Obra publicada pela Universidade Federal de Pelotas Reitor: Mauro Augusto Burkert Del Pino Vice-Reitor: Carlos Rogério Mauch Chefe de Gabinete: Margarete Marques Pró-Reitora da Graduação: Fabiane Tejada da Silveira Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Denise Petrucci Gigante Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Antonio Cruz Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Luiz Osório Rocha dos Santos Pró-Reitor Administrativo: Antônio Carlos Cleff Pró-Reitor Adjunto de Infraestrutura: Gilson Porciúncula Pró-Reitora de Assuntos Estudantis: Rosane Brandão Pró-Reitor de Gestão de Recursos Humanos: Sérgio Batista Christino CONSELHO EDITORIAL Presidente do Conselho Editorial: Prof. Aulus Mandagará Martins Representante das Ciências Matemáticas e Naturais: Prof. Leonardo da Silva Oliveira Representante das Engenharias e Computação: Prof. Darci Alberto Gatto Representante das Ciências Biológicas: Prof.ª Marines Garcia Representante das Ciências Médicas e da Saúde: Prof. Francisco Augusto Burkert Del Pino Representante das Ciências Agronômicas e Veterinárias: Prof. Carlos Eduardo Wayne Nogueira Representantes das Ciências Humanas: Prof. Jarbas Santos Vieira e Prof.ª Carla Gonçalves Rodrigues (suplente) Representantes das Ciências Sociais Aplicadas: Prof. Jovino Pizzi e Prof.ª Francisca Ferreira Michelon (suplente) Representantes das Linguagens e Artes: Prof.ª Ursula Rosa da Silva e Prof.ª Mirian Rose Brum de Paula (suplente) CONSELHO DIRETOR Prof. Elomar Antonio Callegaro Tambara Prof. João Fernando Igansi Nunes Prof. José Carlos Brod Nogueira Prof.ª Lorena Almeida Gill Editora e Gráfica Universitária R. Lobo da Costa, 447 – Pelotas, RS – CEP 96010-150 Fone/fax: (053) 3227 8411 E-mail: editora@ufpel.edu.br Impresso no Brasil Edição especial: número 1, 2015 ISSN 0102-9576 (impressa) / 2358-1409 (online) Capa: O Anjo da Vitória - Júlio Bermudez (Pelotas/RS) - carvão s/ papel | vencedor do II Prêmio Artes Visuais João Simões Lopes Neto Logo da Revista Caderno de Letras: Livro Aberto (Paul Klee, 1930), redesign por Henrique Olson Originais da edição Contos Gauchescos (1912) digitalizados através do projeto “Biblioteca Digital: digitalização do acervo documental do Instituto João Simões Lopes Neto” (2012) Dados de Catalogação na Fonte Internacional: CADERNO DE LETRAS / Centro de Letras e Comunicação. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas: Editora UFPel 2015. Edição especial n. 1 (p. 001– 171) Nº 01 ao nº 21 versão somente impressa; a partir do nº 23 versão impressa e online. ISSN 0102-9576 (impressa) ISSN 2358-1409 (online) Disponível também: <http://wp.ufpel.edu.br/cadernodeletras/> <http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras> Título da capa: CONTOS GAUCHESCOS: 100 ANOS DA ESCRITA.. 100 ANOS DE LEITURAS. Org. por João Luis Pereira Ourique 1. Letras – Periódicos. 2. Literatura. 3. Regionalismo. 4. João Simões Lopes Neto. 5. Contos Gauchescos I. Ourique, João Luis Pereira
Caderno de Letras Revista do Centro de Letras e Comunicação – Universidade Fedral de Pelotas Rua Gomes Carneiro, número 1 • Centro • CEP 96001-970 • Pelotas/RS Comissão Editorial: João Luis Pereira Ourique - Editor | 2012-2015 (UFPel) Letícia Fonseca Richthofen de Freitas (UFPel) Paulo Ricardo Silveira Borges (UFPel) Conselho Editorial: Alckmar Luiz dos Santos (UFSC) Alfeu Sparemberger (UFPel) Aline Coelho da Silva (UFPel) Ana Maria Stahl Zilles (Unisinos) Ana Paula Teixeira Porto (URI/FW) André Luis Gomes (UNB) Artur Emílio Alarcon Vaz (FURG) Aulus Mandagará Martins (UFPel) Beatriz Viégas-Faria (UFPel) Célia Maria Magalhães (UFMG) Cristiane Fuzer (UFSM) Cleci Regina Bevilacqua (UFRGS) Cleide Inês Wittke (UFPel) Danielle Gallindo Gonçalves Silva (UFPel) Elena Palmero (UFRJ) Evelyne Dogliani (UFMG) Gilvan Müller de Oliveira (UFSC) Giovana Ferreira Gonçalves (UFPel) Isabella Mozzillo (UFPel) João Manuel dos Santos Cunha (UFPel) João Luis Pereira Ourique (UFPel) Jorge Campos (PUC-RS) Letícia Fonseca Richthofen de Freitas (UFPel) Lizandro Carlos Calegari (URI/FW) Luana Teixeira Porto (URI/FW) Luis Ernesto Behares (Universidad de la República, Montevideo / Uruguay) Luis Centeno do Amaral (UFPel) Luiz Barros Montez (UFRJ) Marcelo Módolo (USP) Marcia Ivana de Lima e Silva (UFRGS) Marisa Helena Degasperi (UFPel) Maristela Machado (UFPel) Paulo Coimbra Guedes (UFRGS) Paulo Ricardo Silveira Borges (UFPel) Rafael Vetromille-Castro (UFPel) Renata Azevedo Requião (UFPel) Roberta Rego Rodrigues (UFPel) Rita Terezinha Schmidt (UFRGS) Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC) Rosani Úrsula Ketzer Umbach (UFSM) Rosely Perez Xavier (UFSC) Sergio Romanelli (UFSC) Silvia Costa Kurtz dos Santos (UFPel) Terezinha Kuhn Junkes (UFSC) Uruguay Cortazzo (UFPel) Valeska Virgínia Soares Souza (UFU) Walter Carlos Costa (UFSC) Revisão, editoração, diagramação e preparação dos originais: Ana Luíza Nunes Almeida Carlos Ossanes João Luis Pereira Ourique Impressão: Editora e Gráfica da UFPel
No ano de 1912 João Simões Lopes Neto publicava aquela que seria uma das suas principais obras: os Contos Gauchescos. Marcando um período de transição no qual o gaúcho – personificado no seu narradorpersonagem Blau Nunes – olhava para o seu passado e via um futuro diferente com uma singela esperança, quase um apelo, de que as novas gerações não pisassem no rastro dessa história, essas narrativas criaram a própria noção de gaúcho, um gentílico que acabou por fundir o caráter verossímil da ficção com a própria identidade histórica.
“PATRICIO, aprezento-te Blau, o vaqueano.” São com estas palavras que esse contador de histórias, das suas histórias e de todo um mundo que é tão distante e ao mesmo tempo tão próximo, nos é apresentado. Percebemos nessa introdução a mescla entre um ouvinte (aquele que nos apresenta Blau Nunes – talvez a tentativa do próprio Simões Lopes em dialogar com esse homemtempo) e um sábio telúrico ansiosos para transmitir a terceiros essa visão de um mundo maior do que ambos. Somente podemos dizer, junto com a voz que apresenta esse “perene tarumã verdejante”, para os que abrirem as páginas dos contos que abram também os ouvidos em uma tentativa de recuperar a sonoridade de uma experiência renovada: “Patricio, escuta-o.”
Boi Velho | 15.03.2012 Paula Schild Mascarenhas Os Cabelos da China | 29.03.2012 Carlos Francisco Sica Diniz Anjo da Vitória | 12.04.2012 Flávio Loureiro Chaves O Jogo do Osso | 26.04.2012 Mário Mattos Chasque do Imperador | 17.05.2012 Mário Osório Magalhães Duelo dos Farrapos | 31.05.2012 Eduardo Arriada Melancia Coco Verde | 14.06.2012 Jaqueline Koschier No Manantial | 28.06.2012 Gilnei Oleiro Corrêa Deve Um Queijo | 26.07.2012 Cláudia Lorena da Fonseca O Negro Bonifácio | 16.08.2012 Luís Augusto Fischer Batendo Orelha | 30.08.2012
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João Luis Pereira Ourique Penar de Velhos | 13.09.2012 Pablo Rodrigues
Um século após a publicação da primeira edição, foi realizado um evento comemorativo do Centenário dos Contos Gauchescos, em Pelotas, na Casa do Capitão (denominação dada ao espaço que sedia o Instituto João Simões Lopes Neto). As atividades foram promovidas pelo IJSLN e pelo Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas, contando com o apoio da Universidade Católica de Pelotas e do Instituto Federal Sulrio-grandense. O evento transcorreu ao longo do ano de 2012 – de março a dezembro – com encontros quinzenais que compreenderam 19 palestras (uma para cada conto publicado em 1912, mais o conto Menininho do Presépio que seria publicado em 1913 e viria a integrar as futuras edições dos Contos Gauchescos), conforme a programação ao lado:
Artigos de Fé do Gaúcho | 27.09.2012 Márcia Ivana Lima e Silva Contrabandista | 11.10.2012 Hilda Simões Lopes Costa Trezentas Onças | 25.10.2012 Fausto José Leitão Domingues O Menininho do Presépio | 08.11.2012 Luís Borges Correr Eguada | 29.11.2012 Cláudio Cruz Juca Guerra | 30.11.2012 Antônio Hohlfeldt O Mate do João Cardoso | 13.12.2012 Donaldo Schüler
Com o intuito de oportunizar aos pesquisadores da obra de João Simões Lopes Neto e também para os novos leitores o acesso a primeira edição dos Contos Gauchescos é que a Caderno de Letras - revista do Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas - reedita o livro publicado em 1912 e também o conto de 1913 acompanhado de material recente produzido a partir desse século de leituras sobre a obra simoneana. No ano em que comemoramos o sesquicentenário do nascimento do escritor pelotense, acreditamos que a sua literatura continua nos revelando possibilidades de compreensão e reflexão de uma realidade cultural para além de suas contradições – talvez por estas estarem presentes de forma autêntica, inseridas como parte do humano e da história.
Ilustração de Nelson Boeira Faedrich
Essas novas leituras se apresentam sob vários formatos, incluindo textos críticos dentro dos padrões acadêmicos, ensaios elaborados por historiadores, biógrafos e bibliófilos, entrevistas com pessoas interessadas e reconhecidas por sua relação com a obra e ilustrações e imagens que se somam à narrativa para compor um cenário mais amplo da produção de João Simões Lopes Neto e sua recepção. Ao final da edição encontram-se, em seção própria, as notas demarcadas nos textos críticos. Agradecemos a todas as pessoas que colaboraram para que essa edição fosse disponibilizada. A parceria entre o Instituto João Simões Lopes Neto e a Universidade Federal de Pelotas é que possibilitou essa publicação que, mesmo podendo causar um estranhamento para alguns leitores em razão da diversidade do material que a compõe, enfatiza o caráter plural dessas A diagramação da reedição dos Contos Gau- leituras como uma homenagem ao autor e às personachescos apresenta vários elementos que merecem des- gens que construiu e que continuam presentes no nosso taque. A fonte cursiva utilizada foi criada a partir dos tempo. moldes encontrados no manuscrito original da Artinha de Leitura. Foi elaborado um trabalho de vetorização das letras e símbolos que Ana Luiza Nunes Almeida compuseram uma fonte completa. Carlos Ossanes A organização da escrita origiJoão Luis Pereira Ourique nal se dá de maneira a dialogar as leituras desse século, sempre apresentadas às páginas pares, com o original da edição, sempre às ímpares. As folhas originais receberam tratamento digital para que ficassem harmonicamente posicionadas, de maneira a todo o livro (exceto em O Menininho do Presépio) ter o mesmo pano de fundo. Cada lado ímpar contém uma média de 3 páginas originais, todas elas devidamente enumeradas de acordo com sua primeira publicação. O último capítulo do livro traz uma diagramação diferente, para destacar o aspecto do jorLeia o QRCode ou entre em nal, justamente pelo 19º conto não fazer icaro.ufpel.edu.br para acessar a parte da edição original da obra, tendo edição completa do original em PDF, fazer download das imagens sido veiculado no A Opinião Pública desta edição e também da fonte em 25 de dezembro de 2013. Artinha de Leitura.
I – TEMPO E MEMÓRIA
ral em que determinado evento ocorreu determinará a própria fixação dos tipos sociais, dos costumes, do enredo, da linguagem, etc. O objetivo primordial de qualquer narrador consiste, portanto, em criar o tempo da sua narrativa. Assevera Massaud Moisés que existe um tempo cronológico ou histórico e um tempo psicológico ou metafísico. Aquele corresponde à marcação das horas, minutos, segundos, dias, semanas, meses, anos, estações, ciclos lunares e assim por diante. O outro, o psicológico, distinguese por desobedecer ao relógio e fluir dentro dos personagens, sem começo, nem meio, nem fim, como um eterno presente. Na expressão eu tropeava nesse tempo, o tempo a que se refere o narrador é o do momento ou época em que transcorreu, em que se passou, em que se desenrolou a narrativa. Os Contos Gauchescos constituem o resgate de um tempo passado e determinado pela vida de Blau Nunes: entre o Blau – moço, militar – e o Blau – velho, paisano. É um livro de memórias reveladas ou uma longa estrada semeada de recordações. Aqui a expressão eu tropeava nesse tempo nada mais é do que um exercício de memória, o mesmo que dizer “eu tropeava nessa época”. Que época era essa? Tentarei, viajando através das recordações do velho vaqueano, estabelecer a época em que ocorreu o episódio narrado. Sabemos, porque registrado por ele mesmo, que Blau, em 1827, na Batalha do Passo do Rosário, ou de Ituzaingó, como preferem dizer os castelhanos, tinha uns 10 anos (ver o conto O anjo da vitória, p. 199). Oito anos depois, iniciava a Revolução Farroupilha, onde ele, já tendo um “bigodinho”, se apresenta como voluntário (ver o conto Os cabelos da china, p. 176) e serve até o seu final, pois, em 1844, como ordenança de Bento Gonçalves, assiste ao duelo de Bento e Onofre (ver o conto Duelo de farrapos, p. 222) e, em 1845, ano do final da guerra, leva um ofício até o Ponche Verde (ver o conto Chasque do Imperador, p. 170). Se nasceu em 1817, no final da Guerra dos Farrapos, teria uns 28 anos de idade e, sempre envolvido nas refregas ocorridas no Rio Grande, certamente não tivera tempo para outras atividades nem mesmo para casar. Voltando ao conto Trezentas Onças, diz Blau que o cachorrinho brasino, que andava com ele, era das crianças. Logo adiante, revela: lembrei-me dos meus filhinhos. Já buscando solução para a perda do dinheiro e o reembolso ao seu patrão, pensa em vender tudo que possuía, tirando umas leiteiras para as crianças. E reconhece não poder matar-se um homem, assim no mais... e chefe de família. O raciocínio não é novo mas parece conclusivo: diante das suas próprias assertivas, é certo que Blau Nunes, quando tropeava, já constituíra família e tinha posses. E, pelas circunstâncias apontadas, estou autorizado a supor que só poderia ter casado após a luta dos Farrapos, tendo tempo de ter um campito, uma ponta de gado manso, uma junta de jaguanés lavradores e uma tropilha de colorados. Que ele lavrava e plantava nós ficamos sabendo pela lenda da Salamanca do Jarau (lembram: de mão feliz para plantar, que lhe não chochava semente – p. 291). Ora, isso tudo, para um homem pobre, no meio rural, onde não passou de peão, domador e posteiro, não se conseguiria de um dia para o outro. Ligia Chiappini, que instrui seu raciocínio mais ou menos no mesmo sentido, lembra, servindo-se de informação contida na mesma lenda que, por volta de 1850, Blau “só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais.”. Não cometo, assim, qualquer heresia ou absurdo, socorrendo-me dos elementos contidos no âmbito do conto, em presumir que a época aproximada da narrativa é, no mínimo, de uns dez anos depois do episódio farroupilha, quando o nosso contador de causos já andava pelos seus quarenta anos de idade. E é justamente o período em que se inicia o apogeu das charqueadas e em que as tropeadas eram mais habituais e frequentes. É importante notar que, em 1865, quando da visita do imperador Pedro II, Blau já não era tropeiro e sim vaqueano, chasque e confiança de sua majestade. Trata-se, repito, de um raciocínio conjetural, valendo -me dos relatos do próprio narrador, num exercício daquilo que Flávio Loureiro Chaves, este sim, como tantos outros que por aqui passaram e passarão, um autêntico analista de textos literários, classifica como a valorização da memória enquanto função da narrativa. E, sem dúvida, como poucos, Blau Nunes detinha a
Eu tropeava,nesse tempo. A primeira frase do conto TREZENTAS ONÇAS, na sua singeleza, é rica em sugestões.
Quem narra? Sabemos que o narrador, aqui, é Blau Nunes, que, conforme consta na apresentação feita por JOÃO SIMÕES LOPES NETO, é o vaqueano, “o benquisto tapejara” que lhe serviu de “constante guia” para indicar-lhe o rumo numa larga jornada pelos caminhos do pago. E, portanto, no momento em que narra, em que conta as histórias, deixara de ser tropeiro e já era o vaqueano, o guia, o tapejara (senhor dos caminhos). Neste conto, Blau apresenta-se como narrador e protagonista.
O que significa “tropear”? Tropear, em seu sentido mais simples, significa conduzir o gado de um ponto para outro. Aqui, na região de Pelotas, eram comuns as grandes tropas de gado vacum trazidas diretamente para as charqueadas ou conduzidas para a tablada, espécie de feira em que se reuniam os interessados em negociar o gado. Numa tropeada grande, além do capataz ou chefe de tropa, havia os “culatreiros” (os campeiros que ficavam na retaguarda da tropa, conduzindo-a), os “flanqueadores” (que, cuidando dos flancos, impediam o disparo de alguma rês campo a fora) e o “ponteiro” ou ponteiros (o peão ou campeiro que vai à frente da tropa para regular-lhe a marcha e guiá-la no caminho a seguir). Muitas vezes, tratando-se de gado xucro, não era tarefa fácil retirá-lo da querência, exigindo muitos e bons campeiros, montados em bons cavalos, para circundar o gado até distanciá-lo dos campos em que pastavam. De acordo com o destino a ser determinado aos animais, dizia-se que a tropa era de corte, de cria ou de invernar Algumas tropeadas levavam muitos dias com chuvas, com muito calor ou muito frio, vadeando rios e enfrentando cheias e animais selvagens, com os tropeiros dormindo pouco e espichando os dias. Aqui, nesta região, havia o período das tropeadas que, geralmente, estendia-se de outubro a abril, evitando os fortes frios do inverno, as chuvas e o barro. Nos pousos ou durante as refeições dos tropeiros e alguma sesteada, a tropa ficava ou sob ronda, isto é sob a vigilância de tropeiros que se revezavam, ou na encerra, dentro de potreiros, currais ou mangueiras. Ficou célebre uma tropeada que veio de São Gabriel para Pelotas, lá por 1870, trazendo, na comitiva, o menino Joaquim Francisco de Assis Brasil para estudar nas aulas do renomado professor Bernardo Taveira Jr.. “A vida de tropeiro -- registra Abreu de Medeiros --, em um livro sobre Vacaria, é, sem dúvida, a mais cheia de sobressaltos, de inquietações e sofrimento”. Pois nosso Blau Nunes, que, quando jovem, fora soldado, cabo, furriel, marinheiro improvisado, ordenança, peleando na Guerra dos Farrapos e em outras que nestas plagas aconteciam comumente, neste conto, apresenta-se como tropeiro, viajando sozinho e com a guaiaca abarrotada de onças de ouro.
Que tempo seria esse de que Blau nos fala? Segundo os autores que examinam os textos literários, o tempo caracteriza um dos aspectos mais importantes, senão o mais importante da prosa de ficção. A localização do período tempo-
atilada faculdade de fixar e evocar lembranças, era dotado de boa memória e recontava os fatos passados “como quem estende ao sol, para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca.”.
II – ESPAÇO E LUGAR
ra cria de Pelotas, andou, por muito tempo, campereando por Erval e adjacências, descobrindo-lhe rumos e mistérios. O outro, também pelotense, mas criado no interior do município de Piratini, cedo descortinou todos os meandros e desvãos das Serras dos Tapes e das Asperezas até as planuras que margeiam a Lagoa dos Patos. Confiáveis, bem montados e ao tranco de fletes de lei, foram chasques prestativos e informantes dignos de crédito. Ao primeiro, Mogar Pagana Xavier, conhecido de todos nós, com relevante participação nos anos iniciais desta casa e que sempre está a prestigiar as iniciativas deste instituto, meu amigo, indaguei se conhecia alguma estância com o nome de “Coronilha”. Pensativo, ficou a cogitar, deu uma balançada na cabeça e não respondeu logo. Afinal, foram tantas as propriedades rurais onde passou, em que pousou ou em que chegou para uns mates ou para uma prosa, que ficou meio em dúvida. Alguns dias depois, ainda matutando sobre a minha pergunta, encontrou o segundo que outro não é que o igualmente nosso amigo, o engenheiro Manoel Luiz Vieira de Souza Coelho que também tanto tem honrado esta casa com a sua constante presença. O Mogar e o Maneca, porque são interessados e estudiosos, conhecem a história do Rio Grande do Sul e, em especial, a história regional e local. Trazendo o espírito vincado pelos sóis de largas troteadas, sabem que, nesta região, houve estâncias importantes e que a estância constituiu-se, no início da formação do Rio Grande, no ponto essencial da produção e do desenvolvimento econômico. Percebem que a estância primitiva, na amplidão do seu horizonte, como núcleo de criação e produção, abrigo da família e de uma comunidade de serviçais, gerou hábitos e costumes que resistiram aos tempos, chegando até nós. Ali se forjaram o espírito cívico, o próprio espírito militar e o sentimento de nacionalidade. No seio destes importantes estabelecimentos pastoris, foram moldados o trabalho, a educação, a religiosidade, a personalidade e o caráter da nossa gente. Nossa civilização inicial foi acentuadamente rural. Sabem eles, porque também nutriram seus intelectos com o fluxo luminoso de muitas leituras, que, se na estância criou-se a aristocracia dos proprietários rurais, nela, da mesma forma e sob a tutela de um fogo galponeiro e de um comum e rude trabalho campeiro, nasceu, com a devida reverência, um sentimento democrático que transigiu, aproximou, e compatibilizou. Muitos estancieiros, pelo seu prestígio e predomínio, passaram a ser acatados como chefes locais, como coronéis, capazes de, em casos de necessidade, arregimentar homens, organizá-los e comandá-los. Algumas estâncias tornaram-se baluartes na defesa própria e do rincão. Em Piratini mesmo, existe, no seu 4º distrito, se não estou enganado, a conhecida Fazenda do Combate, que antes se denominava Cerro Alegre, onde ocorreu o célebre episódio do movimento Constitucionalista de 1932. Pois o Maneca, como é mais conhecido o doutor Manoel Luiz, como já mencionei, foi criado ali pelo 2º distrito de Piratini, nas proximidades dos campos dobrados e férteis da Ferraria, onde se aquerenciou e até hoje tem propriedade rural. Instado pelo Mogar, não necessitou recorrer aos escaninhos da memória, para asseverar, com convicção, que realmente existiu uma estância com este nome pertencente, no século XIX, a um ancestral seu. E assegurou mais: lá pelos meados daquela centúria, seu antepassado José Dias de Castro, também conhecido como Coronel Juca Dias, já estava estabelecido com a Estância da Coronilha. O coronel, que pertenceu à Guarda Nacional, era irmão de João Dias de Castro que, em 1871, sucedendo a João Simões Lopes, depois Visconde da Graça, foi presidente interino da Província do Rio Grande do Sul, voltando a ocupar o cargo, na mesma condição, em 1877. O dono da Coronilha nasceu em 1822, casou em 1850 com D. Francisca D’Ávila Freitas e morreu em 29 de dezembro de 1893. Com cerca de 50 quadras de campo, destinada à criação de bovinos, ovinos e eqüinos, a estância estava localizada também no 2º distrito de Piratini. A casa distava uns dois quilômetros e
. .vim varar aqui neste mesmo
Nesta frase, estão contidos os dois pontos geográficos entre os quais se desenvolve todo o entrecho do conto. Se a fixação do tempo ou da época da narrativa adquire real importância para a análise do texto ficcional, não se pode, embora contrariando alguns críticos, atribuir menor interesse à determinação do espaço geográfico onde tudo acontece. Sirvo-me, por serem práticas, oportunas e mais didáticas, de algumas lições do mesmo Massaud Moisés, que, entre outras virtudes, tem a de ser grande intérprete da prosa machadiana. Ele também concorda que, “no conto, a circunstância conta pouco... pelo fato de a tônica recair sobre o sujeito da ação, não sobre a paisagem.”. Porém oferece uma ressalva: “... haveria que sondar o como aparece o cenário e que funções desempenha no evolver da ação...” ou então “... a geografia do conto deve estar diretamente relacionada com o drama que lhe serve de motivo...”. Mais do que em qualquer outro, neste conto, a história integra a paisagem e esta, a natureza, é parte integrante do entrecho. A circunstância de perder o objeto entregue em confiança é corriqueira e poderia ter ocorrido em qualquer lugar, mas, na prosa regionalista de Simões, não alcançaria, no âmbito urbano, os mesmos efeitos. Fazse necessário aqui uma pequena amostragem de como tudo aconteceu. Blau Nunes, cansado de uma longa troteada, chegou à beira do passo, em uma restinga com uma reboleira de mato (restinga é exatamente um mato com árvores de pequeno porte, nas baixadas, à margem de rios, arroios ou sangas) e resolveu tirar uma sesteada. Ao acordar, vendo a água fresca rolando sobre o pedregulho, decidiu banhar-se. Deu uns mergulhos, vestiu-se, encilhou e seguiu em direção à estância, distante umas três léguas dali, onde deveria pousar. Notou que o cachorrinho, aquele das crianças, volta e meia latia e corria para trás, parecendo que lhe chamava. Quando chegou à estância, ao apear do cavalo e cumprimentar o proprietário, não sentiu, na cintura, o peso da guaiaca que estava cheia (empanzinada) com trezentas onças de ouro que levava com o propósito de levantar uma tropa de gado para seu patrão. Sem penetrarmos no âmago do dilema, podemos repetir que todo o drama emocional desenha-se entre estes dois locais: a estância e o passo. Pareceme que ninguém, até o presente momento, tentou identificar os lugares da ocorrência e nossa pesquisa foi realizada com o propósito de trazer-lhes uma despretensiosa proposição baseada em dados históricos e geográficos concretos e fidedignos.
passo,por
me
estncia
ficar
Existiu a Estância da Coronilha? Foi imprescindível encetar uma busca minuciosa pela região sul, retornando à época em que se desenvolveu a narrativa e contar com algum acaso favorável. Precisava demonstrar não apenas que existiu a estância mas que era existente na época da narrativa de Blau Nunes. O tempo era escasso e comecei pelas antigas revistas do Arquivo Publico do Estado em que constam divisões e concessões de terras. Andava assim, lidando com datas, sesmeiros e sesmarias, esperançoso e com algum sentimento oculto me levando a crer que a tal estância tinha realmente existido, quando, socorrido por alguma força superior e benfazeja, tive a sorte de encontrar dois vaqueanos, destes que conhecem palmo a palmo cada rincão destas redondezas. Um, embo-
da
mais
perto da
oronia
meio da estrada real que vai àquela cidade e uma légua e pouco da tradicional Estância da Arvorezinha. O Maneca chegou a conhecer as ruínas do velho sobrado que, devastadas e espoliadas por perseguidores de riquezas, ainda possuem pequenos vestígios, inclusive uma velha tabuleta com o nome da estância e que hoje pertence ao acervo do nosso amigo e informante. Estas terras, originariamente, estavam dentro da grande propriedade rural de João Cardoso, o mesmo do conto de João Simões Lopes Neto, e de quem o Coronel Juca Dias era sobrinho-neto. Quis a generosidade do amigo Maneca que eu recebesse a reprodução das fotografias dos donos da Estância da Coronilha e também fotos atuais dos escombros restantes que poderão ser examinadas depois pelos interessados.
Onde ficava o “passo”?
Argumentos complementares Parecem-me suficientemente esclarecidas as identificações da estância e do passo, os dois pontos geográficos entre os quais acontece a narrativa do tropeiro Blau Nunes. Mas, ainda assim, para mais agasalhar essas ponderações, trago alguns argumentos complementares. Diz Blau que, ao despertar da sesta, ouviu “o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho...”. Pois a informação que trazem meus informantes é de que ali, no Passo Novo, realmente sempre existiu muito pedregulho e até pedras grandes. Mogar Xavier, com terras um pouco além, já próximo ao rio Jaguarão, perto do Passo do Centurião, informou-me que estas pedras meio arredondadas são comuns nos leitos dos rios da região e que lá, sugestivamente, são chamadas de “cantos rodados”, por muito rodarem ao sabor das correntezas. Outra circunstância que serve como justificativa de procedência da hipótese aqui arguída é a ambientação de outros contos de João Simões Lopes Neto naquela zona, ou a sua simples menção, a demonstrar que a conhecia bem. Assim, em Duelo de Farrapos, são referidos Canguçu, Jaguarão, Arroio Grande e Piratini; em Juca Guerra, embora estejam situados pouco antes do rio Piratini, os campos do Pavão, onde ocorrem o rodeio e o ato de heroísmo, ficam no rumo de quem seguia para os passos Novo e o da Maria Gomes; na história do Deve um Queijo, onde Canguçu também é mencionado, o velho Lessa, que também “troteava de escoteiro” e que, segundo Barbosa Lessa, existiu e era seu avô, chega em uma venda junto ao Passo do Centurião, que fica no rio Jaguarão, já no município do Erval, mas não muito distante daquelas redondezas. Entretanto, no conto O Mate do João Cardoso, é que a área em questão mais coincide com a da nossa sustentação, pois, ficando “por aqueles meios do Passo da Maria Gomes”, não dista mais do que dois quilômetros e meio do referido Passo Novo em que ocorreu a sesteada. O rancherio do João Cardoso estava localizado entre os rios Santa Maria e Piratini, bem onde, formando aquela espécie de forquilha, o primeiro desemboca neste, próximo aos dois passos. Ainda como mera argumentação de caráter secundário, apoiando-me sempre na descrição do tropeiro, poderia ser invocada a posição solar. Depois de sestear, Blau Nunes segue em direção ao norte para alcançar a estância; o sol, naquele horário, pois, estará à sua esquerda (oeste). Quando retorna da estância para o passo, em busca da guaiaca, ainda tem braça e meia de sol (mais ou menos uma hora e meia de sol) e o sol, obviamente, estará a sua direita. Vejam o que diz Blau, em pleno galope de aflição e esperança: “a estrada estendia-se deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista,...; à direita, o sol, muito baixo, vermelho- dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas. Além disso, para comprovar que eram comuns as tropeadas por aqueles caminhos, sirvo-me de informação contida na novela Recordações Gaúchas, de Luiz Araujo Filho, o LAF, fonte declarada de Simões, onde, referindo-se a uma conversa entre tropeiros, afirma, textualmente: Esta conversa tinha lugar pouco mais ou menos no princípio do verão de 1860, na estrada de Piratiny: frequentadíssima então por viajantes de todo o genero, mas especialmente por comitivas de tropeiros, que de todos os pontos da campanha, e mesmo do E. Oriental, por ella transitavam a negocio de gados para as xarqueadas de Pelotas. A comitiva de tropeiros, na novela, seguia em direção de Bagé e, algumas páginas depois, o autor ainda revela que um deles, o vaqueano, tratado de cabo velho pelos demais, anunciou: ... já andemos duas leguas desde o passo da Maria Gomes. Sem dúvida, os locais apontados eram quase os mesmos percorridos pelo nosso tropeiro Blau Nunes, abastecendo de razão e pertinência nossas desambiciosas reflexões.
Diante do que aí ficou exposto, até porque não se conhecem referências a outras estâncias com o mesmo nome, já dispomos de um forte indício de que possa ser esta a estância referida no conto. Como é natural que ainda subsistam algumas dúvidas, vamos agregar um subsídio valioso. Aquele passo, mencionado por Blau Nunes, onde houve a sesteada, o banho e o esquecimento da guaiaca e do cinto das armas, onde poderia ser? Para responder, tivemos que fazer algumas sondagens na geografia da região em que estava assentada a Estância da Coronilha. O 2º distrito de Piratini, quem segue hoje de Pelotas pela estrada asfaltada que vai a Bagé, para quem chega ao trevo de acesso àquela cidade, está localizado à esquerda da faixa, em direção da Ferraria que, aliás, dá o seu nome ao distrito. O rio Piratini, que nasce ao norte da cidade do mesmo nome, na Serra das Asperezas, desce em direção ao sudeste, por 132 quilômetros, faz divisa de Piratini com Cerrito (antigamente chamado de Capela de Cerrito e, depois, Estação Cerrito), desembocando no canal de São Gonçalo. Ao chegar ao Cerrito, poucos metros antes, o Piratini recebe as águas do rio Santa Maria que procede da Serra do Erval, formando ali uma espécie de forquilha, daí o nome de “Orqueta” dado ao local. O Santa Maria, antes de desaguar no Piratini faz a divisa do 2º distrito de Piratini com Pedro Osório (que foi também chamado de Maria Gomes e Estação Piratini). Passo é o ponto no curso dos rios e arroios onde há condições mais seguras de passagem, seja embarcado, a pé ou a cavalo; é o lugar onde há vau, lugar mais raso que, habitualmente, é usado para a transposição. Era frequente a existência de muitos passos no curso de um mesmo rio. Antes da chegada da construção da linha férrea (em 1884), as tropas de gado provenientes daquela região fronteiriça (Jaguarão, Arroio Grande, Erval, Bagé) transpunham o rio Piratini no chamado “Passo da Maria Gomes”, onde foi construída a ponte ferroviária e bem em frente às atuais cidades de Pedro Osório (Maria Gomes) e Cerrito (Capela do Cerrito). Acima da Orqueta, uns dois quilômetros, havia o Passo Novo, por onde transitavam as tropas vindas de Piratini. É bem compreensível a existência deste passo, pois, se não houvesse, para chegar ao rio Piratini, no Passo da Maria Gomes, necessariamente ter-se-ia que transpor também o Santa Maria. Meus vaqueanos, conhecedores de cada detalhe daquelas paragens, onde ficaram muitos rastos dos seus cavalos, não titubearam ao informar-me que o Passo Novo, por ser mais prático, mais acessível e mais próximo, foi o lugar escolhido por Blau Nunes para a tal sesteada comprida e revigorante. Diz ele, textualmente, vim varar neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha. E, realmente, ficava mais perto. Segundo Mogar e Maneca, que, como Blau, ali também já quebraram a lombeira, nuns bons mergulhos, do Passo Novo até onde estava situada a Estância da Coronilha, a distância é de uns 18 a 20 quilômetros. Afirma Blau Nunes: daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda. A légua tem 6.600 metros ou 6,6 quilômetros que multiplicados por três terão o exato resultado de Poderia a Estância da Coronilha ter outra localização? 19.800 metros ou três léguas, coincidindo com a distância revelada por meus amigos. Antes de colocar um fecho à questão da existência e localização dos pontos entre os quais se desenvolve o relato, ainda resta fazer uma observação. Não se pode abstrair a possibilidade de existir outra estância com o mesmo nome. Mas era e é costume
respeitar o nome fixado com anterioridade mesmo que não exista registro oficial. Era muito comum as estâncias receberem nomes de alguma particularidade do local em que se estabeleciam. Conheci a das Laranjeiras, a do Angico, a das Guajuviras, etc. Disseram-me os meus informantes que, na região que nos interessa, a coronilha era uma árvore muito comum, com troncos grossos, chegando a uma altura de cinco ou seis metros, com cerne muito resistente e empregada em mourões e palanques. Em sentido figurado, e SIMÕES LOPES a utiliza mais de uma vez, a palavra significa homem forte, valente, guapo, resistente. Ao examinar o glossário, elaborado por Aurelio Buarque de Hollanda, tão preciso quanto ilustrado, constante das edições críticas da Editora Globo, a partir de 1949, verifiquei, com alguma surpresa, que ele, com toda sua autoridade, ao examinar o vocábulo coronilha, registra, como primeira acepção, um “lugarejo entre dois afluentes do rio Ibirapuitã-Chico, no município de Rosário”. Como se trata de referência geográfica, poderia alguém entender que, em obra específica como a edição conjunta, aí estivesse consignada para indicar uma possível localização da estância do conto “Trezentas Onças”. Efetuei busca nos nossos dicionários anteriores a 1949, desde Coruja a Luiz Carlos de Moraes, não encontrando aquela acepção do termo. Nasci em Rosário, andei muito pela campanha rosariense e nunca ouvi falar naquela localidade. Sabia que o Ibirapuitã-Chico é um arroio localizado mais ou menos na divisa dos municípios de Rosário e Livramento, tributário do rio Ibirapuitã, aquele que banha a cidade de Alegrete. Nem mesmo nos dicionários geográficos de Araujo e Silva ou no de Octavio Augusto de Faria encontrei qualquer alusão àquele lugar. Também não aparece nas edições críticas posteriores às da Globo, como as de Chiappini, Schlee e Fischer, embora já apareça, extraído de Aurelio, no grande Vocabulário Sul-Rio -Grandense da mesma editora. Mas em algum lugar Aurelio Buarque de Hollanda, o grande filólogo, deveria tê-lo achado. Lembrei-me do grande Dicionário Geográfico Brasileiro que, no final dos anos 30 do século passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística resolveu elaborar, inclusive tendo publicado, em 1940, na Revista do nosso Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, a parte referente ao nosso Estado. Pois ali estava aquela acepção da palavra, exatamente como foi colhida pelo dicionarista e crítico da obra de Simões: “lugarejo entre dois tributários do rio Ibirapuitã-Chico (M. de Rosário)”. Sendo assim, não tem qualquer conotação com uma possível estância do mesmo nome e consta, no glossário citado, como mera indicação de ponto geográfico já anteriormente referido e definido.
ao testemunho, faz-se imprescindível que outras circunstâncias ou elementos probatórios, orientados no mesmo sentido, venham apoiar as afirmativas. No mundo real, o elogio ao grande amigo, embora nada lhe impeça a confissão, também faz transparecer alguma desconfiança, cria uma certa inclinação do espírito para não fiar plenamente. Na relação entre SIMÕES LOPES NETO e Blau Nunes, estando consciente da precariedade do testemunho e dos riscos que poderia correr, o escritor pressentiu a inarredável necessidade de comprovar aquilo que asseverara na apresentação. E não encontrou, para sustentar suas afirmações sobre a índole e o caráter do narrador, melhor exemplo ou modelo do que a criação, para Blau Nunes, do ofício de tropeiro. Por que um tropeiro? Recorro, mais uma vez, a Luiz Araujo Filho e à sua inspiradora e sugestiva novela. Naquela mesma conversa de tropeiros que seguiam a trote curto, ali pelas bandas do Passo da Maria Gomes, lá por 1860, mais ou menos na mesma época em que por ali andou Blau Nunes, certifica LAF: Naquele tempo o tropeiro cercava-se de uma certa aura de probidade illibada e confiança quase sem limites. Quantias, não em papel como hoje, mas em bom ouro, capazes de proporcionar uma regular fortuna, eram facilitadas a homens que outra cousa não tinham para dar em garantia, senão a sua palavra, e esta era aceita e desempenhada. Até então raríssimos, senão quase desconhecidos, eram os casos de estellionato ou de abusos de confiança, e se algum se dava era logo falado e commentado por toda parte, até nas estradas, pelos andantes... .”. E aí exsurge, como primeira pérola daquele colar de contos, a comprovação da confiabilidade e da honorabilidade do narrador, através da história do tropeiro que sofre verdadeiro ciclone moral, capaz de devastar-lhe a própria alma, quando extravia a alta soma que lhe fora confiada para levantar uma tropa. Não ficaria mal, pelos motivos aqui alegados, e porque comprovadamente Blau era digno, se só após o conto Trezentas Onças, aparecesse a conclamação: Patrício, escuta-o.
III – A CREDIBILIDADE
Em “Trezentas Onças”, está bem claro que a função de tropeiro de Blau Nunes confunde-se com a do contador da história. Aqui, portanto, o vaqueano de JOÃO SIMÕES LOPES NETO é protagonista e narrador.Por que SIMÕES teria oferecido a este conto a primazia de ser colocado em primeiro lugar no livro publicado em 1912? Creio, salvo melhor entendimento, que ele pretendeu, assim fazendo, outorgar credibilidade à toda a obra. Não bastava, como consta na apresentação do livro, a sua afirmação de que seu vaqueano-narrador era seu “amigo e de confiança”, “benquisto tapejara”, furriel de Bento Gonçalves e marinheiro improvisado de Tamandaré. Não bastava declarar que Blau Nunes “fosse o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo... precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável”. Todas estas virtudes eram verdadeiras. Realmente, Blau era tudo isso. Mas dito por um amigo confesso e admirador extremo, o testemunho poderia soar como um exagero ou com alguma mancha de suspeição. Em direito, a amizade confessada entre as partes, traz este mesmo indicador de suspeita e é, para a testemunha, impeditivo da prestação do compromisso de dizer a verdade. O excessivo sentimento de admiração, ou de quase veneração, irá, psiquicamente, afetar o julgamento. Então, para outorgar credibilidade
Fausto José Leitão Domingues
UMA HISTÓRIA, VÁRIOS FINS
Sem pretender muita originalidade nesta abordagem ao magnífico conto de Simões Lopes Neto que é o objeto do estudo, proponho aqui um comentário em três partes. Na primeira, vou acompanhar algumas marcas da linguagem empregada no conto, as quais se deixam ler em alguns termos particulares usados para designar e qualificar personagens e cenas, termos que servem para abrir toda uma dimensão social que Simões Lopes Neto, como todo grande escritor, sabe implicar em sua obra, de forma a permitir ampla recepção; o leitor apressado tem a compreensão daquilo que importa para a intelecção do relato, de um lado, mas o leitor mais exigente, de outro, tem o ensejo de perceber laços muito profundos entre o que vai contado na superfície do texto e o que vai sugerido nas entrelinhas e alusões. Na segunda parte do comentário, tento diagnosticar certos aspectos da estrutura narrativa, que carregam grande valor estético para o conjunto narrado, todos de algum modo convergentes com o modo particular de encerrar o conto, em cinco finais sucessivos, os quais serão analisados na parte terceira. Depois de tudo, tentarei esboçar algum comentário geral de teor interpretativo, com base na análise.
I ― Questões de linguagem Leciono literatura há mais de trinta anos; em todos e em cada um desses anos, ao menos uma vez li “Negro Bonifácio” em aula, diretamente, para alunos adolescentes, jovens ou adultos; e sempre, invariavelmente, constatei que há uma questão central de linguagem, já nas primeiras frases do texto ― é raro que alguém entenda, sem dificuldade, o que significam palavras como “maleva”, “taura” e “caipora”, três termos essenciais na caracterização do personagem-título, um dos dois protagonistas do conto. Lembremos da abertura do conto: ―... Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!... mas, taura, isso era, também! Quando houve a carreira grande, do picaço do major Terêncio e o tordilho do Nadico (filho do Antunes gordo, um que era rengo), quando houve a carreira, digo, foi que o negro mostrou mesmo pra o que prestava...; mas foi caipora¹. Sem decifrar “maleva” como malvado, “taura” como valente e “caipora” como azarado, impossível compreender essa abertura. Vale sublinhar que os três termos desconhecidos não permitem nem mesmo aquela compreensão aproximativa, proporcionada por alguma familiaridade morfológica (a mais próxima é “maleva”, aparentado nítido de “malevaje”, espanhol) ou por contexto. Isso para nem falar das especificações dos cavalos (picaço, tordilho), nem avançar ainda em outras duas dificuldades potenciais, uma saber o que é “rengo”, e outra, mais grave, realizar mentalmente o que significa, no contexto sulino, o que era uma “carreira”, que bem mais que corridas entre cavalos implica um raro encontro social, evento marcante que se contrasta contra o fundo de um cotidiano de raras oportunidades de socialização, no universo das estâncias. Aqui, portanto, temos já um significativo repertório para mostrar as dificuldades que a linguagem do conto impõe. Tais obstáculos não são intransponíveis, é claro. Se o leitor fizer algum esforço de decifração, encontrará significações suficientes para avançar entendendo de que se trata. Podemos comparar este caso, ainda que de modo rápido e impreciso, com a abertura de obra bem mais famosa, e não menos especial, o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, outro João inventivo no uso da linguagem interiorana, igualmente interessado em passar a palavra a um sujeito daquele mundo que retrata, sem e mediação atenuadora (mas também empobrecedora) de um narrador culto externo. A abertura do romance (publicado em 1956) assim diz: ― Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser ― se viu ―; e com máscara de cachorro. Parecido com o caso do João gaúcho? Sim e não; mais não que
sim. Se atentarmos bem, neste trecho inicial, como em quase todo o longo texto rosiano, o problema que se apresenta ao leitor é muito menos de vocabulário, e muito mais de sintaxe. Numa conta rápida, podese afirmar que na abertura do Grande sertão: veredas há uma palavra desconhecida (nonada), no máximo duas (erroso), sendo esta segunda bem fácil de decifrar, muito mais que a primeira, que por sua vez também não implica dificuldade terminal como, digamos, “taura”, considerando leitor não familiarizado com os dois ambientes culturais implicados, um em cada caso. Sem querer esgotar o tema dessa comparação, que mal agora começamos a fazer, aqui e noutras partes do país, veja-se que Guimarães Rosa levou a limites radicais a estrutura narrativa que Simões Lopes Neto mal desenhou em esquema ― um narrador-testemunho, aparelhado de algumas letras mas com inserção social marcada pelo trabalho braçal, proveniente de mundo rural relativamente remoto para a cidade grande, que conta histórias a um ouvinte letrado, que não é dali. O gaúcho intuiu a beleza e a potencialidade dessa armação, mantendo sua obra, porém, numa simples sequência de episódios, sem trama mais firme entre si, num relato de casos quase sempre externos à psicologia do narrador; o mineiro, por sua vez, levou ao extremo a estrutura, avançando no escuro ao compor em teia profunda, de vários níveis de complexidade, uma série de relatos de episódios tópicos com uma inesperada indagação metafísica do narrador. Essa diferença vem combinada com a outra, que vimos acima, relativa à linguagem, e os dois traços se acrescentam de outro: o mundo de Riobaldo é talvez mais distante do leitor médio do que o mundo de Blau (no sentido de o sertão dos Gerais ter sido incorporado mais tardiamente ao mercado do litoral, em relação ao pampa gaúcho), mas dele não nos separa a especificidade do vocabulário do mesmo modo como nos separa do de Blau. Simões Lopes Neto também intervém na forma ortográfica de certas palavras, como Guimarães Rosa, os dois operando, nisso, em favor de conferir maior verossimilhança à fala de seus narradores. Riobaldo diz “ásp’ro” em lugar de “áspero”, por exemplo; Blau diz “escuite” em lugar de “escute”, ou “Virge’ Nossa Senhora”, e não “Virgem”. Mas é preciso notar que os dois são muito, muitíssimo parcimoniosos; como dissemos antes, também aqui há um equívoco bastante generalizado nos comentários que sugerem que esses escritores alteraram muito a forma escrita, para representar a fala de gente simples: pelo contrário, eles quase nada mexem na forma, e muito investem em alterações de sintaxe (Riobaldo: “O senhor mire veja”, a justaposição dos verbos; Blau: “Pois para a carreira essa”, a posposição do pronome demonstrativo), em giros semânticos, etc. Os dois escritores podem ser aproximados por outro viés de linguagem: os nomes dos personagens. De Guimarães Rosa até uma famosa tese se ocupou: Recado do nome ― Leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens, de Ana Maria Machado, uma criativa abordagem ao universo rosiano, em que nomes como Riobaldo, Diadorim, Hermógenes, Zé Bebelo e muitos outros ganham interpretação sutil e convincente. E quanto a Simões Lopes Neto? Que eu saiba, ainda está por aparecer essa exegese, que pode render bem. Para ficar no conto em exame, tomemos os casos mais notórios de personagens, para averiguar se há alguma inscrição críptica. O Negro Bonifácio: chamá-lo de “negro”, como prenome, ou como qualificativo incorporado ao nome (seria análogo a qual caso conhecido? O Índio Tibiriçá do século 16?), tem peso específico em se tratando de um negro, um afrobrasileiro, como se indica explicitamente no texto (“se o negro era maleva?”, “aquele tição atrevido”, “negro tão feio”), e não um moreno genérico, como ocorre no Rio Grande do Sul e nos países platinos, em que por exemplo Mercedes Sosa era cognominada “La Negra”, sendo uma índia. E um negro protagonista das ações, sendo ele um conquistador de mulheres, em contexto escravista, no máximo pósescravista!² Não é pouco. Também não é pouco o fato de se chamar, especificamente, Bonifácio, e não Pedro, José, Manuel, João Cândido. Ora, este nome não é exatamente comum, nem mesmo entre brancos daquele mundo estancieiro. “Bonifácio” traz em si um traço de elevação, de altivez, a evocar, no contexto brasileiro do século 19, a figura maiúscula de José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos irmãos Andradas, famosos em todo território nacional, em direção ao latim, quando encontraremos o significado de Bonifácio como “o que faz o bem”, algo por aí. Nada que ver com o Negro, que está nas antípodas disso, eis que ele traz o mal, o ciúme, o despeito, a morte enfim, conforme o conto. (Não me arrisco a adentrar nos chamativos mas obscuros territórios da psicanálise do autor, cujo pai se chamava Catão Bonifácio e, pelo que se sabe, tinha seu tanto de voluntarioso e talvez gabola.) Há mais, no retrato do Bonifácio. A visão de Blau sobre ele é ambivalente, do começo ao fim: não o condena, mas não o salva. Nas primeiras linhas, Blau diz que Bonifácio é maleva, mas taura ― malvado, mas valente. Adiante, ao descrever a estampa do Negro, diz que ele “era um governo”, expressão com mais de uma camada de significação, porque reconhece no personagem uma autonomia forte, como um governo que manda em seus territórios (mas e os territórios do Negro
eram o quê? Seu cavalo e as estradas reais, como o Blau da “Salamanca do Jarau”?) ou como quem detém as rédeas de uma dada situação, mas também porque diagnostica um jeito de ser totalmente particular, individual, de uma tal peculiaridade que o torna alvo de oposição, quem sabe mesmo de ataque inimigo. O pólo oposto ao Bonifácio, no enredo, é a Tudinha. Nhá Tudinha é o nome da mãe de criação da personagem Til, de batismo Berta, do romance de mesmo nome de José de Alencar (publicado em 1872 e talvez conhecido por Simões Lopes Neto), romance que representa o mergulho mais radical de Alencar no mundo do sertão brasileiro, em que despontam figuras de negros escravos e de índios ou mestiços de escassa relação com o mundo branco ocidental. De que nome Tudinha é apelido? Não seria de Gertrudes ou Edeltrudes, dada a quase impossibilidade de um nome assim germânico, assim raro, no mundo gauchesco; seria uma abreviatura de Virtudes, outro nome estranho mas existente? Venha seu nome de onde vier, Tudinha está no pólo da totalidade, contra Nadico, seu principal pretendente, um nada, que vai ser vitorioso na carreira mas derrotado na conquista da moça. A mãe dela se chamava Fermina, no campo semântico de “firme”, como ela de fato era na criação da moça, cujo pai, não oficial mas notório, era o Capitão Pereirinha ― não estamos no domínio de um coronel, mas de alguém mais modesto, um capitão, e o sujeito não é conhecido por um aumentativo que lhe carreasse respeito e impusesse medo, como é o caso do Tandão Lopes (do conto “Juca Guerra”), não por acaso nome de um gaúcho valente no trato com os animais e fiel aos amigos, como bom gaúcho segundo a ética que informa a obra de Simões Lopes Neto, não por acaso designação pela qual era conhecido ninguém menos que o pai do escritor, o já mencionado Catão Bonifácio. Um sujeito estranho ao mundo social do conto tentou ganhar as atenções e os agrados de Tudinha, como lemos logo nas primeiras linhas do relato. Mas não ganhou. Ele tinha contra si o fato de ser “teatino”, ademais de ser da cidade, portanto um tipo não exatamente confiável, nem provado na valentia e força requeridas no campo. “Teatino”, conforme a insuspeita enciclopédia portuguesa Lello Universal (uso uma edição dos anos 1950, talvez 1940, sem data certa), é designação de coisa ou cavalo que não tem dono. Houaiss anota ainda o significado de forasteiro, registrando como origem da palavra o nome Teate, a atual cidade de Chieti, na Itália, sede de uma ordem religiosa, os Caetanos. A Tudinha, por seu lado, é qualificada como “a chinoca mais candongueira” daqueles pagos. Se a palavra teatino tem origem latina, candonga não oferece dúvidas de sua ancestralidade africana, banto: sem poder decidir por um significado exclusivo, Houaiss aponta aqui conteúdos conexos, de trapaça, ação ardilosa, má-fé, mas também contrabando e carinho fingido; tudo somado e feitas algumas contas, candongueira designaria a mulher ardilosa, mas também carinhosa (ou carinhosa como meio de ser ardilosa?). Quando se mexe no pântano das etimologias e das alusões, muita coisa pode vir à tona. Conteúdos históricos também são sugeridos de modo discreto pela narração. O mais notável é o “lenço colorado, com o nó republicano”, apresentado em meio a uma profusão de detalhes da vestimenta e dos hábitos do Bonifácio. Lenço colorado se entende logo, mas apenas no sul do Brasil, porque fora daqui é raro relacionar imediatamente o termo “colorado” com a cor vermelha; e nos dois casos não é direta a conexão entre a cor vermelha no lenço e a posição farrapa, isto é, a posição dos que queriam a independência do Rio Grande do Sul, na forma republicana como foi. Já o nó dito republicano, ao que parece, é mesmo uma singularidade dos farrapos: na já citada enciclopédia Lello Universal, no verbete “nó”, aparece como derradeiro item a composição “nó republicano”: “modo engenhoso de atar o lenço que usavam, a tiracolo, os republicanos rio-grandenses de 1835”. De fato, esse modo de amarrar o lenço é não apenas marcante, como extremamente reconhecível, à distância mesmo: não se trata apenas de um nós diferente, mas de uma disposição toda particular, eis que o lenço é passado por baixo de uma axila e por cima do ombro oposto, à moda de um boldrié. Quem o usava fazia propaganda de sua posição política, com sua mera presença; quem o via, de longe ou de perto, sabia que estava diante de um homem com posições claras ― e em ao menos dois sentidos uma posição problemática: sendo o Brasil uma monarquia até 1889, o portador do nó republicano fazia profissão de fé na república, e sendo o portador um negro, e apenas por isso, ele dizia, sem palavras, que era um sobrevivente da guerra, um negro que, quem sabe, alcançou alforria por bravura naquele decênio de sangue, seguramente um testemunho vivo da história, um exemplo para os escravos e uma ameaça para os donos de escravo. Em suma: era mesmo um governo, o negro. E que governo! Um caso notável, que merece ser apreciado em separado, é o termo “misturada”, usado por Blau para xingar a Tudinha, quando esta rejeita receber os doces combinados, em função da aposta que os dois fizeram. Quem diz “misturada” diz o oposto de “pura”; no contexto, temos ao menos duas dimensões implicadas nessa disjunção entre ser puro ou ser misturado. A primeira é de ordem étnica, já que o Bonifácio é, inequivocamente na opinião do narrador Blau, um negro, enquanto a
Tudinha é tratada por um termo menos preciso, “chinoca”, que tende a ligar-se à condição índia, ou cabocla, mas não à condição negra, o que faz uma enorme diferença numa sociedade marcada pela escravidão de negros. Estaria o Bonifácio jogando em rosto à Tudinha sua pureza negra, contra a condição mestiça dela? A segunda é de ordem social: a Tudinha, como sabemos pelo relato, é filha da Siá Fermina e, ao que tudo indica, do capitão Pereirinha; isto é, a Tudinha é filha natural de um proprietário relativamente rico, o que pode ser também um conteúdo evocado na palavra “misturada” ― ela pode até se passar moça regular, mas sua família é torta. Seja como for, é uma palavra de uso preciso e de grande repercussão, uma vez que é proferida pelo Bonifácio como insulto e evocada por Blau num ponto do relato em que o leitor (e o interlocutor de Blau, antes do leitor) não sabe(m) da razão daquela briga, que só ao final será enunciada. ³ Tudo somado, podemos dizer que no plano da linguagem o conto de Simões Lopes Neto apresenta obstáculos não triviais para o leitor, mas oferece camadas profundas de significação, para muito além da superfície imediata das palavras, que cumprem funções muito sofisticadas no texto simoniano. Trata-se de uma linguagem trabalhada com maestria e discernimento superiores, porque as palavras não estão ali para marcar apego localista, mas como uma exploração das profundidades sociais, históricas, mentais daquele universo.
II – Questões de estrutura Pelo menos seis aspectos merecem comentário, no campo da estrutura da narrativa, da arquitetura do conto. O primeiro, sem dúvida, tem a ver com a abertura, que imediatamente impõe dimensões mais ou menos inesperadas, todas porém válidas e nada gratuitas. Comecemos pelo fato de que “Negro Bonifácio” é o segundo conto do livro, logo após “Trezentas onças”. Este, como se sabe, é um relato em primeira pessoa envolvendo essencialmente a ação do próprio narrador como personagem. Seu começo é assim: – Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empazinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar. Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada. Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda. Blau viveu o que agora narra, o que torna a arquitetura do relato que abre o livro bastante linear. Apesar de haver uma pequena voluta do processo narrativo no terceiro parágrafo, quando Blau convoca a um interlocutor (“Olhe ali, na restinga”), que compartilha o presente da narração com ele (mas não estava no tempo presente do episódio narrado), para que veja um mato, ali perto de onde estão. O leitor atento comporá esta complexidade ― dois tempos, um no passado, quando Blau, tropeiro, sozinho, viveu a experiência que vai contar, e outro no aqui-e-agora do relato, em que Blau está acompanhado ― com as informações da apresentação, em que uma voz, saída não se sabe de onde, apresenta Blau e pede que o “patrício” leitor o escute, porque valerá a pena. (Há aqui uma controvérsia, a meu juízo relevante, sobre quem diz quais partes daquela apresentação; remeto o leitor interessado à minha edição anotada dos Contos gauchescos e das Lendas do Sul, em que analiso o caso com o detalhe e a seriedade que alcancei formular.) Não assim em “Negro Bonifácio”. Sua abertura, acentuadamente tortuosa, tem ainda mais força estruturante: ― ... Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!... mas, taura, isso era, também! Quando houve a carreira grande, do picaço do major Terêncio e o tordilho do Nadico (filho do Antunes gordo, um que era rengo), quando houve a carreira, digo, foi que o negro mostrou mesmo pra o que prestava...; mas foi caipora. Escuite. A Tudinha era a chinoca mais candongueira que havia por aqueles pagos. Um cajetilha da cidade duma vez que a viu botou-lhe uns versos mui lindos – pro caso – que tinha um que dizia que ela era uma ".................................. chinoca airosa, Lindaça como o sol, fresca co-
mo uma rosa!..." Há quatro aspectos a comentar aqui, relativamente à organização profunda do relato. O primeiro é, necessariamente, o início abrupto, que o leitor desavisado demora para realizar adequadamente ― no plano sintático, o que temos na primeira frase é a pergunta de uma pergunta, uma pergunta de segundo nível, uma metapergunta: Blau, o narrador, ouve uma pergunta, antes de o conto começar (algo como “O negro era maleva?”), possivelmente já no curso de uma conversa sobre o personagem, diálogo iniciado muito provavelmente por Blau, que dele se terá lembrado por algum motivo; Blau responde a essa hipotética dúvida reperguntando a pergunta (algo como “Tu estás me perguntando se o negro era maleva?”). Aquela relação presente entre Blau e seu interlocutor, anunciada na apresentação e retomada no primeiro conto do conjunto, “Trezentas onças”, aqui ganha uma carnadura concreta: o leitor entra na cena em meio à conversa entre os dois, ganhando um calor novo sua condição de testemunha. (Vale anotar, de passagem, que na primeira edição não está posto o travessão citado como primeiro signo do texto aqui reproduzido: Simões Lopes Neto ali colocou as reticências, sinal de pontuação que usava com largueza, para traduzir na forma impressa a força expressiva da fala, nisso fazendo o que Adorno, em abstrato, comenta acerca da natureza quase musical dos sinais de pontuação, por isso mesmo tão importantes para um escritor como Simões Lopes Neto, um notório interessado nas relações entre fala e escrita4. A mim pareceu cabível e mesmo necessário marcar com este travessão inicial todos os contos, no livro, que colocam Blau em situação de contador da história em presença do interlocutor5.) É claro também ― segundo aspecto ― que esse início sem mediação esclarece e reforça outro ganho da organização inventada por Simões Lopes Neto: refiro-me à identificação entre a segunda pessoa da fala de Blau, aquele patrãozinho que ele menciona, com a segunda pessoa do texto que está sendo lido, isto é, o leitor, qualquer leitor que esteja colocado diante das palavras do texto. Dito de modo trivial, o resultado é que o leitor se sente como se Blau estivesse contando para ele a história. (Exatamente o mesmo arranjo que Guimarães Rosa usaria, em 1956, em Grande sertão: veredas, e usaria, não custa repetir, depois de ler a edição Globo dos Contos gauchescos, como o comprova o exemplar a ele ofertado por Aurélio Buarque de Holanda e conservado no IEB-USP, como tive ocasião de verificar.) É assim, esta abertura, um enganche do conto na arquitetura geral do livro, que nem por ser hesitante é menos inteligente. O terceiro aspecto a comentar do trecho inicial se apresenta em outro traço da linguagem. É que aqui temos, em grau elevado, o recurso de fazer o texto andar de modo sinuoso, tortuoso, alternando presente e passado e também oscilando entre o centro da tensão narrativa (entre o Bonifácio e a Tudinha) e aspectos secundários, da paisagem e de outras personagens. No trecho citado, poderíamos fazer o seguinte esquema para explicitar esse aspecto: FRASE DO TEXTO ― ... Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!... mas, taura, isso era, tambem! Quando houve a carreira grande
do picaço do major Terencio e o tordilho do Nadico filho do Antunes gordo um que era rengo
quando houve a carreira, digo, foi que o negro mostrou mesmo pra o que prestava...; mas foi caipora Escuite
A Tudinha era a chinoca mais candongueira que havia por aqueles pagos Um cajetilha da cidade duma vez que a viu botou-lhe uns versos mui lindos – pro caso – que tinha um que dizia que ela era uma ".................................. chinoca airosa, / Lindaça como o sol, fresca como uma rosa!..."
TIPO DE INFORMAÇAO VEICULADA Descriçao do Bonifacio, com juízos genericos sobre ele, para apresentar o personagem ao interlocutor, na hora do relato Foco no passado: posicionamento da historia num tempo específico, aquela carreira Especificaçao dos cavalos que correram o pareo principal daquele dia Especificaçao de novo, em grau mais detalhado, da historia do Nadico Especificaçao de novo, em grau mais detalhado ainda, agora para identificar o Antunes gordo Retorna ao começo da frase e ao posicionamento da historia no tempo em que ocorreu, dando ja uma manchete enigmatica do ocorrido Foco no presente da narraçao: convocaçao direta a atençao do ouvinte de Blau, na hora em que esta relatando Foco no passado, mas abandonando o Bonifacio, que e o centro do interesse desde a primeira palavra do conto Detalhamento da identidade da Tudinha mediante o relato de um caso ocorrido com ela, nascido da admiraçao de certo sujeito Detalhamento da cena envolvendo este sujeito, personagem sem qualquer importancia para o enredo
A tabela serve para mostrar a costura minuciosa da fala de Blau, entre o presente da narração e o presente do narrado, e depois entre a informação principal e os dados acessórios. Tudo numa levada que ― aqui a chave do acerto ― simula no plano escrito o ritmo do relato oral, mas sem fazer força, sem artificialismos, porque o que foi imitado foi o ritmo, a alma da oralidade, e não a forma externa das palavras, que nos escritores menos inteligentes do período abundava, salvo naquela discreta alteração da palavra “escuite”, com esse ditongo ali fazendo todo o papel de decalcar o som da fala. Vale estender a comparação: aqui seria possível elencar vários exemplos de escritores do período que cometeram o erro, o equívoco preconceituoso de simular a fala na escrita mediante um decalque direto do som da fala na ortografia. Veja-se o caso de Catulo da Paixão Cearense, poeta e cancionista contemporâneo de Simões Lopes Neto e como ele um interessado na vida e na fala dos de baixo, no texto a seguir, que já no título mostra sua opção equivocada. U poeta du sertão (1908) Si chora o pinho Im desafio gemedô Não hai poeta cumo os fio Du sertão sem sê doutô Us óio quente Da caboca faz a gente Sê poeta di repente Qui a Puisia vem du amô Não há poeta, não há Cumo os fio do Ceará O abismo entre a escrita culta formal e o registro em que Catulo opera é evidente e aliás parece ter sido concebido para isso mesmo, para demarcar tal distância. Afetivamente, Catulo estava do lado do personagem a que dá voz, este cuja fala vem decalcada na escrita de modo ingênuo; mas sua opção estilística, sem que ele soubesse claramente, antes rebaixava do que dignificava o personagem. Escrever, para figurar na boca do personagem que canta, “u poeta du sertão” sugere que haja, na boca de gente culta, uma outra realização oral, “o poeta do sertão”, quando sabemos que não há tal fala, na vida real brasileira, porque todos, cultos e incultos, dizemos “u poeta du sertão”, e jamais, salvo em casos extremos de pernosticismo, “o poeta do sertão”. O mesmo caso poderá ser rastreado em outros contemporãneos e companheiros de rota de Simões Lopes Neto: Coelho Neto (“Oia, véia, toma bem contga dela, não dêxa ela”, como se lê em Rei negro) e Valdomiro Silveira (“Mal duma vez, Lainha; ‘tou cumprindo o fado, ‘tou no rúim”, como se lê no conto “Constância”, de Os caboclos). Em texto célebre, Antonio Candido reconhece, ainda que de segunda mão, a rara e correta opção de Simões Lopes Neto: “Segundo a maioria dos críticos, apenas Simões Lopes Neto fez narrativa realmente boa dentro deste enquadramento comprometido [refere-se a uma “linhagem especificadora” da literatura do começo do século 20, empenhada em registrar peculiaridades da vida brasileira], porque soube, entre outras coisas (como se tem assinalado), escolher os ângulos narrativos corretos, que identificavam o narrador com o personagem e, assim, a distância paternalista e a dicotomia entre o discurso direto (“popular”) e o indireto (“culto”)”6. Pois bem: isso que Candido realça ― a escolha do correto ângulo narrativo por Simões Lopes Neto, quer dizer, a criação genial de Blau Nunes como narrador ― se corporifica mesmo é no ritmo do relato, naquela trança delicada entre os planos, como acima exemplificado. Vamos ao quarto aspecto: ao longo do conto, ocorre uma série de marcas, pequenas e sutis intervenções do narrador Blau no relato do curso dos acontecimentos, marcas que dão ritmo, no plano geral, à história narrada. Essas marcas são de duas ordens: uma é escrita em palavras, enquanto a outra se expressa por espaços. Da primeira são exemplos as seguintes frases: ― “Escuite”, repetida cinco vezes espalhadas pelo conto, em momentos de transição das cenas; ― “É assim que o diabo as arma”, dita logo após apresentar, um de cada vez, os dois protagonistas, Bonifácio e Tudinha, com detalhe, e de dizer que naquela carreira compareceram outros enamorados dela, além de “piguancha beiçuda” na companhia do Negro; ― “Eta, negro pachola”, comentário sumário feito por Blau logo após mencionar essa moça, a parceira de Bonifácio; ― “Era um governo, o negro”, proferida em seguida da descrição do temperamento altivo e insubmisso do personagem; ― “Que peleia mais linda!”, comentário relativamente inesperado, de celebração da briga, dito antes de começar o relato da briga propriamente dita. Todas essas frases são pontos de inflexão no ritmo do relato: elas não são relato em si, mas comentário ou exortação; mesmo assim, ou por isso mesmo, colocadas onde estão, elas pontuam a narração, simulando
também elas a origem falada do caso. A outra série de marcas acontece por utilização singular do espaço físico do papel em que lemos a história. Assim como Simões Lopes Neto não economiza travessões, reticências, pontos de exclamação e de interrogação, essas notas quase musicais do texto escrito, também assim ele abunda na submissão do espaço visual aos propósitos narrativos. Temos várias linhas em branco, em momentos-chave do relato, de vez em quando acompanhando alguma das frases acima mencionadas; se isso já se constitui num uso inteligente da, digamos, respiração visual, mais ainda ocorrerá na localização espacial de certas palavras e frases, no meio da linha, atestando grande inventividade, uma inventividade quase poética. Nessa condição aparecem os cinco casos de “Escuite” e as frases expressivas “Fechou o salseiro”, “Ai!...” e “Ah, mulheres!...”. Quase no mesmo sentido, há ainda outro aspecto do ritmo narrativo que mostra, com sobras de evidência, o quanto Simões Lopes Neto era avançado na administração das informações objetivas do enredo e das marcas sutis do clima da história. Refiro-me aqui ao que se poderá chamar, sem trair em nada o universo do cinema, de “close-ups”, que surpreendem por mostrar, em outro patamar, a singularidade da criação simoniana. (Faz pensar: que filmes terá ele visto? Teve tempo de entender, por intuição ou por dedução, algo dos mecanismos narrativos dessa novíssima arte de seu tempo, ele que morreu em 1916? Terá ele percebido a dinâmica do corte e montagem?) (Antes de passar aos casos concretos, valeria falar, por alto, da grande qualidade da visão de realismo que tem o escritor pelotense. Veja-se o momento em que ocorre o relato da carreira propriamente dita: ela é centro do enredo, num sentido diretamente ligado às peripécias do conto ― ali se define que o cavalo em que Tudinha apostou ganha a corrida, motivando o pagamento da aposta por parte do Bonifácio. Mas Simões Lopes Neto, inteligentemente, relata a corrida em si de modo ultraeconômico: são duas linhas, não mais que duas linhas. “Fizeram as partidas; largaram; correram; ganhou, de fiador, o do Nadico, o tordilho”. Isso e nada mais. Quatro verbos no centro de interesse, e escassíssimas informações para além deles. Trata-se de uma virtude fácil de perceber por contraste: se fosse um escritor menor, um naturalista querendo mostrar serviço, ele teria gasto dezenas de linhas na descrição miúda da movimentação dos cavalos, um na frente e logo o outro ganhando terreno, o suor escorrendo do pescoço, a mão firme do ginete, o olhar da platéia, enfim uma série de detalhes que um escritor menos inteligente teria posto ali, como forma de exibir seus músculos descritivistas e ganhar o aplauso fácil dos admiradores do Parnasianismo, que eram talvez a maioria dos leitores cultos daquele momento. Mas não: bem ao contrário desse recurso fácil ao brilho trivial, desse jogo para a torcida, nosso brilhante escritor prefere a economia, em favor do ritmo e da valorização do efetivo centro de interesse literário, a saber, a psicologia e as ações dos dois personagens centrais, Bonifácio e Tudinha. Se alguém quiser um argumento para aquilo que alguns chamam de “universalidade” de Simões Lopes Neto ― fique claro que não me valho desse tipo de enquadramento conceitual, para mim difícil de defender e mesmo de conceber ―, aqui terá matéria suficiente.) São três momentos principais de “close-up”, cada um deles criteriosamente aproveitado para, por contraste, intensificar a carga dramática da cena. (Estou passando por cima da inteligente alternância de planos mais abertos ou mais fechados, que ocorre todo o tempo no conto.) O primeiro close vem na frase “O lobuno refugou, bufando”, que Blau profere exatamente depois de dizer que Bonifácio tirou o facão da bainha e se dirigiu ao Nadico, para dar início à “mais linda” peleia. O ritmo é notável: um plano visual aberto, retratando o Negro descendo do cavalo, com a cara ainda quente de haver recebido o golpe da trouxinha de doces lançada pelo Nadico, e um corte abrupto para um detalhe, de modo a fixar a imagem do focinho do cavalo, bufando. Que acerto narrativo! O segundo close acontece logo em seguida, já no aceso da briga: ocorre um golpe do Nadico contra o pescoço do Negro e um tiro desferido pelo major contra ele, e ocorrem os movimentos de corpo do agredido, para safar-se dos ataques; aí entra o detalhe visual: “só se via no carão preto o branco dos olhos, fuzilando”. O branco dos olhos: a câmera imaginária precisa aproximar-se fortemente do rosto dele, para poder captar o detalhe, que dá notícia dramática, tensa, do conjunto da cena toda. O terceiro e último ocorre logo depois da morte do Bonifácio, depois de duríssimo enfrentamento, em que ele é atacado mas também ataca, até que leva um tiro de boleadeira, uma bola no tempo da cabeça e outra nas costelas. Aí ele vai, “como boi desnucado, de boca aberta, a língua pontuda”, elementos que já se pode dizer que estão num close, mas ainda em continuidade com a cena geral ― e então o sensacional detalhe: “mexendo em tremura uma perna [a câmera vai seguindo seu corpo, de cima para baixo, estendido no chão], onde a roseta da chilena tinia, miúdo...” A roseta da espora tinia, e tinia “miúdo”: impressionante a força desse detalhe, dando conta do movimento involuntário do recém-assassinado em sua totalidade, porque este barulho é o último sinal de vida daquele homem tão voluntarioso.
III – O fim, ou melhor, os fins “Negro Bonifácio” não é o único conto de Simões Lopes Neto que carrega o traço de ter mais de um final; para dizer de modo mais genérico, não é o único a se organizar dentro de uma moldura refinada. Mas nele talvez tenhamos o caso mais sofisticado dessa construção, na qual o enredo em si ― a aposta na corrida e o que se segue quando o perdedor vai saldar sua dívida ― vem precedido de uma série de preliminares e, mais ainda, vem encerrado por uma série de finalizações. Muitos contos trazem consigo uma moldura marcante: há uma preliminar, ligada diretamente à apresentação da situação concreta do narrador Blau (ele lembra de certa história e a anuncia ao interlocutor, antes de começar a contá-la), e há uma pós-liminar, com perdão pelo trocadilho, ligada a um comentário de Blau acerca do que acabou de narrar, envolvendo muitas vezes um retorno ao presente em que ele e seu interlocutor se encontram. Isso ocorre nos contos “No manantial”, “O mate do João Cardoso”, “Correr eguada”, “Melancia―Coco verde”, “Juca Guerra” e “Artigos de fé do gaúcho”. Ocorre parcialmente em “O boi velho”, “Os cabelos da china, “O anjo da vitória”, “Duelo de farrapos”, “Penar de velhos” e “O ‘menininho’ do presépio”. Não ocorre em “Trezentas onças”, “Deve um queijo!...”, “Chasque do Imperador”, “Contrabandista”, “Jogo do osso” e “Batendo orelha!...”, contos estes em que a voz narrativa se ocupa puramente com os episódios narrados, com a peripécia. Na primeira série mencionada acima, porém, a moldura tem grande relevo, e em “Negro Bonifácio” essa construção ganha potência superior, em relação ao conjunto da obra. Quanto ao começo, à arrancada do conto, vimos antes que há todo um meneio, toda uma trama de apresentação de dados que enlaça direta e indiretamente o interlocutor de Blau. No final, no desfecho do conto, porém, a coisa cresce, alcançando proporções impressionantes. Vejamos. Pode-se dizer que o conto termina 5 ou 6 vezes. Em que sentido ele termina? Bem, não tratamos aqui de recuperar toda a teoria do conto moderno, mas não custa lembrar que há um paradigma nítido, estabelecido por Edgar Allan Poe em meados do século 19, tanto na prática de contos seus, quanto em seu famoso ensaio teórico “A filosofia da composição”: todo conto, pensava ele, deve pensar-se em função de seu desfecho (conhecida como “teoria do efeito”), e este desfecho deve representar não apenas o desenlace da trama quanto o ponto de convergência de tudo que o relato tiver alinhado em sua duração. Simões Lopes Neto nada tem a ver com isso, por certo. Se leu Poe ou não, jamais saberemos, dada a escassez de dados documentais sobre sua formação e sua vida de leitor; é verossímil que tenha lido, como o leram vários escritores de sua geração e de antes (por exemplo Machado de Assis, para citar o caso mais notório, o de um grande contista da língua, o primeiro escritor brasileiro a praticar o conto no patamar da excelência). Mas mesmo se o leu não seguiu seus passos: por acaso ou por intenção, o certo é que o escritor pelotense precisou forjar outras estruturas, e o fez movido pela atenção que prestou ao material histórico e humano que abordou, o mundo gaúcho, a partir de gente simples, gente das posições inferiores na sociedade patriarcal da estância. Que estrutura inventou? Bem, “Negro Bonifácio” exemplifica bem. Em sentido genérico, podemos dizer que Simões Lopes Neto praticou o que já se chamou de “conto enquadrado”, modelo de narrativa antiqüíssimo, com representantes clássicos como o Decamerão, de Boccaccio, ou os Contos de Cantuária, de Chaucer: várias histórias independentes entre si, mas unidas por um mesmo narrador, também personagem, ou por uma situação concreta, passada em certo lugar e em certo tempo, em que vários narradores tomam a palavra, sucessivamente, para relatar casos. Nosso escritor, voluntária ou involuntariamente, socorreu-se dessa forma ancestral de relato, atribuindo a Blau Nunes a voz narrativa, sempre (mesmo que em alguns contos, os do terceiro grupo mencionado acima, ele não aparece como tal e mesmo nem seja personagem) e inventando, ou ao menos postulando, um interlocutor mudo, que atravessa o conjunto do livro sem tomar a palavra diante do leitor, ainda que interaja vivamente com Blau. Por que terá escolhido (se é que foi escolha) esse modelo, e não o moderno modelo Poe? Meu palpite: Simões Lopes Neto intuiu, como tantas outras vezes fez, que a matéria de que se ocupava ― o mundo da estância, com suas limitações e potencialidades, um mundo em que, como notou argutamente Raymundo Faoro em ensaios magistrais, ainda havia restos de vida comunitária a organizar os laços sociais ― não se conformaria ao modelo moderno, ligado umbilicalmente à cidade, ao ritmo de sua urgência, à ética de seus moradores, e requeria, ao contrário, formato mais maleável, em que coubesse a visão de mundo, o ritmo e a linguagem do mundo rural; em favor deste mundo, da possibilidade de fazer falar a esse mundo, é que o escritor precisou retomar uma velha tradição (como faria Guimarães Rosa depois, na mesma direção). 8 Conto enquadrado, portanto, mas com um acréscimo, penso: a abundância de finais, 5 ou 6, conforme a conta. Por certo que o primeiro final ocorre quando Bonifácio é morto, “mexendo em tremura uma per-
na, onde a roseta da chilena tinia, miúdo...” É final porque com sua morte acaba o enredo: ele perdera a aposta, foi pagar o que devia, desfeiteou a moça (“Ora, misturada”) e recebeu o ataque do Nadico e dos outros namorados dela, e em seguida de todos os circunstantes. Era o final da morte do protagonista. Mas não é o último final do conto. Blau usa do recurso de convocação direta de seu ouvinte (“Patrício, escuite!”) para relatar o que fez a Tudinha no corpo do negro, vazando seus olhos com o facão tirado de sua mão já sem forças e depois, em cena de grande força, estraçalhando sua genitália, com a mesma arma. É o segundo final, que, pensado o conto como roteiro de filme, poderia trazer força de grande impacto ao desfecho da história: mulher bonita, tendo perdido a mãe e o namorado por obra do Bonifácio, agora desgrenhada e com o facão nas mãos, sangrando o morto, como um animal. Era o final da vingança da mulher contra o homem. Mas não é o último final. Há um terceiro final, de outra ordem: no parágrafo imediato ao recém-mencionado, o narrador diz que “ninguém apadrinhou o defunto”, coisa esperável até para bandidos mortos, quando a vingança já tenha sido tomada; em seguida, anuncia, mais uma vez como se fosse coisa pequena, a chegada do juiz de paz, que encarna a figura do Estado naquele contexto, tão afastado do império da lei impessoal preconizada pela organização política moderna. É como se então, no terceiro desfecho, estivéssemos diante da vitória da Lei, do Estado, da Modernidade, contra a barbárie, a truculência, a sociedade em que vigora a lei do mais forte e os pactos de sangue. Era o final da lei. Mas não é o último deles. Aqui, Blau faz um flash-forward em relação ao tempo do narrado, avançando até o momento em que veio a saber dos motivos reais daquela desavença toda: é que o Bonifácio fora o primeiro a ter relações sexuais com a Tudinha, e depois ele tomara a iniciativa de procurar outra mulher, aquele que ele trouxe à carreira, para causar ciúmes na Tudinha. Mas isso tudo era segredo entre os dois, só revelado, de modo cruel e enviesado, na batalha campal seguida da morte dele. É o quarto final, o final das razões, dos motivos da ação narrada, e ainda não é o último. Logo a seguir, vêm os dois últimos finais, ou, talvez, o último deles. Relatados até os motivos da ação, o que restaria contar? Nada. Nem assim, porém, se encerrou o enquadramento que deu início ao conto: agora, é a hora de Blau filosofar, especular sobre os motivos profundos que ali estiveram envolvidos, tentando entender o sentido da coisa, que não foi pouca. Ele se pergunta se havia ali, naquela vingança, amor, perdão, ciúme ou o quê, no que poderemos considerar como o quinto final, o final da especulação filosófica. Mas ainda há quatro frases. E elas falam em outro patamar: não se trata mais de especulação filosófica, mas de redução da complexidade vivida ou revista na história do Bonifácio e da Tudinha a um conjunto de frases feitas, de clichês, de lugares-comuns, que para Blau são um bálsamo: “Ah, mulheres!... / Estancieiras ou peonas, é tudo a mesma coisa... tudo é bicho caborteiro...; a mais santinha tem mais malícia que um sorro velho”. Com elas, sua consciência se acalma, o mundo se recompõe e a vida pode seguir seu curso, para o qual esses rompantes de irracionalidade precisam representar a exceção, não a regra ― mesmo que vivam todos num universo violento, mediado por guerras e saudoso do brutal apresamento de cavalos selvagens (em “Correr eguada”), um mundo masculino em que as escassas mulheres são centrais, e não apenas para a reprodução, como se vê nos relatos de paixão e sangue do livro.
Ou por ele andar livre e altivo por aí, como um espectro vivo de um problema cem por cento não resolvido, o da escravidão, ele que não apenas era negro como ainda por cima ostentava o nó republicano, para quem quisesse ver? Vá saber. O certo é que “Negro Bonifácio” raia pela tragédia: assim como o herói trágico clássico é condenado porque cometeu a “hybris”, transgrediu uma norma ancestral que garantia a convivência pacífica do todo social, também o Bonifácio... bem, transgrediu alguma norma ancestral, ou mais de uma, que garantia a convivência pacífica do todo social. O Bonifácio é, à semelhança do herói trágico clássico, de Édipo a Hamlet (mas sem o poder do rei grego, nem a expectativa de poder do príncipe dinamarquês), alguém que encarna a impossibilidade absoluta de convivência entre duas épocas, duas éticas, duas formas de ser e pensar irreconciliáveis (a escravidão versus a liberdade, o mundo da valentia individual versus o mundo da lei impessoal, o mundo da guerra versus o mundo da manha jurídica), que a história, em sua sucessão, apartou sem apelação, mas que o cotidiano ainda obriga a conviver; por isso deveu morrer. Mas vive para sempre, nas páginas sensacionais de Simões Lopes Neto, como personagem requintado, como caso trágico, como totem, como figura entranhadamente histórica.
BIBLIOGRAFIA MENCIONADA ADORNO, Theodor. “Sinais de pontuação”, in Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2003. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. FISCHER, Luís Augusto e ARAÚJO, Homero. “Raymundo Faoro, leitor de Simões Lopes Neto e de Ramiro Barcellos”, revista Nonada, vol. 2, nº 19, 2012. LESKOV, Nikolai. Homens interessantes e outras histórias. Trad. Noé Oliveira Policarpo Polli. São Paulo: Editora 34, 2012. _______. A fraude e outras histórias. Trad. Denise Sales. São Paulo: Editora 34, 2012. MATTOS, Hebe. Das Cores do Silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, Séc. XIX. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. NETO, J. Simões Lopes. Contos gauchescos e Lendas do sul. Edição de Luís Augusto Fischer (fixação do texto, apresentação e notas). Porto Alegre: L&PM, 2012. _____. _______. Edição crítica de Aldyr Garcia Schlee. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, UNISINOS, 2006. MACHADO, Ana Maria. Recado do nome ― Leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, 3ª ed.
IV – Algum comentário final Imitando agora a fala de Blau, no penúltimo final do conto, poderíamos repetir agora algo de suas palavras, como conclusão um tanto desconchavada: até hoje me intriga isso ― por que motivos toda uma coletividade queria tomar vingança do Bonifácio? Não seria por ele ter se relacionado sexualmente com a moça Tudinha, seria? Acho que não; ao menos não seria isso um motivo relevante para matá-lo, imagino, embora tal intimidade possa ter sido motivo suficiente de raiva da mãe dela contra ele, para nem falar dos enamorados que disputavam sua atenção. (O tema da virgindade ou de um possível tabu relativo a isso, é matéria para discussão; na tradição do mundo rural remoto, não é incomum o homem casar-se com mulher experiente e até com um prostituta, desde que ‘tirada da vida’, como se pode ler em mais de uma passagem da obra de Guimarães Rosa e como se pode estimar ser encontradiço, senão mesmo comum, no mundo do pampa nos inícios da ocupação européia. Veja-se um caso análogo que é relatado em “Os cabelos da china”, em que a china do título trocou de parceiro sem maior drama, nem para ela, nem para o novo namorado. Quero dizer: não se pode ler em “Negro Bonifácio” um problema de tipo burguês, do mundo moral em que a virgindade tornou-se importante moeda no mercado do casamento. A ser razoável essa hipótese, não seria a perda da virgindade da Tudinha um motivo por si só suficiente para toda aquela raiva contra o Bonifácio.) Seria pela gaiatice dele, de aparecer com um cavalo todo paramentado e com aquela piguancha com ar de querendona?
Luís Augusto Fischer
C O N T O S G A U C H E S C O S ILUSTRAÇÕES
NELSON BOEIRA FAEDRICH
confluência com o rio Piratini. Com o tempo essa denominação,
O RINCÃO DO QUILOMBO
de origem hispânica, transmudou-se em Orqueta, como é hoje conhecida. Assim, o caminho para quem vinha de Rio Grande, passando por Santa Isabel, atravessava o rio Santa Maria no Pas-
Para conhecermos a história do Rincão do Quilombo, so da Forqueta, cruzava em frente à sede da fazenda e a perprecisamos antes conhecer aquele que legou essa área de corria em toda a sua extensão, passava pela localidade Ferraria campo. João Cardoso da Silva era português. Chegou ao Brasil em direção a Cacimbinhas (hoje, Pinheiro Machado) e prosseno final do século XVIII. Após ter recebido do Reino de Portugal guia até a fronteira (Bagé, Sant’Ana do Livramento, Uruguaiana uma área de campo de extensão considerável, à qual deu o etc.). Por esse caminho passavam viajantes, tropeiros, carreteiros, nome de fazenda da Forqueta. A sede da fazenda localizava-se praticamente no mes-
diligências. Fato muito interessante da vida de João Cardoso da
mo local onde hoje está o sobrado que pertence à família Pizar- Silva é a história do mate, bastante conhecida no meio tradicioro, nas imediações da cidade de Pedro Osório. A fazenda esten- nalista. Ela foi narrada por João Simões Lopes Neto, no seu livro dia-se além da localidade denominada “Ferraria”, e fazia divisa Lendas do Sul. Entretanto, não é propriamente uma lenda; parecom a fazenda Espírito Santo: os limites eram marcados pelos rios ce tratar-se de um caso verdadeiro. Piratini e Piratinizinho, pelos rios Santa Maria e Tamanduá.
Naqueles tempos, as notícias custavam muito a chegar
João Cardoso era solteiro e não deixou descendentes. na campanha. Não havia meios de comunicação ágeis, nem Possuía muitos escravos. Muito do que se sabe de sua história mesmo jornal. pessoal é dado a contar pela família. Sua casa de residência
João Cardoso, quando via um viajante que passava,
não era de alvenaria, era um rancho de pau-a-pique ou torrão com a finalidade de colher algumas notícias, mandava um criacoberto por palha, conforme o costume da época. A base da do convidá-lo a chegar para tomar um mate e descansar. renda da fazenda estava na criação de gado. Criava, também, equinos e muares. A agricultura, em menor escala, destinava-se
O viajante, que na maioria das vezes vinha de longe, aceitava o convite.
mais ao consumo da fazenda. Sabemos – pela cópia de uma carta que João Cardoso enviou a uma irmã em Portugal, em resposta ao convite que ela fizera para que voltasse para sua terra natal – que ele não voltaria porque a fazenda rendia muito bem: três mil bois, anualmente. João Cardoso, quando veio de Portugal, trouxe consigo o sobrinho Bernardo Dias de Castro, que também povoou cam-
João Cardoso pedia, então, a uma criada que trouxesse o mate. Enquanto conversavam, o viajante dava as notícias que sabia. Mas o mate não vinha. Aborrecido por esperar pelo mate, o viajante levantava -se para seguir viagem. João Cardoso pedia que esperasse um pouco mais e
pos no município de Piratini. Em 8 de janeiro de 1808, Bernardo gritava para a criada: comprou de João Alves Pereira a metade da Fazenda Espírito
— Ô, diabo! Traze esse mate de uma vez!
Santo. Na época, a distância entre a sede das fazendas era grande. Era o início do povoamento da região. A cidade mais próxima era Rio Grande e o povoado de Santa Isabel. Forqueta foi o nome que se deu ao passo no rio Santa Maria, próximo à
Acontecia que quase nunca tinha erva. A criada vinha perto do patrão e dizia baixinho:
— Patrão! Não tem mais erva! João Cardoso, fingindo-se irritado, dizia:
No início da década de 50, surgiram os primeiros processos de usucapião, visto que as cláusulas do testamento há muitos anos não eram observadas. Alguns moradores compra-
— Se não tem mais erva boa, traze da ruim mesmo!
ram a parte dos que haviam emigrado para as cidades. Outros
O mate não vinha, o viajante terminava indo embora; apoderaram-se das possessões abandonadas e de campos que João Cardoso, porém, ficava sabendo das notícias.
restavam do condomínio. Atualmente, quase todos os moradores têm título de propriedade da terra, requerido pelo processo de usucapião.
João Cardoso faleceu em 1811. Seu herdeiro testamental foi o sobrinho Bernardo Dias de Castro, dono da fazenda Espírito Santo. Como eram fazendas lindeiras, foram unidas. Em seu testamento constava ainda a doação de mil e quinhentas (1500) braças de campo a dez (10) famílias de escravos. É essa área que atualmente é denominada “Rincão do Quilombo”.
O Rincão do Quilombo foi medido em fevereiro de 1857. Segundo se sabe, conserva a área original até a presente data. Seus limites são demarcados, em linha reta, pela Ferraria, Passo da Cruz, arroio Tamanduá até a confluência da sanga que serve de divisa com a fazenda Arvorezinha.
O testamento de João Cardoso da Silva foi guardado na fazenda Arvorezinha até o início deste século, quando o Dr. Érico Ribeiro da Luz pediu ao Cel. Gervásio Alves Pereira Sobrinho que lho emprestasse para que pudesse estudar algumas cláusulas interessantes. O documento foi emprestado e não mais retornou. O pouco que se sabe das cláusulas do testamento é pela tradição oral. Lembro-me de meu pai comentar, quando eu era ainda muito jovem, que no testamento de João Cardoso havia o legado de mil e quinhentas braças de campo a dez famílias de escravos que deveriam destiná-lo à criação de gado em condomínio. Cada família poderia fechar as terras com agricultura, mas não poderiam vendê-las. Quanto ao nome de família, a maioria dos escravos assinava “Cardoso da Silva”. O sobrenome “Borges” também é muito antigo. Durante um século, talvez um pouco mais, os moradores do Rincão do Quilombo eram herdeiros legítimos da área que ocupavam, descendentes dos legatários de João Cardoso da Silva. Entre eles, ainda no século passado, havia sempre um que se encarregava de recolher de cada um a quantia em dinheiro necessária ao pagamento do imposto; sabe-se, entretanto, que há dívidas de alguns anos.
Luiz Geraldo Alves Vieira
coragem e a dignidade de pessoas e bichos.
JOÃO SIMÕES LOPES NETO por Olívio Dutra
4. Os Contos Gauchescos caracterizam-se por uma linguagem quase documental da tipologia regional. O senhor acredita, pois, que esta linguagem condiz com a reaEntrevista: Ana Luiza Nunes Almeida lidade da época? Ainda é possível perceber traços deste “tipo gaúcho” na sociedade atual?
1. Qual a sua relação com a literatura simoniana? E quais as considerações o senhor tem a fazer em relação à Sim, e com o êxodo rural que de lá para cá se procesfigura simoniana? sou, esta linguagem se espraiou para a periferia urbana pois está no subsolo do falar do “gaúcho a pé” cujos pais ou avós vieram para as cidades carregando essa herança Minha mãe, que só foi se alfabetizar depois dos 50 anos, verbal comunicativa. nos contava “causos” do vaqueano Cabo Blau e do loroteiro caçador Romualdo, quando éramos guris em São Luiz Gonzaga. Ela os ouvira, quando jovem, de seu pai, 5. A linguagem peculiar criada pelo escritor ainda é nos fundões de campo onde eram agregados, lá pela empecilho para o entendimento de sua obra fora do condécada de 30', no interior de Bossoroca, então 3º distrito texto regional? de São Luiz. A linguagem, o vocabulário e a fabulação nos faziam saborear a fala da nossa mãe. Mais tarde, curioso por conta das estórias que ouvia sobre os mistérios e No tempo de vida de Simões Lopes Neto até mesmo no lendas das Missões, caiu-me nas mãos “Contos Gauches- Rio Grande do Sul, nos espaços urbanos mais europeizacos e Lendas do Sul”. Percebi, então, que minha mãe, sem dos, essa incompreensão era ainda maior. Agora ela está o saber, falava como o João Simões Lopes Neto escrevia. sendo superada com as várias edições de suas obras e Todos aqueles “queimadores de campo” da minha infân- publicações de inéditos com fortuna crítica considerável. cia tinham linguajar semelhante. Naquelas alturas, des- Aqui, no RS, destacam-se os trabalhos de Manoelito D' confio que a obra de J. Simões Lopes Neto era mais co- Ornelas, Carlos Reverbel, Flávio Loureiro Chaves, Aldyr nhecida oralmente nos galpões e arranchamentos de Garcia Schlee e Luiz Augusto Fischer. João Guimarães Rocampanha do que nos salões da casa grande das fazen- sa era leitor apaixonado de João Simões Lopes Neto e o das. Evidente, o escritor não “inventara” essa fala. seu “Grande Sertões: Veredas”, obra universal que tem como fundo uma região específica de Minas Gerais, enfrenta esse mesmo desafio que a cultura de um povo, a 2. Flávio Loureiro Chaves, em sua palestra, discorreu medida que vai se espraiando e se consolidando, inclusive sobre a literatura simoniana e sua contribuição cultural, através de políticas públicas, tende a superar. defendendo a “regionalidade universal” que faz com que a obra de João Simões Lopes Neto seja, ainda, atual. Qual a sua perspectiva sobre esta afirmativa? 6. Cem anos depois de sua escrita, quais são as características dos Contos Gauchescos que permitem que a obra ainda seja atual e sirva de referência? Fui aluno do Prof. Flávio Loureiro Chaves, na Faculdade de Letras da UFRGS, nos primeiros anos da década de 70'. Nas suas aulas aprendi a apreciar ainda mais o “bruxo de Os seus temas e a forma de tratá-los, às vezes “de pranPelotas”. Compreendi e, por isso, fruí melhor a estrutura do cha”, às vezes “de talho”, conforme as circunstâncias vivitexto, a singularidade e profundidade dos temas, facilita- das e ou narradas pelas personagens, sempre grandes do por uma certa familiaridade atávica com o vocabulá- observadoras da paisagem, dos outros e de si mesmas. rio simoniano. Leon Tolstoi, grande escritor russo (1828 – 1910), dizia que “se queres ser universal, falas da tua aldeia”. Assim sendo, João Simões Lopes Neto é um grande 7. Quais os motivos que o senhor atribui para a grande escritor universal e, eu diria, precursor de Érico Veríssimo e quantidade de novos estudos e pesquisas que surgiram de Guimarães Rosa. nos últimos anos sobre a obra de João Simões Lopes Neto?
3. João Simões Lopes Neto é referência para a literatura A globalização linear que a tudo parece querer padrogaúcha. De que forma ele colabora para a preservação nizar e o contraponto de movimentos sociais, políticoda identidade sul-rio-grandense? culturais que buscam sublinhar identidades e diferenças que se entrelaçam e tecem redes que dialogam com o passado, o presente e o devir humano. A obra de J. Simões Lopes Neto trouxe para o patamar da grande literatura o linguajar, o vocabulário, as comparações, o modo de encarar a vida e as inquietações do homem do campo e de sua família, os valores que moldaram o seu caráter como honra, lealdade, solidariedade,
8. João Simões Lopes Neto era considerado um homem à frente do seu tempo e sua obra não obteve grande repercussão na sua época, tornando-se, então, um legado para o futuro. O senhor percebe que atualmente a obra simoniana é compreendida de forma mais adequada?
Sim, incompreendido até pela família por conta dos diversos projetos que encetava como empresário e que não prosperavam, João Simões Lopes Neto nunca deixou de escrever sobre o mundo em seu torno onde sua sensibilidade já detectava profundas mudanças a acontecer e o seu talento, misturado a esforço, paciência e dedicação, transpunha para seus escritos. Muito desse material continua ainda inédito. Sua obra, nos últimos tempos, graças ao trabalho de intelectuais como os que referi acima, ao trabalho nas escolas às diferentes edições de seus livros e os estudos acadêmicos, vem ganhando patamares de leitura e compreensão há muito merecidos. É preciso e possível fazer muito mais.
9. Na sua concepção, qual a crítica que João Simões Lopes Neto pretendia construir ao focar o ambiente rural nas suas narrativas, embora o próprio escritor estivesse ambientado no meio urbano?
João Simões Lopes Neto, embora ambientado no meio urbano (andou incursionando pelo Rio de Janeiro onde fez os estudos secundários e parte do curso de Medicina), pertencia à aristocracia rural de Pelotas embora não rezasse pelo seu catecismo ideológico. Sempre que podia estava no campo, misturado com os peões e trabalhadores da fazenda. Do seu apreço pelas conversas com os peões, agregados, posteiros e servos do campo, provavelmente surgiu a idéia de colocar aquele povo, com seu jeito de falar, a sua “filosofia” como sujeitos narradores de seus contos e casos. Com isto destacou e registrou a riqueza de um mundo e de sua gente que estava na base da formação histórica, econômica, política e cultural do RS.
10. Qual a importância do evento “Centenário dos Contos Gauchescos: 100 anos da escrita...100 anos de leituras” para a preservação da obra simoniana?
O trabalho constante do Instituto João Simões Lopes Neto e este “Centenário dos Contos Gauchescos: 100 anos de escritos...100 anos de leitura” conjugados com a UFPEL, a UFRGS, os governos municipal, estadual e federal e um público cada vez maior de leitores já despertados ou em formação, têm importância inqüestionável na divulgação e preservação da obra simoniana. O conhecimento da obra e da figura humana peculiar que foi João Simões Lopes Neto aumenta a consciência de sua preservação e divulgação.
O BOI VELHO, DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO: ECOS DO UNIVERSO DE MAUPASSANT
Primeira vez que eu falo de forma acadêmica sobre Simões Alusão à data especial – Centenário dos Contos – Bicentenário da Cidade (quando Simões foi o grande promotor das festividades alusivas ao centenário, tendo organizado e publicado a Revista do Centenário). Mas nada mais marcante na vida cultural de Pelotas naquele ano de 1912 (embora disso só se soubesse muito mais tarde), alguns meses depois do aniversário da cidade em julho (em data também determinada pelo escritor) do que a publicação singela, em setembro, pela editora da Livraria Universal, de um livrinho que reunia 18 contos já anteriormente publicados nas páginas do Diário Popular entre 1911 e 1912 (e única exceção sendo o conto O Contrabandista, publicado pela primeira vez na revista da Academia de Letras do Rio Grande do Sul, também naqueles anos (mas em versão diferente daquela definitiva publicada em livro). Aqueles Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto, seriam acrescidos de mais um texto – O Menininho do Presépio – apenas na edição crítica de 1949, embora o texto tenha sido publicado em Jornal – A Opinião Pública – no fim de 1913. Esta introdução eu faço baseada na síntese elaborada pelo meu amigo Fausto Domingues que se encontra n o s i t e o f i c i a l d o I n s t i t u t o : www.institutojoaosimoeslopesneto.com.br Obrigada, Fausto. Usar teus dados é ter a certeza de não errar, já que és o maior conhecedor hoje da vida editorial do nosso escritor. Quando fui convidada pelo nosso presidente para essa palestra, não tive dúvidas do assunto a tratar. Há muitos anos eu penso nele, inicialmente provocada pelo professor Claudio Cruz, que pretendia coordenar uma pesquisa bibliográfica nos antigos jornais da cidade em busca de referências e evidências que ajudassem na determinação das influências da literatura francesa sobre os autores pelotenses. Que houve essa influência é inegável, assim como sobre toda a literatura brasileira, mas a ideia era chegar a referências explícitas a essas fontes estrangeiras e até mesmo a uma possível reconstituição das bibliotecas das famílias cultas da época. A pesquisa acabou não sendo feita, mas a ideia de que Simões teria sido influenciado por autores franceses não me abandonou e foi reforçada por uma breve alusão da Professora Kathrin Rosenfield aqui neste instituto sobre a proximidade de sua obra com a obra de Guy de Maupassant. Maupassant nasceu em 1850, 15 anos antes, portanto de nosso escritor. Nasceu no interior da França, na Normandia, onde viveu por aproximadamente 20 anos, durante os quais pôde observar a vida dos camponeses, que iria retratar em seus contos de forma impiedosa e crua. A obra desse discípulo de Flaubert, feita basicamente de narrativas curtas – embora tenha escrito alguns romances – foi produzida fundamentalmente entre 1875 e 1885. Terá Simões Lopes Neto lido Maupassant? Não arrisco uma resposta peremptória, mas me parece bastante possível. Maupassant conhece o sucesso a partir da publicação de seu conto Boule de Suif em 1880. Tornase um representante notório da escola realista-naturalista e começa a ser muito lido mesmo fora da França. Nada de surpreendente então que na Pelotas da Belle Époque se tenha tido acesso a publicações que se tornaram célebres, como a antologia de contos chamada Soirées de Médan, publicada em 1880 reu-
nindo seis escritores em torno de um tema comum, a Guerra Franco-Prussiana de 1870: Zola, Maupassant, Huysmans, Henry Céard, Léon Hennique e Paul Alexis. Seis escritores amigos que se reuniam nessas noites em Médan – comuna próxima a Paris - na casa de Zola para falar de literatura. Numa dessas noites surgiu a ideia da antologia, que foi uma espécie de manifesto em defesa do realismo praticado por esses autores. Nessa antologia aparece pela primeira vez o célebre conto de Maupassant, que lhe empurraria para o sucesso. Que Simões tenha tido acesso a essa publicação ou às reuniões de contos do escritor francês que se seguiram a ela, o difícil é imaginar que não tenha tido nenhum contato com Maupassant. E esse contato pode ter acontecido em Pelotas, como referi, ou no Rio de Janeiro, onde nosso escritor viveu por alguns anos, de 1877 ou 1878 a 1884. No Rio nessa época, havia uma grande circulação de jornais franceses (os contos de Maupassant foram publicados primeiramente em jornais, especialmente no Le Gaulois (1869-1929) e no Gil Blas (1879-1914 e 1921-1940 episodicamente). Em estudo da professora Valéria Guimarães, encontra-se ume referência a um catálogo de 1887 da Livraria Lambaerts & C., que distribuía pelo menos Le Petit Journal, Le Figaro e a Revue de Deux Mondes. Independentemente, porém, desses fatos, o que interessa aqui é a familiaridade entre o universo retratado por Maupassant e aquele criado por Simões Lopes Neto anos depois, e sobretudo a forma literária pela qual esse universo é exposto. O que primeiro chama a atenção é a forma como os dois contistas introduzem o leitor no próprio conto. Há, inúmeras vezes, um interlocutor nomeado como no conto Un fils (Um filho), de Maupassant, em que dois personagens caminham lado a lado e conversam até que um deles decide contar uma história que ilustra o assunto da conversa. Essa é uma situação bastante usada por Maupassant, da mesma forma que aquela em que há um grupo conversando – em geral de aristocratas – quando um deles conta uma história aos outros com o objetivo de ilustrar uma situação, o típico exemplum da retórica latina (Termo retórico latino para uma narrativa curta de caráter moralista e que pode servir de paradigma em relação ao assunto de que trata), como no conto Le Bonheur (A Felicidade). Ler excerto. Em Simões tal procedimento aparece repetidamente. Encontraremos em quase todos os contos gauchescos um interlocutor – um auditor na verdade, já que invariavelmente este não se manifesta, aparecendo apenas no pronome (o recorrente vancê), na forma verbal de segunda pessoa ou em algum vocativo como “amigo”, como em Penar de Velhos. Há em alguns contos, como em Chasque do Imperador, certos usos que reforçam a função fática da linguagem como a expressão “não senhor” na frase “Mas, não senhor, era um homem de carne e osso, igual aos outros...”. São expedientes usados pelo narrador para aproximar seu ouvinte-leitor do texto. Em Deve um queijo!... também não há a explicitação do interlocutor, mas a frase “E, por falar nisto:” que introduz a história vivida pelo velho Lessa, por seu coloquialismo e dinâmica de diálogo, faz adivinhar a presença de um ouvinte. A única exceção é mesmo Batendo Orelha, texto que se diferencia de todos os outros no estilo sendo isso uma exigência da própria construção em paralelismo daquele texto. Mas a proximidade entre Simões e Maupassant não se limita a esse aspecto formal. Há uma profunda similaridade de temas entre os dois contistas.
OS CONTOS DE MAUPASSANT Escolhi quatro contos de Maupassant para estabelecer esse universo do qual se encontram ecos no texto de Simões a ser analisado. São eles: Le Gueux (O Mendigo), Le Vieux (O Velho), L’Aveugle (O Cego) e Une famille (Uma família). O primeiro deles conta a história de um mendigo, criança abandonada e criada por caridade, sem instrução de nenhuma espécie, que com 15
anos tinha tido as pernas esmagadas num atropelamento e desde então andava amparado em muletas “que lhe tinham feito subir os ombros à altura das orelhas. Sua cabeça parecia enterrada entre duas montanhas”. Vivia da mendicância e quase como um animal, sem lugar certo para dormir, sem hora para comer. Era tratado com desprezo e hostilidade pelos habitantes da região. O narrador informa, logo no início do conto, que o mendigo estava há dois dias sem comer e descreve a forma como era enxotado pelas camponesas, donas das casas onde batia atrás de alimento. Conta também as distâncias enormes que percorria com suas muletas, no frio de dezembro. Até que, extenuado, ele se deixa cair sob uma árvore e, vendo galinhas que se aproximam, atira uma pedra e mata uma delas. Quando, de novo sobre as muletas vai buscar sua caça, sente ele também um golpe forte nas costas. É o proprietário das galinhas que o surpreende, surra-o e o prende. Mais uma noite se passa sem que Cloche, o apelido que ganhara por caminhar balançandose como um sino, coma qualquer coisa. No dia seguinte chegam os guardas para levá-lo (pelos quais ele nutria um terror atávico). Ele consegue ainda, apesar da exaustão, se arrastar sobre as muletas até a noite, quando chega à prisão. Lá não ocorre aos guardas que ele possa não ter comido e nada lhe oferecem. O mendigo não diz nada, já tendo praticamente perdido, por falta de uso, o domínio da linguagem verbal. No dia seguinte, quando vêm buscá-lo para o interrogatório, encontram-no morto. “Que surpresa!” é a forma irônica com que se encerra o conto. Le Vieux é a história de um casal que espera uma morte com ansiedade. O velho do título é o pai da camponesa, que está nos extertores da morte. Como é preciso cuidar do velório e do enterro, o casal chega à conclusão de que o velho morrerá logo e isso é o ideal, já que não atrapalharia a colheita, pois o enterro cairia num sábado. Convencidos disso, começam a convidar para o velório, afirmando que o velho morrera. A mulher dedicase a preparar a recepção, mas eis que os convidados chegam e o velho ainda vive. O casal se desespera, mas ele só morre no fim do dia que seria dedicado ao velório, obrigando à mudança no dia do enterro e a uma nova cerimônia de recepção. O casal lastima o prejuízo. L’Aveugle conta a história de um cego que com a morte dos pais foi recolhido pela irmã. Apesar de sua parte da herança ter ficado com a família dessa irmã, ele sempre foi visto como um estorvo, mal lhe davam de comer e ainda se divertiam às custas de suas limitações, pondo um gato ou cachorro a comer de seu prato ou oferecendo-lhe lixo como alimento. Era a diversão da vizinhança. Noutro momento, o divertimento era desferir golpes aleatoriamente sobre ele, que passou a ter sempre os braços levantados, esperando a violência inexplicada. Mas um dia todos se cansaram até mesmo das brincadeiras e obrigaram-no a mendigar. Ele teve pouco sucesso e isso fez aumentar a raiva do cunhado. Num dia especialmente frio, em que nevava, este levou-o muito longe para sua terefa diária. O cego, com tamanho volume de neve, não conseguiu localizar o caminho de volta para casa e depois de procurar por horas, exausto, deixou-se cair e foi coberto pela neve. Foi encontrado dias depois, quando um grupo de corvos que se atirava sobre a neve atraiu a atenção. Ele foi encontrado já meio devorado, sem os olhos. A família chegou a chorar sua morte. Em Une Famille, o narrador faz uma visita a um grande amigo que não vê há quinze anos, desde que este casara-se com uma provinciana. Ele se pergunta, ao início do conto, se reencontrará o mesmo homem inteligente e elegante de outrora. Ele o encontra gordo e feliz, com 5 filhos. Além deles e da mulher morava na casa imitando um castelo um senhor de 87 anos, o avô da esposa do amigo. O narrador logo descobre que o velho era a diversão da família nas horas de refeição. A família despertava seu apetite e gula informando antes o que havia para comer, especialmente a sobremesa. Antes, forçavam-no a comer a sopa e depois só lhe davam migalhas da tão esperada sobremesa. E dobravam-se de rir dos esforços do ancião em busca de mais
comida.
O BOI VELHO O conto de Simões Lopes Neto, em sua estrutura superficial, apresenta cenas campeiras das mais típicas. São recordações de infância e retratos da vida campeira, mas aqui voltados à família dos proprietários rurais e seus hábitos. Simões nos transporta à estância do Lagoões dos tais Silva, caracterizados perfeitamente como uma oligarquia rural política de ética duvidosa, em apenas uma frase: “sempre metidos em eleições e enredos de qualificações de votantes”. Essa família, cheia de crianças e de senhoras-donas funciona como um só personagem, impreciso, mas com função muitíssimo bem definida no conto. Os outros personagens são os bois, Dourado e Cabiúna, estes sim recebendo uma atenção maior do contista, tendo traços mais precisos de comportamento: os bois mansos, que puxam o carretão levando a família para o banho de arroio, adaptados a essa rotina atemporal, que os limita e os define. O conto é dividido em duas partes distintas: a primeira é a apresentação geral – tempo, personagens, intriga, clima. É o momento da alegria, das idas com carro de boi ao banho, das visitas inesperadas dos bois às “casas” nos dias de sol de inverno, dos afagos das crianças àqueles seres amigos, oferecendo-lhes espigas de milho e abóboras. A segunda parte é introduzida abruptamente: “Um dia, no fim do verão, o Dourado amanheceu morto, mui inchado e duro: tinha sido picado de cobra.” O narrador descreve a reação de Cabiúna: “Cá pra mim o boi velho [...] berrava de saudades do companheiro e chamava-o, como no outro tempo, para pastarem juntos, para beberem juntos, para juntos puxarem o carretão...”. E é admirável a forma enxuta com que descreve sua decrepitude, a magreza, finalmente a fuga para o mato. É neste mesmo parágrafo que o narrador introduz aquela que talvez seja a informação mais importante do texto, aquela que provocará o desfecho trágico e que dá título ao conto: o boi estava velho. O narrador acrescenta o adjetivo como um simples modificador, mas imediatamente percebe que deve explicar a passagem do tempo ficcional, que não acompanha a velocidade narrativa: “Cá pra mim o boi velho – uê! tinha caraca grossa nas aspas! – o boi velho [...]” e faz isso como se precisasse provar a afirmação a um interlocutor desconfiado. Na mesma velocidade que usou na primeira, o narrador introduz a segunda reviravolta no conto: “Um dia de sol quente ele apareceu no terreiro”. Com extrema habilidade o narrador transmite a atmosfera de alegria que se instaura com a chegada do boi – a criançada feliz, os mais velhos, as senhoras, todos para festejar Cabiúna – e, com a mesma habilidade, desenha, já no parágrafo seguinte, a nova atmosfera, a análise fria da situação do boi feita pelos meninos que iam à sanga levados por ele, agora já homens preocupados com os negócios, que não podem admitir o prejuízo de um couro de boi morto de fraqueza atolado numa sanga. Decisão tomada, mate-se o boi, decisão cumprida sem detença. Já se chama o peão com o laço e o boi cabresteia “como um cachorro” – é de se notar aqui a referência, por certo nada casual, ao animal considerado como o melhor amigo do homem. E de imediato, sem deixar tempo aos personagens de refletirem, sem deixar tempo aos leitores de se prepararem para o desfecho, numa atitude corriqueira e evidentemente nãotrágica na vida campeira, o peão “puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi manso [...]”. Ocorre que em Simões a tal cena corriqueira adquire um tom trágico. Inicialmente pela frase que segue a narração do ato: “Houve um silenciozito em toda aquela gente” e depois pelo acréscimo do patético, que, destoando do contexto, em desacerto absoluto com a simples descrição de cenas e práticas rurais, cria a atmosfera propícia ao desfecho trágico. Cala fundo
no leitor, busca nele a emoção, e produz a catarse e a reflexão. O patético vem da interpretação que dá o narrador à atitude do boi ferido – seria aquilo uma punição, um castigo por ele não estar preparado para sua tarefa ancestral (ler p. 48) – e da descrição da cena final, de um realismo explícito: “[...] soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio cambaleando, o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido no cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinho, no lugar da canga, entre os dois canzis... e ficou arrumado, esperando que o peão fechasse a brocha e lhe passasse a regeira na orelha branca... E ajoelhou... e caiu... e morreu...”. No ápice do desfecho, da tragédia, eis que o realismo segue, na descrição dos cuscos lambendo o sangue do boi morto e na impassibilidade do peão, que segue a sua lida, chairando a faca para carnear. E novamente, contrastando de novo com essa realidade dura do campo, há a figura do menino que se aproxima do boi para dar-lhe na boca a munhata (batata-doce) e que se dirige a ele em sua linguagem infantil, observado pelos adultos silenciosos. E o narrador não se ausenta da palavra final, interpretativa primeiro, supondo-lhes o remorso, e crítica depois, quando traz de volta seu interlocutor no “veja vancê” e na frase com que encerra e julga o caso “... é mesmo bicho mau o homem!”.
muito em comum, o que se procurou provar até agora. E, no caso da temática dos contos aqui analisados, têm em comum especialmente a derradeira constatação de Blau, de que “é mesmo bicho mau o homem!”.
BIBLIOGRAFIA
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SIMÕES LOPES NETO, João. Contos Gauchescos. Porto Alegre: Já falei nas similaridades formais entre os dois contistas – na for- Editora Globo, 1996. ma de aproximarem o leitor através de sua identificação com o interlocutor quase sempre presente nas narrativas; no uso frequente do conto como ilustração de um assunto de discussão coletiva em Maupassant (como no conto Le Bonheur), que lembra o universo dos causos de galpão, no qual circula Blau Nunes. Mas agora podemos falar também da proximidade semântica entre os contos. A exploração, o desprezo dos homens jovens, e social ou economicamente estabelecidos pelos mais velhos ou despossuídos, a maldade resultante da mesquinhez é recorrente em Maupassant, como vimos nos contos citados – Le Gueux, Le Vieux, L’Aveugle, Une Famille. Simões utiliza o tema adaptando-o à realidade campeira. O fato de ser um animal a vítima da ganância, da frieza, da insensibilidade humanas não muda nada, já que tanto num autor quanto no outro, a temática não gira em torno da vítima – apesar de ser ela que dá título a todos os contos – mas da atitude do agressor, já que o conto funciona como ilustração de um sentimento humano ou da falta dele. É evidente, porém, a diferença de tom usada por Simões em relação àquele usado por Maupassant. No contista francês encontramos um cinismo constante, uma descrença no ser humano que o acompanha em toda a sua obra. E o narrador de Maupassant raramente emite julgamentos (a não ser quando usa o caso para ilustrar uma discussão). A busca pelo estilo naturalista-realista puro torna isso desnecessário e por vezes inconveniente. Maupassant quer falar da miséria humana – miséria das vítimas e dos algozes apenas mostrando-a em sua crueza. Digo vítimas e algozes porque estes ocupam espaços similares e poderiam trocar de posição: certamente o velho do conto Uma Família a quem se nega comida seria capaz de atitudes similares em sua juventude, é a impressão que se tem, já que a maldade é exposta como um fato social e não individual. Há um desencanto total em seu universo. Já em Simões, pressente-se certa inconformidade, que busca claramente produzir emoção e indignação no leitor – o que é feito através do uso recorrente do patético. O que era puro desencanto em Maupassant torna-se tragédia em Simões. Porque em Simões há esperança no gênero humano. E só nesses casos é possível o advento da tragédia. A esperança e sua não-confirmação. Não se pode esquecer que se trata do mesmo autor de Trezentas Onças, conto da grandeza humana e antítese quase perfeita d’O Boi velho. Simões acredita no homem; Maupassant não acredita. Maupassant fala ao cérebro, Simões quer falar também ao coração. Afora essas diferenças essenciais, e o fato de o escritor pelotense ter sido também influenciado pelo romantismo, que em sua época vicejava ainda por estas plagas, enquanto que o francês e seu grupo já haviam rompido completamente com essa corrente, os dois têm
Paula Schild Mascarenhas
CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: O BELO HORROR EM “CORRER EGUADA”, DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO.
Alguém chamou o homem de “animal mau por excelência”, por isso todos os demais temem instintivamente à vista dele ou ao seu rastro (Benedito Nunes) Cuê-pucha!... é mesmo bicho mau, o homem! (Blau Nunes in: “O boi velho”, de João Simões Lopes Neto)
1. Se pensarmos na média de nossos alunos, e mesmo nos leitores em geral, é possível que de todos os relatos de Contos gauchescos, “Correr eguada” seja aquele que mais apresente dificuldades para a sua leitura. E não só pela conhecida barreira imposta pelo “dialeto” campeiro utilizado pelo narrador, já que isso ocorre em todas as narrativas do livro. É possível que a leitura desse conto torne-se mais difícil porque não se encontra nele nenhum conflito aparente, nenhuma unidade dramática claramente apresentada. Alguma intriga que pudesse satisfazer aquela natural curiosidade, tão presente no leitor não especializado. Poderíamos chamá-la aqui de uma intriga tradicional ou aristotélica, de teor catártico, seja pela tragédia, seja pela comédia. Como mais de um crítico já apontou, não se trataria no caso de um conto propriamente dito, nem mesmo de uma pequena anedota, tal como a encontramos em “Deve um queijo!” ou “O mate do João Cardoso”. Se tivéssemos que classificar “Correr eguada”, seria uma espécie de crônica de costumes, entremeada com passagens que são verdadeiros poemas em prosa. Mas trata-se, na verdade, de algo mais complexo, como buscarei demonstrar. Quero encaminhar uma reflexão a partir do fato de que, sob a aparente frugalidade de uma narrativa costumbrista, somos apresentados a uma prática extremamente violenta para com os animais. Prática essa que, ao que tudo indica, fazia parte da vida campeira do narrador Blau Nunes no tempo da sua juventude. Isso ocorria quando nas estâncias ainda não existia o alambrado e os campos eram abertos. O gado vivia solto e sem dono certo, o trabalho confundindo -se, em certos casos como o narrado, com o mais puro divertimento. Disse antes que não encontramos em “Correr eguada” um conflito aparente, mas isso não é bem verdade, os cavalos e as éguas que o digam, já que muitos são levados para uma morte, como destaquei acima, extremamente violenta. Mas ocorre que não é do ponto de vista dos animais que recebemos a narrativa, e isso muda tudo. Seria interessante, sem dúvida, uma reescritura de tal relato pela ótica animal, algo próximo ao que fez Graciliano Ramos na célebre passagem de Vidas secas, em que a cachorrinha Baleia praticamente “assume” o foco narrativo, narrando a sua própria morte. Caso Simões Lopes optasse por um recurso semelhante – e não deixa de realizar um pouco isso no “Boi Velho” – , teríamos uma dramaticidade comparável a vários outros contos da coletânea. Mas também outro relato, naturalmente ... 2. Gostaria agora, mesmo que sucintamente, de fazer um balanço da fortuna crítica da narrativa que nos ocupa. Quero pontuar alguns momentos fundamentais da leitura que foi sendo feita de “Correr eguada” ao longo do tempo. A primeira coisa a ser dita é que não tivemos até hoje um estudo, um ensaio que fosse, dedicado exclu-
sivamente a tal conto. Muito menos um livro inteiro, como ocorreu com o “Negro Bonifácio” ou “A Salamanca do Jarau”, por exemplo. No seu prefácio à edição crítica da Editora Globo, de 1949, Augusto Meyer deixaria o “Correr eguada” meio na sombra, sendo classificado pelo crítico como um simples “intermédio folclórico”, conforme suas próprias palavras, igualando-o a relatos como “Juca Guerra”, “Chasque do Imperador” e “Artigos de fé do gaúcho”, assim como aos já citados “Deve um queijo” e “O mate do João Cardoso”. O crítico considera esses contos, portanto, como fazendo parte de uma extração mais modesta da obra simoniana. Diz Meyer que aqui “a forma literária serve de veículo à fixação de usos, costumes, perfis e ambientes característicos” da campanha. Mesmo assim, faz uma curiosa e também algo contraditória ressalva. Afirma que “a intenção modesta não impede que em “Correr eguada” Simões Lopes tenha atingido um dos momentos mais intensos de sua prosa” (grifo meu). Num texto da mesma época, Lúcia -Miguel Pereira, pelo contrário, irá situar o relato “Correr eguada” entre os mais destacados do autor pelotense. É o único a merecer por parte dela uma longa citação. Mas tanto esse como os outros contos de Simões não recebem nenhuma análise detida. Privilegia no seu estudo, como a maioria dos críticos até então, uma perspectiva panorâmica dos Contos gauchescos. Mais para o final da década de 1950, na introdução a uma antologia da obra de Simões Lopes Neto publicada pela Editora Agir, Moysés Vellinho não chega a dar destaque a nenhuma das narrativas. Mas não deixa de ser notável que tenha selecionado para a sua antologia o “Correr eguada”. Colocava-o, assim, entre os seis mais representativos dos Contos gauchescos. A partir da década de 1960 e, principalmente, ao longo dos anos de 1970, entraria em campo a crítica universitária, que iria impulsionar de forma crescente os estudos simonianos, mas sem que se alterasse em muito a situação do “Correr eguada” até aí. Salvo, talvez, no que diz respeito a uma maior divulgação de dois ou três pequenos trechos desse relato. Na verdade eram apenas algumas frases, recorrentemente citadas. Penso aqui, particularmente, no conhecido bordão: “Não há nada como tomar mate e correr eguada!” Mas há uma exceção a esse relativo silêncio no que diz respeito ao “Correr eguada”. Refiro -me às análises um pouco mais detidas que Flávio Loureiro Chaves e Ligia Chiappini fizeram dele, isso já nos anos de 1980. Por concisas que sejam, constituem ainda o melhor ponto de partida para refletir especificamente sobre tal conto. Antes, porém, de dialogar com as duas leituras críticas, gostaria de relembrar o que de mais importante acontece no conto e, na sequência, pontuar algumas questões que me chamaram a atenção na releitura que fiz dele. Façamos então, primeiramente, uma rápida retrospectiva da narrativa. (1) 3. Blau nos fala de um tempo em que o campo era todo aberto, sem alambrados, de forma que ninguém sabia bem a quantidade de bois e vacas que possuía. A eguada chucra andava em suas correrias pelo campo, assustando e dispersando ainda mais o gado. Daí a necessidade de – de tempos em tempos – se “correr eguada”, de se fazer “uma limpa naquele bicharedo alçado”, ou seja, ver-se livre deles. Blau passa então a relembrar uma dessas corridas, acontecida em terras do major Jordão, que havia convidado toda a vizinhança para tal atividade. Aparecem então no dia marcado cerca de oitenta e tantos guascas, todos domadores e boleadores de fama. Depois dos preparativos, o estancieiro separou vários grupos de três homens, que se espalharam pelo campo. Com cães, gritos e tiros, faziam muito barulho. A cavalhada chucra disparava na correria e, dessa forma, os campeiros iam conduzindo as manadas para um lugar previamente estabelecido, onde elas se misturavam. Era
nessa hora que, segundo Blau, a diversão começava. Até aqui o resumo. Vamos agora direto para o conto, em seus parágrafos finais, que caberia transcrever na íntegra, já que esse é o seu momento mais impressionante, e que Lúcia-Miguel Pereira não hesitou em compará -lo com a famosa passagem de Os sertões, de Euclides da Cunha, que ficou conhecida como “O estouro da boiada”. Diz Blau: E daí a pouco já se levantavam os primeiros rumores ... A bagualada estranhava aqueles movimentos; os colhudos começavam a relinchar, ajuntando, pastorejando as manadas; os entropilhados, farejando, entreparavam -se, arpistas; outras pandilhas, de cola alçada, iam num trotão dançado, bufando ... e já cerravam numa correria em redondo e depois riscavam, campo fora ... Lá adiante, o mesmo barulho; noutro ponto, igual; dum rincão, numa trepada de coxilha, numa descida de canhada, rufando duma restinga, os lotes de eguariços iam se encontrando, entreverando-se; os campeiros vinham chegando e a gritos, a cachorro, a tiro, ia-se tocando a bagualada de cada querência; de todos os lados cruzava -se a contradança, que se encaminhava sobre uma linha já combinada; e aos poucos ia crescendo o rodeio movediço, que engrossava, redomoinhava, espirrava, tornava a embolar-se ... e de repente fazia cabeça, fazia ponta, e todo disparava, fazendo tremer a terra, roncando no ar, como uma trovoada.
resto que se desguaritava e que se podia apanhar a laço de bolas, esse, degolava-se” (grifo meu). E apresenta uma cifra espantosa, dirigindo-se então para o final do conto: Dessa feita, nos campos do major Jordão matamos pra mais de seis mil baguais. Hoje ... onde é que se faz disso? É verdade que há muita cousa boa, isso é verdade ... mas ainda não há nada, como antigamente, tomar mate e correr eguada ... Xô-mico!... Vancê veja ... eu até choro!... Ah! Tempo!...
4. Feita a retrospectiva do conto, passo a expor algumas indagações surgidas ao longo dessa minha releitura. Assim como algumas dúvidas que busco expor aqui. Não se trata, portanto, de algo conclusivo, mas de uma tentativa de abrir alguma nova “picada” no que diz respeito à interpretação desse conto. Começo expondo uma perplexidade minha em relação àquele bordão que todos os leitores de Simões conhecem muito bem e que já foi aqui citado, mas que cabe repetir mais uma vez, em função da importância que está sendo dada a ele: “Não há nada como tomar mate e correr eguada!” Ora, não há nada mais pacífico e frugal do que tomar mate, hábito herdado dos chamados povos originários das Américas. Tal hábito foi se constituindo desde há muito tempo como Aí a gente entrava a manguear, aos dois um dos mais autênticos e característicos costumes da relados, e então é que começava, de verdade, o gião do pampa. É o que ficamos sabendo pela maioria divertimento! Arrematava-se três, quatro, cinco dos relatos de viajantes que percorreram o “país dos gaúfletes; corria-se sem parar, seis, dez, doze léguas ... chos”, como era conhecida essa região. Hoje encontrae no fim estava-se folheiro...! mos tal hábito espalhado por todas as partes, e já não só no campo, mas acredito que em qualquer cidade gaúBarbaridade! Nem há nada como tomar cha. Pois bem, esse hábito, como disse, tão frugal e pacímate e correr eguada! fico – e doméstico, pode-se acrescentar –, é posto no texto lado a lado com um outro costume, sugerindo uma Amigo! Aquele novelo não se desmanchaequivalência entre eles no que diz respeito às lides camva mais; ao contrário, o que ia topando pela frente peiras. Um outro costume que para nós, habitantes da ou aos lados, de eguada, também corria e atirava cidade e tidos por civilizados, só pode ser visto como um se, incorporando-se; na culatra ia ficando uma esticostume bárbaro. Façamos algumas contas, com números va de potrilhos, de flacos, de aplastados, dos que fornecidos pelo próprio Blau Nunes no decorrer da narratirodavam, dos que se quebravam e até dos que va. São números supostamente objetivos, isso porque, comorriam pisoteados por aquela massa cerrada de mo em todos os “contos gauchescos”, o narrador mancascos. tém um pé firme no que se chama de relato realista. Não estamos, portanto, no ambiente das Lendas do sul, E em cancha direita ou fazendo voltas larnem das mentiras deslavadas que encontramos nos Casos gas, não se respeitava sanga, banhado, tacuru, do Romualdo. No início do “Correr eguada” somos inforpanela de caranguejo, nem buraco de tuco -tuco; mados de que havia dessa feita cerca de dez mil baguais ia-se acamando as macegas, pisoteando cardais, correndo soltos pelos campos do major Jordão. No final, esmigalhando as manchas de trevo, e ia -se sempre concluídas as tarefas campeiras, Blau afirma, com todas as letras, que mataram daquela vez para mais de seis mil a meia-rédea ... (...) baguais. Sobraram vivos, portanto, cerca de quatro mil animais. Seis mil foram mortos. Fixemos bem esse número : Quando era para limpeza, então tocava -se seis mil! Não se trata de sessenta, nem mesmo de seiscena eguada sobre um apertado qualquer, sobre uma tos, o que já não seria pouco, mas de seis mil cavalares sanga bem funda, grota, manantial, sumidouro, e mortos por aqueles oitenta e tantos campeiros que partiatirava-se aí pra dentro, para destroçar, para acaciparam dessa “corrida de éguas”. Também ficamos sabar, atirava-se aí para dentro toda a bagualada, bendo em outro momento que cada um dos guascas retique, do lance em que vinha, toda se afundava, nha para si próprio “oito cavalos ou mais”, que formariam amontoava, esmagava e morria, sem poder recuar, a “tropilhita” de cada um, que é como Blau Nunes a deperdida pela sua própria brabeza, empurrada pelas nomina. Se fizermos mais uma conta, o somatório dessas pechadas dos que vinham, sarapantados, tocados pequenas tropilhas chegaria por alto a cerca de mil cadetrás!... valos. Os outros três mil animais que não foram mortos seriam aqueles submetidos, como diz Blau, a “um talho de Na sequência Blau irá nos relatar algo realmente faca, por detrás, na raiz da orelha”. Com essa orelha caíchocante, se pensarmos na perspectiva do seu jovem da pra frente, sem poder enxergar direito, o animal se acompanhante, sujeito da cidade. Blau diz assim: “E o
amansava, e servia para compor uma tropa maior. Que tropa era essa? Quer me parecer que não seria a mesma já referida, ou seja, aquelas formadas por cada um dos campeiros. Blau denomina essas, como já visto, pelo diminutivo – tropilhita –, certamente por ser pequena: digamos uns dez animais cada uma. Aquela tropa maior caberia, portanto, ao que tudo indica, ao proprietário, no caso, o major Jordão. A conclusão é que, assim por alto, os números apresentados no conto mostram -se coerentes. E o que fica de mais importante é aquela extraordinária matança de cerca de seis mil cavalos, nada mais nada menos. Ao final do conto, depois de narrar em detalhes essa verdadeira chacina de animais, Blau Nunes repete para o seu jovem interlocutor o refrão: “ ... mas ainda não há nada como, antigamente, tomar mate e correr eguada!” Forçando um pouco, não seria muito diferente se dissesse: “Não há nada como tomar mate e matar eguada!”. Mais espantoso ainda é que, nesse exato momento, chegam-lhe lágrimas aos olhos: “Xô-mico! Eu até choro”, ele diz. Fica-se imaginando a expressão de rosto que faria nesse momento o jovem interlocutor citadino, que Blau Nunes chama de “patrãozinho”, quando fica sabendo do número de animais mortos naquela “brincadeira”, na grande diversão que aquilo tudo foi para o narrador e seus companheiros. E Blau não deixa nenhuma dúvida a respeito: tratava-se de uma grande farra, se cabe a palavra. E eu acho que cabe, perfeitamente. Caberia perguntar agora: por que Blau Nunes chora no final do conto? Ou melhor: por quem chora Blau Nunes? Não fica difícil responder, pelo menos num primeiro momento, que chora por si mesmo. Recorda -se da sua juventude, recorda-se de um Blau na força do homem, aí pelos trinta ou trinta e cinco anos, como reza a tradição. Isso pode ser deduzido porque o seu nascimento se dá por volta de 1820, ou pouco antes, como sabemos pelas informações que nos são trazidas por ele mesmo em outros momentos dos Contos gauchescos, e pelo próprio conto em análise tomamos conhecimento de que as ações ocorrem aí por 1852, na época da “guerra de Oribe”.
tese defendida em 1980 que estabelecerá mais sistematicamente uma cronologia da vida de Blau. Vida que se confunde, em grande medida, com a formação do Rio Grande ao longo de quase todo o século XIX. Baseando se em várias indicações temporais dispersas no decorrer do livro pelo narrador, o crítico irá configurar, pela primeira vez, uma ordem temporal entre os “contos gauchescos” que estava até então apenas subentendida. Considero essa operação como decisiva na crítica simoniana, com repercussões até hoje, em especial, claro, nas análises de tipo histórico-sociológica. Acrescente-se, ainda, que tal operação crítica contribui, aponta mesmo, para a necessidade de uma investigação que pense de forma vertical o modo como se deu o estabelecimento do capitalismo no campo, no Rio Grande do Sul, tendo como eixo a obra de Simões Lopes Neto. Digo isso porque, a meu ver, essa implantação se deu, como em certas partes da América, de maneira extraordinariamente acelerada. É como se em pouco mais de cem anos ocorresse por aqui o que na Europa levou dois ou três séculos para acontecer. Se isso for verdade, esse processo teria coincidido, basicamente, com o tempo de vida de Blau Nunes. Tal fato, por si só, já indicaria o valor de Contos gauchescos não apenas para a literatura do extremo sul do país mas, também, para a sua cultura de maneira bem mais abrangente. Dito isso, vejamos resumidamente como Flávio Loureiro Chaves analisa a narrativa de “Correr eguada”. A primeira observação a ser feita é a de que, seguindo a perspectiva de conjunto, por ele reivindicada, o crítico assim inicia sua análise: “Trata-se [aqui] de “Correr eguada” que, na disposição dada aos Contos gauchescos, sucede imediatamente à narrativa de “O boi velho” ”. A meu ver, essa aproximação indicada é preciosa, já que em ambos os contos – e só aí – estará presente de forma explícita a violência contra os animais, ainda que de perspectivas bastante diversas, a princípio. Lembro que também em ambos os contos será utilizado pelo narrador uma espécie de bordão. No relato “O boi velho”, onde Cabiúna, um velho boi que havia servido à família de uma estância por vários anos, é sacrificado para que não se desperdice o seu couro, lê -se na abertura da narrativa: “Cuê-pucha!... é bicho mau, o homem!” Ao final, depois de relatados os acontecimentos que levaram ao sacrifício do boi, de forma mesquinha, na perspectiva de Blau, lemos: “Cuê-pucha!... é mesmo bicho mau, o homem!” (grifo meu). Imediatamente após essa frase, que encerra, como dito, “O boi velho”, Blau começa a narrar “Correr eguada”, em que novamente animais serão sacrificados. Aí um outro bordão (com variações mínimas) irá aparecer três vezes: “Não há nada como tomar mate e correr eguada”. A pergunta que se impõe, a meu ver, é: como podemos ler esse par de contos assim encadeados. E adianto que estamos tocando, digamos, no ”nervo” da minha inquirição. Devemos lê-los como antagônicos, como quer Flávio Loureiro Chaves (e também Lígia Chiappini, como se verá), ambos os relatos tratando de distintas violências? Ou como complementares, tratando -se de idêntica violência, um conto, portanto, anunciando o outro? A resposta não é fácil, porque exige considerações de ordem teórica mais sutis, mas que, talvez justamente por isso, permita-nos avançar um pouco mais no entendimento dessa narrativa e, com alguma sorte, na obra simoniana como um todo.
5. Expostas essas primeiras questões surgidas na releitura do “Correr eguada”, passemos então a um diálogo com as duas análises do conto antes referidas, ou seja, as de Flávio Loureiro Chaves e Ligia Chiappini. Claro que vou ser obrigado a retirá-las do seu ambiente argumentativo original, o que obviamente poderá desfigurá -las em parte. Como sabemos, o interesse maior de ambos os críticos dizia respeito a uma interpretação, de cunho marcadamente histórico-sociológico, da obra simoniana como um todo. Feita tal ressalva, procuremos, com essas e outras medidas, ensaiar uma abordagem que privilegie o “Correr eguada” em si, sem esquecer de todo, naturalmente, suas vinculações com o resto do livro. Com alguma sorte poderemos abrir uma nova perspectiva para futuras leituras desse conto e, quem sabe, avançarmos no conhecimento, senão da literatura simoniana em geral, pelo menos no que diz respeito ao “Correr eguada”. Passemos então a repensar alguns aspectos desse relato tão significativo da obra de Simões Lopes Neto. Creio que foi Flávio Loureiro Chaves o primeiro a chamar a atenção para os Contos gauchescos como uma obra que poderia, ou até mesmo deveria, ser vista no seu conjunto, já que todos os contos são narrados por um único personagem, no caso, o campeiro Blau Nunes. Pelo menos foi o primeiro crítico que, digamos assim, “tomou a peito” essa tarefa. É verdade que já Raymundo Faoro havia apontado para tal pers- PARA MAIS DO TEXTO, VIDE PÁGINA 166. pectiva num texto pioneiro de 1949. Certamente não por acaso será considerado por Flávio Loureiro Chaves “um ensaio básico para a crítica simoniana”, e justamente no momento em que Chaves se propunha a analisar o conto “Correr eguada”. Seja como for, será na sua conhecida Cláudio
Cruz
CHASQUE DO IMPERADOR
Segundo Gastão d‟Orleans, o Conde D‟Eu, em seus apontamentos sobre o Rio Grande do Sul, o Imperador D. Pedro II esteve na região da fronteira, e hospedou-se na cidade de Pelotas, por duas vezes. A primeira, em 1846, quando visitava diversas cidades gaúchas após o fim da revolta dos farrapos; e a segunda, em 1865, devido à invasão da então Vila de Uruguaiana, quando eclodia a Guerra do Paraguai.
Pelotas, e de adolescente, quando visitava a Estância São Sebastião, em Uruguaiana, ambas de propriedade do avô João Simões Lopes, o Visconde da Graça, e administradas pelo pai, Catão Bonifácio Simões Lopes. O professor comentou que sua hipótese seria a de que Pelotas teve uma influência fundamental sobre a obra de Simões Lopes por dois principais fatores: primeiro, por seu contexto sociocultural à época2, o qual oferecia as condições propícias para o estímulo de sua vocação de escritor, ou seja, possibilitaram a formação de um sujeito leitor, culto, com uma habilidade especial para ver e representar a realidade e a história do povo simples da campanha. O segundo, pelo contexto histórico e econômico da cidade, que lhe levaram a optar pela temática regional.
Este conflito – provavelmente o maior conflito armado da América do Sul, envolvendo, de um lado, o Brasil, a Argentina Mas vamos ao conto. e o Uruguai, e do outro, o Paraguai – foi tematizado pelo maior escritor pelotense de todos os tempos, João Simões Observando a estratégia narrativa de Simões, podemos Lopes Neto, em seu conto Chasque do Imperador, publicado perceber que, após ler o primeiro parágrafo, sinalizado com pela primeira vez na edição de 28 de abril de 1912, do Jornal um travessão como fala do narrador, já temos um resumo do Diário Popular. enredo. Blau não faz nenhum suspense. Pelo contrário, nos adianta as informações principais – que devido ao cerco de Segundo o também escritor Aldyr Garcia Schlee, que orUruguaiana, o Imperador vem ao sul e é o próprio Blau que ganizou um vocabulário com os termos do dialeto pampeaocupa a função de seu chasque. A partir deste trecho, já no utilizados por Simões Lopes em suas obras, chasque quer reconhecemos a voz do narrador e percebemos que ele dizer “mensageiro, emissário [...], que atuou no pampa até o será um dos personagens; ficamos sabendo também que final do séc. XIX – na época, sob a forma predominante de fazem parte da história D. Pedro II e sua comitiva. Pela refecorreio a cavalo” (SCHLEE, 2009, p. 44). No referido conto, o rência explícita ao cerco de Uruguaiana, que ocorreu em tal “chasque” é Blau Nunes, o vaqueano, narrador de Contos 1865, e pelo conjunto da obra, sabemos que esta história tem Gauchescos (1912). como palco a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Este conto foi tema da fala do professor Mario Osório Magalhães (1949- 2012), no 5º encontro do Ciclo de palestras em comemoração aos 100 anos dos Contos Gauchescos, realizado em 17 de maio de 2012, no Instituto João Simões Lopes Neto. Além de ter publicado diversos títulos sobre as histórias e as tradições da cidade de Pelotas, Magalhães foi também organizador de uma coletânea da obra de Simões Lopes, Negrinho do Pastoreio e outras histórias, e autor do ensaio Simões Lopes Neto e Pelotas: a influência da cidade sobre a obra regionalista do seu maior escritor.
Com o início da narrativa propriamente dita, outros personagens, como Caxias – à época, ainda Marques de Caxias – vão sendo apresentados, alguns ainda na parte em que Blau Nunes descreve as circunstâncias através das quais foi escolhido como chasque do Imperador; outros, a partir dos cinco episódios que diz ter presenciado no cumprimento de sua função, estes, introduzidos pela frase “E a bem boas assisti” (p. 347). Esta expressão funciona como uma “deixa” para iniciar a descrição de pequeninas narrativas dentro da narrativa; circunstâncias que beiram à comicidade; diversas, mas com uma característica comum: em todas elas há um elemento que ressalta o distanciamento cultural entre o Imperador e o povo em meio ao qual este se encontrava. O próprio Imperador, em uma ocasião, declara: “Como é agradável esta rudeza tão franca!” (p. 349).
A relação de Magalhães com este conto, especificamente, sempre foi muito interessante, visto que o mesmo acreditava – e tinha argumentos plausíveis para isto – que em o Chasque do Imperador, Simões Lopes fizesse referência a Pelotas. O principal argumento do professor fundamenta-se em uma anedota narrada por Blau sobre um homem que, tendo recebido o Imperador em sua casa, acreditou que devesse tratá-lo “a bicos de rouxinóis e doces e pastéiziSe por um lado a generosidade é retratada como caracnhos” (p. 350), razão pela qual lhe ofereceu apenas doces terística comum a todos – vê-se no imperador, que fica de em todas as refeições. bolsos vazios por dar como esmola tudo o que trazia consigo; na velha senhora, que lhe traz um fiambre como presente e Quem minimamente conhece Pelotas, conhece também não se importa em entregar todos os seus como sacrifício a tradição de seus doces artesanais e industrializados, sua pela vitória do Imperador; ou nos próprios homens, que ofefama de Capital Nacional do Doce, portanto, não teria difireciam com prazer sua hospitalidade, colocavam-se a serviculdade em inferir que pudesse ser esta cidade o palco da ço e estavam dispostos a entregar o que fosse preciso pela trama do último episódio descrito por Blau neste conto. No causa que abraçavam. Por outro lado, as narrativas revelam entanto, como destacou o professor em sua fala, o escritor a oposição entre a rudeza franca do povo gaúcho e a civilinunca mencionou objetivamente Pelotas nos seus contos e dade do homem da corte, em especial, do Imperador. as referências1 a sua cidade natal (se de fato existem) aparecem de forma indireta e circunstancial. A descrição de D. Pedro é construída de modo interessante. Blau, ao conhecê-lo confessa: “Eu pensava que o ImperaMagalhães lembrou também que é bem mais provável dor era um homem diferente dos outros... assim todo de ouro, que o espaço e os tipos que vieram a inspirar a criação de todo de brilhantes, com olhos de pedras finas...” (p. 348). Do seus ambientes e personagens fossem advindos de suas memesmo modo, no último dos pequenos causos narrados, um mórias de menino, na Charqueada da Graça, zona rural de
“fulano, sujeito pesado, porém mui gauchão” (p. 349) vai exclamar: “– Quê! Pois vossa majestade come carne?! Disseram-me que as pessoas reais só se tratavam a bicos de rouxinóis e doces e pasteizinhos!...” (p. 350). Ainda outro personagem, um barão, ao fazer referência à diferença dos homens da campanha para os da corte, afirma: “– Que vossa majestade está pensando?... Tudo isto é indiada coronilha, criada a apojo, churrasco e mate amargo... Não é como essa cuscada lá da Corte, que só bebe água e lambe a... barriga!...” (p. 348). Essas imagens construídas pelo escritor ao referir-se ao Imperador, possivelmente, busquem dar conta do que este compreendia ser o imaginário que o povo gaúcho compartilhava sobre a figura de D. Pedro e de como havia sido a vida na corte. Mesmo afastado algumas décadas desta realidade, Simões Lopes viveu por sete ou oito anos – de 1877/8 a 1884 – em um Rio de Janeiro que se modernizava rapidamente, com uma efervescência cultural que não se comparava a de seu universo de origem. Provavelmente, deva ter presenciado ainda vestígios do que outrora fora a sede da corte brasileira em seu período de mais elevado glamour. Do mesmo modo, o tempo de produção desta narrativa distancia-se aproximadamente quarenta anos do tempo no qual ocorrem os fatos narrados, qual seja, 1865, mas, certamente, muitas histórias ainda circulavam nas rodas de conversa, na tradição oral de seu povo. Assim, se por um lado Simões destaca este conflito, por outro ele estabelece uma condição propícia à desconstrução deste pré-conceito. É como se nos alertasse: se os achamos muito “maricas”, eles também nos acham muito rudes e, desta forma, coloca, nas palavras de Blau, a conclusão: “era um homem de carne e osso, igual aos outros... mas como queira... uma cara tão séria... e um jeito ao mesmo tempo tão sereno e tão mandador, que deixava um qualquer de rédea no chão!... Isso é que era!...” (p. 348). Deste modo, destacando sua capacidade de liderança, sua firmeza e sua seriedade, temos legitimada a imagem de um Imperador cordial e sensível. E, mais do que isso, temos legitimada a imagem de um Imperador amado e respeitado pelo povo gaúcho. Ao se propor a dialogar com a História, como faz, o autor não podia desconsiderar a importância de D. Pedro II para aquele momento. Sabe-se que a chegada do Imperador na região foi crucial. Após a tomada da então Vila de Uruguaiana pelos paraguaios, a presença do Imperador foi um elemento impulsionador das tropas, que se reorganizaram e reagiram, revertendo à situação.
pra sua mão própria... e tive que lanhar uns quantos baianos abelhudos que entenderam de me tomar o papel...” (p. 347). E também, quando a velha que visita o acampamento, ao dirigir-se a Caxias, comenta: “O meu defunto, em vida dele, sempre falava em vancê... Pois os caramurus iam fuzilar o coitado, quando vancê apareceu... Lembra-se?... E vai, quando o seu general Canabarro fez a paz entre os farrapos e os legais, o meu defunto jurou que onde estivesse o seu Caxias, ele havia de ir...” (p. 349). Assim, após perderem uma guerra e não verem respeitadas as cláusulas do tratado que estabeleceu a paz, os gaúchos mantiveram-se fiéis e servis ao Imperador. Segundo o Tratado, os farrapos poderiam escolher seu presidente provincial, teriam ressarcidas integralmente as dívidas de guerra contraídas pela província e todos os escravos que lutaram pelo exército farroupilha seriam libertados. Historicamente, sabe-se que tudo foi muito diferente, porém vinte anos depois, a paz parecia estar estabelecida e, no mundo ficcional de Simões Lopes Neto, o grande Blau, o vaqueano, configuração simoniana da bravura gaúcha, está prostrado aos pés deste Imperador, com uma lealdade que lhe faria “capaz de bolear a perna e descascar o facão até pra Cristo” (p. 345). Simbolicamente, temos a personificação da rusticidade, da coragem, da virilidade do homem do campo apequenando-se diante de D. Pedro. Lopes Neto parece ter recorrido às anedotas para apontar todo um universo significativo que se encontra por traz da simples narrativa de um vaqueano que é escolhido como chasque do Imperador. Entre as pequenas narrativas, é possível reconhecer uma linearidade marcada pelo deslocamento de D. Pedro e suas tropas em direção a Uruguaiana, caminho no qual viria a se deparar com personagens que também representarão aspectos significativos do povo gaúcho. Quando fala do sujeito, muito ingênuo e sincero, que ao questionar se o Imperador estava gostando do local e tendo uma resposta positiva o convida para mudar com a família, temos a primeira face revelada: a simplicidade e a inocência deste homem campeiro. Ao falar do outro, que prepara o fumo de modo grosseiro e o oferece ao imperador, temos reforçada a imagem de um sujeito sem “frescuras”, sem trato, que não é familiarizado aos costumes finos e educados da corte.
Na conversa com o barão, temos exposta a valorização dos costumes locais, do que é próprio do sul, quando o mesmo destaca a determinação e a força de seu regimento e afirma que os mesmos foram criados “a apojo, churrasco e mate amargo...” (p. 348) e mais adiante, critica a generosidade do Imperador – “olhe que quem dá o que tem, a pedir vem” (p. 348) –, mas o faz estendendo ao outro a própria Mas vale, neste ínterim, observar a relação estabelecida guaiaca e oferecendo o que é seu. entre a Província de São Pedro e o Império, visto que há duas décadas, alguns destes mesmos homens haviam lutado conNo episódio da velha que visita o acampamento, temos tra os soldados imperiais, os caramurus, em defesa da Repú- representada a mulher gaúcha deste período, que já acostublica Rio-Grandense, e perderam, de modo que, em 1845, a mada a viver entre guerras, resigna-se a ver partir – e muitas então República reintegrou-se ao Império a partir de um das vezes não mais voltar – ao pai, ao marido, aos filhos e netos. Simões Lopes constrói uma personagem firme e crua, acordo, o Tratado de Ponche Verde. capaz de gentilezas, mas ao mesmo tempo, desapegada de Em dois momentos do conto temos referências que indi- sentimentalidades. cam a posição ideológica assumida na narrativa com relação ao primeiro conflito: quando Blau fala a Caxias que já o Por último, nos deparamos com um sujeito de peso na soconhecia desde 1845, “no Ponche Verde; fui eu que uma ciedade local, provavelmente, um homem de posses, mas madrugada levei a vossa excelência um ofício reservado, tão distante da realidade cultural metropolitana, que tentan-
do agradar ao Imperador, enquanto o hospeda, oferece-lhe apenas doces como alimento. Com a construção deste personagem, Simões Lopes parece ridicularizar um tipo social, que embora consiga fazer-se poderoso por sua condição econômica, não é capaz de integrar-se a uma elite refinada e culta.
largura a província do Rio Grande do Sul; depois de se ter estado em suas pretensas cidades e vilas, Pelotas aparece aos olhos encantados do viajante como uma bela e próspera cidade” (D‟EU, 1920, p. 212). Destaca o Teatro Sete de Abril, a hospitalidade, as instituições de caridade e as charqueadas que visitou na companhia de seu anfitrião, o Barão de Piratini, menciona também a beleza dos arredores e afirRetomando as questões históricas com as quais este conto ma que em sua opinião, Pelotas deveria ser a capital da Prodialoga, vale, mais uma vez, consultar os registros presentes víncia. no diário de viagem do Conde D‟Eu, mesmo estes tendo sido publicados em 1920, ou seja, após a publicação dos Contos O Conde chega a falar da indústria pelotense, que estava em pleno desenvolvimento, destacando que existiam duas: Gauchescos (1912). “a dos couros lavrados, cinzelados, coloridos, bordados de Nos apontamentos do Conde, que fez diversas referências mil maneiras, e a das peças de prata, não menos artisticaàs condições gastronômicas da viagem, destacando o tipo mente trabalhadas” (D‟EU, 1920, p. 212). Todavia, nenhuma de alimento, assim como a qualidade e a maneira como era menção a qualquer tipo de doce. Isto se dá, pois em 1865, os servido em praticamente todos os locais por onde passaram doces ainda não eram um elemento significativo da cultura e/ou foram hospedados, não consta nenhuma alusão a do- local, eram tão somente um recurso refinado recorrente em ces servidos em Pelotas. As escassas referências a doces re- momentos festivos da elite. gistradas em seu diário de viagem referem-se a outras cidaProduzia-se artesanalmente e comia-se doces em Pelotas, des. porque existia na cidade um grupo que valorizava os costuA viagem, que iniciou em Rio Grande – a entrada do Im- mes europeus, porque a mesma é herdeira da cultura portuperador, assim como da maior parte do grupo que o acom- guesa e sofria forte influência, na época, das culturas francepanhava se deu pelo porto de Rio Grande –, teve sequência sa e espanhola. Os ricos pelotenses trocavam açúcar por por Pelotas, Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeira, Caçapava, charque com outros estados, do mesmo modo que os ricos São Gabriel, Alegrete, Uruguaiana, Itaqui, São Borja, Livra- das demais localidades da província o trocavam por suas matérias primas. mento, Bagé e Jaguarão. Ao hospedaram-se na “estância de um major da Guarda Nacional chamado Meneses” (D‟EU, 1920, p. 62), situada em algum ponto entre Cachoeira e Caçapava, O Conde D‟Eu comenta que este lhe ofereceu “primeiro chá ou café” e “[d]epois de mil desculpas de não saber, por ser um camponês, receber condignamente „pessoas imperiais‟, acabou por nos dar um excelente jantar. Houve sobretudo um prato de fios de ovos que os espanhóis chamam „huevos hilados’ com canela! „una cosa riquísima’, segundo outra expressão espanhola” (D‟EU, 1920, p. 62).
Os doces só passam a ocupar um espaço de destaque com o declínio do ciclo do charque, quando a economia entra em crise e as senhoras e moças das famílias abastadas precisam envolver-se nas questões econômicas.
Com a chegada da energia elétrica e o fim das guerras, o charque perde sua importância no mercado e a cidade precisa se reinventar para sobreviver, iniciando-se aí o ciclo da indústria, em especial, dos doces que se especificaram em os mais finos (artesanais) e os da colônia, produzidos a partir de frutas e das receitas advindas de outras matrizes culturais, Provavelmente, já no território de São Gabriel, o Conde como a dos negros, por exemplo. registra que, após passar por momentos de restrição alimentar devido ao mau tempo, chegaram a um local onde coÉ muito provável que a família Ribas tenha oferecido domeram churrasco e sobremesa, descrita por ele como “de ces na recepção de D. Pedro II, momento no qual o Conde inesperado esplendor” e continua: “em primeiro lugar um D‟Eu não estava presente, pois se juntou mais tarde a comiticorreio chegado de Caçapava traz ao Dr. Meirelles uma va, mas de todo modo, estes não mereceram um maior descaixa de merengues; diz-se, gracejando, que é presente das taque na História. senhoras de Caçapava; depois, pouco a pouco, descobrese uma caixa de goiabada e outra de marmelada; por fim o Além disso, se Simões Lopes tivesse de algum modo tido coronel Pacheco apresenta café, que vem fazer agradável acesso aos escritos do Conde D‟Eu antes de sua publicação, diversão ao perpétuo sorver do mate” (D‟EU, 1920, p. 81). ou se as histórias narradas pelo mesmo fizessem parte do conjunto de histórias compartilhadas nas rodas de conversa, E ainda temos uma última menção a doces, também em seria pouco provável que o sujeito a inspirar o personagem São Gabriel, quando se hospedaram na casa de “dona Eme- que enfara de doces o Imperador fosse o senhor João Franrenciana Borges Fortes, mãe do Dr. Continentino, um dos mé- cisco Vieira Braga, na época, o Barão de Piratini, ou algum dicos do imperador” (D‟EU, 1920, p. 108). Sobre esta, o Con- de seus sobrinhos da família Ribas, os quais os hospedaram de comenta: “É uma senhora de idade; vive ali com uma na ida e na volta de Uruguaiana. filha e o marido, e filhos desta. Deu-nos hospitalidade e um jantar esplêndido, notável sobretudo pela abundância dos Esta família que recebeu o imperador – ricos proprietários doces” (D‟EU, 1920, p. 108). de terra, membros de uma elite em ascensão, tendo, alguns deles, contato inclusive com a cultura europeia – não comeGastão d‟Orleans dedicou a Pelotas – pela qual demons- teria o erro crasso de pensar que pessoas da corte só comitrava um apreço significativo – oito páginas seguidas de seu am doces. diário. Nestas, comenta que a cidade tinha um clima muito agradável, uma geografia privilegiada, uma localização Se houvesse de fato um sujeito no qual Simões se inspirou estratégica e uma arquitetura primorosa. O Conde afirma para criar o tal fulano, teríamos mais indícios de que fosse o que, “[d]epois de se ter percorrido duas vezes em toda a sua major da Guarda Nacional Meneses, que oferece aos convi-
dados um “prato de fios de ovos” e pede “desculpas de não REFERÊNCIAS saber, por ser um camponês, receber condignamente „pessoas imperiais‟” (D‟EU, 1920, p. 62). DACANAL, José Hildebrando (Org). A Revolução Farroupilha: História & Interpretação. Porto Alegre: Editora Mercado AberDeste modo, conclui-se que o caso dos doces não se trata to, 1985. (Série Documenta, 20). da representação de um fato histórico e nem que seja de fato uma referência a cidade de Pelotas – embora possa de DINIZ, Carlos F. Sica. João Simões Lopes Neto: uma biografia. fato ser... – mas que simboliza, sim, mas uma das característi- Porto Alegre: AGE, 2003. cas construídas por Simões Lopes Neto neste conto como desconstrução da imagem do gaúcho construída por ele nos LOPES NETO, João Simões. Obra Completa. Organização de demais contos da obra. Em oposição ao homem destemido, Paulo Bentancur. Porto Alegre: Editora Sulina; JÁ Editores, corajoso, viril e senhor de seu destino temos estes homens de 2003. Chasque do Imperador: desde o próprio Blau, absolutamente servil ao Imperador, encilhando-lhe o cavalo, dormindo atraORLÉANS, Gastão de (Conde d'Eu). Viagem Militar ao Rio vessado na porta de seu quarto, carregando seus papéis e Grande do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, armas; até os demais personagens, a seu modo, todos pros1981. trados à disposição de seu grande líder. PESAVENTO, Sandra Jahaty. História do Rio Grande do Sul. 8. Simões Lopes destaca uma característica essencialmente ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997. (Série revisão, 1) humana destes sujeitos, que os revela dignos no dever de servir. Em tempos de guerra, a hierarquia é respeitada e este respeito à autoridade não é questão de submissão e vergo- SCHLEE, Aldyr Garcia. Vocabulário de João Simões Lopes nha, mas sim de orgulho. Para estes, ocupar um posto militar Neto. Bauru, SP: Canal6, 2009. é uma condição de prova, uma oportunidade de demonstrar as qualidades do homem pampeano: a lealdade, a honra, a valentia. É um oportunidade, também, de provar ao outro (o que vem de fora) o valor do soldado gaúcho e de destacar-se entre os seus pelo posto que ocupa, pela confiança da qual se mostrou merecedor. Neste conto, ao deixar de lado a representação imponente do gaúcho, João Simões Lopes Neto possibilita uma oportunidade de reflexão acerca do papeis sociais ao apresentar tanto a face de um Imperador capaz de se emocionar com a rudeza franca de seu povo, como a do gaúcho vaqueano, capaz de ter uma “estremeção por dentro” ao receber uma manifestação de reconhecimento de seu Imperador.
Simone Xavier Moreira
e ainda suprimiu uma palavra.
No jornal:
“ b a r u l h a n d o a s s a i a s e n g o ma d a s ” ; n o l i v r o :
OS CABELOS DA CHINA
“barulhando anáguas ”, eliminando o vocábulo engomadas. Em outro trecho do jornal:
O conto Os Cabelos da China foi publicado no jornal Diário Popular, de Pelota s, em
“arrepanhou as saias ”; no livro: “arrepanhou as anáguas”.
21 de abril de 1912. Meses depois, mais pre-
Na página do Diário Popular constou a
cisamente em setembro, apareceria no liv ro
s e g u i n t e f r a s e :“ E f o i - s e à p a n e l a , mi r o u - a ,
Contos
Cia.,
a p e r t a n d o o s o l h o s p o r c a u s a d a f u ma ç a e
1912). Na transposição para o v olume impres-
d o m o r ma ç o d o b r a z i d o ” . N o l i v r o : “ E f o i - s e à
so, o autor fez ligeiras modificações, na mai-
p a n e l a , mi r o u - a , a p e r t a n d o o s o l h o s p r ’ o v i a
or parte correções tipográficas. Anoto algu-
d a f u ma ç a e d o m o r ma ç o d o b r a z i d o ” .
Gauchescos
(Echenique
&
mas diferenças. Já no início, foi suprimido o pronome
No jornal , há um “gritoume” sem o hífen, corrigido no livro para “gritou -me”, com
pessoal na frase: “ Verdade que fui inocente
hífen.
no caso”, quando no jornal foi registrado
“entrevero”
“Verdade que eu fui...”.
“entreveiro”, o que veio a ser corrigido na
N o l i v r o , f o i c o r r i g i d o p a r a “ Ma n g a n g á ” o v ocábulo que estav a mal grafado no jornal c o m o “ Ma n g a g á ” , n a f r a s e : “ Ma n g a n g á d e ferrão brabo”. A palavra “mangangá”, no g l o s s á r i o d e Au r é l i o B u a r q u e d e H o l l a n d a , d a edição crítica de “Contos Gauchescos e Lendas do Sul”, figura com a designação de grande abelha de corpo grosso e peludo, cuj a p i c a d a p r ov o c a d o r v i o l e n t a . Em duas passagens do conto o autor substi tuiu “saias”, que hav ia utilizado na edição do jornal, por “ anáguas” (Simões Lopes, na ortografia da época, registrou “anagoas”)
E
ainda
no
(q u e
livro,
substi tuiu -se
estav a
no
jornal)
mal por
edição crítica de 1949 e nas que lhe seguiu. E n t r e v e r o é p l a t i n i s m o q u e s i g n i f i c a “ mi s t u r a , c o n f u s ã o d e p e s s o a s , a n i ma i s o u c o i s a s . E nos
c o mb a t e s ,
diz-se
que
há
entreveros
quando os diversos beligerantes, no ardor da l u t a , s e c o n f u n d e m, s e m i s t u r a m, s e m o b e d e c e r a o c o ma n d o , n u m v e r d a d e i r o c o r p o - a corpo” (Glossário de Aurélio). A edição do liv ro de contos corrigiu a grafia editada em jornal como “picando os olhos”, para “piscando os olhos”. E por fim há o registro “a tirar -l he pr’a a cov a”, substituído na primeira edição em liv ro por “atirar lhe para a cova”.
Ultrapassadas as preliminares, necessá-
dora do capitão era sua filha Rosa . Quando
rias para uma abordagem mais completa ,
o oficial, cego de paixão e ciúmes, agarra -se
vamos ao conto.
na enorme trança de Rosa e tenta degolá -la,
Começo pela transcrição de uma passagem de “João Simões Lopes - uma biografia” que publiquei em 2003.
o Juca Picumã enfia a ponta do ferro no coração do agressor, que se agarrara à cabeleira da mulher.
Juca, para desvencilhar a
filha das mãos do capitão, corta a trança,
Neste conto, Simões Lopes Neto cria ,
“ e n t r e a mã o d o mo r t o e a c a b e ç a d a v i v a ” .
pela voz saudosa de Blau Nunes, o Juca Picu-
Tempos depois, Juca Picumã, ferido de mor-
mã, um Chiru já maduraço dos tempos da
te, dá um presente a Blau Nunes.
guerra dos Farrapos.
lete com cabresto, feito dos cabelos de Ro-
Tr a n ç a d o r d e m ã o s d e
anjo, arte em que ninguém lhe superava, Juca vivia e trabalhava por sua filha Rosa, “linda como os a mores !”.
Juca Picumã “era
h o m e m d e p a s s a r u m a n o i t e i n t e i r a c o me n d o carne e mateando”, acocorado em cima dos tições, “curtindo-se na fumaça quente ”. Blau
Nunes,
narrador
e
Um buça-
sa. “ O Ju c a P i c u mã ” de Sílvio Júlio –
– conforme sinopse
“ignorava que sua própria
filha fosse a concubina disputada pelo seu chefe e pelo capitão governista. Ao ver, por é m, q u e a i a d e g o l a r o a p a i x o n a d o t r a í d o ,
protagonista ,
d e r e p e n t e o ma t a , p o r q u e u m g r i t o p r o f u n -
relata como ajudou este Juca Picumã a cum-
d o e m i s t e r i o s o l h e l e mb r o u q u e o s a n g u e d a
prir uma ordem de certo capitão do exército
v ít i ma e r a o s e u s a n g u e .
dos farroupilhas, louco de ciúmes, porque sua companheira tinha fugido com um co-
A f i n a l , a e x p l i c a ç ã o d o t ít u l o :
mandante ruiv o das forças inimigas que an-
O capitão revirou os olhos e deu um
dav am por perto. I nstruídos para se fazerem
suspiro rouco... depois respirou forte, espirrou
de desertores, conseguem entrar no acam-
u ma e s p u ma r a d a d e s a n g u e e a f r o u x o u o s
pamento. Logo desa ta -se um combate entre
j o e l h o s . . . e l o g o c a i u , p e s a d o , c o m u ma m ã o
o grupo de farrapos do capitão enciumado e
apertada, sem largar a faca, com a outra
os legalistas acampados. Na confusão, o rui-
mã o a p e r t a d a , s e m l a r g a r a t r a n ç a .
v o foge da emboscada e a mulher tenta seguir-lhe na fuga. Juca Picumã se dá conta de que a trai-
E a c h i n a , a s s i m p r e s a , r o d o u p o r c i ma d e l e , l a mb u z a n d o - s e n a s a n g u e i r a q u e g o l f a va pelo rasgão do talho, que bufava na res-
piração do morrente...” (Estudos gauchesc os
as teses op ostas, conduziram ao desespero
d e l i t e r a t u r a e f o l c l o r e , 1 9 5 3 , p .1 8 0 ) .
v erbal certos autores que não suportav am
Quem quer que leia o conto Os cabelos da china v ai encontrar o autor na sua plena maturidade criativ a, a demonstra r amplo domínio sobre a arte das histórias curtas. Não é
sua má v ontade em relação à colonização portuguesa e a v alorização excessiv a que atribuía à cultura espanhola e ameríndia na Am é r i c a .
por bajulação que Sílvio Júlio, crí tico causti-
Deu-nos,
contudo,
i nestimáv el
contri-
cante de certos exa geros estilísticos de Si-
buição lingüística, plenamente aplicáv el às
mões Lopes Neto e da excessiva carga que
expressões típicas do nosso homem da cam-
usou dos termos locais, disse que Os cabelos
panha, suas entonações e seu modo de falar
da china é um conto formidáv el. “ Causa ar-
“ me i o b r a s i l e i r o , me i o p l a t i n o , u m t a n t o l u s o ,
repios. Assusta”. Não deixou de sublinhar que
um tanto castelhano”. Valorizou as criações
o escri tor “estica” , na sua narrativ a, e desne-
literárias daqueles escritores que considera
cessariamente, “ situações acessórias” , ab u-
os três maiores da nossa gauchesca: Simões
sando de “conversar fiado” . Elogia a inspira-
L o p e s N e t o , Al c i d e s Ma y a e R o q u e C a l l a g e .
ção telúrica , primitiva, a brutalidade do san-
E d i s s e q u e “ S i m õ e s L o p e s N e t o , q u e mo r r e u
gue e da morte, de “ vocação realista à fran-
a n t e s d e v e r o s e u n o me c o n s a g r a d o d e n o r -
cesa.” Não se omitiu de dizer, destarte, q ue
te a sul de nossa pátria, será porvindoura-
bastariam dois contos de violência zolania na
me n t e i n c l u íd o e m a n t o l o g i a s , a n a l i s a d o c o m
– No manantial e Os cabelos da china –
p a - j u s t i ç a , p o s t o à a l t u r a d o s me l h o r e s c o n t i s t a s
ra garantir a fama d e Simões L opes Neto no
das
Brasil e nas Américas.
n á n d e z C a t á , u m B l a n c o F o mb o n a , u m Ja v i e r
Em
mais
recentes
reflexões,
concluo
po no nosso Rio Grande do Sul. Não é ocasião para defendê -lo das acusações malév olas
de
que
foi
v ítima.
Seu
temperamento
franco e o desassombrado estilo de fusti gar
Jack
London,
um
Her-
Como estav a certo o polêmico intelectual pernambucano!
Não estou aqui para falar do intelectual pernambucano que se arranchou por bom tem-
um
d e V i a n a , u m T o má s C a r r a s q u i l l a . . . ” .
que Sílvio Júlio foi, se não o melhor, certamente um dos melhores leitores deste conto.
A mé r i c a s :
É de notáv el simplicidade a sua teoria da assimilação hispânica e ameríndia, presente no linguajar gauchesco, vos
povoadores
continentinos,
pelos primitilembrando -
nos que, tendo sido o Rio Grande o último terri tório a se incorp orar ao Brasil continen-
tal , não antes do Século XVIII , o linguajar
dá nome ao conto. China é mulher morena,
que falaram os nossos ancestrais gaúchos
indiática. Foi a palavra registrada como pla-
não absorv eu arcaísmos portugueses. Daí re-
t i n i s m o p o r Al d y r G a r c i a S c h l e e , n o G l o s s á r i o
sulta serem falsas as explicações lingüísticas,
da sua edição crítica dos Contos Gauches-
por exemplo, de um Wal ter Spalding, que na
cos e Lendas do Sul , 2006, vol . II . Aurélio Bu-
sua xenofobia ao colonizador espanhol das
arque de Hollanda não foi à raiz platinista,
Am é r i c a s , e n x e r g a v a r a í z e s a r c a i c a s p o r t u -
ao
guesas em típicas expressões platinas e ame-
“aspecto
r í n d i a s , m u i t a s d e s t a s a b s o r v i d a s p e l o i d i om a
n a s ” (G l o s s á r i o , e d i ç ã o c r í t i c a d e 1 9 4 9 ) , n o
de Cervantes e depois adotadas pelos primi-
que ensejou a crítica mordaz de Sílv io Júlio
tiv os habitantes das nossas fronteiras sulinas.
q u e a n o t o : “ O s u b s t a n t i v o c o mu m c h i n a , p o -
A partir das análises filológicas do professor Sílv io Júlio, apoiada em forte e extensa bibliografia, e de outros filól ogos é que irei citar alguns v ocábulos, de notória raiz platinista , ou ameríndia, presentes no conto “Os Cabelos da China ”.
dar-lhe
s e me l h a n t e
de
mulher
com
das
chi-
ao
Uruguai, nada tem a ver com chinesa nem com a China, terra tradicional da Ásia onde nascem os chineses ”. Vai além o pernambucano.
Ensina-nos
que
china
tem
raiz
quéchua, absorvida pelos colonizadores espanhóis que adotou a palav ra amerígena.
Lopes emprega, neste conto, com o senti do de cav aleiro. I nteressante nota r que este v ocábulo tem duas acepções. No português antigo,
A s s i m , t a m b é m , c o m t a t a (p a p a i é o significado), bem usado por Simões Lopes nas frases de Rosa: - O tata! O tata!... – Me largue, tata!... leva
arcaico, ginete era cav alo. No linguajar
raiz.
Voz
amerígena
de
origem
quéchua: tata, tatai, que os espanhóis encontraram no Peru, acabou espalhada pelos
ginete, nã o ao cav alo. Qual a razão? Parece
p a m p a s d a Ar g e n t i n a e v i a j o u a t é o U r u g u a i
claro que se tra ta de hispanismo, não de ar-
e o Rio Grande do Sul.
português
cavaleiro
à
É ainda Sílvio Júlio que nos
chamamos
caísmo
ao
significado
pular no Rio Grande do Sul, na Argentina, no
Comecemos com “ginete”, que Simões
sul-rio-grandense
o
para
o
desespero
dos
a d e p t o s d o “ wa l t e r - s p a l d i n g u i s m o e t i m o l ó g i co”, conforme as palavras de Silvio Júlio.
O conto é riquíssimo em vocábulos e expressões populares no pampa e desconhecidas nas outras regiões do Brasil . Vozes e
T r a t e m o s d o v o c á b u l o c h i n a q u e l o c u ç õ e s r e c e b i d a s d a Am é r i c a E s p a n h o l a ,
registradas como platinismos (espanholismos
nismo “agallas”;
r i o - p l a t e n s e s ) n o G l o s s á r i o d e Al d y r S c h l e e , a
interjeições cuna (forma reduzida de aicu-
que já nos referimos. Já Aurélio Buarque de
n a ) , q u e p r o c e d e , s e g u n d o Au r é l i o , d o a m e -
Hollanda, que também as define no seu Glos-
ricanismo “aijuna”, contração de “ah!
sário, nem sempre registra a raiz hispânica, o
d e u n a ! ” ; e a l a f r e s c a (d e s i g n a e s p a n t o , s u r -
que gerou a crítica feroz de Sílv io Júlio, q ue
presa ), platinismo puro, como se diz e se
viu
creve.
na
omissão
uma
condescendência
do
mestre alagoano para com os lusófilos, a os quais certamente nã o queria desagradar. B u ç a l e t e (p e ç a d e a r r e i o f e i t a d e couro,
espécie
buçal):
Hijo
es-
O c o n t o “ O s C a b e l os d a C h i n a ” u l t r a passa as raias do que se convencionou denominar regionalismo, pois nesta narra tiv a de
platinismo
Simões Lopes, impregnada com o gosto p e-
lonquear (tirar o couro), platinis-
culiar de “palav rar”, está presente a pers-
m o “ l o n j i a r ” ; c h i r u (p e s s o a m o r e n a c o m t r a -
pectiv a metafísica, que transfigura a campa-
“bozalejo”;
de
assim igualmente com as
ç o s i n d í g e n a s ) , p l a t i n i s m o “ c h i r u z o ” ; s o v é u n h a “ n u ma a r e n a a b s t r a t a o n d e o ma l g r a s (l a ç o f o r t e e c u r t o ) , p l a t i n i s m o “ s o b e o ” ; c o -
s a , o n d e s e j o g a o d e s t i n o d e h o me n s e mu -
g o t e (p e s c o ç o ) ; c o r o n i l h a (á r v o r e c a m p e i r a
l h e r e s ” (u t i l i z e i a q u i , e s t a b e l e c e n d o p a r a d i g -
resistente, usando-se o v ocábulo para desig-
ma, uma frase de Walnice Nogueira Galvão,
nar pessoa forte, v alente), v em do espanhol
sobre o sertão, cenário das estórias de Gui-
“coronilla”; de bolapé é outro platinismo que
marães Rosa). A sociedade em que se ambi-
v e m d e “ a v o l a p i é ” (a v a u , a t r a v e s s a r o r i o
enta “Os Cabelos da China” é pastoril e
sem necessidade de nadar sempre); acoqui-
guerreira , porém , não se limita o conto ao
n á - l a , d e a c o q u i n a r (i n c o m o d a r , a m e d r o n -
cunho documental , ou meramente pi toresco,
tar), também de origem hispânica, com igual
em que se sobressai o exotismo, caracterí sti-
g r a f i a ; g a g i n o (g a l o c u j a p l u m a g e m s e a s s e -
ca do regionalismo. Destaca -se o aspecto
melha à da galinha, homem de pouca impor-
univ ersal da narrativa, em que se impõe a
tância ),
mancarrões
verdade social e psicológica dos entrechos e
(m a t u n g o s , c a v a l o s v e l h o s d e m o n t a r i a ) v e m
das personagens, despertando no lei tor entu-
d e “ m a n c a r r ó n ” , p l a t i n i s m o ; m o r r u d a (a l t a ,
siasmos, prazeres, espantos, emoções...
platinismo
“gallino”;
grande, comprida), platinismo de igual grafia; reiunada (tropa de cavalos reiunos, sem dono), v em de “rejuno”, platinismo; de agal h a s (f o r t e , v i s t o s o , a d m i r á v e l , o u s a d o , p l a t i -
Não faltou quem afirmasse a influência dos naturalistas que encheram a litera tura francesa de tragédias e degenerescências
(v . S i l v i o J ú l i o ) .
Simões Lopes foi mestre ao
do Borges a desenhar o trançador Wences-
traçar suas tragédias horripilantes e, na óti ca
lao. Também não faltou quem se dispusesse
de Sílvio Júlio, menos mestre ao traçar figu-
a detectar um misteri oso parentesco entre os
ras meigas. No conto, como é recorrente em
d o i s e s c r i t o r e s d a s p l a n u r a s d a Am é r i c a d o
Simões, a mulher desencadeia o desfecho
S u l . V e r í s s i m o d e Me l l o o u s o u c a p t a r a i d e n t i -
brutal .
dade no clima de algumas histórias, na dra-
À luz do direi to, e enquadrando -se à perfeição na ética irreprimív el do nosso rapsodo bárbaro, o homicídio tem a excludente clara da legítima defesa de terceiro - no caso a defesa da vida da filha, prestes a ser
maticidade
e
em
certas
personagens,
na
apropriação de semelhante material folclóric o . (V e r í s s i m o d e Me l o , S i m õ e s e B o r g e s - t a l v e z ma i s q u e v i z i n h a n ç a . L e t r a s e L i v r o s , C o r r e i o d o P o v o , a n o I , n . º 2 4 , d e 3 0 .0 1 .1 9 8 2 ) .
degolada -, amplamente amparada no direi-
Indo mais a fundo, verifiquei re-
to penal e certamente explica que a estoca-
centemente, a o ler a tradução para o esp a-
da mortal , obra de Picumã, nenhum remorso
nhol dos Contos Gauchescos, edi tada sob os
lhe trouxe. Chegou a cuspir no defunto! O
a u s p í c i o s d a Em b a i x a d a d o B r a s i l e m Mo n t e -
direito e a boa razão amparav am Juca Picu-
vidéu, uma nota de rodapé indicando que
mã.
conhecimento
Os Cabelos da China foi o primeiro entre os
empírico ele sabia, porque sabia, que este
contos de L opes Neto a ser traduzido no Uru-
desfecho brutal não violou o rigoroso código
guai, na Rev ista Asir, em 1953.
Na
sua
simplicidade
e
de ética do gaúcho da campanha. Defender a v ida da filha, mais que um direito era um dever.
Cito um trecho pouco conhecido de autoria de André Bello (H istória & l ivro e l eitura. Belo Horizonte, 2002): “ Qualquer liv ro,
Na narrativ a El desafio , Jorge Luis Bor-
e m q u a l q u e r é p o c a , s e j a e l e i mp r e s s o o u m a -
ges conta um episódio v ivido por um certo
n u s c r i t o , t r a z e m s i , p a r a a l é m d a s ma r c a s d e
Wenceslao Suárez, um homem maduro, tran-
u m t r a b a l h o i n t e l e c t u a l , ma r c a s d e p r á t i c a s
çador e solitário como Juca Picumã,
que
a r t e s a n a i s o u i n d u s t r i a i s , ma r c a s d e u ma r e -
perdeu a mão num duelo de facões e matou
l a ç ã o c o m o p o d e r o u c o m o u t r o s i n d i v íd u o s ,
o seu desafeto com um certeiro golpe no
ma r c a s d e u m p r o d u t o d e s t i n a d o a s e r v e n d i -
v entre. Não há indício algum de que Borges
d o o u t r o c a d o , ma r c a s d o e s t a t u t o s o c i a l d o s
tenha , algum dia, lido o conto de Simões Lo-
s e u s a u t o r e s , ma r c a s d a r e l a ç ã o d o t e x t o
pes, ou que o trançador Juca tiv esse inspira-
c o m o l e i t o r , ma r c a s d e u m u s o d a l ín g u a . . .
Tudo o que está no livro, em qualquer livro, nos reenvia para fora dele”. “Os Cabelos da China”, integrante dos Contos Gauchescos, objeto discursiv o dessa palestra obrigou -me a sair fora do texto para tentar conhecer o contexto em que foi elaborado e melhor compreendê -lo, as condições e os processos intelectuais de seu autor, interferentes na sua sua visão de mundo. Foi o que tentei fazer dentro das minhas limitações.
Carlos Francisco Sica Diniz
rosa do patrãzinho com a filha de um estanciei ro vi zi nho, a formosa Si nhá Talapa, a qual estava prometi da e m casamento a u m primo
MELANCIA – COCO VERDE
português.
reafirmação da i denti dade gaúcha e suas intertextualidades
A fi m de au men tar as quali dades do gaúcho Costinha, o narrador vai apresentar uma série de adjetivos pejorativos ao seu rival, do
Tenho o prazer de apresentar o conto Me-
qual sequer sabemos o nome , u ma vez que ele
lancia – Coco verde no Se mi nári o do Centenário dos Contos Gauchescos. Escolhi esse texto
é tratado apenas por “ilhéu”, designando o seu lugar de orige m, e portanto, configurando
por três moti vos: a proxi mi dade da data c om
-se
como
não-gaúcho
,
ou
seja,
um
o “dia dos namorados”¹, o fato desse conto ter uma parti culari dade i ncomu m na obra si moniana: “o final feliz”, e a presença do per-
“estrangeiro”. Observamos as palavras de Blau Nunes:
sonagem Reduzo, um índio que representa sua etnia e sua inserção dentro da sociedade ga-
Esse tal era um i lhéu, mui comedor de verduras, e que para montar a cavalo
úcha no início do século XI X.
havi a de ser em peti ço 4 e i sso mesmo
O texto inicia com a apresentação do nar-
o peti ço havi a de ser podre de man-
rador acerca do personagem Reduzo, contan-
s o . . . e a t é ma c e t a 5. . . e n a mb i 6. . . e p o -
do que desde criança o índio convivera com o
r o n g u d o 7 ! (. . . ) O i l h é u v i n h a à s v e z e s à
patrãozinho
estância do tio, em carretinha... veja
Costinha.
Ap r e n d e r a m
juntos
a
bri ncar, fazer armadi lhas para pequenos ani -
vancê
mai s, comer frutas nati vas, tomar banho de
nem se avexava de aparecer
sanga, e campeirear, domar e capar. Mais tar-
r e t i n h a d i a n t e d a m o ç a ! (L O P E S N E T O ,
de,
1998, p.76-77).
ambos
foram
a
uma
das
i númer as
como
ele
era
ordinário,
que
de car-
“gangolinas”² com os castelhanos a fim de Como pode mos perce ber, o rapaz é ri di cupreservar nossas fronteiras.
lari zado por desconhecer uma das mai s sagr a-
O octogenário narrador, o tropeiro Blau Nu- das práticas do gaúcho: o manuseio com o nes,
conta
com
entusiasmo
juvenil
uma cavalo. O narrador considera vergonhoso, ul-
“alari fagem”³ e m que esti veram me ti dos os trajante e até mesmo uma falha terrível de cadoi s ami gos, envol ven do u ma conqui sta amo- ráter o “i lhéu” i r vi si tar a namorada uti li zando
uma “carretinha”, ou seja, não montado em
O uso repeti do do pronome “ele” serve pa-
c a v a l o . As c a r r e t i n h a s s ó e r a m p e r m i t i d a s p a - r a r e f o r ç a r o q u ã o d i f e r e n t e s ã o o s g a ú c h o s r a m u l h e r e s , j a m a i s s e r i a m u t i l i z a d a s p o r u m (c o n t i n e n t i n o s ) d o s i l h é u s (p o r t u g u e s e s ) . E s s a gaúcho ainda em idade viril.
diferença
Em seguida, temos a desqualificação dos
é
utilizada
para
qualificar/
desqualificar o “eu” do “outro”, já tão bem explorados pelo crítico Mikhail Bakhtin, quan-
hábi tos ali mentares do “i lhéu” que preferi a
do este afirma que
“sopa de verduras e bacalhau” às nossas comi das: “churrasco escorrendo sangue e gor du-
O que é que eu entendo por “eu”,
ra
brasas”,
ao falar e ao viver: “eu vivo”, “eu
“cabeça de vaquilhona”, “paleta de ovelha”,
morrerei”, “eu sou”, “eu não serei”,
“mogan go”, “canji ca”, “coalhada”, "bei jus”,
“eu não tenho si do”. Eu -para- mi m e
“manapanças”, “trago de cana”, “chi marrão”
eu-para-o-outro, outr o -para- mi m. O
e para arrematar “umas tragadas du m bai o de
home m
naco bem cochado e forte”.
não-eu em mi m, al go que é mai or
e
sal moura”,
“tripa
assada
nas
do
Ou seja, para o narrador, o tal moço não
em
que
eu
frente
em
do
mi m,
espelho.
o
ser
O
em
m i m ” (B AK H T I N , 1 9 7 9 , p . 3 6 9 ) . sabi a mon tar , não sabi a comer , não sabi a beber e não sabi a fumar. Logo, ele não pode ri a
Para o narrador , é fu ndamental di sti ngui r o
ser um bom mari do para a Si nhá Talapa, uma “eu”
ou
o
“nós”
vez que não apreciava nossos costumes e tra- Costinha/Reduzo/Siá
gaúcho/continentinos/ Talapa
do
“ele”
ou
di ções, colocando -se numa escal a superi or, “outro” i lhéu/noi vo/portugueses a fi m de deuma vez que Blau Nunes volta a criticar não só marcar não apenas as fronteiras geográficas, o i lhéu como també m todos seus conterrân eos mas, sobre tudo, as i deológi cas e a questão da portugueses, ao afirmar:
identidade cultural de cada povo.
Galego, naquele tempo, era gente,
O
consagrado
romanci sta
Erico
Ve r i s s i m o
vancê crei a! Estânci a, era dele ; ne- també m se uti li zou desse di alogi smo bakhti ni agócio, era dele; oficial, era só ele ; no para descrever o português noivo da filha era arrematan te das si sas, ele ; sur- de Joca Rodri gues, no capítulo Um ce rto Capigião ele; padre-vigário, ele; e para tão Rodrigo, a seguir botar a mi li cada e m ci ma dos conti nentistas... 1998, p77).
era
ele!
(L O P E S
O noivo da filha de Joca Rodrigues
NETO, não sabi a mon tar a cavalo com o
garbo e o desembaraço dos homens
e guerreiros castelhanos que procu-
do interior e da fronteira. E quando
ravam li bertar sua pátri a do domíni o
entrou no povoado, mei o encurva-
espanhol ; os homens do i nteri or e
do e m ci ma du m peti ço manco e
da frontei ra que amavam a ação, o
cansado, seguido de dois escravos,
entrevero, as cargas de cavalaria, a
um santafezense que estava parado
lida e a liberdade do campo, onde
à frente da venda do Nicolau, gri-
vi vi am longe do coletor de i mpostos
tou, jovial: - Cuidado, baiano! E ou-
e das autoridades – esses falavam
tro,
o
em liberdade, hostilizavam os portu-
forasteiro se agarrava à cabeça do
gueses, queriam a independência.
lombi lho, não se con teve e excla-
(VERI SSI MO, 2000, p.22 1).
mai s adi ante, vendo como
m o u : - L a r g u e o S a n t o An t ô n i o , m o ç o ! (V E R I S S I M O , 2 0 0 0 , p . 2 1 9 - 2 2 0 ) .
A preferência dos narradores pelo gaúcho é dada de forma explícita tanto na voz de
Am b o s n a r r a d o r e s s a l i e n t a m q u e o “ e u ” g a - B l a u N u n e s q u a n t o p e l o p e r s o n a g e m d o p a d r e úcho é di ferente do “ele” português. Embora Lara. E r i c o Ve r i s s i m o s e j a m a i s t o l e r a n t e a o s p o r t u gueses que Si mões Lopes, há ni ti damente uma
No decorrer da narrati va si moni ana tere mos uma série de ações que utilizam a ironia e o
apropriação dessa imagem, via recurso inter-
deboche para contribuir com o desenlace fe-
textual , u ma vez que o romanci sta era lei tor e admi rador de Si mões L opes. Tal marca da “i denti dade gaúcha” é reafi r-
liz dos personagens protagonistas. Costinha e Reduzo partem para a guerra, mas na despe di da o c asal de namorados com-
mada por mei o da análi se fei ta pelo padre
bi na um códi go secreto para se comuni care m
Lara, o qual aponta as diferenças entre os gaúchos e os portugueses, como percebemos
em
caso
de
necessidade.
Ela
seria
“mel anci a”; ele “coco verde”. Vale ressal tar em:
que ambas as frutas si mboli zam al go que está Esses açori anos, tão apegados a su- oculto, que di fi culta o degustar , u ma vez que as oterras, lavouras, l ojas e ofi ci nas a si tuação dos namor ados é també m di ssimurepresentavam a ordem, a estabili- lada e escondida de todos. dade, o respeito às leis, tinham vin-
O p a i d a m o ç a , S e v e r o (o n o m e d o p e r s o -
do das Guerras Platinas, onde estiveram em contato com os caudilhos
nagem já inspira seu caráter) aproveita a au-
sênci a do vi zi nho e manda chamar o i lhéu pa- combi nado entre os namorados: ra reali zar o casamen to entre os pri mos. Toda-
Eu venho lá de longe,
via, o rapaz acaba descobrindo o plano do futuro sogro, mas depara -se com uma si tuação conflitante: quer ir ao encontro da ama-
Da banda do Pau Fincado: Melancia, coco verde
da para salvá-la do dragão, ou, no caso, do pri mo mal vado, mas seu comandan te o c hamava para a batalha, os castelhanos se apro-
Te manda mui to recado! (...)
xi mavam, e ele, Costi nha, recebera a honra de coman dar o ataque aos i ni mi gos. Um home m de honra n ão pode dei xar seus compa-
Na polvadeira da estrada O teu amor ve m da guerra...
nheiros de batalha, mas era imprescindível interromper o casamen to de Si nhá Tal apa. Então e m u ma das cenas mai s exageradas da
Melancia desbotada!... Coco verde está na terra!...
bravura guerrei ra gaúcha, tere mos u m di álogo engraçadíssi mo no qual entre ti ros e desvi os de lanças Costi nha manda seu ami go Reduzo
(S I M Õ E S L O P E S , 1 9 9 8 , p . 8 2 ) . Os versos causaram tal comoção à noi va,
ir resolver a parada, enquanto ele ficava ali brigando com os castelhanos, certo de que os
que esta se jogou ao chão aos gritos, sendo socorri da pelas mulheres da festa, mas o noi vo
venceria e poderia partir ao encontro de sua
culpou o ilhéu pelo mal -estar e “fechou o sal-
prenda. s e i r o , n e m s e s a b i a b e m c o m q u e m ” (S I M Õ E S O índi o Reduzo de mostra gran de capaci da- LOPES, 1998, p.83 ). O casamento acabou sende de di ssi mulação e i mprovi sação. Chega à do adi ado e doi s di as depoi s, o jove m Costi estância de Severo e lhe pede licença para nha chega à estância e pede ao velho Se vero c a m p e a r u n s a n i m a i s , q u e e s t a v a m f u g i d o s d a a m ã o d a m o ç a . Ap e s a r d a r e c u s a i n i c i a l , o s estânci a dos Costa, sabendo que a hospi tali - doi s jovens conseguem vencer a tei mosi a padade gaúcha jamai s negari a água e pouso a terna e unem-se e m matri môni o e mai s tarde vi ajante e cavalo. Logo, o índi o é convi dado levam o ami go Redu zo para trabalhar como a fazer parte da festa e este diz ao pai da noi- capataz em sua estância. va que e m for ma de agradeci mento declama-
A satisfação é explícita na voz de Blau Nu-
rá uns versos em honra aos noivos. E nas duas quadras declamadas por Reduzo há o código
nes ao contar esta “arte de namorados” con-
tribuindo para o excelente fluxo narrativo promovido pelo conto, talvez porque tal texto v a l e - s e d a q u i l o q u e f a l o u Wa l t e r B e n j a m i n : A experiência que passa de boc a em boca é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrati vas escri tas, as melhores sã o as que menos se di sti nguem das hi stóri as orai s contadas pelos i números narradores
anônimos.
Entre
estes
últi mos exi ste m doi s grupos que se i nterpenetram de mú lti plas manei ras. A figura do narrador só se torna plenamente presentes
tangível ambos
se
ti vermos
esses
grupos.
“Quem vi aja tem mui to que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como al guém que ve m de longe . Mas també m escutamos co m prazer o home m que ganhou honestamen te sua vi da sem sai r de seu país e que conhece suas histórias e t r a d i ç õ e s . (B E N J AM I N , 2 0 1 2 , p . 2 1 4 ) . V ê - s e e m M e l a n c i a e C o c o Ve r d e , a s s i m c o mo em todos os contos em que
Blau Nunes é
o narrador eleito para contar as epopeias gaúchas, que ele, sem dúvida, se encaixa no perfi l benjami ni ano de
narrador
“camponês
sedentári o” que vai conhecer profundamen te as tradições culturais de seu povo e tem orgulho e prazer em contá -las e recontá-las.
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO B AK H T I N , M i k h a i l . M a r x i s m o e f i l o s o f i a d a l i n guagem. São Paulo: Hucitec, 1979. B E N J AM I N , Wa l t e r . O b r a s e s c o l h i d a s . S ã o P a u lo: Brasiliense, 2012. LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos . S ã o P a u l o : Át i c a , 1 9 9 8 .
Jaqueline Koschier
ENTREVISTA COM LUÍS BORGES
entre os aspectos ficcionais e não ficcionais da obra sim oniana, pode abrir um a nova chave herm enêutica do conjunto da obra do escritor pelotense.
02. O discurso simoniano ultrapassa o localismo e engloba o testemunho histórico, mas não se resume em simples documentário da vida campeira. Por Ana Luiza Nunes Almeida Quais os componentes que o senhor destaca para que a obra de João Simões Lopes Neto seja definida como “regionalismo universalista”?
01 - Na sua opinião, ao restringir a literatura simoniana somente ao entendimento do próprio texto, não seria uma forma reducionista, enquadrando -a no “regionalismo localista”? Para enquadrá -la no “regionalismo universalista” não seria necessário, também, levar em consideração os aspectos sociais que cercam a diegese?
Esse conceito de “regionalism o local” e “regio nal ism o universal ” foi ex presso po r Jo sé Po zenato (1974). Faé (2011) ao aprofundar a análise desses conceitos aplicados a Sim ões prefere o termo “regionalidade”, tornando m ais precisa essa distinção. Talvez se possa caracterizar a diferença do seguinte m odo: o ont ós do regional tem por objetivo fixar um a identidade por exclusão, enquanto o ontós da regionalidade busca, sem perder um a referência particular, delinear arquétipos universais da condição hum ana, que é o que faz a alta l iteratura d e Jo ão Sim ões Lo pes Neto. A partir disso, eu não acho que seja possível o ent endim ento de um texto ou de qualquer obra de arte com o um objeto isolado. Um texto sem pre estabelece relações, para dentro e para fora de si m esm o, com um a série de elem entos, tais com o o horizonte de expectativa do leitor, o qual necessariam ente carrega para a leitura sua bagagem cultural e sua experiência de vida. Não bastasse isso, quando trat am os da literatura de Sim ões Lopes Neto devemos atentar para o fundo histórico (ou folclórico ) que em oldura a diegese. Ess fundo histórico se entrelaça com ela de tal m aneira que ele praticam ente é o artifício fundam ent al da construção narrativa, conferindo verossim ilhança à estória. Assim , em bora em certo sentido se possa considerar a obra de arte um objeto intem poral, ela não est á flutuando na história, alheia às condições de produção, às lutas políticas e as ideologias em disputa no seio de um a determinada sociedade. Evidentem ente, todos esses elem entos não interferem, nem determ inam a análise de um a obra enquanto produção estética, m as não podem ser ignorados, eis que eles fom ent am e orientam , na m edida em que os críticos se forjam socialm ente, os juízos críticos. Não se pense que t al abordagem relega a face artística a segundo plano, voltando -se à sociologia da literatura. Acredito que a investigação histórico-crítica, no caso em questão, da relação
É verdade que a obra sim oniana engloba o testem unho histórico, aliás, bem preciso do ponto de vista inform ativo. Tam bém é corret a a afirm ação de que não se resum e a isso. Contudo, em que m edida o discurso de Sim ões Lopes Neto ultrapassa o m ero docum entário da vida cam peira ou bélica m e parece exigir ainda algum aprofundam ento, um a vez que esse entendim ento já está est abelecido m ais com o um pressuposto do que com o um nexo explicativo. A própria trajetória da recepção dos Contos gauchescos em sua fase incipient e (1912-1926) nos dá um a ideia dessa front eira aparentem ente bo rrad a. Ta nto na crítica d e Januá rio Coelho da Cost a, quanto na de Antônio de Mariz, por exem plo, vê-se a defesa do carát er literário do livro, m as, contraditoriam ente, sust ent ado pelos seus m éritos de reposit ório da história, do registro linguístico, dos cost um es etc. Ao longo do tem po, os instrum entos críticos se foram refinando e, portanto, essa equivocada interpretação sociologizante dos m éritos literários da obra de Sim ões foi escasseando, sem, todavia, desaparecer, como vem a dem onst rar a apresent ação de Everson Pereira da Silva aos Contos Gauchescos, publicada pela editora L&PM, de Porto Alegre, em 1998. Silva, apesar de intitular sua apresentação de “Do regional ao universal”, afirma que o m érito do escritor pelotense est á, sobretudo, na form a de cont ar e n a r e t r a t a ç ã o f i e l d a l i n g u a g e m d o h o m em d o cam po e da paisagem do pam pa. O grande Augusto Meyer, em seu Prosa dos pagos (1943) t eve dificuldade em classificar a obra sim oniana em termos de categorias literárias, não diferenciando a obra regionalista da regional propriam ente dita. Talvez isso seja um sintom a das cont am inações entre o discurso histórico e o literário. Aliás, da Idade Média ao século XVIII as fronteiras ent re a narrativa histórica e a literária eram m uito tênues, até porque a História com o ciência só se constitui efetivam ente no século XIX, dando aos cientist as sociais e, em especial, aos historiadores, na busca de equivalência com as ciências da nat ureza, m uitas ilusões. Um a delas é que o eu -narrador podia ser diluído no fato histórico, objetivo e im pessoal. Assim se criou a ilusão de que a História se referia à verdade e a literatura à im aginação, com o se as lacunas da história não fossem preenchidas pela im aginação. Noutras palavras: todas as narrativas dependem de um ato criativo, diferindo em grau e finalidade. Sim ões Lopes Neto, m ais um a vez mos-
trando um a notável intuição, faz aproxim ar a narrativa histórica e a literária, pois t anto um a como a outra só fazem sentido num a relação interna de im bricação. Os eventos narrados só adquirem significação - e m esm o só se tornam com preensíveis – quando lidos no interior de um a tram a, de um entrecho. A literatura de Sim ões Lopes Neto, se pode dizer m uito sucintam ente, pert ence ao “regionalism o universal” porque at ua sobre o hom em e n ã o a p e n a s s o b r e u m t i p o o u s o b r e o t í p i co.
03. A afirmativa proposta por Flávio Loureiro Chaves de que “o Simões Lopes Neto que resistiu ao tempo foi aquele que se impôs como uma vitória da linguagem” é relevante, visto que o escritor gaúcho criou uma linguagem diferente, sócia à tradição oral, para construir as suas narrativas. O senhor não acredita, porém, que a crítica social que é apresentada nos contos simonianos também contribuíram para assegurar o sucesso de João Simões Lopes Neto?
Eis um a quest ão bast ante com plexa. Em primeiro lugar, quando falam os do sucesso de Sim ões Lopes Neto nos referim os a um fenôm eno relativam ent e recente. Devem os considerar ainda as razões desse sucesso. Nesse ponto é que se encont ra a int errogação sobre sua condição de crítico da cultura. Bem , eu separaria, num inst ante inicial, esses dois problem as (Sim ões com o escritor e o trato da linguagem e se sua crítica social cont ribuiu para assegurar o seu sucesso). Então vam os trat ar do prim eiro ponto. Ora, esse debate com eçou faz alguns anos quando a pesquisadora Cláudia Antunes, que n o S i m p ó s i o S i m o n i a n o L e n d a s d o S u l , em 2 0 0 2 , o r ganizado pelo prof. Agem ir Bavaresco e por mim , na Universidade Católica de Pelotas, advogou contra a assertiva de Moysés Vellinho, de que a carreira do criador de Blau Nunes foi inteiram ente póstum a, baseada na recepção de época aos Contos Gauchescos e em necrológios, seu reconhecim ento em vida. Posteriorm ente, o saudoso historiador Mario Osório Magalhães, num artigo ao jornal Diário Popular, em dezem bro de 2006, via na publicação do conto Contrabandista na revista Select a, prestigioso periódico carioca, logo após o falecim ento do escritor, um índice de reconhecim ento. Vale dizer que em bora eu entenda ser tardio o reco nhecim ento l iterário d e Jo ão Sim ões Lopes Neto, perm anecendo ele na fím bria do cânone, com o procurei dem onstrar num artigo à revista Them a, em 2003, é fato inconteste que a circulação de seus textos, em publicações dos m ais variados gêneros, nunca parou, evidenciando que o e s c r i t o r p e l o t e n s e s e m p r e t e v e l e i t o r e s . A s s i m , se o reconhecim ento da crít ica foi lerdo, o público o acolheu, talvez até por razões extraliterárias, desde cedo.
04. Na sua concepção, qual é a crítica proposta em “O Anjo da Vitória”?
Entre os vários tópicos críticos presentes nos contos sim onianos, um deles se m antém constant e: a natureza hum ana voltada para o m al. Para Blau Nunes, o hom em é “bicho m au”, com o está lá no Boi Velho. Dessa m aneira, com o na visão benjam iniana da história, vê-se Sim ões descrevendo a barbárie inerente ao processo civilizador, em que a guerra ocupa um papel central. Em Sim ões, de um lado, tem os um a visão idealizada do herói, sobret udo do h e r ó i g u e r r e i r o , h o m em c u j a s v i r t u d e s s ã o d e s c r i t a s segundo os elem entos da natureza, o que lhe confere grande força telúrica. De out ro, aparece a m al d a d e , o h o r r o r e a d e s t r u i ç ã o d a g u e r r a , e m que até os anim ais sofrem . Dessa relação dialética entre as inclinações da natureza hum ana (e as lutas éticas que ocorrem em seu seio) e os processos históricos, resulta o desem paro, a solidão e a dor (tudo isso representado pelo m enino e a m etáfora do bichará). A crítica de fundo em O anjo da vitória, conto publicado em prim eira m ão no Diário Popular, de Pelotas, em 18 de abril de 1912, para mim, é a contradição entre progresso e barbárie, i s t o é , o m e sm o p r o c e s s o d e s e n c a d e a d o p e l o p o der e pelos poderosos, pois o narrador -m enino, digna voz dos despossuídos, com o no rom ance de Stendhal, não sabe por quais m otivos se faz a guerra, desencadeia a m orte e a dest ruição. Há um a crítica sutil e profunda à rom antização da guerra, pois, ao fim rest a em cont raposição ao mito da coragem e da virilidade do gaúcho, o ser que foge, que deserta dessa im agem falsa e falsificadora da “torm enta da valentia”, deixando o hom em n a s o l i d ã o e n o a b a n d o n o d a e x i s t ê n c i a .
05. Embora muitos historiadores divirjam em relação à nação vitoriosa na Batalha de Ituzaingo, João Simões Lopes Neto nomeou seu conto como “O Anjo da Vitória”. Na sua opinião, a qual vitória ele se refere?
Aparentem ente, levados pelo título do conto, pode- se pensar que o prot ago ni st a é o General José de Abreu que, com o sacrifício da própria vida, possibilitou que a infantaria brasileira tivesse “feito aquela desgraça”. No entanto, o verdadeiro “anjo da vitória” é o m enino. A vitória sobre a qual o autor se refere é sobre a própria vida e a crueldade que a caracteriza.
06. A perspectiva de João Simões Lopes Neto a respeito do gaúcho é ambígua, pois ao mesmo tempo que enaltece as suas virtudes, também aponta os seus defeitos. Como o senhor entende esta ambiguidade? De que forma a percebe neste conto?
Ora, m e parece que esta é grande virtude de Simões com o escritor. Ao contrário da escrit ura regionalista até então, basicam ente produtora de subliteratura, os personagens sim onianos não são planos, previsíveis. Tais como são os seres hum anos am bíguos, contraditórios e am bivalentes -, a construção das personagens de Sim ões Lopes Neto são de um a artesania extraordinária. No conto O anjo da vitória, a am biguidade a respeito do gaúcho e s t á n a i d e a l i z a ç ã o d o G e n e r a l Jo s é d e A b r e u , e s tereótipo da coragem e da int repidez, com desassom bro diante da m orte, e o m enino, am edrontado e perdido, assust ado, não t anto pela m orte em si, m as por se ter descoberto “um ser para a m orte”, para utilizarm os a expressão de Heidegger. Am bos, Jo sé d e Abreu e o m eni no, perf azem o gaúcho, que deixa de ser som ente o “m onarca das coxil h a s ” p a r a s e r t a m b é m o h o m em c o m um , h u m a n i zado e verdadeiro e cheio de fraquezas.
07. O conto parece ter sido escrito para enaltecer o mito do gaúcho, pois, em alguns momentos, celebra a valentia épica do guerreiro gaúcho. Entretanto, ao apresentar os erros bélicos cometidos pelo comandante e a fraqueza do protagonista no seu final, permite que o leitor perceba uma crítica às revoluções. É possível notar uma ambiguidade na construção do guerreiro gaúcho neste conto?
Conform e já havia dito, de fato, se verifica nesse conto tanto a exaltação da valentia épica do guerreiro gaúcho, quanto o relato, sem retoques, de sua covardia e crueldade. Ao apresent ar os erros bélicos e a fraqueza do com andante percebo não apenas a feição do Sim ões na condição de crítico social, m as tam bém sua vertente de hist oriador. A crítica ao com andante Marquês de Barbacena revela um a posição diante da historiografia que, a despeito de dar a vitória na bat alha de Ituzaingó, ocorrida em 20 de fevereiro de 1827 (era o tem po da Guerra Cisplatina, que resultou na independência do Uruguai) ao Brasil, atribuía as enorm es baixas, constat adas no desenlace do confronto, à indisciplina dos soldados e à confusão entre os com andantes. A am biguidade do guerreiro gaúcho não está relacionada apenas à critica da fixidez do herói, m as tam bém a um posicionam ento nacionalist a em face das explicações históricas a respeito do com bat e, considerado o m ais sangrento do conflito.
08. A questão da solidão está presente no conto – tanto no desfecho do protagonista, que se vê sozinho e desamparado; quanto na metáfora do anjo. Esta questão seria uma forma encontrada para evidenciar as consequências das revoluções para quem as experienciou, destacando a solidão que lhes é imposta?
A s o l i d ã o d o p r o t a g o n i s t a é u m e l em e n t o m u i t o im port ante para a com preensão do conto O anjo da vitória. A m etáfora do anjo com plem enta e dialoga com essa quest ão, sobre a qual não desceremos a m inudências. Pode-se dizer que a sensação de abandono, de quebra de referenciais é inerente aos processos revolucionários ou de guerra. Porém, quer m e parecer que além disso Sim ões pretende evidenciar algo mais: a solidão é própria da condição hum ana.
09. Como os acontecimentos relatados neste conto contribuem na construção da identidade do narrador (Blau Nunes)?
O narrador é o sujeito que fala, é a entidade fictícia a quem cabe enunciar o discurso na função de protagonist a da com unicação narrativa. A voz do narrado r, port anto, expressa o seu ol har. A Teo ri a da Literatura nos ensina que os narradores podem ser classificados de diversas m aneiras (por exem plo, autodiegético, homodiegético, heterodiegético ), as quai s revel am de onde el e fal a, com o enxerga os acontecim entos e o que sabe a respeito deles. Em sum a, o personagem , se bem construído, nos convence sobre seu “m undo possível”, o mundo da ficcionalidade. Deste m odo, dentro da referencialidade ficcional, todas as inst âncias da voz n a r r a t i v a c o n v e r g e m p a r a n o s d i z e r q u e m el e é . Assim com o aquele que pode ser reconhecido pelo que diz, com o o diz e de onde fala, podem os perceber esse processo de const rução da identidade do eu enunciador por m eio de sua m undividência, que engloba, é certo, os acontecim entos que lhe sucedem e que o narratário só vem a saber segundo o discurso do narrador. Apesar disso, especificam ente no caso do conto Anjo da Vitória, a narrativa dialoga com a tradição cultural Ocidental. Em verdade, com dois grandes blocos: o prim eiro é a epopeia, e o out ro a figura do herói trágico. A epopeia, grosso m odo, possui três aspectos constitutivos, a saber, fala num passado “crist alizado” e distant e do presente por um longo período de tempo, no qual não há m ovim ento nem corrosão das figuras que o habit am . Em Anjo da Vitória Blau Nunes, já velho, convoca o m enino para falar. Mas é o m enino que fala pelo velho ou é o velho que faz o m enino falar? Seja como for, o palco da guerra, em que se confrontam vida/m orte; valentia/ covardia, já está cristalizado e, nessa m edida, destituído de relatividade. O General Abreu m esmo morto está ainda com a espada em riste e nem a p a s s a g e m d o t em p o r e n e g a s e u s f e i t o s g r a d i l o -
quent es, que perm anecem m odelares para as gerações fut uras, tanto assim que se gravaram na m em ó r i a d o m e n i n o d e t a l j e i t o , q u e o v e l h o B l a u m a n t é m d o s a c o n t e c i m e n t o s u m a m em ó r i a v í v i d a . A narrativa de cunho epopeico encontrou terreno fértil no Rio Grande do Sul, em função de sua história guerreira. Nesse sentido, o herói trágico só se pode construir no seio da epopeia, isto é, o herói tem de cum prir o seu Destino, fator necessário à constituição do ato heroico. A identidade do herói está basicam ente ligada ao que ele realiza e ao significado de sua realização. No conto em questão, o narrador relat a seus sentim entos e a sua participação na ação. Os acontecim entos em que ele est á envolvido forjam os heróis -arquétipos, entre os quais o General Abreu, cham ado o “Anjo da Vitória”. O narrador é contam inado pela glória que em ana im anentem ente da epopeia –; ele [o narrador] ia “folheirito”, abanando no m ais o seu bichará. O palco em que os acontecim entos se desenrol am p r o d u z e f e i t o s c o l e t i v o s e i n d i v i d u a i s . A e p o peia em si é a narrativa que relat a um fenômeno social, geralm ente, de índole nacionalista. O narrador, pois, é capaz de construir sua identidade projetando-a nessa heroicização coletiva. De outra sorte, essa experiência coletiva é t am bém purgada individualm ente. O velho Blau ao evocar os sentim entos do m enino se reconhece f rágil, assust ado, perdido e sozinho. A analepse realizada pelo narrador rem em ora não apenas a epopeia, m as também a barbárie sobre a qual se erige. Os acontecim entos, por isso, não são externos à identidade do narrador, o próprio ato enunciativo os fabrica, os ordena e lhes dá significado. Deste m odo, parafraseando a frase fam osa, Blau Nunes sai da vida [os acontecim entos] para entrar na história [a narrativa]. Os acontecim entos contribuem para construir a identidade do narrador em O anjo da vitória na dinâm ica da am bivalência (am a a glória, m as odeia a crueldade e a morte; adm ira a coragem, m as se reconhece fuj ão; am a esse eu -coletivo e nacionalist a, m as odeia a solidão e a orfandade pro po rcio nad a pel as g uerras), po r int erm édio da qual ficam os sabendo quem Blau Nunes diz que é ou acredit a ser. 10. Por que a rememoração desta batalha pelo narr a d o r é i m p o r t a n t e p a r a o c o n t e x t o g e r a l d o s Co n t o s Gauchescos?
Pode-se observar que a rem em oração feita pelo narrador-m enino da bat alha do Passo do Rosário, no conto cham ada de batalha de Ituzaingó, coloca ao lado da biografia de Blau Nunes a biografia da form ação do Rio Grande do Sul e da nacionalidade. Tal evocação auxilia a desenhar o pano de fundo que constitui o vasto panoram a histórico que aparece nos Contos Gauchescos (Guerras Cisplatinas, Revolução Farroupilha, Guerra do Paraguai ), e que co nfo rm a um a espécie d e bil dul grom an de Blau Nunes.
ABRINDO O FOCO
O CONTRABANDISTA 1 – Historicamente, desde o período colonial, o contrabando tem papel importante nas fronteiras do extremo É um dos maiores contos de João Simões Lopes Neto, sul, podendo mesmo ser considerado elemento complesendo, inclusive, o escolhido para integrar OS CEM ME- mentar da economia gaúcha. LHORES CONTOS BRASILEIROS. Eu o reputo grande por:
Após a independência do Brasil, o charque e o couro, principais produtos do Rio Grande do Sul, foram alta-
1–
TÉCNICA: observo aqui, dois aspetos:
mente tributados. Dependente do mercado interno, a Província fica financeiramente ameaçada. Os gaúchos passam a exigir a tributação de seus concorrentes e não
– FORÇA DA LINGUAGEM SIMONEANA – ritmo, har- são atendidos, prejudicaria o lucro dos produtores de camonia, linguagem enxuta e cinematográfica que revoluci- fé e açúcar do centro do país. Logo o descontentamento ona literatura da época, ao romper com empoladas pala- aumenta: a pólvora passa a ser do rei e proibida aos civras do romantismo que sepultam as idéias. A genialidade dadãos, baralho de jogar só é permitido em Porto Alegre, de “usar, precursoramente, a palavra para dizer e não os ourives do Rio Grande são expulsos. E o contrabando, para impressionar por sua beleza”. Em apenas duas pági- prática antiga e natural na região, cresce com rapidez. nas conta a história do contrabando no Rio Grande do Os gaúchos trazem da Banda Oriental pólvora, balas, baralhos, prendas de ouro, aperos de prata. A situação se
Sul. - O CONTRABANDISTA Blau aparece como narrador e testemunha – sempre vi esse conto como se nele houvesse uma cortina que cai na parte intermediária do texto ( entre a descrição de Jango Jorge e a festa de
agrava, o dinheiro do Brasil fica muito caro e de tudo se passa a contrabandear. A polícia era pouca, os campos eram abertos e a situação se agrava. O contrabando era ainda intensificado pelos con-
casamento e sua morte trágica), quando há um excepci- flitos entre os países do Prata, e pela Revolução Farroupional resumo histórico do contrabandear nas fronteiras lha onde tanto os rebeldes quanto os governistas o pratigaúchas. Essa voz é comparável ao coro de uma tragédia cavam. grega.
O governo imperial tinha dificuldade em controlar
2 – CONTEÚDO – chama atenção nessa história três essa prática mesmo porque havia a conivência e a partirelatos superpostos: o histórico, o antropológico e o míti- cipação de autoridades. Essa ineficácia gerava protestos co. Vou analisar esses três relatos, em três etapas. Primei- das autoridades gaúchas que responsabilizavam o comérro, abrindo o foco, igual usássemos uma câmera que bus- cio ilícito pela possível ruína econômica da Província. Raca fotografar personagens e cenário. Depois fecharei miro Barcelos, inclusive, dizia: O Rio Grande do Sul é, comais o foco, centrando nos personagens. Por fim usarei a mercialmente falando, o mais rico departamento da Relente mítica para ampliar os símbolos. Vejamos um esboço da história: - Jango Jorge, um contrabandista, vai casar a filha. Na
pública Oriental do Uruguai. De modo que a fronteira gaúcha foi sempre marcada pela beligerância, pelo conflito e pela violência
véspera do casamento atravessa a fronteira para trazer o 2- Antropologicamente visto, o gaúcho é um tipo origináenxoval e a roupa de noiva. A festa pronta, todos espe- rio da fusão da população original da pampa: índios, porram e olham a estrada. Enfim o grupo chega trazendo o tugueses, espanhóis e desgarrados em geral. Não tinham cavalo de J.J. com seu corpo, morreu baleado pela guar- propriedade, família nem endereço, eram nômades. Asda da fronteira. Amarrado nele, o pacote com o vestido sim evoluiu o chamado “campeiro soldado”, homem que branco, a grinalda, o véu. Antes de analisar o conto de Simões, vou contextualizá lo na história, na antropologia e na mitologia.
precisa lidar com o gado e lutar com as armas. Tinha agudo senso de liberdade, recatado e de poucas palavras. Diz-se que as paisagens e o mundo visto de cima do cavalo o fez altivo e autoconfiante, desafiador do destino. Citando-se um general latino americano: “Nenhum ho-
FECHANDO MAIS O FOCO
mem é prudente em cima de um cavalo.” Esse gaúcho que levou três séculos forjando -se e lutando para sobreviver na pampa, tinha relação íntima com a natureza, as adagas e as lanças. Aos poucos ele
1 – Abordagem histórica
vai se fixando ao solo, escolhendo suas “prendas -minhas”, ou seja, suas mulheres, vai casando e constituindo família.
Em O contrabandista, João Simões Lopes Neto conta E vai se afirmando não mais como um bárbaro e sim co- a história do contrabando no sul igual fosse, como eu dismo um ente social. se, a fala de um coro numa tragédia grega. E dentro desse imaginário era fundamental afirmar Interrompe a fala em primeira pessoa de Blau, que se como bom pai de família para sentir -se respeitado. contava a saída de J.J. para contrabandear o vestido da Casar uma filha vestida de branco, com véu e grinalda, noiva e o preparo da festa e a última frase é: FIQUEI VERentão, era a afirmação pública de haver bem formado DEANDO, À ESPERA, E FUI DANDO UM AJUTÓRIO NA MAsua família. TANÇA DOS LEITÕES E NO TIRAMENTO DOS ASSADOS COM Pais reescrevem a própria história através da histó- COURO. ria dos filhos; Jango Jorge era um fora da lei e precisava
E começa: NESTA TERRA DO RIO GRANDE SEMPRE SE dessa auto-afirmação social por si e pela mulher com CONTRABANDEOU, DESDE EM ANTES DA TOMADA DAS MISquem fizera um “ajuntamento”; ou seja, na base, a família SOES.......................... e termina : que criara era socialmente frágil, e isso tinha de ser re escrito.
ORA!......ORA!
..... PASSAR BEM PAISANO!... A SEMENTE
GRELOU E ESTÁ A ÁRVORE RAMALHUDA, QUE VANCÊ SABE,
3 – Visto pelo viés mítico, o contrabandista Jango Jorge DO CONTRABANDO DE HOJE. encarna a figura do herói trágico que é o personagem Observe-se como no espaço entre essa “abertura” das tragédias. E não esquecendo que tecnicamente, cone o “fechamento” do que quando menina eu sentia coforme já observado, esse conto lembra a tragédia grega – mo uma cortina que se abria no conto, e que alguns crítia voz de um coro que entra pelo meio. E na tragédia grecos vêem como um hiato dentro do conto – é contada a ga o herói sempre luta contra algo transcendental. Daí história do contrabando – o que hoje eu vejo como na sempre haver um final trágico, quando o herói será resverdade é igual “a voz do coro na tragédia grega.” ponsável pelo próprio aniquilamento. Na mitologia temos a “saga do herói”, caracterizada por alguém dando a vida por algo maior que si mesmo. de
Então, nesse “coro” Simões divide a história do contrabando no RS em três etapas:
Somos todos heróis ao nascer ( deixamos o paraíso criaturas
aquáticas
no
útero
e
heróicamente
“caímos”numa vida com necessidades a serem atendi-
A – contrabandeavam por diversão
das ). As três principais religiões do mundo ensinam que a jornada heróica faz parte da vida. Está no Alcorão dos
“NAQUELES TEMPOS O QUE SE FAZIA ERA SEM MALÍmuçulmanos, na Torá dos judeus, e no Evangelho dos cris- CIA, E MAIS POR DIVERTIR E ACOQUINAR AS GUARDAS DO tãos. O herói “morre” e ressuscita, e assim transforma a INIMIGO: UMA PARTIDA DE GUASCAS MONTAVA A CAVAprópria consciência. Ao destruir os mitos o herói destrói as LO, ENTRAVA NA BANDA ORIENTAL E ARREBANHAVA UMA coisas sombrias.
PONTA GRANDE DE EGUARIÇOS; ABANAVA O PONCHO E
Podemos, pois, antes de analisarmos o conto de VINHA A MEIO-RÉDEA; APARTAVA-SE A POTRADA E LARGASimões Lopes Neto compará-lo às tragédias gregas e, seu VA-SE O RESTO; OS DE LÁ FAZIAM CONOSCO A MESMA personagem, Jango Jorge, é um perfeito herói mítico vi- COUSA; DEPOIS ERA COM GADOS, QUE SE TOCAVA A TROvendo a sua saga; buscando algo maior que si mesmo, no TE E GALOPE, ABANDONANDO OS ASSOLEADOS.” caso, dar à filha um casamento poderoso, com todos os signos presentes aos melhores casamentos.
“ISSO SE FAZIA POR DESPIQUE DOS ESPANHÓIS E ELES PAGAVAM...... DO MESMO JEITO”.
B – contrabandeavam também por necessidade e ele usa em que o o texto para expor as causas da Revolução Farroupilha
“campeiro-soldado”, o homem mistura de ín-
dio, português, espanhol, nômade e meio bárbaro, firma se num território e busca ainda ocupar um espaço social.
“ DEPOIS VEIO A GUERRA DAS MISSÒES; O GOVERNO COMEÇOU A DAS SESMARIAS E UNS QUANTÍSSIMOS PESADOS FORAM-SE ARRANCHANDO POR ESSAS CAMPANHAS DESERTAS. E CADA UM TINHA QUE SER UM REI PEQUENO ... E AGUENTAR-SE COM AS BALAS, AS LUNARES E OS CHIFAROTES QUE TINHA EM CASA.”
Vemos nele o índio em sua conexão com a terra: “CONHECIA AS QUERÊNCIAS PELO FARO; AQUI ERA O CHEIRO DO AÇOUTA-CAVALO FLORESCIDO, LÁ O DOS TREVAIS, O DAS GUABIROBAS RASTEIRAS, DO CAPIM-LIMÀO; PELO OUVIDO: AQUI, CANCHA DE GRAXAINS, LÁ OS PASTOS QUE ENSURDECEM OU ESTALAM NO CASCO DO CAVALO; ADI-
ANTE O CHAPE-CHAPE, NOUTRO PONTO , O AREÃO. ATÉ “NAQUELA ERA, A PÓLVORA ERA DO EL-REI NOSSO PELO GOSTO ELE DIZIA A PARADA, PORQUE SABIA ONDE SENHOR E SÓ POR SUA LICENÇA É QUE ALGUM PARTICULAR ESTAVAM ÁGUAS SALOBRES E ÁGUAS LEVES, COM SABOR GRAÚDO PODERIA TER EM CASA UM POLVARIM”. DE BARRO OU SABENDO A LIMO” . “VAI ENTÃO, OS ESTANCIEIROS IAM EM PESSOA OU
Nele, encontramos o gaúcho das origens: DESABOTIMANDAVAM AO OUTRO LADO, NOS ESPANHÓIS, BUSCAR NADO, LEVOU A EXISTÊNCIA A CRUZAR OS CAMPOS DA PÓLVORA E BALAS, PRAS PEDERNEIRAS, CARTAS DE JOGO E FRONTEIRA; À LUZ DO SOL, NO DESMAIADO DA LUA, NA PRENDAS DE OURO PRAS MULHERES E PREPAROS DE PRATA ESCURIDÃO DA NOITE, NA CERRAÇÃO DAS MADRUGAPROS ARREIOS ...; E NINGUÉM PAGAVA DÍZIMOS DESSAS DAS .... COUSAS.”
Nele, o “soldado”- “ TINHA VINDO DAS GUERRAS DO OUTRO TEMPO”
C – o contrabando torna-se desenfreado
E era QUEBRALHÃO (insolente), PAGODISTA, GOSTAVA DE GARGANTEAR....
.....”.DEPOIS (da Guerra dos Farrapos) VIERAM AS CALIFORNIAS DO CHICO PEDRO; DEPOIS A GUERRA DO PARAGUAI “...
Quando Blau reencontra Jango Jorge, prepara -se o casamento de sua filha. Ele está “afamiliado” com mulher
“AÍ INUNDOU-SE A FRONTEIRA DA PROVINCIA DE ESPA- mocetona ainda, BEM PARECIDA E MUI PRAZENTEIRA. NHOIS E GRINGOS EMIGRADOS”.
Jango Jorge, pois, espelha a transição do gaúcho
“A COUSA ENTÃO MUDOU DE FIGURA. A ESTRANGEI- bárbaro para o gaúcho fixado no espaço territorial e sociRADA ERA MITRADA, NA REGRA, E FOI QUEM ENSINOU A al. E em busca da afirmação de sua identidade. Essa ânGENTE DE CÁ A MERGULHAR E FICAR DE CABEÇA ENXU- sia, esse desejo por um espaço de respeito na sociedade TA ...; ENTROU NOS HOMENS A SEDUÇÀO DE GANHAR BA- tem, no momento do casamento da filha noiva, sua oporRATO: BASTAVA SER CAMPEIRO E DESTORCIDO. DEPOIS tunidade maior. Os filhos são por vezes sentidos como a ANDAVA-SE EMPANDILHADO, BEM ARMADO; PODIA -SE AS oportunidade dos pais reescreverem a própria história e, VEZES DAR UM VAREIO NOS MILICOS, AJUSTAR CONTAS para um contrabandista sem fronteiras, afirmar -se como COM ALGUM DEVEDOR DE DESAFOROS, APORREAR ALGUM homem que bem criou sua filha a ponto de casá -la de SUBDELEGADO ABELHUDO.” “NÃO SE LIDAVA COM PAPEIS NEM CONTAS DE COUSAS; ERA SÓ LEVANTAR OS VOLUMES, ENCANGALHAR, TOCAR E ENTREGAR!”
véu e grinalda e vestido branco, é atravessar a fronteira do gaúcho marginal para a de gaúcho pai de família. E aqui, fundamental é a festa: – o cenário, a comedoria, a música, a mesa .... e o ajuntamento ... E o vestido da noiva. Aquele vestido era uma espécie de “passaporte”, de diploma, de nomeação ... Através
2 - Abordagem antropológica –
Jango Jorge, o contrabandista, é, antropologicamente abordado, um personagem exemplar do período
dele Jango Jorge vai “renascer”...
FINALMENTE, DANDO UM ‘CLOSE’.
3 – Abordagem mítica
Jango Jorge, herói trágico........ sua saga é ir em busca de algo transcendental, maior que si mesmo. Esse “algo maior que si mesmo”, conforme vimos, é o “vestido da noiva”. É o que fará dele um verdadeiro pai
Como eu dizia, o grande símbolo desse conto é a roupa de noiva da filha de Jango Jorge, o nosso herói. E ele vai além da defesa da própria vida para dar -lhe o seu vestido de noiva.
de família, é seu passaporte para ser respeitado como
Escreve Simões:
membro da sociedade.
“ENTÃO VIMOS OS DA COMITIVA DESCEREM DE UM
Vejamos, pois, simbolicamente, Qual o papel do CAVALO O CORPO ENTREGUE DE UM HOMEM, AINDA DE vestido da noiva? Qual sua função mítica? –
PALA ENFIADO...”
Desde relatos bíblicos, há preocupação com o ves-
“LEVOU-SE O CORPO PRA SALA DA MESA, PARA O
tido e os adereços das noivas por toda a carga simbólica SOFÁ ENFEITADO, QUE IA SER O TRONO DOS NOIVOS.” que encerra. As descrições mais antigas são da Grécia onde as noivas vestiam-se com roupas brancas e coroa de flores para que, a caminho da casa do noivo, recebessem as bênçãos dos deuses. O rosto era coberto por véu cuja função era proteger o casal da inveja e do mau olhado, e ainda carregavam uma tocha. O véu era de linho finíssimo na cor púrpura e ainda iam flores nas tranças. A cor vermelha era então muito usada. Em Bizâncio, vestido, véu, flores, tudo é vermelho e dourado. E essa cor aparece porque significa que a noiva será capaz de gerar um novo sangue. Na idade Média irá dominar o vestido vermelho e por longo período as noivas usam também todas as jóias possíveis. E aqui fica bem visível outra função da roupa
“A SIA DONA MÃE DA NOIVA LEVANTOU O BALANDRAU DO JANGO JORGE E DESAMARROU O EMBRULHO; E ABRIU-O. ERA O VESTIDO BRANCO DA FILHA, O SAPATO BRANCO,
O
VÉU
BRANCO,
AS
FLORES
DE
LARANJEI-
RA ...TUDO NUMA PLASTADA DE SANGUE ... TUDO MANCHADO DE VERMELHO, TODA A ALVURA DAQUELAS COUSAS BONITAS COMO QUE BORDADA DE COLORADO, NUM PADRÀO ESQUISITO, DE FEITIOS ESTRAMBÓLICOS ... COMO FOLHAS DE CARDO SOLFERIM ESMAGADAS A CASCO DE BAGUAL.” Veja-se que o corpo de Jango Jorge é colocado no sofá engalanado que seria o trono dos noivos O contrabandista morto é sacralizado. E do pacote amarrado em seu corpo saem as ves-
da noiva que é mostrar ao grupo o poder econômico da
família, o re-afirmar o seu status. Usam-se brocados, velu- tes de noiva da filha, tudo numa plasta de sangue. Vestidos, sedas... No final do renascimento aparece a noiva do, véu, grinalda, em sua alvura trazida por Jango Jorge, de vestido negro. E daí evolui para o vestido branco, usa- estão como que bordados de vermelho. Só que esse verdo pela rainha Vitória, bem como véu, grinalda e flores, melho é o sangue do pai. É o sangue do Herói que se atiatitude incentivada, sobretudo, pelo cristianismo. E o ves- rou com todas as forças na saga de dar à filha noiva um tido branco assim se estabelece como símbolo da pureza. casamento decente, com os signos exigidos pela sociedaVejamos o caso da noiva e filha de Jango Jorge: “O JANGO JORGE SAIU NA MADRUGADA SEGUINTE PRA BUSCAR O ENXOVAL DA NOIVA”.
de. E quando vemos o corpo no trono e as vestes brancas bordadas pelo vermelho de seu sangue, entendemos que o Herói cumpriu sua saga e houve sua Ressurreição. Ele
“A GUARDA NOS DEU EM CIMA ...... TOMOU OS pretendia dar um papel social superior à filha, mas o símCARGUEIROS ... E MATARAM O CAPITÀO, PORQUE ELE bolo final aponta que foi ele quem de fato transcendeu AVANÇOU SOZINHO PRA MULA PONTEIRA E SUSPENDEU UM seu passado e sua história. PACOTE QUE VINHA SOLTO..... E AINDA O AMARROU NO CORPO..... AÍ FOI QUE O CRIVARAM DE BALAS .... PARADO ... OS ORDINÁRIOS..... TIVEMOS QUE BRIGAR, PRA TO-
Aqui, pois, estamos no mito. E esse mito não é regional, não é local. É universal.
MAR O CORPO!”
Hilda Simões Lopes
A evolução do enredo e dos personagens vai meteO JOGO DO OSSO
morfoseando o cenário inicial tranquilo e didático, de diversão leviana – para um clima tenso, onde é fácil de-
Trata-se de um dos contos mais instigantes da série duzir, no íntimo dividido dos personagens, o afloramento Contos Gauchescos. O narrador Blau Nunes, na breve das paixões interiores que dão origem ao conflito. introdução, anuncia um fato curioso – uma mulher usada
A história oculta é justamente o mercantilismo levado
como objeto de jogo – acrescentando que resultou em ao nível mais explícito – desumanizando as relações comorte. Gera-se uma expectativa simples, como numa munitárias 9corrupção do pago), gerando pessoas dividinotícia de página policial. Contudo Blau desempenha das, seduzidas por uma lógica falsa de coisificação que papéis mutantes, violando regras dogmáticas ao longo conduz a uma espécie de canibalismo, a ponto de prodo conto. É mítico como um oráculo ao descrever o boli- vocar as reações mais imprevistas e desencadear a besticho do Arranhão. É didático como um mestre campeiro alidade. Mas é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a ao ensinar o entretenimento do jogo do osso. É “neutro” incapacidade do sistema mercantilista em reduzir o ser ou distanciado – como simples vedor ou eu testemunha – humano ao último rastejar do servilismo. Acuado ao limite, durante o jogo entre Ruivo e Osoro. Porém transforma-se o ser humano usa o próprio instrumento da animalidade em onisciente oculto como um espírito invisível presente para sobreviver. na venda, ao narrar a etapa tirana da entrega da china.
O autor com breves comentários intercalados exerce
E volta a ser eu testemunha na descrição da tragédia no estilo a sua capacidade de iluminar previamente os esquizofrênica do crime, e suas cenas finais.
sumários e as cenas que dão ao leitor informação anteci-
Sabe-se que a matéria-prima do discurso literário são pada dos desfechos, uma lucidez que não desmancha, as vivências ou emoções humanas. Verifica-se que o con- antes aumenta o prazer da leitura. to é rico em vivências identitárias autênticas do pago rio-
A técnica narrativa aproxima-se do modo teatral ou
grandense. Isso não impede a primazia aos lances dra- dramático, pois o narrador Blau fica mais discreto por demáticos e trágicos. Aparentemente não há lirismo, são trás da cena, parecendo mais frio, mais neutro e até mais fatos crus, sem filigranas... Por isso contém forte apelo críti- impiedoso, deixando ao leitor a quase total responsabilico ao leitor, diante do avesso dos padrões éticos nos dade de compadecer-se, enojar-se e julgar uma história comportamentos dos personagens focalizados. A narrati- “tão suja”. O conto entretanto, jamais pode ser confundiva surpreende pelo máximo de efeito extraído de uma do com uma simples reportagem policial. Ao reorganizar articulação simples mas habilmente estratégica dos lan- as vivências triviais, a arte de Simões contêm sutil análise ces. É abordada, não como simples especulação sádica, psicológica, cumprindo, com descrição, mas eficiência, a mas como um realismo que expõe as situações limite do função cultural, tão diferente dos relatos tipo mundo cão ser humano.
de certa literatura ocidental.
A descrição da cena de sangue, dá a impressão de
O rótulo “gauchada leviana” é aparente, pois a exteri-
uma câmara lenta à medida que os corpos abraçados oridade, a “pose” dos “aficionados”, não tem força de escorregam pela parede e pelo balcão até o chão. É conter os conflitos da sua interioridade. Os diálogos do inevitável a sensação de um pranto triste pelas vidas que jogo do osso mostram um Ruivo paranoico, que pensa se esvaem. A força dramática atinge o nível poético das governar o destino a tiro de taba. E que, à medida que grandes obras literárias, parecendo sair de páginas sha- “respeita as regras”, quer colocar a realidade à força kespereanas.
dentro de seus desejos, jogando tudo numa vitória que
Reportando-se aos aspectos da linguagem, verifica-se não vem. Má raios! (...) Isso é mau olhado de algum ronque a numerosa incidência de termos regionais, - sobem colho mirone!...O desespero torna-se passo a passo incona 63 – dá um cunho original, indispensável à animação tido, para o conduzido que se imagina sempre condutor. poética do conto. Marcando fortemente a experiência “Não tem veremos! (...) Olha guincha que te prendo as ali vivida no ambiente do interior rio-grandense, tais ex- chilenas! pressões do linguajar gauchesco por terem existência
Certos adjetivos, pela colocação oportuna no discurso
histórica, não pesam como exotismo e não impedem de literário, contribuem para iluminar a história: “um sujeito modo algum a apreensão do sentido pelo leitor leigo, alarifaço, cá para mim desertor meio espanhol, meio grindesde que a concatenação das frases e pensamentos é go”, etc. “Por esse pano de amostra, vancê vê o que sesempre feita dentro do vernáculo português onde já tive- ria aquele gavião”...”É um jogo brabo, pois não é?”...”A ram e ainda têm parcialmente vida.
cusa ia ser tirana”...- são inserções que marcam o estilo
Note-se o contraste entre a descrição do personagens simoniano. Arranhão com seu bolicho arrebentado, mesmo assim
No episódio de entrega, o narrador usa de um hábil
parque de diversões rural e as condições do par Ruivo e artifício, começando pelo discurso indireto, (“O que se Lalica – agregados pobres sem terra: mesmo com relativa passou entre aquelas três criaturas, não sei”... – Não sabe acomodação, chegando a ter cavalo e vacas de leite mas supõe: “por certo que o Chico Ruivo disse à China em seu posto ou rincão da Estância das Palmas. Doma- que a jogara numa parada de taba”.) – para, em seguidor e china que só são aceitos na sociedade mundana, da, resgatar nos diálogos, os discursos diretos e audíveis, marginal, entre a “gauchada leviana”. Essas breves des- como de Osoro: - Eu, se perdesse o ruano, o Chico já ia crições, numa ótica social, sugerem que a insatisfação daqui montado nele” E o de Lalica: - “Sempre é muito com a falta de sentido da vida os faz presa fácil das op- baixo!..., guampudo, ruano, por gosto!”, etc. Desse modo ções ilusórias de lazer oferecidas no bolicho, onde se culti- o narrador permanece na condição de observador vam as relações alienadas, - jogo carteado, roleta, apos- “neutro” externo ou “Eu testemunha”, escapando por um tas de carreiras e jogo do osso – e que se exemplifica na fio de entrar no íntimo dos personagens, pois se o fizesse “aparceria” entre o Ruivo e o Osoro.
estaria sendo “onisciente intruso”. Assim, mantendo a
aparência de objetividade, o narrador leva o próprio leitor a perceber a subjetividade ou estado de espírito dos personagens, evidenciada pelo crescendo das tensões – no jogo e na venda – agravadas pela linguagem agressiva da china, ofendida e do seu pretenso dono, ofensor. A metáfora principal do conto está no mito da “liga” que para a cultura popular assume vários nomes: “pôtra”, “suerte”, “boi barroso”, “buenadicha”. E que se resume no culto da ilusão, em que as pessoas não tomam nas mãos o caminho consequente, confiando nos caprichos do acaso. Qual foi a “vitória final” do Ruivo? Mesmo com o brutal desvencilhamento dos compromissos e a fanfarronada compensatória (“Siga o baile!...) só lhe restou a fuga e o agravamento de sua marginalidade. Para ele, como gaúcho leviano, é de certa forma um recomeço, nova busca do boi barroso. Quanto à personagem Lalica, divergimos das leituras que lhe atribuem – assim como às demais mulheres dos Contos Gauchescos – um papel destruidor. Antes sim, vítimas dos conluios machistas, como ainda ocorre no presente brasileiro e mundial. Em que pese o uso das armas femininas – e as comparações equinoides contundentes – a personagem Lalica figura em posição nitidamente superior no atrito cultural, em detrimento das apelações do Ruivo. Sua rebeldia xucra, devolvendo as ofensas ao preço da própria vida, incluem-se entre os símbolos mártires da luta histórica da mulher por sua integridade.
Mario Mattos
C O N T O S G A U C H E S C O S
ILUSTRAÇÕES
MARIO MATTOS
PENAR DE VELHOS por Mário Mattos
gridade (identidade pessoal). Naquele momento e a partir daí, o velho Cruz percebe, na crueza da dor, que caira num enorme erro de avaliação – o maior erro de sua vida. Seu tesouro maior – o filho e não o cavalo, para ele mero objeto de luxo - estava perdido - e desta vez para sempre.
ENTREVISTA: Carlos Ossanes Notas: PERGUNTAS: Ana Luiza Nunes Almeida
1. Como o universo gaúcho é representado no conto? a) pela paisagem física – a estância do velho Cruz, com seus prédios e artefatos, situada no Pampa ( na campanha) riograndense, com suas coxilhas, banhados, arroios e restingas de mato, mais a sua fauna de passarinhos, emas, etc. e animais domésticos simbolizados no cavalo Picaço, Nessa paisagem, por coerência lógica, pode-se subentender ainda a existência de cachorrada campeira, suínos de chiqueiro ou soltos, aves de terreiro, vacas leiteiras, bois mansos lavradores, gado de cria, novilhos invernados, ovelhas, eguadas de cria e cavalhada de serviço; b) pela paisagem humana - os três personagens da família Cruz, mais (subentendidos) escravos - peões campeiros, famílias de agregados e/ou posteiros, bem como a periferia de pobres excluídos; c) pela época provável – Final do século 19, lá por 1876 – antes da República e da guerra civil de 1893 – ( Dado extraído do Ensaio de biografia ficcional de Blau Nunes, montagem feita por nós com base em observações de Flávio Loureiro Chaves (Vide Garimpando no mundo das Trezentas Onças, Mário Mattos, Pelotas, EDUCAT, 2007, págs.. 118 a 120. Nessa época de transição - da comunidade para a exploração planejada e da magia para a religião – a estância do velho Cruz equipara-se, como símbolo de atraso, às muitas propriedades até hoje ainda resistem ao modernismo - este no conto, representado apenas pela intromissão do padre gringo. 2. O conto “Penar de Velhos” apresenta personagens tipicamente gaúchas, as quais possuem particularidades regionais, como, por exemplo, o apego ao cavalo. No entanto, João Simões Lopes Neto introduz outra característica – o amor soberano ao filho – que sobrepõe-se à anterior. A partir da análise destas características, comparando a sua relevância no conto, poderíamos concluir que o universalismo ultrapassa o regionalismo na narrativa simoniana? Parece-nos que a pergunta não reflete a relação de valores no conto: Não temos elementos para afirmar que o fato do velho Cruz ficar buzina com a morte do picaço, se deva ao tradicional amor do gaúcho pelo cavalo. Mas sim provavelmente por sentir -se ferido em seu amor próprio de patriarca e mandachuva da estância - sentimentos ainda mais exagerados por ser o animal obtido por presente de outro estancieiro. .A perda assim atingia também seu status corporativo. Velho Cruz, no seu normal podia ser um liberal boa praça. Culturalmente porém, faltou-lhe maturidade e humildade para colocar a autoestima acima do amor próprio, abrindo mão dos falsos valores. (e sobrou-lhe a teatralização da ira do grão-senhor). Se a mulher não estivesse ocupada pelos fundos da casa – se estivesse na cena – o mais provável é que a sua intervenção mediadora moderasse a reação do pai. Sem freio, esta reação foi precipitada e desastrada. Não priorizou o amor na educação de seu filho único. Ante a surpresa da falta cometida (e honestament4e reconhecida) pelo pequeno Binga, o que prevaleceu na “pedagogia” daquele velho inculto e despreparado, foi o afloramento inercial de sua herança cultural autoritária, automatizada atávica e acriticamente no próprio subconsciente. Seu gesto, humilhante de levantar o relho para bater no menino diante de todos os serviçais não previu o brio – o amor próprio nascente – do homem gaúcho já existente na alma de quem aos doze anos já aprendera a amar a liberdade e que não suportaria agressão à sua inte-
1)este tipo de pedagogia paterna autoritária foi e ainda é muito comum no RS, no Brasil e no mundo inteiro, produzindo histórias de homens sofridos que se fizeram por si mesmos. 2) É do após guerra o erro inverso, dos pais que caem do outro lado, na indulgência sem limites para com suas crianças. Filhos narcisistas, com a psicologia de Pequenos Príncipes, não suportam frustrações e em alguns casos podem virar monstros). 3) Por sua verossimilhança geográfica, histórica e pela verdade psicológica das personagens, o regional simoneano identifica-se ao universal, por uma essência comum. (Vide Anais do II Seminário de Estudos Simonianos / Mário Barboza de Mattos et AL – Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, Ed. Universitária,2001, pag. 129, item 1º.) 3. Outra característica marcante neste conto é o forte tom melancólico que o acompanha desde o desaparecimento de Binga, sendo que a tristeza que acomete seus pais culmina na sua morte. Entretanto, antes de morrer, o patriarca deixa toda a sua herança para a Igreja, causando espanto em todos. Qual o significado deste episódio, visto que o seu sofrimento após o sumiço foi notório e não havia evidências da morte de seu herdeiro legítimo (Binga)? Na narrativa de Penar de Velhos, a sugestão de invocar a legitimidade dos direitos de Binga, seria viável dado o estado de espírito do velho Cruz? a) No universo da propriedade rural gaúcha tradicional, nem sempre as leis do país são levadas em conta . Da porteira para dentro, em muitos casos é o dono que traça as regras, antes e acima do direito de família. A intervenção do advogado, os inventários, etc. - ,é sempre lenta e tardia; e implica na iniciativa dos prejudicados mais corajosos, enfrentando preconceitos corporativos. b) Numa visão menos ingênua e mais verossímil, será lícito imaginar que o velho Cruz, viúvo, sentindo-se às portas da morte e refém de sua culpa pecaminosa, não passava de um farrapo humano fragilizado e indeciso, fácil de atemorizar ccm a imagem do Inferno por um esperto abutre como o padre gringo, para extorquir-lhe a doação de seus bens para a paróquia que ele provavelmente manipulava em causa própria - usurpando e frustrando as legitimas expectativas dos numerosos afilhados pobres, apadrinhados pelo casal, quando a mãe de Binga ainda vivia. Notas: 1) ABUTRISMO NOTÓRIO- Nos anos 40 a 50 do século passado, morando em Porto Alegre, tomei conhecimento , de que um ilustre advogado, A.M.C, havia enriquecido nos inventários de viúvas, induzidas a doar os bens para a Igreja. Corria nos meios universitários e na população o boato de que o palacete por ele construído na capital teria o apelido de” Palácio das Lágrimas”, por ser notório fruto das lágrimas das viúvas. 2) FALHAS NA JUSTIÇA TRADICIONAL DO RS - Na década de 80 , foi campeão de vendas na Feira do Livro de Porto Alegre, o livro “Por que Acredito em Lobisomem,” do advogado-escritor, Serafim Machado, denunciando as deformações da justiça gaúcha de então - coniventes com aberrações similares (protegendo e abafando escândalos latifundiários em autos de inventário). (ainda hoje à venda pela Internet) c) O mistério do desaparecimento de Binga Cruz é um desafio à imaginação dos leitores. Redija você ,Leitor, numa releitura de Penar de Velhos, a sua própria versão do destino de Binga Cruz coloque-o na História, em coerência com as narrativas de Blau e
com seu conhecimento da história de nosso Estado, dentro de pelo menos 4 alternativas: 1. Esquece os pais? Improvável, pois só um caráter amorfo pode desdenhar o carinho da mãe; 2. Lembra os pais, sofre e tem momentos de pranto, Mas algo mais forte o impede de voltar; 3. Depois de sofrer e amadurecer , quer voltar, mas é tarde demais; 4. Morre, antes de resolver voltar.
tes aparecem na épica travessura do menino Binga, enquanto a longa e penosa agonia dos velhos pais é feita quase toda de momentos mortificantes. Mesmo assim, é de encantadora poesia o episódio do enterro da velhita que, mesmo vitima inocente do erro do marido; e sofrendo a tortura da saudade do filho pequeno desaparecido, nunca perdeu a virtude da hospitalidade e da solidariedade, merecendo aquela demonstração pura e sincera de gratidão da comunidade pobre.
5. Como literatura e história se articulam neste conto? De alguma Nota: forma ele auxilia na preservação da história do Rio Grande do Vide “Qual foi o destino de Binga Cruz ?”,no livro de Mário Mat- Sul? Como? tos Contos Tropeiros e Outras Narrativas , pag. 112, Editora Fi, lançado e distribuído pela Livraria Vanguarda na 42ª.Feira do Não se trata de “preservar” a História do Rio Grande dos Sul, mas Livro de Pelotas, 2014. antes de tudo vê-la com espírito critico numa leitura moderna e aproveitar suas lições: 4. As narrativas que compõem os “Contos Gauchescos” apresentam elementos trágicos e dramáticos, geralmente abordando grandes batalhas travadas em território gaúcho. Entretanto, Lembremos a lição de Walter Benjamin - a História tem de ser “Penar de Velhos” vai na contramão da maioria, visto que exibe lida “a contrapelo”. Daí que Simões, para denunciar os erros e um enredo linear e pouco relevante para a história sul-rio- consequências da educação gaúcha tradicional, cria na sua grandense. Na sua opinião, qual a relevância deste conto para o arte uma situação-limite de seus personagens, que não deixa de ser fruto de sua experiência vivencial. O valor da Literatura reacontexto geral do livro? lista na comunicação, é que a sua matéria prima informativa não é acadêmica, compõe-se das vivências (emoções) humanas, capazes de produzir conhecimentos inesquecíveis. A relevância do conto para o contexto geral do livro destaca-se pela originalidade, justamente em sua pré-modernidade – não em preservar, mas em contestar - uma tradição pedagógica Notas: negativa do RGS, do Brasil e do Mundo. a) Realmente a temática do conto não segue a linha épica do gaúcho guerreiro defensor de nossas fronteiras. Se não é relevante para a história militar, não deixa de sê-lo para a história educacional. E confirma o pré-modernismo de Simões Lopes quando não preserva, mas ao contrário, contesta uma tradição negativa – a educação pelo castigo físico. b) No passado do Rio Grande, quando a maioria das famílias residiam no campo, a educação dos filhos comportava por assim dizer, uma divisão do trabalho. O pai, quase sempre ocupado no trabalho externo, jogava a maior carga educativa para a mãe, escrava do lar . Esta geralmente procurava suprir o inevitável despreparo pedagógico com as improvisações do amor indulgente. E, quando superada pelas desobediências das crianças, é que recorria ao pai., que deveria representar o amor exigente.. Este, por absoluto desconhecimento pedagógico, convivendo com o regime patriarcal e a vigência da escravidão negra, praticava com os filhos a autoridade pela distância, e, nos extremos, o castigo físico – a cinta, o relho ou a vara de marmelo. O mestre-escola, quando o havia, também consagrava a mesma tradição, com a famosa palmatória e outros castigos humilhantes c) Eu mesmo, recordo haver apanhado 2 surras, aos 2 e aos 6 anos (ambas injustas e míopes, mas bem intencionadas), de meu querido e saudoso pai, então um profissional liberal em Pelotas, ex-capitão-guerreiro das forças de de Zeca Neto, saído de família de estancieiros em Canguçu e que aos 55 anos, voltou a adquirir terras por compra e por herança. Com toda probabilidade também, João Simões Lopes Neto, quando pequeno, deve ter tomado seus “corretivos”, do pai Catão Bonifácio Simões Lopes. Embora pudesse até ter sofrido injustiças, não deixou de amar o pai, seu ídolo, a quem dedicou com saudade os Contos Gauchescos. O amor permaneceu, não por que as surras fossem certas. mas porque compensadas pela maioria das demonstrações de amor e proteção, mais tarde confirmadas na amizade madura e duradoura. d) A paixão quase obsessiva de Simões em vida pela atividade educativa, atestada pelas suas palestras e conferências, pelos livros como Terra Gaúcha e Artinha de Leitura, - deve tê-lo inspirado a transformar em Arte, nas metáforas poéticas de Penar de Velhos, a sua inconformidade com a incivilizada pedagogia dos castigos físicos. Em Penar de Velhos, os momentos vivifican-
1)Atuando como agrimensor nos anos 40, em São Lourenço e Encruzilhada do Sul, conheci um pai já viúvo , R.R., que tratava os filhos, mesmo depois de homens feitos, como escravos. Dos três filhos, os dois mais velhos reagiram saindo de casa. O terceiro entretanto, humilhado pelo pai - que chegava ao ponto de obriga-lo a lavar-lhe os pés, - caiu em profunda depressão, Depois de tentativas frustradas, . conseguiu suicidar-se com um tiro na cabeça. De propósito havia se debruçado na beira do poço para tombar dentro do mesmo.. 2) Outro filho que saiu de casa foi um cunhado e primo meu, F.M., que vive e reside hoje em Porto Alegre casado e pai de dois filhos , também já casados. No tempo de sua adolescência, até por mudar de voz era alvo de implicância dopai,. Terminou fugindo de casa :,entrando no quartel ,fez-se homem e venceu na vida. Nunca voltou a ver o pai até sua morte, não por ódio, mas por constrangimento mutuo. Seu pai era um pequeno fazendeiro, inteligente, sensato e sofrido, pessoa dada à leitura. Nada disso o impediu de projetar suas inseguranças e seu atavismo no filho mais novo. Aqueles tempos, bem mais recentes que os de Penar de Velhos, ainda eram tempos difíceis... 6. Como o regional e o universal dialogam neste conto? As manifestações de amor representadas nele (pelo animal e pelo filho) auxiliam na compreensão deste diálogo? A filosofia dialética ensina que “o particular contém o geral. No Rio Grande do conto Penar de Velhos, ainda era amplamente vigente a tradição ”pedagógica” dos castigos físicos. Na época, os “castigos pedagógicos” também eram tradição comum a todo o mundo civilizado . O regional , pois, refletia o universal. O geral estava presente na essência do particular. a) Assim sendo, o conto Penar de Velhos contribui para a modernização da educação, ao propor um novo olhar para as relações entre educadores e educandos. Nota: Sabe-se que no Japão desde cedo as crianças são tratadas e respeitadas como adultos. Não obstante, as pressões competitivas e respectivas cobranças têm causado suicídios entre estudantes. Tais exageros da educação japonesa indicam que a sua meta não é a felicidade humana, mas a conquista da supremacia. na ascensão social , entre nós conhecida como a famigerada Lei de Gerson – levar vantagem em tudo...
b) Na resposta à Questão n. 2, item b, já sugerimos a relativização do “amor ao cavalo” como suposto móvel da explosão de cólera do velho Cruz. É provável que na ocasião do conto, o estancieiro Cruz já não comparecesse mais às lides campeiras, delegando-as aos serviçais. É também lícito imaginar-se que no máximo, o estancieiro acomodado se limitasse a pequenos passeios no Picaço - visitas a amigos, ida a carreiras, etc. Pelo que se deduz, a forma física do Picaço era de um animal semiocioso, sub-utilizado. Assim sendo, a imagem afetiva do cavalo para o velho Cruz, não seria mais aquela de um fiel companheiro de épicas batalhas ou de memoráveis façanhas campeiras, mas tão somente de um objeto de estimação, uma prova simbólica da amizade e estima dada a ele por outro estancieiro seu colega e amigo. A beleza e o brilho da estampa do animal era outro símbolo exterior de status. Todos esses requisitos simbólicos – totalmente incompreensíveis para o garoto, ainda com a ideia abstrata de símbolo em formação incompleta na mente - não teriam força em, Binga para fazê-lo recuar no uso do “cavalo do papai” .Nem tinha ele experiência campeira suficiente para prever a vulnerabilidade física do animal de cocheira destreinado (Um “compositor” de parelheiros o teria desaguaxado e adelgaçado com suadouros seguidos de banhos diários para queima gradual das gorduras e enxugamento da água dos tecidos , Os exercícios diários seriam também resultantes em flexibilização muscular. Tais são as condições indispensáveis para um cavalo mantido preso poder resistir aos esforços violentos - coisa que o animal “pegado do campo ”curiosamente suporta sem maiores crises físicas.). c) Vemos portanto que, em termos pedagógicos, não há como falar-se no conto, em um diálogo entre o regional e o universal. Ambos os aspetos se igualam justamente na falta de diálogo entre o pai e o filho, Ambos partiam de visões diferentes e inconciliáveis na distância recíproca - como já descrito no item anterior. 7. A temática central dos contos simonianos gira em torno da violência, ligada às ações dos homens. Em “Penar de Velhos”, esse assunto é abordado quando o patriarca, na perda do cavalo, provocada pelo seu filho, decide puni-lo violentamente, sendo esta uma atitude normal dentro do contexto no qual as personagens estavam inseridas. Podemos entender que a crítica social de Simões Lopes, neste conto especificamente, está relacionada à naturalidade que a violência era tratada no meio rural? Seria simplismo ligarmos a pedagogia dos castigos físicos somente aos hábitos das matanças de gado herdados desde o tempo da “courama”. Há que levar-se em conta também o estilo autoritário das lideranças nas guerras de independência na América e nos países da Europa, o mandonismo dos senhores de escravos e as hierarquias burguesas na cidade e no campo, de viés patriarcal, como o coronelismo no império e república. Tudo isso também contribuiu para gerar nas famílias e escolas, superestruturas autoritárias. Nota:
08. Quais outros aspectos permitem que notemos a crítica simoniana? A critica simoneana manifesta-se em vários outros dos contos gauchescos, notadamente em Trezentas Onças (a hipótese de Blau Nunes ser julgado ladrão por ser pobre) o Negro Bonifácio (a falsa identidade construída copiando o autoritarismo castilhista, com lastro na valentia de taura) Os cabelos da China (o castigo -vingança do pai, criando um feitiço contra a filha que não pôde educar) No Manantial (a falta de limites do Chicão, por viver xucro como animal desajustado da comunidade) Contrabandista (a indulgência de Jango Jorge ao capricho consumista da filha), etc, etc. 09. É possível entender a rebeldia de Binga como uma subversão à construção identitária imposta pelo meio social ao qual a personagem está inserida? A rebeldia de Binga não é uma “subversão identitária” – é fruto da própria formação espontânea da identidade gaúcha libertária no meio ambiente pampiano. Por isso – como tudo o mais que faz da juventude uma camada revolucionária na sociedade – subverte os falsos valores anticomunitários, postiços na tradição. 10. Na sua opinião, qual é a importância do narrador – Blau Nunes – neste conto específico? Blau Nunes, o narrador, exerce no conto o papel de “eu testemunha”, oculto e oniciente. Contudo apresenta os fatos do ponto de vista da comunidade, em tom compassivo e solidário. Teve um fim que nunca se soube...Pobrezinho!...Tudo era várzea lisa para aquela alminha de gaúcho!.....Aí o velho andou mal...Qual! No peito do gauchinho não cabia a vergonha daquele guascaço do rabo-de-tatu, que caia-lhe em cima , se ele não foge...E sempre buenaça; mal chegava um andante, mandava logo um piá levar-lhe um mate...E não havia hospe que tivesse comido daquela mesa ou dormido naquele teto, que não desejasse ser ele que pudesse um dia topar o guri desguaritado e trazê-lo para o colo que esperava sempre e ..Pois desde a estância até o cemitério.. – umas quantas léguas – o caixão veio sempre à mão... Aí vi mais de um gaúcho colmilhudo manoteando nas lágrimas que dos olhos lhes caiam, grandes e claras, como as gotas d´água que caem do cartucho dos caetés.. Nem um tambeiro saiu para um afilhado!....Eu desejava que ele aparecesse só por causa do padre gringo!...Que sumanta o guri lhe não havia de encostar!...E por Deus e um patacão!...Eu dava as guascas e ainda ajudava a atar!...Ora se não!...
COMENTÁRIO FINAL DO ENTREVISTADO
No conto Penar de Velhos, verifica-se a atuação de duas forças ”modernas” desestabilizadoras da tradição: a) a juventude de Em 1951, tempo do cinema preto e branco, o filme Milagre em Binga, inconformada com velhos falsos valores; b) a ação Milão, obra prima de Vitório de Sicca apresenta a cena em que “abutreira” do padre gringo, distorcendo os bons valores tradicio menino órfão criado pela avó é flagrado pela velhinha no onais. momento em que, desastradamente deixa cair no chão a garrafa do leite. O liquido se espalha numa mancha branca comprida no chão escuro. O que faz a velhita? Sorrindo, pega a mão do atemorizado menino e o conduz a pular por cima da faixa de leite, como a brincar de amarelinha ou dançar uma chula. Essa cena vivificante inesquecível, que coincidia na Arte com o despertar democrático da humanidade do após segunda guerra mundial, ,marcava para mim o inicio do fim das pedagogias truculentas.
“JUCA GUERRA” OU COMO DEVE VIVER E MORRER O GAÚCHO
Contos gauchescos, de João Simões Lopes Neto, funciona como uma espécie de decálogo, ou bíblia, do verdadeiro gaúcho, através de narrativas exemplares, que são como referências ao comportamento ideal daquele ser humano em sociedade. Neste sentido, a obra se organiza num conjunto de narrativas duplamente enquadradas: o escritor João Simões apresenta ao leitor/ouvinte o personagem Blau Nunes e este, por sua vez, assumindo a palavra, narra e relembra acontecimentos pretéritos, por vezes emprestando voz aos personagens envolvidos naquelas ações. Observe-se que, neste sentido, a obra literária não corta seu vínculo com a narrativa oral original, de modo a transferir ao texto literário, mais formal e mais frio, a emocionalidade da narrativa primeira. O torneio da frase, assim, sem perder a característica da língua culta, permite-se licenças da entonação popular, sem que a mesma surja como uma externalidade ao texto, pois se trata da fala dos personagens que se colocam em situação de igualdade entre si e para com o narrador. O leitor, então, torna-se também ouvinte, o que dá uma dinâmica específica ao texto, prática que será retomada, por exemplo, décadas depois, pelo Guimarães Rosa de Grande sertão: Veredas¹, na medida em que cede a palavra ao narrador, Riobaldo Tatarana, que narra suas memórias e acontecimentos pretéritos, por ele vividos, ao ouvinte letrado, oriundo do mundo externo ao do narrador, mas que não se permite nenhum estranhamento quanto à linguagem oralizada e regionalizada utilizada por aquele narrador, na medida em que ele, ouvinte (e com ele, o leitor) adentram naquele outro universo e com ele acabam se identificando. Blau Nunes é apresentado como o genuíno tipo criollo riograndense, o que nos coloca uma primeira questão: a significação deste termo, criollo: o escritor não se preocupa em explicitar tal significado. Mas, no correr das narrativas e, sobretudo, com a ajuda de um outro texto, presente em coletânea diversa, que é o das lendas, então ficamos sabendo ser Blau Nunes neto de uma índia. O criollo aqui referido, então, ganha o claro sentido de um mestiço, resultado da relação entre uma índia e um homem branco. O mesmo ocorre, por exemplo, com o personagem-chave do romance de Erico Verissimo, a trilogia O tempo e o vento², quando o Capitão Rodrigo refere-se a si mesmo como filho das macegas. Ao mesmo tempo, na abertura da obra, temos um episódio exemplar de como ocorriam tais aproximações, quando a índia que foi estuprada está a dar à luz: pela narrativa pretérita que ali se apresenta, de passagem, sabe-se que a índia sofreu violência sexual de algum estrangeiro, de onde surgirá a figura de Pedro Missioneiro, de certo modo o fundador da gauchidade, segundo a mitológica e fundadora narrativa de Verissimo. Os dezenove textos reunidos em Contos gauchescos apresentam-se num conjunto vário, que assim se pode distinguir: contos morais, ou exemplares, que estabelecem os modelos de comportamento do gaúcho ideal, como “Trezentas onças”, “Correr eguada”, “Contrabandista”, etc., até o explícito “Artigos de fé do gaúcho” que, então, ganha sentido em ter sido agregado a esta coletânea, sem parecer um material artificial e estranho ao conjunto. É que, assim lido, ele funciona como uma espécie de síntese das coisas que se havia narrado anteriormente; contos de enredo, ou contos de ação, em que se desenvolvem episódios isolados da vida cotidiana da região pampeana; às vezes, são simples anedotas ou causos, com o que se antecipa, de certo modo, o último trabalho do escritor, os Causos do Romualdo³, como “Deve um queijo” ou “O mate do João Cardoso”; por fim, temos os contos históricos: se, nos dois primeiros blocos, Blau Nunes funciona como narrador que testemunha os acontecimentos e os recorda, neste ele é o narrador mas também o agente. São exatos três textos, distribuídos aparentemente de maneira aleatória pelo livro mas que, se destacados e agrupados entre si, seguem rigorosa seqüência histórica: “O anjo da vitória”, “Duelo de farrapos” e “Chasque do imperador”. “O anjo da vitória” refere-se à batalha de Ituzaingó, quando o Brasil, derrotado pelas forças nacionalistas uruguaias, será obrigado a reconhecer, na seqüência, a independência da antiga Colônia Cisplatina. Blau Nunes é um menino que acompanha um tio.
Morto o guerreiro, o menino salva-se, embrulhado nas dobras do poncho. A datação permite ter clareza quanto à idade e à nacionalidade do personagem narrador. Não bastara isso, a leitura do texto “Salamanca do Jarau”, que se encontra no volume das Lendas do sul, dirime quaisquer dúvidas que se possa ter. Aliás, já me detive atentamente nesta questão, em trabalhos anteriores: sempre me causou curiosidade o fato de a coletânea de lendas constituir-se de 14 textos, mas só três deles terem sido desenvolvidos e explorados literariamente pelo escritor, diga-se de passagem, de maneira exemplar: “Mboitatá”, “A salamanca do Jarau” e “Negrinho do pastoreio”. Já mostrei que o historiador João Simões Lopes Neto teve este lampejo admirável de compreensão de que estes três textos, na verdade, poderiam funcionar como uma definitiva síntese da formação e da constituição da civilização sul-rio-grandense: “Mboitatá” é a transcriação literária de uma lenda indígena; “O negrinho do pastoreio” refere a presença africana em nosso território; e “A salamanca do Jarau” nos apresenta a admirável síntese da miscigenação entre a cultura árabe e ibérica, transladada para o território sul-americano, através de colonizadores espanhóis e portugueses, fossem eles os guerreiros, fossem eles os sacerdotes jesuítas. O texto está marcado por estas referências históricas, direta ou indiretamente apresentadas. Diga-se, também, de passagem, que “A salamanca do Jarau” é o único desses três textos escritos em primeira pessoa, dando-se a palavra e identificando-se o narrador, que é o mesmo Blau Nunes dos contos gauchescos. Os outros dois textos estão desenvolvidos em terceira pessoa, com um narrador onisciente, mas seletivo, o que o coloca como um narrador homodiegético. Blau Nunes refere, logo na abertura do texto, sua avó indígena, afirmando que isso tem a ver com uma tradição de cerca de duzentos anos. Ora, sabemos que as missões começaram a ser fundadas a partir de 1624, quando os jesuítas foram expulsos pelo bandeirante Raposo Tavares da região do Guará Mirim, hoje Mato Grosso. Os sacerdotes, fugindo em direção ao sul, pelo rio Paraná, em certa altura resolvem se re-estabelecer e re-fundar novas cidades em ambas as margens do rio. Assim, surgem os chamados Sete Povos das Missões, no território sul-rio-grandense, e outros 23 aldeamentos, em áreas hoje pertencentes ao Paraguai e à Argentina. Ora, o Jarau fica relativamente próximo a esta região, e os cálculos que fazemos nos mostram a cuidadosa, embora indireta reconstituição que o escritor faz. Na narrativa de Blau, ele, enquanto peão desempregado, dirige-se para aquela região mais distante, à procura de trabalho e assim, tem a oportunidade de conhecer/reviver a antiga lenda. Uma leitura atenta mostra-nos que os castigos infringidos ao sacristão pecaminoso adéquam-se perfeitamente às torturas praticadas, ainda naquela época, pela Inquisição da Igreja Católica. Referenda-se, sobretudo, o cálculo de datação que propomos, pois pode-se imaginar que tais episódios ocorram a Blau Nunes num período entre a chamada Grande Revolução (a Revolução Farroupilha, de 1835 a 1845) e a Guerra do Paraguai (de 1864 a 1870). Blau já seria um homem adulto. Perambulando pela província, à procura de emprego (a crise gerada pela revolução certamente levou-o a isso) chega a um território mais distante do que aquele da geografia do sul da província em que se situa Pelotas, a partir de onde se desenrola o conjunto principal de acontecimentos referidos pelos textos. Mas não se deve esquecer do alerta inicial do narrador: Eu tenho cruzado o nosso estado em caprichoso ziguezague. Já senti as ardentias das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Morim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana; molhei as mãos no soberbo Uruguai; tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá (...) Com estes três textos do volume de contos, assim, Simões Lopes Neto, não apenas sintetiza a história do personagem Blau Nunes, quanto liga a sua experiência de vida a três acontecimentos fundamentais da história da província: as lutas cisplatinas; a revolução intestina e o envolvimento do Rio Grande com a guerra desenvolvida pelo império brasileiro. Neste sentido, Blau Nunes se coloca, com clareza, como uma espécie de símbolo do Rio Grande do Sul. Vítima ingênua no primeiro episódio; testemunha valiosa no segundo (a disputa entre Bento Gonçalves e Onofre Pires) e participante ativo no terceiro (enquanto chasque, isto é, mandalete, correio de confiança do imperador, quando este veio ao Rio Grande do Sul para assistir à rendição dos paraguaios, no cerco de Uruguaiana, tendo passado, dentre outras, pela localidade de Rio Pardo, que guarda anda hoje as marcas de tal visita. Teria ocorrido ali o episódio referido por Blau Nunes?) De qualquer modo, alguns dos momentos mais significativos da história do território mais meridional do país e que, de certo modo, também defi-
nem sua própria opção pelo pertencimento à nacionalidade brasileira, do animal agressivo, colocando-se a si mesmo e a sua cavalgadura como relembraria Mario de Andrade, muito tempo depois, são episó- como anteparos capazes de sustar o arremesso do animal. Salvo o homem caído, o peão ileso, descobre-se, contudo, que o animal que dios os quais Blau Nunes testemunho e de que participa. este montava tornou-se vítima do ataque e por isso deverá ser sacrifiComo se sabe, o modelo mais imediato para a obra de cado. O conto relata, em detalhes, a maneira pela qual ambos os Simões Lopes Neto seria a coletânea de Luís Araújo Filho (LAF), denomi- homens desdobram-se em atenções para o cavalo, até seu abate. nada Recordações gaúchas (1905), mas ao contrário desta, que é apenas uma coleção de histórias mais ou menos anedóticas, os relatos de Simões Lopes Neto se apresentam de maneira seletiva, cumprindo uma função bem mais ampla que a de simples rememorações. Este é o motivo pelo qual a obra literária de João Simões Lopes Neto vai bem além da perspectiva regionalista: é que, a partir dos elementos localistas ele alcança uma universalidade que por certo o outro escritor nem sequer almejou. A literatura do escritor pelotense exige uma dupla leitura, em camadas diferenciadas de significação, sendo a mais importante justamente aquela que projeta uma interpretação mais ampla e abrangente. Registre-se que os acontecimentos rememorados por Blau Nunes ocorrem num momento certamente anterior ao período da Grande Revolução, na medida em que ele refere, explicitamente, o fato de os campos serem ainda indivisos. Sabe-se que, após 1845, quando a administração da província é entregue ao então Duque de Caxias, uma de suas tarefas será justamente a de registrar as propriedades e definir suas divisórias, de modo a que o governo possa exercer a necessária cobrança de impostos e o controle contra o contrabando, tema, aliás, de uma das narrativas mais fortes da obra. Mas ao contrário de Alcides Maya, seu contemporâneo, João Simões Lopes Neto não guarda nenhum tom saudosista dos tempos antigos, como o autor de Ruínas vivas, Tapera e Alma bárbara. Lopes Neto não idealiza o passado nem os seus tipos, e isso porque, ao contrário de Alcides Maya, encontra-se junto do espaço e sente-se ligado ao tempo relatado e rememorado: de certo modo, Blau Nunes é a extensão daquele tempo e daqueles lugares, que se encontram na sua própria persona. É sob tal ótica que se pode ler o conto “Juca Guerra”, de que devo me ocupar agora. Diz-se que o relato estaria vinculado a fato real, ocorrido com o pai do escritor, envolvendo um tal de João Cunha, natural da região de Capão do Leão, em termos da geografia atual. Observe-se a introdução do texto: “O Juca Guerra foi muito meu conhecido, desde guri...” (p. 113) A frase cumpre dupla função: ela estabelece uma rememoração de passado distante e, ao mesmo tempo, de proximidade, mais, de intimidade entre o narrador e o personagem que centralizará a ação narrada. Mas, ao mesmo temo, distancia -se de um relato autobiográfico. Poderia ser catalogado como um conto de ação, mas, ao mesmo tempo, ganha sentido se for lido enquanto um conto moral, para o que colabora especialmente a introdução, que assim se desenrola: é a partir da leitura de um jornal que se evoca os acontecimentos pretéritos. Portanto, é a partir do espaço da cidade e tendo como referência o mundo ilustrado das letras – através de relato trazido nas páginas do periódico, talvez como um fait divers que o narrador se lembra do acontecido. E o relato servirá para traçar uma comparação entre o feito celebrado pelo periódico e aquele outro, anônimo, que se perdeu na poeira do tempo, embora, para o narrador e testemunho do acontecimento, seja aquele muito mais significativo do que este. O narrador sente-se especialmente provocado a rememorar o passado pelo fato de o herói contemporâneo ter sido agraciado com uma medalha, como reconhecimento de seu feito, enquanto o herói do passado não teve medalha alguma, satisfazendo-se, apenas, com o reconhecimento do patrão a quem salva a vida, ao colocar a sua própria em risco e, sobretudo, ao sacrificar seu cavalo para enfrentar o touro que se jogara sobre o homem caído ao chão, cavalo este que vem a morrer, graças às feridas provocadas pelo touro enfurecido. Esta marginalidade e esquecimento a que fica votado o personagem, contudo, também atinge ao próprio narrador: “Pobre de mim!...´stou vendo que hei de morrer do mesmo jeito, como um pisa-flores da cidade, como bicho de galinheiro!...” (p. 113).
Num corte rápido, refere-se, então, a morte de Juca Guerra: numa cama de hospital, inerte, envolvido por mezinhas receitadas pelos médicos que tentam, em vão, salvá-lo, o que gera a observação final e valorativa do narrador: “morrer como foi, aperreado em cima da cama, o corpo besuntado de unturas e a garganta entupida de melados e pozinhos dos doutores” (p. 113), o que contrasta com o ideal de morte para um verdadeiro gaúcho: “Aquilo era prá ficar na coxilha, picado de espada, rachado de lançaços” (p. 113). A figura de Juca Guerra fora antes introduzida mediante uma série de adjetivos que o qualificavam altamente como alguém valente, alegre e destemido: “Moreno, alto, delgado; olho preto; nariz de homem mandador; mãos e pés de moça; tinha força como quatro; bailarino, alegre, campeiraço; e o coração devia ser-lhe mui grande, devia encher-lhe o peito todo, de bom que era” (ps. 113-114), em síntese, “gaúcho daqueles...destorcido, bonzão!” (p. 113). O próprio apelido, Juca Guerra, indica sua propensão à ação, sua vinculação a um grande destino. Desenha-se, deste modo, a figura valente, mas disponível, do peão que, na agrura do patrão, não titubeia em colocar em risco sua própria vida e, em última análise, sacrificar a própria cavalgadura, para salvar o outro. Tendo-se em conta o valor moral que o gaúcho empresta ao cavalo, bem se pode aquilatar a decisão de Juca Guerra. Não obstante, não lhe caberá uma morte honrosa: não terá nem mesmo a sorte de ser acompanhado por amigos ou ser pranteado pelos mais próximos, como ocorrera com seu cavalo. Juca Guerra morre sozinho, às mãos dos médicos e das enfermeiras, numa cama, o que leva o narrador a indagar: “vancê assuntou bem no conto?” (p. 116). Ou seja: é como nos antigos contos infantis, de que sempre se deve extrair uma moral. Mas qual a lição a se tirar desta história, sobretudo se levarmos em conta o apodo do personagem, Juca Guerra? Por certo, o narrador pretende mostrar que até mesmo o mais valente dos homens não decide sobre seu destino. Mais que isso, não há uma relação direta entre as (boas) ações praticadas em vida e o desfecho desta mesma vida: cavalo e guerreiro morrem, como ocorre com todos os viventes mas, bem ou mal, teve melhor sorte o animal que o ser humano. Valeu, aqui, mais que a medalha, a comprovação das relações igualitárias e de irmanação que caracterizam a campanha e as lidas campeiras. É esta perspectiva moralizante que eleva os textos de João Simões Lopes Neto para além do simples texto regionalista, cuja característica seria a simples reprodução de peculiaridades locais, na perspectiva de Afrânio Coutinho, que continua, mostrando que, no regionalismo, o indivíduo é síntese do meio a que pertence; daí que interessa o geral, e não o particular; o local ao humano; o pitoresco ao psicológico, exatamente o contrário do que pratica João Simões Lopes Neto, cuja força do texto se origina exatamente da atenção que dá à individualidade, ao personagem, e não ao tipo. Se Juca Guerra pode ser generalizável, enquanto produto do meio, assim não ocorre necessariamente com seu comportamento e, sobretudo, com o enfoque a partir do qual se desenrola a narrativa: por isso se torna universal, porque seu comportamento ultrapassa o meio e o momento, para se colocar como modelo de humanidade.
No caso deste Juca Guerra, a passagem da morte do cavalo relembra outro episódio semelhante, este apresentado pelo romântico José de Alencar, de O gaúcho, quando João Canho prefere interromper a perseguição que enceta quando sua égua, esgotada, vai morrer. Mas esta passagem é episódica. A narrativa de Alencar prossegue em seguida, porque seu objetivo é outro. No caso do conto de Lopes Neto, a morte do cavalo, cercado pelos dois homens, opõe-se claramente à morte do próprio Juca Guerra, abandonado e solitário. É deste contraste, que constitui todo o nó do enredo da narrativa que nasce a perspectiva ética da mesma. Caberia a pergunta final: porque Juca Guerra era apenas um peão ou porque esta é a condição humana? O escritor silencia e, assim, cada um de nós poderá tirar suas próprias Em síntese, Tandão Lopes, o proprietário da estância e ilações, o que torna o texto ainda mais rico em suas sugestões abertas patrão, trabalha ao lado dos peões na marcação do gado. Aqui, te- para o leitor atento. mos, desde logo, a representação da pretendida democracia social que teria existido no cotidiano das propriedades sul-rio-grandenses. Num lance em que o homem tenta laçar uma rês, desequilibra-se e cai do cavalo, ficando, contudo, preso com o pé à sela, quando um touro dirige-se ao homem caído, com evidente risco de vida para o mesmo. Antonio Hohlfeldt É neste momento que o peão, com destemor, atravessa-se no caminho
RELÍQUIAS
T a l v e z e s t e s e j a u m tí t u l o q u e s e a p r o x i m e d a ideia presente no conto Artigos de fé do gaúcho , d e J o ã o Si m õ e s L o p e s N e t o , c o n t o – c o m t o d a s a s p r o b l e m á ti c a s q u e s e i n s e r e m n a s u a d e f i n i ç ã o , e s p e ci a l m e n t e p o r s e t r a t a r e m d e c o n s e l h o s o r i u n d o s de uma realidade campei ra gaúcha – que traz a n o ç ã o d e v í n c u l o c o m a l g o s a g r a d o d e u m a c u l tu r a que não é possível mais ser tocada em sua i ntegrali dade, apenas em lampejos de um passado. A relí q u i a r e l i g i o s a o p e r a n o m e s m o s e n ti d o . T e n t a a p r o x i m a r u m a v i s ã o d e m u n d o , u m c o n h e ci m e n t o d i s t a n t e d e u m a m a t e r i a l i d a d e p a l p á v e l . Cl a r o q u e e s s a v a l o r i z a ç ã o t a m b é m t r a z o j á c o n h e ci d o p r o b l e m a d a m i ti f i c a ç ã o d o g a ú c h o , d e v a l o r e s h i s t o r i camente si tuados para uma noção de atemporali dade e uni versalidade que antes de buscar a comp r e e n s ã o d a q u e l e ti p o h u m a n o a c a b a p o r l e g i ti m á l a e m u m a p l e n i t u d e i n q u e s ti o n á v e l . A p a l e s t r a d a p r o f e s s o r a M á r ci a I v a n a d e L i m a e S i l v a , r e a l i z a d a n o I n s t i t u t o J o ã o Si m õ e s L o p e s N e t o p o r o c a s i ã o d o e v e n t o c o m e m o r a ti v o d o ce n t e n á rios dos Contos Gauchescos, abordou este conto não como um “conto menor”, mas sim como uma produção importante, na qual se vi slumbram possi b i l i d a d e s d e l e i tu r a s e r e f l e x õ e s p o u c o e x p l o r a d a s p e l a c r í ti c a l i te r á r i a . D e n t r e e s s a s p o s s i b i l i d a d e s d e lei tura, a mais relevante é a aproximação com um tempo em transição, que já se faz estranho para os c o n t e m p o r â n e o s d e J o ã o Si m õ e s L o p e s N e t o n a s pri mei ras décadas do século XX. Pensar em uma transi ção, em um limiar cul tural , é postura necessária para que não sejam apenas exal tados aspectos f o l cl ó r i c o s o u r e g i o n a l i s t a s e m e n o s a i n d a p o s t u r a s t r a d i ci o n a l i s t a s a p a r ti r d e s s a n a r r a ti v a . O s c o n s e l h o s d a d o s p e l o v e l h o Bl a u N u n e s e s t ã o v i n cu l a d o s a u m o u t r o t e m p o e , co m o t a i s , d e v e m s e r v i s t o s como um cami nho contrári o, isto é, não como ditames para o tril har novos rumos, mas sim como retrosp e c ti v a d e u m a p a s s a d o q u e é t ã o d i s t a n t e e a o mesmo tempo tão próximo. D i s t â n ci a d a f o r m a d e p e n s a r e a g i r d a q u e l e s homens, estranhamento para com a forma de encar a r o m u n d o e s e m o v i m e n t a r d e n t r o d e s u a s i n co n s t â n c i a s , a o p o n t o d e n ã o s e r p o s s í v e l p e r c e b e r co m f a ci l i d a d e s e a s a b e d o r i a a l i c o n ti d a s ã o m e t á f o r a s o u s a b e r e s p r á ti c o s . P r o x i m i d a d e p o r m e i o d e u m a l i g a ç ã o c u l t u r a l e f a m i l i a r q u e a s n o v a s g e r a çõ e s nem percebem o porquê, nem entendem exatament e c o m o i s s o o c o r r e . Ar m a d i l h a s d e u m m o d e l o co n s e r v a d o r , a u t o r i t á r i o e p a t r i a r c a l ? Ce r t a m e n t e q u e si m, mas não somente isso! Os saberes, os provérb i o s , a l e r t a m p a r a u m t e m p o e m q u e o c o n h e ci mento sem força não era sinônimo de poder e que a f o r ç a , p o r s i s ó , a c a b a v a p o r s e t o r n a r v a zi a d e si gni ficado ao não apresentar formas de conví vio e de trânsi to entre os homens. O pri mei ro ponto a ser destacado é a experiência dos antepassados. O confli to com a cul tura liv r e s c a é c r i ti ca d o m a i s n o s e n ti d o d e v a l o r i z a r a q u i lo que se pretende afi rmar como importante do que p r o p r i a m e n t e d e s p r e z a r o s a b e r i n s ti t u ci o n a l i z a d o . É s a l i e n t a d o n o c o n t o q u e “ M u i ta g e n t e a n d a n o
mundo sem saber pra quê: vi vem porque veem os o u t r o s v i v e r e m ” e n q u a n t o q u e o u t r o s , c o m o Bl a u N u n e s , “ a p r e n d e m à s u a c u s t a , q u a s e s e m p r e j á ta r de para um provei to melhor”. Trata -se de uma exper i ê n ci a q u e d e c o r r e d a s v i v ê n ci a s , d e u m a i m e r s ã o q u e i m p e d e u m d i s t a n ci a m e n t o s u f i ci e n t e p a r a o p r o v e i t o m e n ci o n a d o . A s o b r e v i v ê n ci a d e c o r r e d e s s e p r o ce s s o d e v i v e n ci a r a r e a l i d a d e ci r c u n d a n t e , d e l a ti r a n d o o s u ce s s o i m e d i a t o . A p r e o c u p a ç ã o e m c r i a r u m m a n u a l – u m a “ l i v r e t a ” - e n f a ti z a t a m b é m esse ri to de passagem de uma era para outra, caracteri zando o a r g u m e n t o d e J o ã o Si m õ e s L o p e s N e t o d e r e c o n h e c e r , d e n t r o d a s c o n t r a d i çõ e s e i d i o s s i n c r a s i a s , c e r t o s s a b e r e s q u e t r a n s p o r t a m o l e i to r contemporâneo para um outro mundo. Vi nte e um conselhos, vinte e um saberes, vi nte e uma formas de conduta são apresentadas. Passam pelo trabal ho campei ro, envol vem a relação com u m a m b i e n t e s e l v a g e m q u e s e p e r s o n i f i ca n o t r a t o s o ci a l ( d e v i d o d e s t a q u e a o p a p e l d e s ti n a d o à s m u lheres, de total submi ssão ou mesmo de objeto de conquista e de manutenção da posse, ampliando o c o n c e i t o d e d o m a p a r a o s s e r e s h u m a n o s ). E e s s e s di tados – sim, porque acabaram por se inserir na cul tura de uma forma que são apropriados em várias si tuações – podem ser lidos em sua versão liter a l , p o i s a ca b a m p o r i n s e r i r o h o m e m ( o g a ú c h o ) e m u m p r o c e s s o d e i d e n ti f i c a ç ã o n o q u a l a s a ti t u d e s espel hadas naqueles comportamentos o ligam defi n i ti v a m e n t e à q u e l a r e a l i d a d e ; b e m c o m o d e f o r m a fi gurada para transcender o momento e abarcar o u t r o s t e m p o s e s i t u a çõ e s . O conto pode ser entendi do, dessa forma, tanto como os provérbios de uma "sabedoria campei ra" aproximando da perspecti va benjaminiana acerca do narrador como um sábi o, sendo relevada a quest ã o d o co n s e r v a d o r i s m o e d a p e r s p e c t i v a d e u m a s o ci e d a d e p a t r i a r c a l d o s é c u l o X I X – q u a n t o c o m o vi sões acerca de uma realidade decadente. Essa contradi ção não é apresentada com o intui to de o p t a r p o r u m a d e l a s , m a s a n t e s p e n s a r n e s s e e n tr e cruzamento, nesse uni verso novo que se descortina a p a r ti r d a s l e i tu r a s s e m p r e s s a , d a s d e s l e i tu r a s e relei turas, com a urgência desses momentos, visto que “A mai or pressa é a que se faz devagar”. U m a d e s s a s l e i t u r a s f o i r e a l i z a d a p o r E r i co V e r i s s i mo que incorporou na obra O Tempo e o Vento o s e u Bl a u N u n e s . A p e r s o n a g e m F a n d a n g o p o s s u i v á r i o s p o n t o s e m c o m u m co m a p e r s o n a g e m s i m o n e a n a . Am b o s p a s s a m p e l o s é c u l o X I X e a d q u i r e m o s saberes nos cenários das guerras e das lides camp e i r a s . O s a i n d a m e n i n o s Bl a u N u n e s e F a n d a n g o p a r t i ci p a m d a s b a t a l h a s e c h e g a m à i d a d e a v a n ç a da como sobreviventes antes de mais nada. Suas vi tórias são a liberdade das palavras que transmi tem sem pudor e sem recei o de objeções ou deprec i a ç õ e s , s e e x p o n d o e co n f r o n t a n d o o s s a b e r e s q u e os diminuem perante as suas próprias hi stóri as. S e o s á b i o Bl a u N u n e s c o m u n i ca a u m l e i t o r – p e r s o n i f i ca d o n a f i g u r a q u e o u v e e a n o t a o s c o n s e lhos – que esteja disponível , o interlocutor de Fandango é o seu “aluno” Licurgo Cambará. O neto do c a p i t ã o R o d r i g o h e r d a to d o u m u n i v e r s o v i n cu l a d o à hi stória da família e também se insere nas suas próprias contendas. Li curgo via, dessa forma, a nec e s s i d a d e d e a p r e n d e r o q u e F a n d a n g o ti n h a a e n si nar. A construção dessa personagem, pelo fato de E r i c o V e r i s s i m o a p r e s e n t a r u m n a r r a d o r e m t e r ce i r a
pessoa, acaba sendo apresentada de forma mai s completa ao lei tor. E é exatamente nessas complementações que é possí vel perceber a lei tura de Eri c o s o b r e Bl a u N u n e s , a l g u m a s v e ze s d e p r e ci a ti v a , m a s a p e n a s p a r a e n f a ti z a r a i n d a m a i s o d i s t a n c i a m e n t o d a c u l t u r a e r u d i ta d a q u e l a p o p u l a r e e m p í r i ca da qual era fruto: F a n d a n g o a c h a v a q u e o c o n h e ci m e n t o d a Ar i t m é t i c a n ã o f a zi a n e n h u m a f a l ta à s p e s s o as. Tinha uma teori a própri a sobre as quatro o p e r a ç õ e s . “ O h o m e m t r a b a l h a d o r – d i zi a e l e , pi scando o olho – soma; o preguiçoso di minui ; o s á b i o m u l ti p l i c a e s ó o b o b o d i v i d e . ” N u n c a frequentara escola, e no entanto era capaz de, numa passado d'olhos, di zer quantas cabeças de gado havi a numa tropa. Geografia? F a n d a n g o ti n h a t o d a a g e o g r a f i a d a P r o v í n ci a n a c a b e ça . D e s d e m e n i n o t e v i v i a v i a j a n d o , c o n d u zi n d o c a r r e t a s , f a z e n d o t r o p a s , e n ã o havi a cafundó do Ri o Grande que ele não conhecesse tão bem quanto as palmas de suas p r ó p r i a s m ã o s . S a b i a o n d e f i ca v a m a s a g u a das, onde os rios davam vau, onde havi a mel h o r p a s t o o u m e l h o r p o u s o . P a r e ci a n ã o e x i s ti r e m t o d o o t e r r i t ó r i o d o C o n ti n e n t e r a n c h o , e s t â n ci a , p o v o a d o , v i l a o u ci d a d e o n d e e l e n ã o ti v e s s e u m c o n h e ci d o . “ At é a s á r v o r e s e o s b i ch o s m e c o n h e c e m p o r o n d e p a s s o ” gabava-se ele. Certa vez no gal pão, meio por caçoada e mei o a séri o, um peão lhe pergunt o u : - P o r o n d e é q u e a g e n t e s a i p r a i r p r a ta l de Europa? Fandango olhou primeiro para a di rei ta, depois para a esquerda, fechou um ol ho, ergueu o braço na direção do norte e di sse com ar de entendedor: - Sai -se aqui di rei to por Passo Fundo. Eri co Verissimo também apresenta uma forma de lei tura para aqueles saberes enigmáti cos, aquel as expressões que fogem ao entendimento, como é o c a s o d e u m d i t a d o q u e “ F a n d a n g o r e p e ti a co m f r e q u ê n ci a n o i n v e r n o : ' G e a d a n a l a m a , c h u v a n a c a m a ' . U m d i a C u r g o p e r g u n t o u : - P o r q u e ' n a ca m a ' , Fandango? - Pra ri mar, hombre.” Ou ainda: “ - A pedra grande faz sombra, mas a sombra não pesa nada. Um dia o rapaz perguntou: - Que é que quer d i z e r i s s o ? - Qu a n d o v a s s u n c ê f o r m a i s v e l h o v a i c o m p r e e n d e r s e m n i n g u é m e x p l i ca r . Ag o r a é m u i temprano.” Essa explicação remetendo à maturidade i mpõe que a vi são de mundo nem sempre se expõe abertamente, cada momento possui a sua sag a ci d a d e e m i s t é r i o , c a b e n d o a o a c ú m u l o d e e x p e r i ê n ci a s d a r s i g n i f i c a d o e n ã o a p e n a s r e ti r a r o s e n t i do do que é falado/narrado. Também não é sem i n t e n ç ã o q u e F a n d a n g o g o s t a v a d e r e ci t a r o s v e r s o s q u e c o n ti n h a m u m a e s p é ci e d e ca r t a d e a p r e s e n t a ção do que considerava fundamental para sua identidade. Esses versos estão presentes na obra do C a n ci o n e i r o g u a s c a , d e J o ã o Si m õ e s L o p e s N e t o , o q u e r e l a ci o n a a i n d a m a i s d i r e t a m e n t e F a n d a n g o com o cenário gaúcho construído na narrati va de Simões Lopes:
E se duvidam perguntem À moçada do ri ncão. A parti r desse momento, na obra de Eri co Veri ssi m o , c o m e ç a u m a s e q u ê n ci a d o s s a b e r e s d o F a n d a n g o . Al g u n s n ã o p r e s e n t e s n o c o n t o A r t i g o s d e f é d o g a ú c h o , m a s o u t r o s r e p r o zi d o s d a m e s m a f o r m a , tai s como: Se encontrares um viajante na estrada com os arrei os nas costas, pergunta logo: “Onde fi cou o baio?” (10º) “Se tens pela frente viagem larga, não faças pular teu ca'alo. Sai no tranqui to até o primei ro suor secar; depois ao trote até o segundo; d a - l h e u m a l ce n o t e r c e i r o e t e r á s c a ' a l o p r o di a i nteiro.” (6º) Não te fies em tobiano, bragado ou melado. Pra água, tordilho. Pra mui to, tapado. Pra tudo, tostado. (9º) Doma tu mesmo o teu bagual . Não enfrenes e m l u a n o v a , q u e e l e f i ca b a b ã o . N ã o a r r e i e s na minguante, que te sai lerdo” (2º) “Cri a perto do teu olhar a potranca do teu andar” (1º) - Com mulher sardenta e cavalo passarinheiro – prevenia também – al erta, companhei ro! (13º) “M ulher, arma e cavalo de andar – lembravam el as – nada de emprestar” (11º) O u t r o s a r t i g o s d e f é e s t ã o d i l u í d o s n a n a r r a ti v a d e E r i co V e r i s s i m o , c o m o é o c a s o d o 8 º ( “ F a l a a o teu cavalo como se fosse a gente”) que, nas pal avras de Fandango, ficou da segui nte forma: “ - Mas Ca'al o é como gente. Uma pessoa tem seus dias b o n s e s e u s d i a s r u i n s , n ã o t e m ? P o i s c o m o c a 'a l o se dá o mesmo. Tudo é bom e tudo não presta.” De fato, a sabedori a de Blau Nunes e de Fandango poderiam completar vári os tomos; e sempre em c o n s t r u ç ã o . D e s t e p e q u e n o c o n t o d e J o ã o Si m õ e s Lopes Neto, foi possível a Eri co Veri ssimo cri ar um uni verso dentro da sua narrati va que abrange a hi stóri a do Rio Grande do Sul , um universo complement a r , f u n d a m e n t a l p a r a e v i d e n ci a r a s p e c u l i a r i d a d e s da formação cul tural do gaúcho. Enfim, por ser esta cul tura tão ri ca quanto complexa e contradi tória, é n e c e s s á r i o a p o n t a r o l á p i s p a r a c o n ti n u a r u m p o u c o mai s...
Índio velho sem governo Minha lei é o coração. Quando me pi sam no poncho Descasco logo o facão,
João Luis Pereira Ourique
Culturalmente, essa denominação de centauro
SAGA E SINA
dos pampas4 se enraizou no imaginário de uma sociedade que a vê como representação de si
O conto Batendo orelha, que encerra a publica- mesma. A ideia de um poder [quase] ção de 1912¹, realiza uma aproximação entre homem e ani- sobrenatural, de uma definição simbólimal em um percurso de mazelas e sofrimentos ao longo da ca que coloca o indivíduo acima dos vida de ambas as personagens. Essa aproximação ocorre nos demais, é muito sedutora e marca uma encontros e desencontros dos seus trilhares, evidenciando uma supervalorização de si. Mesmo quando épica negativa, ou melhor dizendo, uma sucessão de eventos essas visões parecem estar distantes, a tão comuns quanto a insignificância dos próprios seres. O ca- retomada das ideias primordias que ráter mítico do gaúcho não se faz presente nessa narrativa de sustentaram sua construção e vincula-
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forma direta, mas podemos abordá-lo a partir da imagem do ção às identidades culturais do gaúcho acabam por estabelecentauro – que ficou ligada de forma definitiva ao tipo huma- cer uma conexão, uma articulação que não precisa ser explino do gaúcho em sua relação com o cavalo – e em como cada. esta imagem oportuniza uma leitura do conto que não sus-
E se pudéssemos fazer um raio X desse centauro,
tenta as visões positivas e românticas sobre o gaúcho. Perce- se fosse possível que essa criatura de fato existisse na sua conbemos, assim, o contexto específico da forma-
dição biológica e não apenas simbóli-
ção cultural gaúcha pela desestruturação e
ca? Uma interessante possibilidade de
não pela afirmação.
imaginarmos a partir da nossa pers-
A saga, que é um gênero em pro-
pectiva é uma imagem de uma expo-
sa, de caráter épico, que nomeia as antigas
sição do International Wildlife Museum
narrativas e lendas escandinavas, é reeditada
que apresentava esqueletos de seres
como uma epopeia da desumanização. A ideia
mitológicos, dentre eles, o centauro.
de desumano abrange essa indissociabilidade
Esse olhar que desperta a curiosidade,
entre homem e cavalo, visando dar um tom de
pensando no cenário da cultura gaú-
desconforto ainda maior ao comum da degradação, pois não desejamos – e nos solidariza-
cha, nos remete mais diretamente ao 7
imaginário de nos vermos estranha-
mos igualmente com – o destino e o sofrimento do animal. A mente representados.
E é aqui nesse ponto que podemos
sina, por sua vez, que acompanha os passos de cada um, po- destacar a separação desse ser, da sua percepção de individe ser compreendida como um fardo que partilhamos como dualidade e de pobreza que cercam homem e animal, gaúsociedade e que não percebemos no cotidiano, conforme cho e cavalo, no conto de João Simões Lopes Neto. Não há nos é apresentado no final do conto: “O engraçado é que há um lamento no conto sobre uma perda histórica de toda a gente que se julga muito superior aos reiúnos: e sabe lá quanto sociedade e buscando culpados e respostas para essa mazelas, como ocorre na trilogia do gaúcho a pé, de Cyro Martins,
reiúno inveja a sorte da gente...”.²
Dentre algumas imagens que tornam tão famili- mas sim uma história e um percurso que fecha um ciclo. O ar o mesmo compasso do percurso de homem e animal, po- progresso não é o vilão que empurra o tipo humano para as demos apresentar a figura do gaúcho e do centauro, quais evidenciamos uma fusão entre os dois seres:
nas cidades e nem são os novos valores culturais que esquecem a ciência e os saberes do gaúcho. O que está em jogo, nesse conto, é um olhar melancólico sobre o momento histórico vivido, um sentimento de perda que é representado pelo homem e pelo animal e enfatizado pelo potencial de ambos: “Nasceu o potrilho, lindo e gordo, filho de égua boa leiteira, crioula de campo de lei. * O guri era mimoso, dormindo em cama limpa e comendo em mesa farta”8 O que torna o conto impressionante é a sincro-
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nia nos passos do guri e do potrilho. A infância é apresentada como uma ruptura: para o potro, a marca de ferro em brasa;
para o guri, a palmatória. O momento em que os hormônios dade construída a partir da força e da sujeição do outro... a de ambos afloram na busca pela parceira culmina com a eles sobrou o lado mais fraco da corda. castração literal do potro e a simbólica do rapaz, representa-
Vistos em suas individualidades, em suas fraque-
da pela incorporação no regimento de cavalaria. As dificulda- zas (pois quando estavam juntos conseguiram ao menos sudes de adaptação de ambos enfatizam suas discrepâncias portar as adversidades), não há como negar-lhes um olhar de com o modelo de sociedade em que estão inseridos. No caso, solidariedade. A imagem de um animal abandonado nos choobviamente, o rapaz se volta para uma noção de liberdade c a : selvagem que o potro tem como instinto, o que torna mais clara a insubordinação e insubmissão do jovem soldado às regras da caserna. O único diálogo – se podemos chamar dessa forma – é o que antecede o encontro do jovem com o cavalo: “- Chê! Enfrena!... Foi o reiúno que caiu pro recruta.”9. O próprio conto apresenta uma marca (um travessão) para enfatizar essa mudança (antes as ações de um e outro eram separadas por um asterisco [*] que é retomado quando da separação dos “dois parecidos, o bicho e o homem. E a sorte levou os dois, de parceria, pelo tempo adiante.”10. A separação entre eles tem o interessante aspecto de uma retomada de um dos artigos de
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Para representar o rapaz, uma fotografia de um mendi-
fé de forma indireta: “Fala ao teu cavalo como se fosse a gen- go ou de um morador de rua acabaria por se tornar um exerte”11. O cavalo não merece nenhuma consideração, ou seja, cício banal e uma tentativa empobrecida de reproduzir a desele não tem nenhum reconhecimento, situação enfatizada na graça humana. A arte nesse ponto pode nos oferecer algo falta de agradecimento aos serviços prestados pelo animal: para refletirmos. Optamos, portanto, pela pintura de José Ma“O fiscal do regimento, sem uma palavra de – Deus te pague – lhoa, Os bêbados, de 1907. mandou vendê-lo em leilão, como um cisco da estrebaria.”12.
Também chamada de Festejando o S. Martinho,
O rapaz não teve melhor sorte e nem maior consideração. o quadro revela uma identificação emblemática pelo fato de Doente, sem família ou profissão, “saiu com cinco patacas, de podermos imaginar a narrativa simoneana a partir desta cena resto do soldo, e sem o capote.”13.
– ou mesmo complementar as lacunas do
Puxar carroça e trabalhar
conto com a imagem
em subempregos foi o destino do cavalo
– no momento em
e do rapaz. A separação – a impossibilida-
que
de de se completarem – simboliza a de-
pegou a traguear” e
gradação. Não somente deles, mas esta-
nos inserindo na ex-
belece uma crítica social que é tão sim-
pectativa do que viria
ples de ser lida quanto complexa de ser
a seguir: “A polícia
abordada sem o romantismo de uma
uma noite prendeu o
exaltação de um tempo que era melhor. 15
borrachão, que resis-
o
“carregador
João Simões Lopes Neto não incorre nessa armadilha ao reali- tiu, entonado; apanhou estouros... e foi para o hospital, golfanzar sua crítica, visto que não é um problema de transformação do sangue; e esticou o molambo.”16. Assim, na temática da histórica, mas antes uma postura da própria visão de mundo bebedeira, João Simões Lopes Neto consegue dialogar com a da qual o gaúcho faz parte. Os cenários e os caminhos da situação de desagregação naturalista/realista presente na dupla estão vinculados ao meio conhecido, à própria identi- obra de José Malhoa, oportunizando também uma visão crítidade do gaúcho e não a um inimigo externo, como é o caso ca sobre um mesmo contexto histórico. da cidade e do progresso. Ser possível para nós percebermos
Além dessas reflexões sobre o contexto histórico
um certo saudosismo não impede a inserção em uma realida- e a forma como a crítica social e a representação do tipo de que não era uma democracia rural, mas antes uma socie- humano do gaúcho nos Contos Gauchescos encontra seu
desfecho, também devemos refletir sobre esse último conto pela mesma sociedade que os segregou e puniu. Esse último em sua articulação com a apresentação. Todos os demais conto pode ser narrado pelo primeiro narrador, pelo Blau Nucontos possuem alguma expressão em primeira pessoa – em nes ou por uma terceira instância narrativa... talvez aquela vários momentos uma linguagem fática a que recorre o perso- mesma instância que aprendeu um pouco com essas histórias nagem narrador – que situa o contador de histórias no seu e pode adentrar esse universo sem pedir permissão. lugar perante o leitor/ouvinte. Seguem alguns desses exemplos:
“Eu
tropeava,
nesse
tempo.”
(Trezentas
onças);
“Escuite,” (O negro Bonifácio); “- Está vendo aquele umbu, lá embaixo, à direita do coxilhão?” (No manantial); “- A la fresca!... que demorou a tal fritada! Vancê reparou?” (O mate do João Cardoso); “E, por falar nisto:” (Deve um queijo!...); “Conte vancê as maldades que nós fazemos...” (O boi velho); “Se vancê fosse daquele tempo” (Correr eguada); “... andei muito por esses meios” (Chasque do imperador); “- Vancê sabe que eu tive e me servi muito tempo dum buçalete e cabresto feitos de cabelo de mulher?...” (Os cabelos da china); “- Vancê para um bocadinho” (Melancia – Coco verde); “Vancê não sabe o que é Inhatium?” (O anjo da vitória); “Aqui há poucos anos – coitado! - pousei no arranchamento dele.” (Contrabandista); “Pois olhe: eu já vi jogar uma mulher num tiro de taba.” (Jogo do osso); “Já um ror de vezes tenho dito – e provo” (Duelo de farrapos); “Conheci, sim, senhor, o Binga Cruz” (Penar de velhos); “Vancê leu ontem no jornal...” (Juca Guerra); “Vancê anote na sua livreta:” (Artigos de fé do gaúcho). Ao não encontrarmos as mesmas expressões em Batendo orelha, perguntamos: quem narra esse conto? Será o mesmo escritor/narrador que apresenta o velho Blau, dirindose aos seus patrícios? Será aquele o próprio João Simões Lopes Neto procurando estar presente na abertura do seu livro de contos? A questão do autor é problemática do ponto de vista teórico, mas serve como provocação, visto que vislumbramos ali um personagem narrador que não se apresenta e que pode não ser Blau Nunes. Esse apresentador do narrador principal também não pode simplesmente ser colocado como narrador do último conto. Cabe, então, avançar e pensar se esta instância narrativa não se propõe a uma linguagem mais coletiva, uma narração de toda uma cultura. Encontramos uma mescla de linguagem entre a apresentação (“PATRÍCIO, apresento-te Blau, o vaqueano.”17) e os demais contos (com palavras como vancê e escuite18) na composição do conto Batendo orelha (“Aí se juntaram os dois parecidos, o bicho e o homem.”19), visto que ambos dominam a linguagem do campeiro, conhecem os termos e expressões próprias da região e, ainda que marcadas as suas individualidades, se somam – o narrador que apresenta Blau Nunes e o próprio Blau – para narrarem o percurso do homem e do cavalo em seus destinos que, na nossa visão, poderiam ser evitados
João Luis Pereira Ourique
O MILAGRE DE NATAL EM LYGIA FAGUNDES TELLES E JOÃO SIMÕES LOPES NETO
“He tentado al Señor pidienlole um prodigio, um milagro patente, cerrados los ojos al milagro vivo del universo y al milagro de mi mudanza” (Miguel de Unamuno, in Diário Íntimo)
E primeiro que expirastes9 Me deste logo sinal. Fidalgo – Que sinal foi esse tal? Diabo – Do que vós vos cotentastes. Fidalgo – A estoutra barca me vou. Hou da barca! Para onde is? Ah, barqueiros! Não me ouvis? Respondei-me! Houla! Hou! Pardeus, aviado estou! Quanto a isto é já pior... Que gericocins10, salvanor11! Cuidam cá que eu sou grou12? Na linguagem arrogante e caricata do Fidalgo, percebe-se a surpresa perante a barca que lhe espera. A isso o diabo lhe responde com a assertiva de que a embarcação que lhe foi destinada, foi obra de sua própria escolha. Concluí-se, pois, que o dramaturgo português quer demonstrar através desse diálogo, que a barca da vida e da ação moral estão ligadas à barca da morte e do destino eterno, que pode ser a danação ou a felicidade.
Ao cotejarmos o elemento “milagre” nos contos Natal na barca (1958), de Lygia Fagundes Telles (1923), e O menininho do presépio (1923), de Simões Lopes Neto (1865-1916), é possível constatar que ambos, tanto pela estrutura do tecido diegético quanto pelo olhar do narrador, e principalmente pelo desfecho, provocam no leitor a inquietação e a dúvida a respeito da natureza e da existência dos milagres. Comparemos com o timbre da expressão, guardadas as distâncias de época e gênero, em Lygia Fagundes Telles: Milagre é uma palavra derivada do latim (miraculum), que, em sentido lato, significa “acontecimento maravilhoso”¹. Na Bíblia, “Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi todavia, utiliza-se num sentido mais restrito, significando um ato de um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como morDeus, que de um modo visível, subverte o curso das causas cotos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. nhecidas para manifestar Seu Poder ou Sua Vontade, de modo a Contudo, estávamos vivos. E era Natal.”13 que tudo se cumpra segundo o Seu Plano. Examinemos brevemente essa passagem. Diversas palavras em hebraico (Mophet, Péle, Oth) se traduzem no Antigo Testamento por milagre, maravilha ou sinal. O Novo A narradora sente-se descontente, ao ver-se naquela “barca Testamento utiliza a palavra Dunamis para designar² milagre e carcomida”. Fuma um cigarro como um sinal de desprezo ou Simeion (poder) também com a mesma significação³. Os milagres protesto, talvez como um sinal a quem ninguém atenta. No ende Jesus são descritos pela palavra erga, que quer dizer literal- tanto, estão todos numa mesma viagem, vivos e mortos, que esmente, “obras”4. Aparece também o vocábulo terata5, num senti- colhem o seu destino de acordo com a responsabilidade éticodo mais adequado e próximo a milagre, significando “prodígios”6. moral. É dessa liberdade que nasce a esperança mesmo em situações que parecem perdidas e desanimadoras: Contudo, estáO Milagre poderia ser entendido então como a intervenção divi- vamos vivos. E era natal. na em face da impotência humana perante o sofrimento e a morte? Ele seria fruto da imaginação e do mito ou consistiria na Na diegese do conto Natal na barca, aparece uma mulher pobre conjugação desses dois aspectos? que traz consigo uma criança com cerca de um ano. Ela havia perdido outro bebê e tinha sido abandonada pelo marido: “A Mais que o simples estabelecimento da dúvida, que deixa espa- senhora é conformada”, declara a personagem-narradora. A ço para a decisão do leitor, nos contos de Lygia Fagundes Telles e explicação para sua resignação foi saber da felicidade de seu João Simões Lopes, parece haver a sugestão de um entrelaça- filhinho no Paraíso, brincando no jardim com o Menino Jesus, logo mento entre a vida natural e a sobrenatural, fornecendo à exis- ele gostava tanto de mágica. E concluindo, falou: tência um “entre”, um encantatório poder poético imanente à celebração da vida, tão expressivamente representada pelo “Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo a Natal. meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, como o sol batendo O conto de Lygia Fagundes Telles trata da viagem de uma mulher em mim.”14 numa barca, no dia de Natal, onde ela encontra uma mãe e seu filho doente. Em verdade, a barca é um símbolo utilizado quase Nessa passagem, a autora remete-nos a outro arquétipo univeruniversalmente para representar a viagem, não uma viagem sal: a ideia de Paraíso. As obras de arte e as experiências oníricas, qualquer, mas a travessia realizada seja pelos vivos, seja pelos sejam elas os êxtases dos santos, os estados de inconsciência do mortos. Essa imagem aparece na arte e na literatura do Antigo sono ou processos induzidos por drogas, estão repletas de repreEgito7 e nos textos mitológicos e em alguns épicos da velha Irlan- sentações inspiradas naquilo que se costuma chamar a nostalgia da8. do Paraíso15. Em Lygia Fagundes Telles, a estrutura do texto se afigura linear e Mírcea Eliade explica que singela. Encerra, todavia, uma profunda ternura, uma mensagem “o desejo de nos encontrarmos sempre e sem esforços no de fé e esperança. A ideia da barca faz-nos lembrar, inclusive, da coração do mundo da realidade e da sacralidade, e em peça de Gil Vicente (aprox. 1470-1536), Auto da barca do Inferno: suma, o desejo de superar de um maneira natural a condição humana e de recuperar a condição divina; um cristão diria: a condição anterior à queda.”16 Fidalgo – Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai? Diabo – Vai ou vem, embarcai prestes! O narrador reflete que havia encontrado ali o segredo da fé que Segundo lá escolhestes, removia montanhas. Novamente podemos perguntar: foi realAssim cá vos contentai. mente Deus que concedeu à mulher um “indulto de Natal”, ou foi Pois já que a morte passastes, apenas uma defesa de seu inconsciente contra a dor da perda? Haveis de passar o rio. Tanto faz, porque o verdadeiro milagre é, apesar das adversidaFidalgo – Não há aqui outro navio? des, não desistir da felicidade e da crença na vida. Diabo – Não, Senhor, que este freteastes,
A narrativa mostra com simplicidade a grandeza de uma mãe que confia fielmente num Deus fiel. É essa fidelidade que inspira a superação da dor e da morte. A narradora não aparece como personagem religiosa, ao contrário, mostra-se céptica e provavelmente atravessa um momento difícil, conforme permite deduzir o começo do conto: Não quero nem devo lembrar por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva.17 A narradora ao constatar a criança (supostamente) morta no colo da mãe, pressente a derrota e a decepção de uma fé que “removia montanhas”. Ela toca a água, sente o rio gelado e escuro. O rio, o curso da vida, a barca, o mundo em que habitamos. A barca leva os vivos e os mortos. Afinal, qual realidade separa uns dos outros? A realidade metafísica, a saudade, as lembranças? Quem o saberá? Ao relatar suas desgraças, a mulher, mãe da criança doente, recorda a morte de seu primeiro filho, que gostava de mágicas. O menino caiu do muro dizendo “vou voar - e voou”. A mulher mostra uma fé, ao mesmo tempo, resignada e ativa. A narradora explicita sua covardia diante dos laços humanos, do triste espetáculo da dor alheia, que tão fraternalmente nos une a toda humanidade. Ela quer fugir desse drama, prefere suportar a água gelada do rio em trevas.
sentido das quatro direções cardeais, chegando até as extremidades do mundo, que são os quatro rios do paraíso terrestre23. O próprio Filho de Deus, Jesus, é batizado no rio Jordão, onde Deus fala com Ele e o Espírito Santo se manifesta: “Naquele tempo, veio Jesus da Galiléia ao Jordão até João, a fim de ser batizado por ele. Mas João tentava dissuadi-lo, dizendo: “Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim?” “Jesus então respondeu-lhe: “Deixai estar por enquanto, pois assim nos convém cumprir toda a justiça”. E João consentiu. “Batizado, Jesus subiu imediatamente da água e logo os céus se abriram e ele viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba e vindo sobre ele. Ao mesmo tempo, uma voz vinda dos céus dizia: “Este é meu Filho Amado, em quem me comprazo” (Mt 3,13-17).24 É nítida, pois, a associação que Lygia Fagundes Telles faz entre a barca, o rio e o mistério da vida, cheia de milagres ou, pelo menos, surpresas capazes de desenvolver o estancamento e o valor da existência, através da perene renovação da esperança: o rio verde e quente.
O final do conto Natal na barca é emblemático:
Em João Simões Lopes Neto, a tragédia e o pessimismo são a “Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para marca registrada de sua literatura. O conto O menino do presépio olhar o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã ce- como fazendo parte de uma segunda série dos Contos gauchescos (1912), foi publicado em 25-12-1913, no jornal “A Opinião Púdo: verde e quente. verde e quente. Verde e quente”.18 blica”, entretanto, apresenta uma característica bem diversa: o Do mesmo modo que a simbologia da barca, a imagem do rio happy-end, tão escasso na escritura lopesnetina. também encontra representação em muitas culturas. Relacionase, em geral, com a fertilidade, a morte ou a renovação. A simbo- O Rapsodo Bárbaro recorre a um procedimento que lhe é cologia do rio se acha mais enraizada na mitologia tradicional da mum colhe no folclore, nas lendas ou nos arquétipos universais da humanidade, simbologias para construir suas histórias. É o caso de China, da Índia, dos gregos e da Palestina, O menininho do presépio. De um lado, está a especificidade do Na China, o rio com sua viagem e direção ao oceano, significa a Natal, como um tempo de realização de desejos e apaziguamenbusca do ser humano ao seu retorno ao indiferenciado, ao Nirva- tos dos homens. De outro, porém, a despeito de o menininho ser na. Para os chineses o simbolismo do rio possuía ainda certa im- Jesus, ele também espelha uma imagem universal de inocência: portância nos ritos de casamento. Os casais jovens costumavam a criança. Nesse sentido, a infância é o estado anterior ao pecarealizá-lo no equinócio de primavera: era uma verdadeira traves- do, portanto, o estado edêmico, capaz de absolver a tragédia e sia do ano, a passagem das estações, e a do yin ao yang; era o adultério. igualmente a purificação preparatória à fecundidade e à renoA ideia de infância como representação de pureza é uma consvação.19 tante nos ensinamentos evangélicos e em toda uma parte mística Entre os gregos antigos, os rios eram objeto de culto. Tinham-nos cristã como, por exemplo, O caminho de Infância, de Santa Terecomo filhos de Netuno e pais das ninfas. Ofereciam-lhe sacrifícios, za do Menino Jesus. afogando em suas águas, touros e cavalos. Não se podia atravessá-lo senão depois de ritos de purificação e preces. Os rios inspira- Na tradição cristã, os anjos são muitas vezes representados como crianças, em sinal de pureza e inocência. vam veneração e temor20. A teogonia de Hesíodo afirma: “Não deveis atravessar jamais as águas dos rios de eterno Vale lembrar também a seguinte passagem bíblica: curso, antes de ter pronunciado uma prece, com os olhos “Traziam-lhe até mesmo as criancinhas para que as tocasfixos nas correntes magníficas, e antes de ter mergulhado se; vendo isso, os discípulos as repreendiam. Jesus, porém, vossas mãos nas águas agradáveis e límpidas. Aquele chamou-as, dizendo: “Deixai virem a mim as criancinhas e que atravessar um rio sem purificar as mãos do mal que as não as impeçais, pois delas é o reino de Deus. Em verdamacula atrairá para si a cólera dos deuses, que lhe enviade, vos digo, aquele que não receber o reino de Deus 21 rão depois castigos terríveis” . como uma criancinha, não entrará nele.” (Lc 18, 15-17)25 Na edição de Diels22 da obra de Heráclito, no fragmento 12, lê-se:
Simões Lopes Neto aproveita-se dessa simbologia, para dar-lhe “Aqueles que entram no mesmo rio recebem as correntes um tom ambíguo. No conflito entre Mal e Bem, finalizando com a de muitas e muitas águas e as almas exalam-se das subs- vitória do Bem, que através da inarredável determinação do amor, é purificado. Se esse amor resulta de uma transgressão à lei tâncias úmidas”. moral, acaba sendo desculpabilizado - como acontece com as Platão, no Crátilo, utiliza-se de uma fórmula mais breve, ás vezes, crianças - de sua origem pecaminosa26. De outro lado, há um também atribuída a Heráclito, dizendo que não conseguiríamos acento tanto estranho, ao retratar a figura deitada no presépio. entrar duas vezes no mesmo rio. “Fazia a modo de uma remada no alto de uns cerritos, e fingindo grotas e sangões e umas reboleiras; havia esparNa Índia, o rio Ganga ou Ganges é o elemento purificador que ramados uns ALIMAIS entre boizinhos e ovelhas, de brinflui da cabeleira de Shiva. Já na Palestina, pela tradição judaica, quedo e outros enfeites, e mais uns figurões mui calamiso rio representa a fonte das graças e das influências celestes. Esse trados, de coroa, que pareciam reis pro caso dum, que rio que vem do alto desce na vertical, conforme o eixo do munera negro retinto, era o mais empacholado. E perto desdo, depois, expande-se horizontalmente, a partir do centro, no
tes, sobre a ponta do presépio estava então a Senhora Virgem e o Senhor São José, e entre eles, acamado numas palhinanhas de milha e uns musgos e umas penugnes estava o Meniniho Jesus, ruivito e rosado, nuzinho em pelo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por mostrar as vergoinhas do seu corpinho de inocente.”28
um mouro, velhaco, sem eira e nem beira, mal encarado, meio corcunda, que tinha um lanho grande entre a orelha e a nuca. O casal destoava, como um jerivá velho e um cacho em flor.
É interessante observar o detalhe que Simões Lopes Neto traz ao descrever o Minininho Jesus: ruivo. O ruivo é uma cor que situa entre o vermelho e o ocre. Ele lembra o fogo, a chama, daí a expressão roux ardent. Em vez de representar o fogo purificador do amor celeste, ele caracteriza-se por simbolizar o fogo impuro, que incendeia sob a terra o fogo do inferno.29
“Era uma adoração, quase um medo de ofender a querida do seu coração; perdia a voz para falar com ela, enredava-se nas esporas, perdia o entono de todo o seu jeito, ele todo ele vivia só nos olhos quando atentava na formosura do seu rosto.”35
Entre os egípcios, Set-Tifão,o deus da concupiscência devastadora, era representado como sendo ruivo, e Plutarco conta que, em algumas de suas festas, a exaltação era tanta, que se chegava a jogar os homens ruivos na lama. A tradição cristã rezava que Judas, o traidor, tinha os cabelos ruivos.30
Nhã Velinda chora, é muito infeliz. O cadete Vieira, moço mulherengo, dado a noitadas e brigas, ama-a de verdade:
Na festa natalina, em que todo o povo se reunia para contar o terço, há o resvalo, o pecado, o instinto da carne, quase a idolatria. É interessante observar que em João Simões Lopes Neto tanto a percepção do Mal quanto da Divindade acontece através de um revelador diálogo telúrico-cósmico.
Em O menininho do presépio, diferentemente do que acontece, Em resumo, o ruivo evoca o fogo dos instintos luxuriosos, a paixão por exemplo, em Trezentas onças, o diálogo homem/Deus, mediado pela natureza, o Mal, o pecado (nesse caso, o adultério) está que consome o ser fisco e espiritual.31 intrinsecamente ligado, de uma maneira ambígua, à pureza do Quererá o autor do conto O menininho do presépio sub- amor, mostrando a dupla essência e o perpétuo dilema do horepticiamente levar-nos a uma ambivalência sobre a natureza mem. dos milagres? Tal observação pode ser confirmada pela frase final Simões deixa claro que nhã Velinda é jovem, inexperiente e infeliz do conto: – condições de absolvição – e que o cadete Vieira, “gostava da - Não lhe parece que houve um milagre? Claro! Foi por causa do moça numa paixão de verdade, diferente de quantas calaveiradas estava avezado a fazer”, isto é, o amor atua como elemento Menininho que... Si o diabinho é tão milagroso!...32 regenerador. O Mal está deslocado para a figura do marido e do Nessa direção, pelo menos, duas interpretações são possíveis. De Miguelão. O marido a maltratava, para ele, ela só significava o um lado, pode significar que Deus afirma seu poder, mesmo em que se podia “amanusear da tábua do pescoço até as ancas”. circunstâncias aparentemente pecaminosas, isto é, até mesmo utilizando-se das mãos do demônio. De outro lado, porém, pode Quando os protagonistas trocam o beijo – uma bicota é perigo confirmar a visão pessimista da natureza humana, capaz de cor- de respeito! – cumprem-se o milagre de duas vidas vazias que romper as coisas puras e santas. Dessa maneira, o amor humano, encontram a felicidade. A cena é descrita maravilhosamente: guiado pelo instinto natural, se transcreve de dedicação espiritu“As mãos se encontraram... e num de-repente, num silênal. Deus então, com pena desses seres incapazes de elevarem-se cio, num tirão das suas almas, pressa e no lusco-fusco, perpara além dessa lei natural que governa todos os seres, permiteto da gentama, numa relancina de corisco, as duas bocas lhes a transgressão para evitar um mal maior – a infelicidade gefamintas se encontraram (...) e um beijo, que jurou pelos ral. No fundo, para Simões de O menininho do presépio, o único dois, para toda a vida, um beijo só derrubou todas as nepecado é a infelicidade. gaças, como repesa de açude aluída é derrubada por A força telúrica do amor do cadete Vieira e Nhã Velinda fica uma muita descida de águas...”37 plasmada com clareza na cena do beijo, que “derrubou todas as negaças, como uma represa de açude aluída é derrubada por Note-se que mesmo em toda a força carnal que a descrição uma muita descida de águas...”33. Aí, a enumeração das forças encerra, não há qualquer sinal de condenação ou censura, pois naturais mais os absolve que os condena. Isto é corroborado, se o amor, o verdadeiro amor, o amor humano no sentido mais puro atentarmos para a “descida das águas”, que simbolizam não só a de sua condição redentora se une ao amor divino, fonte de toda fúria do instinto, a atração, a força do desejo, mas, principalmen- a alegria e esperança. te, a indicação do elemento purificador. O casal é flagrado pelo Miguelão que vai “xeretear ao genro a De um certo modo, numa acepção naturalista de teologia, talvez atossicá-lo, mussitando-lhe maldades”38. ele esteja certo, pois somente o homem feliz, conforme exige a simplicidade do campeiro, cuja lida, em certo sentido, é uma No entrevero do ataque do marido traído, a imagem do meniniimitação da luta dos animais pela sobrevivência, pode conhecer nho, que jazia no presépio – personificação do lugar onde as fora Deus. Este aspecto pode tomar, ás vezes, um caráter de ças telúricas do pampa (a terra, os animais, as estrelas, a lida do “teologia da prosperidade” ou de um viés agostiniano. Isto é, a campeiro), se fundem com a força cósmica de Deus -, rola para natureza corrompida do homem só pode ser purificada pela mi- o seio da moça (do mesmo modo como estava acomodada a sericórdia de Deus, e os sinais dessa misericórdia são percebidos criança doente no conto Natal na barca), tão à vontade “como um dono na sua casa”, e aí, no regaço delicado ficou. Simões através das graças que ele alcança. está quase a nos dizer, noutras palavras, que a morada de Deus é A própria linguagem empregada por Simões Lopes Neto auxilia a o peito dos homens, é aí que está o Natal. Nesse momento o famanter o clima de mistério inerente aos milagres. A beleza estilísti- cão matador serenou e o agressor partiu. ca desse conto, a princípio ofuscada por um certo truncamento da narrativa (admitido no texto pelo narrador), deriva da tensão A escolha do facão, do objeto cortante, refere-se à simbologia entre uma oralidade mais acentuada do que aquela presente, geral, que também se aplica ao conto simoniano: o princípio 39 em geral, nos Contos gauchescos e o pleno controle no desenro- ativo que modifica a matéria passiva . Se, de uma parte, o marilar do texto que, por sua vez, proporciona o perfeito equilíbrio da do traído age para punir o casal, este último, embora pareça linguagem literária: Parece que eu lhe estou enredando rastro, também agir, optando pela transgressão, está apenas cumprindo seu Destino, a fatalidade do amor. A faca é também, frequentemas não ‘stou, não; vancê escuite.34 mente, associada à ideia de execução, morte, vingança ou sacriNo conto simoniano, a filha de Miguelão, boa como uma santa e fício. bonita como uma princesa, nhã Velinda, obrigada a casar com Segundo a tradição judaico-cristã, o Amor-redenção exige sacrifí-
cio. O sacrifício é um símbolo de renúncia aos vínculos terrestres Nos contos: Natal na barca, de Lygia Fagundes Telles, e O por amor ao espírito da divindade. Em quase todas as culturas menininho do presépio, de João Simões Neto, estabelece-se uma encontramos histórias de filhos ou filhas imolados. Na bíblia, um tensão, um conflito entre a dilacerada natureza humana, na luta eterna entre Bem e Mal, e os descaminhos desse mesmo homem dos exemplos mais conhecidos é o caso de Abraão e Isaac: na busca da felicidade. O encontro da felicidade é o verdadeiro “Abraão tomou a lenha do holocausto e o colocou sobre milagre. seu filho Isaac, tendo ele mesmo tomado nas mãos o fogo e o cutelo, e foram-se os dois juntos. Isaac dirigiu-se a seu pai Resultado de contradições internas ou externas o conflito Abraão e disse: “Meu pai!” Ele respondeu: “Sim, meu filho!” simboliza a possibilidade da passagem de um contrário a outro, significando, de um lado, o relativismo ético-moral, e, de outro, o - “Eis o fogo e a lenha”, retornou ele, “mas onde está o cor- perdão que Deus, em Sua misericórdia, reserva para o pecador. deiro para o holocausto?” Abraão respondeu: “É Deus quem proverá o cordeiro para o holocausto, meu filho’, e Na Bíblia, o perdão dos pecados é representado de diverforam-se os dois juntos. sas maneiras. O pecado é coberto (SI 32,1; 85,2); não é atribuído (SI 32,2); é apagado (Is 43, 25), um ponto de justiça em conformiQuando chegaram ao lugar que Deus lhe indicara, Abrão dade com os desígnios divinos, confessando que somos pecadoconstruiu o algar, dispôs a lenha, depois amarrou seu filho e res (1 Jo 1,9); um ato perfeito de misericórdia de Deus (SI 103,2-3; 1 o colocou sobre o altar, em cima da lenha. Abraão estenJo 1,7). O ato de perdoar é decisivo e nunca será revogado por deu a mão e apanhou o cutelo para imolir seu filho. Deus (Mq 7,19). Mas o anjo de Iaweh o chamou do céu e disse: “Eis-me aqui!” O anjo disse: “Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças nenhum mal!” Agora sei que temes a Deus: tu não me recusaste teu filho, teu único. Abraão ergueu os olhos e viu um cordeiro, preso pelos chifres num arbusto; Abraão foi pegar o cordeiro e pegou e o ofereceu em holocausto em lugar de seu filho” (Gn 22, 6-13)40
O milagre em ambos os contos é questionado em sua natureza sobrenatural, pois facilmente o texto permite dar aos acontecimentos explicações naturais. De outro lado, o encanto e o mistério do Natal envolvem as narrativas numa atmosfera onde a dúvida é a própria anuência para com um certo sentido mais amplo de fato extraordinário e inexplicável: a renovação e a purificação das atitudes e dos sentimentos humanos como maniO sentido do sacrifício, entretanto, pode ser pervertido, festação de verdadeiro e perene milagre. como é o caso de Agamenon sacrificando Ifigência41, em que a A felicidade é sinônimo de libertação do passado, da obediência aos oráculos dissimula outros motivos e, em particular, amargura, da covardia, do sofrimento e da morte. O milagre de a vaidade de obter vingança42. Natal significa um amanhecer consolatório e esperançoso. O Lembremos a simbologia do sumiço do rebanho de novi- milagre em Natal na barca, de Lygia Fagundes Telles, não é que lhos (o sacrifício dos animais encaminha o protagonista para a a criança tenha voltado à vida (talvez nem tivesse morrido); da redenção), fato aparentemente negativo, mas que trouxe o ca- mesma forma, em O menininho do presépio, de João Simões Lopes Neto, o milagre não se constitui em que a imagem deitada dete Vieira para aquelas bandas. nas palhinhas de milhã tenha saltado dali e defendido a moça, O narrador relata que o mal encarado, mouro, portanto, antes, o milagre está plasmado nas pessoas que jaziam na infelicinão-cristão e feio como o diabo, foi morto numa bolinchada de dade, estavam mortas em vida, mas, pela força renovadora do carreiras43. Aqui também pode-se depreender a ideia de sacrifí- Amor, puderam olhar a existência de outra maneira. cio como expiação do pecador, conforme a severa advertência bíblica: Porque o salário do pecado é a morte, e a graça de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 6,23)44.
Referencias Bibliográficas:
Estava dado o sacrifício em honra ao Amor-redenção, não mais na estrita linha da tradição judaico-cristã, onde o sacrifício do amor é dado por um cordeiro imaculado. Simões inova, concebendo o holocausto como realização da Justiça, do sagra- BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995. do direito humano à felicidade. O mistério do milagre está referido na expressão: Amigo! A quincha dos ranchos esconde tanta cousa como os telhados dos ricos!...45 Aponta com isso que Deus deixa nascer o sol sobre bons e maus, que todos podem mudar seu destino, curar seu coração. Há também o Mal, que fere e espreita, não apenas como natureza própria da condição humana, mas também como expressão de liberdade. É a partir da liberdade que se fundamenta a relação com um Deus, que nada exige para Salvação, senão o sincero e teimoso desejo de ser feliz. Basta sua opção e luta, para que os braços de um Deus que também se fez homem e, nessa medida, coloca-se como conhecedor do sofrimento, estejam perpetuamente abertos para receber os homens em Seu seio, quiçá, realizando um milagre, que é a violação das leis naturais, criadas pelo próprio Deus. Sob esse prisma, Deus trai a Si mesmo – peca, portanto? Não. Acima do império das leis da natureza está a necessidade do Amor. O amor é subversivo, mesmo para Deus.
BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. V. 1, Petrópolis: Vozes, 1991. BORGES, Luís. O retorno do paraíso. Diário Popular, Pelotas, 13 e 27 -03-1994. BRUCKLAND, A. R. Dicionário bíblico universal. São Paulo: Ed . Vida, 1997. ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas. São Paulo: Zahar, 1983. LOPES NETO, João Simões. O menininho do presépio. Contos gauhescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica de Lygia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença; Brasília: INL, 1988. TELLES, Lygia Fagundes. Natal na barca. In: Para gostar de ler. V.9 – contos. 3ª ed., São Paulo: Ática, 1988.
O Mal que habita no homem – sempre tão essencialmente arraigado, conforme se nos parece em Boi Velho – assume em O VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno & Farsa de Inês Pereira. menininho do presépio, apesar de suas ambiguidades, um cará- Notas organizadas por Mário Auriemma Higa. Porto Alegre: Zero ter hermenêutico eminentemente cristão, revelando a face ocul- Hora e Klick editora, 1998. ta da Mão Divina, que insere o pecado humano no contexto da redenção. Somente onde há renovação (Encarnação/Natal) há Luís Borges possibilidade de Ressurreição (vitória sobre a morte e o sofrimento).
O NEGRO BONIFÁCIO - LUÍS AUGUSTO FISHER
¹Estou citando trechos da edição que preparei para os Contos gauchescos e as Lendas do sul. Ver a bibliografia. ²André Boucinhas, em conversa com o autor do presente comentário, lembrou que no Sudeste o termo “negro” equivalia a “escravo”, e não a afrodescendente, na virada do século 19. No livro Das cores do silêncio, de Hebe Mattos, se lê um depoimento de ex-escravo, apenas libertado pela Lei Áurea, que declarou que no lugar em que vivia não havia mais negro, significando diretamente não haver mais escravos. Seria então a designação de “negro” para Bonifácio uma forma explícita de demarcação social, uma maneira de definir a condição oficial do Bonifácio como escravo, antes dos Farrapos? Essa hipótese é consistente com tudo que se diz dele, tanto pela boca de Blau quanto pela opinião dos demais, segundo o relato do conto. ³Por tudo isso, não se justifica, sob qualquer argumento e em nenhum sentido (a começar pelos cuidados compulsórios de uma edição crítica), a escolha da palavra “coração”, que a edição do IEL traz, no lugar de “misturada”. 4No
texto “Sinais de pontuação”, em Notas de literatura I.
5Ver
minha introdução à edição dos Contos gauchescos, pela L&PM.
6Em
“A nova narrativa”, texto de 1979, publicado em A educação pela noite e outros ensaios.
7Ver “Raymundo Faoro, leitor de Simões Lopes Neto e de Ramiro Barcellos”, revista Nonada, vol. 2, nº 19, 2012. 8Um paralelo de grande interesse poderia ser feito com Nikolai Leskov, escritor russo (1831-1895), autor de várias histórias envolvendo honra, também ele ligado a um mundo antigo, visto já como coisa do passado em relação ao presente degradado. Este, aliás, o motivo central para Walter Benjamin ter tomado Leskov como paradigma para discutir um caso notável de arranjo narrativo que evocava a força do testemunho, a força da presença do narrador por assim dizer encarnado, em comparação ao caso do romance moderno, de narrativa impessoal. Para dar um exemplo apenas dessa aproximação possível, veja-se que seu conto “Homens interessantes” há também mais de um final para o relato, assim como há um narrador que ao final comenta algo como a “moral da história”. Há traduções recentes ao português brasileiro – v. bibliografia.
JUCA GUERRA - ANTONIO HOLFELDT ¹Palestra apresentada no auditório da Casa João Simões Lopes Neto, em 30 de novembro de 2012, revista e ampliada. ²Professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, da mesma universidade; pesquisador do CNPq; Presidente da INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação; membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. ³LOPES NETO, João Simões – Contos gauchescos e lendas do sul, Porto Alegre, Globo. 1973. Na verdade, a primeira edição dos Contos gauchescos é de 1912, a que se segue, em 1913, a de Lendas do sul. Posteriormente, ambas as obras passam a ser publicadas em conjunto, a partir de 1926, mantendo-se, ainda, a totalidade das lendas escolhidas pelo escritor pelotense. Nas edições mais recentes, contudo, a parte das lendas fica restrita aos três textos aqui mencionados. 4ROSA,
João Guimarães – Grande sertão: Veredas, Rio de Janeiro, José Olympio. 1956.
5VERISSIMO,
Erico – O tempo e o vento, Porto Alegre, Globo. 1949. Ver, especificamente, o volume inicial, intitulado O arquipéla-
go. 6LOPES
NETO, João Simões – Casos do Romualdo, Porto Alegre, Globo. 1952 [1914] O conjunto dos textos, editados no jornal Correio mercantil, entre 1º. De junho e 21 de julho de 1914, só conheceu edição em livro depois de descobertos, em 1945, por Carlos Reverbel. 7Anotei,
no livro dedicado ao escritor, que tais lendas se organizavam em dois blocos, um deles enfechado sob a designação de “Argumento de utras lendas missioneiras” e que reunia “A mãe do ouro”, “Cerrosbravos”, “A casa de Mbororé”, “Zaoris”, “O angüera”, “Mãe mulita” e “São Sepé”. O segundo boco, denominado “Centro e Norte”, traz argumentos reduzidos de lendas como “O caapora”, “O curupira”, “O saci”, “A uiara”, “O jurupari”, “O lobisomem” e “A mula-sem-cabeça” (HOHLFELDT, Antonio – Simões Lopes Neto, Porto Alegre, Tchê. 1985).
8HOHLFELDT,
Antonio – “A historia gaúcha em três lendas de J. Simões Lopes Neto”, Porto Alegre, Correio do Povo, Caderno de Sábado. 5.5.1979; HOHLFELDT, Antonio – O gaúcho – Ficção e realidade, Rio de Janeiro, Antares/Instituto Nacional do Livro. 1982; HOHLFELDT, Antonio – Simões Lopes Neto, Porto Alegre, Tchê. 1985. 9Veja-se,
a propósito, a peça de teatro, depois transformada em filme, A missão, do dramaturgo inglês Robert Bolt, roteiro mais tarde filmado pelo cineasta Rolland Joffé, em 1986 10Pode-se
visitar essas regiões: partindo-se de São Miguel, desmembrado do atual município brasileiro de Santo Ângelo, conhece-se São João Batista e São Lourenço, sujos resquícios da presença jesuítica são mínimos; atravessa-se depois o rio Uruguai, na altura de Porto Xavier, em direção a San Javier, já no território argentino. Aí vamos encontrar San Ignacio Mini, reconhecido patrimônio universal da humanidade, e onde se pode visitar um parque temático. Tem-se a oportunidade, ainda, de conhecer outro aldeamento de que pouco sobrou traços, a exemplo do que ocorre no Rio Grande do Sul, que é Santa Maria de Loreto. Enfim, no território paraguaio, alcança-se a redução de Menino Jesus. É oportuno verificar-se que o desenho de todos os aldeamentos é rigorosamente o mesmo, e que, devido ao que remanesce em cada um deles, de certo modo podemos, sobrepondo uns aos outros, reconstituir o desenho original que era então seguido pelos padres na construção de tais arraiais. 11LOPES
NETO, João Simões – Contos gauchescos e lendas do sul, Porto Alegre, Globo. 1973. É esta quarta edição que utilizo para as passagens citadas, como esta, à p. 5. 12MAYA,
Alcides – Ruínas vivas, Porto, Chardron. 1910; Tapera, Rio de Janeiro, Briguiet, 1961 [1912]; Alma bárbara, Rio de Janeiro, Pimenta de Mello. 1922. 13Este
texto seria inédito, quando incluído no livro, isto é, jamais fora publicado anteriormente, nem mesmo em jornal.
14Deve-se
ter em mente que, na maior parte de sua vida, Simões Lopes Neto trabalhou e viveu do jornalismo, nos variados periódicos que se editavam em Pelotas, e onde publicou versões iniciais de seus textos. 15Ironia
do destino, o escritor mesmo, se não morreria abandonado e solitário, teria morte de homem pobre, assistido apenas por uns poucos amigos e a esposa. 16COUTINHO, 17ALENCAR,
Afrânio – Introdução à literatura no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1980.
José de – O gaúcho, Rio de Janeiro, Garnier. 1923 [1870].
ARTIGOS DE FÉ DO GAÚCHO - JOÃO LUIS OURIQUE ¹LOPES NETO, João Simões. Artigos de fé do gaúcho. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912. As citações remetem à edição de 1912, mas são apresentadas com a ortografia atualizada, podendo serem confrontadas com a escrita original. ²BENJAMIN, Walter. O narrador. In: _____ Magia e técnica, arte e política. Tradução: Paulo Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. ³LOPES NETO, João Simões. Artigos de fé do gaúcho. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912. 4VERISSIMO,
Erico. O Tempo e o Vento. O Continente II. 29. Ed. São Paulo: Globo, 1997. p. 493-494.
5VERISSIMO,
Erico. O Tempo e o Vento. O Continente II. 29. Ed. São Paulo: Globo, 1997. p. 495.
6VERISSIMO,
Erico. O Tempo e o Vento. O Continente II. 29. Ed. São Paulo: Globo, 1997. p. 497.
7LOPES
NETO, João Simões. Cancioneiro guasca.
8VERISSIMO,
Erico. O Tempo e o Vento. O Continente II. 29. Ed. São Paulo: Globo, 1997. p. 496
9VERISSIMO,
Erico. O Tempo e o Vento. O Continente II. 29. Ed. São Paulo: Globo, 1997. p. 499-501. Segue a ordem de O Tempo e Vento, com menção aos números dos artigos de fé do conto de João Simões Lopes Neto. 10VERISSIMO,
Erico. O Tempo e o Vento. O Continente II. 29. Ed. São Paulo: Globo, 1997. p. 500.
BATENDO ORELHA - JOÃO LUIS OURIQUE ¹O conto O Menininho do Presépio foi publicado isoladamente em 25 de dezembro de 1913, no jornal A Opinião Pública. ²LOPES NETO, João Simões. Artigos de fé do gaúcho. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912. ³Imagem do centauro disponível em: http://portal-dos-mitos.blogspot.com.br/2013/03/centauros.html. 3Imagem 4Tanto
do gaúcho a cavalo retirada do livro O gênio do pampa, de Pedro Luis Bottari – Santa Maria: Editora Pallotti, 1958
essa denominação quanto a de monarca das coxilhas evidenciam a superioridade do tipo humano: a primeira abordando uma identidade mitológica, de um poder ancestral e divino, enquanto a segunda se situa mais em um momento político e histórico no qual o gáucho é apresentado como rei e o cavalo como seu trono. As duas abordagens são utilizadas como sinônimos da afirmação positiva dessa identidade cultural.
5Desenho
de Milton Soares: Gaúcho “Centauro das coxilhas” - 2004. Seção “Um lápis no tempo”. Disponível em: http:// miltoons.blogspot.com.br/2011/05/secao-um-lapis-no-tempo.html. 6Disponível
em http://www.thewildlifemuseum.org/.
7LOPES
NETO, João Simões. Batendo orelha. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912. As citações remetem à edição de 1912, mas são apresentadas com a ortografia atualizada, podendo serem confrontadas com a escrita original. 8LOPES
NETO, João Simões. Batendo orelha. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912.
9LOPES
NETO, João Simões. Batendo orelha. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912.
10LOPES
NETO, João Simões. Artigos de fé do gaúcho. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912.
11LOPES
NETO, João Simões. Batendo orelha. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912.
12LOPES
NETO, João Simões. Batendo orelha. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912.
13Foto
disponível em: http://www.anda.jor.br/wp-content/uploads/2011/04/Imagen-92.png.
14O
português José Vital Branco Malhoa nasceu em Caldas da Rainha, em 1855, e morreu em Figueiró dos Vinhos, em 1933. A pintura, um óleo sobre tela de 150X200, revelou-se como uma pintura emblemática, quer no contexto da sua obra quer pela identificação coletiva que motivou ao abordar um momento histórico-social da vida camponesa, decorrente do caráter verídico dos objetos e texturas e no realismo do ambiente e dos seus modelos: os próprios habitantes da região de Figueiró dos Vinhos. Segundo António Nuno Saldanha, “a obra assume uma vertente realista (…) que, como referia Eça, se mantinha pelo naturalismo” (p. 514). A analogia com a obra de Malhoa pode ser ampliada quando pensamos o fado da cultura portuguesa como um sinônimo do fardo que as personagens simoneanas carregam. Afinal, “Tudo isso existe, tudo isso é Fado.” (p. 542). Imagem da obra e citações da tese de doutorado de António Nuno Saldanha, 2006, disponível em: http://www.academia.edu/7175483/ Nuno_Saldanha_Jose_Vital_Branco_MALHOA_1855-1933_o_pintor_o_mestre_e_a_obra. 15LOPES
NETO, João Simões. Batendo orelha. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912.
16LOPES
NETO, João Simões. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912.
17Cabe
destacar que a palavra escuite se insere como uma marca de oralidade do personagem narrador Blau Nunes, enfatizada pela sua grafia correta na apresentação: “Patrício, escuta-o.” 18LOPES
NETO, João Simões. Batendo orelha. In: _____. Contos Gauchescos. Pelotas: Echenique & C. Editores, 1912.
CHASQUE DO IMPERADOR - SIMONE XAVIER MOREIRA
1 Como
lembrado por Mario Magalhães, salvo um comentário extraliterário, uma nota de rodapé em Lendas do Sul, na qual Simões Lopes revela que o Cerro do Jarau, cenário da lenda da Salamanca, seria a propriedade de uma família tradicional de Pelotas, os Assumpção. 2 Em
sua dissertação de mestrado, posteriormente publicada em livro com o título Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890), Mario Magalhães conclui que Pelotas alcançou seu auge econômico e cultural entre as décadas 1860 e 1890.
MELANCIA—COCO VERDE - JAQUELINE KOSHIER
¹A palestra foi apresentada dia 14 de junho de 2012, na sede do Instituto João Simões Lopes Neto. ²Rixa, briga, conflito armado. ³esperteza, trapaça, velhacaria. 4cavalo
de pernas curtas, baixo.
5cavalo
ou burro com inchações nas patas que dificultam o galope.
6cavalo
ou burro com orelhas caídas, murchas ou atrofiadas.
7cavalo
que tem nos membros uma grande exostose, uma espécie de tumor ósseo, que dá a impressão de um porongo.
MENININHO DO PRESÉPIO - LUÍS BORGES
¹Professor de Filosofia e Literatura Brasileira, crítico, poeta e tradutor. Mestre e doutorando em Ciências. Membro do Núcleo de Estudos Literários do IFSUL e pesquisador do Centro de Estudos e Investigações em História da Educação da UFPel. Conselheiro do Instituto João Simões Lopes Neto (Pelotas/RS). ²Cf. BUCKLAND, A. R. Dicionário bíblico universal. São Paulo: Ed. Vida, 1997, p. 289. ³Idem, ibidem. 4Idem. 5Idem. 6Idem. 7Idem. 8Cf.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. 121.
9Idem, 10A
ibidem.
frase pode ser entendida como “tudo tem o seu tempo”.
11Significa:
homenzarrão.
12Significa:
fiquei a pular.
13Significa:
forma de pedir socorro, que era corrente na península ibérica.
14TELLES,
Lígia Fagundes. Para gostar de ler. Vol. 9. Contos. 3ª ed. São Paulo. Ática, 1988, p.68.
15TELLES,
Lígia Fagundes, ob. Cit., p. 71.
16Cf.
CHEVALIER, J. e CHEERBRANT, ob. cit., p. 684. Para mais alguns detalhes vide: BORGES, Luís. O retorno do paraíso. In Diário Popular, 13 e 27-03-1994. 17Mírcea
Eliade apud CHEVALIER e CHEERBRANT, p. 684.
18TELLES,
Lígia Fagundes, ob. cit., p. 67.
19TELLES,
Lígia Fagundes, ob. cit., p. 72.
20Cf.
CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., pp. 780-81.
21Idem,
ibidem.
22Hesíodo
apud CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 781.
23Idem. 24Idem. 25Bíblia
de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995.
26Biblia
de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995.
27Cf. CHEVALIER e CHEERBRANT, ob. cit., p. 302. 28Idem. 29LOPES
NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença Edições; Brasília: INL, 1988, p. 283. 30Cf.
CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 792.
31Idem,
ibidem.
32Idem. 33LOPES
NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença Edições; Brasília: INL, 1988, p. 284. 34Idem,
p. 283.
35LOPES
NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro: Presença Edições; Brasília: INL, 1988, p. 282. 36Idem. 37Idem,
p. 283.
38Idem. 39LOPES
NETO, João Simões. op. cit. p. 283.
40CHEVALIER, 41Bíblia 42Para
Jean e GHEERBRANTE, Alain. Dicionário de símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: 1994, p. 414.
de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995. maiores detalhes vide: BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. V. 1, Petópolis: Vozes, 1991, pp. 36-39 e 599-601.
43Vide
CHEVALIER, J. e CHEERBRANT, op. cit. p. 794-796 e BUCKLAND, A R. Dicionário bíblico universal. São Paulo. Ed. Vida , 1997, p. 388-390. 44LOPES 45Bíblia 46Idem.
NETO, João Simões, op. cit. p. 284.
de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e Paulus, 1995. p. 282.
sas, nunca no cenário de “Correr eguada” que é – este sim – humano, porque aí se mantém inalterável o equilíbrio no qual justamente se diferenciam o homem e o animal. E conclui: O discurso psicológico, fazendo o retorno “in illo tempore”, contempla uma ordem natural não problemática e nela os valores do vaqueano.
CONTINUAÇÃO DO TEXTO DO PROFESSOR CLÁUDIO CRUIZ
6. Para Flávio Loureiro Chaves a violência presente no “Correr eguada” é de ordem muito diversa daquela encontrada em “O boi velho”, já que se encontraria num espaço e tempo míticos, basicamente diferente e até contrário ao momento presente, isto é, ao tempo histórico que vem a ser este de agora, quando ele fala ao jovem companheiro já nascido dentro duma outra realidade. Naquele tempo do “Correr eguada” – in illo tempore – tudo era aberto e ninguém sabia bem o que era seu. Embora haja a propriedade, ainda não há o conceito do lucro e a consequente reificação do indivíduo numa sociedade de dominadores e dominados. Chaves refere-se aqui àqueles dois tempos ou àquelas duas formações sociais identificadas por Faoro, ou seja, a comunitária ou tradicional, à qual estaria vinculado o “Correr eguada”, e a sociedade estamentária, representada em “O boi velho”. Mas é claro que a extrema violência presente no primeiro conto se impõe, e não passa despercebida para o crítico: Destroçar, acabar, esmagar, degolar, matar. Aparentemente os termos da descrição levam a supor que se trata também aqui da eclosão da violência. E, no entanto, é uma violência plenamente permitida e sancionada, pois a personagem a considera de maneira muito diversa do que fez com todas as outras manifestações que localizamos até agora – a castração, o duelo, a punição, a vingança, o assassínio. (grifo meu)
Gostaria de considerar aqui dois aspectos. Um primeiro, em que Chaves justifica, a meu ver corretamente, os “valores do vaqueano”, bloqueando qualquer possível julgamento anacrônico em relação ao comportamento de Blau Nunes, ao sublinhar o que chama de uma “perspectiva toda peculiar e subjetiva” por parte dele. Há vários momentos como esse nos Contos gauchescos, em que uma perspectiva crítica menos atenta poderia facilmente desconsiderar essa peculiar subjetividade de Blau ou, em outras palavras, suas idiossincrasias, levando a equívocos primários de interpretação. Penso aqui, por exemplo, no machismo explícito de Blau na conclusão de “O negro Bonifácio”, ou no seu evidente preconceito em relação aos castelhanos em mais de um momento do livro. Não, Chaves nos mostra justamente a perspectiva de Blau, o seu “discurso psicológico”, decorrente dos seus próprios valores, o que contribui para o crítico distinguir dois tipos de violência. Mas há um segundo aspecto a ser considerado, e esse diria respeito a valores externos à diegese, o que nos remeteria, num primeiro momento, ao próprio autor, Simões Lopes Neto, e, num segundo momento, a seus leitores. É certo que numa perspectiva do humanismo clássico, tal como o defendido por Chaves, a sua argumentação é consistente, ainda que possamos questionar o fato de considerar o “Correr eguada” como representativo de um tempo mítico, uma “idade áurea”, como a chama. Salvo na percepção própria a Blau Nunes, com todas as idiossincrasias – legítimas – que lhe são permitidas, mas não necessariamente numa instância externa a ele, seja a do autor, seja a do leitor, em especial do leitor contemporâneo. Na verdade, isso parece contrariar a própria disposição cronológica estabelecida pelo crítico, já que ele considera “Duelo de Farrapos” como representante de uma sociedade estamentária, mesmo com as suas ações ocorrendo cerca de dez anos antes daquelas de “Correr eguada”, que explicitamente acontecem em torno de 1852. Esse deslocamento, perfeitamente válido do ponto de vista da memória e do modo de sentir e de pensar de Blau, parece-me que não pode ser transposto sem alguma mediação para o autor e, com muito mais razão, para o leitor. Voltaremos a esse ponto mais adiante.
Refere-se no final da citação aos outros contos já anali7. Passemos agora à leitura apresentada por Ligia Chiappini sados por ele na sua tese. O argumento central defendido por Chaves, exposto a partir daqui ao longo de três parágrafos, que, embora concorde em linhas gerais com a de Chaves, não caberia vir reproduzido na íntegra, mas pode ser razoavel- introduz alguns elementos que me parecem muito significativos. Ligia também situa “Correr eguada” como representando uma mente sintetizado pelo trecho conclusivo, quando afirma: época meio mítica, mais primordial e chucra, mas escolhe coVerdadeiramente violência, desordem, desmedimo contraponto temporal a ele, incialmente, não “O boi veda, a corrupção e degradação do homem, a lho”, mas o relato “Batendo orelha”: “Há contos que são verdaqueda na animalidade do bicho mau, só ocordeiramente polares nesse confronto de dois tempos e duas rem já na fronteira da civilização, isto é, da Históvisões de mundo. Se “Batendo orelha” avança já para o final ria, que altera e destrói a ordem natural das coido século XIX, “Correr eguada” recua para o início. É notável
que, novamente, vê-se aqui a força do discurso de Blau, que conE conclui: duz a crítica, pelo menos nesse momento, a não levar muito em A frieza de Blau, aqui, e a condenação da maldaconta o fato de as ações narradas ocorrerem já na segunda mede humana no outro conto se explicam, portanto, tade do século. Entende-se perfeitamente que a memória de pela diferença temporal que ele faz questão de Blau recupera aqui um costume efetivamente muito antigo, que marcar, no final, como no início, embora reconhe“recua”, como diz Ligia Chiappini, ao início do século. Mas é claro cendo que os tempos modernos podem ter lá suas que ela não irá ignorar uma data apresentada de forma tão exvantagens, mas frisando a magia desse tempo plícita no conto, o que a leva mais adiante a reconsiderar essas antigo em que se tomava mate e se corria eguada atividades chucras, tachando-as, corretamente, de “tardias”: “O (...) (grifo meu) texto sugere também (...) essa espécie de paraíso xucro, embora meio tardio, porque já existe a propriedade (...) ” Assim, logo adi8. Creio que podemos agora nos encaminhar para a segunante, volta-se a considerar o tempo real em que se passam as da metade de nossa releitura. E para tanto vou me utilizar, além ações, ou seja, meados do século: do que foi discutido até aqui, dos conceitos de narrador, autor e leitor. Creio que a partir dessas três instâncias ficarão mais claras A estância já está estabelecida; quem manda faas reflexões que desenvolvi em torno do “Correr eguada” e que zer a limpa é o major Jordão, dono daqueles campretendo expor nessa segunda parte. Até onde posso perceber, pos, e é ele que, depois de desfrutar a novilhada em relação à figura do narrador – no caso, Blau Nunes –, creio que pode, no verão, e de arreglar suas contas (o não haver muito a ser dito, e todos, críticos e leitores atentos esque comprova seus interesses econômicos e um tão, no essencial, de acordo. Em relação ao leitor também não mínimo de planejamento e de racionalidade na vejo muitos problemas, já que me ficou muito evidente a necessicondução da estância) avisa e convida o vizindádade, tanto em relação ao “Correr eguada” como à obra simonirio para correr a bagualada no veranico de maio. ana como um todo, de que sejam introduzidos novos instrumenComo se vê, tal como Chaves, Ligia Chiappini tenta equa- tais críticos no que diz respeito a essa figura, mas isso deixarei para lizar dados históricos objetivos trazidos pelo conto com aquela a conclusão. O grande problema parece ser aqui a figura do “peculiar subjetividade de Blau”, imbuído pela “magia desse tem- autor. A hipótese que gostaria de avançar em relação ao “Correr po antigo”. E, também como Chaves, não pode escapar da eguada” diz respeito a uma possível utilização nesse conto, por questão da violência, que é por demais explícita no relato, e que, parte de Simões Lopes, do recurso da ironia. Mas não, e isso é ao contrário de “O boi velho”, tem no próprio Blau um de seus preciso ficar bem claro, no sentido corrente da palavra, mas um agentes. Assim, depois de citar aquela passagem final do conto, pouco no sentido em que a utilizaram, por exemplo, os trágicos em que aparecem as “lágrimas de Blau”, ela conclui: “Isso nos gregos, Sófocles em especial, lá no início da cultura ocidental e, a leva a discutir também a questão da violência, que tem, no míni- partir daí, com repercussões que vêm até hoje. Mas, principalmo, duas acepções nos Contos gauchescos: a violência da lei e mente, na acepção que ficou conhecida como ironia romântica. da ordem, imposta ao barbarismo primitivo do gaúcho, e a vio- Quanto à acepção corrente, aquela que identifica a ironia como lência da rebeldia deste que persiste sob e contra aquela”. (grifo um recurso discursivo que quer significar exatamente o oposto do meu) Assim, embora por caminhos argumentativos próprios, Chi- que está sendo dito, e que vem sempre acompanhada com doappini chega numa equação em grande parte idêntica à de ses maiores ou menores de jocosidade e deboche, não raro com Chaves, ao estabelecer duas dimensões de violência, uma primiti- frieza e mesmo alguma maldade, sabemos que praticamente va e legítima, outra moderna e ilegítima, a violência da lei e da inexiste no discurso de Blau Nunes. Embora tenha sido empregada ordem. Mas, ao contrário deste, que encontra uma solução para por Simões Lopes em outros textos, particularmente em suas petal distinção no interior da própria análise que faz de “Correr ças teatrais. Mas também naqueles pouco conhecidos textos eguada”, apelando para um humanismo clássico, como já dito, jornalísticos, de matéria urbana, muito irônicos, às vezes até cáusem que o animal é visto numa ordem inferior à do homem (o ho- ticos, e que o seu biógrafo Carlos Sica Diniz nos fez o favor de mem, nas condições primitivas é livre, o animal não) , Ligia Chiap- torná-los mais acessíveis. Decididamente esse tipo de ironia, para pini irá postergar essa discussão para outros contos do livro, o que quem conhece minimamente o narrador de Contos gauchescos, nos impede, pelo menos nesse momento, de acompanhá-la. Mas sabe que não faz parte do perfil de Blau, esse “guasca sadio, a cabe pontuar uma passagem de sua análise que me parece um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade”, bastante significativa, e que nos traz de volta ao par “O boi ve- como lemos na apresentação do livro, e como confirmamos mais lho” e “Correr eguada”. Diz Ligia: ainda ao ir lendo cada um dos contos do livro. Não, decididamente, repito, o velho campeiro não pode ser considerado alTal narrador, Blau, ao contar essa matança bárbaguém particularmente afeito ao uso da ironia em nenhum dos ra dos animais, não tem por eles a mesma pena sentidos da palavra, embora, naturalmente, como qualquer que sente pelo Boi Velho assassinado. Justamente “pessoa”, possa vir a utilizar-se dela eventualmente. Mas quanto a porque, aqui, embora haja também uma incipiente Simões Lopes, ou melhor, quanto ao autor desses Contos gauorganização e racionalização econômica, presidinchescos, o que dizer? E podemos ainda tornar um pouco mais do a “limpeza”, ela se confunde com a gratuidade complexa a questão se reunirmos, às duas primeiras acepções já da diversão em que homens e bichos lutam, dispureferidas, aquela terceira, a ironia romântica, que teve no grupo tando a primazia, no enfrentamento franco e primide Iena e na figura de Friedrich Schlegel, em especial, as suas tivo, muito diferente daquela covardia que foi maprimeiras formulações. Evidentemente que não seria a hora de tar um boi velho e indefeso, para aproveitar um discutirmos teoricamente esse conceito, muito menos aquele de simples couro. (grifo meu) ironia trágica. Mas talvez fosse útil ficarmos com a ideia essencial,
presente em ambos os conceitos, que defende um necessário distanciamento que o autor deve estabelecer, em determinado momento, em relação a sua matéria e/ou a seu texto. Isso significa, é claro, uma operação de um típico refinamento cultural que obviamente não poderia ser encontrado no discurso de Blau, mas que seria bastante plausível encontrá-lo em Simões. Creio estar tocando aqui numa questão que ainda não foi suficientemente esclarecida pela crítica, ou seja, o grau de erudição e/ou refinamento cultural que coube a esse filho de estancieiro vindo de uma das famílias mais ricas do extremo sul do país. Não são muitos os dados biográficos a respeito, e os poucos que existem às vezes são contraditórios. A sua própria formação escolar ainda está para ser melhor esclarecida, e talvez nunca venha a sê-lo. Mas basta por agora perguntarmonos se ao dispor “O boi velho” e “Correr eguada” dessa forma, um seguido do outro, não haveria certa ironia por parte de Simões em relação ao seu próprio herói, o Blau Nunes. Mas, principalmente, em relação a ele próprio, a nós, a todo mundo, enfim. Convém lembrar aqui mais uma vez a abertura de “O boi velho”: “Cuê-pucha!... é bicho mau, o homem! Conte vancê as maldades que nós fazemos e diga se não é mesmo!...” (grifo meu) No final do conto volta o refrão, com uma pequena mas significativa alteração: “Cuê-pucha!... é mesmo bicho mau, o homem!” (grifo meu). Imediatamente após essa frase, que encerra “O boi velho”, Blau começa a narrar o “Correr eguada”, em que novamente animais serão sacrificados. E não qualquer animal, mas justamente cavalares, a espécie animal mais importante na cultura do gaúcho, como nove em cada dez dos viajantes estrangeiros que passaram pela região do pampa reconheceram. Coerente com essa visão trazida pelos inúmeros documentos, e não só estrangeiros, o cavalo aparece de forma também marcante na literatura gauchesca platina e brasileira. Nesse último caso, a começar pelo romance O gaúcho, de Alencar, que chega às raias do exagero, como se sabe, nessa valorização. Mas não precisamos sair dos Contos gauchescos para verificarmos isso, bastando pensar nos relatos “Juca Guerra”, “Jogo do osso”, “Trezentas onças” e “Artigos de fé do gaúcho”, entre outras narrativas simonianas, onde o cavalo ganha destaque. Acredito que esse dado pode ser significativo ao se refletir sobre o “Correr eguada”. Outro aspecto que julgo pertinente esclarecer em relação ao conto que nos ocupa diz respeito a esse costume de “correr eguada”, que lhe deu o título. Não encontrei nos principais estudos monográficos que consultei sobre os primórdios da cultura gaucha referência a ele, o que me leva a pensar que teria se estabelecido já num tempo posterior, na época de formação das estâncias e, portanto, no período de instalação, mesmo que inicial, do capitalismo no campo. Se isso for verdade, teríamos que rever essa ideia de um paraíso chucro e de “uma ordem natural não problemática”, que justificaria aquela violência presente no conto, que seria então “plenamente permitida e sancionada”, como quer Chaves: Simplesmente porque esta “violência” que aqui aparece faz parte integrante da vida num espaço ainda em estado natural, não ultrapassa os seus limites e nem altera o equilíbrio fundamental da existência. Ao contrário, o homem exerce a sua liberdade; através da ação integra-se no mundo que lhe é oferecido como um espaço
aberto e fonte inesgotável de recursos, a qual incessantemente se refaz e se recompõe. Na dinâmica elementar desse tempo “pré-histórico”, há montaria “para tropa” e há “montaria para limpeza”; e, no processo de seleção, a primeira se aproveita, a segunda tem de ser eliminada. O ciclo vida/morte obedece apenas ao processo vital das coisas e está isento de arbitrariedade calculada, porque não foi subvertido em instrumento de extermínio inútil e dominação do homem pelo homem, como ocorre nos contos de paixão e sangue, nos contos históricos e na metáfora de “O boi velho”. (grifo meu) E conclui: Verdadeiramente violência, desordem, desmedida, a corrupção e degradação do homem, a queda na animalidade do bicho mau, só ocorrem já na fronteira da civilização, isto é, da História, que altera e destrói a ordem natural das coisas, nunca no cenário de “Correr eguada” que é – este sim – humano, porque aí se mantém inalterável o equilíbrio no qual justamente se diferenciam o homem e o animal. 9. Ligia Chiappini, embora acompanhe Chaves no essencial, ou seja, na distinção entre dois tipos de violência, não deixa de notar, conforme já vimos, que em “Correr eguada” a “estância já está estabelecida; quem manda fazer a limpa é o major Jordão, dono daqueles campos”, comprovando assim os “seus interesses econômicos e um mínimo de planejamento e de racionalidade na condução da estância”. Neste sentido, a motivação econômica para o massacre é muito clara, talvez não tanto para o jovem Blau, mas certamente para o major Jordão. Por trás ou ao lado da busca pelo divertimento, motivação de Blau e seus companheiros, estava o objetivo bem racional e mercantil: proteger o gado dos animais semi-selvagens e, ao fim e ao cabo, proteger e garantir o lucro. Ou seja, o major Jordão já estaria anunciando o mundo daqueles “Silva, mui políticos” do conto “O boi velho”. E neste ponto caberia a pergunta: existia esse tipo de chacina em período anterior à estância, seja demarcada ou não? Acredito que não, o que comprometeria consideravelmente, caso isso se confirme no plano histórico, a ideia de um paraíso chucro como constituinte do conto “Correr eguada”, exceto, como mais de uma vez aqui destacado, para a perspectiva de Blau. A questão que parece se colocar então, relativa à dimensão autor é: até que ponto Simões Lopes comunga com a perspectiva do narrador, até que ponto não. E aí a importância, me parece, de pensarmos a ironia conceitualmente, tal como exposta acima, pelo menos no que diz respeito ao “Correr eguada”. Mas tenho para mim também que, de uma maneira geral, a perspectiva adotada pelo autor de Contos gauchescos revela-se mesmo, como quer Chaves, no seu “nível mais profundo”, pela palavra de Blau. Se isso for verdade, no que diz respeito à dimensão autor, continuaremos a trabalhar, no essencial, com um narrador praticamente colado ao seu autor, no que diz respeito à visão de mundo. Algo semelhante ao que acontece, em geral, quando lidamos com a obra de Erico Verissimo, embora em aparência sejam casos muito diferentes. Portanto, independente de alguns ques-
tionamentos pontuais aqui apresentados em relação às leituras feitas por Chaves e Chiappini, as argumentações dos críticos se sustentam, pelo menos em relação aos conhecimentos biográficos que se tinha de Simões até o momento em que redigem suas teses, e que não se alteraram de modo significativo de lá para cá. E principalmente se sustentam se levarmos em conta o momento histórico em que tais leituras foram feitas, ou seja, nos anos de 1980, em que ainda mal se levantavam no horizonte abordagens críticas que iriam colocar em cheque aquela perspectiva humanista clássica adotada por ambos quando de suas análises. Embora, e isso é importante destacar, já se perceba no discurso de Ligia Chiappini, fruto de um estudo concluído às portas da década de 1990, uma certa e justificada vacilação no que diz respeito àquela aceitação de “dois tipos de violência”. Tanto que ela irá caracterizar positivamente uma das violências, a “violência da rebeldia” (que contrapõe à outra, a violência da “lei e da ordem”), que ela mostrará existir no conto seguinte de sua análise, ou seja, no “Contrabandista”. Mas convém não esquecer que tal rebeldia inexiste em “Correr eguada”, muito pelo contrário, do ponto de vista exclusivamente humano tudo se dá na mais perfeita paz e harmonia, o que dificulta aceitar, no âmbito estrito desse conto, a argumentação daquelas “duas violências”. Seja como for, acredito que não seria totalmente despropositado que, pelo menos em alguns casos, descolássemos mais substancialmente a figura de Blau Nunes do sujeito histórico chamado João Simões Lopes Neto. Digo isso porque, para um grande personagem como de fato é, a leitura de Blau que temos feito até aqui talvez nos tenha mostrado um ser por demais “inteiriço” (tal como ele nos é apresentado no texto de abertura de Contos gauchescos, aliás, escrito por quem mesmo?), o que pode ser um problema não tanto, ou não completamente, de sua construção, mas no âmbito da sua recepção. Talvez fosse o caso de lembrar aqui o “giro” que ocorreu na leitura que vinha sendo feita do romance Dom Casmurro quando constatou-se que todos os fatos relatados vinham filtrados pela ótica de uma única personagem, como em qualquer típica narrativa em primeira pessoa. Repetia-se ali, em meados do século XX – e talvez não por acaso tendo por protagonista uma crítica estrangeira – , a velha história do ovo de Colombo. Embora dificilmente consigamos imaginar uma figura mais diferente de Blau Nunes do que Bentinho, do ponto de vista estritamente da técnica narrativa a situação é idêntica ou muito semelhante em Contos gauchescos, e caberia, quem sabe, nos distanciarmos um pouco mais, ironicamente, desse grande contador de “causos” que é Blau Nunes. E com isso chegamos no último ponto a ser tratado, ou seja, uma reflexão crítica a respeito da figura do leitor, com a qual encerrarei minha análise. Aqui, de fato, há muito a ser dito, e precisarei restringir-me àqueles aspectos que me parecem mais essenciais. 10. Podemos situar em meados da década de 1980 o início no Brasil das discussões em torno do que ficou conhecido como o pós-moderno. Para lá das complexas, difíceis e, não raras vezes, estéreis discussões que então e depois se travaram em torno do conceito de pós-moderno e seus derivados (pós-modernismo, pós -modernidade etc...) há algo que, à distância de hoje, pode ser afirmado com um grau considerável de certeza: esse período estabelece claramente uma linha de “corte” no que diz respeito à crítica literária praticada entre nós. Esgotado o período estruturalista, surgia no horizonte o que se chamou de a “ascensão da História”, muito vinculada à grande propagação e legitimação, na época em questão, de autores como Benjamin, Backtin e
Raymond Williams, além de um Foucault mais propriamente “historiador”. Mas também se firmavam as propostas da Estética da Recepção, vindas do período imediatamente anterior. Paralelo a esse resgate da importância da História, e muitas vezes em franca oposição a ela, radicalizavam-se algumas das propostas estruturalistas, dando lugar ao que se denominava genericamente de pós-estruturalismo, calcado nas filosofias da diferença, fortemente marcadas pelo conceito de genealogia de Nietzsche. Consolidava-se no país de forma definitiva, reprocessado agora por alguns departamentos de letras norte-americanos – em especial o de Yale e seu principal nome, Paul de Man – , o pensamento de Derrida e Deleuze, que se somavam ao de Barthes e Foucault de “a morte do autor”. Esses dois últimos já muito presentes nas reflexões sobre o literário no Brasil, mas que ganhavam agora outras dimensões ainda não exploradas de todo por aqui. No meio disso tudo a crítica feminista estabelecia-se cada vez mais, abrindo campo para os estudos de gênero, logo postos em diálogo com os estudos de “raça” ou étnicos, assim como com os de “classe”, vistos esses últimos numa nova e singular perspectiva trazida pelos Estudos Culturais. Estes, por sua vez, abriam o leque de investigação para inúmeras outras linhas de pesquisa, incluídas aí as decorrentes dos novos estudos da mídia, das culturas populares – agora no plural – , da subalternidade e do póscolonialismo. Tento resumir como posso o que é, evidentemente, bem mais vasto. Mas é suficiente para sugerir que, do ponto de vista da crítica literária, “mudou tudo” no interior desse campo do conhecimento nos últimos dez ou vinte anos do século. E um dos fatores centrais para tal “virada” foi a perspectiva trazida por um novo conceito de leitor, decorrência direta da já citada Estética da Recepção. Enfim, o século XX terminava com uma grande e saudável ebulição na área da crítica literária e cultural. 11. Concluí o parágrafo anterior deliberadamente com a Estética da Recepção justamente porque ela foi um fator decisivo para a construção de um novo conceito de leitor, e é focalizando esse conceito que gostaria de encerrar minhas reflexões sobre o conto “Correr eguada”. Borges, o maior de todos os escritores dessa “comarca pampeana”, da qual Simões Lopes vem ocupando cada vez mais um destacado lugar, já dizia, bem antes de Jauss, que se pudéssemos saber o modo como os leitores futuros leriam as obras literárias, e não só as de sua própria época, mas as de quaisquer outras, saberíamos o essencial desse mundo futuro. Lembro Borges porque me seduz a ideia de pensar como o autor da célebre narrativa “El sur” leria os Contos gauchescos de Simões Lopes Neto, particularmente esse “Correr eguada”, tão vinculados ao que na Argentina se chama de universo criollo, ao qual Borges dedicou tanto interesse, apesar do seu decantado cosmopolitismo. Mas deixemos essa conjectura de lado e pensemos em nós, “leitores futuros” daquele autor que em 1912 deu à luz os Contos gauchescos: como ler “Correr eguada” em 2013? Como sermos leitores de hoje, dessas primeiras décadas do século XXI? Levando-se em conta toda a contribuição trazida por essa crítica contemporânea, parece-me que uma das operações absolutamente necessárias seria considerar a ideia de que, para além do que ficou conhecido na teoria literária como a “intenção do autor”, daquilo que conscientemente quis dizer, o leitor contemporâneo deve, necessariamente, levar em conta também aquilo que ele diz inconscientemente, sem intenção, através do seu texto. E, no limite, levar em conta também aquilo que não está no texto, aquilo que ele silencia. Ou seja, há que se pensar o que pode estar aquém ou além do autor, do texto, da
própria época em foi produzido. Como tão bem demonstram Benjamin e novamente Borges, esses dois grandes leitores, o leitor será sempre contemporâneo, inserido num contexto histórico do qual não consegue escapar, mesmo querendo. Será sempre, inexoravelmente, leitor do seu próprio tempo, e será sempre, com mais ou menos talento, um representante desse tempo. Tentemos então, de nossa parte, responder ao desafio desses e de outros grandes leitores. Pensemos ainda, além do que já foi aqui falado, também no que pode estar na margem, no desvio, no subterrâneo do texto, na “dobra”, para usarmos a conhecida expressão de Deleuze. Ora, todas essas ideias que estou lançando aqui, mais como propostas para futuras leituras da obra simoniana, advém do rico repertório crítico que foi se estabelecendo nas últimas duas ou três décadas no país e no mundo. Mas eu gostaria ainda de chamar a atenção para uma dessas correntes críticas, aliás das mais recentes e que, do meu ponto de vista, tem muito o que dialogar com uma obra como a de Simões Lopes, e muito de perto com o “Correr eguada”. Refiro-me aos Estudos Animais, que surge no bojo de um campo de pensamento mais vasto que, desde o início do século atual vem exercendo uma forte influência no pensamento contemporâneo, e que podemos sintetizar na expressão póshumanismo. 12. Em seu ensaio “O animal e o primitivo: os outros de nossa cultura”, Benedito Nunes afirma que “o animal é o grande outro de nossa cultura”. Entenda-se aí a expressão “nossa cultura” como representando aquilo que chamamos de cultura ocidental, com suas raízes no mundo greco-latino, que constituiram as bases do que chamei antes de “humanismo clássico”. Mesmo a filosofia de Heidegger ainda hesita em romper definitivamente com essa concepção que foi sendo construída há séculos e que vê o ser humano como uma espécie supostamente superior aos animais não- humanos, e que ganhou com Descartes o seu ponto mais alto. Como se sabe, para esse filósofo francês os animais não passavam de máquinas destituídas de consciência e, portanto, de linguagem, instaurando uma abissal separação entre o homem, esse animal-humano, e todas as inúmeras espécies animais, classificadas como nãohumanas. Num ambiente de ascensão do pós-humanismo como o que vivemos hoje fica cada vez mais insustentável a manutenção dessa e de outras concepções semelhantes, melhor seria dizer – crenças – que sustentavam aquele humanismo clássico. Derrida, em “O animal que logo sou (a seguir)”, parece dar o passo decisivo que faltou a Heidegger e rompe definitivamente com a cisão radical estabelecida entre humanidade e animalidade e que, como afirma Maria Esther Maciel ao comentar esse ensaio de Derrida, permitiu a “legitimação das práticas humanas de violência e assujeitamento dos demais seres viventes”. Ora, não precisamos de muito mais para começarmos a perceber que aquela ideia de distinguir “duas violências” no interior dos Contos gauchescos não encontra mais respaldo no mundo contemporâneo, quero dizer: numa leitura que se queira em diálogo com o que de mais importante e polêmico vem sendo tratado pelo pensamento contemporâneo no que se refere ao par humanidade/animalidade. Tanto o Blau jovem como o Blau velho, tanto aquele “patrãozinho” que o acompanha nas viagens pelo Rio Grande como o próprio Simões Lopes, tanto os primeiros leitores de Contos gauchescos quanto nós, leitores contemporâneos, todos, sem exceção,
estivemos e estamos envolvidos, a partir dessa nova perspectiva crítica, num único universo. Um universo em que de há muito naturalizamos ideias que, cada vez mais, vêm mostrando sua fragilidade. Ideias como as de que só animais humanos possuiriam “linguagem, fala, pensamento, riso, lágrimas, nudez, consciência de morte, uso de utensílios, capacidade de responder, mentir e apagar os próprios rastros”, como afirma ainda Maria Esther Maciel. Ou seja, tudo o que como bons alunos “ocidentais” aprendemos na escola. Ora, qualquer pessoa que mantiver um mínimo de relacionamento com algum animal doméstico sabe, ou deveria saber, que tal concepção sobre o “ser animal” não se sustenta. Mas pensando bem, talvez aquele Blau velho, curtido pelas experiências da vida, já possuidor daquela sabedoria tão decantada por Benjamin ao se referir ao narrador tradicional, talvez ele já soubesse de tudo isso. E lembramos aqui, pela última vez, do conto “O boi velho”. Quero referir-me particularmente ao momento em que o boi Cabiúna fica sozinho, depois da morte de seu companheiro Dourado: Ficou pois solito, o Cabiúna; como era mui companheiro do outro, ali por perto dele andou uns dias pastando, deitando-se, remoendo. Às vezes esticava a cabeça para o morto e soltava um mugido ... Cá pra mim o boi velho (...) berrava de saudades do companheiro e chamava-o,como no outro tempo,para pastarem juntos,para juntos puxarem o carretão... E conclui com uma fala que, dentro do nosso contexto de análise, ganha uma dimensão muito especial, além de demonstrar, mais uma vez, a sabedoria que costumamos atribuir a Blau: “ – Que vancê pensa!... os animais se entendem ... eles trocam língua!...” E não há como não lembrar também de um dos “artigos de fé do gaúcho”, o de número oitavo: “Fala ao teu cavalo como se fosse gente”. A questão que fica então é: podemos nós, leitores contemporâneos, aceitar tão naturalmente como vínhamos até aqui aceitando aquele bordão, que junta numa mesma expressão “tomar mate e correr eguada”? Ou devemos ler “Correr eguada” e, em especial, esse bordão, ironicamente, independente de chegarmos a essa leitura por sugestão ou não do próprio autor, e pensar no quanto de violência ainda persiste, hoje, em relação aos animais? Na verdade, devemos ir bem mais longe, e pensarmos no quanto de violência ainda persiste em relação aos muitos “outros” de nossa cultura: o primitivo, a criança, o louco, a mulher, o negro, o índio e tantos outros “outros”. Talvez por aí possamos contribuir um pouco para transformar nossa barbárie contemporânea em um mundo mais civilizado. Para concluir, e dada a riqueza do campo da crítica literária e cultural da atualidade, parece haver muito a se fazer no que diz respeito à obra simoniana quanto aos três âmbitos aqui escolhidos, o do narrador, do autor e do leitor, especialmente neste último, como tentei demonstrar. Em particular em relação a uma das correntes críticas destacadas acima, e muito sucintamente apresentada, os Estudos Animais. E dentro desta corrente cabe destacar a Zoopoética, com a qual o diálogo com a obra simoniana pode estar só começando. Ao que tudo indica, há muito a se fazer por aí, e isso vale não só para os Contos gauchescos, mas também para outras obras de Simões Lopes Neto, em particular Lendas do sul, que pode se mostrar especialmente favorável a esse tipo de análise.