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Introdução
As florestas de Taunus foram inundadas por uma escura maré humana...
Depois do anoitecer, fogueiras ardiam a intervalos regulares ao longo da encosta. Cada vez que uma nova luz perfurava a escuridão, milhares de alto-falantes roncavam: “O objetivo está à vista”. Muitos estavam usando festivos “trajes típicos de pastores” e distintivos ornamentais. Havia também muitos uniformes similares aos da antiga Wehrmacht, a força aérea alemã, mas com a suástica substituída por um cajado de pastor com uma fita, cujas pontas estavam presas nos bicos de pombas.
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Dez minutos antes da meia-noite, Friedolin apareceu em uma clareira onde uma pilha de madeira havia sido preparada. Estava acompanhado pelos Pastores, cinco marechais-de-campo, dois grandes-almirantes e um brigadeiro-do-ar...
Na clareira, algumas centenas de convidados de honra – alemães assim como estrangeiros – estavam à espera...
Um marechal-de-campo segurou um microfone prateado. Milhares de alto-falantes transmitiram o grito estridente de Friedolin: “O Quarto e Eterno Reich está à vista!”.
Então a pilha de madeira na clareira irrompeu em chamas. A massa humana rugiu; força reunida como uma nuvem de trovoada.1
Quando a Segunda Guerra Mundial estava perdendo a força, no outono de 1944, Erwin Lessner, um escritor austríaco residente nos Estados Unidos, publicou um romance distópico
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chamado Phantom Victory que deu voz ao medo que surgia entre muita gente no mundo de fala inglesa. A trama do romance, ambientado nos anos 1945-1960, retratava um pastor humilde, mas carismático, chamado Friedolin substituindo Adolf Hitler como novo Führer da Alemanha e liderando a nação em uma tentativa renovada de conquistar o poder mundial. Phantom Victory refletia preocupações cada vez maiores de que os perigos do passado recente pudessem retornar em um futuro pró ximo. No momento da publicação do livro, as forças aliadas estavam rapidamente impelindo a Wehrmacht de volta ao território alemão. A conclusão do romance, no entanto, sugeria que a força militar não seria suficiente para garantir um triunfo final. A menos que os Aliados se mantivessem vigilantes, determinados a impedir o renascimento de ideias nazistas, a derrota iminente do Terceiro Reich poderia se mostrar passageira – uma “vitória fantasma” – e ser seguida pela ascensão de um Quarto Reich ainda mais letal.
A narrativa de Lessner foi uma das primeiras a articular um medo que pairou sobre todo o período do pós-guerra. Desde o colapso do Terceiro Reich em 1945, um espectro assombrou a vida ocidental – o espectro do ressurgir do nazismo. Por toda a Europa e América do Norte, persistiram as inquietações sobre nazistas fanáticos retornando ao poder e estabelecendo um Quarto Reich. Essas inquietações foram expressas não só em romances como o de Lessner, mas em queixas políticas, matérias jornalísticas, filmes consagrados, programas de TV no horário nobre e populares histórias em quadrinhos. Eles imaginavam uma série de ameaças – golpes políticos, ataques terroristas e invasões militares – emanando de cenários variados que incluíam a Alemanha, a América Latina e os Estados Unidos. Os temores de um Quarto Reich flutuaram no decorrer do tempo, avolumando-se em certas épocas e refluindo em outras. Mas o pesadelo que imaginaram nunca chegou a ocorrer. Até agora, a perspectiva de um Reich renascido tem permanecido confinada à imaginação.
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A princípio pode parecer absurdo examinar a história do Quarto Reich. Afinal, a história costuma ser entendida como documentação e interpretação de eventos que realmente ocorreram. Contudo, como Hugh Trevor-Roper comentou de forma eloquente há mais de uma geração, “a história não é apenas o que aconteceu: é o que aconteceu no contexto do que poderia ter acontecido”.2 É verdade que não surgiu um Quarto Reich nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Mas poderia ter surgido? A reflexão sobre uma questão tão contrária aos fatos nos ensina alguma coisa sobre a história real? Este livro sugere que a resposta é sim.
Da perspectiva de hoje, os medos de um Quarto Reich surgidos no pós-guerra parecem grosseiramente exagerados. A Alemanha não entrou em uma ditadura após 1945. Pelo contrário, o país se transformou em uma democracia estável. É, então, de todo apropriado ver a história da Alemanha do pós-guerra como uma história política de sucesso. Ao fazê-lo, no entanto, não podemos correr o risco de retratar a democratização do país como algo mais ou menos inevitável. Isso implicaria considerar que o Quarto Reich estava destinado a se manter como um pesadelo não realizado e é difícil dizer se essa suposição pode ser verdadeira. Até agora, houve pouca pesquisa séria sobre o tema do Quarto Reich. Em virtude disso, os historiadores têm se mantido ignorantes quanto à complexa história do pós-guerra. Em geral, têm-se desprezado o fato de que, em todas as fases de existência da República Federal, persistiram temores por todo o mundo ocidental de que um novo Reich estivesse no horizonte. Os historiadores não procuraram examinar as razões desses medos. E deixaram de perguntar se esses temores tinham alguma base na realidade, e ainda menos de responder a essa pergunta. Essa última omissão é bastante problemática, pois houve, após 1945, um bom número de episódios em que a Alemanha enfrentou sérias ameaças de grupos nazistas procurando voltar ao poder. Todos esses esforços acabaram falhando. Mas vale a pena investigar se poderiam ter sido bem-sucedidos. Ao revisitar esses episódios e imaginar cenários em
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que eles poderiam ter se desenrolado de maneira diferente, podemos avaliar melhor a consistência das inquietações do pós-guerra.
Além disso, ao examinar a história do que poderia ter acontecido, podemos entender melhor a memória do que de fato ocorreu. A evolução do Quarto Reich como ideia na vida intelectual e cultural do Ocidente no pós-guerra reflete como as pessoas recordaram os doze anos da história do Terceiro Reich. A evolução da ideia, no entanto, não mostra apenas como as pessoas recordavam passivamente os acontecimentos do passado. Mostra como empregaram de forma ativa essas memórias para moldar o futuro. O medo de um retorno nazista ao poder motivou, durante muito tempo, iniciativas públicas para impedir que essa possibilidade viesse de fato a se concretizar. O medo estimulou as pessoas a impedir um renascimento nazista não só na Alemanha, mas em qualquer outra parte do mundo. No decorrer da era pós-guerra, o Quarto Reich foi universalizado como um significante global de ressurgimento do nazismo e do fascismo. No processo, a ideia funcionou como uma profecia de volta automática ao passado. Ao inspirar, no entanto, a vigilância popular, sua existência no reino das ideias impediu sua concretização na realidade. Para compreender esse fenômeno paradoxal, é necessário examinar as origens e evolução do Quarto Reich na cons ciência ocidental. Ao fazê-lo, podemos ver como a história do pós-guerra foi moldada por um espectro.
Historicizando o Quarto Reich
Até agora houve pouca pesquisa sistemática sobre o Quarto Reich. Em consequência disso, a maioria das pessoas tem sido exposta ao tema por intermédio de histórias sensacionalistas nos meios de comunicação de massa. Durante décadas, mas em especial desde a virada do milênio, jornais europeus em países da Espanha à Rússia têm alertado sobre um Quarto Reich – nenhum com mais frequência que os tabloides bri tânicos, que têm publicado regularmente histórias com manchetes de
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impacto, como “Arquivos do MI5: Nazistas Planejaram um ‘Quarto Reich’ na Europa do Pós-Guerra” e “Aurora do Quarto Reich: Por que o Dinheiro está Alimentando Novos Medos Europeus de uma Alemanha Hegemônica”.3 Histórias semelhantes têm aparecido na imprensa norte-americana, em particular desde a eleição de Donald Trump em 2016, com um jornalista estreante declarando de modo espetacular que os esforços dos grupos “antifa” de esquerda para combater a “direita alternativa” faziam parte de uma campanha maior de “proteção... contra um Quarto Reich”.4 Dando uma contribuição adicional a essa tendência sensacionalista têm surgido estudos não acadêmicos que associaram a ideia de um Quarto Reich a várias conspirações globais. Livros como The Rise of the Fourth Reich: The Secret Societies That Threaten to Take Over America (2008), de Jim Marrs, e The Nazi Hydra in America: Suppressed History of a Century – Wall Street and the Rise of the Fourth Reich (2008), de Glen Yeadon, fizeram afirmações bizarras que pouco têm ajudado a aproximar o tema da credibilidade acadêmica.5
A proliferação desses textos sensacionalistas ajuda a explicar por que os historiadores têm evitado estudar o Quarto Reich. O que não quer dizer que tenham se esquivado inteiramente. Na realidade, acadêmicos e outros escritores têm produzido monografias, matérias para revistas e artigos de opinião com títulos atraentes nos quais se destaca a expressão “O Quarto Reich”.6 Depois, no entanto, de captar a atenção dos leitores, esses textos em geral não têm conseguido explicar a ideia com um mínimo de profundidade e mostrar como ela foi compreendida, usada e explorada. Deficiências semelhantes têm marcado estudos acadêmicos que mencionam, mas sem nunca definir de modo satisfatório, a ideia do Quarto Reich. Em seu livro, A History of Germany 1918-2008, Mary Fulbrook, por exemplo, afirmou que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, “muitos [alemães] viram a ocupação pelos Aliados como um ‘Quarto Reich’ não melhor que o Terceiro”.7 Do mesmo modo, em seu estudo The Nazi Legacy, Magnus Linklater declarou que, após 1945, “o povo alemão, totalmente exausto da guerra e da política,
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pensava apenas em sobreviver: um quilo de batatas... tinha mais importância que os sonhos de um Quarto Reich”.8 Esses dois trechos revelam compreensões muito diferentes do Quarto Reich; contudo, como nem um nem outro darão ao conceito qualquer interpretação mais aprofundada, seu significado se mantém obscuro.9 O fracasso dos estudiosos em fazer avançar nossa compreensão do Quarto Reich tem sido agravado por historiadores que rejeitaram por completo o conceito. No livro O Terceiro Reich em Guerra, Richard J. Evans declarou de forma categórica que “a história não se repete. Não haverá um Quarto Reich”.10 Em The Nature of Fascism, Roger Griffin descartou os “temores... [de] um Quarto Reich na Alemanha” como “histéricos”.11 E em The Spirit of the Berlin Republic, Dieter Dettke concluiu que “é inconcebível que a República de Berlim venha um dia a se tornar um Quarto Reich alemão”.12 Esses comentários ásperos são compreensíveis, dadas as invocações sensacionalistas do conceito. No entanto, ao rejeitar sua seriedade, desencorajam os esforços para investigar sua história mais profunda.
Em vista de como o Quarto Reich tem sido mal teorizado e mal documentado, está mais do que na hora de historicizá-lo. Para fazer isso é preciso desvendar as origens da expressão e traçar sua evolução no discurso intelectual, político e cultural do Ocidente. Essa tarefa implica um exame dos modos como o Quarto Reich tem sido imaginado por intelectuais, políticos, jornalistas, romancistas e cineastas. Requer que se explique como a evolução da ideia refletiu forças políticas e culturais mais amplas. Por fim, envolve uma compreensão de como o conceito se relaciona com temas mais amplos de história e memória.
O Quarto Reich como Símbolo
O primeiro passo para historicizar o Quarto Reich envolve o reconhecimento de sua ambiguidade semântica.13 No nível mais elementar, o Quarto Reich é um símbolo linguístico – isto é, uma palavra ou expressão que emprega descrição ou sugestão para comunicar algum tipo de
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significado relativo a alguma entidade externa.14 O Quarto Reich é também uma metáfora, uma expressão que significa literalmente uma coisa, mas é usada em sentido figurado para representar outra coisa. Mais importante ainda, o Quarto Reich é um slogan. É um significante altamente retórico que emprega uma expressão que prende a atenção para informar e persuadir. A expressão pode ser aspiracional ou oposicional, positiva ou negativa, mas reformula ideias sociais e políticas complexas em termos mais simplificados. Ao fazê-lo, um slogan forja solidariedade entre pessoas de diferentes pontos de vista políticos, dando-lhes uma ideia comum em torno da qual se reunir. Ao mesmo tempo, um slogan também pode promover a polarização social, provocando oposição de grupos cujos membros têm crenças diferentes.15
Desde sua concepção até os dias de hoje, o Quarto Reich tem exibido quase todas essas características. Como símbolo, metáfora e slogan onipresentes na vida ocidental do pós-guerra, há muito tem se definido pela ambiguidade. Isso é particularmente verdadeiro em um sentido temporal. Como expressão, o Quarto Reich tem sido usado sobretudo em referência ao futuro – a uma realidade ainda por vir. Mas também tem sido usado em referência ao presente – a uma realidade que (supostamente) já passou a existir. O Quarto Reich também é ambíguo em um sentido espacial. Tem sido empregado na maioria das vezes para se referir a uma Alemanha futura ou à Alemanha atual, mas também foi aplicado a outros países. Nos dois domínios – temporal e espacial – o Quarto Reich comunicou um significado tanto denotativo quanto conotativo. Foi usado de forma literal, simbólica e metafórica para descrever uma realidade corrente ou futura – democrática ou totalitária – em diferentes locais. A expressão também tem sido empregada em sentido retórico para evocar visões concorrentes sobre essa realidade. Visões tanto positivas quanto negativas, tendo expressado fantasias assim como medos. Em ambos os casos, a ideia do Quarto Reich galvanizou apoio assim como oposição. Ao fazê-lo conquistou a lealdade, e despertou a inimizade, de milhões de pessoas na Alemanha e ao redor do mundo.
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Por todas essas razões, rastrear a história do Quarto Reich fornece uma compreensão mais profunda de uma das ideias mais influentes, embora mal examinada, da era do pós-guerra.
O Quarto Reich e a História da Alemanha no Pós-Guerra
Historicizar o Quarto Reich abre novas perspectivas sobre a história da Alemanha no pós-guerra. É especialmente útil para nos ajudar a repensar a “narrativa central” da República Federal. Estudiosos têm tradicionalmente retratado o desenvolvimento pós-guerra da Alemanha como uma “história de sucesso” (Erfolgsgeschichte).16 Atribuíram esse sucesso a uma série de fatores, incluindo o impulso reconstrutor da política de ocupação dos aliados ocidentais, a prosperidade gerada pelo milagre econômico do país (Wirtschaftswunder), a estabilidade trazida pela busca do ex-chanceler Konrad Adenauer de integração ocidental (Westbindung) e os efeitos salutares da “modernização” geral do país. Políticos há muito adotaram a crença de que essa combinação de fatores fez da Alemanha um modelo a ser imitado – em especial o ex-chanceler Helmut Schmidt que, em 1976, cunhou o famoso slogan de campanha, “Modell Deutschland” (Modelo Alemão).17 A narrativa “história de sucesso” também foi institucionalizada em museus, como o Haus der Geschichte, em Bonn, cuja exibição permanente apresenta uma inconfundível história de progresso da ditadura à democracia.18 Apesar, no entanto, desse consenso, algumas questões continuam sendo debatidas. Estudiosos têm discordado sobre quando a Alemanha do pós-guerra se estabilizou de uma vez por todas, com os conservadores optando por meados dos anos 1950 e os liberais apontando para a “segunda fundação” liberal do país nas décadas de 1960 e 1970.19 A maioria, porém, concorda que, com a reunificação da Alemanha nos anos 1989-1990, o sucesso do país ficou patente. Nesse momento, o distorcido caminho histórico de desenvolvimento da Alemanha (ou Sonderweg) enfim se concluía.20
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