Mandíbula

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Mandíbula Mónica Ojeda

tradução Silvia Massimini Felix

Copyright © 2018 Mónica Ojeda

Direitos de tradução negociados pela Agencia Literaria CBQ.

Título original: Mandíbula

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editora responsável Ana Elisa Ribeiro

editora assistente Rafaela Lamas revisão Maria do Rosário Alves Pereira

capa Alles Blau ilustração de capa Susa Monteiro diagramação Guilherme Fagundes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ojeda, Mónica

Mandíbula / Mónica Ojeda ; tradução Silvia Massimini Felix. -Belo Horizonte : Autêntica Contemporânea, 2022.

Título original: Mandíbula ISBN 978-65-5928-149-7

1. Ficção equatoriana I. Título. 21-95077 CDD-E863

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura equatoriana E863

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

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Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão. A mãe é isso. Lacan … a mandíbula da morte da mandíbula canibal da morte. Leopoldo María Panero

Tudo que escrevo se resume a duas ou três palavras. Mãe Filha Irmã

É uma trilogia não prevista pela Psicanálise. Victoria Guerrero Há uma alegria no medo. Joanna Baillie

O horror ligado à vida como uma árvore à luz. George Bataille

Todo exercício da palavra é uma linguagem do medo.

Julia Kristeva

E o tom da pele do vulto tinha a brancura perfeita da neve. Edgar Allan Poe

Acima de tudo, era a brancura da baleia que me aterrorizava.

Herman Melville

… mais além se erguia o cume branco e fantasmagórico do Monte Terror, um vulcão extinto com três mil e trezentos metros de altitude.

H. P. Lovecraft

Aqui jaz, com a brancura e a frieza da morte.

Mary Shelley

Abriu as pálpebras e todas as sombras do amanhecer entraram por elas. Eram manchas volumosas – “A alma dos objetos é opaca”, dizia seu psicanalista – que lhe permitiram divisar alguns móveis surrados e, além disso, um corpo fan tasmagórico limpando o chão com um pequeno esfregão. “Merda”, cuspiu na madeira contra a qual o lado mais feio de seu rosto de Twiggy-face-of-1966 se comprimia. “Merda”, e sua voz soou como a de um desenho animado em preto e branco numa noite de sábado. Imaginou-se ali mesmo onde estava, no chão, mas com o rosto de Twiggy, que na verdade era o seu, exceto pela cor-pato-clássico das sobrancelhas da modelo inglesa; sobrancelhas-pato-de-banheira que não se pareciam em nada com a palha queimada sem depilar que ela tinha sobre os olhos. Embora não pudesse se ver, sabia a forma exata em que seu corpo jazia e a expressão pouco graciosa que devia ter naquele brevíssimo instante de lucidez. A consciência total de sua imagem deu-lhe uma falsa sensação de controle, mas não a tranquilizou por completo porque, infelizmente, o autoconhecimento não fazia de ninguém uma Mulher-Maravilha, que era o que ela precisava ser para se libertar das cordas que amarravam suas mãos e pernas, como faziam as atrizes mais glamorosas em seus thrillers favoritos. Segundo Hollywood, 90% dos sequestros acabam bem, pensou ela, surpresa com o fato de sua mente não ter as sumido uma postura mais séria num momento daqueles.

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Estou amarrada. Como essa afirmação soava incrível em sua cabeça! Até aquele momento, “estar amarrada” tinha sido uma metáfora sem sentido. “Estou de mãos atadas”, sua mãe costumava dizer, exibindo as mãos li vres. Mas agora, em razão do espaço desconhecido e da dor em seus membros, ela tinha certeza de que algo muito ruim estava se passando; algo semelhante ao que acontecia nos filmes que ela às vezes assistia para ouvir, enquanto se acariciava, uma voz como a de Johnny Depp dizendo: “With this candle, I will light your way into darkness” –segundo seu psicanalista, aquela excitação que a acompanhava desde os seis anos de idade, quando começou a se masturbar no assento do vaso sanitário repetindo falas de filmes, correspondia a um comportamento sexual precoce que eles precisavam explorar juntos. Sempre imaginou a violência como uma sucessão de ondas dentre as quais as pedras se escondiam até que se chocavam contra a carne de algo vivo, mas nunca como aquele teatro de sombras ou como o silêncio interrompido pelos passos de uma silhueta encurvada. Na aula, a professora de Inglês as fi zera ler um poema sombrio e ao mesmo tempo confuso. No entanto, ela memorizou dois versos que de repente, naquela provável cabana ou casinha de madeira rangente, começaram a fazer sentido:

There, the eyes are sunlight on a broken column.

Seus olhos, agora, deviam ser isto: luz do sol numa coluna quebrada – obviamente, a coluna quebrada era o local de seu sequestro; um espaço desconhecido e aracnídeo que parecia o reverso de sua casa. Ela tinha aberto os

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olhos por engano, sem pensar em como seria difícil iluminar aquele retângulo sombrio e a sequestradora que o limpava como uma simples dona de casa. Ela queria não ter de se perguntar sobre questões inúteis, mas já estava fora de si, no emaranhado do alheio, sendo forçada a enfrentar o que não conseguia resolver. Olhar para as coisas do mundo, o escuro e o luminoso se costurando e se descosturando, o acúmulo do que existe e ocupa um lugar na composição histriônica do Deus drag queen de sua amiga Anne – o que ela diria quando ficasse sabendo de seu desaparecimento? E Fiore? E Natalia? E Analía? E Xime? –; tudo em seus olhos que ardesse mais do que qualquer outra febre era sempre um acidente. Ela não queria ver e se machucar com as coisas do mundo, porém quão séria era a situação em que se encontrava? A resposta anunciava um novo desconforto: uma protuberância na planície da garganta.

O corpo que limpava o chão parou para olhá-la, ou assim ela pensou, embora contra a luz não pudesse ver nada além de uma figura parecida com a noite.

– Se você já acordou, sente-se. Fernanda, com o lado direito do rosto esmagado contra a madeira, soltou uma risada curta e involuntária da qual se arrependeu pouco depois, quando se ouviu e pôde com parar seu ruído instintivo com o guincho de um roedor. A cada segundo que passava, ela entendia melhor o que estava acontecendo e sua angústia aumentava e se disseminava pelo espaço na penumbra, como se estivesse escalando o ar. Tentou se sentar, mas seus movimentos contidos eram os de um peixe convulsionando sobre seus próprios terrores. Esse último fracasso a forçou a reconhecer como seu corpo, agora em frangalhos, era patético, e lhe provocou um ataque de riso que ela foi incapaz de controlar.

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– Do que você está rindo? – perguntou, embora sem verdadeiro interesse, a sombra viva, enquanto espremia o esfregão na borda de um balde.

Fernanda reuniu toda a sua força de vontade para conter as gargalhadas que a tomavam, e quando finalmente conseguiu recuperar o controle, envergonhada pelo escasso domínio que tinha sobre suas reações, lembrou-se de que havia se imaginado no chão com um vestido azul elétrico, como uma versão moderna de Twiggy sequestrada, topmodel-always-diva mesmo em situações extremas, e não com o uniforme escolar que ela realmente estava usando: quente, amassado e com cheiro de amaciante de roupas.

A decepção tinha a forma de uma saia xadrez e uma blusa branca manchada de ketchup.

– Sorry, Miss Clara. É que não consigo me mexer.

O corpo encostou o esfregão na parede e, enxugando as mãos na roupa de aspirante a freira, caminhou em sua direção, emergindo das sombras afiladas para uma luz forte que revelou sua carne rosada de pelicano depenado. Fernanda manteve o olhar fixo no rosto ovíparo de sua professora, como se fosse algo vital aquele instante de lente de aumento em que ela via as veias roxas, nas quais nunca tinha reparado, em suas bochechas. Mas essas estrias não da vam só nas pernas?, ela se perguntou, enquanto mãos muito longas a levantaram do chão e a sentaram. Mas, por mais que tentasse aproveitar a proximidade com Latin Madame Bovary, não conseguia ver nenhuma palavra relacionada aos seus gestos. Algumas pessoas pensavam com o rosto, e bastava aprender a ler os músculos de sua face para saber de que fontes procediam, mas nem todos tinham a capacidade de elucidar as mensagens da carne. Fernanda acreditava que Miss Clara falava um idioma facial primigênio;

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uma linguagem às vezes inacessível, às vezes nua como uma terra devastada ou um deserto. Não se atreveu a dizer nada quando a professora voltou a se afastar e as sombras mudaram de lugar. Assim, sentada, ela conseguiu esticar as pernas amarradas com uma corda verde – a mesma que usava no colégio para os exercícios de educação física – e ver os mocassins limpíssimos que a Charo, sua criada, limpara no dia anterior. Ao fundo, duas grandes janelas que ocupavam a parte superior da parede lhe permitiram ver uma folhagem exuberante e uma montanha ou vulcão com o cume coberto de neve que fez com que ela soubesse que não estavam em sua cidade natal.

– Onde estamos?

Mas essa não era a pergunta mais importante: por que você me sequestrou, Miss Clara?, devia ter dito, por que você me amarrou e me tirou daquela cidade de poças d’água sujas, vadia-mal-fodida-filha-da-putíssima? Hein, sua puta de merda? Em vez disso, suportou o silêncio com a resig nação de quem sabe que o mundo desabou, e começou a chorar. Não porque estivesse assustada, mas porque seu corpo estava mais uma vez fazendo coisas sem sentido e ela não suportava todo aquele caos destruindo sua consciência. O autoconhecimento lhe deixara em pedaços e ela agora era uma desconhecida à qual podia imaginar por fora, mas não por dentro. Tremendo, observou com ódio o corpo da professora se movimentar como um galho sem folhas en quanto esfregava o chão. Mechas de cabelo preto roçavam sua mandíbula larga – a única característica que se destacava naquele rosto comum. Às vezes, quando sorria, Miss Clara parecia um tubarão ou um lagarto. Tal aparência, dizia seu psicanalista, era de uma agressividade discreta. – Quero ir pra casa.

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