo, primeiro exercício resultante do esforço coletivo dos membros do Programa de Fellows do Instituto Arapyaú e que nasce como uma contribuição da sociedade civil ao país justamente num momento em que se renovam as esperanças sobre o amanhã e em que uma nova janela de oportunidade, política, abre-se diante de todos nós. Como fio condutor, há não só o acúmulo intelectual, profissional e a vivência dos autores, mas também, justamente, as respectivas inquietações sobre o desconhecido, o ainda não visto ou aquilo para o qual é necessário abrir caminhos.
2 O blockchain é uma tecnologia de registro de transações que fornece um sistema seguro e transparente, eliminando a necessidade de uma autoridade centralizadora. Ele já é amplamente utilizado e possui o potencial de democratizar o acesso a serviços financeiros, promover a transparência em governos e organizações, além de facilitar a troca confiável de informações entre várias partes sem a necessidade de intermediários.
O livro, sobre o qual se espera interação com o leitor e também uma revisitação periódica à luz da revisão e da evolução de posições, é mais do que um diálogo com a realidade. É, sobretudo, um chamado às perguntas e escolhas que precisarão ser feitas se quisermos outras realidades. Sua chegada ao público se dá no momento em que assistimos ao esgotamento do ciclo de estabilidade, que deu origem à nova República, dar lugar às maiores ameaças ao regime desde a década de 1960, o que o torna uma contribuição valorosa para nossa democracia. Oferece, ainda, contribuições a partir da sociedade civil, justamente tendo no horizonte a perda de legitimidade dos Estados e dos governos, uma das origens da crise do próprio regime democrático, e a partir da consciência de que governos não são mais capazes de dar, sozinhos, respostas aos problemas do mundo e das pessoas. Diante disso, compreende e assume um lugar de destaque perante os novos papéis políticos exigidos da sociedade civil no debate, no apontamento e na construção dessas soluções e respostas, que não podem nem devem ser exclusividade dos espaços de representação e que passam por múltiplas dimensões – como os novos contornos do ambientalismo, a relação com a filantropia, inclusive auxiliando-a a se tornar mais estratégica, as novas relações com o setor privado, oriundas da agenda ESG, e, ainda, um novo momento da democracia, com compromisso de preservá-la e aprimorá-la, em especial diante de um mundo em que o peso e a importância da verdade e dos fatos parecem diminuir.
Bons livros são esticadores de horizontes.
Que tenhamos, todos, os nossos horizontes esticados.